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JULES MICHELET

tradução: Luiz Fernando Serra Moura Correia

HISTÓRIA
DA FRANÇA

TOMO II - Livros III e IV

(anos 987 - 1270)

1ª edição
Rio de Janeiro - 2014
Luiz Fernando Serra Moura Correia
HISTÓRIA DA FRANÇA
TOMO SEGUNDO - LIVROS III e IV
(Paris – 1833)

Por Monsieur Michelet,


Professor Suplente à Faculdade de Letras, Professor
à Escola Normal, Chefe da Seção Histórica
dos Arquivos do Reino
*
Tradução: Luiz Fernando Serra Moura Correia
(Rio de Janeiro – 2014)

MICHELET, Jules (1798-1874)


Editor: Luiz Fernando Serra Moura Correia (Prefixo editorial 915812)
Ilustradores: Rodolfo Guilherme P. Moura Correia e Maria Fernanda P. Moura Correia

Assunto: História da Europa (código ISBN 940)


Idioma: português
Suporte: e-book
Formato: azw3
1ª edição – 2014 – Rio de Janeiro
ISBN 978-85-915812-2-1

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, transmissão de partes ou da totalidade deste livro, armazenamento, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito do editor. Direitos
exclusivos desta edição reservados por Luiz Fernando Serra M oura Correia. Permitida a disponibilização para venda pela Amazon em formato digital, consoante termos e condições do KDP.
NOTA DO TRADUTOR

Como pudemos ler do prefácio do Autor no Tomo I, este volume é assim descrito: “No segundo, as províncias, sua geografia; então, sua tendência em
direção à unidade monárquica. Este período feudal de nossa história terminou antes de 1300, com São Luís, o fim e o ideal da Idade Média. A Idade Moderna
começa com Felipe, o Belo, com o rebaixamento do papado, com o tapa em Bonifácio VIII”.

Mantive, na tradução deste Tomo II, tanto a sistemática de inserção de Notas do Tradutor (NT), quanto as ilustrações feitas pelos meus filhos Rodolfo e Maria
Fernanda, tendo o primeiro desenhado a franquisque e a segunda a flor-de-lis.

Guardei, ainda, o emprego das segundas pessoas do singular e plural, em respeito à “sutil eloqüência” da língua francesa, bem assim para perpetuar o estilo da
época em que foi escrito (1833).

À semelhança da tradução que realizei para o Tomo I, para a vasta maioria das passagens em latim e grego, fui buscar sua tradução em fontes não originais, isto é,
em traduções feitas majoritariamente em inglês[1], francês ou português.

Ante uma pergunta de minha mulher sobre a tradução (ao que acrescento a transliteração) de nomes próprios para o português, julgo conveniente explicar que
assim o fiz quando já se encontram consagrados pela imemorial prática e costume. Não faria sentido, de fato, escrever Guillaume para Guilherme, São Louis para São
Luís, Richard (ou Rischard) para Ricardo Coração de Leão, Jean para João Sem Terra, Santo Augustinus para Santo Agostinho et cœtera .

Também a uma outra pergunta dela sobre a inexistência de vírgula a separar o nome próprio do cognome (v.g., Luís o Gordo, Luís o Debonário, Henrique o Ruivo,
Henrique o Bastardo) ao invés da forma correta (Luís, o Gordo, Luís, o Debonário, Henrique, o Ruivo, Henrique, o Bastardo), esclareço não se tratar de ignorância quanto
à regra culta do vernáculo, mas de deliberada escolha a fim de manter a fluidez e a clareza num texto repleto de nomes e apostos e adjuntos adverbiais.

Este Tomo é singularmente extenso e reconheço que sua primeira parte, i.e., o Livro III, possa talvez ser um pouco cansativo, já que descreve a geografia da
França, relacionando-a a fatos históricos e pessoas importantes e/ou célebres da História desse país. Poderá servir, na pior das hipóteses, como um interessante guia a
permitir um rascunho de viagens futuras a fim de que o viajante eventual possa melhor se situar sobre fatos que ocorreram em tal ou qual lugar.

Já o livro IV corresponde propriamente à continuação do Tomo I.

Uma menção legal que me pareceu desnecessária, quando da tradução do Tomo I, mas que, por via das dúvidas, tenho por bem registrar, vez também ser o Editor:
a obra original em francês encontra-se em domínio público, tanto sob a legislação da República Francesa (Código de Propriedade Intelectual, artigo L. 123-1: L'auteur
jouit, sa vie durant, du droit exclusif d'exploiter son œuvre sous quelque forme que ce soit et d'en tirer un profit pécuniaire. Au décès de l'auteur, ce droit
persiste au bénéfice de ses ayants droit pendant l'année civile en cours et les soixante-dix années qui suivent), quanto a da República Federativa do Brasil (art. 41,
lei nº 9.610/98: Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subseqüente ao de seu falecimento, obedecida a
ordem sucessória da lei civil), sendo considerada, portanto, obra nova (artigos 7º, inciso XI, 14 e 41 da lei nº 9.610/98).

Gostaria de fazer um registro das belas palavras que meu primo Pedro Reis Lima, homem culto, Mestre em língua alemã pela Freie Universität Berlin, escreveu a
respeito da tradução que fiz do Tomo I e que muito me incentivaram neste Tomo II:

“Queridíssimo primo Luiz, ... Os nossos grandes poetas e autores formaram-se igualmente advogados e cultivaram, como vc, parte de seu tempo para o
engrandecimento do espírito. Há um pendor civilizatório e democrático em compartilhar aquilo que se refere à história de países que foram modelares para
aquilo que entendemos por civilização. Foi com lágrimas de orgulho que li a notícia, imaginando o quanto havia ali, não só de sublimação de uma situação
profissional, social, familiar, por vezes inquietantes, como sempre o são, mas igualmente de dedicação e paixão pelo material. Neste caso um exemplo de auto
superacão”.

Vielen Dank, primo!

À minha mãe Elza, que dedicou horas e horas à revisão do texto traduzido, meu eterno reconhecimento e amor.

A Maria Luiza Amaral Serra (1º de novembro de 1929 – 30 de dezembro de 2013), in memoriam, querida avó cuja alma sofrida, mas alegre, doadora e cheia de fé,
finalmente voou para a paz do Senhor. Kyrie eleison. Christe eleison.

Rio de Janeiro, inverno de 2013 ao início do verão 2013/2014.

Luiz Fernando Serra Moura Correia


Tradutor e Editor
(editor_luizfernando@hotmail.com)
TÁBUA DE MATÉRIAS

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LIVRO TERCEIRO – QUADRO DA FRANÇA

As divisões feudais respondem às divisões naturais e físicas;


A história da feudalidade deve então sair de uma caracterização geográfica e fisiológica da França;
A França se divide em duas vertentes, ocidental e oriental;
A França pode ser dividida por seus produtos em zonas latitudinais
Bretanha (Bretagne);
Anjou;
Turânia (Touraine – região de Tours);
Poitou;
Limousin;
Auvérnia (Auvergne);
Rouergue;
Languedoc;
Pirineus (Pyrénées);
Guiana (Guyenne);
Provença (Provence);
Delfinado (Dauphiné);
Franco-Condado (Franche-Comté);
Lorena (Lorraine)
Ardenas (Ardennes)
Leonês (Lyonnais – região de Lyon);
Autunês (Autunois – região de Autun) e Morvan;
Borgonha (Bourgogne)
Champagne;
Normandia (Normandie);
Flandres (Flandre);
Centro da França. Picardia (Picardie), Orleanês (Orléanais), Ilha de França (Île-de-France);
Centralização.

LIVRO IV

Capítulo I: O ano 1000. O Rei da França e o Papa Francês. Roberto e Gerberto – França feudal.

Crença universal na proximidade do fim do mundo;


Calamidades que precedem o ano 1.000;
O mundo aspira a entrar na Igreja;
O rei da França, Roberto, é um santo;
Esperança do mundo após o ano 1.000. Ímpeto da arquitetura; dogma da Presença Real; peregrinações;
Gerberto, ou Silvestre II, amigo dos Capetos;
Os Capetos se apóiam sobre a Igreja e sobre os Normandos;
Rivalidade das Casas Normandas da Normandia e de Blois;
Roberto desposa Berta, da Casa de Blois;
1037: Má fortuna de Eudes da Champagne, herdeiro da Casa de Blois;
A Casa de Blois se divide em Blois e Champagne e resta inferior aos Normandos da Normandia;
A Casa indígena de Anjou sucede ao seu poder;
Os Angevinos governam Roberto. Bouchard, Foulques Nerra;
1012: Depois deles, os Normandos da Normandia governam Roberto e submetem-lhe a Borgonha;
1031: Henrique I. Ele se indispõe com os Normandos.
1031-1108: Nulidade de Henrique I e de Filipe I.

Capítulo II: Décimo-primeiro século. Gregório VII. Aliança dos Normandos e da Igreja – Conquistas das Duas Sicílias e da Inglaterra.

Luta entre o Santo Pontificado e o Sacro Império, entre a Feudalidade e a Igreja;


Materialismo profundo do mundo feudal;
A Igreja pouco a pouco torna-se feudal e se materializa;
Gregório VII consegue modificá-la. Celibato dos padres;
A Igreja pretende à dominação universal;
O Império é vencido;
O Papa se alia aos Normandos;
1000 – 26: Suas peregrinações na Itália;
1026: Primeiros assentamentos dos Normandos na Itália;
1037 – 53: Os filhos de Tancredo conquistam a Apúlia (Puglia) e as Duas Sicílias;
Guilherme o Bastardo, duque da Normandia;
Incivilidade e espírito de oposição da Igreja anglo-saxã;
Eduardo, rei da Inglaterra, amigo dos Normandos, governado pelo saxão Godwin;
Guilherme, apoiado pelo Papa, pretende reinar após Eduardo, com a exclusão de Haroldo, filho de Godwin;
1066: Batalha de Hastings; conquista da Inglaterra pelos Normandos;
Guilherme trata inicialmente os vencidos com alguma suavidade;
Revolta dos Saxões. Partilha de toda a Inglaterra;
Utilidade da conquista. Forte organização social;
Poder da realeza e da igreja inglesa;
A Santa Sé triunfa em toda a Europa pela espada dos Franceses.

Capítulo III: A Cruzada. 1095-1099.

Estado do Islamismo na Ásia;


A essência do Islamismo era a unidade;
A dualidade nele ingressa. Álidas. Ismaelitas;
Doutrina mística dos Ismaelitas ou Assassinos
Poder de Hassan, 1090;
Fraqueza dos Califados;
Juventude e vigor do Cristianismo;
Peregrinações armadas; início das cruzadas;
Os Gregos chamam os príncipes do Ocidente;
1095: o Papa francês Urbano II prega a cruzada em Clermont;
Vulto do movimento popular;
Os chefes. Godofredo de Bouillon, Hugo de Vermandois, Raimundo de Toulouse etc.;
Os Provençais e os Normandos. Boemundo;
Godofredo de Bouillon;
1096: Partida dos chefes. Chegada em Constantinopla;
Ódio mútuo dos cruzados e dos Gregos;
Os cruzados passam na Ásia Menor. Tomada de Nicéia;
Tomada de Antióquia. Sofrimentos dos cruzados. Boemundo mantém Antióquia.
1099: Tomada de Jerusalém;
Godofredo, rei de Jerusalém. Estabelecimento da feudalidade francesa na Palestina.

Capítulo IV: Sequência da Cruzada. As Comunas. Abelardo. Primeira metade do século XI.

Resultado da Cruzada. A aversão da Europa e da Ásia diminuiu;


A idéia de igualdade se desenvolveu;
Tentativas de libertação. Comunas;
O rei se apóia nas comunas contra os barões;
1108: Luís VI. Ele organiza seus primeiros exércitos para a Igreja e para os mercadores;
A realeza ganha com a ausência dos senhores que partiram para a cruzada;
Guerra de Luís contra os Normandos. Batalha de Brenneville (1199);
1115: Expedição no Midi;
1124: O Imperador Henrique V deseja invadir a França. Toda a França se arma por Luís VI;
A liberdade se produz na filosofia;
Movimento das idéias. Gerberto, Berengário de Tours, Roscelino de Compiègne, escolas de Direito; universidade de Paris;
O bretão Abelardo tenta resumir o cristianismo na filosofia. Imensa popularidade de seu ensino;
São Bernardo; seu poder;
Ele ataca Abelardo e seu discípulo Arnaldo de Brescia;
1119: Abelardo se retira em Saint-Denis;
Ele funda o Paracleto para Heloísa;
Ele é condenado no Concílio de Sens;
Heloísa. A mulher se ergue pelo amor desinteressado;
Roberto d’Arbrissel a coloca acima do homem.
Ordem de Fontevraud, 1106;
Progresso do culto da Virgem;
A mulher também reina sobre a Terra. Ela sucede etc.;

Capítulo V: O Rei da França e o Rei da Inglaterra. Luís o Jovem e Henrique II (Plantageneta) – Segunda Cruzada, humilhação de Luís – Thomas Becket,
humilhação de Henrique (segunda metade do século XII).

O rei da Inglaterra, violento, heróico, ímpio;


O rei da França, figura pálida e impessoal, mas que tem por si o povo e a lei, a Igreja e a burguesia;
Ele é o símbolo e o centro da nação.
1137: Devoção de Luís VII;
1142: Guerra com a Champagne. Incêndio de Vitry;
1147: Segunda Cruzada, pregada por São Bernardo;
Diferença entre a segunda cruzada e a primeira;
O Imperador Conrado e uma multidão de príncipes tomam a cruz;
Insucessos dos cruzados na Ásia Menor;
Retorno vergonhoso de Luís VII;
A mulher de Luís, Eleonora, obtém o divórcio, casa-se com Henrique Plantageneta e leva-lhe a Aquitânia;
Situação da realeza inglesa. Opressão dos vencidos; poder da feudalidade;
Contra seus barões, o rei se apóia em mercenários. Necessidade de uma fiscalidade violenta;
1087: Guilherme o Ruivo;
1100: Henrique Beauclerc;
1125: Estevão (Étienne) de Blois. Ele reconhece como seu sucessor Henrique Plantageneta, conde de Anjou;
1154: Henrique II. Suas vastas possessões.
Os vencidos aguardam sob Henrique II;
Ressurreição do Direito Romano;
O saxão Becket, aluno de Bolonha, favorito e chanceler de Henrique II;
Guerra de Henrique contra o conde de Toulouse;
Henrique II dá a Becket o arcebispado de Canterbury;
Papel popular dos arcebispos de Canterbury. Eles defendem as liberdades de Kent;
Becket aceita este papel e se indispõe com Henrique;
1163: Henrique manda os bispos subscreverem os Costumes de Clarendon;
As raças vencidas apóiam Becket;
Becket, defensor das liberdades daqueles e da liberdade da Igreja;
1164: Ele se refugia na França;
Luís VII o acolhe e o protege;
Ele excomunga seus perseguidores;
O Papa se declara contra ele;
Entrevista de Becket e dos dois reis em Chinon;
Becket retorna a Canterbury;
1170: Ameaças de Henrique II. Quatro cavaleiros normandos assassinam o arcebispo dentro de sua igreja. Paixão de Becket;
Henrique obtém seu perdão da Santa Sé;
Revolta de seus filhos e de sua mulher Eleonora;
Ele faz penitência no túmulo de Thomas Becket;
Ele retoma com energia a guerra contra seus filhos;
Caráter ímpio e parricida dessa família;
Afeição dos Meridionais por Eleonora da Guiana;
1189: Desgraça e morte de Henrique II;
O rei da França, sobretudo, lucra com a queda do rei da Inglaterra;
Sua devoção à Igreja faz sua grandeza;
1180: Filipe Augusto.

Capítulo VI: 1200. Inocente III – O Papa prevalece pelas armas dos Franceses do norte sobre o Rei da Inglaterra e o Imperador da Alemanha, sobre o
Império Grego e sobre os Albigenses – Grandeza do Rei da França.

Situação do mundo ao fim do século XII;


Revolta contra a Igreja;
Misticismo no Reno e nos Países-Baixos;
Em Flandres, misticismo industrial;
Racionalismo nos Alpes;
Valdenses;
Albigenses;
Ligação do Midi com os Judeus e os Muçulmanos;
Incredulidade e corrupção;
Literatura. Trovadores;
Situação política do Midi;
Doutrinas albigenses, crenças maniqueístas;
Doutrinas valdenses;
Perigo da Igreja;
Inocente III;
Pretensões crescentes da Santa Sé;
Oposição do Imperador e do rei da Inglaterra;
Filipe Augusto;
Ricardo Coração de Leão;
1187: Tomada de Jerusalém;
Reino dos Atabegues da Síria, Zengi e Nuradino;
Saladino;
Terceira Cruzada. Frederico Barba-Ruiva morre a caminho;
Os reis da Inglaterra e da França tomam a rota do mar;
Suas querelas na Sicília;
Cerco de São João d’Acre;
Divisões dos cruzados. Filipe retorna à França;
O Imperador mantém Ricardo prisioneiro;
1199: Retorno e morte de Ricardo;
O divórcio de Filipe Augusto o indispõe com a Igreja;
1202-04: Quarta Cruzada;
Os cruzados tomam navios emprestados com Veneza;
O imperador Grego implora o auxílio deles;
Ódio mútuo dos Gregos e dos Latinos;
Sítio e tomada de Constantinopla;
Sublevação do povo. Murtzouphlos;
Segunda tomada de Constantinopla;
Partilha do império grego. Balduíno de Flandres imperador.

(Sequência) Capítulo VII: Ruína de João – Derrota do Imperador – Guerra dos Albigenses – Grandeza do Rei da França. 1204-1222.

A Igreja inicialmente bate o rei da Inglaterra;


Perigo contínuo dos reis da Inglaterra; mercenários e fiscalidade;
Desarmonia crescente do império inglês;
Rivalidade de João e de seu sobrinho, Arthur da Bretanha;
1204: Assassinato de Arthur;
Filipe Augusto intima João perante sua corte;
João se liga com o Imperador e com o conde de Toulouse;
Situação precára da Igreja no Languedoc;
Antipatia do Norte pelo Midi;
Devastações dos salteadores (routiers);
Oposição das duas raças nas cruzadas;
A cruzada será pregada pela Ordem de Cîteaux;
Seu esplendor;
Durando d’Huesca
São Dominique (ou São Domingos);
O conde de Toulouse favorece os heréticos;
1208: Assassinato do legado papal Pierre de Castelnau
Inocente III manda pregar a cruzada no norte da França;
À testa dos cruzados, Simão de Montfort. Sinas desta família;
Sítio e massacre de Béziers;
Tomada de Carcassonne;
Montfort aceita os despojos do visconde de Béziers;
Sítios dos castelos de Minerva e de Termes;
O conde de Toulouse se submete a condições humilhantes;
Sítio de Toulouse;
Todos os senhores dos Pirineus se declaram por Raimundo;
O rei de Aragão manda desafiar Montfort;
Oposição dos exércitos de Montfort e de Don Pedro;
1213: Batalha de Muret;
Querela de João e dos monges de Canterbury;
O Papa se declara contra João e o excomunga;
O Papa arma a França. João se submete;
Guerra de Filipe contra os Flamengos;
João se liga com o Imperador Otto;
1214: Batalha de Bouvines;
1215: Sublevação dos barões da Inglaterra. Magna Carta Libertatum;
Luís, filho de Filipe, desembarca na Inglaterra;
1216: Morte de João. Morte de Inocente III;
Dúvidas e, talvez, remorsos do Papa;
1222: O Midi se lança nos braços do rei da França.
Situação da Europa. O porvir pertence ao rei da França

Capítulo VIII: Primeira metade do décimo-terceiro século. Misticismo. Luís IX. Santidade do rei da França.

Decadência do Papado;
Ordens Mendicantes: dominicanos e franciscanos;
Espírito austero dos Dominicanos;
Misticismo dos Franciscanos;
Lenda de São Francisco;
Dramas e farsas místicas;
O misticismo franciscano acolhido pelas mulheres;
Clarissas. Devoção à Virgem.
Influência das mulheres no século XIII.
1218: Luís VIII assenhora-se do Poitou e alarga sua influência em Flandres;
Ele retoma a cruzada contra os Albigenses;
1226: Ele morre. Regência de Branca de Castela;
Ela se apóia no conde de Champagne;
Liga dos barões. Pierre Mauclerc, duque da Bretanha;
Nova cruzada no Languedoc. Submissão do conde de Toulouse;
Submissão dos barões;
1236: São Luís. Situação favorável do reino;
Descrédito do Imperador e do Papa;
São Luís herda os despojos dos inimigos da Igreja;
Devastações dos Mongóis na Ásia;
O imperador Grego implora o socorro da França;
São Luís retido pela guerra contra Henrique III;
1241: Batalhas de Taillebourg e de Saintes;
1258: Tomada de Jerusalém pelos Mongóis;
São Luís, doente, toma a cruz;
Estadia dos cruzados em Chipre;
Sítio de Damieta;
Derrota de Almançora.
Enfermidades no campo;
Prisão do rei e de uma multidão de cruzados;
Ele fortifica as praças da Terra Santa e retorna à França;
O misticismo produz a insurreição dos Pastores;
São Luís restitui províncias à Inglaterra;
Situação da Inglaterra no reinado de Henrique III;
Ele deseja se apoiar nos homens do Midi;
Insurreição dos barões. Montfort.
1258: Estatutos de Oxford;
1264: São Luís, tomado por árbitro, cassa os Estatutos. Montfort chama os comuns ao Parlamento.
Carlos d’Anjou aceita os despojos da Casa da Suábia;
Caráter heróico dessa Casa gibelina;
Duro espírito dos Guelfos;
A Casa da Suábia se torna odiosa;
Conquista das Duas Sicílias por Carlos d’Anjou;
1270: Cruzada de Túnis e morte de Luís IX.
Santidade de Luís IX. Sua equidade nos julgamentos.

Capítulo IX: Luta dos Mendicantes e da Universidade. São Tomás de Aquino. Dúvidas de São Luís. A Paixão como princípio da arte na Idade Média.

Luta da Universidade contra o misticismo;


São Tomás;
Dúvidas de São Luís;
Da Paixão;
A epopéia na Idade Média;
A Igreja, o culto;
Da arte;
História da Arquitetura;
Idade gótica da arquitetura;
Causas da decadência do gótico;
Poderia ser a Idade Média a Consumação?

ESCLARECIMENTO.
PRINCIPAIS CIDADES DA FRANÇA, FRONTEIRAS MARÍTIMAS E TERRESTRES (atual)
(clique para zoom)
RELEVO E PRINCIPAIS RIO DA FRANÇA
(clique para zoom)

Do S ul para o Norte e do Oeste para Leste:


Pirineus (Pyrénées); Bacia Aquitânica (Bassin aquitain); rio Garonne; rio Dordogne; rio Charente, Platô (Plateau) de M illevaches, M aciço Central (Massif Central); Cevenas (Cévennes); rio Ródano (Rhône);
Alpes; rio Durance, rio Isère; Jura (cadeias de montanhas), rio Doubs, rio Saône; colinas Gâtine; Seul do Poitou, rio Loire e afluentes Viena (Vienne), Cher, Loir, M ayenne e Sarteh; ao norte da foz do rio Loire:
M aciço Armoricano (Massif Armoricain); Bacia Parisiene (Bassin parisien), rio Sena e afluentes Oise, Aisne e M arne; Vosges (cadeia de montanhas); Platô ( Plateau) de Langres, Platô Loreno (Plateau lorrain);
rio M osa (Meuse), rio M osela (Moselle); Platô da Alsácia (Plateau d’Alsace) e, no extremo norte, Flandres e o rio Somme.
MAPA SIMPLES DA FRANÇA - RELEVO
(clique para zoom)

Do S ul para o Norte e do Oeste para Leste:


Pirineus (Pyrénées); Bacia Aquitânica (Bassin aquitain); rio Garonne; M aciço Central (Massif Central); rio Ródano (Rhône); Alpes; rio Loire; Jura (cadeias de montanhas); rio Loire;ao norte da foz do rio Loire:
M aciço Armoricano (Massif Armoricain); Bacia Parisiene (Bassin parisien), rio Sena.
MAPA FLUVIAL
(clique para zoom)
REGIÕES DA FRANÇA – RESUMIDO

1 - Ilha da França (Île de France) 11 – M idi-Pirineus (Midi-Pyrénées);


2 – Picardia (Picardie); 12 – Languedoc-Roussillon;
3 – Passo de Calais do Norte (Nord Pas de 13 – Provença Alpes Côte d’Azur;
Calais) (Provence Alpes Côte d’Azur)
4 – Alta Normandia (Haute Normandie) 14 – Ródano-Alpes (Rhône-Alpes)
5 – Baixa Normandia (Basse Normandie) 15 – Auvérnia (Auvergne)
6 – Bretanha (Bretagne) 16 – Limousin
7 – País (região) do Loire (Pays de la Loire) 17 – Borgonha (Bourgogne)
8 – Centro (Centre); 18 – Franco-Condado (Franche-Comté)
9 – Poitou-Charente; 19 – Champagne-Ardenas (Champagne
Ardenne)
10 – Aquitânia (Aquitaine); 20 – Lorena (Lorraine)
21 – Alsácia (Alsace)
LIVRO TERCEIRO – QUADRO DA FRANÇA
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A História da França começa com a língua francesa. A língua é o signo principal de uma nacionalidade. O primeiro
monumento da nossa é o juramento feito por Carlos o Calvo a seu irmão, no tratado de 843[2]. É no meio século seguinte que
as diversas partes da França, até então confusas numa obscura e vaga unidade, se caracterizam, cada uma, por uma dinastia
feudal. As populações, por tanto à deriva, enfim fixaram-se e assentaram-se. Sabemos, agora, onde encontrá-las e, ao mesmo
tempo em que existem e atuam à parte, elas tomam, pouco a pouco, uma voz; cada um tem sua própria história, cada uma narra-
se a si própria.

A variedade infinita do mundo feudal, a multiplicidade de objetos pelos quais ela, inicialmente, fatiga a vista e a
atenção, não é menos a revelação da França. Pela primeira vez, ela se faz na sua forma geográfica. Quando o vento espalha
essa vã e uniforme névoa com a qual o Império Alemão tudo cobrira e tudo escurecera, o país aparece nas suas diversidades
locais, desenhado por suas montanhas, por suas margens. As divisões políticas aqui respondem às divisões físicas. Tão
distante que ele possua, como se afirmou, confusão e caos, é uma ordem, uma regularidade inevitável e fatal. Coisa bizarra!
Nossos oitenta e seis departamentos correspondem, quase igualmente, aos oitenta e seis distritos dos Capitulares donde saiu a
maioria das soberanias feudais[3], e a Revolução, que acabava de dar o último golpe na feudalidade, a imitou, apesar de si.

O verdadeiro ponto de partida de nossa história deve ser uma divisão política da França formada segundo sua divisão
física e natural. A história, de início, é toda a geografia. Não podemos narrar a época feudal ou provincial (essa última
palavra, igualmente, bem a designa) sem ter caracterizado cada uma das províncias. Mas não basta traçar a forma geográfica
dessas diversas regiões: é sobretudo por seus frutos que elas se explicam, quero dizer, pelos homens e eventos que devem
fazer sua história. Do lugar onde nos colocamos, prediremos aquilo que cada uma delas deve fazer e produzir, traçaremos seu
destino, oferecer-lhes-emos nossos dotes em seus berços.

Inicialmente, contemplemos o conjunto da França para vê-la, ela própria, dividir-se.

Subamos sobre um dos pontos elevados dos Vosges ou, se desejais, no Jura. Viremos as costas para os Alpes.
Distinguiremos (visto que nosso olhar pode alcançar um horizonte de trezentas léguas), uma linha ondulada que se estende das
colinas corcoveadas do Luxemburgo e das Ardenas aos balões dos Vosges [4]; daí, pelas encostas viníferas da Borgonha aos
rasgos vulcânicos dos Cevenas e até à prodigiosa muralha dos Pirineus. Essa linha é a separação das águas; do lado ocidental,
o Sena, o Loire e o Garonne descem até o Oceano; atrás, corre o Mosa ao norte, o Saône e o Ródano ao sul. À distância, duas
espécies de ilhas continentais: a Bretanha, austera e baixa, simples quartzo e granito, grande baixio situado na esquina da
França para absorver os golpes das correntes da Mancha; de outra parte, a verde e rude Auvérnia, vasto incêndio extinto com
seus quarenta vulcões.

As bacias do Ródano e do Garonne, malgrado sua importância, não são senão secundárias. A vida forte está ao norte. Lá
se operou o grande movimento das nações. O derramamento de raças deu-se da Alemanha para a França, nos tempos antigos.
A grande luta política dos tempos modernos é entre a França e a Inglaterra. Esses dois povos situam-se face a face, como para
se baterem; as duas regiões, em suas partes principais, oferecem duas encostas, uma em frente da outra; ou, caso se deseje, é
apenas e unicamente um vale cujo fundo é a Mancha. Aqui, o Sena e Paris, lá, Londres e o Tâmisa. Mas a Inglaterra apresenta
à França a sua parte germânica e retém, atrás de si, os Celtas de Gales, da Escócia e da Irlanda. A França, ao contrário,
arrimada em suas províncias de língua germânica (Alsácia e Lorena), opõe uma fronte céltica à Inglaterra. Elas exibem-se,
uma à outra, aquilo que há de mais hostil.

A Alemanha em nada se opõe à França; antes, ela é muito mais paralela. O Reno, o Elba, o Oder, vão aos mares do
norte, como o Mosa e o Escalda (Escaut). A França alemã, além disso, simpatiza com a Alemanha, sua mãe. Para a França
romana e ibérica, qualquer que seja o esplendor de Marselha e de Bordeaux, ela daí não observa senão o velho mundo da
África e da Itália e, do outro lado, o vago Oceano. A muralha dos Pirineus separa-nos da Espanha mais que o mar também não
a separa da África. Quando nos erguemos acima das chuvas e das baixas neblinas até o porto de Vénasque, e que a vista
mergulha sobre a Espanha, vê-se bem que a Europa terminou e um mundo novo abre-se: à frente, a ardente luz da África, atrás,
uma cerração ondulante sob um vento eterno.
Em latitude, as zonas da França são perfeitamente marcadas por seus produtos. Ao norte, as gordas e baixas planícies da
Bélgica e de Flandres com seus campos de linho e colza, e o lúpulo, seu vinho amargo do norte. De Reims à Mosela, começa a
verdadeira vinha e o vinho; todo espírito na Champagne, bom e quente na Borgonha, ele fica mais carregado, engrossa-se no
Languedoc para despertar em Bordeaux. A amoreira, a oliveira, surgem em Montauban; mas essas crianças delicadas do sul
arriscam-se sob o céu desigual da França[5]. Em longitude, as zonas não são menos marcadas. Veremos as relações íntimas
que unem, como numa longa bandagem, as províncias fronteiriças das Ardenas, da Lorena, do Franco-Condado (Franche-
Comté) e do Delfinado (Dauphiné). O cinto oceânico, composto de uma parte de Flandres, Picardia e Normandia e, de outra
parte, do Poitou e da Guiana, derivaria em seu imenso curso se não se encontrasse apertado nesse duro nó da Bretanha.

Diz-se que Paris, Rouen, o Hâvre, são uma mesma cidade onde o Sena é a grande rua. Distanciai-vos ao sul desta rua
magnífica, onde os castelos tocam os castelos, os vilarejos os vilarejos; passai do Sena inferior ao Calvados e do Calvados à
Mancha, quaisquer que sejam a riqueza e a fertilidade dessa região, as cidades diminuem em número, assim como as culturas;
os pastos aumentam. O país é sério; ele vai se tornar triste e selvagem. Aos altaneiros castelos da Normandia vão suceder os
baixos solares bretões. A vestimenta parece seguir a mudança de arquitetura. O chapéu triunfal das mulheres de Caux, que tão
dignamente anunciam as filhas dos conquistadores da Inglaterra, alarga-se em torno de Caen, achata-se depois de Villedieu;
em Saint-Malo, ele se divide e, ao vento, parece, ora como as pás de um moinho, ora como as velas de um barco. De outra
parte, as vestes de pele començam em Laval. As florestas que vão se espessando, a solidão da Trappe, onde os monges levam
em comum a vida selvagem, os nomes expressivos das cidades, Fougères e Rennes (Rennes também significa fougère[6]), as
águas cinzentas do Mayenne e do Vilaine, tudo anuncia a rude região.

Mas é por aí que desejamos começar o estudo da França. A primogênita da monarquia, a província céltica, merece o
primeiro olhar. Dela desceremos aos velhos rivais dos Celtas, aos Bascos ou Iberos, não menos obstinados em suas
montanhas que o Celta nas suas charnecas e seus pântanos. Poderemos passar na sequência aos países misturados pelas
conquistas romana e germânica. Teremos estudado a geografia na ordem cronológica e viajado, por sua vez, no espaço e no
tempo.

A pobre e dura Bretanha, o elemento resistente da França, estende seus campos de quartzo e de xisto a partir das minas
de ardósia de Châteaulin, próximo de Brest, até às minas de ardósia de Angers. Eis aí a sua extensão geológica. Todavia, de
Angers a Rennes, é uma região disputada e inconstante, um border[7] como aquele da Inglaterra e da Escócia, que cedo
escapou à Bretanha. A língua bretã nem mesmo começa em Rennes, mas nas redondezas de Elven, Pontvy, Loudéac e
Châtelaudren. Daí até à ponta da Finistère, é a verdadeira Bretanha, a Bretanha bretonante, país tornado estrangeiro ao nosso
justamente porque permaneceu muito fiel a nosso estado primitivo: pouco francês, tanto ele é gaulês, e que nos teria escapado,
mais de uma vez, se não o tivéssemos mantido apertado, como com pinças e tenazes, entre quatro cidades francesas de um
temperamento rude e forte: Nantes e Saint-Malo, Rennes e Brest.

E entretanto, essa pobre velha província salvou-nos mais de uma vez; com frequência, quando a pátria estava em apuros,
e que ela também quase se desesperava, encontrou-se peitos e cabeças bretãs mais duras que o ferro do estrangeiro[8].
Quando os homens do Norte corriam impunemente nossas costas e nossos rios, a resistência começou pelo bretão Nomenoé;
os Ingleses foram repelidos no décimo-quarto século por Duguesclin; no século XV, por Richemont; no XVII, perseguidos
sobre todos os mares por Duguay-Trouin. As guerras da liberdade religiosa, e aquelas da liberdade política, não possuem
glórias mais inocentes e mais puras que Lanoue e Latour-d’Auvergne, o primeiro-granadeiro da república. É um Nantense, a
crer-se na tradição, que teria exalado o último brado de Waterloo: A guarda morre e não se rende.

O gênio da Bretanha é um gênio de indomável resistência e de oposição intrépida, obstinada, teimosa e cega: testemunha
Moreau, o adversário de Bonaparte. A coisa é ainda mais sensível na história da filosofia e da literatura. O bretão Pelágio [9],
que colocou o espírito estóico no cristianismo e foi o primeiro a reclamar, na igreja, em favor da liberdade humana, teve por
sucessores o bretão Abelardo[10] e o bretão Descartes. Todos os três forneceram o ímpeto à filosofia de seus respectivos
séculos. Todavia, mesmo em Descartes, o desdém dos fatos, o desprezo da história e das línguas, indica suficientemente que
esse temperamento independente, que fundou a psicologia e dobrou as matemáticas, teve mais vigor que duração[11].

Esse espírito de oposição, tão natural à Bretanha, é marcado, no último século e no presente, por dois fatos
contraditórios em aparência. A mesma parte da Bretanha (Saint-Malo, Dinan e Saint-Brieuc) que produziu, sob Luís XV, os
incrédulos Duclos, Maupertuis e Lamétrie, deu ao catolicismo, em nossos dias, seu poeta e seu orador, Châteaubriand e La
Mennais.

Lancemos agora uma rápida olhadela sobre a região.


Às suas duas portas, a Bretanha tem duas florestas, o Bocage normando e o Bocage vendéio; duas cidades, Saint-Malo e
Nantes, a cidade dos corsários e aquela dos negreiros[12]. O aspecto de Saint-Malo é singularmente feio e sinistro; além
disso, qualquer coisa de bizarra que encontramos por toda a quase-ilha, nas vestes, nos quadros, nos monumentos[13]. Cidade
pequena, sombria e triste, ninho de abutres ou águias marinhas, vez por vez ilha e quase-ilha, consoante o fluxo ou o refluxo da
maré; toda cercada de recifes sujos e fétidos, onde o sargaço do mar apodrece com prazer. Ao longo, um lado de rochedos
brancos, angulosos, como talhados pela navalha. A guerra é o bom tempo para Saint-Malo; eles não conhecem festa mais
encantadora. Quando, recentemente, tiveram a esperança de enxotar os vasos holandeses, era preciso vê-los sobre suas negras
muralhas, com suas lunetas que já incubavam o Oceano[14].

Na outra ponta, está Brest, o grande porto militar, o pensamento de Richelieu, a mão de Luís XIV; forte, arsenal e galés,
canhões e vasos, exércitos e milhões, a força da França amontoada na ponta da França: tudo isso num porto fechado, asfixiado
entre duas montanhas carregadas de imensas construções. Quando percorrerdes esse porto, é como se passásseis em um
barquinho entre dois gigantescos navios de bordos altos; parece que essas pesadas massas virão a vós e que sereis esmagado
entre elas. A impressão geral é grande, mas penosa. É uma prodigiosa façanha, verdadeiro tour de force, um desafio lançado à
Inglaterra e à natureza. Eu aí sinto, em todo lugar, o esforço, o odor das galés e as correntes dos forçados. É justamente neste
ponto, onde o mar, liberto do estreito da Mancha, vem quebrar com tanto furor que posicionamos o grande arsenal de nossa
marinha. Certo, ele está bem guardado. Aí, eu vi canhões mil[15]. Não se entrará nesse lugar, mas dele não se sairá quando e
como se desejar. Mais de um navio pereceu no Passo de Brest[16]. Essa costa toda é um cemitério e nela se perde, a cada
inverno, sessenta embarcações[17]. O mar é inglês por inclinação; ele não ama a França; ele destrói nossos vasos; ele aterra
nossos portos[18].

Nada de mais sinistro e formidável que essa costa de Brest; é o limite extremo, a ponta, a proa do mundo antigo. Lá, os
dois inimigos estão de frente, a terra e o mar, o homem e a natureza. É preciso ver quando ela se rebela, a furiosa, que vagas
monstruosas ela amontoa na ponta de Saint-Mathieu, a cinquenta, a sessenta, a oitenta pés; a espuma voa até à igreja onde as
mães e as irmãs encontram-se em preces[19]. E, mesmo nos momentos de trégüa, quando o Oceano se cala, quem nunca
percorreu essa costa fúnebre sem dizer ou sentir-se tristis usque ad mortem[20]?

É que, de fato, lá existe coisa pior que as espumas, pior que as tempestades. A natureza é atroz, o homem é atroz, e eles
parecem se entender. Desde que o mar lance-lhes uma pobre embarcação, eles correm até à praia, homens, mulheres e
crianças; eles caem sobre essa carniça. Não esperai parar esses lobos, pois eles pilhariam tranquilamente sob o fogo da
polícia[21]. Não tão grave se eles sempre ficassem à espera do naufrágio mas, assegura-se, eles frequentemente os
preparavam: conta-se que, com frequência, uma vaca errante, carregando uma lanterna ondulante presa a seus cornos, conduziu
as embarcações em direção aos baixios de recifes. Só Deus sabe as cenas que se produziam à noite! Viu-se quem, para
arrancar uma baga de diamante de uma mulher que se afogava, cortou-lhe o dedo com os dentes[22].

O homem é duro nessas paragens. Filho maldito da criação, verdadeiro Caim, por que ele perdoaria Abel? A natureza
não o perdoa. É ele, por acaso, poupado pela vaga quando, nas terríveis noites de inverno, ele vai pelos recifes puxar o
sargaço flutuante que deve engordar seu campo estéril e que, tão frequentemente a maré traz a erva e leva o homem? Acaso é
ele por ela poupado quando escorrega, tremendo, sob a ponta do Raz, nos rochedos rubros onde se precipita o inferno de
Plogoff, ao lado da Baía dos Trespassados , onde as correntes levam os cadáveres há tantos séculos[23]? É um provérbio
bretão: “Nul n’a passé le Raz sans mal ou sans frayeur”. E ainda: “Secourez-moi, grand Dieu, à la pointe du Raz! Mon
vaisseau est si petit et la mer est si grande![24]”

Lá, a natureza expira, a humanidade se torna morna e fria. Nula poesia, pouca religião; o cristianismo aí chegou ontem.
Michel Noblet foi o apóstolo de Batz em 1648[25]. Nas ilhas de Sein, de Batz, de Ouessant, os casamentos são tristes e
severos. Os sentidos aí parecem extintos; não há amor, nem pudor, nem ciúme. As jovens fazem, sem enrubescer-se, as
diligências para seus casamentos[26]. A mulher aí trabalha mais que o homem e, nas ilhas de Ouessant, ela é maior e mais
forte; é porque ela cultiva a terra enquanto ele permanece sentado no barco, embalado e batido pelo mar, seu rude amo. Os
animais também se alteram e parecem mudar de natureza. Os cavalos, os coelhos, são de uma estranha pequenez nessas ilhas.

Sentemo-nos nessa formidável ponta do Raz, sobre esse rochedo minado, nessa altura de trezentos pés, donde se vê sete
léguas de costas. É aqui, de alguma forma, o santuário do mundo céltico. O que percebeis para além da Baía dos Trespassados
é a ilha de Sein, triste banco de areia sem árvores e quase sem refúgio; algumas famílias aí vivem, pobres e compassivas que,
todos os anos, salvam os náufragos. Essa ilha era a morada das virgens sagradas que davam aos Celtas bom tempo ou
naufrágio. Lá, elas celebravam sua triste e mortífera orgia; e os navegadores escutavam, com pavor, em pleno mar, o ruído dos
címbalos bárbaros[27]. Essa ilha, na tradição, é o berço de Myrddyn, o Merlin da Idade Média. Seu túmulo está do outro lado
da Bretanha, na floresta de Brocéliande[28], sob a fatal pedra onde sua Vyvyan o encantou. Todos esses rochedos que vedes
são cidades tragadas; é Douarnenez, é Is, a Sodoma bretã; esses dois corvos, que vão sempre voando pesadamente sobre a
margem, não são outra coisa que as almas do rei Gradlon e de sua filha; e esses silvos, que se acreditaria serem aqueles da
tempestade, são os clamadores, sombras dos náufragos que rogam uma sepultura[29].

Em Lanveau, próximo a Brest, ergue-se, como a fronteira do continente, uma grande pedra bruta. A partir daí até Lorient
e de Lorient até Quiberon e Carnac, sobre toda a costa meridional da Bretanha, não podeis caminhar um quarto de hora sem
encontrar alguns desses monumentos informes que são chamados druídicos. Podem ser vistos, com frequência, da estrada, nas
charnecas cobertas de azevinhos e cardos. São grandes pedras baixas erguidas e, normalmente, arredondadas no alto; ou,
então, uma mesa de pedra apoiada sobre três ou quatro pedras retas. Que aí se deseje ver altares, túmulos ou simples
lembranças de algum evento, esses monumentos são, de qualquer modo, imponentes. Mas sua impressão é triste, eles têm algo
de singularmente rude e repugnante. Crê-se sentir nesse primeiro ensaio de arte uma mão já inteligente, mas também dura, tão
pouco humana quanto a rocha que ela trabalhou. Nula inscrição, nulo símbolo, salvo sob as pedras reviradas de Locmariaquer,
também tão pouco distintos, que somos tentados a tomá-los por acidentes naturais[30]. Se perguntardes às pessoas do país,
elas responderão brevemente que são as casas dos Torrigans, dos Courils, homenzinhos lascivos que, ao anoitecer, barram o
caminho e vos forçam a dançar com eles até que pereçais de fadiga. Em outra parte, são as fadas que, descendo das montanhas
fiando, trouxeram essas rochas em seus aventais[31]. Essas pedras esparsas são todo um casamento petrificado. Uma pedra
isolada, em torno de Morlaix, testemunha a infelicidade de um camponês que, por ter blasfemado, foi engolido pela lua[32].

Jamais esquecerei o dia quando parti, de manhãzinha, de Auray, a cidade santa dos chouans [33], para visitar, a algumas
léguas, os grandes monumentos druídicos de Loquimariaquer e de Carnac. O primeiro desses vilarejos, na foz do sujo e fétido
ribeirão de Auray, com suas ilhas do Morbihan, mais numerosas que os dias que há no ano[34], olha por cima uma pequena
baía da praia de Quiberon, de sinistra memória. Caía o nevoeiro, como normalmente há sobre essas costas no meio do ano.
Péssimas pontes sobre o mangue, depois a baixa e sombria mansão com sua longa avenida de carvalhos que foi religiosamente
conservada na Bretanha; bosques escondidos e baixos, onde até as próprias árvores jamais se erguem muito alto; de tempos
em tempos, um camponês que passa sem olhar; mas ele bem vos olhou com seu olho oblíquo de pássaro da noite. Essa figura
explica o famoso brado de guerra e o nome de chouans que os “azuis”[35] lhes davam. Nenhuma casa sobre os caminhos; eles
retornam toda tarde ao vilarejo. Por toda a parte, grandes charnecas, tristemente ornamentadas com éricas rosas e diversas
plantas amarelas; em outras, são campanhas brancas de sarraceno (trigo). Esta neve de verão, essas cores sem brilho, e como
desbotadas desde sempre, afligem o olho mais que o alegram; como essa coroa de palha e de flores com a qual a louca de
Hamlet se enfeita. Avançando em direção a Carnac, é ainda pior. Verdadeiras planícies de rocha onde alguma ovelhas negras
apascentam o calhau. Ao meio de tantas pedras, várias das quais erguidas por si próprias, os alinhamentos de Carnac não
inspiram nenhum espanto. Algumas centenas delas permanecem de pé; a maior é alta de quatorze pés[36].

O Morbihan é sombrio de aspecto e de lembranças; país de ódios antigos, de peregrinações e de guerra civil, terra de
seixos e raça de granito. Lá, tudo dura; aí, o tempo passa mais lentamente. Os padres são muito fortes. É, entretanto, um grave
erro acreditar que essas populações do oeste, bretãs e vendéias, sejam profundamente religiosas: em vários cantões do oeste,
o santo que não atende às preces corre o risco de ser vigorosamente fustigado[37]. Na Bretanha, como na Irlanda, o
catolicismo é caro aos homens como símbolo da nacionalidade. A religião aí possui uma influência política. Um sacerdote
irlandês, que se fez amigo dos ingleses, foi logo expulso do país[38]. Nenhuma igreja, na Idade Média, permaneceu
independente por mais tempo que aquelas da Irlanda e da Bretanha. A última tentou, por muito tempo, subtrair-se da primazia
de Tours e opôs-lhe aquela de Dôle.

Os nobres, assim como os padres, são caros à Bretanha, à Vendéia, como defensores das idéias, dos hábitos antigos. A
nobreza inumerável e pobre da Bretanha estava mais próxima do trabalhador. Havia, nisso, alguma coisa dos hábitos de clã.
Uma multidão de famílias de camponeses vê-se como nobres; alguns acreditavam-se descendentes de Artur ou da fada
Morgana e plantavam, conta-se, espadas como marcos dos limites de seus campos. Eles sentavam-se e cobriam suas cabeças
perante seus senhores como sinal de independência[39]. Em várias partes da província, a servidão era desconhecida: os
domaniers e os quévaisiers[40], duras que fossem suas condições, eram livres de seus corpos, ainda que sua terras fossem
servis[41]. Perante o mais orgulhoso dos Rohans[42], eles se empertigariam dizendo, como fazem, de um tom grave: Me zo
deuzar armoriq – “eu também sou Bretão (armórico)”. Uma palavra profunda vem de ser dita sobre a Vendéia e ela se aplica
também à Bretanha: essas populações são, no fundo, republicanas[43], republicanismo social, não político.

Não nos surpreendamos que essa raça céltica, a mais obstinada do mundo antigo, tenha feito alguns esforços, nos últimos
anos, para prologar um pouco mais sua nacionalidade; ela igualmente a defendeu na Idade Média. No décimo-segundo século,
para que o Anjou prevalecesse sobre a Bretanha, foi necessário que os Plantagenetas tornassem-se, por dois casamentos, reis
da Inglaterra e Duques da Normandia e da Aquitânia. A Bretanha, para escapar-lhes, entregou-se à França mas, ainda aí, foi
necessário um século de guerra entre os partidos francês e inglês, entre os Blois e os Montforts. Quando o casamento de Ana
com Luís XII reuniu a província ao reino, quando Ana escreveu sobre o castelo de Nantes[44] a velha divisa do castelo dos
Bourbons (Qui qu’en grogne, tel es mon plaisir[45]), então começou a luta legal dos Estados, do parlamento de Rennes, sua
defesa do direito costumeiro (consuetudinário) contra o direito romano[46], a guerra dos privilegiados provinciais contra a
centralização monárquica. Duramente reprimida por Luís XIV[47], a resistência recomeçou sob Luís XV; La Chalotais[48],
em uma prisão de Brest, escreveu com um palito de dentes seu corajoso factum contra os jesuítas.

Hoje, a resistência expira, a Bretanha torna-se, pouco a pouco, toda França. O velho idioma, minado pela infiltração
contínua da língua francesa, recua pouco a pouco[49]. O gênio da improvisação poética, que subsistiu por muito tempo entre
os Celtas da Irlanda e da Escócia, e que entre os nossos próprios Bretões não está de todo apagado, torna-se uma
singularidade rara. Outrora, ante o pedido de casamento do bazvalan[50] que cantava quadras de sua própria composição, a
jovem respondia alguns versos; hoje, são fórmulas aprendidas de cor que eles repetem[51]. As tentativas dos Bretões, mais
ousadas que felizes, de tentarem reviver, pela ciência, a nacionalidade de seu país, não foram acolhidas senão com risadas. Eu
mesmo vi, em T***, o sábio amigo de Le Brigant, o velho M. D*** (que eles não conhecem senão pelo nome de Senhor
Sistema). No meio de cinco ou seis mil volumes desparelhados, o pobre ancião, só, recostado sobre uma poltrona secular,
sem cuidado filial, sem família, morria-se de febre entre uma gramática irlandesa e uma gramática hebraica. Ele se reanimou
para me declamar alguns versos bretões num ritmo enfático e monótono que, entretanto, não era sem charme. Não pude ver,
sem compaixão profunda, esse representante da nacionalidade céltica, esse defensor expirante de uma língua e de uma poesia
agonizantes.

Podemos seguir o mundo céltico ao longo do Loire até os limites geológicos da Bretanha, nas ardoseiras de Angers; ou,
bem, até o grande monumento druídico de Saumur, o mais importante, talvez, que ainda hoje resta; ou, ainda, até Tours, a
metrópole eclesiástica da Bretanha, na Idade Média.

Nantes é uma meia-Bordeaux, menos brilhante e mais sábia, mistura de opulência colonial e sobriedade bretã.
Civilizada entre duas barbáries, comerciante entre duas guerras civis, lá lançada como para romper a comunicação. Através,
passa o grande Loire, turbilhonante entre a Bretanha e a Vendéia; o rio dos afogamentos. Que torrente! escrevia Carrier,
embriagado pela poesia de seu crime, que torrente revolucionária a desse Loire! [52]

É em Saint-Florent, no lugar mesmo onde ergue-se a coluna do vendéio Bonchamps, que, no século IX, o bretão
Noménoé, vencedor dos Normandos, elevara sua própria estátua: ela estava virada em direção ao Anjou, em direção à França,
a qual olhava como sua presa[53]. Mas o Anjou viria levá-la. A grande feudalidade dominava entre essa população mais
disciplinável; a Bretanha, com sua inumerável pequena nobreza, não podia fazer grande guerra, nem de conquista. A cidade
negra de Angers carrega, não somente nesse vasto castelo e na sua Torre do Diabo, mas também na sua própria catedral, esse
caráter feudal. Essa igreja de Saint-Maurice está cheia, não de santos, mas de cavaleiros armados de pé em capa: todavia,
suas flechas mancas – uma esculpida, outra nua – explicam suficientemente o destino incompleto do Anjou. Malgrado sua bela
posição sobre o triplo rio do Maine e tão perto do Loire, onde podem ser distinguidas, pela cor, as águas das quatro
províncias, Angers, hoje, dorme. Foi o bastante ter, durante algum tempo, reunido, sob seus Plantagenetas, a Inglaterra, a
Normandia, a Bretanha e a Aquitânia; de ter, mais tarde, sob o bom René e seus filhos, possuído, disputado, reivindicado ao
menos os tronos de Nápoles, de Aragão, de Jerusalém e da Provença, enquanto sua filha Margarida sustentava a Rosa
vermelha contra a Rosa branca e Lancaster contra York. Elas hoje dormem ao embalo do murmúrio do Loire, as cidades de
Saumur e de Tours, a capital do protestantimo e a capital do catolicismo[54] na França; Saumur, o pequeno reino dos
pregadores e do velho Duplessis-Mornay contra os quais o seu bom amigo Henrique IV construiu a Flèche para os
jesuítas[55]. Seu castelo de Mornay, e seu prodigioso Dolmen[56], fazem sempre de Saumur uma cidade histórica. Mas bem
igualmente histórica é a boa cidade de Tours e seu túmulo de São Martinho, o velho asilo, o velho oráculo, o Delfos da
França, onde os Merovíngios vinham consultar os oráculos[57], essa grande e lucrativa peregrinação para a qual os condes de
Blois e de Anjou tantas vezes quebraram as apostas. Mans, Angers, toda a Bretanha, dependiam do arcebispado de Tours; seus
cônegos eram os Capetos, e os duques da Borgonha, da Bretanha, e o conde de Flandres e o patriarca de Jerusalém, os
arcebispos de Mainz, de Colônia, de Compostela. Lá, cunhava-se moeda, como em Paris; lá, cedo fabricou-se a seda, os
tecidos preciosos e, também, se for necessário dizer, esses doces, essas rillettes[58], que tornaram Tours e Reims igualmente
célebres; cidades de padres e de sensualidade. Mas Paris, Lyon e Nantes prejudicaram a indústria de Tours. É culpa também
desse doce sol, desse indolente Loire; o trabalho é coisa contra a natureza nesse preguiçoso clima de Tours, de Blois e de
Chinon, nessa pátria de Rabelais, próxima do túmulo de Agnès Sorel[59]. Chenonceaux, Chambord, Montbazon, Langeai,
Loches, todos os favoritos e favoritas de nossos reis têm seus castelos ao longo da margem. É o país do rir e do nada fazer.
Viva verdura em agosto como em maio, frutas, árvores. Se olhais da borda, a outra parece suspensa no ar, tanto a água reflete
fielmente o céu: a areia embaixo, depois o salgueiro que vem beber no rio; atrás, o álamo, a faia, a nogueira e as ilhas fugindo
entre as ilhas; subindo, as copas redondas das árvores que se vão encapelando docemente umas sobre as outras. Branda e
sensual terra! é bem aqui que deve vir a idéia de fazer da mulher a rainha dos monastérios e de viver, sob ela, numa
voluptuosidade obediente, mistura de amor e de santidade. Assim, abadia alguma jamais teve o esplendor de Fontevraud[60].
Hoje, aí restam cinco igrejas. Mais de um rei quis ser enterrado nesse local: mesmo o feroz Ricardo Coração de Leão lega-lhe
seu coração; ele acreditava que esse coração assassino e parricida findaria por talvez repousar numa doce mão de mulher e
sob as preces das virgens.

Para encontrar sobre esse Loire algo de menos brando e de mais severo, é preciso tornar a subir o cotovelo pelo qual
ele se aproxima do Sena, até à sisuda Orléans, cidade de juristas na Idade Média, depois calvinista, depois jansenista, hoje
industrial. Mas falarei, mais tarde, do centro da França; tarda-me ir para o sul; eu falei dos Celtas da Bretanha, encaminhar-
me-ei em direção aos Iberos, em direção aos Pirineus.

O Poitou, que encontramos do outro lado do Loire, em face da Bretanha e do Anjou, é um país formado de elementos
muito diversos mas, de forma alguma, misturados. Três populações bem distintas ocupam três bandas de terrenos que se
estendem do norte ao sul. Daí as contradições aparentes que a história dessa província oferece. O Poitou é o centro do
calvinismo no século dezesseis, ele recruta os exércitos de Coligny e tenta a fundação de uma república protestante[61]; e foi
do Poitou que saiu, em nossos dias, a oposição católica e monarquista da Vendéia. A primeira época pertence sobretudo aos
homens da costa; a segunda, sobretudo, ao Bocage vendéio. Todavia, uma e outra se relacionam a um mesmo princípio do qual
o calvinismo republicano e o monarquismo católico não são senão a forma: espírito indomável de oposição ao governo
central.

O Poitou é a batalha do sul e do norte. Foi perto de Poitiers que Clóvis derrotou os Godos, que Carlos Martelo repeliu
os Sarracenos, que o exército anglo-gascão do Príncipe Negro aprisionou o Rei João[62]. Mistura de direito romano e de
direito consuetudinário, dando seus legisladores ao norte, seus trovadores ao sul, o Poitou é, ele próprio, como sua
Melusina[63], montagem de naturezas diversas, metade mulher e metade serpente. É no país da mistura, no país das mulas[64]
e das víboras[65], que esse mito estranho devia nascer.

Esse temperamento misto e contraditório impediu o Poitou de terminar qualquer coisa; mas ele tudo começou. E, de
início, a velha cidade romana de Poitiers, hoje tão solitária, foi, com Arles e Lyon, a primeira escola cristã das Gálias. Santo
Hilário partilhou os combates de Atanásio pela divindade de Jesus Cristo. Poitiers foi para nós, sob qualquer análise, o berço
da monarquia, tanto quanto do cristianismo. Foi a partir de sua catedral que brilhou, durante a noite, a coluna de fogo que
guiou Clóvis contra os Godos. O rei da França era o abade de Santo-Hilário de Poitiers, como de São Martinho de Tours.
Todavia, esta última igreja, menos letrada, mas melhor situada, mais popular, mais fecunda em milagres, prevaleceu sobre sua
irmã primogênita. A última luz da poesia latina brilhara em Poitiers com Fortunato; a aurora da literatura moderna aí surgiu no
décimo-segundo século; Guilherme VII é o primeiro trovador. Esse Guilherme, excomungado por ter raptado a Viscondessa de
Châtelleraut, conduziu, diz-se, cem mil homens à Terra Santa[66], mas levou também sua multidão de amantes[67]. Foi sobre
ele que um antigo autor disse: “Ele foi um bom trovador, bom cavaleiro d’armas, e correu o mundo, por muito tempo, para
enganar as damas”. O Poitou parece ter sempre sido um país de libertinos espirituais e de livres pensadores. Gilberto de la
Porée, nascido em Poitiers e bispo dessa cidade, colega de Abelardo na escola de Chartres, ensinou com a mesma ousadia, foi
atacado, como ele, por São Bernardo, retratou-se como ele, mas não se obstinou nas suas recaídas como o lógico bretão. A
filosofia poitevina nasceu e morreu com Gilberto[68].

O poder político do Poitou não teve melhor destino. Ele começara no século IX pela luta que Aymon, pai de Renaud,
conde da Gasconha e irmão de Turpin, conde de Angoulême [69], sustentou contra Carlos o Calvo. Aquela família atribuía-se
ser descendente dos famosos heróis de romances, São Guilherme de Toulouse e Gerárd de Roussilon, conde da Borgonha. Ela
foi, de fato, grande e poderosa, e encontrou-se, durante algum tempo, à testa do sul. Eles tomaram o título de Duques da
Aquitânia, mas tiveram que jogar uma poderosa partida contra as populações da Bretanha e do Anjou que os cerravam ao
norte; os Angevinos tomaram-lhes parte da Touraine (Turânia), Saumur, Loudun e os circundaram, tomando Saintes.
Entretanto, os condes do Poitou esgotaram-se para fazer prevalecer no sul, particularmente sobre a Auvérnia, sobre Toulouse,
esse grande título de Duques da Aquitânia; eles arruinavam-se nas expedições longínquas da Espanha e de Jerusalém; homens
brilhantes e pródigos, cavaleiros trovadores frequentemente rompidos com a Igreja, costumes levianos e violentos, célebres
adúlteros, tragédias domésticas. Não era a primeira vez que uma condessa de Poitiers assassinara sua rival, quando a
ciumenta Eleonora da Guiana fez perecer a bela Rosamunda, no labirinto onde seu marido a escondera[70].

Os filhos de Eleonora, Henrique, Ricardo Coração de Leão e João, jamais souberam se eram Poitevinos ou Ingleses,
Angevinos ou Normandos. Essa luta interior de duas naturezas contraditórias é bem representada em suas vidas móveis e
tempestuosas. Henrique III, filho de João, foi governado pelos Poitevinos; sabe-se quantas guerras civis isso custou à
Inglaterra. Uma vez reunido à monarquia, o Poitou do mangue e da planície deixou-se conduzir ao movimento geral da França.
Fontenay forneceu grandes legisladores, os Tiraqueau, os Besly, os Brisson. A nobreza do Poitou deu muitos cortesãos hábeis
(Thouars, Mortemar, Meilleraie, Mauléon). O maior político e o escritor mais popular da França pertencem ao Poitou
oriental: Richelieu e Voltaire; este último, nascido em Paris, era de uma família de Parthenay[71].

Mas isso não é toda a província. O platô de Deux-Sèvres verte seus rios, um em direção a Nantes, o outro em direção a
Niort e à La Rochelle. As duas regiões excêntricas que eles atravessam são muito isoladas da França. A segunda, pequena
Holanda[72], projetada nos pântanos e brejos, nos canais, não olha senão o Oceano, senão La Rochelle. A cidade branca[73],
assim como a cidade negra, La Rochelle, como Saint-Malo, foi originariamente um asilo aberto pela igreja aos judeus, aos
servos, aos coliberts do Poitou. O papa protegeu uma, como a outra[74], contra os senhores. Elas cresceram libertas de
dízimo e de tributo. Uma multidão de aventureiros saiu desse populacho sem nome, explorou os mares como mercadores,
como piratas; outros exploraram a corte e puseram seu gênio democrático e seu ódio aos grandes a serviço dos reis. Sem
remontarmos até o servo Leudaste[75], da ilha de Rhé, de quem Gregório de Tours conservou-nos a curiosa história,
citaremos o famoso cardeal de Sion, que armou os Suíços para (o papa) Júlio II, os chanceleres Olivier, sob Carlos IX, Balue
e Doriole, sob Luíx XI; este príncipe adorava se servir desses intrigadores, salvo quando os fez conviver, em seguida, numa
jaula de ferro.

La Rochelle acreditou, por um momento, tornar-se uma Amsterdã, da qual Coligny seria o Guilherme de Orange.
Conhece-se os dois famosos cercos contra Carlos IX e Richelieu, tantos esforços heróicos, tanta obstinação, e esse punhal que
o prefeito pousara sobre a mesa da Prefeitura destinado àquele que falasse em render-se. Entretanto, foi muito necessário que
eles cedessem quando a Inglaterra, traindo a causa protestante e seu próprio interesse, deixou Richelieu fechar seu porto;
distingue-se ainda, na maré baixa, os restos do imenso dique. Isolada do mar, a cidade anfíbia não fez senão languescer. Para
melhor amordacá-la, Rochefort foi fundada por Luís XIV a dois passos de La Rochelle, o porto do rei ao lado do porto do
povo.

Havia, não obstante, uma parte do Poitou que ainda não tinha aparecido na história, que pouco se conhecia e que, ela
própria, ignorava-se. Ela despertou pela guerra da Vendéia. A bacia do Sèvre nantense, as sombrias colinas que a cercam,
todo o Bocage vendéio, tal foi a principal e primeira cena dessa guerra terrível que abraçou todo o Oeste. Essa Vendéia, que
tem quatorze rios e nenhum navegável[76], grotão perdido em suas sebes e seus bosques, não era, diga-se o que quiser, nem
mais religiosa, nem mais monarquista que outras províncias fronteiriças[77], mas ela mantinha seus hábitos. A antiga
monarquia, em sua imperfeita centralização, pouco os incomodara; a Revolução desejou arrancar-lhes e trazer-lhes de um só
golpe à unidade nacional; brusca e violenta, lançando por todos os lugares uma luz súbita e hostil, ela enfureceu esses filhos
da noite. Esses camponeses encontraram-se heróis. Sabe-se que o carroceiro Cathelineau amassava seu pão quando escutou a
proclamação republicana; ele simplesmente limpou seus braços e pegou seu fuzil[78]. Cada um fez a mesma coisa e marchou
direto contra os azuis. E não foi homem a homem, nos bosques, nas trevas, como os chouans da Bretanha, mas em massa, em
corpo de povo, e na planície. Eles eram perto de cem mil no sítio de Nantes. A guerra da Bretanha é como uma balada
guerreira do border escocês, aquela da Vendéia é uma Ilíada.

Avançando em direção ao sul, passaremos a sombria cidade de Saintes e suas belas campanhas, os campos de batalha de
Taillebourg e de Jarnac, as grotas da Charente e suas vinhas nos pântanos salobros. Atravessaremos, mesmo, rapidamente, o
Limousin, essa região alta, fria, chuvosa[79], que verte tantos rios. Suas belas colinas graníticas, arredondadas em meio-
globos, suas vastas florestas de castanheiros, alimentam uma população honesta, mas pesada, tímida e inábil por
indecisão[80]. País sofredor, há muito disputado entre a Inglaterra e a França[81]. O baixo Limousin é outra coisa: o caráter
inquieto e espirituoso dos meridionais é, já aí, chocante. Os nomes dos Ségur, dos Saint-Aulaire, dos Noailles, dos Ventadour,
dos Pompadour e, sobretudo, dos Turenne, deveras indicam quão ligados ao poder central são os homens dessa região e
quanto eles aí ganharam. Esse esquisito cardeal Dubois era de Brive-la-Gaillarde.

As montanhas do alto Limousin ligam-se àquelas da Auvérnia e estas com as dos Cevenas. A Auvérnia é o vale do
Allier, dominada a oeste pelo maciço do Mont-Dor que ergue-se entre o pico ou Puy de Dôme e o maciço do Cantal. Vasto
incêndio extinto, hoje quase que totalmente coberto por uma forte e rude[82] vegetação. A nogueira pivota sobre o basalto e o
trigo germina sobre a pedra-pomes[83]. Os fogos interiores não foram totalmente abrandados que certo vale ainda não solte
fumaça e que os étouffis do Mont-Dor não lembrem o Solfatare e a Gruta do Cachorro[84]. Cidades negras, construídas de
lava (Clermont[85], Saint-Flour, etc.). Mas a campanha é bela, seja quando percorreis as vastas e solitárias pradarias do
Cantal e do Mont-Dor, sob o ruído monótono das cascatas, seja que, da ilha basáltica onde repousa Clermont, passeeis vosso
olhar sobre a fértil Limagne e sobre o Puy de Dôme, esse belo dedal de setecentas toesas, velado, desvelado, vez por vez, por
neblinas que o amam e que não lhe podem nem fugir, nem permanecer[86]. É que, de fato, a Auvérnia é varrida por um vento
eterno e contraditório[87], eis que os vales opostos e alternados de suas montanhas animam e irritam as correntes. País frio
sob um céu já meridional onde se gela sobre as lavas. Assim, nas montanhas, a população permanece o inverno quase sempre
aconchegada nos estábulos, cercada de uma quente e pesada atmosfera[88]. Encapotada, como os Limousenses, de não sei
quantas vestes espessas e pesadas, dir-se-ia uma raça meridional[89] tiritante sob o vento do norte e como estreitada,
endurecida, sob esse céu estrangeiro. Vinho grosseiro, queijo amargo[90], como a rude erva donde provém. Eles também
vendem suas lavas, suas pedras-pomes, suas pedrarias comuns[91], seus frutos comuns, que descem o Allier por barco. O
vermelho, a cor bárbara por excelência, é aquela que eles preferem; eles amam o vinho tinto grosso, o gado vermelho[92].
Mais laboriosos que industriais, eles ainda freqüentemente trabalham as terras duras e profundas de suas planícies com a
pequena charrua do sul que mal arranha o solo[93]. Eles tem por bem emigrar todos os anos das montanhas, eles trazem algum
dinheiro, mas poucas idéias.

E, entretanto, existe uma força real nos homens dessa raça, uma seiva amarga, acerba talvez, mas vivaz como a erva do
Cantal. A idade não lhes faz nada. Vede como são verdejantes os anciãos, os Dulaure, os De Pradt; e esse Montlosier
octagenário, que administra seus operários e tudo o que o cerca, que planta e que constrói, e que escreveria, em caso de
necessidade, um novo livro contra o partido-padre, ou a favor da feudalidade, amigo e, ao mesmo tempo, inimigo da Idade
Média[94].

O temperamento inconseqüente e contraditório, que observávamos nas outras províncias de nossa zona central, atinge
seu apogeu na Auvérnia. Aí, encontra-se esses grandes legisladores [95], esses lógicos do partido galicano que jamais
souberam se eram a favor ou contra o papa: o chanceler de l’Hôpital, católico equívoco[96]; os Arnaud; o severo Domat,
papiniano jansenista, que tentou encerrar o direito no cristianismo; e seu amigo Pascal, o único homem do décimo-sétimo
século que sentiu a crise religiosa entre Montaigne e Voltaire, alma sofredora na qual aparece tão maravilhosamente o
combate da dúvida e da fé.

Eu poderia entrar pelo Rouergue, no grande vale do sul. Essa província marca o ponto de um acidente bem rude[97]. Ela
própria não é, sob suas sombreadas castanheiras, senão um enorme pedaço de hulha, de ferro, de cobre, de chumbo. A
hulha[98] aí queima em vários lugares, consumida por incêndios seculares que nada têm de vulcânico. Essa terra, maltratada
pelo frio e pelo quente na variedade de suas exposições e de seus climas, quebradiça de precipícios, trinchada por duas
torrentes, o Tarn e o Aveyron, pouco tem a invejar a acridez dos Cevenas. Mas eu prefiro entrar por Cahors. Lá, tudo se
reveste de vinhas. As amoreiras começam antes de Montauban. Uma paisagem de trinta ou quarenta léguas abre-se à vossa
frente, vasto oceano de agricultura, massa animada, confusa, que se perde ao longe, no obscuro; mas, por cima, ergue-se a
forma fantástica dos Pirineus com picos de prata. O boi, atrelado pelos chifres, labora o vale fértil, a vinha sobe nos olmos.
Se mirardes à esquerda, na direção das montanhas, encontrareis já a cabra suspensa no lado árido e a mula, sob sua carga de
azeite, segue, meio de lado, a pequena senda. Ao sul, uma tempestade, e a terra é um lago; em uma hora, o sol tudo bebeu de
um só gole. Chegai, ao anoitecer, em alguma grande e triste cidade, Toulouse, se desejardes. Ao ouvirdes esse acento sonoro
na fala, acreditaríeis encontrar-vos na Itália; para desenganar-vos, bastaria olhar essas casas de madeira e tijolos; a palavra
brusca, o semblante ousado e vivo, lembrar-vos-ão que sois na França. As pessoas desembaraçadas, ao menos, são Francesas;
os pequenos são uma outra coisa, talvez Espanhóis ou Mouros. Eis aqui essa antiga Toulouse, tão grande sob seus condes; sob
nossos reis, seu parlamento ainda atribuiu-lhe a realeza, a tirania do sul[99]. Esses juristas violentos, que levaram a Bonifácio
VIII (papa) o tapa de Felipe o Belo, justificaram-se com freqüência às expensas dos heréticos; eles queimaram quatrocentos
deles em menos de um século. Mais tarde, eles se prestaram às vinganças de Richelieu, julgaram Montmorency e o
decapitaram na sua bela sala marcada de vermelho[100]. Eles se glorificavam de ter o capitólio de Roma e a caverna dos
mortos[101] de Nápoles, onde os cadáveres se conservavam muito bem. No capitólio de Toulouse, os arquivos da cidade
eram guardados num armário de ferro, como aqueles dos Flâmines romanos; e o senado gascão escrevera sobre os muros de
sua cúria: Videant cônsules ne quid respublica detrimenti capiat[102].

Toulouse é o ponto central da grande bacia do sul. É para aí, ou para próximo daí, que vêm as águas dos Pirineus e dos
Cevenas, o Tarn e o Garonne, para, juntos, se encaminharem ao Oceano. O Garonne recebe tudo. Os riachos sinuosos e
trêmulos do Limousin e da Auvérnia correm para o norte, pelo Périgueux, Bergerac; do leste e dos Cevenas, o Lot, o Viaur, o
Aveyron e o Tarn atravessam, por alguns cotovelos mais ou menos bruscos, Rodez e Albi. O norte dá os rios, o sul as
torrentes. Dos Pirineus desce o borbulhante Arriège; e o Garonne, já engrossado pelo Gers e pelo Baize, descreve uma curva
elegante no noroeste que, no sul, repete o Adour em suas pequenas proporções. Toulouse separa, mais ou menos, o Languedoc
da Guiana, essas duas paragens tão diferentes sob a mesma latitude. O Garonne passa a velha Toulouse, o velho Languedoc
romano e gótico e, sempre crescendo, esparrama-se como um mar na frente do mar, na frente de Bordeaux. Esta aqui,
essencialmente moderna, a capital da França inglesa por muito tempo, está virada, pelo interesse de seu comércio, em direção
à Inglaterra, em direção ao Oceano, olhando a América. O Garonne, digamos agora a Gironda, é duas vezes mais largo que o
Tâmisa em Londres.

Ainda que belo e rico que seja esse vale do Garonne, nele não podemos parar; os longínquos picos dos Pirineus são um
poderoso atrativo. Mas o caminho é sério. Seja se fordes por Nérac, triste senhoria dos Albret, seja que caminheis ao longo da
margem, não vereis senão um oceano de charnecas, tanto quanto árvores de cortiça, vastas pinadas, rota sombria e solitária,
sem outra companhia que as tropas de ovelhas negras[103] que seguem sua eterna viagem dos Pirineus às Landes e vão, das
montanhas à planície, procurar o calor do norte, sob a condução do pastor landense. A vida andarilha dos pastores é uma das
características pitorescas do sul. Vós os encontrais subindo das planícies do Languedoc aos Cevenas, aos Pirineus, e da
planície do Crau provençal às montanhas de Gap e de Barcelonnette[104]. Esses nômades, levando tudo consigo,
companheiros das estrelas, em sua eterna solidão, meio astrônomos e meio feiticeiros, continuam a vida asiática, a vida de Ló
e de Abraão, no meio do nosso ocidente. Mas, na França, os trabalhadores que temem sua passagem os comprimem em
caminhos estreitos[105]. É nos Apeninos, nas planícies da Apúlia ( Puglia), ou na campanha de Roma, que é preciso vê-los
caminhar na liberdade do mundo antigo. Na Espanha, eles reinam; eles devastam impunemente o país. Sob a proteção da toda-
poderosa companhia da mesta, que emprega de quarenta a sessenta mil pastores[106], o triunfante merino[107] come a região,
da Estremadura à Navarra, à Aragão. O pastor espanhol, mais feroz que o nosso, possui, ele próprio, o aspecto de uma de suas
bestas, com sua pele de ovelha sobre as costas e, nas pernas, sua abarca de couro aveludado de boi que ele amarra com
cordas[108].

A formidável barreira da Espanha aparece-nos, enfim, em sua grandeza. Não é, de forma alguma, como os Alpes, um
sistema complicado de picos e de vales; é tão simplesmente uma muralha imensa que se abaixa nas duas pontas[109].
Qualquer outra passagem é inacessível às viaturas e fechada à mula, ao próprio homem, durante seis ou oito meses do ano.
Dois povos à parte, que não são realmente nem espanhóis, nem franceses, os Bascos a oeste, os Catalães e Roussilhonenses a
leste, são os porteiros dos dois mundos. Eles abrem e fecham: porteiros irritáveis e caprichosos, lassos da eterna passagem
das nações, eles abrem para Abderrama[110], eles fecham para Rolando; há numerosos túmulos entre Roncevaux e La Seu
d’Urgell.

Não cabe ao historiador descrever e explicar os Pirineus. Que venha a ciência de Cuvier e de Élie de Beaumont, que
eles narrem essa história ante-histórica. Eles lá estavam, eu não, quando a natureza improvisou sua prodigiosa epopéia
geológica, quando a massa comprimida do globo ergueu o eixo dos Pirineus, quando os montes fenderam-se e que a terra, sob
a tortura de um parto titânico, empurrou contra o céu a negra e calva Maladeta[111]. Entretanto, uma mão consolante revestiu,
pouco a pouco, as chagas da montanha com essas verdes pradarias que fazem empalidecer aquelas dos Alpes[112]. Os picos
foram desgastados e arredondaram-se em belas torres; massas inferiores vieram suavizar os precipícios abruptos, retardando-
lhes a rapidez, e formaram, do lado da França, essa escadaria colossal, onde cada prateleira é um monte[113].

Subamos agora, não para o Vignemale, não para o Monte-Perdido[114], mas somente até o porto de Paillers, onde as
águas se dividem entre os dois mares, ou mesmo entre Bagnères e Barèges, entre o belo e o sublime[115]. Lá, percebereis a
fantástica beleza dos Pirineus, esses sítios estranhos, incompatíveis, reunidos por um inexplicável conto de fadas[116]; e esta
atmosfera mágica, que vez por vez aproxima, distancia os objetos[117]; essas gaves[118] espumantes ou verde-d’água, esses
prados de esmeralda. Mas logo sucede o horror selvagem das grandes montanhas que se escondem atrás, como um monstro
sob uma máscara de bela jovem. Não importa, persistamos, engajemo-nos ao longo do gave de Pau, por essa triste passagem,
através desses amontoamentos infinitos de blocos de três e quatro mil pés cúbicos; depois, os rochedos agudos, as neves
permanentes, depois, as curvas do gave; batido, repelido duramente de um monte a outro; enfim, o prodigioso Circo e suas
torres no céu. Na base, doze fontes alimentam o gave que ruge sob as pontes de neve e, entretanto, tomba de mil e trezentos
pés a mais alta cascata do velho mundo[119].

Aqui acaba a França. O porto de Gavarnie (NT: ou puerto de Gavarnía ou, ainda puerto de Boucharo, em aragonês )
que vedes mais à frente, essa passagem tempestuosa onde, como dizem, o filho não espera o pai[120], é a porta da Espanha.
Uma imensa poesia histórica plana sobre esse limite de dois mundos onde podeis ver, à vossa escolha, se o olhar for
penetrante, Toulouse ou Saragoça. Essa brecha de trezentos pés nas montanhas, Rolando a abriu com dois golpes de sua
durindana[121]. É o símbolo do combate eterno da França e da Espanha que não é outro senão aquele da Europa e da África.
Rolando pereceu, mas a França venceu. Comparai as duas vertentes: quão mais vantajosa é a nossa[122]. A vertente
espanhola, exposta ao sul, é bem ao contrário abrupta, seca e selvagem; a francesa, em escarpa suave, melhor sombreada,
coberta de belos prados, fornece à outra uma grande parte dos animais que ela precisa. Barcelona vive de nossos bois[123] .
Essa região de vinhos e de pastos é obrigada a comprar nossos rebanhos e nossos vinhos. Lá, o belo céu, o doce clima e a
indigência. Aqui, a bruma e a chuva, mas inteligência, riqueza e liberdade. Passai a fronteira, comparai nossas estradas
esplêndidas com as rudes trilhas[124] ou, apenas, olhai esses estrangeiros nas águas de Cauterets, cobrindo seus andrajos com
a dignidade do manto; sombrios, desdenhosos de se comparar. Grande e heróica nação, não temeis que insultemos vossas
misérias!

Quem deseja ver todas as raças e todas as vestes dos Pirineus, deve ir aos mercados de Tarbes. Para aí vão mais de dez
mil almas: vêm até aqueles que estão a mais de vinte léguas de distância. Neles encontra-se, freqüentemente ao mesmo tempo,
o gorro branco de Bigorre, o castanho de Froix, o vermelho do Roussillon, algumas vezes, mesmo, o grande chapéu chato de
Aragão, o gorro redondo de Navarra, o gorro pontudo da Biscaia[125]. O carroceiro basco para aí virá montando seu asno
com sua comprida carroça de três cavalos; ele veste, sobre sua cabeça, o barrete do Béarn; mas distinguireis bem rapidamente
o Bearnense e o Basco; o bonito homenzinho vivaz da planície, que tem a língua sempre pronta, a mão também, e o filho da
montanha, que a mede rapidamente com suas grandes pernas, agricultor hábil e orgulhoso de sua casa, cuja nome ele
carrega[126]. Se desejardes encontrar algo análogo ao Basco, será entre os Celtas da Bretanha, da Escócia ou da Irlanda que
se deve procurar. O Basco, primogênito das raças do Ocidente, imutável no canto dos Pirineus, viu todas as nações passarem
à sua frente: Cartagineses, Celtas, Romanos, Godos e Sarracenos. Nossas jovens antiguidades dão-lhes pena. Um
Montmorency dizia a um deles: “Sabeis que datamos de mil anos?” Ao que o Basco respondeu: “E nós, datamos de
mais”[127].

Essa raça possuiu, por um instante, a Aquitânia. Ela aí deixou por lembrança o nome de Gasconha. Rechaçada para a
Espanha no nono século, ela fundou o reino de Navarra e, em duzentos anos, ocupou todos os tronos cristãos da Espanha
(Galícia, Astúrias e León, Aragão, Castela). Mas a cruzada espanhola, avançando na direção do sul, os Navarrenses, isolados
do teatro da glória européia, perderam tudo, pouco a pouco. Seu último rei, Sancho o Encerrado, que morreu de um câncer, é
o verdadeiro símbolo dos destinos de seu povo[128]. Fechada, de fato, nas montanhas, por povos poderosos, carcomida, por
assim dizer, pelos progressos da Espanha e da França, a Navarra implorou até aos Muçulmanos da África e findou por dar-se
aos Franceses. Sancho aniquilou seu reino legando-o a seu genro Teobaldo, conde de Champagne: é Rolando quebrando sua
durindana para subtraí-la ao inimigo. A casa de Barcelona, tronco dos reis de Aragão e dos condes de Foix, tomou a Navarra
por sua vez, deu-a, por um instante, aos Albret, depois aos Bourbons, que a perderam para ganhar a França. Mas, através de
um neto de Luís XIV, descendente de Henrique IV, eles retomaram, não somente a Navarra, mas a Espanha inteira. Assim,
realizou-se a inscrição misteriosa do castelo de Coaraze, onde foi educado Henrique IV: Lo que a de ser, no puede faltar (o
que deve ser, não pode faltar)[129]. Nossos reis intitularam-se reis de França e de Navarra. É uma bela expressão das origens
da população francesa, como da dinastia.

As velhas raças, as raças puras, os Celtas e os Bascos, a Bretanha e a Navarra, deviam ceder às raças mistas, a fronteira
ao centro, a natureza à civilização. Os Pirineus apresentam por toda a parte essa imagem do definhamento do mundo antigo. A
antiguidade aí desapareceu; a Idade Média aí morreu. Esses castelos que ameaçam desabar, essas torres dos Mouros, essas
ossadas dos Templários que se guarda em Gavarnie[130], representam, de uma maneira bem significativa, o mundo que se vai.
A própria montanha, coisa bizarra, parece, hoje, atacada em sua existência. Os cimos descarnados que a coroam testemunham
sua caducidade[131]. Não é em vão que ela é batida por tantas tempestades e, cá de baixo, o homem as ajuda. Esse profundo
cinturão de florestas, que cobria a nudez da velha mãe, ele o arranca um pouco a cada dia. As terras vegetais, que a grama
retinha sobre as escarpas, correm para baixo com as águas. O rochedo resta nu, gretado, esfoliado pelo calor, pelo frio,
minado pelos coldres de neve, ele é levado pelas avalanches. No lugar de um rico pasto, resta um solo árido e arruinado: o
lavrador que expulsou o pastor, ele próprio, nada ganha. As águas, que filtravam docemente nos vales através do relvado e
das florestas, tombam agora em torrentes e vão cobrir seus campos das ruínas que ele fez[132]. Grande quantidade de
lugarejos deixou os altos vales por falta de lenha e recuou em direção à França, fugindo às suas próprias devastações[133].

A partir de 1673, alarmamo-nos. Foi ordenado a cada habitante plantar, todos os anos, uma árvore nas florestas
dominiais, duas nos terrenos comunais. Guardas-florestais foram criados. Em 1669, em 1765 e, mais tarde, novos regramentos
atestaram o temor que inspirava o progresso do mal. Mas, com a Revolução, toda barreira caiu: a população pobre começou,
unida, essa obra de destruição. Eles escalaram, o fogo e a enxada na mão, até o ninho das águias, cultivaram o abismo presos a
uma corda. As árvores foram sacrificadas para os menores usos; abatia-se dois pinheiros para se fazer um par de
tamancos[134]. Ao mesmo tempo, o pequeno rebanho, multiplicando-se sem número, estabeleceu-se na floresta, ferindo as
árvores, os arvoredos, os jovens botões, devorando a esperança. Sobretudo a cabra, a besta daquele que nada possui, animal
aventureiro que vive sobre o ordinário, animal nivelador, foi o instrumento dessa invasão demagógica, o Terror do deserto.
Não foi um dos menores trabalhos de Bonaparte combater esses monstros roedores. Em 1813, as cabras não eram senão a
décima parte do seu número no ano X[135]. Ele não pôde, entretanto, parar essa guerra contra a natureza.
Todo esse sul, tão belo, é, todavia, se comparado ao norte, um país de ruínas. Passai as paisagens fantásticas de Saint-
Bertrand de Cominges e de Foix, essas cidades que dir-se-iam lançadas pelas fadas; passai nossa pequena Espanha da França,
o Roussillon, suas verdes pradarias, suas ovelhas negras, seus romances catalães, tão doces de ouvir, ao entardecer, da boca
das jovens dessa região[136]. Descei para esse pedregoso Languedoc, segui-lhe as colinas mal sombreadas de oliveiras, ao
canto monótono da cigarra. Lá, nenhum riacho navegável; o canal dos dois mares[137] não bastou para supri-los; mas onde
correm rios salgados, terras salgadas há, onde não crescem senão as salicórnias[138]; inumeráveis fontes termais, betume,
bálsamo, é uma outra Judéia[139]. Poderiam, mesmo, os rabinos das escolas judaicas de Narbonne acreditar estarem em seu
país. Eles não sentiriam sequer a falta da lepra asiática: dela, nós tivemos exemplos recentes em Carcassone[140].

É que, malgrado o Cers[141] ocidental, ao qual Augusto dedicou um altar, o vento quente e pesado da África pesa sobre
essas paragens. Os cortes nas pernas não se curam em Narbonne[142]. A maior parte dessas cidades sombrias, nos mais
belos sítios do mundo, possui, à sua volta, planícies insalubres: Albi, Lodève, Agde a negra[143], ao lado de sua cratera.
Montpellier, que vê, à sua escolha, os Pirineus, os Cevenas, os Alpes mesmo, tem perto de si e sob si, uma terra malsã,
coberta de flores, toda aromática e como profundamente medicamentada; cidade de remédio, de perfumes e de azinhavre[144].

É terra muito velha essa, a do Languedoc. Encontrais aí, por todas as partes, ruínas sobre ruínas: os Camisards sobre os
Albigenses, os Sarracenos sobre os Godos, sob estes últimos, os Romanos, os Iberos. As muralhas de Narbonne são batidas
com túmulos, com estátuas, com inscrições[145]. O anfiteatro de Nîmes é perfurado de seteiras góticas, coroado de seteiras
sarracenas, enegrecido pelas chamas de Carlos Martelo. Mas são os mais velhos que mais deixaram; os Romanos gravaram o
mais profundo traço: sua Maison Carrée, sua tripla Ponte do Gard, seu enorme canal de Narbonne que recebia os maiores
vasos[146].

O direito romano é também uma outra ruína e, bem ao contrário, majestoso e imponente. É graças a ele, aos antigos
privilégios, que o Languedoc fez exceção à máxima feudal “nula terra sem senhor”[147]. Aqui, a presunção era sempre pela
liberdade. A feudalidade não pôde aí se imiscuir senão a favor da cruzada, como auxiliar da Igreja, como familiar da
Inquisição. Simon de Montfort nele criou quatrocentos e trinta e quatro feudos[148]. Mas essa colônia feudal, governada pelos
Costumes de Paris, não fez senão preparar o espírito republicano da província contra a centralização monárquica. País de
liberdade política e de servidão religiosa, mais fanático que devoto, o Languedoc sempre nutriu um vigoroso espírito de
oposição. Os próprios católicos aí tiveram seu protestantismo sob a forma jansenista. Ainda hoje, em Alet, arranha-se o
túmulo de Pavillon para beber-se o pó daí resultante, o qual cura a febre[149]. Os Pirineus sempre forneceram heréticos,
desde Vigilance e Félix de Urgel. O mais obstinado dos céticos, aquele que acreditou mais na dúvida, Bayle, é de Carlat. De
Limoux, os Chéniers[150], os irmãos rivais, não, entretanto, como se acreditou, ao ponto do fratricídio. É preciso destacar
esse comediante de Carcassone, esse belo espírito sanguinário, Fabre d’Églantine[151]. Ao menos, não se deve recusar a essa
população a vivacidade e a energia. Energia assassina, violenta, trágica. O Languedoc, situado no cotovelo do sul, do qual ele
parece ser a articulação e o nó, foi frequentemente amarfanhado na luta das raças e das religiões. Eu falarei, mais à frente, da
pavorosa catástrofe do século XIII. Ainda hoje, entre Nîmes e a montanha de Nîmes, há um ódio tradicional que, é verdade,
relaciona-se cada vez menos com a religião: são como os Guelfos e os Gibelinos. Esses Cevenas são tão pobres e tão rudes,
que não é espantoso haver, no ponto de contato com a rica região da planície, um choque pleno de violência e de raiva
invejosa. A história de Nîmes não é senão um combate de touros.

O forte e duro temperamento do Languedoc não é assim tão distinto da leveza espirituosa da Guiana e da petulância
trazida da Provença. Entretanto, existe, entre o Languedoc e a Guiana, a mesma diferença que há entre os Montanheses e os
Girondinos, entre Fabre e Barnave, entre o vinho fumê de Lunel e o vinho de Bordeaux. A convicção é forte e intolerante, no
Languedoc, frequentemente atroz, e a incredulidade também. A Guiana, ao contrário, o país de Montaigne e de Montesquieu, é
aquele das crenças flutuantes; Fénélon, o homem mais religioso que eles tiveram, é quase um herético. É bem pior avançando
na direção da Gasconha, país de pobres diabos, mui nobres e mui pobres, de corpos estranhos, que teriam dito, todos, como
seu Henrique IV, que Paris bem vale uma missa ou, como ele escrevia a Gabrielle, no momento da abjuração, eu vou dar o
salto perigoso![152]. Esses homens querem, a qualquer preço, vencer... e vencem. Os Armagnacs aliaram-se aos Valois; os
Albrets miscigenaram-se com os Bourbons, findaram por dar reis à França.

O gênio provençal teria mais analogia, sob qualquer visão, com o gênio gascão do que com o languedoquense. Ocorre,
com frequência, que os povos de uma mesma zona sejam assim alternados; por exemplo, a Áustria, mais distante da Suábia
que da Baviera, desta é mais próxima pelo temperamento. Ribeirinhas do Ródano, simetricamente cortadas por rios ou
torrentes que se relacionam (o Gard em Durance e o Var no Hérault), as províncias do Languedoc e da Provença formam, elas
duas, nosso litoral no Mediterrâneo. Esse litoral tem, dos dois lados, suas lagoas, seus pântanos, mangues e seus velhos
vulcões. Mas o Languedoc é um sistema completo, um lado de montanhas ou colinas com suas duas encostas: ele é quem verte
seus rios para a Guiana e para a Auvérnia. A Provença está encostada nos Alpes; ela não tem os Alpes, nem as fontes de seus
grandes rios; ela não é senão um prolongamento, uma encosta de montes na direção do Ródano e do mar; embaixo desta
encosta, e com o pé n’água, estão suas belas cidades de Marselha, Arles, Avignon. Na Provença, toda a vida está nas bordas.
No Languedoc, ao contrário, cuja costa é menos favorável, suas cidades estão atrás do mar e do Ródano. Narbonne, Aigues-
Mortes e Cette não querem, absolutamente, ser portos[153]. Desta forma, a história do Languedoc é mais continental que
marítima; seus grandes acontecimentos são as lutas da liberdade religiosa. Enquanto o Languedoc recua à frente do mar, a
Provença mergulha nele e lança-lhe Marselha e Toulon; ela parece arrojada nas corridas marítimas, nas cruzadas, nas
conquistas da Itália e da África.

A Provença visitou, abrigou, todos os povos. Todos cantaram os cantos, dançaram as danças de Avignon, de Beaucaire;
todos pararam nas passagens do Ródano, nesses grandes cruzamentos das rotas do sul[154]. Os santos da Provença (santos
verdadeiros que eu honro), construíram-lhe pontes[155] e iniciaram a fraternidade do ocidente. As vivas e belas jovens de
Arles e de Avignon, continuando essa obra, pegaram pela mão o Grego, o Espanhol, o Italiano, conduziram-lhes, de bom ou
mau grado, na farandola[156]. E eles não desejaram embarcar de volta, fazendo, na Provença, vilarejos gregos, mouriscos,
italianos. Eles preferiram os figos fibrosos de Fréjus[157] àqueles de Jônia ou de Túsculo, combateram as torrentes,
cultivaram em terraços as encostas rápidas, exigiram a uva dos outeiros pedregosos que não oferecem senão o tomilho e a
lavanda.

Essa póetica Provença não é menos um país rude. Sem falar de seus pântanos pontinos[158] e do vale do Olioul, e da
vivacidade de tigre do paisano de Toulou, e desse vento eterno que enterra na areia as árvores das margens, que empurra os
barcos para a costa, não é menos funesto em terra que no mar. As ventanias, bruscas e súbitas, apanham-nos mortalmente. O
Provençal é por demais vivo para se envelopar com a capa espanhola. E esse poderoso sol também, a festa ordinária dessa
região de festas, ele bate rudemente sobre a cabeça quando, de um raio, transfigura o inverno em verão. Ele vivifica a árvore,
ele a queima. E as geadas queimam também. Tempestades, mais frequentemente, ribeirões que se transformam em rios. O
lavrador junta seu campo ao pé da colina, ou o segue, vogando em águas abundantes, que o juntam à terra do vizinho. Natureza
caprichosa, passional, colérica e encantadora.

O Ródano é o símbolo da região, seu fetiche, como o Nilo o é do Egito. O povo não pôde se persuadir que esse rio não
fosse senão um rio; ele bem viu que a violência do Ródano era a da cólera[159], e reconheceu as convulsões de um monstro
em seus rodamoinhos turbilhonantes. O monstro é o drac, a tarasca, espécie de tartaruga-dragão, cuja figura é levada em
procissão em grandes festas[160]. Ela vai até a igreja, urrando durante sua passagem. A festa não é considerada boa se não
houver, ao menos, um braço quebrado.

Esse Ródano, arrebatado como um touro que viu o vermelho, vem dar contra seu delta da ilha de Camargue, a ilha dos
touros e dos belos pastos. A festa da ilha é a Ferrade. Um círculo de carroças é apinhado de espectadores. Para dentro, a
golpes de forcado, são empurrados touros que deseja-se marcar. Um homem habilidoso e vigoroso derruba o jovem animal e,
enquanto este é mantido em terra, oferece-se o ferro incandescente a uma dama convidada; ela desce e o aplica, ela própria,
sobre o couro da besta espumante[161].

Eis o gênio da baixa Provença, violento, barulhento, bárbaro, mas não sem graça. É preciso ver esses dançarinos
infatigáveis dançarem a mourisca, os sonetos de joelhos[162], ou executarem a nove, a onze, a treze, a dança das espadas, o
bacchu-ber[163], como dizem seus vizinhos de Gap; ou, então, em Riez, encenar todos os anos a bravata dos
Sarracenos[164]. País de militares, dos Agrícola, dos Baux, dos Crillon; país de marinheiros intrépidos; é uma rude escola
esse golfo do Lion. Citemos o bailio (magistrado, juiz) de Suffren[165] e esse renegado que morreu Capitão-Pachá em
1706[166]; nomeemos, ainda, o grumete Paulo (ele jamais se deu qualquer outro nome): nascido sobre o mar, de uma
lavadeira, num barco batido pela tempestade, ele torna-se almirante e deu, a bordo de um navio, uma festa para Luís XIV; mas
ele não desprezava, por conta disso, seus velhos camaradas e quis ser enterrado com os pobres, aos quais deixou todos os
seus bens.

Esse espírito de igualdade não pode surpreender nesse país de repúblicas, ao meio das cidades grecas e dos municípios
romanos. Nos campos, mesmo, a servidão jamais pesou como no resto da França. Esses camponeses eram seus próprios
libertadores e os vencedores dos Mouros; eles apenas podiam cultivar a colina abrupta e tornar a fechar o leito da torrente.
Eram necessárias, contra uma tal natureza, mão livres, inteligentes.

Livre e ousado foi, ainda, o progresso da Provença na literatura e na filosofia. A grande reclamação do bretão Pelágio
em favor da liberdade humana foi acolhida e sustentada na Provença por Fausto, por Cassiano, por essa nobre escola de
Lérins, a glória do século quinto[167]. Quando o bretão Descartes libertou a filosofia da influência teológica, o provençal
Gassendi tentou a mesma revolução em nome do sensualismo. E, no último século, os ateus de Saint-Malo, Maupertuis e
Lamèttrie, se encontraram, na casa de Frederico, com um ateu provençal (de Argens).

Não é sem razão que a literatura do sul, nos séculos XII e XIII, se chame literatura provençal. Viu-se, então, tudo o que
há de sutil e de gracioso no gênio dessa terra. É o país dos bem falantes, abundantes, passionais (ao menos para a palavra) e,
quando querem, artesãos obstinados da língua; eles deram um Massillon, um Mascaron, um Fléchier, um Maury, os oradores e
os retóricos. Mas a Provença inteira, municípios, parlamento e nobreza, demagogia e retórica, isso tudo, coroado com um
magnífica insolência meridional, encontrou-se em Mirabeau, o pescoço do touro, a força do Ródano[168].

Como é que esse país não venceu e dominou a França? Ele bem venceu a Itália, no século XIII. Como ele é assim tão
opaco agora, com exceção de Marselha, quer dizer do mar? Sem falar das margens malsãs e das cidades que morrem como
Fréjus, eu não vejo, em todo lugar, senão ruínas[169]. E não se trata aqui desses belos restos da antiguidade, dessas pontes
romanas, desses aquedutos, desses arcos de São Remígio (saint Remi) e de Orange, e de tantos outros monumentos. Mas do
espírito do povo, da sua fidelidade aos velhos usos[170] que lhe dão uma fisionomia tão original e tão antiga; aí, eu também
encontro uma ruína. É um povo que não toma o tempo a sério e que, entretanto, dele conserva a pegada[171]. Um país
atravessado por todos os povos deveria, aparentemente, esquecer tudo o mais; mas não, ele se obstinou em suas lembranças.
Sob vários aspectos, ele pertence, como a Itália, à antiguidade.

Franqueai as tristes embocaduras do Rodáno, obstruídas e lodacentas, como aquelas do Nilo e do Pó. Tornai a subir à
cidade de Arles. A velha metrópole do cristianismo, nos nossos grotões meridionais, possuía cem mil almas nos tempos dos
Romanos; atualmente, ela as tem ao número de vinte mil; ela não é rica senão de mortos e sepulcros[172]. Ela foi, por muito
tempo, o túmulo comum, a necrópole das Gálias. Era uma felicidade desejada poder repousar em seus campos Elísios (os
Aliscamps). Até o décimo-segundo século, conta-se, os habitantes das duas margens colocavam seus mortos, com uma moeda
de prata, em um tonel coberto de piche que era abandonado ao rio... eles eram fielmente recolhidos[173]. Entretanto, essa
cidade sempre declinou. Lyon logo a substituiu na primazia das Gálias; o reino da Borgonha, do qual ela foi a capital, passou
rápido e obscuro; suas grandes famílias extinguiram-se.

Quando, das margens e dos pastos de Arles, sobe-se para as colinas de Avignon e, depois, até às montanhas que se
aproximam dos Alpes, explica-se a ruína da Provença. Essa região toda excêntrica não tem grandes cidades senão em suas
fronteiras. Essas cidades eram, em grande parte, colônias estrangeiras; a parte verdadeiramente provençal era a menos
poderosa. Os Condes de Toulouse findaram por se apoderar do Ródano, os Catalães, da costa e dos portos; os Baux, os
Provençais indígenas, que haviam outrora livrado o país dos Mouros, ficaram com Forcalquier, Sisteron, quer dizer, o
interior. Assim, iam em pedaços os estados do Midi, até que vieram os Franceses que derrubaram Toulouse, lançaram os
Catalães de volta na Espanha, uniram os Provençais e os conduziram à conquista de Napóles. Esse foi o fim do destino da
Provença. Ela adormeceu, com Nápoles, sob um mesmo senhor. Roma emprestou seu Papa para Avignon: as riquezas e os
escândalos abundaram. A religião era bem doente nessas áreas, sobretudo depois dos Albigenses; ela foi morta pela presença
dos papas. Ao mesmo tempo, enfraqueciam-se e davam em nada as velhas liberdades dos municípios do sul. A liberdade
romana e a religião romana, a república e o cristianismo, a Antiguidade e a Idade Média, aí se extinguiram ao mesmo tempo.
Avignon foi o teatro dessa decrepitude. Assim, não acreditai que tenha sido somente por Laura que Petrarca tanto chorou na
fonte de Vaucluse; a Itália foi também sua Laura, e a Provença, e todo o antigo sul que morria a cada dia[174].

A Provença, em seu destino imperfeito, em sua forma incompleta, parece-me um canto dos trovadores, uma canzone de
Petrarca; mais ímpeto que alcance. A vegetação africana das costas logo é limitada pelo vento glacial dos Alpes. O Ródano
corre para o mar e nele não chega. Os pastos dão lugar às secas colinas tristemente enfeitadas de murta e de lavanda,
perfumadas e estéreis.

A poesia desse destino do sul parece repousar na melancolia de Vaucluse, na tristeza inefável e sublime (do Maciço) de
Sainte-Baume, donde vê-se os Alpes e os Cevenas, o Languedoc e a Provença e, para além, o Mediterrâneo. E eu também aí
choraria, como Petrarca, de deixar esses belos lugares.

Mas é preciso que eu abra meu caminho em direção ao norte, aos pinheiros do Jura, aos carvalhos dos Vosges e das
Ardenas, em direção às planícies descoloridas do Berry e da Champagne. As províncias que acabamos de percorrer, isoladas
por sua própria originalidade, não me poderiam servir para compor a unidade da França. São-lhe necessários elementos mais
agregadores, mais dóceis; é preciso homens mais disciplináveis, mais capazes de formar um nó compacto para fechar a França
do norte às grandes invasões de terra e de mar, aos Alemães e aos Ingleses. Não são demais, para isso, as populações
cerradas do centro, os batalhões normandos, picardos, as maciças e profundas legiões da Lorena e da Alsácia.

Os Provençais chamam os Delfinenses de Franciaux. De fato, o Delfinado já pertence à verdadeira França, à França do
norte. Malgrado a latitude, esta província é setentrional. Lá, começa essa zona de áreas rudes e de homens enérgicos que
cobrem a França à leste. De início, o Delfinado, como uma fortaleza sob o vento dos Alpes; depois, o pântano de Bresse;
então, dorso a dorso, o Franco-Condado e a Lorena, ligados pelos Vosges que vertem, para essa última, o rio Mosela e, para o
outro, o Saône e o Doubs. Um vigoroso temperamento de resistência e de oposição assinala essas províncias. Isso pode ser
incômodo dentro, mas é nossa salvação contra o estrangeiro. Elas também dão à ciência espíritos severos e analíticos: Mably
e seu irmão Condillac são de Grenoble, d’Alembert é Delfinês por sua mãe, de Bourg-en-Bresse vem o astrônomo Lalande e o
grande anatomista Bichat[175].

A vida moral e a poesia desses homens da fronteira, de resto argumentadores e interesseiros[176], é a guerra. Que se
fale em passar os Alpes, vereis que os Bayard não faltarão no Delfinado, nem os Ney, nem os Fabert, na Lorena. Aí existem,
sobre a fronteira, cidades heróicas onde se passa, de pai para filho, um invariável costume de se fazer morrer pelo país[177].
E as mulheres, com freqüência, a eles se juntam[178]. Elas têm, em toda essa zona do Delfinado às Ardenas, uma coragem,
uma graça de amazonas que alhures procuraríeis em vão. Frias, sérias e impecáveis em sua colocação[179], respeitáveis aos
estrangeiros e às suas famílias, elas vivem entre soldados e a eles se impõem. Elas próprias, viúvas, filhas de soldados,
sabem o que é a guerra, o que é sofrer e morrer; mas nem por isso deixam de enviar-lhe os seus, fortes e resignados; se
necessário, irão elas mesmas. Não somente a Lorena salvou a França pela mão de uma mulher: no Delfinado, Margot Delaye
defendeu Montélimart e Philis La Tour-du-Pin La Charce fechou a fronteira ao Duque de Savóia (1692)[180]. O temperamento
viril das Delfinenses freqüentemente exerceu sobre os homens um irresistível poder: testemunha a famosa Madame Tencin,
mãe de d’Alembert, e esta lavadeira de Grenoble que, de marido em marido, findou por desposar o Rei da Polônia; ela ainda
é cantada na região com Melusina e a fada de Sassenage[181].

Há, nos costumes comuns do Delfinado, uma viva e franca simplicidade ao modo montanhês que encanta logo de início.
Subindo em direção aos Alpes sobretudo, encontrareis a honestidade savoiana[182], a mesma bondade, com menos suavidade.
Lá, é bem necessário que os homens amem-se uns aos outros, pois a natureza, aparentemente, não os ama em nada[183]. Sobre
essas escarpas expostas ao norte, ao fundo desses sombrios funis onde assovia o vento maldito dos Alpes, a vida não é
adoçada senão pelo bom coração e pelo bom senso do povo. Celeiros de abundância fornecidos pelas comunas suprem as más
colheitas. Constrói-se gratuitamente para as viúvas, e para elas, a princípio[184]. Daí partem, anualmente, emigrações. Mas
não são apenas pedreiros, carregadores d’água, cocheiros, limpadores de chaminés, como no Limousin, na Auvérnia, no Jura,
na Savóia; são, sobretudo, professores primários ambulantes[185] que descem, todos os invernos, das montanhas de Gap e de
Embrun. Esses preceptores vão-se por Grenoble, na província do Lionês (Lyonnais), e do outro lado do Ródano. As famílias
os recebem de boa vontade; eles ensinam as crianças e ajudam na arrumação da casa. Nas planícies do Delfinado, o
camponês, não tão bom e menos modesto, é, com freqüência, espirituoso: ele faz versos, e versos satíricos.

Jamais no Delfinado a feudalidade pesou como no resto da França. Os senhores, em eterna guerra contra a Savóia[186],
tiveram interesse em tratar com deferência seus homens; seus vavassalos foram menos subvassalos que pequenos nobres mais
ou menos independentes[187]. Aí, a propriedade cedo encontrou-se partilhada ao infinito. A Revolução Francesa também não
foi sangrenta em Grenoble; ela fora feita de avanço[188]. Não é uma dócil e governável população[189]; mas a demagogia
reina entre ela; por que seria ela violenta? A propriedade é dividida ao ponto em que tal casa tem dez proprietários, cada um
deles possuindo e habitando um quarto[190]. Bonaparte conhecia bem Grenoble quando a escolheu para sua primeira estação,
vindo da ilha de Elba[191]; ele então desejava reeguer o Império pela República.

Em Grenoble, como em Lyon, como em Besançon, como em Metz, e em todo o norte, o industrialismo republicano é
menos saído, o que quer se tenha dito, da municipalidade romana que da proteção eclesiástica; ou, antes, uma e outra entraram
em acordo e confundiram-se, encontrando-se o bispo, ao menos no século IX, de direito ou de fato, o verdadeiro defensor
civitatis. Esta cruz, posta tão alta sobre a Grande Cartuxa[192], entre as neves e as tempestades, ela foi um símbolo de
liberdade para o país. O bispo Izarn expulsou os Sarracenos do Delfinado em 965 e, até 1044, ocasião que se coloca o
advento dos condes de Albon como delfins, Grenoble, dizem os cronistas, “sempre fora uma terra alodial do bispo”. Foi
também pelas conquistas sobre os bispos que começaram os condes poitevinos de Die e de Valence. Esses barões apoiaram-
se tanto sobre os Alemães, quanto sobre os descrentes do Languedoc[193].

Besançon[194], como Grenoble, é também uma república eclesiástica sob seu arcebispo, príncipe de império, e seu
nobre Capítulo[195]. Mas a eterna guerra do Franco-Condado contra a Alemanha tornou, aí, a feudalidade mais árdua. A longa
muralha do Jura com suas duas portas de Joux e da Pierre-Pertuis, depois as dobras do Doubs, eram fortes barreiras[196].
Entretanto, Frederico Barba-Ruiva[197] aí não estabeleceu seus filhos senão por um século. Foi com os servos da igreja, em
Saint-Claude, assim como na pobre Nantua, do outro lado da montanha, que se iniciou a indústria desses grotões. Vinculados à
gleba, eles inicialmente talharam rosários para a Espanha e para a Itália; hoje, que são livres, cobrem as rotas da França como
carroceiros e ambulantes.

Sob seu próprio bispo, Metz era livre, à semelhança de Liège e de Lyon; ela possuía seu magistrado municipal, seus
Treze, assim como Estrasburgo. Entre o grande rio Mosa e o pequeno (o Mosela, Mosula[198]), as três cidades eclesiásticas
– Metz, Toul e Verdun – dispostas em triângulo[199], formavam um terreno neutro, uma ilha, um asilo para os servos fugitivos.
Os próprios Judeus, proscritos em todo lugar, eram recebidos em Metz. Era o border francês entre nós e o Império. Lá, não
havia qualquer tipo de barreira natural contra a Alemanha, como no Delfinado e no Franco-Condado. Os belos Balões dos
Vosges, mesmo a cadeia da Alsácia, essas montanhas de formas suaves e pacíficas, favoreciam tanto melhor a guerra. Essa
terra ostrasiana, em qualquer canto marcada por monumentos carolíngios[200], com suas doze grandes Casas, seus cento e
vinte pares, com sua abadia soberana de Remiremont, onde Carlos Magno e seu filho faziam suas grandes caçadas de outono,
onde portava-se a espada perante a abadessa[201], a Lorena oferecia uma miniatura do império germânico. A Alemanha
encontrava-se aí, para onde se olhassse, unha-e-carne com a França, e via-se a fronteira em qualquer lugar. Lá também se
formou, nos valedos do Mosa e do Mosela e nas florestas dos Vosges, uma população vaga e flutuante, que não sabia muito
bem sua origem, e que vivia com o comunal, com o nobre e com o padre, o quais a tomavam, vez por vez, a seus serviços.
Metz era a cidade deles, de todos aqueles que não possuíssem uma, vila mista como nunca. Tentou-se, em vão, redigir em um
único Costume os costumes contraditórios dessa Babel.

A língua francesa faz um alto na Lorena e não irei além daí. Abstenho-me de franquear a montanha, de olhar a Alsácia. O
mundo germânico é perigoso para mim. Lá, existe uma árvores de lótus poderosa que faz esquecer a pátria. Se eu vos
descobrisse, divina flecha de Estrasburgo, se eu percebesse meu heróico Reno, eu bem poderia me deixar levar pela corrente
do rio, embalado por suas lendas[202] até à rubra catedral de Mainz, até àquela de Colônia e, daí, até ao Oceano; ou, talvez,
permanecesse encantado nos limites solenes dos dois impérios, nas ruínas de algum campo romano, de alguma famosa igreja
de peregrinação, no monastério dessa nobre religiosa que passou trezentos anos a escutar o pássaro da floresta[203].

Não! Eu paro sobre o limite das duas línguas, na Lorena, no combate das duas raças, no Carvalho dos Partisans, que
ainda se exibe nos Vosges [204]. A luta da França e do Império, da astúcia heróica [205] e da força brutal personificou-se,
logo cedo, no alemão Zwentibold e no francês Rainier (Renier a Raposa?), donde vêm os condes de Hainaut. A guerra do
Lobo e da Raposa é a grande lenda do norte da França, o objeto de fábulas e de poemas populares: um merceeiro de Troyes
fez, no século XV, o último desses poemas [206]. Durante duzentos e cinquenta anos, a Lorena teve duques de origem
alsaciana, criaturas dos imperadores germânicos que, no último século, findaram por ser imperadores. Esses duques
estiveram, quase sempre, em guerra contra o bispo e a república de Metz[207], contra a Champagne, contra a França; mas um
deles, tendo desposado, em 1255, uma filha do conde de Champagne, os duques da Champagne tornaram-se Franceses pelo
lado da mãe e secundaram a França contra os Ingleses, contra o partido inglês de Flandres e da Bretanha. Todos eles
morreram ou foram capturados combatendo pela França, em Coutray, em Cassem, em Crécy, em Auray. Uma filha das
fronteiras da Lorena e da Champagne, uma pobre camponesa, Joana d’Arc, fez mais: ela reergueu a moralidade nacional; nela
apareceu, pela primeira vez, a grande imagem do povo sob uma forma virginal e pura. Por ela, a Lorena encontrava-se
anexada à França. O próprio duque, que havia, por um momento, desprezado o rei e amarrado os pendões reais à cauda de seu
cavalo, casou sua filha com um príncipe de sangue, o conde de Bar, René d’Anjou. Um ramo caçula dessa família deu nos
Guise, que forneceram chefes do partido católico contra os Calvinistas, aliados da Inglaterra e da Holanda.

Descendo da Lorena para os Países-Baixos pelas Ardenas, o Mosa, de agrícola e industrial, torna-se cada vez mais
militar. Verdun e Stenay, Sédan, Mézières e Givet, Maastricht, uma quantidade de praças-fortes domina seu curso. Ele
empresta-lhes suas águas, os cobre ou serve-lhes de cinturão. Toda essa área é arborizada como se para disfarçar a defesa e o
ataque nas proximidades da Bélgica. A grande floresta das Ardenas, a profunda (“ar duinn”), estende-se de todos os lados,
mais vasta que imponente. Vós encontrais cidades, burgos, pastos; credes ter saído dos bosques, mas são apenas clareiras. Os
bosques recomeçam sempre, e sempre os pequenos carvalhos; humilde e monótono oceano vegetal do qual percebeis, de vez
em quando, do alto de alguma colina, as uniformes ondulações. A floresta era bem mais contínua outrora. Os caçadores
podiam correr, sempre à sombra, da Alemanha, do Luxemburgo à Picardia, de Saint-Hubert à Liesse-Notre-Dame. Muitas
histórias se passaram sob esses sombreados; esses carvalhos bem carregados de visco conhecem muitas delas, se desejassem
contá-las. Desde os mistérios dos druidas até às guerras do Javali das Ardenas[208] no século XV; desde o cervo milagroso
cuja aparição converteu São Huberto até à loura Isolda e seu amante... eles dormiam sobre o musgo quando o marido de Isolda
os surpreendeu; mas ele os viu tão belos, tão comportados, com a larga espada que os separava, que se retirou discretamente.
É preciso ver, para além de Givet, a Gruta de Han[209], onde, antigamente, não se ousava penetrar; é necessário ver os
cantos solitários de Laifour e os negros rochedos da Dama do Mosa, a mesa do encantador Maugis, a inapagável impressão
que a pata do cavalo de Renaud deixou na pedra. Os Quatro Filhos Aymon estão em Château Renaud como em Usez, nas
Ardenas como no Languedoc[210]. Vejo, ainda, a fiadora que, durante seu trabalho, mantém sobre os joelhos o precioso
volume da Biblioteca azul, o livro hereditário, gasto, escuredido na vigília[211]. Esse sombreado país das Ardenas não se
liga naturalmente à Champagne. Ele pertence ao bispado de Metz, à bacia do Mosa, ao velho reino da Ostrásia. Quando
passais as brancas e macilentas campanhas que se estendem de Reims a Rethel, a Champagne terminou. Os bosques começam;
com os bosques, os pastos e as pequenas ovelhas das Ardenas. O calcário desapareceu; o tom avermelhado da telha dá lugar
ao sombrio brilho da ardósia; as casas se revestem de limalha de ferro. Manufaturas de armas, fábricas de curtumes,
ardoseiras, tudo isso não alegra o país. Mas a raça é distinta: algo de inteligente, de sóbrio, de ecônomo; o semblante um
pouco seco e talhado de vivaz serenidade. Esse caráter de secura e de severidade não é, de forma alguma, particular à
pequena Gênova de Sedan; ele é praticamente o mesmo em qualquer lugar. A região não é rica e o inimigo está a dois passos...
isso dá o que pensar. O habitante é sério. O espírito crítico domina. É o que, de ordinário, ocorre entre as gentes que sentem
valer mais que sua própria sorte.

Atrás dessa rude e heróica zona que engloba o Delfinado, o Franco-Condado, a Lorena e as Ardenas, desenvolve-se uma
outra bem ao contrário doce e mais fecunda dos frutos do pensar. Eu falo das províncias do Lionês (Lyonnais), da Borgonha e
da Champagne. Zona vinífera, de poesia inspirada, de eloquência, de elegante e engenhosa literatura. Estes aqui não tinham,
como aqueles, de receber e devolver o choque da invasão estrangeira. Melhor abrigados, eles puderam cultivar, por lazer e
prazer, a delicada flor da civilização.

De início, muito perto do Delfinado, a grande e amável cidade de Lyon, com seu gênio eminentemente sociável, unindo
os povos como os rios[212]. Essa ponta do Ródano e do Saône parece ter sido sempre um lugar sagrado[213]. Os Segusii de
Lyon dependiam do povo druídico dos Eduos. Lá, sesssenta tribos da Gáulia ergueram o altar de Augusto e Calígula aí
instituiu esses combates de eloquência, onde o vencido era lançado ao Ródano, se não preferisse apagar seu discurso com a
própria língua[214]. E, no lugar deste, jogava-se no rio as vítimas, touros, segundo o velho costume céltico e germânico:
mostra-se, na ponte de Saint-Nizier, o arco maravilhoso donde eram precipitados os touros[215].

A famosa tábua de bronze, na qual ainda se lê o discurso de Cláudio a favor da admissão dos Gauleses no Senado, é a
primeira de nossas antiguidades nacionais, o signo de nossa iniciação no mundo civilizado. Uma outra iniciação, bem mais
santa, possui seu monumento nas catacumbas de Santo Ireneu de Lyon (saint Irénée), na cripta de São Potino de Lyon (saint
Pothin), em Fourvière, a montanha dos peregrinos. Lyon foi a sede da administração romana e, após, da autoridade
eclesiástica para as quatro Lionesas (Lyon, Tours, Sens e Rouen), quer dizer, para toda a Céltica. Nas terríveis reviravoltas
dos primeiros séculos da Idade Média, essa grande cidade eclesiástica abriu seu seio a uma multidão de fugitivos e povoou-se
graças ao despovoamento geral, mais ou menos como Constantinopla, que nela concentrou, pouco a pouco, todo o império
grego que recuava frente aos Árabes e aos Turcos. Essa população não possuía nem campo, nem terra, nada além de seus
braços e seu Ródano: ela foi industrial e comerciante. A indústria aí se iniciara na época dos Romanos. Possuimos inscrições
tumulares: “À memória de um vidraceiro africano”, morador de Lyon[216]. “À memória de um veterano das legiões,
mercador de papel”[217]. Esse formigueiro laborioso[218], encerrado entre os rochedos e as margens, empilhado nas ruas
escuras que para aí descem sob a chuva e a eterna neblina, ele teve, entretanto, sua vida moral e sua poesia, assim como nosso
Mestre Adam, o marceneiro de Nevers, como os meistersaenger de Nuremberg e de Frankfurt, os tanoeiros, serralheiros e
ferreiros e, ainda hoje, os funileiros de Nuremberg. Eles sonharam, em suas cidades obscuras, com a natureza que não viam e
com esse belo sol que invejavam. Eles martelaram, em seus negros ateliês, os idílios sobre os campos, os pássaros e as flores.
Em Lyon, a inspiração poética não foi a natureza, mas o amor: mais de uma jovem comerciante que, pensativa à meia-luz da
parte de trás da loja, escreveu, assim como Louise Labbé e como Pernette Guillet, versos plenos de tristeza e de paixão, os
quais não eram para seus maridos. O amor de Deus, é preciso dizer, e o mais doce misticismo, foram também um caráter
lionês. A Igreja de Lyon foi fundada pelo “ homem do desejo” (Ποθεινὸς, São Potino)[219]. E foi em Lyon que, nos últimos
tempos, São Martinho, o homem do desejo, estabeleceu sua escola[220]. Nosso Ballanche[221] aí nasceu. O autor de
Imitação, Jean Gerson, aí desejou morrer.

É uma coisa bizarra e contraditória, em aparência, que o misticismo tenha desejado nascer nas grandes cidades
industriais e corrompidas como, hoje, Lyon e Estrasburgo. Mas é que, em nula outra parte, o coração do homem tem mais
necessidade do céu. Lá, onde todas as voluptuosidades grosseiras estão à disposição, a náusea logo aparece. Também a vida
sedentária do artesão, sentado em seu ofício, favorece essa fermentação interior da alma. O artíficie da seda, na úmida
obscuridade das ruas de Lyon, o tecelão do Artois e de Flandres, na grota onde vivia, criaram-se um mundo à falta de um
mundo, um paraíso moral de doces sonhos e de visões; em prejuízo da natureza que lhes faltava, eles entregaram-se a Deus.
Nenhuma classe de homens forneceu mais vítimas às fogueiras da Idade Média. Os valdenses de Arras tiveram seus mártires,
como aqueles de Lyon. Estes, discípulos do mercador Valdo, valdenses ou pobres de Lyon, como eram chamados, procuravam
retornar aos primeiros dias do Evangelho. Eles davam o exemplo de uma tocante fraternidade; e esta união de corações não se
relacionava unicamente à comunidade das opiniões religiosas; muito tempo depois dos valdenses, encontramos, em Lyon,
contratos onde dois amigos adotam-se um ao outro e colocam em comum suas fortunas e suas vidas[222].

O gênio de Lyon é mais moral, ao menos mais sentimental, que aquele da Provença; aquela cidade já pertence ao norte.
É um centro do sul, que não é meridional, e que o sul não deseja. Por outro lado, a França, por muito tempo, renegou Lyon
como estrangeiro, não querendo, de forma alguma, reconhecer a primazia eclesiástica de uma cidade imperial. Malgrado sua
bela situação sobre dois rios, no meio de tantas províncias, ela não podia expandir-se. Atrás de si, estavam as duas
Borgonhas, quer dizer, a feudalidade francesa e a do Império; à frente, estavam os Cevenas e suas invejosas Viena e Grenoble.

Subindo de Lyon para o norte, podeis escolher entre Châlons e Autun. Os Segusii lioneses eram uma colônia dessa
última cidade[223]. Autun, a antiga cidade druídica[224], lançara Lyon na confluência do Ródano e do Saône, na ponta desse
triângulo céltico, cuja base era o Oceano, do Sena ao Loire. Autun e Lyon, a mãe e a filha, tiveram destinos bem diversos. A
filha, sentada sobre a grande estrada dos povos, bela, amável e fácil, sempre prosperou e cresceu; a mãe, casta e severa,
restou só sobre seu tormentoso Arroux, na espessidão de suas florestas misteriosas, entre seus cristais e suas lavas[225]. Foi
ela quem trouxe os Romanos para dentro das Gálias e a primeira preocupação destes foi de conduzir Lyon contra ela. Em vão,
Autun abandonou seu nome sagrado de Bibracte para se chamar Augustodunum e, enfim, Flavia; em vão, ela depôs sua
divindade[226] e fez-se, mais e mais, romana[227]. Ela fracassou sempre; todas as grandes guerras das Gálias se decidiram
em torno dela contra ela[228]. Ela sequer guardou suas famosas escolas. Mas o que ela manteve foi seu temperamento austero.
Até nos tempos modernos, ela forneceu homens de estado, legisladores, o chanceler Rolin, os Montholon, os Jeannin e tantos
outros. Tal espírito severo espalha-se longe, à oeste e ao norte. Os Dupin são de Clamecy; de Vézelay, Thédore de Bèze, o
orador do calvinismo, o verbo de Calvino.

A seca e sombria região de Autun e do Morvan nada tem da amenidade borguinhona. Aquele que desejar conhecer a
verdadeira Borgonha, a amável e vinífera Borgonha, deve tornar a subir o Saône por Châlons, depois virar pela Côte-d’Or, no
platô de Dijon, e tornar a descer na direção de Auxerre; bom país onde as cidades põem pâmpanos (cachos de uvas, parras,
ramos tenros de videira) em suas armas[229], onde todos se chamam de irmão ou primo, terra de bons-vivants e de jubilosos
natais[230]. Nenhuma outra província teve maiores abadias, mais ricas, mais fecundas em colônias longínquas: Saint-Benigne
em Dijon; próximo a Mâcon, Cluny; enfim, Cîteaux, a dois passos de Châlons. Tal era o esplendor desses monastérios, que
Cluny, uma vez, recebeu o Papa, o rei da França e não sei quantos príncipes com seu séquito, sem que os monges se
atrapalhassem. Cîteaux foi ainda maior ou, ao menos, mais fecunda. Ela é a mãe de Clairvaux, a mãe de São Bernardo; seu
abade, o abade dos abades, era reconhecido como chefe da ordem, em 1491, por três mil duzentos e cinquenta e dois
monastérios. Foram os monges de Cîteaux quem, no início do décimo-terceiro século, fundaram as ordens militares da
Espanha e pregaram a cruzada dos Albigenses, assim como São Bernardo pregara a segunda cruzada de Jerusalém. A
Borgonha é a região dos oradores, aquela da pomposa e solene eloquência. Foi da parte elevada da província, daquela que
verte o Sena, de Dijon e de Montbar, que partiram as vozes mais retumbantes da França, aquelas de São Bernardo, de Bossuet
e de Buffon. Mas a amável sentimentalidade da Borgonha é notável sobre outros pontos, com mais graça ao norte, mais brilho
ao sul. Por volta de Semur, a boa madame de Chantal e sua neta, madame de Sevigné; em Mâcon, Lamartine, o poeta de alma
religiosa e solitária; em Charolles, Edgar Quinet, aquele da história e da humanidade[231].

A França não tem elemento mais agregador que a Borgonha, mais capaz de reconciliar o norte e o sul. Seus condes ou
duques, saídos dos dois ramos dos Capetos, deram, no século XII, soberanos aos reinos da Espanha; mais tarde, ao Franco-
Condado, à Flandres, a todos os Países-Baixos. Mas eles não puderam descer o valedo do Sena, nem se estabelecer nas
planícies do centro, malgrado o auxílio dos Ingleses. O pobre rei de Bourges [232], de Orléans e de Reims, a arrebatou ao
grão-Duque da Borgonha. As comunas da França, que inicialmente haviam apoiado este último, revoltaram-se, pouco a pouco,
contra o opressor das comunas de Flandres, contra o chefe dos senhores e o amigo dos Ingleses.

Não seria na Borgonha que devia se cumprir o destino da França. Essa província feudal não podia fornecer-lhe a forma
monárquica e democrática para a qual ela tendia. O gênio da França devia descer nas planícies deslocoridas do centro,
abjurar o orgulho e o exagero, a própria forma oratória, para carregar seu último fruto, o mais requintado, o mais francês. A
Borgonha parece ter ainda alguma coisa de seus Burgúndios; a seiva inebriante de Beaune e de Mâcon turva os sentidos como
aquela do Reno. A eloquência borguinhona tem a ver com a retórica. A exuberante beleza das mulheres de Vermanton e de
Auxerre não expressa mal essa literatura e a extensão de suas formas. A carne e o sangue dominam aqui; o exagero também, e
a sentimentalidade vulgar. Citemos somente Crébillon, Longepierre e Sedaine. É-nos necessária alguma coisa mais sóbria e
mais severa para formar o nó da França.

É uma triste queda, a da Borgonha para a Champagne, ver, depois desses sorridentes encostas, as planícies baixas e
calcárias. Sem falar do deserto da Champagne-Pouilleuse, a região é geralmente plana, pálida, de um prosaísmo desolador. Os
animais são medíocres; os minerais, as plantas, pouco variados. Riozinhos enfadonhos arrastam sua água embranquecida entre
duas fileiras de jovens álamos. A casa, também jovem, e caduca de nascença, procura defender um pouco sua débil existência
encapuzando-se, tanto quanto pode, de ardósias, ao menos de ardósias de madeira; mas, sob sua falsa ardósia, sob sua pintura
lavada pela chuva, aguilhoa o cal, branco, sujo, indigente.

De tais casas não podem nascer belas cidades. Châlons não é mais alegre que suas planícies. Troyes é quase tão feia
quanto industriosa[233]. Reims é tristre na largura solene de suas ruas que fazem as casas parecerem ainda mais baixas;
cidade outrora de burgueses e de padres, verdadeira irmã de Tours, cidade açucarada tanto é pouco devota; rosários e pães-
de-mel, bons paninhos, vinhozinho admirável, feiras e peregrinações.

Essas cidades, essencialmente democráticas e anti-feudais, foram o apoio principal da monarquia. O Costume de
Troyes, que consagrava a igualdade das partilhas, cedo dividiu e aniquilou as forças da nobreza. Tal senhoria que ia assim,
sempre se dividindo, pôde se encontrar fatiada em cinquenta, em cem partes, na quarta geração. Os nobres empobrecidos
tentaram reerguer-se casando suas filhas com ricos plebeus. O mesmo Costume declara que o ventre enobrece [234]. Essa
precaução ilusória não impediu os filhos dos casamentos desiguais de se encontrarem muitos próximos da plebe. A nobreza
não ganhou, nesta conta, senão nobres plebeus. Enfim, eles jogaram fora a vã vergonha e se fizeram comerciantes.

A infelicidade é que esse comércio não se levantava nem pelo objeto, nem pela forma. Não era o negócio longínquo,
aventureiro, heróico, dos Catalães ou dos Genoveses. O comércio de Troyes, de Reims, não era de luxo; aí não se via essas
ilustres corporações, essas Grandes e Pequenos Artes de Florença, onde os homens de estado, tais como os Médicis,
traficavam os nobres produtos do Oriente e do Norte, seda, peles, pedras preciosas. A indústria champanhesa era
profundamente plebéia. Nas feiras de Troyes, frequentadas por toda a Europa, vendia-se fio, pequenas estolas, gorros de
algodão, couros[235]: nossos curtumes do subúrbio Saint-Marceau são, originariamente, de uma colônia de Troyes. Esses vis
produtos, tão necessários a todos, fizeram a riqueza da região. Os nobres sentaram-se, de boa vontade, ao balcão e despejaram
polidez no aldeão: eles não podiam, nesse turbilhão de estrangeiros que afluía às feiras e mercados, se informar da genealogia
dos compradores para discutir o cerimonial social adequado; assim, pouco a pouco, começou a igualdade. E o grande Conde
de Champagne também, há pouco rei de Jerusalém, há pouco rei de Navarra, encontrava-se muito bem na amizade desses
mercadores; é verdade que ele era mal visto pelos senhores[236] que o tratavam, ele próprio, como um mercador: testemunha
o insulto brutal do queijo macio que Roberto do Artois jogou-lhe no rosto.

Esta degradação precoce da feudalidade, essas grotescas transformações de cavaleiros em lojistas, tudo isso muito
contribuiu para alegrar o espírito champanhês e dar-lhe esse ar irônico de patetice maligna que se chama – e eu não sei o por
quê – “ingenuidade”, nos nossos fabulários[237]. Era o país dos bons contos, das divertidas narrativas sobre o nobre
cavaleiro, sobre o honesto e debonário marido, sobre Monsieur o cura e a sua doméstica. O gênio narrativo, que domina na
Champagne e em Flandres, plasmou-se em longos poemas, em belas histórias. A lista de nossos poetas romancistas abre-se
por Chrétien de Troyes e Guyot de Provins[238]. Os grandes senhores do país escrevem, eles próprios, seus gestos:
Villehardouin, Joinville e o cardeal de Retz nos contaram, eles mesmos, as Cruzadas e a Fronda. A história e a sátira são a
vocação da Champagne. Enquanto o conde Teobaldo (Thibaut) mandava pintar suas poesias sobre as muralhas de seu palácio
de Provins, entre as rosas orientais, os merceeiros de Troyes garatujavam sobre seus balcões as histórias alegóricas e
satíricas da raposa Renart e do lobo Ysengrin. O mais picante panfleto da língua é devido, em grande parte, aos procuradores
de Troyes; é a sátira Menipéia[239].

Aqui, nesta ingênua e maliciosa Champagne, termina a longa linha que seguimos do Languedoc e da Provença por Lyon e
pela Borgonha. Nesta zona vinífera e literária, o espírito do homem sempre ganhou em limpeza e sobriedade. Nela,
distinguimos três graus: o ardor e a embriaguez espiritual do Midi, a eloquência e a retórica borguinhona[240]; a graça e a
ironia champanhesa. É o último fruto da França e o mais delicado. Sobre suas planícies brancas, sobre suas magras encostas,
amadureceu o vinho leve do norte, cheio de caprichos e de arrebatamentos[241]. Ele mal deve algo à terra; é o filho do
trabalho, da sociedade[242]. Aí também cresceu essa coisa leve, profunda entretanto, irônica às vezes, e sonhadora, que
encontrou e fechou, para sempre, a veia das fábulas[243].

Pelas planícies rasas da Champanhe, vai-se, indolentemente, o rio da França, o Mosa, e o Sena, com o rio Marne, seu
acólito. Eles vão, mas engrossando, para chegar com mais dignidade ao mar. E a terra, ela mesma, surge, pouco a pouco, em
colinas na Ilha da França, na Normandia, na Picardia. A França torna-se mais majestosa. Ela não quer chegar de cabeça baixa
em face da Inglaterra; ela se enfeita de florestas e cidades soberbas; ela intumesce seus riozinhos, ela se projeta em longas
ondas de magníficas planícies e apresenta à sua rival esta outra Inglaterra de Flandres e da Normandia[244].

Existe aí uma emulação imensa. As duas bordas odeiam-se e assemelham-se. Das duas costas, rigor, avidez, espírito
sério e laborioso. A velha Normandia olha obliquamente sua filha triunfante que sorri-lhe de volta, com insolência, do alto de
sua borda. Elas existem, entretanto, as tábuas nas quais se lê os nomes dos Normandos que conquistaram a Inglaterra[245]. A
conquista, não teria sido ela o ponto a partir do qual esta última tomou o impulso? Tudo aquilo que ela possui de arte, a quem
ela deve? Acaso existiriam, antes da conquista, esses monumentos dos quais ela é tão orgulhosa? As maravilhosas catedrais
inglesas, o que são elas senão uma imitação, um exagero da arquitetura normanda?[246] Os próprios homens e a raça, quão
não foram modificados pela mistura francesa? O espírito guerreiro e chicaneiro, estranho aos Anglo-Saxões, e que fez da
Inglaterra, após a conquista, uma nação de homens de guerra e de escribas, eis aí o puro espírito normando. Essa seiva acerba
é a mesma dos lados do estreito. Caen, a cidade de sapiência, conserva o grande monumento da fiscalidade anglo-normanda,
o échiquier[247] de Guilherme o Conquistador. A Normandia nada tem a invejar: as boas tradições aí se perpetuaram. O pai
de família, ao retornar dos campos, ama explicar aos seus atentos pequenos alguns artigos do Código Civil[248].

O Loreno e o Delfinês não podem rivalizar com o Normando pelo espírito litigioso. O espírito bretão, mais duro, mais
negativo, é menos ávido e menos absorvente. A Bretanha é a resistência, a Normandia é a conquista; hoje, conquista sobre a
natureza, agricultura, industrialismo. Esse gênio ambicioso e conquistador produz-se, de ordinário, pela tenacidade, com
frequência pela audácia e pelo ímpeto; e o ímpeto vai, por vezes, ao sublime: testemunham tantos heróicos marinheiros,
testemunha o grande Corneille[249]. Duas vezes a literatura francesa retomou o desenvolvimento pela Normandia, quando a
filosofia despertava pela Bretanha. O velho poema de Rou[250] surge no século XII com Abelardo; no século XVII, Corneille
com Descartes. Entretanto, eu não sei porque a grande e fecunda idealidade é recusada ao temperamento normando. Ele sobe
alto, mas tomba rápido. Ele cai na indigente correção de Malherbe, na secura de Mézerai, nas engenhosas pesquisas de La
Buyère e de Fontenelle. Mesmo os heróis do grande Corneille, todas as vezes que não são sublimes, tornam-se, com prazer,
insípidos reclamantes, entregues às sutilezas de uma dialética vã e estéril.

Nem sutil, nem estéril, certamente, é o gênio de nossa boa e forte Flandres, mas bem positivo e real, bem solidamente
fundado; solidis fundatum ossibus intùs (NT: sólida base com ossos dentro). Sobre essas gordas e planturosas campanhas,
uniformemente ricas de estrume, de canais, de exuberante e grosseira vegetação, ervas, homens e animais crescem no
ambiente, engordam com prazer. O boi e o cavalo aí inflam-se, como a encenar o elefante. A mulher vale um homem e, com
frequência, melhor. Raça, entretanto, um pouco mole em seu volume, mas de uma força muscular imensa. Nossos hércules de
mercado vieram, invariavelmente, do norte.

A força prolífica dos Bolgos da Irlanda encontra-se entre nossos Belgas de Flandres e dos Países-Baixos. No espesso
limo dessas ricas planícies, nessas vastas e ensombreadas comunas industriais de Ypres, de Gand, de Bruges, os homens
fervilhavam como insetos após a tempestade. Não era necessária pôr o pé sobre esses formigueiros. Eles daí saíam em um
instante, lanças baixadas, em quinze, vinte, trinta mil homens, todos fortes e bem nutridos, bem vestidos, bem armados. Contra
tais massas, a cavalaria feudal não jogava uma boa partida.

Estariam eles muito errados em serem orgulhosos, esses bravos Flamegos? Todos volumosos e grosseiros que
fossem[251], eles cumpriam maravilhosamente suas obrigações. Ninguém entendia, como eles, o comércio, a indústria e a
agricultura. Em nula parte o bom senso, o senso do positivo, do real, foi também notável. Nulo povo, talvez, na Idade Média,
melhor compreendeu a vida corrente do mundo, nem soube melhor agir e contar. A Champagne e Flandres, os únicos países,
na história, que puderam lutar contra a Itália. Flandres tem seu Villani em Froissart e seu Machiavel em Comines[252].
Adicionai seus imperadores-historiadores de Constantinopla. Seus autores de fábulas são também historiadores, ao menos no
que concerne aos mores e costumes públicos.

Mores pouco edificantes, sensuais e grosseiros. E, quanto mais se avança para o norte, nesta gorda Flandres, sob esta
doce e úmida atmosfera, mais a região se amacia, mais a sensualidade domina, mais a natureza se torna poderosa[253]. A
história, a narrativa, não bastam mais para satisfazer a necessidade da realidade, a exigência do senso. As artes do desenho
vêm em auxílio. A escultura começa na França mesmo, com o famoso discípulo de Michelângelo, João de Bolonha. A
arquitetura toma também progresso; não mais a sóbria e severa arquitetura normanda, aguçada em ogivas, erguendo-se para o
céu como um verso de Corneille; mas uma arquitetura rica e plena em suas formas. A ogiva flexibilizou-se em curvas macias,
em arredondamentos voluptuosos. A curva logo verga-se e deforma-se, logo dilata-se e amacia-se no ventre. Circular e
ondulante em seus ornamentos, a encantadora torre de Anvers eleva-se suavemente em andares, como uma gigantesca cesta
trançada de juncos do Escalda (Escaut).

Essas igrejas, cuidadas, lavadas e perfumadas como uma casa flamenga, ofuscam-nos de limpeza e de riqueza, no
esplendor de seus ornamentos de cobre, na sua abundância de mármores brancos e pretos. Elas são mais limpas que as igrejas
italianas e não menos coquetes. Flandres é uma Lombardia prosaica, a quem falta a vinha e o sol[254]. Alguma outra coisa
também falta; percebe-se isso ao se ver as inumeráveis figuras de madeira que se encontram no mesmo nível nas catedrais;
escultura econômica que não substitui o povo de mármore das cidades da Itália[255]. Acima dessas igrejas, no pico de suas
torres, soa o uniforme e sábio carrilhão, honra e júbilo da comuna flamenga. O mesmo som, tocado de hora em hora, durante
vários séculos, bastou à necessidade musical de não sei quantas gerações de artesãos que nasciam e morriam fixados sobre a
banqueta[256].

Mas a música e a arquitetura são ainda muito abstratas. Não bastam esses sons, essas formas; cores são necessárias,
vivas e verdadeiras cores, representações vívidas da carne e dos sentidos. É preciso pôr nos quadros as boas e rudes festas,
onde os homens vermelhos e as mulheres brancas bebem fumam e dançam pesadamente[257]. São necessários suplícios
atrozes, mártires indecentes e horríveis, Virgens enormes, frescas, gordas, escandalosamente belas. Além do Escalda, ao meio
dos tristes mangues, águas profundas, sob os altos diques da Holanda, começa a sombria e séria pintura: Rembrandt e Gérardt
Dow pintam onde escrevem Erasmo e Grotius[258]. Mas em Flandres, na rica e sensual Anvers, o rápido pincel de Rubens
fará os bacanais da pintura. Todos os mistérios serão travestidos[259] em seus quadros idolátricos que arrepiam o
arrebatamento e a brutalidade do gênio[260]. Esse homem terrível, saído do sangue eslavo[261], alimentado na impulsividade
dos Belgas, nascido em Colônia, mas inimigo do idealismo alemão, lançou nos seus quadros uma apoteose desenfreada da
natureza.

Esta fronteira de raças e de línguas[262] européias é um grande palco das vitórias da vida e da morte. Os homens vêm
rápido, multiplicam até inchar[263]; depois as batalhas a proveram. Lá, combate-se, como nunca, a grande batalha dos povos
e das raças. Essa batalha do mundo que teve lugar, diz-se, nos funerais de Átila, ela se renova incessantemente na Bélgica,
entre a França, a Inglaterra e a Alemanha, entre os Celtas e os Germanos. É aí a esquina da Europa, os encontros das
guerras[264]. Eis porque elas são tão gordas, essas planícies: o sangue não teve tempo de secar! Luta terrível e variada! A
nós, as batalhas de Bouvines, Rosebeck, Lens, Steinkerke, Denain, Fontenoi, Fleurus, Jemmapes; a eles, aquelas das Esporas
(Éperons), de Courtray. É preciso mencionar Waterloo[265]?

Inglaterra! Inglaterra! Neste dia, não combatestes um contra um: tínheis o mundo convosco. Por que tomais para vós toda
a glória? O que quer dizer vossa ponte de Waterloo? Há tanto para se orgulhar se o resto mutilado de cem batalhas, se o
último recrutamento da França, legião imberbe mal saída dos liceus e do seio das mães, quebrou-se contra vosso exército
mercenário poupado de todos os combates e guardado contra nós como o punhal de misericórdia com o qual o soldado
agonizante assassinava seu vencedor[266]?

Não me calarei entretanto. Ela me parece bem grande, essa odiosa Inglaterra, em face da Europa, em face de
Dunkerke[267] e de Anvers em ruínas[268]. Todos os outros países, Rússia, Áustria, Itália, Espanha, França, têm suas capitais
a oeste e miram o poente; a grande embarcação européia parece flutuar, a vela inflada do vento que outrora soprou da Ásia.
Apenas a Inglaterra tem a proa para leste, como para desafiar o mundo ao brado unum omnia contrà (NT: um contra todos).
Esta última terra do velho continente é a terra heróica, o eterno asilo dos banidos, dos homens enérgicos. Todos aqueles que
fugiram à servidão, druidas perseguidos por Roma, Galos-Romanos expulsos pelos Bárbaros, Saxões proscritos por Carlos
Magno, Dinamarqueses esfaimados, Normandos ávidos, o industrialismo flamengo perseguido, o calvinismo vencido, todos
atravessaram o mar e tomaram por pátria a grande ilha: Arva, beata petamus arva, divites et insulas...[269]. Assim, a
Inglaterra engordou com os infelizes e engrandeceu-se das ruínas. Mas, à medida que todos esses proscritos, amontoados
nesse estreito asilo, puseram-se a se olhar, à medida que eles notaram as diferenças de raças e de crenças que os separavam,
que eles se viram Kymrys, Gaélicos, Saxões, Dinamarqueses, Normandos, o ódio e o combate vieram. Foi como esses
combates bizarros com os quais Roma regalava-se, esses combates de animais espantados por estarem juntos: hipopótamos e
leões, tigres e crocodilos. E quando os anfíbios, em seu circo fechado do Oceano, fartaram-se de se morder e de se
estraçalhar, eles se lançaram ao mar, eles morderam a França. Mas a guerra interior, podeis bem acreditar, ainda não
terminou. A Besta triunfante houve por bem provocar o mundo sobre seu trono dos mares. Em seu sorriso amargo junta-se um
ranger de dentes, seja porque ela não mais possa girar a acre e rangedora roda de Manchester, seja porque o touro da Irlanda,
que ela mantém em terra, contorce-se e muge.

A guerra das guerras, o combate dos combates, é aquele da Inglaterra e da França; o resto é episódio. Os nomes
franceses são aqueles dos homens que tentaram grandes feitos contra o Inglês. A França não tem senão um santo, a Donzela; e
o nome do grande Guise, que lhes arrancou Calais com os dentes, o nome dos fundadores de Brest, de Dunkerque e de
Anvers[270]; o que quer que esses homens, de resto, tenham feito, seus nomes são caros e sagrados. Por mim, sinto-me
pessoalmente obrigado em relação a esses campeões da França e do mundo, em relação a esses que a armaram, os Duguay-
Trouin, os Jean-Bart, os Surcouff, esses que deixaram preocupadas as pessoas de Plymouth, que as faziam sacudir tristemente
a cabeça, a esses Ingleses que eram tirados de sua taciturnidade, que eram obrigados a alongar seus monossílabos.

E, acreditai que eles não tem merecido mais da França, esses bravos padres irlandeses, esses jesuítas que, sobre nossos
rios, nos monastérios de São Columbano, em Saint-Waast, Saint-Bertin, Saint-Omer, Saint-Amand, em Douai, em Dunkerque,
em Anvers[271], organizaram as missões da Irlanda? Oradores populares, ardentes conspiradores, leões e raposas, que
sabiam, indiferentemente, usar de manha e combater, mentir, morrer pela pátria?

A lutra contra a Inglaterra prestou à França um imenso serviço. Ela confirmou, precisou sua nacionalidade. À força de
unir-se contra o inimigo, as províncias encontraram-se “um povo”. Foi vendo o Inglês de perto que elas sentiram serem
França. Ocorre a certas nações aquilo que se dá para alguns indivíduos: ele conhece e distingue sua personalidade pela
resistência ao que não é ele, ele nota o “eu” pelo “não-eu”. A França se formou assim, sob a influência das grandes guerras
inglesas, por oposição às vezes, e por composição. A oposição é mais sensível nas províncias do oeste e do norte, que vimos
de percorrer. A composição é a obra das províncias centrais das quais nos resta falar.

Para encontrar o centro da França, o nó em volta do qual tudo devia agregar-se, não se deve tomar o ponto central no
espaço; isso seria em torno de Bourges, em torno da Borbonense (Bourbonnais), berço da dinastia; não se deve procurar a
principal separação das águas, essa seriam os platôs de Dijon ou de Langres, entre as fontes do Saône, do Sena e do Mosa;
nem mesmo o ponto de separação das raças, isso seria sobre o Loire, entre a Bretanha, a Auvérnia e a Touraine (Turânia).
Não, o centro encontra-se mais marcado por circunstâncias mais políticas que naturais, mais humanas que materiais. É um
centro excêntrico que deriva e se apoia ao norte, principal teatro da atividade nacional, nas vizinhanças da Inglaterra, de
Flandres e da Alemanha. Protegido, mas não isolado, pelos rios que o circundam, ele se caracteriza, segundo a verdade, pelo
nome de Île de France (Ilha da França)[272].

Dir-se-ia, ao ver-se os grandes rios de nosso país e as grandes linhas de terrenos que os emolduram, que a França corre
com eles na direção do Oceano. Ao norte, as quedas são pouco rápidas, os rios são mais dóceis. Eles em nada impediram a
livre ação de agrupar as províncias em volta do centro que as atraía. O Sena é, em todos os sentidos, o primeiro de nossos
rios, o mais civilizável, o mais perfectível. Ele não tem nem a caprichosa e pérfida lentidão do Loire, nem a brusqueza do
Garonne, nem a terrível impetuosidade do Ródano, que tomba como um touro fugido dos Alpes, fura um lago de dezoito léguas
e voa ao mar mordendo suas margens. O Sena logo recebe a boa impressão da civilização. Desde Troyes, ele se deixa cortar,
dividir-se à vontade, indo procurar as manufaturas e emprestando-lhes suas águas. Mesmo quando a Champagne desaguou-lhe
o Marne e a Picardia o Oise, ele não tem necessidade de fortes diques; ele se deixa fechar, nos nossos cais, sem maior
irritação. Além das manufaturas de Troyes e aquelas de Rouen, ele dá de beber a Paris. De Paris ao Havre, não é senão uma
cidade. É preciso ver, entre Pont-de-l’Arche e Rouen, o belo rio, como ele divaga em suas inumeráveis ilhas enquadradas sob
o sol poente, nas suaves ondulações de ouro, enquanto, ao longo, as macieiras espelham seus frutos amarelos e vermelhos sob
um pano de fundo embranquecido pelas nuvens. Não posso comparar a esse espetáculo senão aquele do lago de Genebra. O
lago tem, além do mais, as vinhas do Vaud, Meillerie e os Alpes. Mas o lago não caminha; é a imobilidade ou, ao menos, a
agitação sem progresso visível. O Sena anda e carrega o pensamento da França, de Paris à Normandia, ao Oceano, à Inglaterra
e à longínqua América.

Paris tem por primeiro cinturão Rouen, Amiens, Orléans, Châlons, Reims, que ela arrebata em seu movimento. Ao qual
se junta um cinturão exterior, Nantes, Bordeaux, Clermont, Toulouse, Lyon, Besançon, Metz e Estrasburgo. Paris reproduz-se
em Lyon para aguardar, pelo Ródano, a excêntrica Marselha. O turbilhão da vida nacional tem toda a sua densidade no norte;
no sul, os rodamoinhos que ele descreve acalmam-se e alargam-se.

O verdadeiro centro foi assinalado logo bem cedo; nós o encontramos desenhado no século de São Luís (NT: século
XIII), em duas obras que começaram nossa jurisprudência: ORDENAÇÕES DE FRANÇA E DE ORLÉANS (Établissements
de France et d’Orléans) e COSTUMES DE FRANÇA E DE VERMANDOIS[273]. Foi entre as regiões Orleanense e
Vermandense, entre o cotovelo do Loire e as fontes do Oise, entre Orléans e Saint-Quentin, que a França encontrou, enfim, seu
centro, seu pedestal e seu ponto de repouso. Ela o procurara em vão nas áreas dos países druídicos de Chartres e de Autun e
nos lugares-chefes dos clãs gálicos, Bourges, Clermont (Agendicum, urbs Arvenorum – NT: “Sens, cidade da Auvérnia”). Ela
o procurou nas capitais da igreja Merovíngia e Carolíngia, Tours e Reims[274].
A França capetíngia do rey de Saint-Denys[275], entre a feudal Normandia e a democrática Champanhe, estende-se de
Saint-Quentin, em Orléans, a Tours. O rei é abade de São Martinho de Tours e primeiro cônego de Saint-Quentin. Orléans,
situando-se no lugar onde os dois grandes rios se aproximam, a sorte dessa cidade foi, com freqüência, aquela da França; os
nomes de César, de Átila, de Joana d’Arc, dos Guise, evocam tudo o que ela viu de cercos e de guerras. A sisuda
Orléans[276] está próxima da região da Touraine (Turânia), próxima da macia e sorridente pátria de Rabelais, como a
colérica Picardia ao lado da irônica Champagne. A história da França antiga parece amontoada na Picardia. A realeza, sob
Fredegunda e Carlos o Calvo, residia em Soissons[277], em Crépy, Verbery, Attigny; vencida pela feudalidade, ela se
refugiou sobre a montanha de Laon[278]. Laon, Péronne, Saint-Médard de Soissons, asilos e prisões a cada turno, receberam
Luís o Debonário (Luís I), Luís d’Ultramar, Luís XI. A real torre de Laon foi destruída em 1832[279], aquela de Péronne ainda
dura. Ela dura, a monstruosa torre feudal dos Coucy[280]:

Je ne suis roi, ne duc, prince, ne comte aussi,

Je suis le sire de Coucy

(Eu não sou rei, nem duque, príncipe, nem conde também,

Eu sou o senhor de Coucy)

Mas, na Picardia, a nobreza logo entrou na grande idéia da França. A heróica Casa de Guise, ramo picardo dos
príncipes da Lorena, defendeu Metz contra os Alemães, tomou Calais dos Ingleses e quase tomou a França do rei. A
monarquia de Luís XIV foi ditada e julgada pelo picardo Saint-Simon[281].

Fortemente feudal, fortemente comunal e democrática, foi essa ardente Picardia. As primeiras comunas da França são as
grande cidades eclesiásticas de Noyon, de Saint-Quentin, de Amiens, de Laon. O mesmo país deu Calvino e começou a Liga
contra Calvino. Um eremita de Amiens[282] levara toda a Europa, príncipes e povos, a Jerusalém, pelo ímpeto da religião.
Um legislador de Noyon a reformou, esta religião, na metade dos países ocidentais; ele fundou sua Roma em Genebra e pôs a
República na fé[283]. A República, ela foi impelida pelas mãos picardas em sua corrida desenfreada, de Condorcet a Camille
Desmoulins, de Desmoulins a Gracchus Babœuf[284]. Ela foi cantada por Béranger que bem disse a palavra da nova França:
“Je suis vilain et très vilain” (NT: “Eu sou feio e muito feio). Entre esses feios, posicionemos na primeira fileira nosso ilustre
general Foy, o homem puro, o nobre pensamento do exército[285].

O sul e as regiões viníferas não possuem, como se vê, o privilégio da eloqüência. A Picardia vale a Borgonha: aqui, há
vinho no coração. Pode-se dizer que, avançando do centro à fronteira belga, o sangue se anima e que o ardor aumenta na
direção do norte[286]. A maior parte de nossos grandes artistas, Claude Loreno, Poussin, Lesueur, Goujon, Cousin, Mansart,
Lenôtre e David pertencem às províncias setentrionais[287]; e se passarmos à Bélgica, se olharmos esta pequena França de
Liége, isolada no meio da língua estrangeira, aí encontraremos nosso Grétry[288].

Para o centro do centro, Paris, a Ilha de França, não há senão uma maneira de fazê-las conhecer, isto é, contando a
história da monarquia. Nós as caracterizaríamos mal citando alguns nomes próprios; elas receberam, elas deram o espírito
nacional; elas não são uma região, um país, mas o resumo de todo o País. A própria feudalidade da Ilha de França expressa
relações gerais. Dizer “os Montfort” é dizer Jerusalém, a cruzada do Languedoc, as comunas da França e da Inglaterra e as
guerras da Bretanha; dizer “os Montmorency” é dizer a feudalidade atada ao poder real, de um gênio medíocre, leal e
devotado. Quanto aos escritores tão numerosos que nasceram em Paris, eles muito devem às províncias das quais saíram seus
pais; eles pertencem sobretudo ao espírito universal da França que neles resplandesce. Em Villon, em Boileau, em Molière e
Régnard, em Voltaire, sente-se o que há de mais geral no temperamento francês; ou, caso se deseje nele procurar alguma coisa
de local, distinguir-se-ia, no máximo, um resto desta velha seiva de espírito burguês, espírito médio, menos amplo que
judicioso, crítico e zombeteiro, que cedo se formou do bom humor gaulês e do azedume parlamentar, entre o pátio de Notre-
Dame e os degraus da Sainte-Chapelle.

Mas esse caráter indígena e particular é secundário: o geral domina. Quem diz Paris, diz a monarquia toda completa.
Como se formou, em uma cidade, esse grande e completo símbolo do País? Seria necessária toda a história do País para
explicá-lo: a descrição de Paris seria o último capítulo. O temperamento parisiente é a forma mais complexa e mais elevada
da França. Pareceria que uma coisa que resultassse da aniquilação de todo espírito local, de toda provincialidade, devesse ser
puramente negativa. Mas não é assim. De todas essas negações de idéias materais, locais, particulares, resulta uma
generalidade viva, uma coisa positiva, uma força viva. Nós as vimos em Julho[289].

É um grande e maravilhoso espetáculo esse o de passear o olhar do centro às extremidades e de abraçar com o olho esse
vasto e poderoso organismo, onde as partes diversas tão habilmente se aproximaram, se opuseram, se associaram, o fraco do
forte, o negativo do positivo, de ver a eloquente e vinífera Borgonha entre a irônica ingenuidade da Champagne e o amertume
crítico, polêmico, guerreiro, do Franco-Condado e da Lorena; de ver o fanatismo languedoquense entre a leviandade
provençal e a indiferença gascã; de ver a cobiça, o espírito conquistador da Normandia contidos entre a resistente Bretanha e
a corpulenta e maciça Flandres.

Considerada em longitude, a França ondula em dois longos sistemas orgânicos, como o corpo humano é duplo de
aparelho, gástrico e cérebo-espinhal. De uma parte, as províncias da Normandia, Bretanha e Poitou, Auvérnia e Guiana; de
outra, aquelas do Languedoc e Provença, Borgonha e Champagne, enfim, aquelas da Picardia e de Flandres, onde os dois
sistemas se juntam. Paris é o sensório.

A força e a beleza do conjunto consistem na reciprocidade dos auxílios, na solidariedade das partes, na distribuição das
funções, na divisão do trabalho social. A força resistente e guerreira, a virtude da ação, estão nas extremidades, a inteligência,
no centro; o centro conhece-se a si próprio e conhece todo o resto. As províncias fronteiriças, cooperando mais diretamente
com a defesa, guardam as tradições militares, continuam o heroísmo bárbaro e renovam, sem cessar, com uma população
enérgica, o centro debilitado pela distensão rápida da rotação social. O centro, resguardado da guerra, pensa, inova na
indústria, na ciência, na política; ele transforma tudo o que recebe. Ele bebe a vida bruta e ela se transfigura. As províncias
miram-se nele; nele, elas se amam e se admiram sob uma forma superior; elas mal se reconhecem:

“Miranturque novas frondes et non sua poma”.

“Maravilha, novas folhas e frutos que não os seus”[290] (NT).

Esta bela centralização, pela qual a França é a França, entristece ao primeiro olhar. A vida está no centro, nas
extremidades; o intermediário é fraco e triste. Entre os ricos arrabaldes de Paris e a rica Flandres, atravessais a velha e triste
Picardia; é a sorte das províncias centralizadas que não são o próprio centro. Parece que esta potente atração as enfraqueceu,
as atenuou. Elas apenas o olham, esse centro, elas não são grandes senão por ele. Mas maiores são elas por essa preocupação
do interesse central que as províncias excêntricas não podem ser pela originalidade que conservam. A Picardia centralizada
deu-nos Condorcet, Foy, Béranger e vários outros, nos tempos modernos. A rica Flandres, a rica Alsácia, tem elas, nos nossos
dias, nomes comparáveis a opor àqueles? Na França, a primeira glória é a de ser Francês. As extremidades são opulentas,
fortes, heróicas mas, com freqüência, elas têm interesses diferentes do interesse nacional; elas são menos francesas. A
Convenção teve de vencer o federalismo provincial antes de vencer a Europa. O carlismo é forte em Lille, em Marselha.
Bordeaux é francês, sem dúvida, mas tanto quanto colonial, americana, inglesa; é preciso que ela tranporte os açúcares, que
ela encontre colocação para seus vinhos.

Contudo, é uma das grandezas da França que, sobre todas as suas fronteiras, ela tenha províncias que misturem ao gênio
nacional alguma coisa do gênio estrangeiro. À Alemanha, ela opõe uma França alemã; à Espanha, uma França espanhola; à
Itália, uma França italiana. Entre essas províncias e os Países vizinhos, há uma analogia e, não obstante, uma oposição.
Sabemos que, com freqüência, as nuances diversas combinam-se menos que as cores diferentes; as grandes hostilidades são
entre parentes. Assim, a Gasconha ibérica não ama a ibérica Espanha. Essas províncias, análogas e diferentes ao mesmo
tempo, que a França apresenta ao estrangeiro, oferecem aos ataques destes uma força resistente ou neutralizante, caso a caso.
São forças diversas pelas quais a França toca o mundo, por onde ela o pega. Prossegue então, minha bela e forte França,
prolonga as longas vagas do teu território onduloso até o Reno, ao Mediterrâneo, ao Oceano. Lança à dura Inglaterra a dura
Bretanha e a tenaz Normandia; à grave e solene Espanha, opõe a zombaria gascã; à Itália, o ardor provençal; ao maciço
Império germânico, os sólidos e profundos batalhões da Alsácia e da Lorena; ao exagero e à cólera belgas, a seca e sanguínea
cólera da Picardia, a sobriedade, a reflexão, o espírito disciplinável e civilizável das Ardenas e da Champagne.

Para aquele que passa a fronteira e compare a França aos Países que a circundam, a primeira impressão não é favorável.
Há bem poucos lugares onde o estrangeiro não pareça superior. De Mons a Valenciennes, de Douvres a Calais, a diferença é
penosa. A Normandia é uma Inglaterra, uma pálida Inglaterra. O que são, para o comércio e a indústria, Rouen e o Hâvre ao
lado de Manchester e de Liverpool? A Alsácia é uma Alemanha, menos no que faz a glória da Alemanha: a omnisciência, a
profundidade filosófica, a ingenuidade poética[291]. Mas não se deve tomar assim a França, peça por peça, é preciso abraçá-
la em seu conjunto. É justamente porque a centralização é poderosa e a vida comum é forte e enérgica que a vida local é fraca.
Direi, mesmo, que aí está a beleza de nosso País. Ele não tem essa cabeça de Inglaterra monstruosamente forte de indústria e
de riqueza, mas também não tem o deserto da Alta Escócia e o câncer da Irlanda. Não encontareis nele, como na Alemanha e
na Itália, vinte centros de ciência e de arte; ele não tem senão um, um da vida social. A Inglaterra é um império, a Alemanha
um país, uma raça, a França é uma pessoa.

A personalidade, a unidade, é por aí que o ser se posiciona alto na escala dos seres. Não posso me fazer compreender
melhor senão reproduzindo a língua de uma engenhosa fisiologia:

“Entre os animais de ordem inferior, peixes, insetos, moluscos e outros, a vida local é forte. “Em cada segmento das
sanguessugas se encontra um sistema completo de órgãos, um centro nervoso, alças e engrossamentos vasculares, um par de
lobos gástricos, órgãos respiratórios, vesículas seminais. Assim, notou-se que um desses segmentos pode viver algum tempo,
ainda que separado dos outros. À medida que se evolui na escala animal, vê-se os segmentos unirem-se mais intimamente uns
aos outros e a individualidade do total se pronunciar fortemente... A individualidade, nos animais compostos, não consiste
somente na solda de todos os organismos, mas também no gozo comum de um número de partes, número que se torna maior à
medida que se aproxima dos degraus superiores. A centralização é mais completa à medida que o animal sobe na
escala”[292]. As nações podem ser classificadas como os animais. O gozo comum de um grande número de partes, a
solidariedade dessas partes entre si, a reciprocidade de funções que elas exercem uma em atenção à outra, é a superioridade
social. Esta é a da França, o País do mundo onde a nacionalidade, onde a personalidade nacional, mais se aproxima da
personalidade individual.

Diminuir sem destruir a vida local, a vida particular, em benefício da vida geral e comum, é o problema da
sociabilidade humana. O gênero humano se aproxima cada dia mais da solução desse problema. A formação das monarquias,
dos impérios, são os degraus por onde nela se chega. O Império romano foi um primeiro passo, o cristianismo um segundo.
Carlos Magno e as Cruzadas, Luís XIV e a Revolução, o Império Francês que daí saiu, eis os novos progressos nessa estrada.
O povo melhor centralizado é também aquele que, por seu exemplo e pela energia de sua ação, mais avançou a centralização
do mundo.

Esta unificação da França, esse aniquilamento do espírito provincial é considerado freqüentemente como o simples
resultado da conquista das províncias. A conquista pode manter juntas, acorrentar as partes hostis, mas jamais uni-las. A
conquista e a guerra não fizeram senão abrir as províncias às províncias, elas deram às populações isoladas a ocasião de se
conhecerem; a viva e rápida simpatia do gênio gálico, seu instinto social, fez o resto. Coisa bizarra, essas províncias, diversas
em climas, em costumes e línguas, compreenderam-se, amaram-se; todas se sentiram solidárias. O Gascão preocupou-se com
Flandres; o Borguinhão aproveitou ou sofreu com o que se fazia nos Pirineus; o Bretão, sentado na praia do Oceano, sentiu os
golpes que se davam sobre o Reno.

Assim formou-se o espírito geral, universal da região. O espírito local desapareceu cada dia; a influência do solo, do
clima, da raça, cedeu à ação social e política. A fatalidade dos lugares foi vencida, o homem escapou à tirania das
circunstâncias materiais. O Francês do norte saboreou o sul, animou-se com seu sol; o meridional tomou alguma coisa da
tenacidade, da seriedade, da reflexão do norte. A sociedade, a liberdade, domaram a natureza; a história apagou a geografia.
Nesta transformação maravilhosa, o espírito triunfou sobre a matéria, o geral sobre o particular e a idéia sobre o real. O
homem individual é materialista, ele se vincula, de boa vontade, ao interesse local e privado; a sociedade humana é
espiritualista, ela tende a libertar-se, sem cessar, das misérias da existência local, a aguardar a alta e abstrata unidade da
pátria.

Quanto mais se mergulha nos tempos antigos, mais se distancia desta pura e nobre generalização do espírito moderno. As
épocas bárbaras não apresentam quase nada de local, de particular, de material. O homem ainda se vincula ao solo, nele está
engajado, dele parece fazer parte. A história, então, olha a terra e a raça, ela mesma tão poderosamente influenciada pela
terra. Pouco a pouco, a força própria que está no homem o libertará, o desenraizará dessa terra. Ele dela sairá, a repelirá, a
esmagará; ser-lhe-á necessária, no lugar de seu vilarejo natal, de sua aldeia, de sua cidade e de sua província, uma grande
pátria pela qual ele próprio passará a contar nos destinos do mundo. A idéia dessa pátria, idéia abstrata que pouco deve aos
sentidos, o conduzirá, por um novo esforço, à idéia da pátria universal, da Cidade da Providência.
À época aonde esta história chegou, no décimo século, estamos ainda bem longe dessa luz dos tempos modernos. É
preciso que a humanidade sofra e tenha paciência, que ela faça por merecer sua vinda... Ai! a que longa e penosa iniciação ela
deve ainda se submeter! que rudes provas ela deve suportar! Em quantas dores ela ainda vai dar a luz à si própria! É preciso
que ela sue suor e sangue para trazer ao mundo a Idade Média e que ela a veja morrer após tê-la, por muito tempo, criado,
alimentado, acarinhado. Triste criança arrancada das entranhas do cristianismo, que nasceu nas lágrimas, cresceu na prece e
no sonho, nas angústias do coração, e que morreu sem nada conseguir; mas ela nos deixou de si uma lembrança tão pungente,
que todos os júbilos e todas as grandezas das idades modernas não bastarão para nos consolar.
LIVRO Quarto

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Capítulo I
O ano 1000. O Rei da França e o Papa Francês. Roberto e Gerberto – França feudal.

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Esta vasta revelação da França que vimos de exibir no espaço e que vamos seguir no tempo, ela começa no décimo
século, com o advento dos Capetos. Cada província tem, desde então, sua história; cada uma toma uma voz e conta-se a si
própria. Este imenso concerto de vozes ingênuas e bárbaras, como um canto de igreja, numa sombria catedral, durante a noite
de Natal, é, inicialmente, áspero e dissonante. Nele se encontra acentos estrangeiros, vozes grotescas, terríveis, à pena
humanas; e duvidaríeis, algumas vezes, se se trata do nascimento do Salvador ou da Festa dos Loucos, a Festa do Asno.
Fantástica e bizarra harmonia que não encontra nada que com ela se pareça, onde acredita-se ouvir, ao mesmo tempo, todo
cântico e os Dies iræ e as Alleluia.

Era uma crença universal, na Idade Média, que o mundo devia terminar com o ano mil da encarnação[293]. Antes do
cristianismo, os Etruscos também haviam fixado seu próprio termo em dez séculos e a predição se realizara. O cristianismo,
passageiro sobre esta terra, hóspede exilado do céu, devia adotar facilmente essas crenças. O Mundo da Idade Média não
possuía a regularidade exterior da cidade antiga e nele era bem difícil discernir a ordem íntima e profunda. Esse mundo não
via senão caos em si; ele aspirava à ordem e a esperava na morte. Além disso, nesses tempos de milagres e de lendas, onde
tudo aparecia bizarramente, como se através de vitrais opacos, podia-se duvidar que essa realidade visível não fosse outra
coisa senão um sonho. O exército de Otto vira muito bem o sol em desfalecimento e amarelo como o açafrão[294]. O rei
Roberto, excomungado por ter desposado uma parente, tinha, após o parto da rainha, recebido um monstro em seus braços. O
diabo achava que não valia mais a pena se esconder: ele fora visto em Roma, apresentando-se solenemente perante um papa
mágico. No meio de tantas aparições, de visões, de vozes estranhas, entre os milagres de Deus e os encantos do demônio,
quem podia assegurar que a terra não iria, uma manhã, se dissolver em fumaça, ao som da trombeta fatal? Poderia bem se dar,
então, que aquilo que chamamos “vida” fosse, em efeito, a morte e que, acabando-se o mundo, como esse santo do lendário,
“commençât de vivre et cessât de mourir”: Et tunc vivere incept, morique desiit (NT: começássemos a viver e cessássemos
de morrer).

Esse fim do mundo, tão triste, era, todavia, a esperança e o temor da Idade Média. Vede essas velhas estátuas nas
catedrais dos séculos X e XI, magras, mudas e fazendo caretas em sua rigidez contraída, ar sofredor como a vida, as mãos
juntas, esse momento desejado e terrível, essa segunda morte da ressurreição que deve fazê-las sair de sua tristeza inefável e
passá-las do vazio ao ser, do túmulo a Deus. É a imagem desse pobre mundo sem esperança após tantas ruínas. O Império
Romano havia desmoronado, aquele de Carlos Magno tinha-se ido também; o cristianismo inicialmente acreditara conseguir
remediar os males daqui de baixo, mas eles continuavam. Infelicidade sobre infelicidade, ruína sobre ruína. Era necessário
que viesse outra coisa e, por ela, aguardava-se. O cativo aguardava no torreão escuro, no sepulcral in pace; o servo esperava
sobre os campos cultivados, à sombra da odiosa torre; o monge aguardava nas abstinências do claustro, nos tumultos solitários
do coração, ao meio das tentações e das quedas, nos remorsos e nas visões estranhas, miserável joguete do diabo que folgava
cruelmente à sua volta e que, ao anoitecer, tirando seu capuz, dizia-lhe alegremente à orelha: “Tu estás condenado!”[295].

Todos desejavam livrar-se da pena, e não importava a qual preço! Valia-lhes mais cair, de uma vez, nas mãos de Deus e
repousar como nunca, mesmo se fosse numa câmara ardente. Devia, além disso, ter lá seu charme, esse momento onde a aguda
e lancinante trombeta do arcanjo trespassaria a orelha dos tiranos. Então, do torreão, do claustro, do campo cultivado, um riso
terrível ressoaria no meio das lágrimas.

Essa medonha esperança do julgamento final intensificou-se nas calamidades que precederam o ano 1.000 ou que o
seguiram de perto. Parecia que a ordem das estações invertera-se, que os elementos seguiam novas leis. Uma peste terrível
desolou a Aquitânia; a carne dos doentes parecia batida pelo fogo, soltava-se de seus ossos e tombava pútrida. Esses
miseráveis cobriam as rotas dos lugares de peregrinação, sitiavam as igrejas, particularmente São Martinho, em Limoges; eles
se amontoavam nas portas e aí se incrustavam. O fedor que cercava a igreja não podia repeli-los. A maior parte dos bispos do
sul para aí foi, levando as relíquias de suas igrejas. A multidão aumentava, a infecção também; eles morriam sobre as
relíquias dos santos[296].

Foi ainda pior, alguns anos depois. A fome devastou todo o mundo, desde o Oriente, a Grécia, a Itália, a França, a
Inglaterra[297]: “O almude de trigo[298]”, disse um contemporâneo, “elevou-se a sessenta soldos de ouro. Os ricos
emagreceram e empalideceram; os pobres roeram as raízes das florestas; vários, coisa horrível de dizer, chegaram, mesmo, a
devorar carnes humanas. Sobre os caminhos, os fortes pegavam os fracos, destrinchavam-nos, assavam-nos e os comiam.
Alguns apresentavam às crianças um ovo, uma fruta, e as atraíam para um desvio, a fim de devorá-las. Esse delírio, essa raiva,
foi ao ponto em que a besta selvagem estava em mais segurança que o homem. Como se fosse um costume estabelecido, o de
comer carne humana, houve um que ousou expô-la à venda no mercado de Tournus. Ele nada negou e foi queimado. Um outro
foi, à noite, desenterrar a carne deste último, comeu-a e, descoberto, foi também queimado”.

“... Na floresta de Mâcon, próximo à igreja de Saint-Jean de Castañeda, um miserável construíra uma choça onde, à
noite, degolava aqueles que lhe pediam hospitalidade. Um homem ali percebeu ossadas e conseguiu fugir. Encontrou-se, no
local, quarenta e oito cabeças de homens, mulheres e crianças. O tormento da fome era tão pavoroso que vários, tirando a cal
do fundo da terra, a misturavam à farinha[299]. Uma outra calamidade sobreveio: os lobos, aliciados pela grande quantidade
de cadáveres sem sepulturas, começaram a atacar os homens. Então, as pessoas, temendo Deus, abriram fossas onde o filho
arrastava o pai, o irmão seu irmão, a mãe seu filho, quando os viam desfalecer; e o sobrevivente, ele próprio, desesperando-se
com a vida, freqüentemente se jogava lá dentro, após aqueles. Entretanto, os prelados das cidades da Gália, tendo-se
congregado em concílio para procurar remédio a tais males, foram da opinião que, uma vez que não se podia alimentar todos
esses esfaimados, fossem então sustentados, tanto quanto possível, apenas aqueles que parecessem mais robustos, de medo que
a terra permanecesse sem cultura”.

Essas excessivas misérias partiram os corações e deram-lhes um pouco de doçura e de piedade. Eles enfiaram o gládio
na bainha, eles próprios trêmulos, sob o gládio de Deus. Não valia mais a pena bater-se, nem fazer guerra, por essa terra
maldita que se ia deixar. Vingança, dela não havia mais necessidade; cada um via muito bem que seu inimigo, como ele
mesmo, tinha pouco a viver. À ocasião da peste de Limoges, eles correram de bom coração aos pés dos bispos e
comprometaram-se a permanecer, daí para a frente, sossegados, a respeitar as igrejas, a não mais infestar os largos caminhos,
a instalar e abrigar aqueles que viajassem sob a salvaguarda dos padres ou dos religiosos. Durante os dias santos de cada
semana (do anoitecer da quarta-feira até a manhã de segunda-feira), toda guerra era proibida: foi o que se chamou a paz, mais
tarde, a trégua de Deus[300].

Nesse pavor geral, a maior parte não encontrava um pouco de repouso senão à sombra da igreja. Eles traziam aos
montes, colocavam sobre o altar, doações de terras, de casas, de servos. Todos esses atos trazem a marca de uma mesma
crença: “O anoitecer do mundo se aproxima”, eles dizem, “cada dia multiplica novas ruínas; eu, conde ou barão, já doei à tal
igreja para salvação de minha alma...”. Ou, então: “Considerando que a servidão é contrária à liberdade cristã, eu liberto um
tal, meu servo de corpo, ele e seus filhos e seus herdeiros”.

Mas o mais freqüente, tudo isso não os assegurava. Eles aspiravam ao abandono da espada, do talabarte, de todos os
símbolos de milícia do século; eles se refugiavam entre os monges e sob seus hábitos; eles pediam aos monges dar-lhes um
lugarzinho, em seus conventos, para se enconderem. Os religiosos não tinham outra solução senão impedirem os grandes do
mundo, os duques e os reis, de se tornarem monges ou irmãos conversos. Guilherme I, duque da Normandia, teria tudo deixado
para se retirar em Jumièges, se o abade tivesse consentido. Pelo menos, ele encontrou um meio de arrancar um capucho e uma
etamina, os levou consigo, os depositou num pequeno cofre, e sempre manteve a chave em sua cintura[301]. Hugo I, duque da
Borgonha e, antes dele, o Imperador Henrique II, também muito desejaram se fazer monges. Hugo foi impedido pelo Papa.
Henrique, entrando na igreja da abadia de Saint-Vanne, em Verdun, exclamou com um salmista: “Eis aqui o repouso que
escolhi e minha morada pelos séculos e séculos!”. Um religioso o ouviu e correu para advertir o abade que, então, chamou o
Imperador ao capítulo dos monges e perguntou-lhe qual era sua intenção. “Eu desejo, com a graça de Deus”, respondeu,
chorando, “renunciar ao hábito do século, vestir o vosso, e não servir senão a Deus com vossos irmãos”. “Desejais, então,”,
respondeu o abade, “prometer, segundo nossa regra e a exemplo de Jesus Cristo, a obediência até à morte?”. “Eu o desejo!”,
respondeu o Imperador. “Pois, bem! Eu vos recebo como monge e, desde hoje, aceito a carga de vossa alma; e o que
ordenarei, desejo que o façais com temor do Senhor. Ora, eu vos ordeno retornar ao governo do Império que Deus vos confiou
e velar, de todo o vosso poder, com temor e tremor, pelo bem de todo o reino [302]”. O Imperador, preso por seu voto,
obedeceu com arrependimento. De resto, ele já era monge há muito tempo, pois sempre vivera como irmão com sua mulher. A
igreja o honra sob o nome de Santo Henrique[303].

Um outro santo, que ela não canonizou, foi nosso Roberto, rei da França. “Roberto”, diz o autor da Crônica de Saint-
Bertin, “era mui piedoso, sábio e letrado, filósofo passável e excelente músico. Ele compôs a prosa do Espírito Santo Adsit
nobis gratia, os ritmos Judæa et Hierusalem, Concede nobis quæ sumus e Cornelius centurio, que ofereceu, musicou e
escreveu sobre o altar de São Pedro em Roma, assim como a antífona Eripe e várias outras coisas belas. Tinha por mulher
Constância que, um dia, pediu-lhe para fazer algo em sua memória; ele, então, escreveu o ritmo O constantia martyrum que a
rainha, por causa de seu nome Constantia, acreditou ter sido feito para ela. O rei vinha à igreja de Saint-Denis, em suas vestes
reais e usando sua coroa, para dirigir o coro nas matinas, nas vésperas e na missa, para cantar com os monges e desafiá-los no
combate do canto. Assim, como sitiasse um castelo no dia São Hipólito, ele deixou o cerco para vir a Saint-Denis a fim de
dirigir o coro durante a missa; e, enquanto cantava devotamente o Agnus Dei dona nobis pacem com os monges, as muralhas
do castelo tombaram subitamente e o exército do rei o tomou em posse; fato este que Roberto sempre atribuiu aos méritos de
Santo Hipólito”[304].

“Um dia, quando voltava de fazer suas preces, após verter, como de hábito, uma chuva de lágrimas, ele encontrou sua
lança guarnecida, por sua vaidosa esposa, com ornamentos de prata. Sempre considerando sua lança, ele olhava se não veria,
lá fora, alguém a quem essa prata fosse necessária e, encontrando um pobre em andrajos, pediu-lhe prudentemente algum
utensílio para retirar a prata. O pobre não sabia o que ele desejava fazer, mas o servo de Deus mandou-lhe procurar rápido.
Enquanto o pobre procurava, ele se entregava à prece. O outro voltou com um utensílio; o rei e o pobre se esconderam juntos
e, tirando a prata de sua lança, o rei, com suas próprias santas mãos, a enfiou na sacola do pobre, recomendando-lhe, segundo
o costume, prestar atenção para que sua mulher não o visse. Quando a rainha veio, tomou um grande susto ao ver a lança assim
despojada; e Roberto jurou, por brincadeira, em nome do Senhor, que não sabia como tal se dera[305]”.

“Ele tinha grande horror à mentira. Assim, para justificar aqueles de quem recebia o juramento, tanto quanto a si próprio,
ele mandara fazer um relicário de cristal envolvido de ouro, onde teve o cuidado de não colocar nenhuma relíquia: era sobre
esse relicário que ele fazia seus nobres jurarem, os quais não haviam sido instruídos acerca da piedosa fraude. Igualmente,
mandava as pessoas do povo jurarem sobre um relicário onde pusera um ovo. Oh! Com qual exatidão se reportam a esse santo
homem as palavras do profeta: ‘Ele habitará o tabernáculo do Altíssimo, aquele que diz a verdade, segundo seu coração,
aquele cuja língua não engana e que jamais fez o mal ao seu próximo![306]”

A caridade de Roberto estendia-se a todos os pecadores. “Como ceasse em Étampes, num castelo que Constância vinha
de construir-lhe, ele ordenou abrirem as portas a todos os pobres. Um deles vem se colocar entre os pés do rei que o
alimentava sob a mesa. Mas o pobre, não se descurando, cortou-lhe, com uma faca, um enfeite de ouro de seis onças que
pendia de seus joelhos e fugiu o mais rápido possível. Quando todos se levantaram da mesa, a rainha viu seu senhor despojado
e, indignada, permitiu-se dirigir palavras violentas contra o santo: “Qual inimigo de Deus, bom senhor, desonrou vosso traje
de ouro?” – “Ninguém”, ele respondeu, “desonrou-me; sem dúvida, aquilo era mais necessário àquele que o roubou que a mim
e, com a ajuda de Deus, o aproveitará[307]”. – Um outro ladrão, tendo-lhe cortado metade da franja de seu manto, Roberto se
virou e disse-lhe: “Vá-te, vá-te; contenta-te com o que pegaste; um outro terá necessidade do resto”. O ladrão partiu todo
confuso[308]. – Mesma indulgência para aqueles que roubassem as coisas santas. Um dia em que rezava em sua capela, viu
um clérigo chamado Ogger subir furtivamente ao altar, colocar um círio no chão e levar o candelabro em sua túnica. Os
clérigos ficaram perturbados, quem poderia ter cometido tal furto? Eles interrogaram o senhor rei e ele protestou que nada viu.
Isso chegou aos ouvidos da rainha Constância; inflamada de furor, ela jurou, pela alma de seu pai, que arrancaria os olhos dos
guardiões, se eles não entregassem o que fora levado do tesouro do santo e do justo. Quando ele soube, esse santuário da
piedade, mandou chamar o ladrão e disse-lhe: “Amigo Ogger, vá-te embora daqui que minha inconstante Constância te devora.
O que tens, te basta para chegar ao país de teu nascimento. Que o Senhor seja contigo!”. Ele deu-lhe, mesmo, dinheiro para a
viagem; e, quando achou que o ladrão estava em segurança, disse alegremente aos seus: “Por que tanto vos atormentais na
procura desse candelabro? O Senhor deu-lhe a seu pobre[309]”. – Uma outra vez, enfim, como despertasse à noite para ir à
igreja, ele viu dois amantes deitados num canto; rapidamente tirou uma pele preciosa que levava ao pescoço e a lançou sobre
esses dois pecadores. Depois, foi rezar por eles[310].

Tal foi a suavidade e a inocência do primeiro rei Capetíngio. Eu digo o primeiro porque seu pai Hugo Chapet[311]
desfez-se de seu direito e jamais desejou portar a coroa; bastou-lhe usar a capa como abade de São Martinho de Tours. Foi no
reino desse bom Roberto que se passou essa terrível época do ano 1.000; e, aparentemente, a cólera divina foi desarmada por
esse homem simples, em quem a paz de Deus parecia ter se encarnado. A humanidade reafirmou-se e esperou durar um pouco
mais; ela viu, como Ezequias, que o Senhor muito desejava acrescentar novos dias. Ela ergueu-se de sua agonia, pôs-se a
reviver, a trabalhar, a construir... a construir, de início, as igrejas de Deus: “Cerca de três anos após o ano 1.000”, diz Glaber,
“em quase todo o universo, sobretudo na Itália e nas Gálias, as basílicas das igrejas foram renovadas, embora a maior parte
ainda fosse bela o suficiente para não precisar. E, entretanto, os povos cristãos pareciam querer rivalizar para saberem quem
ergueria a mais magnífica. Ter-se-ia afirmado que o mundo sacudia e despojava sua velhice para vestir o robe branco das
igrejas”[312].

E, em recompensa, ocorreram inumeráveis milagres. Revelações e visões maravilhosas descobriram, em todos os


lugares, há muito fugidias e escondidas de todos os olhos, relíquias santas: “Os santos vieram reclamar as honras de uma
ressurreição sobre a terra e apareceram aos olhares dos fiéis a quem encheram de consolações[313]”. O próprio Senhor
desceu sobre o altar; o dogma da presença real, até então obscuro e meio escondido à sombra, resplandesceu na crença dos
povos: foi como uma tocha de imensa poesia que iluminou, transfigurou, o ocidente e o norte[314]. “Tudo isso encontrava-se
anunciado, como por um presságio certeiro, na própria posição da cruz do Senhor, quando o Salvador nela estava suspenso
sobre o Calvário. De fato, enquanto o Oriente, com seus povos ferozes, estava escondido atrás da face do Senhor, o Ocidente,
posicionado à frente de seu olhar, recebia de seus olhos a luz da fé, com a qual logo estaria pleno. Sua destra toda poderosa,
distendida para a grande obra de misericórdia, mostrava o Norte que seria suavizado pelo efeito de sua palavra divina,
enquanto sua sinistra tombava para dividir as nações bárbaras e tumultuosas do Sul[315].”

A luta do Ocidente e do Oriente, essa grande idéia que vem de sair, em palavras infantis, da boca ignorante do monge, é
o ideal do porvir e do movimento da humanidade. Grandes sinais brilham, multidões de homens já se encaminham, um a um, e
como peregrinos, a Roma, a Monte Cassino, a Jerusalém. O primeiro papa francês, Gerberto[316], proclama já a cruzada; sua
bela carta, onde conclama todos os príncipes em nome da cidade santa, precede de um século as predicações de Pedro o
Eremita[317]. Pregada, então, por um Francês e sob um Papa francês (Urbano II), executada sobretudo pelos Franceses, a
grande empresa comum da Idade Média, aquela que fez de todos os Francos uma nação, ela nos pertencerá, ela revelará a
profunda sociabilidade da França. Mas é preciso ainda um século; é preciso, ainda, que o mundo se assente antes de agir. No
ano 1.000, um político funda o Papado e um santo funda a realeza: eu falo de dois Franceses, de Gerberto e de Roberto.

Esse Gerberto, dizem, não era menos que um mágico[318]. Monge em Aurillac, expulso, refugiado em Barcelona, ele
desfez-se da batina para ir estudar as letras e a álgebra em Córdoba. Daí, à Roma; o grande Otto o fez preceptor de seu filho,
de seu neto. Depois, ele lecionou nas famosas escolas de Reims e teve por discípulo nosso bom rei Roberto. Secretário e
confidente do arcebispo, ele fez com que este fosse deposto e obteve o cargo por influência de Hugo Capeto. Foi uma grande
coisa, para os Capetos, terem para si um tal homem; se eles o ajudam a tornar-se arcebispo, ele os ajuda a fazer reis.

Obrigado a se retirar de perto de Otto III, ele torna-se arcebispo de Ravena, enfim Papa. Ele julga os nobres, ele nomeia
reis (Hungria, Polônia), dá leis às repúblicas, reina pelo pontificado e pela ciência. Ele prega a cruzada; um astrólogo
predissera que ele não morreria senão em Jerusalém. Tudo vai bem mas, um dia em que fazia uma estadia em Roma, numa
capela que se chamava Jerusalém, o diabo se apresenta e reclama o papa; o pacto fora feito na Espanha, entre os muçulmanos:
na época, Gerberto estudava e, achando o estudo longo, entregou-se ao diabo para abreviá-lo; foi este quem o ensinou a
maravilha dos números árabes e a álgebra, e a arte de construir um relógio, e a arte de se fazer papa. Teria ele conseguido sem
isso? Ele entregou-se, então, ele pertencia ao seu senhor. O diabo demonstrou isso e depois o levou: “tu não pensavas que eu
fosse lógico![319]” .

Com exceção da amizade por esse homem diabólico, não houve, nos primeiros Capetos, nenhuma maldade. O bom
Roberto, indulgente e piedoso, foi um rei homem, um rei povo e monge. Os Capetos geralmente passavam por uma raça
plebéia, Saxã de origem. Seu avô, Roberto o Forte, defendera o país contra os Normandos; Eudes combatia sem cessar os
Imperadores que sustentavam os últimos Carolíngios; mas os reis que se seguem até Luís o Gordo (Luís VI) nada têm de
militar. As crônicas não param de nos dizer, na elevação de cada um desses príncipes, que eles eram excelentes cavaleiros;
vemos, entretanto, que eles não se sustentavam senão pelos auxílios dos Normandos e dos bispos, sobretudo daquele de
Reims. Verdadeiramente, os bispos pagavam e os Normandos combatiam por eles. Esses príncipes, amigos dos sacerdotes a
quem deviam sua grandeza, procuravam, sem dúvida por conselho dos mesmos, se ligar ao passado e, por longínquas alianças
com o mundo grego, primar em antiguidade sobre os Carolíngios. Hugo Capeto pediu a mão de uma princesa de
Constantinopla para seu filho[320]. Seu neto Henrique I casou-se com a filha do czar da Rússia, princesa bizantina por uma de
suas avós, que pertencia à Casa macedônica. A pretensão dessa Casa era de remontar à Alexandre o Grande, à Filipe e, por
eles, à Hércules. O rei da França chamou seu filho de Filipe e esse nome permaneceu comum entre os Capetos. Essas
genealogias orgulhavam as tradições romanescas da Idade Média que explicavam, à sua maneira, o parentesco real das raças
indo-germânicas, tirando os Francos dos Troianos e os Saxões dos Macedônios, soldados de Alexandre[321].

A elevação dessa dinastia foi, como dissemos, a obra dos sacerdotes aos quais Hugo Capeto entregou suas numerosas
abadias; obra também do Duque da Normandia, Ricardo Sem Medo (Ricardo I da Normandia, 933-996)[322]. Este último,
tão maltrado em sua infância por Luís d’Ultramar[323], mais de uma vez traído por Lotário, tinha boas razões para odiar os
Carolíngios. Hugo Capeto era seu pupilo e seu cunhado. Convinha aos Normandos, além do mais, ligar-se ao partido
eclesiástico e à dinastia que essa facção alçou: ele certamente esperava primar sobre ela pela espada. Era, igualmente, a
esperança da casa normada de Blois, Tours e Chartres; estes últimos, que possuíam, entre outros, os assentamentos afastados
de Provins, Meaux e Beauvais, descendiam de um Theobaldo, segundo alguns parente de Rollo, mas ligado ao rei Eudes,
assim como Rollo com Carlos o Simples. Theobaldo desposara uma irmã de Eudes, fizera-se dar Tours e adquirira Chartres
do velho pirata Hastings[324]. Seu filho, Teobaldo o Trapaceiro, casou-se com uma filha de Herberto de Vermandois, o
inimigo dos Carolíngios, e apoiou os Capetos contra os imperadores da Alemanha. Rivais invejosos dos Normandos da
Normandia, os Normandos de Blois recusaram-se, por algum tempo, a reconhecer Hugo Capeto por raiva daqueles que o
fizeram rei. Mas ele os acalma fazendo com que seu filho, o rei Roberto, se case com a famosa Berta, viúva de Eudes I de
Blois (filho de Teobaldo o Trapaceiro). Essa viúva, herdeira do reino da Borgonha pelo rei Rodolfo, seu irmão, podia dar aos
Capetos algumas pretensões sobre este último reino, legado por Rodolfo ao Império. Assim, o papa alemão Gregório V,
criatura dos imperadores, sacou do pretexto de um parentesco longínquo para forçar Roberto a abandonar sua mulher e
excomungá-lo em caso de recusa[325]. Conhece-se a história, ou a fábula, do abandono de Roberto, desamparado por seus
servidores, que jogavam ao fogo tudo que ele tocava, e a lenda de Berta, que teria dado à luz um monstro. Vê-se, no portal de
várias catedrais, a estátua de uma rainha que tem um pé de ganso e que parece designar a esposa de Roberto[326].

Berta tivera do conde Blois, seu primeiro marido, um filho chamado Eudes, como seu pai, e cognominado o
Champanhês (le Champenois), porque ele acrescentou aos seus vastos domínios uma parte de Brie e da Champagne. Eudes
ousou empreender uma guerra contra o Império. Ele se pôs na posse do reino da Borgonha, ao qual tinha direito por sua mãe;
ele subjugou tudo até o Jura e foi recebido em Viena. Chamado, por seu turno, pela Lorena e pela Itália que o queriam como
rei, ele desejou reerguer o antigo reino da Ostrásia[327]. Capturou Bar e marchou na direção de Aachen, onde contava fazer-
se coroar nas festas de Natal. Mas o duque da Lorena, o conde de Namur, os bispos da Lorena e de Metz, todos os nobres do
país, vieram ao seu encontro e o desafiaram. Morto na fuga, ele não pôde ser reconhecido por sua mulher senão por um sinal
escondido que possuía no corpo[328] [1037].

Seus estados, desde então divididos nos condados de Blois e de Champagne, cessaram de compor uma potência temível.
Família mais amável que guerreira, poetas, peregrinos, cruzados, os condes de Blois e Champagne não tiveram nem o espírito
de perservança, nem a tenacidade dos seus rivais da Normandia e do Anjou.

A Casa de Anjou não era nem Normanda, como aquelas de Blois e da Normandia, nem Saxã, como os Capetos, mas
indígena. Ela designava como seu primeito autor um bretão de Rennes, Tortulfo, o forte caçador[329]. Seu filho pôs-se a
serviço de Carlos o Calvo e combateu valentemente os Normandos; ele obteve, em recompensa, algumas terras na região do
Gatinês (Gatinais) e a filha do duque da Borgonha. Ingelger, neto de Tortulfo, e os dois Foulques que vieram na sequência,
foram implacáveis inimigos dos Normandos de Blois e da Normandia, assim como dos Bretões, disputando aos primeiros e
aos segundos a Tourânia (região de Tours) e o Maine e, aos terceiros, a área que se estende de Angers a Nantes: mais unidos e
mais disciplináveis que os Bretões; mais valentes que os Poitevinos e os Aquitânios, os Angevinos levaram grande vantagem
sobre o sul, espalharam-se do outro lado do Loire e impeliram-se até Saintes. Eles sucederam à preponderância que os condes
de Blois e de Champagne tiveram por um instante. Quando o rei Roberto foi obrigado a deixar Berta, viúva e mãe desses
condes, o angevino Foulques-Nerra fez-lhe desposar sua sobrinha Constância, filha do conde de Toulouse[330]. O irmão de
Foulques, Bouchard, já era conde de Paris, e possuía os castelos imponentes de Melun e de Corbeil; o filho de Bouchard
torna-se bispo de Paris[331]. Assim, o bom Roberto, na mão dos Angevinos, dócil à sua mulher Constância e a seu tio
Bouchard, pôde, tranquilamente, compor hinos e vagar pelas prateleiras. Hugo de Beauvais, um dos seus servidores, tentou
trazer de volta Berta e foi assassinado impunemente sob seus olhos[332]. Beauvais pertencia aos condes de Blois, dos quais
Berta era a viúva e a mãe. O bispo de Chartres, Fulbert, escreveu a Foulques uma carta na qual ele o designava como autor
desse crime. Foulques, já muito mal com a igreja pelos bens que dela arrebatava todo dia, partiu para Roma com um alta soma
de dinheiro, comprou a absolvição do Papa, fez uma peregrinação a Jerusalém e construiu, na volta, a Abadia de Beaulieu,
próxima a Loches: um legado a consagrou ante a recusa dos bispos. Toda a vida desse homem mau foi uma alternativa de
vitórias assinaladas por crimes e peregrinações; ele foi três vezes à Terra Santa. A última vez, ele retornou a pé e morreu de
exaustão em Metz[333]. Das suas duas mulheres, ele degredou uma em Jerusalém e queimou a outra como adúltera. Mas ele
fundou muitos monastérios (Beaulieu, Saint-Nicolas, de Angers etc.), construiu vários castelos (MontRichard, Montbazon,
Mirebeau, Château-Gonthier). Exibe-se, ainda, em Angers, sua negra TORRE DO DIABO (Tour du Diable ). É o verdadeiro
fundador do poder dos condes de Anjou. Seu filho, Godofredo Martel, desafiou e matou o conde de Poitiers, aprisionou aquele
de Blois e exigiu a região de Tours em resgate. Ele também governava o Maine como tutor do jovem conde. Malgrado suas
discórdias internas, a Casa de Anjou findou por prevalecer sobre aqueles de Blois e Champagne. Ambas ligaram-se por
casamentos aos Normandos conquistadores da Inglaterra. Mas os condes de Blois não ocuparam o trono da Inglaterra senão
por um instante, enquanto os Angevinos o guardaram do décimo-segundo ao décimo-terceiro séculos, sob o nome de
Plantagenetas[334], a ele anexaram, durante algum tempo, todo nosso litoral, desde Flandres até o Pirineus, e falharam em
anexar a França.

A Ilha de França e o rei, que os Angevinos mantiveram entre suas mãos, por algum tempo, delas escaparam em boa hora.
Desde o ano 1.012, vemos o angevino Bouchard retirar-se para a abadia de Saint-Maur-des-Fossés e deixar Corbeil aos
Normandos. Estes, então, dominam sob o nome do rei Roberto e tentam dar-lhe a Borgonha, o que os tornaria senhores de todo
o curso do Sena. O pobre Roberto, que eles mantinham consigo, vendo contra si os bispos e os abades da Borgonha, pediu-
lhes perdão por fazer-lhes guerra[335]. A ligação entre os Capetos e os duques da Borgonha era antiga. O primeiro duque,
Ricardo o Justiceiro, pai de Boson, rei da Borgonha-Cisjurana, teve Raul por filho, o qual fez com que o duque Roberto se
tornasse o rei da França no ano 922, e que o foi, na sequência, ele próprio; depois, um genro de Ricardo fez passar o ducado
da Borgonha a dois irmãos de Hugo Capeto. O último desses irmãos adotou o filho de sua mulher, Otto-Guilherme, Lombardo
por pai, mas Borguinhão pela mãe. Esse Otto-Guilherme, fundador da Casa do Franco-Condado, atacado pelos Normandos e
por Roberto, ameaçado, de um outro lado, pelo Imperador, que reclamava o reino da Borgonha, foi obrigado a renunciar ao
título do ducado. Eu digo “ao título”, pois os senhores eram tão poderosos nesse país, que a dignidade ducal não era, então,
senão um título vão. O filho caçula de Roberto, que tinha o mesmo nome, foi o primeiro duque Capetíngio da Borgonha
(1032). Sabe-se que essa Casa deu reis a Portugal, como aquela do Franco-Condado os deu à Castela.

Na época onde os Angevinos governavam os Capetíngios, sob Hugo Capeto e Roberto, eles parecem ter tentado se
servir de ambos contra o Poitou, assim como os Normandos deles se serviram, na sequência, contra a Borgonha. Mas, apesar
do que se conta a respeito de uma pretensa vitória de Hugo Capeto sobre o Conde do Poitou, o sul permaneceu fortemente
independente do norte. Foi mesmo, e antes, o sul quem exerceu alguma influência sobre os costumes e o governo da França
setentrional. Constância, filha do Conde de Toulouse, sobrinha daquele do Anjou, reinou, como visto, sob Roberto. Para
prologar essa dominação após a morte de seu marido (1031), ela desejava alçar ao trono seu segundo filho, Roberto, em
prejuízo do primogênito, Henrique; mas a igreja declarou-se pelo primogênito. Os bispos de Reims, Laon, Soissons, Amiens,
Noyon, Beauvais, Châlons, Troyes e Langres, assistiram sua sagração, assim como os condes de Champagne e do Poitou. O
duque dos Normandos o tomou sob sua proteção e forçou Roberto, o caçula, a se contentar com o ducado da Borgonha. É o
caule dessa primeira Casa da Borgonha que funda o reino de Portugal. Todavia, o Normando não deu a realeza para Henrique
senão enfraquecida e desarmada, por assim dizer. Ele se fez ceder o Vexin e, assim, encontrou-se estabelecido a apenas seis
léguas de Paris. Henrique tentou, em vão, escapar a essa servidão e retomar o Vexin em favor das revoltas que tiveram lugar
contra o novo duque da Normandia, Guilherme o Bastardo. Esse Guilherme, a respeito de quem falaremos bastante ao longo
do capítulo seguinte, bateu seus barões e derrotou o rei. Foi, talvez, a salvação deste último, quando o duque virou contra a
Inglaterra suas armas e sua política.

Henrique e seu filho, Filipe I (1031/1108), restaram espectadores inertes e impotentes dos grandes acontecimentos que
sacudiram a Europa durante seus reinos. Não tomaram parte nem das cruzadas normandas de Nápoles e da Inglaterra, nem da
luta dos papas e dos imperadores; eles deixaram tranquilamente o imperador Henrique III estabelecer sua supremacia na
Europa e recusaram-se a secundar os condes de Flandres, Holanda, Brabant e Lorena, na guerra dos Países-Baixos contra o
Império. A realeza francesa não era ainda senão uma esperança, um título, um direito. A França feudal, que por ela será
absorvida, tem, até aqui, um movimento todo excêntrico. Quem desejar seguir esse movimento, é preciso que vire os olhos do
centro, ainda impotente, e que assista à grande luta do Império e do Sacerdócio, que siga os Normandos na Sicília, na
Inglaterra, sob a bandeira da igreja e que, enfim, encaminhe-se à Terra Santa com toda a França. Então, será o tempo de
retornar aos Capetos e de ver como a Igreja os tomou por instrumentos, no lugar dos indóceis Normandos; como ela fez a
fortuna deles e os alçou tão alto que estiveram na posição de rebaixá-la.

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Capítulo II
Décimo-primeiro século. Gregório VII. Aliança dos Normandos e da Igreja – Conquistas das Duas Sicílias e da
Inglaterra.

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Não foi à toa que os Papas chamaram a França de filha primogênita da Igreja. Foi por ela que eles combateram, em
todos os lugares, a oposição política e religiosa na Idade Média. Desde o século XI, quando a realeza capetíngia, fraca e
inerte, não pôde mais secundá-la, a espada dos Franceses da Normandia repele o Imperador das muralhas de Roma, expulsa
os Gregos e os Sarracenos da Itália e da Sicília, submete os Saxões dissidentes da Inglaterra. E, quando os Papas conseguem
arrastar a Europa à cruzada, a França tem a parte principal nesse evento que contribui tão poderosamente para sua grandeza e
a arma com um força imensa na luta do sacerdócio contra o império.

No século XI, a querela é entre o santo pontificado romano e o sacro império romano. A Alemanha, que atropelou Roma
pela invasão dos Bárbaros, toma seu nome para sucedê-la; não somente ela deseja sucedê-la na dominação temporal (já todos
os reis reconhecem a supremacia do Imperador), mas a si ainda afeta uma supremacia moral; ela intitula-se o Sacro Império;
fora do Império, nenhuma ordem, nem de santidade. À semelhança do que ocorre lá em cima, onde os poderes celestes, tronos,
dominações, arcanjos, são cadeias sucessivas de obediência, o Imperador tem direito sobre os reis, os reis sobre os duques,
estes sobre os margraves e os barões. Eis aí uma pretensão soberba mas, ao mesmo tempo, uma idéia bem fecunda para o
porvir. Uma sociedade secular toma o título de sociedade santa e pretende refletir, na vida civil, a ordem celeste e a
hierarquia divina, colocar o céu sobre a terra. O Imperador, nos dias de cerimônia, tem o globo em sua mão; seu chanceler
chama os outros soberanos de reis provinciais[336], seus jurisconsultos o declaram a lei viva[337]; ele pretende estabelecer
sobre a terra uma sorte de paz perpétua e substituir um estado legal ao estado de natureza que ainda existe entre as nações.

Agora, tem ele o direito de fazer essa grande coisa? É ele digno, esse príncipe feudal, esse bárbaro da Francônia ou da
Suábia? Cabe-lhe ser, sobre a terra, o instrumento de uma tão grande revolução? Esse ideal de calma e de ordem que o gênero
humano persegue há tanto tempo, é de fato o Imperador da Alemanha que vai dá-lo, ou será ele adiado até o fim do mundo, até
a consumação dos tempos?

Eles dizem que seu grande imperador Frederico Barba Ruiva não morreu; ele apenas dorme num velho castelo deserto,
sobre uma montanha. Um pastor, tendo penetrado através dos espinheiros e do mato, o viu ali: ele estava trajando sua
armadura de ferro, cotovelos sobre uma mesa de pedra e, sem dúvida, já fazia muito tempo, pois sua barba crescera em volta
da mesa e a abraçara nove vezes. O imperador, mal erguendo sua cabeça pesada, apenas perguntou ao pastor: “Os corvos
ainda voam em volta da montanha?” – “Sim, ainda.” – “Ah, bom! Posso voltar a dormir”.

Que ele durma. Não é a ele, nem aos reis, nem aos imperadores, nem ao Sacro-Império da Idade Média, nem à Santa-
Aliança dos tempos modernos, que cabe realizar o ideal do gênero humano: a paz sob a lei, a reconciliação definitiva das
nações.

Sem dúvida, era um nobre mundo esse da época feudal que adormece com a Casa da Suábia; não se pode atravessá-lo,
mesmo após a Grécia e Roma, sem lançar-lhe um olhar e um pesar. Nele havia companheiros fiéis, bem lealmente devotados a
seu senhor e à dama do senhor; jubilosos à sua mesa e em seu lar; muito jubilosos quando era necessário passar com ele os
desfiladeiros dos Alpes ou segui-lo a Jerusalém e até o Mar Morto; piedosas e cândidas almas de homens sob a couraça de
aço. E esses magnânimos imperadores da Casa da Suábia, essa raça de poetas e de perfeitos cavaleiros, estariam assim tão
errados de pretender o império do mundo? Seus inimigos os admiravam enquanto os combatiam. Em todos os lugares, sua
beleza era reconhecida. Aqueles que procuravam Enzio, o filho fugitivo de Frederico II, o descobriram à vista de uma fivela
de seus cabelos. “Ah!”, eles diziam, “não há ninguém no mundo, senão o rei Enzio, que tenha tão belos cabelos louros[338]”.
Esses belos cabelos louros, e essas poesias, e essa grande coragem, tudo isso de nada serviu. O irmão de São Luís nem por
isso deixou de cortar a cabeça ao pobre jovem Conradino e a Casa da França sucedeu na preponderância dos
imperadores[339].
O Imperador deve perecer, o Império deve perecer, e o mundo feudal, do qual ele é o centro e a alta expressão. Há,
nesse mundo, algo que o condena e o vota à ruína: é seu materialismo profundo. O homem afeiçoou-se à terra, ele criou raízes
no rochedo do qual ergue-se sua torre. Nula terra sem Senhor, nulo senhor sem terra. Já o homem pertence a um lugar; ele é
julgado segundo a referência de pertencer ao alto ou ao baixo lugar. Ei-lo localizado, imóvel, fixado sob a massa de seu
pesado castelo, de sua pesada armadura.

A terra é o homem; a ela pertence a verdadeira personalidade. Como pessoa, ela é indivisível; deve permanecer una e
passar ao primogênito. Pessoa imortal indiferente, impiedosa, ela não conhece a natureza e nem a humanidade. O primogênito
possuirá só; quê digo? Ele é quem será possuído: os usos e costumes de sua terra o dominam, esse orgulhoso barão; sua terra o
governa, impõe-lhe seus deveres; segundo a forte expressão da Idade Média, é precisa que ele sirva a seu feudo.

O filho terá tudo, o primogênito. A filha nada tem a pedir; não recebeu ela os dotes do chapeuzinho de rosas e do abraço
de sua mãe[340]? Os mais novos? Oh, sua herança é vasta! Eles não têm nada menos que as grandes estradas e, por cima, toda
a abóbada do céu. O leito deles é a soleira da casa paternal: eles daí poderão, nas noites de inverno, tiritantes e esfaimados,
ver o primogênito no lar onde eles também se sentaram nos bons tempos de sua infância e, talvez, ele lançar-lhes-á alguns
pedaços, não obstante os grunhidos de seus cães. Calma, meus dogues, são meus irmãos; é necessário que tenham alguma coisa
também.

Eu aconselho aos mais novos ficarem contentes e não assumirem o risco de se submeterem a algum outro senhor pois, de
pobres, eles poderiam se tornar servos e, ao cabo de um ano de estadia, pertencer-lhe corpos e bens. Boa aubana para ele;
eles se tornariam seus aubanos; ou melhor valeria dizer, seus servos, seus judeus. Todo infeliz que procura asilo, todo vaso
que quebra na praia, pertence ao senhor: ele tem o aubaine e o destroço[341].

A igreja não é senão um asilo seguro. É aí que se refugiam os caçulas das casas nobres. A igreja, impotente para repelir
os bárbaros, foi obrigada a deixar a força à feudalidade; ela própria se torna, pouco a pouco, completamente feudal. Os
cavaleiros restam cavaleiros sob o hábito dos sacerdortes. Desde Carlos Magno, os bispos indignam-se que se lhes apresente
a pacífica mula e que queiram ajudá-los a montar. É-lhes necessário um destrier[342] e a este se lançam de suas próprias
forças[343]. Eles cavalgam, caçam, combatem, eles abençoam com golpes de sabre e impõem, com a maça d’armas, pesadas
penitências[344]. Era uma típica oração fúnebre para os bispos: bom clérigo e bravo soldado. Para a batalha de Hastings, um
abade saxão traz doze monges e todos os treze são mortos. Os bispos da Alemanha depõem um dos seus como pacífico e
pouco valente[345]. Os bispos se tornam barões e os barões bispos. Todo pai previdente encontra para seus caçulas um
bispado, uma abadia. Eles fazem com que seus servos elejam seus pequenos para as maiores sés eclesiásticas. Um arcebispo
de seis anos sobe numa mesa, balbucia duas palavras do catecismo e ei-lo eleito[346]; ele toma o encargo das armas, ele
governa uma província eclesiástica. O pai vende, em seu nome, os benefícios, recebe os dízimos, o preço das missas, embora
esquecendo-se de levá-lo para serem ditas. Ele obriga seus vassalos a se confessarem, a testarem, a legarem, de boa ou má
vontade, e recolhe. Ele bate o povo com dois gládios: vez por vez, ele combate, ele excomunga, ele mata, ele dana à sua
vontade.

Não faltava senão uma coisa a esse sistema: que os nobres e valentes sacerdotes não mais comprassem o gozo dos bens
da igreja com as abstinências do celibato[347]; que tivessem o esplendor sacerdotal, a dignidade dos santos e, também, as
consolações do matrimônio; que erguessem, à sua volta, formigueiros de pequenos padres; que alegrassem com o vinho do
altar o repasto da família e que, do pão sagrado, abarrotassem seus pequeninos. Doce e santa esperança! Eles crescerão, esses
pequenos, se Deus quiser! Eles sucederão, mui naturalmente, nas abadias, nos bispados de seu pai. Seria duro negar-lhes esses
palácios, essas igrejas; a igreja pertence-lhes; é o feudo deles. Assim, a hereditariedade sucede à eleição, o nascimento ao
mérito. A igreja imita a feudalidade e a ultrapassa; mais de uma vez ela partilhou em favor das filhas; uma filha teve, em dote,
um bispado[348]. A mulher do padre caminha perto dele até o altar; aquela do bispo disputa o passo à esposa do conde.

Certo, não serei eu quem falará contra o matrimônio: esta vida também possui sua santidade. Todavia[349], esse virginal
himeneu do padre e da igreja não ficaria ele um pouco desorientado por um himeneu menos puro? Aquele que adotou o povo,
segundo o espírito, lembrar-se-ia dele aquele a quem a natureza deu filhos, segundo a carne? A paternidade mística atentaria
contra a outra? O padre poderia se privar para dar ao pobres, mas não privaria, de forma alguma, seus filhos! ... E, quando ele
resistisse, quando o padre vencesse o pai, quando cumprisse todas as obras do sacerdócio, ainda aí eu temeria que ele não
mais conservasse o espírito. Não... Há, mesmo no mais santo casamento, há, na mulher e na família, algo de amolecedor e de
enervante que quebra o ferro e dobra o aço. O mais firme coração nele perde qualquer coisa de si. Era mais que um homem,
não é mais que um homem. Ele dirá, como Jesus, quando a mulher tocou seu manto: sinto que uma virtude saiu de mim.
E essa poesia da solidão, essas varonis voluptuosidades da abstinência, essa plenitude de caridade e de vida onde a
alma abraça Deus e o mundo, não acrediteis que ela subsista inteira ao leito conjugal. Sem dúvida, há também uma emoção
piedosa quando se desperta e se vê, por perto, o bercinho dos seus filhos e, sobre o travesseiro, ao lado de si, a querida e
respeitável cabeça adormecida da mãe deles. Mas o quê se tornariam as meditações solitárias, os sonhos misteriosos, as
sublimes tempestades onde combatem, em nós, Deus e o homem? Aquele que jamais velou no choro, que jamais embebeu seu
leito de lágrimas, não vos conhece, ó poderes celestes[350]!

O Cristianismo estaria findo se a igreja, amolecida e vulgarizada no casamento, se materializasse na herança feudal. O
sal da terra se esgotaria e tudo estaria dito. Desde aí, não mais força interior, nem ímpeto ao céu. Jamais uma tal igreja teria
erguido a abóbada do coro de Colônia, nem a flecha de Estrasburgo; ela não teria amamentado nem a alma de São Bernardo,
nem o penetrante gênio de São Tomás: a tais homens, é necessário o recolhimento solitário. Desde aí, não haveria cruzada.
Para ter o direito de atacar a Ásia, é preciso que a Europa domine a sensualidade asiática, que se torne mais Europa, mais
pura, mais cristã.

A igreja em perigo contrai-se para ainda viver. A vida se concentra no coração. O mundo, depois da tempestade da
invasão bárbara, se refugiara na igreja e a havia maculado; a igreja se refugiou nos monges, quer dizer, na sua parte mais
severa e mais mística; digamos, ainda, a mais democrática; esta vida de abstinência era a menos procurada pelos nobres. Os
claustros enchiam-se de filhos de servos[351]. Em face desta igreja esplêndida e orgulhosa, que se vestia com um fausto
aristocrático, construiu-se outra, pobre, sombria, solitária, a igreja dos sofrimentos contra aquela dos gozos. Ela a julgou, a
condenou, a purificou, deu-lhe a unidade. A aristocracia episcopal foi sucedida pela monarquia pontifical: a igreja encarnou-
se num monge.

O reformador, como o fundador, era filho de um carpinteiro [352]. Era um monge de Cluny, um italiano nascido em
Sorano; ele pertencia a essa poética e positiva Toscana que produziu Dante e Machiavel. Esse inimigo da Alemanha ostentava
o nome germânico de Hildebrando[353].

Quando ele ainda se encontrava em Cluny, o Papa Leão IX, parente do Imperador e por ele nomeado, passou por esse
monastério e, tal era a autoridade religiosa do monge, que ele convenceu o príncipe da Igreja a render-se em Roma, pés nus e
como peregrino, para renunciar à nomeação imperial e se submeter à eleição do povo[354]. Era o terceiro papa que o
Imperador nomeava e mal parecia que se pudesse lamentar disso, pois esses papas alemães eram exemplares. A nomeação dos
mesmos fizera cessar os tenebrosos escândalos de Roma, quando duas mulheres davam o papado, vez por vez, a seus amantes;
quando o filho de um judeu, quando uma criança de doze anos, foram postos à testa da cristandade. Todavia, talvez fosse ainda
pior que um Papa viesse a ser nomeado pelo Imperador e que os dois poderes encontrassem-se assim reunidos. Devia findar
por acontecer, como em Bagdá, como no Japão, que o poder espiritual fosse aniquilado: a vida é a luta e o equilíbrio de
forças; a unidade, a identidade, é a morte.

Para que a igreja escapasse à dominação dos laicos, era necessário que ela cessasse de ser, ela própria, laica, que
recobrasse sua força pela virtude da abstinência e dos sacrifícios, que mergulhasse nas frias águas do Estige[355], que ela se
embebesse na castidade. Foi por aí que o monge começou. Já sob os dois Papas que o precederam no Pontificado, ele fez
decretar que um padre casado não era mais padre[356]. Lá em cima, grande rumor: eles se escrevem e declaram em alto som
que desejavam manter suas mulheres. Eles declaram: nós, antes, abandonaremos nossos bispados, nossas abadias, nossas
cúrias; que ele guarde seus benefícios. O reformador não recuou: o filho do carpinteiro não hesitou em incitar o povo contra
os padres[357]. Em todos os lugares, a multidão se declarou contra os pastores casados e os arrancou do altar. O povo, uma
vez desarreado, um brutal instinto de nivelamento fez-lhe tomar o prazer de ultrajar o que havia adorado, a esmagar com os
pés aqueles cujos pés ele beijava, a romper a aurora e quebrar a mitra. Eles foram espancados, esbofeteados, mutilados em
suas catedrais; bebeu-se seu vinho consagrado, dispersou-se suas hóstias[358]. Os monges insistiam, pregavam, um
misticismo ousado infiltrava-se no povo; ele se habituava a desprezar a forma, a quebrá-la, como para dela libertar o espírito.
Essa depuração revolucionária da igreja comunicou-lhe um imenso tremor. Os meios foram atrozes. O monge Dunstan mandara
mutilar a mulher ou concubina do rei da Inglaterra. Pietro Damiani, o selvagem anacoreta, correu a Itália entre ameaças e
maldições, sem preocupar-se com sua vida, desvelando com um piedoso cinismo a torpeza da igreja[359]. Era apontar os
padres casados para a morte. O teólogo Manegold propôs que os adversários da reforma fossem mortos sem dificuldade[360].
O próprio Gregório VII aprovou a mutilação de um monge revoltado[361]. A igreja, armada de uma pureza feroz, pareceu
como as virgens sanguinárias da Gália druídica e da Táurida.

Houve, então, no mundo, uma coisa estranha. Assim como a Idade Média repelia os Judeus e os esbofeteava como
assassinos de Jesus Cristo, a mulher foi amaldiçoada como assassina do gênero humano: a pobre Eva ainda pagava pela maçã.
Viu-se nela a Pandora que soltara os males sobre a terra. Os doutores ensinaram que o mundo estava bastante povoado e
declararam que o casamento era um pecado, no mínimo, um pecado venial[362].

Assim se consumou a depuração da Igreja: ela se redimiu da carne amaldiçoando-a. Foi, então, que ela atacou o Império.
Então, no orgulho selvagem de sua virgindade, tendo retomado sua virtude e sua força, ela interrogou o século e o intimou a
render-lhe a primazia que lhe era devida. O adultério e a simonia do rei da França[363], o isolamento cismático da igreja da
Inglaterra, a monarquia feudal personificada no Imperador, foram chamados a prestar contas. Esta terra que o Imperador ousa
enfeudar aos bispos, de quem ele a tem senão de Deus? Com lastro em qual direito a matéria entende dominar o espírito? A
virtude dominou a natureza; é preciso que o ideal comande o real, a inteligência à força, a eleição à hereditariedade. Deus
colocou no céu duas grandes luminárias, o Sol e a Lua, que toma a sua luz do primeiro; sobre a terra, há o Papa e o Imperador,
este sendo o reflexo daquele[364]; simples reflexo, pálida sombra, que ele reconhece o que é. Então, o mundo, retornando à
verdadeira ordem, Deus reinará e o vigário de Deus: haverá hierarquia segundo o espírito e a santidade. A eleição elevará o
mais digno. O Papa conduzirá o mundo cristão a Jerusalém e, sobre o túmulo libertado do Cristo, seu vigário receberá o
juramento do Imperador e a homenagem dos reis.

Assim se determinou, na Igreja, sob a forma do pontificado e do império, a luta da lei e da natureza. O imperador era o
ardoroso Henrique IV, tão colérico de natureza quanto Gregório era duro na lei. As forças, de início, pareciam bem desiguais.
Henrique III legara a seu filho vastos estados patrimoniais, a toda potência feudal na Alemanha, uma imensa influência na
Itália e a pretensão de fazer papas. Hildebrando sequer possuía Roma; ele nada tinha e ele tinha tudo. É a verdadeira natureza
do espírito não ocupar qualquer lugar. Expulso em qualquer canto e triunfante, ele não teve uma pedra para colocar sob sua
cabeça e, ao morrer, disse essas palavras: “Eu amei a justiça e odiei a iniquidade; eis porque morro no exílio[365]”.

Acusou-se a obstinação das duas facções; e não se notou que essa não era uma luta de homens. Os homens tentaram
reaproximar-se e jamais o puderam novamente. Quando Henrique IV permaneceu em camisa sobre a neve, por três dias, nos
pátios do castelo de Canossa[366], fazia-se bem necessário que o papa o admitisse. Dos dois lados, desejava-se a paz.
Gregório comungou com seu inimigo, pedindo a morte se fosse culpado e clamando pelo julgamento de Deus[367]. Deus não
decidiu. O julgamento, como a reconciliação, era impossível. Nada reconciliaria o espírito e a matéria, a carne e o espírito, a
lei e a natureza.

O partido da carne foi vencido e nós, homens de carne, nosso coração sangra ao se pensar nisso; a natureza foi vencida,
mas de uma forma desnaturada. Foi o filho de Henrique IV quem executou o decreto da Igreja. Quando o pobre velho
imperador foi preso na entrevista de Mainz, e que os bispos que permaneceram puros de simonia arrancaram-lhe a coroa e as
vestes reais, ele suplicou a esse filho que amava, com lágrimas nos olhos, que se abstivesse de tais violências parricidas no
interesse de sua salvação eterna[368]. Despojado, abandonado, presa do frio e da fome, ele vem à Speyer, à igreja da Virgem
que construíra, para pedir que fosse alimentado como clérigo; ele alegava saber ler e que poderia cantar ao facistol. Ele não
obtém esse favor. A própria terra foi recusada a seu corpo que permaneceu insepulto, por cinco anos, num subterrâneo de
Liège[369].

Nesta luta terrível que a Santa Sé travava em toda a Europa, ela teve dois auxiliares, dois instrumentos temporais: de
início, a famosa condessa Matilde, tão poderosa na Itália, a casta e fiel amiga de Gregório VII. Essa princesa, Francesa de
origem, crescera no exílio e sob a perseguição dos Alemães. Ela era aliada da família de Godofredo de Bouillon (ou
Godofredo de Bulhão – Godefroy de Bouillon). Mas Godofredo era por Henrique IV. Ele portava o estandarte do Império na
batalha onde foi morto Rodolfo, o rival de Henrique, e foi Godofredo quem o matou. Matilde, ao contrário, não conheceu
outro estandarte senão aquele da igreja. Ela reabilitava a mulher aos olhos do mundo. Pura e corajosa, como o próprio
Gregório, esta mulher heróica constituía a graça e a força de seu partido. Ela apoiava o papa, combatia o imperador e
intercedia por ele[370].

Após essa princesa francesa, os melhores apoios do papa eram os nossos Normandos de Nápoles e da Inglaterra. Muito
antes da cruzada de Jerusalém, esse povo aventureiro fazia a cruzada por toda a Europa. É curioso examinar como esses
piedosos salteadores tornaram-se os soldados da Santa Sé.

Já falei alhures da origem dos Normandos (NT: Tomo I, Livro II, já traduzido para o português) . Era um povo misto,
onde o elemento nêustrio dominava de sobra o elemento escandinavo. Sem dúvida, ao vê-los sobre a tapeçaria de Bayeux,
com suas armaduras em forma de escamas, com seus elmos pontudos que possuem um prolongamento para a proteção do nariz,
seríamos tentados a acreditar que esses peixes de ferro são os descendentes legítimos e puros dos velhos piratas do
Norte[371]. Entretanto, eles falavam francês desde a terceira geração e não mais existia, entre si, quem pudesse compreender
o dinamarquês; eles foram obrigados a enviar suas crianças para aprendê-lo entre os Saxões de Bayeux[372]. Os sobrenomes
daqueles que seguiram Guilherme o Bastardo são puramente franceses[373]. Os conquistadores da Inglaterra detestavam, diz
Ingulfo, a língua anglo-saxã[374]. Sua preferência era pela civilização romana eclesiástica. Esse temperamento de escribas e
de juristas, que tornou seus nomes proverbiais na Europa, nós o encontramos entre os mesmos desde o décimo e décimo-
primeiro séculos. É o que em parte explica essa quantidade prodigiosa de fundações eclesiásticas entre um povo que não era
tão devoto. O monge Guilherme de Poitiers nos diz que a Normandia era um Egito, uma Tebaida, em virtude do grande número
de monastérios[375]. Esses monastérios eram escolas de escrita e caligrafia, de filosofia, de arte e de direito. O famoso
Lanfranc, que tanto brilho deu à escola do Bec, antes de passar o estreito com Guilherme e tornar-se, de alguma sorte, o papa
da Inglaterra, era um jurista italiano[376].

Os historiadores da conquista da Inglaterra e da Sicília puseram-se mais a apresentar seus Normandos sob as formas e a
estatura colossal dos heróis de cavalaria. Na Itália, um deles mata com um soco o cavalo do enviado grego[377]. Na Sicília,
Rogério, combatendo cinquenta mil Sarracenos, com cento e trinta cavaleiros, cai para debaixo de seu cavalo, mas se
desembaraça do inimigo e ainda retorna com sua sela[378]. Os inimigos dos Normandos, sem negar seu valor, não lhes
atribuem, de forma alguma, essas forças sobrenaturais. Os Alemães, que os combateram na Itália, zombavam de sua pequena
estatura[379]. Na sua guerra contra os Gregos e os Venezianos, esses descendentes de Rollo e de Hastings mostram-se muito
pouco marinheiros e bastante apavorados com as tempestades do Adriático[380].

Mistura de audácia e de ardil, conquistadores e chicaneiros como os antigos Romanos, escribas e cavaleiros, tosquiados
como os padres[381] e bons amigos dos padres (ao menos para começar), eles fizeram sua fortuna pela igreja e apesar da
igreja. Eles a fizeram pela lança, mas também pela lança de Judas, como fala Dante[382]. O herói dessa raça é Roberto o
Astuto (Robert l’Avisé, Guiscard, Wise)[383].

A Normandia era pequena e a polícia, aí, era muito boa para que eles pudessem pilhar grande coisa uns sobre os
outros[384]. Era-lhes, então, necessário ir, como diziam, gaaignant (ganhando – francês arcaico) pela Europa[385]. Mas a
Europa feudal, eriçada de castelos, não mais era, no século XI, fácil de percorrer. Não era mais o tempo quando os pequenos
cavalos dos húngaros galopavam até o Tibre, até a Provença. Cada passo dos rios, cada posto dominante, tinha sua torre; a
cada desfiladeiro, via-se descer da montanha algum homem armado com seus valetes e seus dogues que pedia pedágio ou
batalha; ele visitava a pequena bagagem do viajante, tomava parte e, às vezes, tomava tudo, além do homem, ainda por cima.
Não havia muito a gaaigner viajando assim. Nossos Normandos resolviam-se melhor. Punham-se vários juntos, bem
montados, bem armados, além de extravagantemente fantasiados de peregrinos de bordões com conchas (coquilles); eles
levavam, mesmo, de boa vontade, algum monge consigo. Assim, se alguém desejasse pará-los, eles responderiam que eram
pobres peregrinos que iam ao Monte Cassino, ao santo sepulcro, a Santiago de Compostela: respeitava-se, ordinariamente,
uma devoção tão bem armada! O fato é que eles amavam essas peregrinações longínquas: não havia outro meio de escapar ao
tédio do casarão normando. Além disso, eram rotas frequentadas; havia bons golpes a dar sobre o caminho e, ao final da
viagem, a garantia da absolvição. No pior dos casos, como essas peregrinações eram também mercados e feiras, podia-se
fazer um pouco de comércio e lucrar-se mais de cem por cento, ao mesmo tempo em que se salvava a alma[386]. O melhor
negócio era aquele das relíquias: trazia-se um dente de São Jorge, um cabelo da Virgem. Conseguia-se delas desfazer-se com
grande lucros; havia sempre algum bispo que desejava granjear sua igreja, algum príncipe prudente que não ficava
desconfortável, em alguma necessidade, de possuir uma relíquia sobre sua couraça, durante uma batalha.

Foi, de início, uma peregrinação que conduziu os Normando à Itália do sul, onde deviam fundar um reino. Lá havia, se
posso dizer, três destroços, três ruínas de povos: os Lombardos nas montanhas, os Gregos nos portos, os Sarracenos da Sicília
e da África que voltejavam sobre todos os lados. Por volta do ano 1000, peregrinos normandos ajudam os habitantes de
Salerno a expulsar os Árabes que os extorquiam. Bem pagos, esses Normandos atraem outros. Um Grego de Bari, chamado
Melo ou Melés, os aluga para combater os Gregos Bizantinos e libertar sua cidade. Depois, a república grega de Nápoles os
assenta no forte da cidade de Aversa, entre si e seus inimigos, os Lombardos de Cápua (1026). Enfim, chegam os filhos de um
pobre cavalheiro do Cotentin[387], Tancredo de Altavila (de Hauteville). Tancredo possuía doze filhos, sete dos quais eram
da mesma mãe.

Durante a menoridade de Guilherme, quando tantos barões tentaram subtrair-se ao jugo do Bastardo, os filhos de
Tancredo encaminharam-se para a Itália, da qual se dizia que um simples cavaleiro normando tornara-se conde de Aversa.
Eles partiram sem dinheiro, custeando-se sobre as estradas com a força de suas espadas[388] (1037?). O governador (ou kata
pan)[389] bizantino os contrata, os conduz contra os Árabes. Mas, à medida que vieram-lhes seus compatriotas e que se viram
assaz fortes, eles viraram-se contra aqueles que os pagavam, tomaram Apúlia e a partilharam em doze condados. Essa
república de condottieris organizava suas assembléias na cidade de Melfi[390]. Os Gregos tentaram, em vão, se defender,
reunindo contra os Normandos até sessenta mil italianos[391]. Os Normandos, que eram, pelo que se conta, algumas centenas
de homens bem armados, dissiparam essa multidão. Então, os Bizantinos chamaram em seu auxílio os Alemães, seus inimigos.
Os dois impérios do Oriente e do Ocidente se confederaram contra os filhos do cavaleiro de Coutances. O todo-poderoso
imperador Henrique o Negro (Henrique III) encarregou seu Papa Leão X, que era um Alemão da família imperial, de
exterminar esses salteadores. O Papa conduziu contra eles alguns Alemães e um bando de italianos. Na hora do combate, os
Italianos volatilizaram-se e deixaram o belicoso pontífice entre as mãos dos Normandos que não se ocuparam em maltratá-lo;
antes, eles se ajoelharam devotamente aos pés de seu santo prisioneiro e o constrangeram a dar-lhes, como feudos da igreja,
tudo aquilo que haviam tomado à força e tudo aquilo que ainda poderiam vir a tomar na Apúlia, na Calábria e do outro lado do
estreito[392]. O Papa torna-se, apesar de si próprio, suzerano do reino das Duas Sicílias (1052-1053). Esta cena bizarra foi
renovada um século depois. Um descendente desses primeiros Normandos ainda fez um papa prisioneiro, forçou-o aceitar o
recebimento de sua homenagem e, depois, fez com que o Papa o declarasse, ele e seus sucessores, legados da Santa Sé na
Sicília. Esta dependência nominal os tornava efetivamente independentes e assegurava-lhes esse direito de investidura que se
tornou, por toda a Europa, o objeto da guerra do sacerdócio e do Império.

A conquista da Itália meridional foi obtida por Roberto o Astuto (Guiscardo). Ele se fez duque de Apulia e da Calábria,
apesar de seus sobrinhos, os quais reclamavam na qualidade de filhos de um irmão primogênito[393]. Roberto não tratou
melhor o mais jovem dos seus irmãos, Rogério, que viera, um pouco tarde, pedir uma parte na conquista. Durante algum
tempo, Rogério viveu do roubo de cavalos[394], depois, passou para a Sicília e a conquistou contra os Árabes, após a luta
mais desigual e mais romanesca. Infelizmente, não conhecemos os detalhes desses acontecimentos senão pelos panegiristas
dessa família. Um descendente de Rogério reuniu a Itália meridional aos seus estados insulares e fundou o reino das Duas
Sicílias.

Esse reino feudal no fim da península, entre cidades gregas, no meio do mundo da Odisséia, foi de grande utilidade para
a Itália. Os maometanos não mais ousaram se aproximar antes da criação dos estados barbarescos do século XVI. Os
Bizantinos daí saíram e seu império foi, mesmo, invadido por Roberto Guiscardo e seus sucessores. Os Alemães, enfim, em
sua eterna expedição da Itália, vieram, mais de uma vez, se chocar pesadamente contra nossos Franceses de Nápoles. Os
Papas verdadeiramente italianos, como Gregório VII, fecharam os olhos para as bandidagens dos Normandos e uniram-se
estreitamente com eles contra os imperadores gregos e alemães. Roberto Guiscardo expulsou de Roma o vitorioso Henrique
IV e recolheu Gregório VII, que morreu em sua casa, em Salerno.

Essa prodigiosa fortuna de uma família de simples cavaleiros inspirou emulação no Duque da Normandia. Guilherme o
Bastardo (ele assim se intitula nas suas próprias cartas)[395], era de baixa extração do lado de sua mãe. O duque Roberto o
tivera, por acaso, da filha de um dono de curtume de Falaise. Ele não enrubesceu nem um pouco e cercou-se de outros filhos
de sua mãe. Inicialmente, ele penou para chamar à razão os seus barões que o desprezavam mas, por fim, ele conseguiu. Era
um largo homem calvo[396], muito corajoso, muito ávido e muito sábio que, na compreensão daquele tempo, queria dizer
“terrivelmente pérfido”. Pretendia-se que ele envenerara o Duque da Bretanha, seu tutor. Um conde que disputava-lhe o Maine
morrera ao sair de um jantar de reconciliação e ele, então, pusera as mãos sobre essa província[397]. O Anjou e a Bretanha,
dilacerados por guerras civis, o deixavam em repouso. Ele tivera a destreza de suspender a luta habitual de Flandres e da
Normandia casando-se com sua prima Matilde, filha do Conde de Flandres. Essa aliança fazia sua força; assim, ele ficou
encolerizado quando soube que o famoso teólogo e jurista lombardo Lanfranc, que ensinava na escola monástica do Bec,
pregava contra esse casamento entre parentes. Ele ordenou queimar a fazenda da qual os monges tiravam sua subsistência e
expulsar Lanfranc. O italiano não se apavorou: como homem espirituoso, no lugar de fugir, ele vem encontrar o duque montado
sobre um cavalo manco: “Se desejais que eu me vá da Normandia, fornecei-me um outro”[398]. Guilherme compreendeu o
bom partido que poderia tirar desse homem e o enviou a Roma, encarregando-o de convencer o papa a achar bom o casamento
contra o qual o próprio Lanfranc pregara. Este venceu: Guilherme e Matilde ficaram quites fundando, em Caen, as duas
magníficas abadias que, ainda hoje, vemos[399].

É que a amizade de Guilherme era preciosa para a Igreja Romana, já governada por Hildebrando, que logo se tornou
Gregório VII. Seus projetos acordavam-se. Os Normandos tinham à sua face, do outro lado da Mancha, uma outra Sicília a
conquistar[400]. Esta, embora não fosse ocupada pelos Árabes, nem por isso era menos odiosa à Santa Sé. Os Anglo-Saxões,
inicialmente dóceis aos Papas e, por estes, oposicionistas da igreja independente da Escócia e da Irlanda, logo incorporaram
esse espírito de oposição que era, ao que parece, necessário e fatal na Inglaterra. Mas essa oposição não era, de forma
alguma, filosófica, como aquela da igreja irlandesa ao tempo de São Columbano e de João Erígena. A igreja saxã, como o
povo, parece ter sido rude e bárbara[401]. Essa ilha era, depois de séculos, um teatro de invasões contínuas. Todas as raças
do norte, Celtas, Saxões, Dinamarqueses, parece que aí combinaram encontros, como aquelas do sul na Sicília. Os
Dinamarqueses a dominaram por cinquenta anos, vivendo como bem entendessem entre os Saxões; os mais valentes destes
últimos fugiram para as florestas, tornando-se cabeças de lobo, como eram chamados esses proscritos. As discórdias dos
vencedores permitiram o retorno e o restabelecimento de Eduardo o Confessor, filho de rei Saxão e de uma Normanda, o qual
fora educado na Normandia. Esse bom homem, que se tornou um santo por permanecer virgem no casamento, não pôde fazer
nem bem, nem mal. Mas o povo o amou por sua boa-vontade e nele lamentou seu último soberano nacional, assim como a
Bretanha recordou-se de Ana da Bretanha e a Provença do bom rei René. Seu reino não foi senão um curto entreato que
separou a invasão dinamarquesa da invasão normanda. Amigo dos Normandos mais civilizados, entre os quais passara seus
belos anos, ele fez vãos esforços para escapar à tutela de um poderoso chefe Saxão chamado Godwin que o restabelecera,
expulsando os Dinamarqueses, mas que, na realidade, ele próprio era quem reinava, possuindo, por si, ou por seus filhos, o
ducado de Wessex e os condados de Kent, Sussex, Surrey, Hereford e Oxford, quer dizer, todo o sul da Inglaterra [402].
Acusava-se Godwin de ter, outrora, chamado Alfredo, irmão de Eduardo, e de o haver entregue aos Dinamarqueses. Essa
poderosa família não se preocupava nem com o rei, nem com a lei; Sweyn, um dos filhos de Godwin, assassinara seu primo
Beorn e o pobre rei Eduardo não pudera punir esse homicídio[403]. Os Normandos, que ele contrapunha a Godwin, foram
expulsos a mão armada; os filhos de Godwin tornaram-se senhores[404] e, um deles, chamado Haroldo, que efetivamente
possuía boas qualidades, teve bastante força sobre o fraco rei para ser por ele designado como seu sucessor.

Os Normandos, que bem contavam reinar após Eduardo, perseveraram com a tenacidade que deles se conhece. Eles
asseguraram que Eduardo designara Guilherme. Haroldo pretendia possuir um direito melhor, pois Eduardo o nomeara sobre o
leito de morte e, na Inglaterra, tinha-se como válidas as doações feitas no último momento[405]. Guilherme declarou,
entretanto, que estava pronto para postular segundo as leis da Normandia ou aquelas da Inglaterra[406]. Um acaso singular
dera a seu duque uma aparência de direito sobre a Inglaterra e sobre Haroldo, seu novo rei.

Haroldo, empurrado por uma tempestade sobre as terras de um vassalo de Guilherme, o conde de Ponthieu, foi por este
entregue a seu suzerano[407]. Pretende-se que ele partira da Inglaterra para solicitar ao duque da Normandia a devolução de
seu irmão e de seu sobrinho, os quais eram matidos como reféns. Guilherme o tratou bem, mas não o deixou ir embora tão
facilmente. Inicialmente, Guilherme o fez cavaleiro e Haroldo tornou-se, assim, seu filho d’armas, depois, fê-lo jurar sobre
santas relíquias que ele o ajudaria a conquistar a Inglaterra, após a morte de Eduardo[408]. Haroldo, por sua vez, devia
desposar a filha de Guilherme e casar sua irmã com um conde normando. Para melhor confirmar essa promessa de
dependência e vassalagem, Guilherme o levou consigo para lutar contra os Bretões. É também desta forma que, nos
Nibelungos, Siegfried torna-se vassalo do rei Gunther, isto é, combatendo por ele[409]. No conceito da Idade Média, Haroldo
fizera-se, desta forma, o homem de Guilherme.

Quando da morte de Eduardo, como Haroldo se estabelecesse tranqüilamente em sua nova realeza, ele viu chegar um
mensageiro da Normandia que lhe falou nesses termos: Guilherme, Duque dos Normandos, lembra-vos do juramento que a ele
fizestes de vossa boca e de vossas mãos que estavam sobre os bons e santos relicários[410]. Haroldo respondeu que o
juramento não fora livre e que prometera o que não estava em seu poder fazê-lo, eis que a realeza pertencia ao povo. “Quanto
à minha irmã”, ele disse, “ela morreu neste ano. Deseja ele que eu remeta-lhe seu corpo?”. Guilherme replicou em tom de
suavidade e amizade[411], rogando ao rei cumprir ao menos uma das condições de seu juramento, tomando em casamento a
jovem que ele prometera desposar. Mas Haroldo casou-se com outra mulher. Então, Guilherme jurou que, no ano seguinte, iria
exigir toda a dívida daquele e punir o perjúrio cometido até onde o mesmo acreditasse ter o pé mais firme e seguro[412].

Entretanto, antes de tomar as armas, o Normando declarou que se reportava ao julgamento do Papa[413] e o processo da
Inglaterra foi regrado segundo os procedimentos no conclave de Latrão. Quatro motivos de agressão foram alegados: o
assassinato de Alfredo, traído por Godwin, a expulsão de um Normando nomeado por Eduardo ao arcebispado de Canterbury
e sua substituição por um Saxão, o juramento de Haroldo e uma promessa que Eduardo teria feito a Guilherme de legar-lhe a
realeza. Os deputados normandos compareceram perante o papa. Haroldo ausentou-se. A Inglaterra foi adjudicada aos
Normandos. Essa decisão ousada foi tomada ante a instigação de Hildebrando e contra a opinião de vários cardeais. O
diploma que entregou o reino a Guilherme foi-lhe enviado, fazendo-se acompanhar de um estandarte abençoado e um cabelo
de São Pedro.

A invasão, tomando assim o aspecto de uma cruzada, uma multidão de homens de armas afluiu de toda a Europa para
perto de Guilherme. Ela vinha de Flandres e do Reno, da Borgonha, do Piemonte, da Aquitânia. Os Normandos, ao contrário,
hesitavam ajudar seu senhor numa empresa arriscada, cujo sucesso podia fazer de seu país uma mera província da Inglaterra.
A Normandia era, além disso, ameaçada por Conan, Duque da Bretanha, jovem que lançara contra Guilherme o mais ultrajante
desafio. Toda a Bretanha se pusera em movimento como se para conquistar a Normandia, enquanto esta preparava-se para
conquistar a Inglaterra. Conan, conduzindo um grande exército, entrou solenemente na Normandia, jovem, cheio de confiança e
soando a trompa como para chamar o inimigo. Mas, enquanto ele tocava, as forças faltaram-lhe pouco a pouco, ele deixou as
rédeas soltas... a trompa estava envenenada. Esta morte veio a calhar para Guilherme, tirando-lhe de um grande embaraço; um
bom número de Bretões tomou seu partido, compôs suas tropas e, ao invés de atacá-lo, o seguiu à Inglaterra.

O sucesso de Guilherme tornava-se, assim, quase certo. Os Saxões estavam divididos. O próprio irmão de Haroldo
chamou os Normandos, depois os Dinamarqueses que, em efeito, atacaram a Inglaterra pelo norte, enquanto Guilherme invadia
pelo sul. O repentino ataque dos Dinamarqueses foi habilmente repelido por Haroldo que os talhou em pedaços. O de
Guilherme foi lento, o vento faltou-lhe por muito tempo. Mas a Inglaterra não podia escapar-lhe. Inicialmente, os Normandos
possuíam uma grande superioridade de armas e de disciplina em relação a seus inimigos: os Saxões combatiam a pé com
curtos machados-de-guerra, enquanto os Normandos montavam cavalos e possuíam longas lanças[414]. Já há muito tempo,
Guilherme mandava comprar os mais belos cavalos na Espanha, na Gasconha e na Auvérnia[415]; talvez tenha sido ele quem
assim criou a bela e forte raça dos nossos cavalos normandos. Os Saxões não construíam nenhum castelo[416]; assim, uma
batalha perdida significava que tudo estava perdido, pois eles não mais podiam se organizar e se defender; e esta batalha, era
provável que a perdessem, combatendo numa região de planície contra uma excelente cavalaria. Uma única frota poderia
defender a Inglaterra, mas aquela de Haroldo era tão mal aprovisionada que, pouco após ter cruzado a Mancha por algum
tempo, ela viu-se obrigada a retornar para reabastecer-se de víveres[417].

Guilherme, desembarcando em Hastings, não encontra nem exército e nem frota. Haroldo estava, então, no outro canto da
Inglaterra, ocupado em repelir os Dinamarqueses. Ele retorna com as tropas vitoriosas, mas exaustas, reduzidas e, conta-se,
descontentes com a parcimônia pela qual o butim fora repartido. O próprio Haroldo estava ferido. Entretanto, nem assim o
Normando se apressou. Ele encarregou um monge de dizer ao Saxão que se contentaria em dividir o reino com este. “Se ele se
obstinar”, acrescentou Guilherme, “a não aceitar o que ofereço, vós direis, na frente de toda a sua gente, que ele é perjuro e
mentiroso, que ele, e todos aqueles que o apoiarem, estão excomungados pela boca do Papa, e que eu tenha a bula para prová-
lo”[418]. Essa mensagem produziu o efeito desejado. Os Saxões passaram a duvidar de sua causa. Os próprios irmãos de
Haroldo tentaram convecê-lo a não combater pessoalmente pois, afinal de contas, concluíram, Haroldo jurara[419].

Os Normandos empregaram a noite para se confessarem devotamente, enquanto os Saxões bebiam, faziam grande
barulho e cantavam seus cantos nacionais. De manhã, o bispo de Bayeux, irmão de Guilherme, celebrou a missa e, vestido com
uma cota de malhas sob sua sobrepeliz, abençoou as tropas. Guilherme mantinha, à volta de seu pescoço, as mais reverendas
das relíquias sobre as quais Haroldo jurara, e mandava carregar, perto de si, o estandarte abençoado pelo Papa.

De início, os Anglo-Saxões, entrincheirados por trás de paliçadas, permaneceram, imóveis e impassíveis, sob a chuva
de flechas lançadas pelos arqueiros de Guilherme. Embora Haroldo tivesse o olho trespassado por uma flecha, os Normandos
estavam em pior situação. O pânico começava a grassar entre eles, corria o rumor que o duque fora morto; é verdade que,
nesta batalha, ele tivera três cavalos mortos enquanto os montava[420]. Mas ele se mostrou, lançou-se à frente dos fugitivos e
os parou. A vantagem dos Saxões foi justamente aquela que os arruinou. Eles desceram à planície e a cavalaria normanda
ganhou a mão. As lanças prevaleceram sobre os machados. As paliçadas cederam. Tudo foi morto ou disperso (1066).

Sobre a colina onde a velha Inglaterra perecera com o último rei Saxão, Guilherme construiu uma bela e rica abadia, a
Abadia da Batalha, seguindo o voto que fizera a São Martinho, patrono dos soldados da Gália. Outrora, ainda aí lia-se os
nomes dos conquistadores, gravados sobre tábuas; é o Livro de Ouro da nobreza da Inglaterra. Haroldo foi enterrado pelos
monges sobre essa colina, em face do mar. “Ele guardava a costa”, disse Guilherme, “que ele a guarde ainda”[421].

No começo, o Normando manteve alguma doçura e algumas considerações em relação aos vencidos. Ele degradou um
dos seus que batera com a espada no cadáver do rei Haroldo[422]; ele tomou o título de rei dos Ingleses; prometeu observar
as boas leis de Eduardo o Confessor; ele atribuiu Londres a si e confirmou os privilégios dos homens de Kent, que era o mais
belicoso dos condados, aquele que possuía a vanguarda no exército inglês, aquele onde as velhas liberdades célticas haviam
sido melhor preservadas. Quando Lanfranc, o novo arcebispo de Canterbury, reclamou a favor dos privilégios dos homens de
Kent contra a tirania do irmão de Guilherme, o rei o escutou favoravelmente. O Conquistador tentou, mesmo, aprender o
inglês[423], a fim de poder fazer boa justiça aos homens dessa língua. Ele se preocupava em ser imparcial na distribuição da
justiça, ao ponto de depor seu tio de um arcebispado em virtude de uma conduta pouco edificante. Entretanto, ele construía
muitos castelos e se assegurava das praças-fortes.

Talvez Guilherme não pedisse nada demais em tratar os vencidos com suavidade. Era seu interesse. Ele não fora senão o
mais absoluto na Normandia. Entretanto, não era com isso que contavam as tantas pessoas para as quais prometera despojos e
butim e que permaneciam aguardando. Afinal, elas não haviam combatido em Hastings para que Guilherme se entendesse com
os Saxões. Ele retornou à Normandia e aí permaneceu por muitos anos, sem dúvida para iludir, para adiar, para dar aos
estrangeiros que o haviam seguido o tempo de se afastarem e de se dispersarem. Mas, durante sua ausência, explodiu uma
grande revolta. Os Saxões não conseguiam convencer-se de que, em apenas uma batalha, tivessem sido vencidos sem volta.
Guilherme teve, então, grande necessidade de seus guerreiros e, desta vez, era necessária uma partilha. Toda a Inglaterra foi
mensurada, descrita: sessenta mil feudos de cavaleiros foram criados às expensas dos Saxões e o resultado foi consignado no
livro negro da conquista, o Domesday Book, o livro do Julgamento Final[424]. Então, começaram essas terríveis cenas de
espoliação das quais temos uma tão vívida e dramática história[425]. Todavia, não se deve acreditar que tudo foi tirado dos
vencidos. Muitos deles conservaram os bens em todos os condados. Apenas um deles possuía quarenta e uma mansões no
condado de York[426].

É com interesse que se vê como os próprios Saxões julgaram o Conquistador:

“Se alguém deseja conhecer que espécie de homem era e quais foram suas honras e posses, iremos descrevê-lo como o conhecemos, pois nós o
vimos e, com frequência, nós nos encontrávamos em sua corte. O rei Guilherme era um homem muito sábio e muito poderoso, mais poderoso e mais
honrado que qualquer um de seus precedessores. Ele era doce com as boas pessoas que amavam Deus e excessivamente severo com aquelas que
resistiam às suas vontades. No lugar mesmo onde Deus permitiu-lhe vencer a Inglaterra, ele ergueu um nobre monastério, nele colocou monges e os dotou
ricamente... Certamente, ele foi muito honrado; quando estava na Inglaterra, portava sua coroa três vezes por ano: na Páscoa, ele a usava em Winchester;
no Pentecostes, em Westminster e, no Natal, em Glocester. Então, ele se fazia acompanhar de todos os ricos homens da Inglaterra, arcebispos e bispos de
diocese, abades e condes, thanes[427] e cavaleiros. Eventualmente, ele se tornava rudo e severo e ninguém ousava contrariá-lo. Ele chegou a acorrentar
alguns condes que lhe resistiram. Ele dispensou bispos de seus bispados, abades de suas abadias e colocou condes em cativeiro; enfim, ele sequer poupou
seu próprio irmão Odon: ele o colocou na prisão. Entretanto, dentre outras coisas, não se deve esquecer a boa ordem que ele impôs na região: toda pessoa
recomendável podia viajar através do reino, com seu cinto cheio de ouro, sem qualquer preocupação, e nenhum homem teria ousado matar outro, mesmo
que tivesse recebido a mais forte injúria deste. Ele deu leis à Inglaterra e, por sua habilidade, chegou a conhecê-la tão bem que não havia uma hida[428]
de terra que não soubesse a quem pertencesse, quanto valesse e que não estivesse inscrita em seus registros. O País de Gales estava sob seu domínio e
ele aí construiu castelos. Ele também governou a Ilha de Man: isso não bastasse, seu poder submeteu a Escócia, sendo a Normandia sua de direito. Ele
governou o condado chamado Mans e, se tivesse vivido mais dois anos, teria conquistado a Irlanda pelo só renome de seu poder e sem recorrer às armas.
Certamente, os homens de seu tempo sofreram muitas dores e mil injustiças. Ele deixou que castelos fossem construídos e os pobres oprimidos. Foi um rei
rude e cruel. Ele tomou de seus súditos muitos marcos de ouro, vários centos de libras de prata; às vezes, com justiça mas, quase sempre, injustamente e
sem necessidade. Era muito avaro e de fogosa rapacidade. Ele arrendava suas terras tão caras quanto podia: se a ele se apresentasse alguém que
oferecesse mais que o primeiro o fizera, o rei a arrendava àquele no mesmo instante; um terceiro surgindo e fazendo-lhe uma oferta maior do que a do
segundo, o rei tirava deste e a passava para o terceiro. Ele pouco se importava com a forma criminosa pela qual seus bailios tomavam o dinheiro dos
pobres e da quantidade de coisas que eles faziam ilegalmente. Pois, mais eles falavam da lei, mais a violavam. Ele criou várias deer-friths[429] e, em
relação às mesmas, fez leis que impunham a morte a quem quer que matasse um cervo ou corça. O que ele regrara para as corças, também o fez em
relação aos javalis, pois amava os animais selvagens como se fosse pai deles. Igualmente em relação às lebres, para as quais ordenou fossem deixadas
correr em paz. Os ricos reclamavam e os pobres murmuravam, mas ele era tão duro, que não demonstrava a menor preocupação com o ódio daqueles. Era
necessário obedecer, em tudo, a vontade do rei, caso se desejasse viver, se se desejasse ter terras ou bens ou seu favor. Ai! como pode um homem ser
assim tão caprichoso, tão repleto de orgulho e crer-se tão acima de todos os outros homens! Possa Deus todo poderoso ter dó de sua alma e conceder-lhe
o perdão por suas faltas”[430].

Quaisquer que fosem os males da conquista, o resultado foi, no meu entendimento, imensamente útil à Inglaterra e ao
gênero humano[431]. Pela primeira vez, ela teve um governo. O liame social, solto e flutuante na França e na Inglaterra, foi
tensionado ao máximo na Inglaterra. Pouco numerosos no meio de um povo inteiro que eles oprimiam, os barões foram
obrigados a fechar-se em volta do rei. Guilherme recebia o juramento dos vavassalos, assim como aquele dos vassalos[432].
O rei da França obtinha facilmente a homenagem dos vassalos, mas jamais chegara a exigir do duque da Guiana, do conde de
Flandres, a homenagem dos barões e dos cavaleiros que deles dependessem. Tudo estava lá, entretanto; uma realeza que não
se sustentava sobre a homenagem dos grandes vassalos era puramente nominal. Distanciada, por sua elevação na hierarquia,
dos ranques inferiores que representavam a força real, ela restava solitária e fraca na ponta dessa pirâmide, enquanto os
grandes vassalos, posicionados no meio, tinham sob si a base poderosa.

Esse perigo contínuo no qual se encontrava a aristocracia normanda, no primeiro século da conquista, obrigava-a a
suportar coisas estranhas por parte do rei. Depositário do interesse comum da conquista, defensor dessa imensa e perigosa
injustiça, a ele foram entregues todos os meios para assegurar que a terra fosse bem defendida. Ele foi o tutor universal de
todos os menores nobres e casava os nobres herdeiros com quem desejasse. Tutelas e casamentos, de tudo ele fez dinheiro,
devorando os bens das crianças das quais possuisse a nobre-tutela, tirando dinheiro daqueles que desejasem desposar
mulheres ricas e das mulheres que recusassem seus protegidos[433]. Esses direitos feudais existiam no continente, mas sob
uma forma bem diferente. O rei da França podia reclamar contra um casamento que tivesse prejudicado seus interesses, mas
não impor um marido à filha de seu vassalo; a nobre-tutela dos menores era exercida conformemente à hierarquia feudal;
aquela dos vavassalos era no interesse dos vassalos e não do rei.

Independentemente do danegeld[434] exigido de todos, sob pretexto de melhorar a defesa contra os Dinamarqueses,
independentemente das talhas exigidas dos vencidos, dos não-nobres, o rei da Inglaterra exigiu da própria nobreza um imposto
sob o honorável nome de escudagem[435]. Era uma dispensa de ir à guerra. Os barões, fatigados dos contínuos chamados,
preferiam dar qualquer dinheiro a seguir seu aventureiro soberano nas expedições onde ele embarcava. E ele, ele arranjava-se
muito bem com essa troca. No lugar do serviço caprichoso e incerto dos barões, ele comprava aquele dos soldados
mercenários, Gascões, Brabanções, Galeses e outros. Essa gente dependia totalmente do rei e fazia a sua força contra a
aristocracia. Esta pagava, então, o bridão e o mordedor que o próprio rei enfiava em sua real boca.

Assim, constituiu-se a realeza e a igreja ao lado: uma igreja forte e política, como aquela que Carlos Magno fundara no
Saxe para disciplinar os antigos Saxões. Em nenhum outro lugar o clero foi tão rico; ainda hoje, as receitas da Igreja
Anglicana superam, sozinhas, as de todas as igrejas do mundo em conjunto[436]. Esta igreja teve sua unidade no arcebispo de
Canterbury, que foi como uma espécie de patriarca ou de papa, que nem sempre prestava contas àquele de Roma e que, além
disso, com frequência, interpôs-se entre o rei e o povo, algumas vezes, mesmo, em favor dos Saxões, dos vencidos[437]. O
arcebispo Lanfranc, conselheiro e confessor de Guilherme, encorajado e armado pelos favores do Papa e do Rei, atacou e
esmagou os prelados e os nobres que se mostravam rebeldes à autoridade real[438]”. Foi ele quem governou a Inglaterra
quando Guilherme voltou ao continente.

Esta forte organização da realeza e da igreja anglo-normanda foi um exemplo para o mundo. Os reis invejaram o todo-
poder daqueles da Inglaterra enquanto os povos o fizeram em relação à política tirânica, mas regular, que reinava na Grã-
Bretanha.

Os vencidos, é verdade, pagaram muito caro por essa ordem e essa organização. Mas, a longo prazo, as cidadezinhas
foram povoadas graças à desolação dos campos[439]. Sua forte e compacta população preparou a Inglaterra para um novo
destino. O rei mantivera os tribunais saxões dos condados e dos hundreds para melhor assegurar as jurisdições feudais[440]
que, por outro lado, encontravam, no alto, um obstáculo na autoridade soberana da Corte do Rei. Assim, a Inglaterra,
encarcerada pela conquista numa moldura de ferro, começou a conhecer a ordem pública a qual, por sua vez, propiciou o
desenvolvimento de uma prodigiosa força social. Nos dois séculos que se seguiram à conquista, apesar de tantas calamidades,
foram erigidos esses maravilhosos monumentos que, apenas a muito custo, todo o poder do tempo presente poderia igualar. As
baixas, acanhadas e sombrias igrejas saxãs projetaram-se em flechas ousadas, em majestosas torres. Se a diversidade de raças
e de línguas retardou o brilho da literatura, a arte, pelo menos, começou. É com base nesses monumentos, na força social que
eles descortinam, que se deve julgar a conquista, e não com lastro nas calamidades passageiras que a acompanharam. Foi ela,
a conquista, quem completou a Inglaterra, foi o ponto a partir do qual ela se desenvolveu. Eis, portanto, o que absolve os
pecados da invasão.

Ainda que os Normandos estivessem longe de obter tudo o que a igreja de Roma esperava de suas vitórias, ela, não
obstante, ganhou infinitamente. Aqueles Normandos de Nápoles, esses da Inglaterra ao tempo de Henrique II e de João,
reconheceram-se feudatários da Santa Sé. Os Normandos da Itália com frequência frearam as políticas dos imperadores do
Oriente e do Ocidente em relação a ela. Os Normandos da Inglaterra, vassalos formidáveis e temíveis dos reis da França, os
obrigaram, por muito tempo, a entregar-se sem reservas aos Papas. Ao mesmo tempo, os Capetíngios da Borgonha concorriam
para as vitórias do Cid, ocupavam, por casamento, o reino de Castela (1094) e fundavam aquele de Portugal (1095). Em todas
as partes, a igreja triunfava na Europa pela espada dos Franceses. Na Sicília e na Espanha, na Inglaterra e no império grego,
eles iniciaram ou finalizaram a cruzada contra os inimigos do papa ou da fé.

Todavia, todas essas iniciativas tinham sido por demais independentes umas das outras e, também, muito egoístas, muito
interesseiras, para realizar o grande objetivo de Gregório VII e de seus sucessores: a unidade da Europa sob o Papa e a
diminuição dos dois impérios. Para atingir esse grande objetivo de unidade, fazia-se necessário que a Igreja nele interviesse,
que o cristianismo viesse em auxílio. O mundo do século XI possuía, em sua diversidade, uma forma comum, feudal e
guerreira. Somente uma guerra religiosa poderia uni-lo: ele somente poderia esquecer as diversidades de raças e de interesses
políticos se fosse trazido à presença de uma diversidade maior e geral; tão maior e tão mais geral que qualquer outra, em
comparação, fosse obliterada. A Europa não podia se ver e se acreditar como UMA senão se mirando em face da Ásia. Foi no
que trabalharam os Papas desde o ano 1000. Um papa francês, Gerberto (Silvestre II), escrevera aos príncipes cristãos em
nome de Jerusalém. Gregório VII quisera se colocar à testa de cinquenta mil cavaleiros para libertar o Santo Sepulcro. Foi
Urbano II, Francês como Gerberto, quem teve essa glória. A Alemanha tinha sua cruzada na Itália; a Espanha em seu próprio
território. A guerra santa de Jerusalém, decidida na França, no concílio de Clermont, pregada pelo francês Pedro o Eremita,
foi executada sobretudo pelos Franceses. As Cruzadas tiveram seu ideal em dois Franceses: Godofredo de Bouillon as abre e
São Luís as fecha. Cabia à França contribuir, mais que todos os outros reinos, ao grande acontecimento que fez da Europa uma
única nação.

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Capítulo III
A Cruzada. 1095-1099.

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Havia muito tempo que essas duas irmãs, essas duas metades da humanidade, a Europa e a Ásia, as religiões cristã e
muçulmana, tinham se perdido de vista quando, então, foram colocadas face a face pela Cruzada e se viram. E a primeira
visão foi de horror. Algum tempo foi necessário para que elas se reconhecessem e que o gênero humano confessasse sua
identidade. Tentemos apreciar o que elas, então, eram e fixar qual idade haviam alcançado nas suas vidas como religiões.

O islamismo era a mais jovem delas e, entretanto, já era a mais velha, a mais caduca. Sua vida foi curta: nascido
seiscentos anos depois do cristianismo, ele findava ao tempo das cruzadas. O que vemos, desde então, é uma sombra, uma
forma vazia da qual a vida se retirou e que os bárbaros herdeiros dos Árabes conservam silenciosamente sem questioná-la.

O islamismo, a mais recente das religiões asiáticas, é também o último e impotente esforço do Oriente para escapar ao
materialismo que sempre pesou sobre si. A Pérsia não bastou para o Oriente, com sua oposição heróica do reino da luz contra
aquele das trevas, do Irã contra Turã[441]. A Judéia não bastou, toda fechada que era na unidade de seu Deus abstrato e toda
concentrada e endurecida em si própria. Nem uma, nem outra, puderam operar a redenção da Ásia. O que poderia Maomé, que
apenas adotou esse Deus judaico, tirando-O do povo eleito para impô-Lo a todos? Saberia Ismael mais que seu irmão Israel?
Seria o deserto árabe mais fecundo que a Pérsia e a Judéia?

Deus é Deus: eis o islamismo, a religião da unidade. Que desapareça o homem e que a carne se esconda: nenhuma
imagem, nenhuma arte. Esse Deus terrível teria ciúmes de seus próprios símbolos. Ele quer estar só e sozinho com o homem. É
preciso que Ele o preencha e lhe baste. A família é quase destruída, o parentesco também, e a tribo, todos esses velhos
vínculos da Ásia. A mulher é escondida no harém: quatro esposas, mas concubinas sem fim. Poucas relações entre os irmãos e
os pais; o nome de muçulmano substitui seus nomes de família. As famílias sem nome comum, sem signos próprios[442], sem
perpetuidade, parecem renovar-se a cada geração. Cada qual constrói-se uma Casa e a Casa morre com o homem. O homem
não se liga nem ao homem, nem à terra. Isolados e sem rastros, eles passam como a areia que voa no deserto; iguais como os
grãos da areia, sob o olhar de um Deus nivelador, que não deseja qualquer tipo de hierarquia.

Nenhum Cristo, nenhum mediador, nenhum Deus-Homem. Essa escada que o cristianismo, lá do alto, nos lançara, e que
subia até Deus pelos santos, pela Virgem, pelos Anjos e Jesus, Maomé a suprime; toda hierarquia perece, a divina e a humana.
Deus recua no céu a uma profundidade infinita ou, então, pesa sobre a terra, nela se coloca e a esmaga. Miseráveis átomos,
iguais no nada, jazemos nós sobre a planície árida. Esta religião é, verdadeiramente, a própria Arábia. O céu, a terra, nada
entre eles. Nenhuma montanha que nos aproxime do céu, nenhuma suave névoa que nos engane à distância; um domo
impiedosamente estendido de um carrancudo azul, como um ardente elmo de aço.

O islamismo, nascido para espalhar-se, não permanecerá nesse sublime e estéril isolamento. É preciso que ele corra o
mundo, sob risco de modificar-se. Esse Deus que Maomé furtou de Moisés, ele podia permanecer abstrato, puro e terrível
sobre a montanha judia ou no deserto arábico mas, eis que os cavaleiros do profeta o levam vitoriosamente de Bagdá a
Córdoba, de Damasco a Surate[443]. A partir do momento em que a rotação do sabre e o vento da cimitarra não mais acendem
seu ardor feroz, ele vai se humanizar. Eu temo por sua austeridade nos Paraísos do Harém e por suas rosas solitárias, nas
fontes que jorram em Alhambra. A carne, tornada maldita por essa religião soberba [444], teima em reclamar; a matéria
proscrita retorna sob outra forma e vinga-se com a violência de um exilado que se torna senhor. Eles trancaram a mulher no
serralho, mas ela os tranca consigo; eles rejeitaram a Virgem, mas se batem, depois de mil anos, por Fátima[445]. Eles
rejeitaram o Deus-Homem e repeliram a encarnação em aversão a Cristo, mas proclamam aquela de Ali[446]. Eles
condenaram os Magos e o magismo, o reino da Luz, mas professam que Maomé é a luz incriada[447]; segundo outros, Ali é
esta luz. Os imãs, descendentes e sucessores de Ali, são os raios encarnados. O último desses imãs, Ismael, desapareceu da
terra, mas sua descendência subsiste desconhecida: é um dever procurá-la. Os califas fatímidas do Egito eram os
representantes visíveis dessa família de Ali e de Fátima. Antes deles, essas doutrinas havim prevalecido nas montanhas
orientais do antigo império persa, onde o islamismo não pudera sufocar o magismo[448]. Elas ribombaram no oitavo e novo
séculos, quando os fanáticos Carmatas, que se autoproclamavam ISMAELITAS, se puseram a correr a Ásia, procurando seu
imã invisível, sabres à mão. Os Abássidas os exterminaram, centenas de milhares; mas, um deles, refugiado no Egito, fundou a
dinastia fatímida para a ruína dos Abássidas e do Alcorão.

O misterioso Egito ressuscitou seus velhos ritos de iniciação. Os Fatímidas fundaram, no Cairo, a loja ou Casa da
Sabedoria: imenso e tenebroso ateliê do fanatismo e da ciência, da religião e do ateísmo[449]. A única doutrina certa desses
proteus do islamismo era a obediência pura. Bastava deixar-se conduzir e eles vos conduziam, por nove degraus, da religião
ao misticismo[450], do misticismo à filosofia, à dúvida e, então, à absoluta indiferença[451]. Seus missionários penetraram
em toda a Ásia, até dentro do palácio de Bagdá, inundando o califado dos Abássidas com esse solvente destrutivo. A Pérsia
estava, há muito, preparada para recebê-lo. Antes de Hassan Qarmat, antes de Maomé, sob o reinado dos últimos Sassânidas,
os sectários haviam pregado a comunidade dos bens e das mulheres e a indiferença do justo e do injusto.

Essa doutrina não deu todos os seus frutos senão quando foi levada para as montanhas da velha Pérsia, na direção de
Qazvin, no próprio lugar de onde saíram os antigos libertadores, o ferreiro Kaf, com seu famoso tabuleiro de couro, e o herói
Feridun, com sua maça de crânio de búfalo[452]. Esse protestantismo maometano, levado ao seio dessas populações
intrépidas, a elas se associou com o temperamento da resistência nacional e ensinou-lhes um execrável heroísmo de
assassinato. Foi, de início, um certo Hassan bin Sabbah Homairi (ou Hassan-i-Sabbah), rejeitado pelos Abássidas e pelos
Fatímidas, quem assenhorou-se, em 1090, da fortaleza de Alamut (que significa Toca dos Abutres ); ele a batizou, em sua
audácia, de Morada da Fortuna[453]. Aí, ele fundou uma associação onde o fatimismo era a máscara mas cuja idéia secreta
parece ter sido a ruína de qualquer religião. Essa corporação tinha, como a loja do Cairo, seus sábios, seus missionários;
Alamut era cheia de livros e de instrumentos de matemática[454]. As artes eram cultivadas; os sectários penetravam em todos
os lugares sob mil disfarces, como médicos, astrólogos, artesãos etc. Mas a arte que mais exerciam era o assassinato. Esses
homens terríveis se apresentavam, um a um, para apunhalar um sultão, um califa, e se sucediam, sem medo e sem
desencorajamento, à medida em que eram talhados em pedaços[455]. Assegura-se que, para inspirar-lhes essa furiosa
coragem, o chefe os entorpecia por meio de bebidas inebriantes, os levava adormecidos para os locais das delícias e os
persuadia, em seguida, que haviam apreciado as premissas do Paraíso prometido aos homens devotos[456]. Sem dúvida, a
esses meios juntava-se o velho heroísmo montanhês que fez desses grotões o berço dos antigos libertadores da Pérsia e dos
modernos wahhabitas. Como em Esparta, as mães se vangloriavam de seus filhos mortos e não choravam senão pelos vivos. O
chefe dos Assassinos[457] tomou por título a expressão Sheik da Montanha (ou Velho da Montanha) que era o mesmo
utilizado pelos outros chefes da região, os quais possuíam seus fortes na outra vertente da mesma cadeia de montanhas[458].

Esse Hassan, que durante trinta e cinco anos não saiu uma única vez de Alamut, nem duas vezes de seu quarto, nem por
isso deixou de estender sua dominação sobre a maior parte dos castelos e praças-fortes das montanhas entre o Cáspio e o
Mediterrâneo. Seus Assassinos inspiravam um indescritível pavor. Os príncipes, intimados a renderem suas fortalezas, não
ousavam nem cedê-las, nem guardá-las: eles as demoliam. Não havia mais segurança para os reis. Cada um deles podia
repentinamente ver sair, do meio de seus mais fiéis servidores, um homicida. Um sultão, que perseguia os Assassinos, vê, de
manhã, ao acordar, um punhal cravado no chão, a dois dedos de sua cabeça: ele passou a pagar-lhes tributo e os eximiu de
todo imposto, de qualquer pedágio[459].

Tal era a situação do islamismo: o Califado de Bagdá, escravo sob uma guarda turca; aquele do Cairo, agonizando na
corrupção; o outro, de Córdoba, desmembrado e caindo em pedaços. Uma única coisa era muito viva e forte no mundo
maometano: o horrível heroísmo dos Assassinos, potência tenebrosa, firmemente encarapitada sobre a velha montanha persa,
em face do Califado, como o punhal próximo da cabeça do sultão.

Quão mais vivo e mais jovem era o cristianismo ao momento das Cruzadas! O poder espiritual (que, na Ásia, era
escravo do temporal) o agitava e o fazia primar; ele vinha de se robustecer na castidade monástica, pelo celibato dos padres.
O Califado tombava e o Papado erguia-se. O maometismo dividia-se e o cristianismo se unia. O primeiro não podia esperar
senão invasão e ruína e, de fato, ele apenas resistiu quando recebeu os Mongóis e os Turcos, quer dizer, tornando-se bárbaro.

Essa peregrinação da cruzada não é, nem um fato novo, nem estranho. O homem é peregrino de sua natureza: há muito
que partiu e eu não sei quando ele chegará. Para colocá-lo em movimento, não é preciso grande coisa. E, inicialmente, a
natureza o conduz como uma criança, mostrando-lhe um belo lugar ao sol, oferecendo-lhe um fruto, a vinha da Itália para os
Gauleses, a laranja da Sicília para os Normandos[460]; ou, então, é pela forma da mulher que o tenta e o atrai. O rapto é a
primeira conquista. É a bela Helena; depois, a moralidade surgindo, a casta Penélope, a heróica Brunilda ou as Sabinas. O
imperador Alexios, convidando nossos Franceses para a guerra santa, não esqueceu de lhes vangloriar a beleza das mulheres
gregas. As belas Milanesas tiveram, segundo se conta, alguma coisa a ver com a conquista da Itália feita por Franciso I[461].

A pátria é uma outra amante para a qual também corremos. Ulisses não desistiu até que visse a fumaça dos tetos de sua
Ítaca. No Império, os homens do norte procuraram, em vão, seu Aasgard, sua cidade dos Ases, dos heróis e dos deuses. Eles
encontraram algo melhor. Correndo às cegas, eles se chocaram contra o cristianismo. Nossos cruzados que marcharam a
Jerusalém, movidos por um tão ardoroso amor, aperceberam-se que a pátria divina não se encontrava nas torrentes do Cédron,
nem no árido vale de Jeosafá[462]. Eles olharam ainda mais alto e aguardaram, numa esperança melancólica, uma outra
Jerusalém. Os Árabes se espantaram vendo Godofredo de Bouillon sentado ao chão. O vencedor disse-lhes tristemente: Não é
a terra boa para nos servir de morada quando entrarmos em seu seio para um longo sono?[463] Eles se retiraram plenos de
admiração. O Ocidente e o Oriente haviam se entendido.

Era necessário, entretanto, que a cruzada se realizasse. Esse vasto e múltiplo mundo da Idade Média, que continha em si
todos os elementos dos mundos anteriores, grego, romano e bárbaro, devia, assim, reproduzir todas as lutas do gênero humano.
Era necessário que ele representasse sob a forma cristã, e em proporções colossais, a invasão da Ásia pelos Gregos e a
conquista da Grécia pelos Romanos, ao mesmo tempo que a coluna grega e o arco romano se unissem e se erguessem ao céu,
em gigantescos pilares, nos arcos aéreos de nossas catedrais.

Já há muito começara o tremor. Desde o ano 1000, sobretudo, desde que a humanidade passou a acreditar ter a chance de
viver e esperar um pouco mais, um grande número de peregrinos pegava seu bastão e punha-se a caminhar; alguns na direção
de Santiago de Compostela, outros para Monte Cassino, ou na direção dos Santos Apóstolos de Roma e, daí, para Jerusalém.
Os próprios pés os levavam. Era, entretanto, uma perigosa e penosa viagem. Felizes os que voltassem! Mais felizes os que
morressem perto do túmulo do Cristo e pudessem dizer, segundo a audaciosa expressão de um contemporâneo: “Senhor, vós
morrestes por mim; eu morri por vós!”[464]

Inicialmente, os árabes, povo comerciante, acolhiam bem os peregrinos. Os fatímidas do Egito, inimigos secretos do
Corão, os trataram ainda melhor. Tudo mudou quando o califa al-Hakim, filho de uma cristã, designou-se a si próprio como
uma encarnação[465]. Ele maltratou cruelmente os cristãos, que sustentavam que o Messias já viera, e os Judeus, que ainda
insistiam em esperá-Lo. Desde então, não mais se chegava ao Santo Sepulcro, salvo sob a condição de ultrajá-lo como, nos
últimos tempos, os Holandeses não entravam no Japão senão caminhando sobre a cruz. Sabe-se a ridícula história desse conde
d’Anjou, Foulques Nerra que, tendo tanto a expiar, foi muitas vezes à Jerusalém. Condenado pelos infiéis a emporcalhar o
Santo Sepulcro, ele encontrou uma maneira de derramar um vinho precioso no lugar de urina[466]. Ele voltou de Jerusalém a
pé e morreu de exaustão em Metz.

Mas as fadigas e os ultrajes não os afastavam. Esses homens tão orgulhosos que, por uma palavra mal posta, fariam
correr rios de sangue em seus países, submetiam-se piedosamente a todas as baixezas cujas exigências fossem do agrado dos
Sarracenos. O duque da Normandia, os condes de Barcelona, de Flandres, de Verdun, cumpriram, no século XI, essa rude
peregrinação. A prontidão aumentava com o perigo; apenas, porém, os peregrinos punham-se a organizar grandes tropas. Em
1054, o bispo de Cambrai tentou fazer a viagem com três mil Flamengos e não pôde chegar. Treze anos depois, os bispos de
Mainz, de Ratisbonne, de Bamberg e de Utrecht, associaram-se a alguns cavaleiros normandos e formaram um pequeno
exército armado de sete mil homens[467]. Eles lá chegaram a grande custo e, tanto quanto, dois mil retornaram à Europa.
Entretanto, os Turcos, senhores de Bagdá, e partidários de seu califa, tendo se assenhorado de Jerusalém, aí massacraram,
indistintamente, todos os partidários da encarnação, Alidas e Cristãos. O império romano grego, a cada dia mais estreitado,
viu a sua cavalaria empurrada até o Bósforo, em face de Constantinopla[468]. Do outro lado, os fatímidas tremiam detrás dos
reparos das muralhas de Damieta e do Cairo. Eles se dirigiram, como os Gregos, aos príncipes do Ocidente. Alexios
Comneno[469] já possuía ligação com o conde de Flandres que fora por ele acolhido magnificamente, quando de sua
passagem; seus embaixadores celebravam, com o temperamento loquaz dos Gregos, as riquezas do Oriente, os impérios, os
reinos, que aí podiam ser conquistados; os frouxos covardes chegavam até a vangloriar a beleza de suas filhas e de suas
mulheres, e pareciam prometê-las aos ocidentais[470].

Todos esses motivos não bastariam para comover o povo e transmitir-lhe essa vibração profunda que o levou até o
Oriente. Já havia muito tempo que se falava a respeito de guerras santas. A vida da Espanha não era outra coisa senão uma
cruzada diária; todo dia, tomava-se conhecimento de alguma vitória de El Cid, a tomada de Toledo ou de Valença, tão
importantes quanto Jerusalém. Os Genoveses, os Pisanos, conquistadores da Sardenha e da Córsega, não praticavam a cruzada
já há um século? Quando Silvestre II escreveu sua famosa carta em nome de Jerusalém, os Pisanos armaram uma frota,
desembarcaram na África e aí massacraram, diz-se, cem mil Mouros[471]. Todavia, sentia-se que a religião tinha pouco a ver
com tudo isso. O perigo animava os Espanhóis e o interesse os Italianos. Estes últimos imaginaram, mais tarde, fazer um
atalho para qualquer cruzada de Jerusalém, de interceptar e de trazer para si todo o ouro que os peregrinos levavam para o
Oriente: eles carregaram suas galeras de terra tirada na Judéia e se fizeram uma Terra Santa no Camposanto Monumentale de
Pisa.

Mas não se podia dar, assim, uma troca à consciência religiosa do povo, nem desviá-lo do Santo Sepulcro. Nas extremas
misérias da Idade Média, os homens conservavam lágrimas para as misérias de Jerusalém. Esta grande voz que, no ano 1000,
os ameaçara do fim do mundo, fez-se ainda escutar e disse-lhes para irem à Palestina, em gratidão do respeito que Deus lhes
mostrava. O ruído corria que o poder dos Sarracenos atingira seu termo. Tratava-se, apenas, como se dizia, de ir à frente, pela
grande rota que Carlos Magno outrora franqueara[472], de caminhar, sem se cansar, na direção do Sol levante, de recolher os
despojos já prontos, de segurar na boa mão de Deus. Nunca mais miséria, nem servidão; a libertação chegara. No Oriente,
havia o suficiente para fazê-los todos ricos. Armas, víveres, barcos, nada era necessário, pois seria tentar a vingança de Deus.
Eles declararam que teriam por guias as mais simples das criaturas, um ganso e uma cabra[473]. Piedosa e tocante confiança
da humanidade criança!

Um Picardo, a quem chamavam trivialmente Coucou Piètre (Pedro Capuchinho ou Pedro o Eremita, de Cucullo, palavra
utilizada pelos monges para “capuz”), contribuiu poderosamente, conforme se conta, para esse grande movimento do povo,
graças à sua eloquência[474]. Ao voltar de uma peregrinação a Jerusalém, ele convenceu o Papa francês Urbano II a pregar a
cruzada em Plaisance, depois em Clermont (1095)[475]. A pregação foi quase inútil na Itália; na França, todo mundo se
armou. Compareceram, ao concílio de Clermont, quatrocentos bispos ou abades mitrados. Foi o triunfo da igreja e do povo.
Os dois maiores nomes da terra, o Imperador e o Rei da França, foram aí condenados, tanto quanto os Turcos, e a querela das
investiduras misturada àquela de Jerusalém. Cada um pôs a cruz vermelha em seu ombro: as estolas e as vestes vermelhas
foram cortadas em pedaços para produzi-las e não foram suficientes para tantas[476].

Foi, então, como um espetáculo extraordinário e como um reviravolta do mundo. Viu-se homens tomarem desgosto por
tudo aquilo que haviam amado. Seus ricos castelos, suas esposas, seus filhos, eles tinham pressa em deixar tudo para trás. Não
havia necessidade de pregações: eles pregavam-se mutuamente, diz o contemporâneo, com palavras e com exemplos. “Era”,
ele continua, “a realização da palavra de Salomão: os gafanhotos não têm reis e, contudo, todos saem e em bandos se
repartem. Eles não tomaram o impulso das boas obras, esses gafanhotos, enquanto permaneciam entorpecidos e gelados em
sua iniquidade. Mas, desde que foram aquecidos com os raios do sol da justiça, eles se lançaram e fizeram seu vôo. Eles não
tiveram rei; toda alma fiel tomou apenas Deus por guia, por chefe, por camarada de guerra... Embora a pregação não se fizera
ouvir senão pelos Franceses, qual povo cristão também não forneceu soldados?.... Teríeis visto os Escoceses, cobertos de um
manto eriçado, acorrerem do fundo de seus pântanos... Tomo Deus por testemunha que desembarcaram, em nossos portos,
bárbaros de não sei quais nações; ninguém entendia a língua deles; eles, fazendo a cruz com seus dedos, mostravam que
desejavam ir para a defesa da fé cristã”.

“Havia pessoas que não tinham, inicialmente, nenhuma vontade de partir, que zombavam daqueles que se desfaziam de
seus bens, predizendo-lhes uma triste viagem e um retorno ainda mais triste. E, no dia seguinte, os próprios zombeteiros, por
um ímpeto repentino, davam todos seus haveres por qualquer dinheiro e partiam com aqueles de quem haviam zombado. Quem
pode nomear as crianças, as velhas mulheres, que se preparavam para a guerra? Quem poderia contar as virgens, os anciãos
trêmulos sob o peso da idade...? Teríeis rido de ver os pobres ferrarem seus bois como se fossem cavalos, arrastando nas
carroças suas magras provisões e suas pequenas crianças; e essas crianças, a cada cidade ou castelo que percebiam,
perguntavam em sua simplicidade: ‘Não é ali, essa tal de Jerusalém, para onde vamos?’[477]”

O povo partiu sem nada esperar, deixando os príncipes deliberarem, armarem-se, contarem-se; ó homens de pouca fé! os
pequenos não se inquietavam com nada disso: eles estavam seguros de um milagre. Deus recusar-lhes-ia um para a libertação
do Santo Sepulcro? Pedro o Eremita marchava à testa, pés nus, cingido com um corda. Outros seguiram um bravo e pobre
cavaleiro a quem chamavam Gautier Sans-Avoir {NT: Gualtério (Galtério ou Gautério) Sem-Haveres} . No meio de tantos
milhares de homens, eles não tinham sequer oito cavalos. Alguns Alemães imitaram os Franceses e partiram sob a condução
de um dos seus, chamado Gottesshalk. Todos juntos desceram o vale do Danúbio, a rota de Átila, a grande estrada do gênero
humano[478].

Fazendo o caminho, eles tomavam, pilhavam, pagando-se, de avanço, sua guerra santa. Todos os Judeus que podiam
encontrar, eles os matavam com torturas pois acreditavam dever punir os assassinos do Cristo antes de libertar Seu túmulo.
Eles chegaram assim, selvagens, cobertos de sangue, na Hungria e no Império Grego. Esses bandos ferozes aí causaram
horror; suas pistas passaram a ser seguidas e foram caçados como se fossem bestas feras. Aqueles que sobraram, o imperador
grego, contando com as flechas dos Turcos, forneceu-lhes barcos e os fez passar à Ásia. A excelente Anna Comnena, filha do
Imperador Alexios, ficou feliz por acreditar que eles deixaram, na planície de Nicéia, montanhas de ossadas com as quais se
construiu as muralhas de uma cidade[479].

Entretanto, agitavam-se lentamente os pesados exércitos dos príncipes, dos nobres, dos cavaleiros. Nenhum rei tomou
parte na cruzada mas, sim, senhores mais poderosos que os reis. O irmão do rei da França, Hugo (Hugues) de Vermandois, o
genro do rei da Inglaterra Estevão (Étienne) de Blois, Roberto Curthose[480], filho de Guilherme o Conquistador, enfim, o
Conde de Flandres, partiram ao mesmo tempo. Todos iguais, nenhum chefe. Estes fizeram pouca honra à cruzada. O gordo
Roberto[481], o homem do mundo que mais alegremente perdeu um reino, apenas foi a Jerusalém por ociosidade. Hugo e
Estevão retornaram sem ir até o fim.

O Conde de Toulouse, Raimundo (Raymond) de Saint-Gilles, era, sem comparação, o mais rico daqueles que tomaram a
cruz. Ele acabara de reunir os condados de Rouergue, de Nîmes e o ducado de Narbonne. Essa grandeza dava-lhe muitas
outras esperanças. Ele jurara que não retornaria; ele levava consigo somas imensas[482]; todo o sul o seguia: os senhores
d’Orange, de Forez, do Roussillon, de Montpellier, de Turenne e de Albret, sem falar do chefe eclesiástico da cruzada, o
bispo du Puy, legado do Papa, que era súdito de Raimundo. Esses povos do sul, comerciantes, industriosos e civilizados como
os Gregos, não tinham melhor reputação de piedade, nem de bravura[483]. Eles tinham a reputação de “saberem demais” e
“saberem fazer” (savoir-faire), muita loquacidade. Os heréticos abundavam em suas cidades semi-mouriscas; seus costumes
eram um pouco maometanos. Os príncipes tinham muitas concubinas. Raimundo, partindo, deixou seus estados a um dos seus
bastardos[484].

Os Normandos da Itália não foram os últimos na cruzada. Menos ricos que os Languedoquenses, eles também contavam
fazer seus negócios. Os sucessores de Guiscardo e Rogério não teriam, entretanto, deixado sua conquista em favor dessa
arriscada expedição; mas, um certo Boemundo (Bohémond)[485], bastardo de Roberto o Astuto, e não menos astuto que seu
pai, nada tivera de herança senão a cidade de Tarento e sua espada. Um Tancredo, Normando por parte de mãe mas, como se
acreditava, Piemontês do lado paternal, também tomou as armas. Boemundo sitiava Amalfi, situada na costa da atual província
de Salerno, na Itália, quando soube da passagem dos cruzados. Ele se informou, por curiosidade, de seus nomes, de seu
número, de suas armas e de seus recursos[486]; depois, sem dizer palavra, ele tomou a cruz e deixou Amalfi. É curioso ver o
retrato que dele faz Anna Comnena, a filha de Alexios, que o viu em Constantinopla, e que dele teve um grande medo. Ela o
observou com o interesse e a curiosidade típicas de uma mulher[487]: “Ele ultrapassava os maiores de mais de um
côvado[488]; era magro de ventre, largo de ombros e de peitos; não era nem magro, nem gordo. Possuía os braços vigorosos,
as mãos carnudas e um tanto grandes. Prestando-lhe mais atenção, percebia-se que era um pouquinho curvado. Ele tinha a pele
muito branca e seus cabelos, puxando para o louro, não ultrapassavam as orelhas, ao invés de esvoaçarem livremente, como
os dos outros bárbaros. Não posso afirmar qual era a cor de sua barba, pois suas bochechas e seu queixo eram escanhoados;
porém, acredito que ela fosse ruiva. Seu olho, de um azul puxando para o verde-marinho (γλαυκὂν), deixava entrever sua
bravura e sua violência. Suas largas narinas aspiravam livremente o ar para agrado do coração ardente que batia nesse vasto
peito. Havia uma agradabilidade nessa figura, mas a agradabilidade era destruída pelo terror. Essa forma, esse olhar, havia
algo, em tudo isso, que não era amável e que não parecia, mesmo, humano. Seu sorriso me parecia, antes, como se fosse um
frêmito de ameça[489]... Ele não era senão artifícios e ardis; seu linguajar era preciso, sua respostas não o tornavam presa”.

Grandes que fossem as coisas que Boemundo tivesse realizado, a voz do povo, que é aquela de Deus, deu a glória da
cruzada a Godofredo, filho do Conde de Boulogne, margrave de Anvers, Duque de Bouillon e da Lotaríngia, rei de
Jerusalém[490]. A família de Godofredo, saída, conta-se, de Carlos Magno, já era marcada por grandes aventuras e grandes
infelicidades. Seu pai, Eustáquio de Boulogne, cunhado de Eduardo o Confessor, faltara com a Inglaterra, para onde os Saxões
o chamavam contra Guilherme o Conquistador[491]. Seu avô maternal, Godofredo o Barbudo, ou o Ousado, Duque da
Lotaríngia e de Brabant, que também fracassou na Lorena, combateu por trinta anos os imperadores à cabeça de toda a Bélgica
e queimou, em Aachen, o palácio dos Carolíngios. Ele foi várias vezes expulso, banido, cativo; sua mulher, Beatrix d’Este,
mãe da famosa Condessa Mathilde, foi indignamente mantida prisioneira por Henrique III, que findou por privá-la de seu
patrimônio ao dar a Lorena para a Casa da Alsácia. Todavia, quando o imperador Henrique IV foi perseguido pelos Papas, e
quando tantas pessoas o abandonavam, o neto do proscrito, o Godofredo da cruzada, não faltou ao seu suzerano. O imperador
confiou-lhe o estandarte do Império[492], esse estandarte que a família de Godofredo fizera oscilar e contra o qual Mathilde
sustentava o da Igreja. Mas Godofredo tornou a deixá-lo firme: com o ferro que sustentava essa bandeira, ele matou o anti-
César Rodolfo, o rei dos padres (1080)[493], e levou, na sequência, sua vitoriosa bandeira até os muros de Roma, sobre os
quais foi o primeiro a subir[494]. Todavia, por ter violado a cidade de São Pedro e expulso o Papa, isso foi uma imensa
tristeza para esta alma piedosa. Assim que a cruzada foi divulgada, ele vendeu suas terras ao bispo de Liége e partiu para a
Terra Santa. Ele frequentemente dissera, desde criança pequena, que desejava ir a Jerusalém com um exército[495]. Dez mil
cavaleiros o seguiram com setenta mil homens a pé, Franceses, Lorenos, Alemães.
Godofredo pertencia às duas nações; falava as duas línguas[496]. Ele não era de grande estatura, e seu irmão Balduíno
(Baudouin de Boulogne) o passava da cabeça; mas sua força era prodigiosa[497]. Contava-se que, com um golpe de espada,
ele fendia um cavaleiro da cabeça à sela; que fazia virar para trás a cabeça de um boi ou de um camelo[498]. Na Ásia, tendo
um dia se perdido, ele encontrou, numa caverna, um dos seus lutando contra um urso: ele atraiu o animal para si e o matou,
mas ficou acamado, por muito tempo, em virtude das cruéis mordidas que levou. Esse homem heróico era de uma singular
pureza. Ele não se casou e morreu virgem, com trinta e oito anos[499].

O Concílio de Clermont ocorrera no mês de novembro de 1095. No dia 15 de agosto de 1096, Godofredo partiu com os
Lorenos e os Belgas e tomou sua rota pela Alemanha e Hungria. Em setembro, partiram os filhos de Guilherme o
Conquistador, o conde de Blois, seu genro, o irmão do rei da França e o conde de Flandres; eles foram pela Itália até Apúlia;
depois, uns passaram a Dirráquio[500], os outros contornaram a Grécia. Em outubro, nossos meridionais, sob Raimundo de
Saint-Gilles, se encaminharam pela Lombardia, pelo Friul e pela Dalmácia. Boemundo, com seus Normandos e Italianos,
traçou sua rota pelos desertos da Bulgária: era o mais curto e o menos perigoso; era melhor evitar as cidades e não encontrar
os Gregos senão em campo raso. A selvagem aparição dos primeiros cruzados, sob Pedro o Eremita, amedrontara os
Bizantinos; eles se arrependiam amargamente de terem chamado os Francos, mas era tarde demais; eles entravam em
quantidade inumerável por todos os vales, por todas as avenidas do Império. O encontro era em Constantinopla. O Imperador
teve por bem pregar-lhes peças que os Bárbaros encenaram com sua força e sua massa: somente Hugo de Vermandois deixou-
se pegar. Alexios viu todos esses corpos de exércitos, que ele acreditava ter destruído, chegarem, um a um, à frente de
Constantinopla e saudarem seu “bom amigo”, o Imperador. Os pobres Gregos, condenados a ver desfilarem, perante seus
olhos, essa pavorosa revista do gênero humano, não podiam acreditar que a torrente pudesse passar sem levá-los também.
Tantas línguas, tantas vestes bizarras, havia bons motivos com os quais se assustar. A própria familiaridade desses bárbaros,
suas piadas e brincadeiras grosseiras, desconcertavam os Bizantinos. Aguardando que todo o exército estivesse reunido, eles
se estabeleciam amigavelmente no Império, sentindo-se como se estivessem em suas próprias casas, pegando, em sua
simplicidade, tudo o que lhes agradasse: por exemplo, os chumbos dos tetos das igrejas para revendê-los aos Gregos[501]. O
palácio sagrado não era mais respeitado. Toda essa população de escribas e de eunucos não conseguia impor-lhes nada. Eles
não tinham espírito e nem imaginação suficientes para se deixarem conduzir pelas pompas terríveis do cerimonial trágico da
majestade bizantina. Um belo leão de Alexios, que fazia o enfeite e o temor do palácio, eles se divertiram a matá-lo.

Para essa gente, que não havia visto senão as cidades de lama do nosso Ocidente, esta maravilhosa Constantinopla era
uma grande tentação. Esses domos de ouro, esses palácios de mármore, todas as obras-primas da arte antiga concentradas na
capital desde que o Império fora tão comprimido, tudo isso compunha um conjunto espantoso e misterioso que os confundia;
eles não compreendiam nada: a só variedade de tantas indústrias e mercadorias era, para eles, um problema inexplicável. Mas
o que compreendiam, é que tinham uma grande vontade de tudo isso; eles até duvidavam que a Cidade Santa valesse mais.
Nossos Normandos e nossos Gascões muito gostariam de terminar a cruzada neste lugar e, de boa vontade, perguntariam,
como as pequenas crianças das quais nos fala Guiberto: Não é aí, essa tal de Jerusalém?[502]

Eles, então, se lembraram de todas as peças que os Gregos haviam-lhes pregado sobre as estradas: eles alegavam que
estes haviam-lhes fornecido alimentos estragados e envenenado as fontes[503], e imputaram-lhes as doenças epidêmicas que
nasceram nos exércitos em virtude da fome e da imprevidência. Boemundo e o conde de Toulouse sustentavam que não se
devia, de forma alguma, olhar com escrúpulos esses envenenadores e que, em punição, era necessário tomar Constantinopla.
Poder-se-ia depois, quando bem se entendesse, conquistar a Terra Santa. A coisa teria sido fácil se todos estivessem de
acordo, mas o Normando compreendeu que, derrubando-se Alexios, este poderia certamente dar todo o Império somente ao
Toulousense Raimundo. Assim, Godofredo declarou que não viera para fazer a guerra a cristãos [504]. Boemundo falou como
este e tirou bom partido de sua virtude. Ele fez com que o Imperador lhe desse tudo o que desejasse[505].

Tal foi a habilidade de Alexios, que ele encontrou meios de convencer esses conquistadores, os quais podiam esmagá-
lo[506], a prestarem-lhe homenagem e a submeterem-lhe, antecipadamente, suas conquistas. Hugo jurou primeiro, depois
Boemundo, então Godofredo. Este se ajoelhou perante o Grego, colocou as mãos deste entre as suas e fez-se seu vassalo. Isso
pouco custou à sua humildade. Na realidade, os cruzados não podiam se passar sem Constantinopla; não a possuindo, era
necessário que a tivessem ao menos por aliada e amiga. Prestes a se lançarem nos desertos da Ásia, apenas os Gregos podiam
preservá-los de sua ruína. Estes prometeram tudo para se desembaraçarem dos Bárbaros: víveres, tropas auxiliares, barcos de
transporte principalmente, para fazê-los passar, o quanto antes, o Bósforo.

“Godofredo, tendo dado o exemplo, todos se reuniram para prestar juramento. Então, um dentre deles, um conde de alta nobreza, teve a audácia de
se sentar no trono imperial. O Imperador nada disse, conhecendo de longa data a petulância dos Latinos. Mas o conde Balduíno pegou esse insolente pela
mão e o retirou de seu lugar, fazendo-o compreender que não era o costume dos imperadores deixarem sentar-se ao seu lado aqueles que lhe haviam
prestado homenagem e que, desta forma, haviam se transformado em seus homens; era necessário, ele dizia, se conformar com os hábitos do país onde se
vivia. O outro nada respondeu, mas olhava o Imperador com um ar irritado, murmurando, em sua língua, algumas palavras que poderiam ser assim
traduzidas: Vide esse rústico que se senta sozinho, enquanto tantos capitães estão de pé! O Imperador notou o movimento de seus lábios e fez-se explicar
suas palavras por um intérprete mas, pelo momento, ele ainda nada disse. Somente quando os condes, tendo cumprido a cerimônia, se retiravam e
saudavam o Imperador, ele chamou à parte esse nobre orgulhoso e perguntou-lhe quem ele era, seu país e sua origem: ‘eu sou Franco puro’, ele disse, ‘e
dos mais nobres. Apenas sei uma coisa: em meu país, existe uma velha igreja, no cruzamento de três estradas, onde quem quer se bater em duelo nela
entra para rogar a Deus e esperar seu adversário. Eu tive por bem esperar nesse cruzamento e ninguém ousou vir’. – ‘Pois bem!”, disse o Imperador, ‘se
ainda não encontrastes inimigo, eis o tempo onde eles não vos faltarão”[507].

Ei-los na Ásia, em face dos cavaleiros turcos. A pesada massa avança, sendo assediada nos flancos. Inicialmente, ela se
posta diante de Nicéia. Os Gregos desejavam recuperar essa cidade e a ela trouxeram os cruzados. Estes, inábeis na arte dos
cercos, poderiam, com todo o seu valor, ter aí languescido para sempre. Eles serviram, ao menos, para assustar os sitiados,
que findaram por negociar com Alexios. Uma manhã, os Francos viram flutuar sobre a cidade a bandeira do Imperador e foi-
lhes dito, do alto das muralhas, respeitarem uma cidade imperial[508].

Eles então continuaram sua rota na direção do sul, fielmente escoltados à distância pelos Turcos, que massacravam
todos os retardatários. Mas eles sofriam ainda mais pelo seu grande número. Apesar do auxílio dos Gregos, nenhuma provisão
bastava, a água faltava a cada instante nessas áridas colinas. Em uma só parada, quinhentas pessoas morreram de sede. “Os
cães de caça dos grandes senhores, que eram conduzidos em coleiras, expiraram na estrada”, diz o cronista, “e os falcões
morreram sobre o punho daqueles que os levavam. Mulheres pariram de dor; elas permaneciam completamente nuas sobre a
planície, sem se preocuparem com seus bebês recém-nascidos”[509].

Eles teriam tido maiores recursos se possuíssem uma cavalaria ligeira contra aquela dos Turcos. Mas o quê podiam
homens pesadamente armados contra essas nuvens de abutres? Se posso assim dizer, o exército dos cruzados viajava cativo
dentro de um círculo de turbantes e de cimitarras. Uma única vez os Turcos tentaram pará-los e ofereceram-lhes batalha. Não
ganharam: os Turcos sentiram o peso dos braços contra os quais combatiam de longe e com tanta vantagem; todavia, a perda
dos cruzados foi imensa.

Eles chegaram, então, pela Cilícia, até Antióquia. O povo queria seguir direto até Jerusalém, mas os chefes insistiram
em parar. Eles estavam impacientes de, enfim, realizarem seus sonhos ambiciosos. Já eles se haviam disputado, espada à mão,
a cidade de Tarso; Balduíno e Tancredo sustentavam, ambos, terem sido os primeiros a entrar nela. Uma outra cidade, que iria
excitar uma querela semelhante, foi demolida pelo povo que pouco se importava com os interesses dos chefes e não desejava
ser retardado[510].

A grande cidade de Antióquia possuía trezentas e sessenta igrejas, quatrocentas e cinquenta torres. Ela havia sido a
metrópole de cento e cinquenta e três bispados[511]. Era uma bela presa para o conde de Saint-Gilles e para Boemundo.
Antióquia apenas podia consolá-los da falta de Constantinopla. Boemundo foi o mais hábil, abrindo uma via de diálogo com
as pessoas da cidade. Os cruzados enganados, como em Nicéia, viram panejar, sobre as muralhas, a bandeira vermelha dos
Normandos[512]. Mas ele não pôde impedir que todos entrassem e nem ao conde Raimundo de se fortificar em algumas torres.
Eles encontraram, nesta grande cidade, uma abundância funesta após tantos jejuns. A epidemia os levou aos montes. Logo, os
víveres prodigalizados se esgotaram e eles se encontraram novamente reduzidos à fome, quando um exército inumerável de
Turcos veio sitiá-los em sua conquista. Muitos deles, dentre os quais Hugo de França e Estevão de Blois, acreditaram que o
exército, sem recursos, estava perdido e escaparam para anunciar o desastre da cruzada.

Tal foi, em efeito, o excesso de abatimento daqueles que restavam, que Boemundo não encontrou outra forma de fazê-los
sair das casas, onde se mantinham escondidos, senão ateando fogo às mesmas[513]. A religião forneceu um auxílio mais
eficaz. Um homem do povo, alertado por uma visão, anunciou aos chefes que, em cavando a terra em tal lugar, encontar-se-ia a
santa lança que perfurara o flanco de Jesus Cristo[514]. Ele provou a verdade de sua revelação passando pelas chamas,
queimou-se, mas nem por isso deixou-se de ficar maravilhado com o milagre[515]. Deu-se aos cavalos tudo o que restava de
forragem e, enquanto os Turcos divertiam-se e bebiam, acreditando terem pego esses esfaimados, eles saem por todas as
portas seguindo a santa-lança que ia à frente. Seu número pareceu ter sido duplicado pelos hostes dos anjos[516]. O enorme
exército dos Turcos foi dispersado e os cruzados viram-se senhores dos campos de Antióquia e do caminho de Jerusalém.

Antióquia restou à Boemundo, malgrado os esforços de Raimundo para guardar as torres para si[517]. O Normando
colheu, assim, a melhor parte da cruzada. Todavia, ele não pôde dispensar-se de seguir o exército e de ajudar a tomar
Jerusalém. Esse prodigioso exército estava, conta-se, então reduzido a vinte e cinco mil homens. Mas eram os cavaleiros e
seus homens. O povo encontrara seu túmulo na Ásia Menor e em Antióquia.

Os fatímidas do Egito que, como os Gregos, tinham chamado os Francos contra os Turcos, também se
arrependeram[518]. Eles tinham conseguido capturar Jerusalém dos Turcos e eram eles, portanto, quem a defendiam.
Pretende-se que eles tivessem aí reunido até quarenta mil homens. Os cruzados, que no primeiro entusiasmo ao qual se
lançaram à vista da Cidade Santa, acreditaram poder tomá-la de assalto, foram repelidos pelos sitiados. Tiveram, então, de
resignar-se à lentidão de um cerco e assentarem-se neste campo desolado, sem árvores e sem água. Parecia que o demônio
estava pronto para queimar tudo com seu bafo ante a aproximação do exército do Cristo. Sobre as muralhas, apareciam
feiticeiras que lançavam palavras funestas sobre os sitiantes. Mas a elas não se respondeu com palavras. Pedras lançadas
pelas máquinas dos cristãos abateram uma das bruxas, enquanto ela fazia suas conjurações[519]. O único bosque que se
encontrava nos arredores foi cortado pelos Genoveses e Gascões que dele fizeram máquinas de sítio, sob a direção do
visconde de Béarn. Duas torres rolantes foram construídas pelo conde de Saint-Gilles e pelo duque da Lorena. Enfim, tendo os
cruzados feito, pés nus, durante oito dias, uma procissão em volta de Jerusalém[520], todo o exército atacou; a torre de
Godofredo foi aproximada dos muros e, na sexta-feira, 15 de julho de 1099, às três horas, na hora e no próprio dia da Paixão
de Cristo, Godofredo de Bouillon desceu de sua torre sobre as muralhas de Jerusalém. Capturada a cidade, o massacre foi
assustador[521]. Os cruzados, em seu fervor cego, não levando em conta o tempo histórico, acreditavam, em cada infiel que
encontravam em Jerusalém, bater um dos carrascos de Jesus Cristo[522].

Quando pareceu-lhes que o Salvador fora suficientemente vingado, quer dizer, quando não sobrou quase mais ninguém
na cidade, eles foram, com lágrimas e gemidos, batendo-se o peito, adorar o Santo Sepulcro. Tratava-se, agora, de saber quem
seria o rei da conquista, quem teria a triste honra de defender Jerusalém. Fez-se uma enquete com cada um dos príncipes a fim
de se eleger o mais digno; interrogou-se seus servidores, de forma a serem descobertos seus vícios ocultos. O conde de Saint-
Gilles, o mais rico dos cruzados, provavelmente teria sido eleito mas, seus servidores, temendo permanecer com ele em
Jerusalém, não hesitaram em denegrir seu senhor e pouparam-lhe da realeza. Aqueles do duque da Lorena, interrogados por
sua vez, após terem muito procurado, nada encontraram contra ele, senão que permanecia tempo demais nas igrejas, além do
necessário para o cumprimento de suas obrigações, e que ficava sempre inquirindo aos padres acerca das histórias
representadas nas imagens e nas pinturas sacras, para grande descontentamento de seus amigos que o aguardavam para as
refeições[523]. Godofredo resignou-se, mas ele nunca desejou tomar a coroa real no lugar onde o Salvador utizara uma de
espinhos[524]. Ele não aceitou outro título que não fosse o de Defensor e barão do Santo Sepulcro. O patriarca, reclamando
Jerusalém e todo o reino, o conquistador não fez a menor objeção: ele cedeu tudo perante o povo, reservando-se apenas o
gozo, quer dizer, a defesa[525]. Já no primeiro ano, ele teve de bater um exército enorme de Egípcios que veio atacar os
cruzados em Ascalon (NT:atualmente, é uma cidade do Distrito Sul de Israel, situada ao norte da Faixa de Gaza, na costa mediterrânea, a 64 km
ao sul de Tel-Aviv, mantendo o mesmo nome ) . Era uma guerra eterna, uma miséria irremediável, um longo martírio, que Godofredo
acabara de conquistar. Desde o início, o reino encontrava-se infestado pelos Árabes até às portas da capital; à pena, ousava-
se cultivar os campos. Tancredo foi o único dos chefes que muito desejou permanecer com Godofredo. Este pôde, a muito
custo, manter apenas trezentos cavaleiros[526].

Entretanto, para a cristandade, era uma grande coisa ocupar, assim, ao meio dos infiéis, o berço de sua religião. Uma
pequena Europa asiática foi aí estabelecida à imagem da grande. A feudalidade organizou-se numa forma mais severa que em
qualquer outro país do Ocidente. A ordem hierárquica e todo detalhe da justiça feudal foram regrados, nos famosos Assizes de
Jerusalém, por Godofredo e seus barões[527]. Havia um príncipe da Galiléia, um marquês de Jaffa, um barão de Sídon. Esses
títulos da Idade Média ligados aos nomes mais veneráveis da antiguidade bíblica parecem uma distorção. Que a fortaleza de
Davi fosse ameada por um duque da Lorena, que um gigante bárbaro do Ocidente, um Gaulês, cabeça loura escondida por uma
máscara de ferro, se chamasse marquês de Tiro, eis as coisas que não foram vistas pelo profeta Daniel.

A Judéia havia se tornado uma França. Nossa língua, levada pelos Normandos à Inglaterra e à Sicília, o foi à Ásia pela
cruzada. A língua francesa sucedeu, como língua política, a universalidade da língua latina, desde a Arábia até à Irlanda. O
nome dos Francos torna-se o nome comum dos Ocidentais. E, fraca que ainda fosse a realeza francesa, o irmão do triste Filipe
I[528], esse Hugo de Vermandois que se salvou de Antióquia, nem por isso deixou de ser chamado pelos Gregos de o irmão
do chefe dos príncipes cristãos e do rei dos reis[529].

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Capítulo IV
Sequência da Cruzada. As Comunas. Abelardo. Primeira metade do século XI.

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Cabe a Deus regozijar-se com sua obra e dizer: isso é bom. Não é assim com o homem. Quando ele executou a sua,
quando bem trabalhou, que correu e suou, que venceu e que, enfim, tem o objeto amado, ele não mais o reconhece, deixa-o cair
das mãos, passa a nutrir um desgosto pelo mesmo e por si próprio. Então, para ele, não vale mais a pena viver; seu sucesso,
com tantos esforços, não serviram senão para privá-lo de seu Deus. Foi assim que Alexandre morreu de tristeza, quando
conquistou a Ásia, e Alarico, quando tomou Roma. Godofredo de Bouillon mal teve a Terra-Santa, que sobre ela se sentou
desencorajado e languesceu para repousar em seu seio. Pequenos ou grandes, somos todos, neste particular, Alexandre e
Godofredo. O historiador, assim como o herói. O próprio Gibbon, seco e frio que era, ainda assim expressa uma emoção
melancólica quando termina sua grande obra[530]. E eu, se ouso assim falar, entrevejo com tanto temor, como também com
desejo, a data em que terei terminado a longa cruzada através dos séculos e que realizo pela minha pátria.

A tristeza foi grande para os homens da Idade Média, quando chegaram ao fim dessa expedição venturosa e gozaram
dessa Jerusalém tão desejada. Seiscentos mil homens haviam se tornado cruzados. Eles não eram mais que vinte e cinco mil,
ao saírem de Antióquia e, quando tomaram a Cidade Santa, Godofredo nela permaneceu, para defendê-la, com apenas
trezentos cavaleiros; alguns outros em Trípoli com Raimundo, em Edessa com Balduíno, em Antióquia com Boemundo. Dez
mil homens retornaram para a Europa. O que se dera com todo o resto? Era fácil encontrar seu rastro: estava marcado na
Hungria, no Império grego e na Ásia, sobre uma rota branca de ossadas. Tantos esforços e um tal resultado! Não é de se
espantar que o próprio vencedor ficasse desgostoso com a vida. Godofredo não acusou Deus, mas languesceu e morreu[531].

É que ele não se enganava com o verdadeiro resultado da cruzada. Esse resultado, que não se podia nem ver, nem tocar,
nem por isso era menos real. A Europa e Ásia haviam se aproximado, se reconhecido; os ódios da ignorância já haviam
diminuído.

“Era uma coisa divertida”, disse o feroz Raimundo d’Agiles, “ver os Turcos, pressionados pelos nossos de todos os
lados, lançarem-se, fugindo, uns sobre os outros, e se empurrarem mutuamente para dentro dos precipícios; era um espetáculo
divertido e aprazível”[532].

Tudo mudou após a Cruzada[533]. O irmão e sucessor de Godofredo, o rei Balduíno, casa-se com uma mulher advinda
de uma família ilustre “entre os gentios do país”[534]. Ele próprio adota os hábitos destes, passa a usar uma longa túnica,
deixa a barba crescer e se faz adorar à moda oriental. Ele começa a contar os Sarracenos como seres humanos. Ferido, ele
nega a seus médicos a permissão de ferir um prisioneiro para estudar seu mal[535]. Ele teve piedade de uma prisioneira
muçulmana que dava à luz em seu exército, parando sua marcha ao invés de abandoná-la no deserto[536].

E o que ocorrera com os próprios cristãos? Quais sentimentos de humanidade, caridade, igualdade, não tiveram eles a
oportunidade de adquirir nesta comunidade de perigos e misérias extremas! A cristandade, reunida por algum tempo sob uma
mesma bandeira, conheceu uma espécie de patriotismo europeu[537]. A despeito de algumas visões temporais que se tenham
misturado à sua empreitada, a maioria saboreava a virtude e sonhava com a santidade. Eles tentaram valer mais que valiam e
se tornaram cristãos, ao menos pelo ódio aos infiéis[538].

O dia no qual, sem distinção entre livres e servos, os poderosos assim designaram aqueles que os seguiam - NOSSOS
POBRES – foi a era da libertação[539]. O grande movimento da cruzada, tendo, por um instante, tirado os homens da servidão
local, tendo-os conduzido, à luz do dia e ao sabor do vento, pela Europa e pela Ásia, eles procuraram Jerusalém e
encontraram a liberdade. Essa trombeta libertadora do Arcanjo, que se acreditara ter ouvido no ano 1000, ela soou, um século
mais tarde, na pregação da cruzada. Ao pé da torre feudal que o oprimia com sua sombra, o vilarejo acordou. Esse homem
impiedoso que não descia de seu ninho de abutre senão para despojar seus vassalos, ele próprio os armou, os conduziu, viveu
com eles, sofreu com eles; a comunhão de misérias amoleceu seu coração. Mais de um servo pôde dizer ao barão:
“Monsenhor, eu vos encontrei um copo d’água no deserto; eu vos cobri com meu corpo no cerco de Antióquia; ou de
Jerusalém”.

Devem ter também ocorrido aventuras bizarras, fortunas estranhas. Nessa mortalidade terrível, quando tantos nobres
pereceram, ter sobrevivido foi, com frequência, um título de nobreza. Soube-se, então, quanto valia um homem. Os servos
também tiveram sua história heróica. Os parentes de tantos mortos encontraram-se parentes de mártires. Eles consagraram a
seus pais, a seus irmãos, as velhas lendas da igreja. Eles souberam que fora um pobre homem quem salvara Antióquia ao
encontrar a Santa Lança, e que os filhos e os irmãos dos reis salvaram-se da batalha de Antióquia. Eles souberam que o Papa
não fora à cruzada e que a santidade dos monges e dos padres fora apagada pela santidade de um laico, de Godofredo de
Bouillon.

A humanidade recomeçou, então, a honrar a si própria, nas mais miseráveis condições. As primeiras revoluções
comunais precedem ou seguem de perto o ano 1.110. Eles avistaram que cada um devia dispor do fruto de seu trabalho e, eles
próprios, casarem seus filhos; eles se atreveram a acreditar que possuíam o direito de ir e vir, de vender e comprar, e
suspeitavam, em sua petulância, que bem podia se dar que os homens fossem iguais.

Até aí, esse formidável pensamento de igualdade não fora claramente produzido. Muito foi-nos dito que, desde antes do
ano mil, os camponeses da Normandia haviam se amotinado; mas essa tentativa foi reprimida sem dó. Alguns cavaleiros
correram os campos, dispersaram os aldeões, cortaram-lhes os pés e as mãos; e nada mais se falou[540]. Os paisanos, em
geral, estavam muito isolados. Suas jaquerias deviam fracassar em toda a Idade Média. Eles estavam também, infelizmente (é
preciso dizer), muito degradados pela escravidão, muito brutalizados, muito ferozes pelo excesso de seus males: sua vitória
teria sido aquela da barbárie.

Mas foi sobretudo nos burgos populosos que se formaram aos pés dos castelos e ainda mais em volta das igrejas, que
fermentaram as idéias de liberdade. Os senhores laicos ou eclesiásticos haviam encorajado a população dessas burgadas por
concessões de terra, desejosos em aumentar sua própria força e o número de seus vassalos. Não eram grandes e mercadoras
cidades, como no sul da França e na Itália; mas havia um pouco de indústria grosseira, alguns ferreiros, muitos tecelões,
açougueiros, taberneiros, nas cidades de passagem. Algumas vezes, os senhores atraíam artesões hábeis, ao menos para bordar
a estola ou forjar a armadura. Fazia-se assaz necessário permitir um pouco de liberdade a esses homens: eles carregavam tudo
em seus braços e teriam deixado o país.

Seria, então, pelas cidades e vilarejos que devia começar a liberdade, pelas cidades do centro da França, quer se
chamassem cidades privilegiadas, cidades francas (villes franches) ou comunas, quer tivessem obtido ou extraído suas
imunidades. A ocasião, em geral, foi a defesa das populações contra a opressão e as extorsões dos senhores feudais; em
particular, a defesa da Ilha de França contra o país feudal por excelência, contra a Normandia. “Nesta época”, diz Orderico
Vital, “a comunidade popular foi estabelecida pelos bispos, de sorte que os padres acompanhavam o rei nos sítios ou nos
combates com os pendões de suas paróquias e todos os paroquianos”[541]. Foi, segundo o mesmo historiador, um Montfort
(família ilustre que devia, no século seguinte, destruir as liberdades do sul da França e fundar aquelas da Inglaterra), foi
Amaury de Montfort quem aconselhou Luís o Gordo, após sua derrota de Brenneville, a opor aos Normandos os homens das
comunas marchando sob o estandarte de suas paróquias (1119) [542]. Mas essas comunas, quando retornaram para dentro das
muralhas, tornaram-se mais exigentes. Foi um golpe mortal para a humildade delas terem, uma vez, visto fugir, perante seus
estandartes paroquiais, os cavalos de guerra e os nobres cavaleiros e, com Luís o Gordo, terem posto fim aos roubos dos
Rochefort e, bem assim, terem forçado o covil dos Coucy. Eles disseram a si próprios, como o poeta do século XII: “Somos
homens como eles são; tão grandes corações também temos; sofrer tanto quanto nós podemos”[543]. Todos eles quiseram
algumas isenções, alguns privilégios; eles ofereceram dinheiro; eles souberam encontrá-lo, indigentes e miseráveis que
fossem, pobres artesãos, ferreiros ou tecelões, acolhidos, por graça, ao pé de um castelo, servos refugiados em torno de uma
igreja; tais foram os fundadores de nossas liberdades. Eles tiraram as migalhas da própria boca, preferindo passar sem pão.
Os senhores e o rei venderam com vontade esses diplomas tão bem pagos.

Essa revolução ocorreu em todos os lugares, sob mil formas, e quase sem barulho. Ela não fora notada senão em algumas
cidades do Oise e do Somme que, colocadas em circunstâncias menos favoráveis, partilhadas entre dois senhores, laico e
eclesiástico, dirigiram-se ao rei para poderem solenemente garantir as concessões frequentemente violadas e mantiveram uma
liberdade precária ao preço de vários séculos de guerras civis. Foram a essas cidades que particularmente se deu o nome de
comunas. Essas guerras são um pequeno, mas dramático, incidente da grande revolução que ocorria silenciosamente e sob
formas diversas, em todas as cidades do norte da França.

Foi na valente e colérica Picardia, cujas comunas tinham batido muito bem os Normandos, foi no país de Calvino e de
tantos outros espíritos revolucionários, que essas explosões tiveram lugar. As primeiras comunas foram Noyon, Beauvais,
Laon, três senhorias eclesiásticas[544]. Juntai a elas Saint-Quentin. A Igreja aí lançara os fundamentos de uma forte
democracia. Que o exemplo tenha sido dado por Cambrai, pelas cidades da Bélgica, é o que examinaremos mais tarde, quando
reencontrarmos as revoluções igualmente importantes de Flandres. Não poderíamos aqui mostrar, senão em pouco, o que
encontraremos, mais distante, em proporções colossais. O que é a comuna de Laon ao lado dessa terrível e tempestuosa cidade
de Bruges, que despejava trinta mil soldados de suas portas, batia o rei da França e aprisionava o Imperador[545]? Todavia,
grandes ou pequenas, elas foram heróicas, nossas comunas picardas, e combateram bravamente. Elas também tiveram seus
campanários, suas torres, nem inclinadas e nem revestidas de mármore, como as miranda da Itália[546], mas dotadas de um
sonoro sino, que não chamava em vão os burgueses para a batalha contra o bispo ou o senhor. As mulheres para elas iam,
como os homens. Oitenta mulheres quiseram tomar parte no ataque ao castelo de Amiens e todas acabaram feridas[547]; mais
tarde, o mesmo se deu com Jeanne Hachette no sítio de Beauvais[548]. Galharda e risonha população de impetuosos soldados
e alegres contistas, país de moral leve, de romances licensiosos, de boas canções e de Béranger[549]. Era um grande júbilo,
para eles, ver o conde de Amiens, sobre seu gordo cavalo, arriscar-se fora da ponte-levadiça e caracolear pesadamente;
então, os taberneiros e os açougueiros punham-se ousadamente às suas portas e enfureciam a besta feudal com suas rudes
gargalhadas[550].

Diz-se que o rei fundara as comunas. O contrário é, antes, verdadeiro[551]: foram as comunas que fundaram o rei. Sem
elas, ele não teria repelido os Normandos. Esses conquistadores da Inglaterra e das Duas Sicílias teriam, provavelmente,
conquistado a França. São as comunas ou, para empregar uma palavra mais geral e mais exata, são as burguesias[552] quem,
sob o estandarte do santo da paróquia, conquistaram a paz pública entre o Oise e o Loire; e o rei, a cavalo, levava à frente o
estandarte da abadia de Saint Denis[553]. Vassalo como conde de Vexin, abade de São Martinho de Tours, cônego de Saint-
Quentin, defensor das igrejas, o rei guerreava santamente contra as bandidagens dos senhores de Montmorency e do Puiset e
contra a execrável ferocidade dos Coucy.

Ele tinha por si a burguesia nascente e a igreja. A feudalidade possuía todo o resto: a força e a glória. Ele estava
perdido, esse pobre reizinho, entre os vastos domínios de seus vassalos[554]. E vários destes eram grandes homens, ao menos
homens poderosos pela valentia, energia e riqueza. O que era um Filipe I ou, mesmo, o bravo Luís VI, o gordo homem
pálido[555], entre os vermelhos Guilhermes da Inglaterra e da Normandia, entre os Robertos de Flandres, conquistadores e
piratas[556], os opulentos Raimundos de Toulouse, Guilhermes de Poitiers e Foulques d’Anjou, trovadores ou historiadores,
enfim, entre os Godofredos da Lorena, intrépidos antagonistas dos imperadores, santificados perante toda a cristandade pela
vida e morte de Godofredo de Bouillon?

O rei, o quê ele opunha a tanta glória e a tanto poder? não grande coisa, ao que parece; apenas aquilo que não se pode
ver, nem tocar.... o direito. Um velho direito, rejuvenescido por Carlos Magno, mas pregado pelos padres e renovado pelos
poemas que, então, se iniciam. Em face desse direito real, os direitos feudais parecem usurpados. Todo feudo sem herdeiro
devia retornar ao rei, como se o fizesse à sua fonte. Isso dava-lhe uma grande posição e muitos amigos. Havia vantagem em
estar bem com aquele que conferia os feudos vacantes. Essa qualidade de herdeiro universal era eminentemente popular.
Aguardando, a igreja o apoiava, o alimentava; ela tinha muita necessidade de um chefe militar contra os barões para que
pudesse abandonar o rei: isto se viu na época quando Filipe I escandalosamente casou-se com Bertrade de Montfort, que ele
raptara de seu marido Foulques d’Anjou. O bispo de Chartres, o famoso Yves, fulminou contra ele, o Papa assinou o interdito,
o concílio de Lyon condenou o rei, mas toda a igreja do norte permaneceu-lhe favorável; ele teve para si os bispos de Reims,
Sens, Paris, Meaux, Soissons, Noyon, Senlins, Arras etc.[557]

Luís VI que, em sua velhice, foi chamado de “Gordo”, fora, inicialmente, chamado de Desperto. Seu reinado é, de fato, o
despertar da realeza. Mais valente que seu pai, mais dócil à igreja, foi a favor desta que ele, pela primeira vez, pegou em
armas, em favor da abadia de Saint-Denis, em favor dos bispados de Orléans e de Reims[558]. Levando-se em consideração
que as terras da igreja eram, então, os únicos asilos da ordem e da paz, constata-se quanto o seu defensor executava obras
caridosas e humanas. É verdade que ele aí encontrava sua conta: os bispos, por seu turno, armavam seus homens para ele. É o
rei quem protege os peregrinos da Igreja, seus mercadores, os quais afluíam às suas sés, às suas festas; ele assegurava a
grande estrada que levava de Tours e de Orléans a Paris e de Paris a Reims. O rei e o conde de Blois e Champagne
esforçavam-se para colocar um pouco de segurança entre o Loire, o Sena e o Marne, pequeno círculo comprimido entre as
grandes massas feudais do Anjou, da Normandia e de Flandres; esta última avançava até o rio Somme. O círculo
compreendido entre esses grandes feudos foi a primeira arena da realeza, o teatro de sua história heróica. Foi aí que o rei
sustentou imensas guerras, lutas terríveis contra esses locais de harmonia que são, hoje, nossos subúrbios. Nossos campos
prosaicos da Brie e de Hurepoix tiveram suas Ilíadas. Os Montfort e os Garlande apoiavam frequentemente o rei; os Coucy, os
senhores de Rochefort, do Puiset sobretudo, eram contra ele; todas as cercanias estavam infestadas com seus salteadores.
Podia-se ir ainda com alguma segurança de Paris a Saint-Denis mas, além disso, não se cavalgava senão com a lança sobre a
coxa; ali começava a sombria e malfadada floresta de Montmorency. Do outro lado, a torre de Montlhéry exigia um pedágio. O
rei não podia viajar, senão com um exército, de sua cidade de Orléans até sua cidade de Paris.
A cruzada fez a fortuna do rei. Esse terrível senhor de Montlhéry tomou a cruz, mas foi para um local mais distante que
Antióquia: quando os cristãos encontravam-se aí sitiados, ele abandonou seus companheiros de armas, seus irmãos de
peregrinação, desceu as muralhas por uma corda, a exemplo de alguns outros, e retornou da Ásia para Hurepoix com o apelido
de Dançarino da Corda. Isto humanizou o orgulhoso barão: ele deu sua filha a um dos filhos do rei, além do seu castelo[559]:
significou entregar-lhe a rota entre Paris e Orléans.

A ausência dos grandes barões não foi menos útil ao rei. Estevão de Blois, que fizera como o senhor de Montlhéry,
desejou retornar à Ásia. O brilhante conde de Poitiers, o supliciado na roda, o trovador, sentiu que não se podia ser um
cavaleiro completo sem haver estado na Terra Santa. Ele muito contava com a possibilidade de encontrar aventuras
romanescas e material para bons contos[560]. Ele ofereceu ao rei da Inglaterra a cessão do Ducado por algum dinheiro
sonante e partiu com um grande exército, isto é todos os seus homens e todo um “enxame” de amantes[561]. Para os
Languedoquenses, era uma cruzada ininterrupta entre Trípoli e Toulouse. Alfonse Jordão era conde de Trípoli. Seu pai faltara
à realeza de Jerusalém: ela foi oferecida ao conde de Anjou, que a aceitou, e aí se arruinou. Os Angevinos não tinham o que
fazer da Terra Santa. Para as populações comerciantes e industriais do Languedoc, em boa hora, era um excelente mercado, e
daí eles tiraram as rendas do Levante, para inveja dos Pisanos e dos Venezianos.

Assim, a pesada feudalidade mobilizara-se, desenraizara-se da terra. Ela ia e vinha, ela vivia sobre as grandes estradas
da cruzada, entre a França e Jerusalém. Para os Normandos, não havia necessidade de outra cruzada senão na Inglaterra, a
qual lhes ocupou suficientemente. Apenas o rei permanecia fiel ao solo da França, maior a cada dia pela ausência dos barões
e pela preocupação destes com a cruzada. Ele começou a tornar-se alguma coisa na Europa. Ele recebeu, ele, este adversário
dos pequenos senhores dos subúrbios de Paris, uma carta do imperador Henrique IV, que se lamentava ao Rei dos Celtas da
violência do Papa[562]. Seu título continha uma tal ilusão a respeito das suas verdadeiras forças que, dos Pirineus, o conde de
Barcelona solicitou-lhe auxílio contra a terrível invasão dos Almorávidas que ameaçava a Espanha e a Europa. Igualmente,
quando o herói da cruzada, esse glorioso Boemundo, príncipe de Antióquia, veio implorar a compaixão do povo para os
cristãos da Ásia, ele acreditou estar fazendo uma coisa popular ao desposar a irmã de Luís o Gordo[563]. Boemundo guardou-
se de solicitar auxílio aos Normandos, seus compatriotas; o conde de Barcelona desconfiava de seus vizinhos de Toulouse.
Mas ninguém desconfiava do rei da França.

O que fazia o perigo de sua posição, mas que o tornava caro às igrejas e aos burgueses do centro da França, era a
vizinhança dos Normandos. Eles haviam tomado a cidade de Gisors em desprezo às convenções e, de lá, dominavam o Vexin
quase até Paris. Esses conquistadores não respeitavam nada. A pequenina realeza da França não lhes teria segurado a cabeça
sem o ciúme de Flandres e do Anjou. O conde do Anjou pediu, e obteve, o título de Senescal do rei da França [564]. Era o
direito de pôr os pratos na mesa; mas a feudalidade enobrecia todas as funções domésticas; e o conde de Anjou era muito
poderoso para acreditar que o rei pudesse, algum dia, tirar partido contra si em virtude dessa domesticidade voluntária que
equivalia a uma ligação estreita contra os Normandos.

Os Normandos não tiveram nenhuma vantagem decisiva; eles não empregavam contra o rei da França senão a metade de
suas forças. Na realidade, a Normandia não estava em sua casa, mas na Inglaterra. Sua vitória em Brenneville, num combate
de cavalaria onde os dois reis se encontraram e fizeram boa figura, não teve qualquer resultado. Nesta célebre batalha do
século XII, houve apenas, conta Orderico Vital, três homens mortos[565]. Quem, depois disso, ainda dirá que os tempos da
cavalaria são os tempos heróicos (1119)?

Essa derrota foi cruelmente vingada pelas milícias das comunas que penetraram na Normandia e aí perpetraram
pavarosas devastações. Elas eram conduzidas pelos próprios bispos que mais temiam tombarem sob a feudalidade normanda.
O rei esperava tirar um partido ainda bem mais vantajoso da proteção eclesiástica quando Calixto II excomungou o imperador
Henrique V, no concílio de Reims, no qual estavam quinze arcebispos e duzentos bispos. Luís aí se apresentou e humildemente
acusou, perante o Papa, o rei normando da Inglaterra, Henrique Beauclerc (Henrique I), de violador do direito das gentes e de
aliado dos senhores que desolavam os campos. “Os bispos”, ele disse, “detestavam, com razão, Thomas de Marne, salteador
sedicioso que devastava toda a província; assim, eles me ordenaram atacar esse inimigo dos viajantes e dos fracos: os leais
barões da França a mim se uniram para reprimir os violadores das leis e eles combateram, por amor a Deus, com toda a
mobilização do exército cristão. O conde de Nevers, retornando pacificamente dessa expedição com minha licença, foi preso
e assim é mantido, até este dia, pelo conde Teobaldo (Thibaut), ainda que uma multidão de senhores tenha-lhe suplicado, de
minha parte, colocá-lo em liberdade, e que os bispos tenham posto todas as suas terras sob anátema. Quando o rei falou, os
prelados franceses atestaram que ele dissera a verdade”. Mas o Papa já tivera o suficiente na sua luta contra o Imperador e
não desejava, também, se fazer um inimigo do rei da Inglaterra.
O que quer que seja, o rei da França era de tal forma o homem da igreja, que ela deixava-lhe exercer tranquilamente esse
direito de investidura por conta do qual o papa excomungava o Imperador[566]. Este direito não possuía inconvenientes nas
mãos do protegido dos bispos. Luís, além disso, inspirava tanta confiança! Era um príncipe conforme Deus e conforme o
mundo.

Henrique Beauclerc suplantara seu irmão Roberto. Luís o Gordo tomou sob sua proteção Guilherme Cliton, filho de
Roberto. Ele tentou, em vão, estabelecê-lo na Normandia, mas sua ajuda foi efetiva para fazê-lo conde de Flandres. Quando o
conde de Flandres, Carlos o Bom, fora massacrado pelos homens de Bruges, Luís empreendeu essa expedição longínqua,
vingou o conde de uma forma brilhante e convenceu os Flamengos a tomar por conde o normando Guilherme Cliton. Habituou-
se, assim, a ver o rei da França como o ministro da Providência.

Ainda mais longínquas, e não menos brilhantes, foram suas expedições no sul. Na época da cruzada, o conde de Bourges
vendera seu condado ao rei[567]. Essa possessão, da qual o rei encontrava-se separado por tantas terras mais ou menos
inimigas, adquiriu importância quando, em 1115, o senhor da Bourbonense, vizinho do Berry, chamou o rei em seu auxílio
contra o irmão de seu predecessor, que disputava-lhe essa senhoria. Luís o Gordo aí passou com um exército e o protegeu
eficazmente. Desde então, ele manteve o pé no sul. Por duas vezes, ele aí executou uma cruzada em favor do bispo de
Clermont, que se dizia oprimido pelo conde da Auvérnia. Os grandes vassalos do Norte, condes de Flandres, de Anjou, da
Bretanha, e vários barões normandos, o seguiram voluntariamente. Era, para eles, um grande prazer fazer uma campanha no
sul. As reclamações do conde de Poitiers, duque da Aquitânia e suzerano do conde da Auvérnia, não foram absolutamente
ouvidas. Alguns anos depois, o bispo de Puy-en-Vélay solicitou um privilégio ao rei da França, pretextando a ausência de seu
senhor, o conde de Toulouse que, então, se encontrava na Terra Santa (1134).

Viu-se, desde 1124, quão poderoso se tornara o rei da França. O imperador Henrique V, excomungado no concílio de
Reims, guardava rancor dos bispos e do rei. Seu genro Henrique Beauclerc o incitava a invadir a França. O Imperador
desejava, conta-se, a cidade de Reims: no mesmo instante, todas as milícias se armaram[568]. Os grandes senhores enviaram
seus homens. O duque da Borgonha, o conde de Nevers, aquele de Vermandois, mesmo o conde da Champagne que, então,
fazia a guerra a Luís o Gordo em favor do rei normando; e os condes de Flandres, da Bretanha, da Aquitânia e de Anjou
acorreram contra os Alemães, que não ousaram avançar. Esta unanimidade da França do norte, sob Luís o Gordo, contra a
Alemanha, parecia anunciar, com um século de antecedência, a vitória de Bouvines, assim como sua expedição na Auvérnia já
faz pensar na conquista do sul, no século XIII.

Tal foi, após a primeira Cruzada, a ressurreição do rei e do povo. Povo e rei puseram-se em marcha sob o estandarte de
Saint-Denis. Mont-joye Saint-Denys foi o brado da França. Saint-Denis e a igreja, Paris e a realeza, um em face do outro.
Havia um centro, e a vida para aí se dirigiu, um coração de povo aí bateu. O primeiro signo, a primeira pulsação, foi o
impulso das escolas e a voz de Abelardo. A liberdade, que soava tão baixo nos campanários das comunas da Picardia,
explodiu na Europa pela voz do lógico bretão. O discípulo de Abelardo, Arnaldo de Brescia, foi o eco que acordou a Itália.
As pequenas comunas da França tiveram, sem disso saberem, irmãs nas cidades lombardas e em Roma, esta grande comuna do
mundo antigo.

A cadeia dos livres pensadores, aparemente rompida após João o Escoto[569], fora reatada pelo nosso grande Gerberto,
que foi Papa no ano mil. Aluno em Córdoba e mestre em Reims[570], Gerberto teve por discípulo Fulbert de Chartres, cujo
aluno, Berengário (Bérenger) de Tours, espantou a igreja pela primeira dúvida sobre a Eucaristia. Pouco após, o cônego
Roscelino (Roscelin) de Compiègne ousou tocar na Trindade. Ele ensinava, além do mais, que as idéias gerais não eram senão
palavras: “o homem virtuoso é uma realidade, a virtude não passa de um som”[571]. Esta reforma ousada destroçava toda
poesia, toda religião; ela habituou o mundo a não ver senão personificações nas idéiais que se haviam realizado. Não era nada
menos que a passagem da poesia para a prosa. Esta heresia lógica causou horror aos contemporâneos da primeira cruzada; o
Nominalismo, como se chamava, foi asfixiado por algum tempo.

Os campeões não faltaram à igreja contra os inovadores. Os Lombardos Lanfranc e Santo Anselmo, ambos arcebispos de
Canterbury, combateram Berengário e Roscelino. Santo Anselmo, espírito original, encontrara já o famoso argumento de
Descartes para a existência de Deus: “Se Deus não existisse, eu não poderia concebê-Lo”[572]. Foi, para ele, um grande
júbilo ter feito essa descoberta após uma longa insônia. Ele inscreveu sobre seu livro: “O insensato diz: não existe Deus”. Um
monge ousou achar que a prova era muito fraca e entitulou sua resposta: “Livrinho para o insensato”[573]. Esses primeiros
combates não foram senão prelúdios. Gregório VII proibiu que se incomodasse Berengário[574]. Era a época da querela das
investiduras, a luta material, a guerra contra o Imperador. Uma outra luta em breve se iniciaria, bem mais grave, na esfera da
inteligência, quando a questão desceria da política para a teologia, para a moral, e na qual a moralidade do próprio
cristianismo seria posta em dúvida. Como Pelágio veio depois de Ário, Abelardo vem depois de Berengário.

A Igreja parecia tranquila. A escola de Laon e aquela de Paris estavam ocupadas por dois alunos de Santo Anselmo de
Canterbury, Anselmo de Laon e Guilherme de Champeaux. Entretanto, grandes sinais apareciam: os Valdenses tinham
traduzido a Bíblia para a língua vulgar[575] e as Institutas foram também traduzidas[576]; o direito foi ensinado em face da
teologia, em Orléans e em Angers[577]. A só existência da escola de Paris era uma novidade e um perigo imensos. As idéias,
até aí dispersas, supervisionadas nas diversas escolas eclesiásticas, iam convergir para um centro. Esse grande nome de
Universidade começava na capital da França no momento em que a universalidade da língua francesa parecia quase realizada.
As conquistas dos Normandos, a primeira cruzada, haviam levado, para todos os cantos, esse poderoso idioma filosófico;
para a Inglaterra, para a Sicília, Jerusalém. Apenas esta circunstância dava à França, à França central, à Paris, uma imensa
força atrativa. O francês de Paris torna-se, pouco a pouco, proverbial[578]. A feudalidade havia encontrado na cidade real
seu centro político; esta cidade iria se tornar a capital do pensamento humano.

Aquele que iniciou essa revolução não era um padre; era um belo rapaz[579], brilhante, amavél, de nobre estirpe[580].
Ninguém fazia, como ele, versos de amor em língua vulgar; ele próprio os cantava[581]. Com tudo isso, ainda possuía uma
erudição extraordinária para o tempo: então, apenas ele sabia o grego e o hebreu. Talvez ele tivesse frequentado escolas
judaicas (havia diversas no sul) ou os rabinos de Troyes, de Vitry ou de Orléans. Naquela época, havia, em Paris, duas
escolas principais: a velha escola episcopal do pátio Notre-Dame e aquela de Santa Genoveva, sobre a montanha, onde
brilhava Guilherme de Champeaux. Abelardo veio sentar-se entre os alunos deste, submeteu-lhe suas dúvidas, o embaraçou,
riu dele e o condenou ao silêncio. Ele teria feito outro tanto com Anselmo de Laon, se o professor, que era bispo, não o tivesse
expulso de sua diocese. Assim ia esse cavaleiro errante da dialética, derrubando os mais famosos campeões. Ele mesmo
afirmava que não renunciara à outra esgrima, aquela dos torneios, senão por amor aos combates das palavras[582]. Vencedor
desde então, e sem rival, ele lecionou em Paris e em Melun, onde residia Luís o Gordo, e para onde os senhores começavam a
vir em multidão. Estes nobres encorajavam um homem de sua própria classe, que batera os sacerdotes em seu próprio terreno,
e que reduzia ao silêncio o mais hábil dos clérigos[583].

Os prodigiosos sucessos de Abelardo explicam-se facilmente. Parecia que, pela primeira vez, escutava-se uma voz
livre, uma voz humana. Tudo o que fora produzido na forma pesada e dogmática do ensino clerical, sob o rude envoltório do
latim da Idade Média, reapareceu na elegância antiga que Abelardo conseguira reencontrar. O ousado jovem simplificava,
explicava, popularizava, humanizava. À pena ele deixava alguma coisa de obscura e de divina nos mais formidáveis mistérios.
Parecia que, até aí, a igreja estivera gaguejando enquanto Abelardo falava. Tudo tornava-se suave e fácil; ele tratava
polidamente a religião, a manipulava suavemente, mas ela derretia-se em suas mãos. Nada embaraçava esse belo e fluente
falador; ele reduzia a religião à filosofia, a moral à humanidade. O crime não está no ato, ele dizia, mas na intenção[584], na
consciência. Assim, não mais havia pecado no hábito ou na ignorância. Mesmo aqueles que crucificaram Jesus, sem saber
que ele fosse o Salvador, não pecaram[585]. O que é o pecado original? Menos um pecado que uma pena[586]. Mas, então,
por que a Redenção, a Paixão, se não existia pecado? É um ato de puro amor. Deus desejou substituir a lei do temor por
aquela do amor.[587]

O que é o pecado? não é o prazer, mas o desprezo a Deus[588]. A intenção é tudo, o ato não é nada. Doutrina
escorregadia que demanda espíritos esclarecidos e sinceros. Sabe-se muito bem como os jesuítas dela abusaram no século
XVII; quão mais perigosa era ela na ignorância e rudeza do XII!

Esta filosofia circulou rapidamente: ela passou, em um instante, o mar e os Alpes[589]; ela desceu até todas as classes.
Os laicos puseram-se a falar das coisas sagradas. Em todos os lugares, não somente nas escolas mas, nas praças, nos
cruzamentos, nas ruas, grandes e pequenos, mulheres e homens, discorriam sobre os mais solenes mistérios[590]. O
Tabernáculo mostrava-se como arrombado; o Santo dos Santos era arrastado na rua. Os humildes estavam chacoalhados, os
santos cambaleavam, a igreja se calava.

Entretanto, todo o cristianismo estava em jogo: ele era atacado em sua base. Se o pecado original não fosse mais um
pecado, mas uma pena, esta pena era injusta e a Redenção inútil. Abelardo defendia-se de uma tal conclusão; mas ele
justificava o cristianismo com argumentos tão fracos que o abalava ainda mais, declarando não possuir respostas melhores.
Ele se deixavar levar ao absurdo e, depois, alegava a autoridade e a fé.

Assim, o homem não era mais culpado, a carne estava justificada, reabilitada. Todos os sofrimentos pelos quais os
homens imolaram-se eram supérfluos. O que se tornavam tantos mártires voluntários, tantos jejuns e macerações, e as vigílias
dos monges, e as atribulações dos solitários, tantas lágrimas derramadas perante Deus? Vaidade, escárnio. Esse Deus era um
Deus amável e fácil que não tinha o que fazer com tudo isso.

A igreja estava, então, sob o domínio de um monge, de um simples abade de Clairvaux, de São Bernardo. Como
Abelardo, ele também era nobre. Originário da alta Borgonha[591], do país de Bossuet e de Buffon, ele fora educado nesta
poderosa casa de Cîteaux, irmã e rival de Cluny, que deu tantos pregadores ilustres e que fez, meio século depois, a Cruzada
dos Albigenses. Mas São Bernando achou Cîteaux por demais esplêndida e rica; ele desceu para a pobre Champagne e fundou
o monastério de Clairvaux no vale do Absinto[592]. Aí, ele pôde levar, à vontade, esta vida de dores que lhe era tão
necessária. Nada o tirava daí: jamais ele desejou ser outra coisa que não fosse monge. Ele poderia ter se tornado arcebispo e
papa. Forçado a responder a todos os reis que o consultavam, ele se viu todo-poderoso, apesar de si próprio, e condenado a
governar toda a Europa. Uma carta de São Bernardo fez sair da Champagne o exército do rei da França[593]. Quando o cisma
explodiu pela elevação simultânea de Inocente II e de Anacleto, a igreja da França encarregou São Bernardo de escolher, e ele
escolheu Inocente[594]. A Inglaterra e a Itália resistiam: o abade de Clairvaux disse uma palavra ao rei da Inglaterra; depois,
pegando o Papa pela mão, ele o conduziu por todas as cidades da Itália que o receberam de joelhos. As pessoas se esganavam
para tocar o santo, atracavam-se por um fio de seu hábito; toda sua rota estava marcada por milagres.

Mas não eram esses seus maiores casos; suas cartas bem nos mostram. Ele se emprestava ao mundo e a ele não se
entregava: seu amor e seu tesouro estavam em outro lugar. Ele escrevia dez linhas ao rei da Inglaterra e dez páginas a um
pobre monge. Homem de vida interior, de oração e de sacrifício, ninguém, no meio de tanto ruído, soube melhor se isolar. Os
sentidos nada mais lhe diziam a respeito do mundo. Ele caminhou, diz seu biógrafo, durante todo um dia ao longo do lago de
Lausanne e, ao entardecer, perguntou onde estava o lago. Confundindo-se, ele bebia azeite ao invés de água e comia sangue
coagulado como se fosse manteiga[595]. Ele vomitava quase todo alimento. Ele se alimentava com a Bíblia e se hidratava
com o Evangelho. Mal colocou-se de pé e encontrou forças para pregar a Cruzada para cem mil homens. Acreditava-se
enxergar mais um espírito que um homem, quando ele aparecia assim, à frente da multidão, com sua barba ruiva e branca, seus
cabelos louros e brancos, magro e fraco, à pena um pouco de vida nas bochechas, e esta finura, esta transparência singular de
tez que admirávamos em Byron[596]. Suas pregações eram terríveis; as mães delas distanciavam seus filhos, as mulheres seus
maridos[597]: todos eles o teriam seguido ao monastério. Quanto a ele, após lançar o sopro de vida sobre essa multidão,
retornava rapidamente a Clairvaux, reconstruía, perto do convento, sua pequena cabana com ramagens e folhas[598], e
acalmava um pouco, na explicação do Cântico dos cânticos, que o ocupou toda a sua vida, sua alma doente de amor[599].

Que se imagine, então, com qual dor um tal homem teve de saber dos progressos de Abelardo, as invasões da lógica
sobre a religião, a prosaica vitória da razão sobre a fé, a chama do sacrifício extinguindo-se no mundo... Era-lhe arrancar seu
Deus!

São Bernardo não era um lógico comparável a seu rival; mas este último trabalhava para sua própria ruína. Abelardo se
encarregava de extrair as consequências de sua doutrina e as aplicava na sua conduta. Ele atingira esse excesso de
prosperidade onde a enfatuação e a empáfia nos arremessam para alguma grande falta, algum enorme erro. Tudo era-lhe bem
sucedido: os homens haviam se calado perante Abelardo; as mulheres, todas, olhavam com amor um jovem homem amável e
invencível, belo de rosto e todo-poderoso de espírito, arrastando o povo atrás de si: “Cheguei ao ponto”, ele disse, “onde
qualquer mulher que eu honrasse com meu amor, eu não teria a temer nenhuma recusa”[600]. Rousseau diz, precisamente, a
mesma coisa, contando, em suas Conféssions, o sucesso da Nouvelle Héloïse[601].

A Heloísa do século XII era sobrinha do cônego Fulbert. Jovem adolescente, bela, sábia, já célebre[602], ela foi
confiada por seu tio às lições de Abelardo que, enfim, a seduziu. Esta falta sequer teve o amor por desculpa: foi friamente, de
propósito deliberado, por passatempo, que Abelardo enganou a confiança de Fulbert[603]. Sabe-se que ele foi cruelmente
punido, renunciou ao mundo e se fez beneditino em Saint-Denis, por volta de 1119 [604]. As perseguições eclesiásticas vieram
aí encontrá-lo e ele não achou repouso. O arcebispo de Reims, amigo de São Bernardo, reuniu um concílio, em Soissons,
contra Abelardo e este corria o risco de ser lapidado pelo povo; ele teve medo, chorou muito, queimou seus livros e disse
tudo o que desejavam ouvir. Ele foi condenado sem ser julgado. Seus inimigos argumentavam que bastava ele ter ensinado sem
a autorização da igreja[605].

Enclausurado em Saint-Médard de Soissons, depois refugiado em Saint-Denis, ele foi obrigado a fugir deste asilo, pois
duvidara, abertamente, que Dionísio o Areopagita tivesse, algum dia, posto os pés na França. Tocar nesta lenda significava
atacar a religião da própria Monarquia[606]. A Corte, que o apoiava, abandonou-o desde então. Ele se salvou nas terras do
conde de Champagne, escondeu-se num lugar deserto, perto do rio Ardusson, a duas léguas de Nogent. Tornado pobre, e não
tendo senão um clérigo consigo, ele construiu para si uma cabana de juncos e um oratório em honra da Trindade, de cuja
existência era acusado de negar. Ele chamou essa ermida de “o Consolador”, “o Paracleto”. Mas, seus discípulos, tendo
tomado conhecimento de onde ele estava, afluíram à sua volta; eles se construíram cabanas[607], um vilarejo ergueu-se, no
deserto, dedicado à ciência, à liberdade; era-lhe apenas necessário retomar a cátedra e recomençar a ensinar. Mas ele foi,
ainda, forçado a se calar e a aceitar o priorado de Saint-Gildas, na Bretanha bretonnante, da qual ele não entendia a língua.
Seus monges bretões, que ele desejava reformar, tentaram envenená-lo com o cálice. Desde então, o desafortunado levou uma
vida errante e pensou, mesmo, refugiar-se em terra infiel. Porém, ele desejava, ainda uma vez, medir forças com o terrível
adversário que o perseguia, com seu zelo e sua santidade, em qualquer lugar. Em virtude de uma instigação de Arnaldo de
Brescia, ele solicitou a São Bernardo um duelo lógico perante o concílio de Sens. O rei, os condes de Champagne e de
Nevers, uma multidão de bispos, deviam assistir e julgar os golpes. São Bernardo aí compareceu com repugnância, sentindo
sua inferioridade[608]. Mas as ameaças do povo e a pusilanimidade de seu rival o tiraram do embaraço. Abelardo não ousou
defender-se e contentou-se em apelar ao Papa. Inocente II devia tudo a São Bernardo e detestava Abelardo na pessoa de seu
discípulo Arnaldo de Brescia[609] que, então, corria a Itália e chamava o povo à liberdade. Ele ordenou encarcerar Abelardo
que, tendo previsto este desfecho, se refugiara de própria iniciativa no monastério de Cluny. O abade Pedro o Venerável
passou a responder por Abelardo que, ao cabo de dois anos, morreu.

Tal foi o fim do restaurador da filosofia na Idade Média, filho de Pelágio, pai de Descartes, e Bretão como eles. Sob um
outro ponto de vista, ele pode passar por precursor da escola humana e sentimental que se reproduziu em Fénélon e
Rousseau. Sabe-se que Bossuet, em sua querela com Fénélon, lia assiduamente São Bernardo. Quanto à Rousseau, para
aproximá-lo de Abelardo, é preciso considerar seus dois discípulos, Arnaldo e Heloísa, o republicanismo clássico e a
eloquência passional. Em Arnaldo está o germen do Contrato Social e, nas cartas da antiga Heloísa, entrevê-se a Nouvelle.

Não há lembrança mais popular na França que aquela da amante de Abelardo. Esse povo tão esquecido, em quem a
marca da Idade Médica encontra-se tão apagada; esse povo, que se lembra dos deuses da Grécia mais do que dos nossos
santos nacionais, ele não esqueceu Heloísa. Ele ainda visita o gracioso monumento, que reuniu os dois cônjuges, com tanto
interesse quanto se o túmulo de ambos tivesse sido erguido ontem[610]. Das nossas lendas de amor, foi a única que
sobreviveu.

A queda do homem fez a grandeza da mulher: sem o infeliz Abelardo, Heloísa teria sido ignorada; ela teria permanecido
obscura e na sombra e não teria desejado outra glória que não aquela do seu marido. Na época de sua separação, ele a fez
tomar o véu e construiu-lhe o Paracleto, no qual ela tornou-se a abadessa. Ela aí manteve uma grande escola de teologia, de
grego e de hebreu. Vários monastérios semelhantes ergueram-se à volta e, alguns anos após a morte de Abelardo, Heloísa foi
nomeada chefe da ordem pelo Papa. Mas, sua glória está no seu amor, tão constante e tão desinteressado, ao qual a frieza e a
dureza de Abelardo emprestam um novo brilho. Comparemos a linguagem dos dois amantes:

“Fulbert”, diz Abelardo, “a entregou sem reservas à minha direção a fim de que, no meu retorno das escolas, eu me
ocupasse de instruí-la e que, se eu a achasse negligente, a castigasse severamente. Não era isso dar plena licença aos meus
desejos? de sorte que, se eu não fosse bem sucedido pelas carícias, a isso poderia chegar pelas ameaças e tapas”[611].

Esta covarde brutalidade de um pedante do século XII apresenta um estranho contraste com a exaltação e o desinteresse
dos sentimentos expressos por Heloísa: “Deus o sabe! em ti, eu não procurava senão tu! nada de algo de ti, mas tu mesmo, tal
foi o único objeto de meu desejo. Eu não ambicionava nula vantagem, nem mesmo os laços do himeneu (NT: deus grego do
casamento e, por assimilação, o próprio matrimônio); eu não sonhava, tu não o ignoras, em satisfazer nem as minhas
vontades, nem as minhas volúpias, mas as tuas, e a elas somente. Se o nome de esposa é mais santo, eu achava mais doce
aquele de tua amante, aquele de (não te irrites) tua concubina (concubinæ vel scorti – concubina ou prostituta). Mais eu me
humilhava por ti, mais esperava ganhar no teu coração[612]. Sim! se o senhor do mundo, se o Imperador, tivesse desejado me
honrar com o nome de esposa, eu teria preferido ser chamada tua meretriz à esposa e imperatriz dele (tua dici meretrix, quàm
illius imperatrix)[613]”. Ela explica, de uma maneira singular, porque recusou, por tanto tempo, casar-se e ser a mulher de
Abelardo: “Não seria coisa má e deplorável que, aquele a quem a natureza criou para todos, uma mulher dele se apropriasse e
o tomasse apenas para si?... Qual espírito tendente às meditações da filosofia ou das coisas sacras suportaria os gritos das
crianças, as tagarelices das babás, a perturbação e o tumulto dos servidores e das servidoras?[614]”.

A só forma das cartas de Abelardo e de Heloísa indica o quão pouco a paixão de Heloísa obtinha de retorno. Ele divide
e subdivide as cartas de sua amante; a elas responde com método e por capítulos. Ele intitula as suas: “À esposa de Cristo,
escrava de Cristo”. Ou, ainda: “À minha cara irmã em Cristo, de Abelardo, seu irmão em Cristo”[615]. O tom de Heloísa é
outro: “De Heloísa a seu senhor, não!, a seu pai; a seu marido, não!, a seu irmão; de sua serva, de sua esposa, não!, de sua
filha, de sua irmã; à Abelardo, de Heloísa”[616]. A paixão extrai de Heloísa palavras que igualmente ignoram a reserva
religiosa do século XII: “Em toda situação da minha vida (Deus sabe!), eu temo te ofender mais que ao próprio Deus; eu
desejo te agradar mais que a Ele. É a tua vontade, e não o amor divino, que me conduziu a vestir o hábito religioso[617]”. Ela
repetiu essas estranhas palavras até mesmo no altar. No momento de tomar o véu, ela pronunciou os versos de Cornélia em
Lucano: “Ó, maior dos homens, ó, meu marido, tão digno de um himeneu mais nobre! Era necessário que a insolente
fortuna tivesse feito mais por esta cabeça ilustre? É meu crime, eu te desposei para tua ruína! Eu, ao menos, o expiarei!
Aceita esta imolação voluntária!”[618]

Este ideal de amor puro e desinteressado, Abelardo, antes dos místicos, antes de Fénélon, o havia colocado nos seus
escritos como o fim da alma religiosa[619]. A mulher ergueu-se, pela primeira vez, nos escritos de Heloísa, relacionando-a
ainda, é verdade, ao homem, ao seu marido, ao seu deus visível. Heloísa reviveria, sob uma forma espiritual, em Santa
Catarina e Santa Teresa, as quais escolheram, mais no alto, seus maridos.

A restauração da mulher, que começara com o cristianismo, teve lugar, principalmente, no século XII. Escrava no
Oriente, ainda trancada no gineceu grego, emancipada pela jurisprudência imperial, ela foi reconhecida como igual ao homem
pela nova religião. Todavia, o Cristianismo, mal libertado da sensualidade pagã, sempre temia a mulher e dela desconfiava.
Ele se conhecia fraco e terno. Ele a repelia tanto mais simpatizasse, de coração, com ela. Daí, essas expressões duras,
desprezantes mesmo, pelas quais ele se esforçava em precaver-se. A mulher é comumente designada pelos escritores
eclesiásticos e nos capitulares por essa expressão degradante, mas profunda: Vas infirmius (o vaso fraco). Quando Gregório
VII quis libertar o clero de seu duplo liame, a mulher e a terra, houve um novo ímpeto contra esta perigosa Eva, cuja sedução
fez Adão perder-se e que sempre o persegue em seus filhos.

Um movimento bem contrário começou no século XII. O livre misticismo encarregou-se de reerguer o que a dureza
sacerdotal arrastara na lama. Foi sobretudo um Bretão, Roberto d’Arbrissel, quem cumpriu esta missão de amor. Ele reabriu
às mulheres o seio do Cristo, fundou asilos para elas, construiu-lhes Fontevraud e logo houve, para toda a cristandade, outras
Fontevrauds[620]. A venturosa caridade de Roberto dirigia-se preferencialmente às grandes pecadoras; ele pregava, nos mais
detestáveis e repulsivos lugares, a clemência de Deus, sua incomensurável misericórdia. “Um dia em que veio a Rouen, ele
entrou num lupanar e sentou-se à entrada do lugar para esquentar os pés. As meretrizes o cercaram, pensando que ele viera
para fornicar. Mas ele pregou as palavras da vida e prometeu a misericórdia de Cristo. Então, aquela que comandava as outras
perguntou-lhe: ‘Quem és tu que dizes tais coisas? Tem por certo que já fazem vinte anos que entrei nesta casa para cometer
crimes e que jamais veio alguém aqui que falasse de Deus e de Sua bondade. Se, entretanto, eu soubesse que essas coisas
fossem verdadeiras!...’. No mesmo instante, ele as fez sair da cidade, as conduziu cheio de alegria ao deserto e lá, tendo-lhes
feito cumprir penitência, fê-las passar do demônio ao Cristo”[621].

Era uma coisa bizarra ver o bem-aventurado Roberto d’Arbrissel ensinar à noite e de dia, no meio de uma multidão de
discípulos dos dois sexos que repousavam juntos, à sua volta[622]. As zombarias amargas de seus inimigos, as próprias
desordens às quais essas reuniões (dos inimigos) davam lugar, nada afastava o caridoso e corajoso Bretão. Ele cobria tudo
com o largo manto da Graça.

A Graça prevalecendo sobre a lei, fez-se, insensivelmente, uma grande revolução religiosa. Deus mudou de sexo, por
assim dizer. A Virgem tornou-se o deus do mundo; ela invadiu quase todos os templos e altares. A piedade transformou-se em
entusiasmo de galanteria cavaleiresca. A mãe de Deus foi proclamada pura e sem nódoas. A igreja mística de Lyon celebrou a
festa da imaculada conceição em 1134[623], exaltando, assim, o ideal da pureza maternal, precisamente na época onde
Heloísa expressava, em suas famosas cartas, o puro desinteresse do amor.

A mulher reinou no Céu, a mulher reinou na Terra. Nós a vemos intervir nas coisas desse mundo e dirigi-las. Bertrade de
Montfort governa, a cada vez, seu primeiro marido Foulques d’Anjou, e o segundo, Filipe I, rei da França. O primeiro,
expulso de seu leito, encontra-se muito feliz de poder se sentar sobre o banco de seus pés[624]. Luís VII data seus atos da
coroação de sua mulher Adèle[625]. As mulheres, juízas naturais dos combates de poesia das cortes d’amor, comparecem
também como juízas, iguais de seus maridos, aos negócios sérios. O rei da França reconhece expressamente esse direito[626].
Veremos Alice (Alix) de Montmorencey conduzir um exército para seu marido, o famoso Simão (Simon) de Montfort.

Excluídas, até então, das sucessões pela barbárie feudal, as mulheres ingressam em tudo na primeira metade do décimo-
segundo século: na Inglaterra, em Castela, em Aragão, em Jerusalém, na Borgonha, em Flandres, em Hainaut, no Vermandois,
na Aquitânia, Provença e baixo Languedoc. A rápida extinção dos machos, a suavização dos costumes e o progresso da
equidade, reabrem as heranças às mulheres. Elas carregam consigo as soberanias nas casas estrangeiras; elas misturam o
mundo, elas aceleram a aglomeração dos estados e preparam a centralização das grandes monarquias.
Uma apenas, entre as Casas reais, aquela dos Capetos, não reconhece, de forma alguma, o direito das mulheres; ela
permaneceu ao abrigo das mutações que transferiam os outros estados de uma dinastia à uma outra. Ela recebeu e nada deu.
Rainhas estrangeiras puderam vir; o elemento feminino, o elemento móvel, pode aí se renovar; o elemento masculino, para esta
Casa, não vem, nunca, de fora e permanece o mesmo e, com ele, a identidade de espírito, a perpetuidade das tradições[627].
Esta rigidez da dinastia é uma das coisas que mais contribuíram para garantir a unidade, a personalidade de nossa pátria
móvel.

O caráter comum do período que seguiu à Cruzada, e que vimos de percorrer neste capítulo, é uma tentativa de
libertação. A Cruzada, em seu movimento imenso, fora uma ocasião, uma impulsão. A ocasião, tendo se apresentado, a
tentativa teve lugar: libertação do povo nas comunas, libertação da mulher, libertação da filosofia, do puro pensamento. Esse
ribombar da Cruzada, assim como a própria Cruzada, deveria ter todo seu poder e todo seu efeito na França, entre os mais
sociável dos povos.
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Capítulo V
O Rei da França e o Rei da Inglaterra. Luís o Jovem e Henrique II (Plantageneta) – Segunda Cruzada, humilhação de
Luís – Thomas Becket, humilhação de Henrique (segunda metade do século XII).

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A oposição entre a França e a Inglaterra, iniciada com Guilherme o Conquistador, no meio do século XI, não atingiu toda
sua violência senão no século seguinte, sob os reinados de Luís o Jovem e de Henrique II, de Filipe Augusto e de Ricardo
Coração de Leão. Ela teve sua catástrofe por volta de 1200, na época da humilhação de João e do confisco da Normandia. A
França manteve a proeminência por um século e meio (1200-1346).

Se a sorte dos povos dependesse dos soberanos, não há dúvidas que os reis ingleses teriam vencido. Todos, desde
Guilherme o Bastardo até Ricardo Coração de Leão, foram heróis, ao menos de acordo com os conceitos do mundo. Os heróis
foram batidos; os pacíficos venceram. Para explicar isso, é preciso penetrar no verdadeiro caráter do rei da França e do rei da
Inglaterra, tais como aparecem no aspecto coletivo da Idade Média.

O primeiro, suzerano do segundo, conserva, geralmente, uma certa majestade imóvel[628]. Ele é calmo e insignificante
em comparação com seu rival. Com exceção das pequenas guerras de Luís o Gordo e a triste cruzada de Luís VII, que iremos
relatar, o rei da França parece enfurnado na sua ermida; ele rege o rei da Inglaterra como seu vassalo e seu filho; filho
desnaturado que bate seu pai. O descendente de Guilherme o Conquistador, não importa quem seja, é um homem vermelho,
cabelos louros avermelhados ou ruços, ventre gordo, bravo e ávido, sensual e feroz, glutão e escarnecedor, cercado de gente
má, roubando e estuprando, em péssimas relações com a igreja[629]. É preciso dizer, porém, que ele não tinha o bom tempo
do rei da França. Ele tem muitos assuntos graves: ele governa, a golpes de lança, três ou quatro povos cujas línguas não
compreende. É preciso que ele contenha os Saxões pelos Normandos e os Normandos pelos Saxões, que ele empurre, para as
montanhas, os Galeses e os Escoceses. Durante esse tempo, o rei da França pode, de sua poltrona, jogar-lhe mais de uma
partida. De início, ele é seu suzerano; também é o filho primogênito da Igreja, filho legítimo; o outro é o bastardo, o filho da
violência. São como Ismael e Isaac. O rei da França tem a lei por si, “o freio enferrujado dessa antiqualha que se chama
lei[630]”. O outro zomba dele e dela; ele é forte, ele é chicaneiro, em sua qualidade de Normando. Neste grande Mistério do
século XII, o rei da França encena o personagem do bom Deus e, o outro, o do Diabo. Sua lenda genealógica o faz remontar a
Roberto o Diabo, de um lado e, do outro, à fada Melusina[631]. “É o costume na nossa família”, dizia Ricardo Coração de
Leão, “que os filhos odeiem o pai; do diabo viemos, ao diabo retornaremos”[632]. Paciência... o rei do bom Deus terá sua
chance. Ele sofrerá muito, sem dúvida; ele nasceu aprendendo a endurecer: o rei da Inglaterra pode roubar-lhe sua mulher e
suas províncias[633]; mas ele recuperará tudo, um dia. Suas garras crescem sob a pele de arminho de seu manto. O santo
homem logo será Filipe Augusto ou, como o conhecemos melhor, Filipe o Belo.

Há, nesta pálida e medíocre figura, uma força imensa que deve se desenvolver. É o rei da igreja e da burguesa, o rei do
povo e da lei. Neste sentido, ele TEM o direito divino. Sua força não brilha pelo heroísmo; ela cresce como uma vegetação
poderosa, numa progressão contínua, lenta e fatal, como a natureza. Expressão geral de uma diversidade imensa, símbolo de
toda uma nação, mais ele a representa, mais ele parece insignificante. A personalidade é fraca nele; ele é menos um homem
que uma idéia; ser impessoal, ele vive na universalidade, no povo, na igreja, filha do povo; é um personagem profundamente
católico no sentido etimológico da palavra.

O bom rei Dagoberto, Luís o Debonário, Roberto o Piedoso, Luís o Jovem, São Luís, são os tipos desse rei honesto.
Todos verdadeiros santos, embora a Igreja não tenha canonizado senão o último[634], o que foi poderoso. O escrupuloso Luís
o Jovem já é São Luís, mas menos feliz e mais ridículo por seus infortúnios políticos e conjugais. A mulher ocupa um grande
lugar na história desses reis e, sob esse ponto de vista, elas são homens. Nelas, a natureza é forte e elas são quase a única
razão pela qual eles, às vezes, se colocam em má situação com a igreja; Luís o Debonário por sua Judite, Lotário II por
Valdrade, Roberto pela rainha Berta, Filipe I por Bertrade, Filipe Augusto por Agnès de Méranie. Em São Luís, forma
purificada da realeza na Idade Média, o domínio da mulher é aquele de uma mãe, de Branca de Castela. Sabe-se que ele se
escondia num armário quando sua mãe, a altiva Espanhola, o surpreendia com sua mulher, a boa Margarida.

Luís o Gordo, sobre seu leito de morte, recebeu o preço dessa reputação de honestidade que adquirira para sua família.
O mais rico soberano da França, o conde de Poitiers e da Aquitânia, que também se sentia morrer, não acreditava poder
colocar em melhor local a sua filha Eleonora e seus vastos estados senão dando-os ao jovem Luís VII, que logo sucedeu a seu
pai (1137). Também, sem dúvida, ele não se ofendia em fazer de sua filha uma rainha. O jovem rei fora educado bem
devotamente no claustro de Notre-Dame[635]; era uma criança sem qualquer maldade e muito ligado aos padres; o verdadeiro
rei foi seu preceptor, Suger, abade de Saint-Denis [636]. No início, entretanto, a expansão de seus estados, que se encontraram
quase triplicados por seu casamento, parece ter enchido seu coração de soberba. Ele tentou fazer valer os direitos de sua
mulher sobre o condado de Toulouse. Mas seus melhores amigos entre os barões, o próprio conde de Champagne, recusaram-
se a segui-lo nesta conquista do sul. Ao mesmo tempo, o Papa Inocente II, acreditando poder ousar sob o reinado desse
piedoso jovem rei, arriscara-se nomear seu sobrinho para o arcebispado de Bourges, metrópole das Aquitânias. São Bernardo
e Pedro o Venerável reclamaram, em vão, contra esta usurpação. O sobrinho do Papa refugiou-se nas terras do conde de
Champagne, cuja irmã vinha de ser repudiada por um primo de Luís VII. Luís e seu primo, anatemizados pelo Papa, vingaram-
se sobre o conde de Champagne, devastando suas terras e queimando o burgo de Vitry. As chamas ganharam, infelizmente, a
principal igreja, onde a maior parte dos habitantes se refugiara. Eles eram cerca de mil e trezentos, homens, mulheres e
crianças[637]. Logo seus gritos foram ouvidos; o próprio vencedor não podia salvá-los, todos que ali estavam pereceram.

Esse terrível evento partiu o coração do rei. Ele tornou-se, imediatamente, dócil ao Papa, reconciliou-se com ele a
qualquer preço. Mas sua consciência estava dividida entre escrúpulos diversos. Ele jurara jamais permitir que o sobrinho de
Inocente ocupasse a sé de Bourges. O pontífice exigira que ele renunciasse a esse juramento; e Luís arrependia-se de ter feito
um juramento ímpio e de não tê-lo observado. A absolvição papal não bastava para tranquilizá-lo. Ele se acreditava culpado
de todos os sacrilégios cometidos durante os três anos que durara o interdito papal. No meio dessas agitações de uma alma
timorata, ele soube do pavoroso massacre de toda a comunidade cristã de Edessa, a qual fora degolada em uma única
noite[638]. Queixas lamentáveis chegavam, todos os dias, dos Franceses do ultramar. Eles declaravam que, se não fossem
socorridos, nada mais podiam aguardar senão a morte. Luís VII emocionou-se; ele acreditava estar ainda mais obrigado a ir ao
socorro da Terra Santa, uma vez que seu irmão primogênigo, morto antes de Luís o Gordo, tomara a cruz e deixara-lhe o trono,
parecendo, portanto, ter-lhe transmitido a obrigação de honrar o voto que a morte o impedira de cumprir (1147).

Como esta Cruzada foi diferente da primeira, é coisa evidente, ainda que os contemporâneos tenham tentado, de forma
emuladora, dissimulá-la. A idéia da religião, da salvação eterna, não estava mais vinculada a uma cidade, a um lugar. Vira-se,
de perto, Jerusalém e o Santo Sepulcro. Passou-se a duvidar que a religião e a santidade estivessem encerrados nesse pequeno
canto de terra que se estende entre o Líbano, o deserto e o Mar Morto. O ponto de vista materialista, que localizava a religião,
perdera seu império. Suger tentou, em vão, desviar o rei da Cruzada[639]. O próprio São Bernardo, que a pregara em Vézelay
e na Alemanha, não estava convencido que ela fosse necessária à salvação. Ele recusou-se de a ela se juntar e conduzi-la, tal
como lhe era pedido[640]. Não houve, desta vez, o imenso arrebatamento da primeira cruzada. São Bernardo exagera
visivelmente quando nos diz que, para sete mulheres, restava apenas um homem[641]. Na verdade, avalia-se em duzentos mil
homens os corpos de exércitos que desceram o Danúbio sob a condução do imperador Conrado e do rei Luís VII[642]. Os
Alemães estavam em grande número desta vez. Mas uma multidão de príncipes que sustentava o Império, os bispos de Toul e
de Metz, os condes da Sabóia e de Montferrat, todos os senhores do reino de Arles, reuniram-se, de preferência, ao exército
da França. Neste aqui, marchavam, sob o rei da França, os condes de Toulouse, de Flandres, de Blois, de Nevers, de Dreux,
os senhores de Bourbon, de Coucy, de Lusignan, de Courtenay, e muitos outros. Via-se, também, a rainha Eleonora, cuja
presença fosse talvez necessária para assegurar a obediência de seus Poitevinos e Gascões. É, na história, a primeira vez que
uma mulher teve esta importância.

O mais sábio teria sido fazer a rota por mar, como aconselhava o rei da Sicília. Mas o caminho de terra estava
consagrado pela memória da primeira cruzada e pelo rastro de tantos mártires. Era, também, o único que poderia tomar a
multidão de pobres que, sob a proteção do exército, desejava visitar os lugares santos. O rei da França preferiu esta rota. Ele
se assegurara com o rei da Sicília, com o imperador Conrado da Alemanha, com o rei da Hungria e com o imperador de
Constantinopla, Manuel Comneno. O parentesco entre os dois imperadores, Manuel e Conrado, parecia prometer algum
sucesso à segunda cruzada. Assim, a expedição não foi feita às cegas. Luís esforçou-se para conservar alguma disciplina no
exército da França[643]. Os Alemães, sob o imperador Conrado e seu sobrinho, já haviam partido; nada igualava-se à sua
impaciência e à sua brutal impulsividade. O imperador Manuel Comneno, cujas vitórias haviam restaurado o império grego,
serviu-lhes a esse propósito: ele apressou-se em lançar esses bárbaros além-Bósforo, na Ásia, pelo caminho mais curto,
porém mais montanhoso, aquele da Frígia e do Icônio (NT: Iconium, atual cidade de Konya, na Turquia, na região da
Anatólia central). Aí, eles tiveram ocasião de gastar seu borbulhante ardor. Esses pesados soldados foram logo esgotados
nessas montanhas, nessas escarpas rápidas onde a cavalaria turca voltejava, aparecendo logo ao lado deles, logo à sua frente.
Eles pereceram sob grande zombaria dos Gregos e dos próprios Franceses. Vá, Alemão, vá!, estes últimos gritavam. Foi um
historiador grego quem nos conservou estas duas palavras, sem as traduzir[644].

Os próprios Franceses não foram mais felizes. Eles seguiram, de início, a longa e fácil rota das bordas da Ásia Menor.
Mas, à força de seguir suas sinuosidades, eles perderam a paciência e enfurnaram-se, também, no interior da região e aí
provaram os mesmos desastres. Inicialmente, a cabeça do exército, tendo se distanciado, corria o risco de ser cortada. Cada
dia, o rei, devidamente confessado e recomendado, lançava-se através da cavalaria turca[645]. Mas nada era bem sucedido. O
exército teria perecido nessas montanhas sem um cavaleiro chamado Gilberto, a quem o comando foi entregue como o mais
digno, e a respeito de quem não sabemos, infelizmente, qualquer detalhe[646]. Os cruzados acusavam, como causa de seus
males, a perfídia dos Gregos que lhes forneciam péssimos guias e vendiam-lhes, a peso de ouro, os víveres que Manuel se
comprometera fornecer. O próprio historiador Nicetas confessa que o Imperador traía os cruzados[647]. A coisa tornou-se
visível quandos eles chegaram à Antioqueta (NT: Antiochia ad Cragnum, atual cidade de Güney na província de Anatólia) e
viram que os Gregos que ocupavam esta cidade haviam recebido os Turcos fugitivos (Odo de Diog., l. VII). Entretanto, Luís se
conduzira lealmente com Manuel. A exemplo de Godofredo de Bouillon, ele recusara-se a escutar aqueles que o
aconselhavam, em sua passagem, a dominar e tomar Constantinopla (Odo de Diog, l. VII, p. 48).

Enfim, eles chegaram à Satália, no golfo de Chipre. Contornando o golfo, quarenta dias de marcha por terra até
Antióquia ainda os aguardavam. Mas a paciêcia e o zelo dos barões estavam por uma gota. Foi impossível ao rei segurá-los.
Eles declararam que iriam por mar à Antióquia. Os Gregos forneceram navios a todos aqueles que podiam pagar. O resto foi
abandonado sob a guarda do conde de Flandres, do Senhor de Bourbon e de um corpo de cavalaria grega que o rei alugou para
protegê-los (Odo de Diog., p. 71). Ele deu, em seguida, tudo o que lhe restava a essas pobres pessoas e embarcou com
Eleonora. Mas os Gregos, que deviam defendê-los, abandonaram-nos ou os reduziram à escravidão; aqueles que escaparam
deveram sua liberdade ao proselitismo dos Turcos que os obrigaram a abraçar o islamismo (Odo de Diog., 71-76).

Tal foi o vergonhoso fim dessa grande expedição. Aqueles que embarcaram formavam, entretanto, a força real do
exército. Eles podiam ser de grande utilidade aos cristãos da Antióquia ou da Terra Santa. Mas a vergonha pesava sobre eles,
bem assim a lembrança dos desgraçados que eles tinham abandonado na Cilícia. Luís VII nada desejava fazer a favor do
príncipe de Antióquia, Raimundo de Poitiers, tio de sua mulher Eleonora. Era o mais belo homem da época e sua sobrinha se
parecia muito com ele. Luís, temeroso de que ele desejasse retê-la, partiu bruscamente de Antióquia e dirigiu-se à Terra Santa,
onde nada fez de importante. Conrado veio encontrá-lo. A rivalidade de ambos resultou no fracasso do cerco de Damasco que
haviam organizado. Eles retornaram vergonhosamente para a Europa e o rumor correu que Luís, prisioneiro durante algum
tempo dos navios gregos, não fora libertado senão pela ação de uma frota dos Normandos da Sicília (Joann. Cinnam., l. II, c.
19. Vide Sism., p. 355, nota).

Era uma coisa triste um tal retorno, e um escárnio. O que haviam se tornado esses milhares de cristãos? abandonados,
livrados aos infiéis. Tanta leviandade e sofrimento ao mesmo tempo! Todos os barões eram culpados, mas a vergonha foi para
o rei. Ele, sozinho, carregou o pecado. Durante a cruzada, a orgulhosa e violenta Eleonora mostrara o pouco caso que fazia de
um tal esposo. Ela declarava, desde Antióquia, que não poderia permanecer como mulher de um homem do qual era parente
(Guill. Nangii chron., ap. Scr. fr. XIII, 737) ; que, além disso, ela não desejava um monge por marido[648]. Conta-se que ela
amava Raimundo de Antióquia; segundo outros, um belo escravo sarraceno. Dizia-se que ela recebera presentes do chefe dos
infiéis[649]. No retorno, ela pediu o divórcio ao concílio de Beaugency. Luís submeteu-se ao julgamento do concílio e perdeu,
de um só golpe, as vastas províncias que Eleonora trouxera à coroa da França. Eis o sul da França, mais uma vez, isolado do
norte. Uma mulher vai levar a quem ela quiser a preponderância do Ocidente.

Aparentemente, a dama assegurara-se de avanço de um outro esposo. O divórcio foi pronunciado no dia 18 de março;
desde o Pentecostes, Henrique Plantageneta, duque de Anjou, neto de Guilherme o Conquistador, duque da Normandia, logo
rei da Inglaterra, desposara Eleonora e, com ela, a França ocidental, de Nantes aos Pirineus. Antes mesmo de tornar-se rei da
Inglaterra, seus estados eram duas vezes mais extensos que aqueles do rei da França. Na Inglaterra, ele não tardou a
prevalecer sobre Estevão (Étienne) de Blois[650], cujo filho se casara com uma irmã de Luís VII (Chronic. Turon, ap. Scr.
fr., XII, 468). Assim, tudo virava contra este último, tudo era bem sucedido a seu rival.

É preciso saber um pouco o que era esta monarquia da Inglaterra, cuja rivalidade com a França vai nos ocupar.

A espoliação de todo um povo, eis a base hedionda do poderio anglo-normando. Esta vida de ladroagem e de violência,
que cada barão exercia a varejo, nas cercanias de sua mansão, reproduzia-se, no atacado, do outro lado do canal. Aí, o servo
foi todo um povo e a servidão se aproximou, em horror, da escravidão antiga ou daquela de nossas colônias. Nula ligação
entre os vencidos e os vencedores; outra língua, outra raça; o hábito de tudo poder, uma execrável ferocidade, nulo respeito
humano, nulo freio legal; em todo lugar, senhores quase iguais do rei, companheiros de sua conquista; apenas o conde Moreton
possuía mais de seiscentos feudos[651]. Esses barões muito desejavam chamar-se de homens do rei. Mas este último não era
senão o primeiro dentre eles. Nas grandes ocasiões, eles tornavam-se os juízes desse rei. Entretanto, eles teriam arriscado
muito para serem independentes. Pouco numerosos entre um povo imenso a quem esmagavam brutalmente, eles tinham
necessidade de um centro ao qual pudessem recorrer em caso de revolta, de um chefe que pudesse congregar, que
representasse a pátria normanda ao meio da conquista. Eis o que explica porque a ordem feudal foi tão forte no próprio país
onde os vassalos mais poderosos deviam ser os mais tentados a desprezá-la.

A posição desse rei da conquista era extraordinariamente crítica e violenta. Esta sociedade nova, construída com
assassinatos e rapinas, se sustentava por ele; ela extraía sua unidade dele, a quem era dirigido esse surdo concerto de
maldições, de imprecações a vozes baixas. Era para ele que o banido saxão na Floresta Nova, onde era perseguido pelo
sheriff , guardava sua melhor flecha[652]; as florestas nada valiam para os reis normandos. Era contra ele, tanto quanto contra
os Saxões, que o barão mandava construir esses gigantescos castelos cuja insolente beleza ainda atesta quão pouco era
estimado o suor do homem. Esse rei tão odiado não podia deixar de ser um tirano. Aos Saxões, ele lançava leis horríveis, sem
medida e sem piedade (vide Thierry, Conq. de l’Angl., III, p. 269, 337 e segs.). Contra os Normandos, eram necessárias
maiores precauções: ele chamava, sem cessar, mercenários do continente, Flamengos, Bretões, gente dele, e ainda mais
temíveis para a aristocracia normanda porque o dialeto dos Flamengos os aproximava dos Saxões e o dos Bretões aos
Galeses. Várias vezes, ele não hesitou servir-se dos próprios Saxões[653]. Mas ele logo desistiu disso pois não podia tornar-
se rei dos Saxões senão pela destruição da obra da conquista.

Eis, portanto, a situação na qual já se encontra Guilherme o Ruivo, o filho do Conquistador. Fervente de uma tirania
impaciente que encontrava, em qualquer lugar, seu limite; terrível aos Saxões, terrível aos barões; passando e repassando o
mar; correndo, de um lado a outro de seus estados, com a dureza do javali; furioso de avidez e, como disse o cronista,
maravilhoso mercador de soldados[654]. Destruidor rápido de toda riqueza; inimigo da humanidade, da lei, da natureza,
ultrajante à vontade; imundo nas volúpias, assassino, escarnecedor e terrível. Quando a cólera subia a seu rosto rubro e
eritematoso, sua palavra se engrolava, ele gaguejava decretos de morte (Lingard, II, 168). Desgraça a quem se encontrasse em
sua frente!

Toneladas de ouro passavam por suas mãos como se fossem shillings. Ele era presa de uma pobreza incurável; pobre
com toda sua paixão, com toda sua violência. Era necessário pagar o prazer, pagar o assassinato. O homem engenhoso e
inventivo, que sabia encontrar o ouro, era um certo sacerdote que se fizera inicialmente conhecer como delator. Este homem
tornou-se o braço direito de Guilherme, seu provedor. Mas era um rude compromisso encher esse saco sem fundo. Para isso,
ele engendrou duas coisas: refez o Doomesday Book, revendo e corrigindo o livro da conquista, assegurando-se que nada
houvera escapado[655]. Ele retomou a espoliação desde os alicerces, pôs-se a roer os ossos já roídos e deles soube tirar
ainda alguma coisa. Mas, após isso, nada mais restava. Tal homem fora batizado com o nome de Flambardus[656]. Dos
vencidos, passou aos vencedores, inicialmente aos padres; ele pôs as mãos sobre os bens da igreja. O arcebispo de
Canterbury morreria de fome sem a caridade do abade de Santo Albano (Brompt., p. 988. Eadm. p. 20. Lingard, II, 158) . Os
escrúpulos não paravam Flambardo. Grande justiceiro, grande tesoureiro, também capelão do rei (era o capelão que faltava à
Guilherme), ele sugava a Inglaterra por três bocas. E assim ele ia até o momento em que Guilherme o Ruivo encontrou seu fim
nesta bela floresta que o Conquistador parecia ter plantado para a ruína dos seus. “Atire, então, pelo diabo!”, disse o rei
Ruivo ao seu bom amigo que caçava consigo. O diabo tomou a palavra ao pé da letra e carregou esta alma que lhe era bem
devida[657].

O sucessor não foi o irmão primogênito Roberto (NT: o “Bota-Curta, Courtheuse). A monarquia do bastardo Guiherme
deveria passar ao mais hábil, ao mais ousado. Este reino roubado pertencia a quem o roubasse. Quando o Conquistador,
expirando, deu a Normandia para Roberto e a Inglaterra para Guilherme: “E eu”, disse Henrique, o mais jovem, “e eu, então,
nada terei?”. – “Paciência, meu filho”, disse o agonizante, “tudo virá a ti, cedo ou tarde”[658]. O mais jovem era também o
mais sábio. Era chamado de Beauclerc (NT: ‘bom-clérigo’), como para dizer “hábil”, “suficiente”, “escriba”, o verdadeiro
Normando. Ele começou por prometer tudo aos Saxões e à gente da igreja; ele deu, por escrito, cartas, liberdades, tudo aquilo
que se desejava[659]. Ele derrotou seu irmão Roberto com soldados mercenários, o capturou e o aprisionou bem alojado, bem
alimentado, num castelo forte, onde viveu até os oitenta e quatro anos. Roberto, que não amava senão a mesa, teria se
consolado com esse destino se não fosse o fato de seu irmão ter mandado vazaram-lhe os olhos[660]. De resto, o fratricídio e
o parricídio eram o costume hereditário desta família. Já o filho do Conquistador combatera e ferira seu pai[661]. Sob
pretexto de justiça feudal, Henrique Beauclerc, que se importava em ser bom e rude justiceiro, entregou suas próprias netas,
duas crianças, a um barão que lhes arrancou os olhos e o nariz. A mãe de ambas, filha de Beauclerc, tentou vingá-las atirando,
ela mesma, uma flecha contra o peito de seu pai[662]. Os Plantagenetas que descendiam desta raça diabólica pelo lado
maternal, disso não degeneraram.

Após Beauclerc (1125), a luta foi entre seu sobrinho, Estevão (Étienne ou Stephen) de Blois e sua filha Matilde, viúva
do imperador Henrique V e mulher do Conde de Anjou. Estevão pertencia a essa excelente família dos condes de Blois e de
Champagne que, na mesma época, encorajava as comunas comerciantes, dividia o Sena, na altura de Troyes, em canais, e
protegia igualmente São Bernardo e Abelardo. Livres pensadores e poetas, é deles que descenderá o famoso Teobaldo
(Thibaut), o trovador, aquele que mandou pintar seus versos para a rainha Branca, em seu palácio de Provins, ao meio das
rosas transplantadas de Jericó[663]. Estevão não podia se sustentar na Inglaterra senão com o apoio dos estrangeiros,
Flamengos, Brabanções, mesmo os Gaélicos. Ele não tinha por si senão o clero e Londres. As outras comunas da Inglaterra
ainda estavam para nascer. Quanto ao clero, Estevão não ficou bem com o mesmo por muito tempo. Ele proibiu o ensino do
direito canônico (Joann. Saresheriens. Policratic., ap. Lingard, II, 341) e ousou aprisionar os bispos. Então, Matilde
reapareceu. Ela desembarcou quase só, verdadeira filha do Conquistador, insolente, intrépida, ela chocou todo mundo e
afrontou todo mundo. Três vezes ela fugiu à noite, à pé sobre a neve e sem recursos. Estevão, uma vez que a teve sob cerco,
acreditou, como cavaleiro, dever abrir uma passagem para sua inimiga e deixá-la reencontrar os seus (Guill. Malmsbur., ap.
Lingard, II, 277). Ela não o tratou melhor quando, de sua vez, o pegou, abandonado por seus barões (1153). Ele foi
constrangido a reconhecer por seu sucessor esse feliz Henrique Plantageneta, conde de Anjou e filho de Matilde, a quem
vimos Eleonora da Guiana entregar sua mão e seus estados.

Tamanha era a grandeza crescente do jovem Henrique, quando o rei da França, humilhado pela cruzada, perdeu Eleonora
e tão vastas províncias. Aquela criança mimada pela fortuna foi, em poucos anos, destruída pela quantidade de dotes que ela
lhe fizera. Rei da Inglaterra, senhor de todo o litoral da França, desde Flandres até os Pirineus, ele exerceu sobre a Bretanha
esta suzerania que os duques da Normandia sempre haviam reclamado em vão. Ele tomou o Anjou, o Maine e a Turânia de seu
irmão e permitiu, a título de indenização, que ele se tornasse duque da Bretanha (1156). Ele submeteu a Gasconha, governou
Flandres como tutor e guardião na ausência do conde. Ele tomou o Quercy ao conde de Toulouse e teria pego a própria cidade
de Toulouse, se o rei da França não tivesse se lançado para dentro dela a fim de defendê-la (1159 – Hist. du Languedoc, l.
XVIII, p. 484). O Toulousense foi, ao menos, obrigado a prestar-lhe homenagem. Aliado do rei de Aragão, conde de
Barcelona e da Provença, Henrique desejava uma princesa da Savóia para um de seus filhos com o objetivo de colocar um pé
nos Alpes e, assim, contornar a França pelo sul. No centro, ele reduziu o Berry, o Limousin, a Auvérnia e comprou a
Marche[664]. Ele conseguiu, mesmo, desfazer a aliança dos condes de Champagne com o rei da França. Enfim, quando
morreu, ele possuía as regiões que correspondem a quarenta e sete dos nossos departamentos, enquanto o rei da França não
possuía vinte (vide Sismondi, VI, 4).

Desde seu nascimento, Henrique II vira-se cercado por uma popularidade singular sem nada ter feito para merecê-la.
Seu avô, Henrique Beauclerc, era Normando, sua avó Saxã, seu pai Angevino. Ele reunia em si todas as raças ocidentais. Ele
era o nó de ligação dos vencedores e dos vencidos, do sul e do norte. Os vencidos, sobretudo, nutriam uma grande esperança,
pois acreditavam ver nele o cumprimento da profecia de Merlin e a ressurreição de Artur. Ocorreu mesmo, para melhor apoio
da profecia, que ele obteve, voluntária ou forçadamente, a homenagem dos príncipes da Escócia, da Irlanda, de Gales e da
Bretanha, quer dizer, de todo o mundo céltico. Ele mandou procurar e encontrar o túmulo de Artur, esse misterioso túmulo cuja
descoberta devia marcar o fim da independência céltica e a consumação dos tempos[665].

Tudo anunciava que o novo príncipe corresponderia às esperanças dos vencidos. Ele fora educado em Angers, uma das
cidades da Europa onde a jurisprudência fora ensinada desde muito cedo. Era a época da ressurreição do direito romano que,
sob vários aspectos, devia ser aquela do poder monárquico e da igualdade civil. A igualdade sob um senhor era a última
palavra que o mundo antigo nos legara. No ano 1111, a famosa condessa Matilde, amiga de Gregório VII, havia autorizado o
funcionamento da escola de Bolonha, fundada pelo bolonhês Irnério[666]. O imperador Henrique V confirmara esta
autorização sentindo todo o partido que o poder imperial poderia tirar das tradições do antigo Império Romano. O jovem
duque de Anjou, Henrique Plantageneta, filho da normanda Matilde, viúva deste mesmo imperador Henrique V, encontrou em
Angers, em Rouen, na Inglaterra, as tradições da escola de Bolonha. Desde o ano 1124, o bispo de Angers era um sábio
jurista[667]. O famoso italiano Lanfranc, o homem de Guilherme o Conquistador, o primaz da conquista, havia, de início,
lecionado em Bolonha e concorreu à restauração do direito. Um dos continuadores de Sigebeto de Glemblours disse: “Foram
Lanfranc de Pádua e seu colega Irnério quem, tendo encontrado, em Bolonha, as leis de Justiniano, se puseram a lê-las e a
comentá-las. Irnério perserverou, mas Lanfranc, ensinando as artes liberais e as letras divinas na Gália, veio ao Bec e aí se fez
monge”[668].
Os princípios da nova escola foram proclamados precisamente à época do advento de Henrique II (1154). Os
jurisconsultos chamados pelo imperador Frederico Barba-Ruiva à dieta de Roncaglia (1158) disseram-lhe, pela boca do
arcebispo de Milão, essas palavras notáveis: “Sabei que todo o direito legislativo do povo vos foi acordado; vossa vontade é
o direito, pois está dito: o que agrada ao príncipe tem força de lei; o povo entregou todo seu império e seu poder a ele,
estando nele depositado”[669].

O próprio Imperador dissera, abrindo a dieta: “Nós, que estamos investidos do nome real, desejamos antes exercer um
império legal para a conservação do direito e da liberdade de cada um a tudo fazer de forma impune. Dar-se toda licença e
modificar o ofício do comando em dominação soberba e violenta seria a realeza, a tirania”[670]. Este republicanismo
pedantesco, extraído, palavra a palavra, de Tito Lívio, explicava mal o ideal da nova jurisprudência. No fundo, não era a
liberdade que ela demandava, mas a igualdade sob um monarca, a supressão da hierarquia feudal que pesava sobre a Europa.

Quão caros esses juristas deviam ser aos príncipes, pode-se conceber por sua doutrina e aprender pela história que, em
todo lugar, doravante, mostrá-los-nos-á próximos daqueles e como que pendurados às suas orelhas, ditando-lhes baixinho o
que devem repetir. Guilherme o Bastardo se afeiçoa a Lanfranc, como já vimos. Nas suas frequentes ausências, ele confiava-
lhe o governo da Inglaterra[671]; mais de uma vez ele deu razão a Lanfranc contra seu próprio irmão. O angevino Henrique,
novo conquistador da Inglaterra, teve seu próprio Lanfranc, um aluno de Bolonha que também estudara direito em
Auxerre[672]. Thomas Becket era seu nome e estava, então, a serviço do arcebispo de Canterbury, o qual influenciara em
favor do partido de Matilde e de seu filho. Tendo recebido somente as primeiras ordens, não sendo, assim, nem padre, nem
laico, ele se encontrava preparado à tudo e pronto à tudo. Mas sua origem era um grande obstáculo pois era, conta-se, filho de
uma mulher sarracena que seguira um Saxão que retornara da Terra Santa[673]. Sua mãe parecia fechar-lhe as dignidades da
igreja e seu pai aquelas do estado. Ele nada podia esperar senão do rei. Este tinha necessidade de pessoas assim para executar
seus projetos contra os barões. Desde sua chegada à Inglaterra, Henrique destruiu, em um ano, cento e quarenta castelos. Nada
lhe resistia; ele casava os filhos das casas nobres com aqueles das famílias medíocres, abaixando aquelas e elevando estas,
nivelando tudo[674]. A aristocracia normanda esgotara-se nas guerras de Estevão. O novo rei dispunha contra ela dos homens
de Anjou, do Poitou e da Aquitânia. Rico dos seus estados patrimoniais, aos quais acresceu aqueles da sua mulher, ele ainda
podia comprar mercenários em Flandres e na Bretanha. Foi o conselho que Becket lhe deu (Lingard, II, 523). Este havia se
tornado o homem necessário nos negócios e nos prazeres. Maleável e ousado, homem de ciência, homem de expedientes e, se
tudo isso ainda não bastasse, era ainda um companheiro que partilhava ou imitava os gostos de seu senhor[675]. Henrique
dera-se sem reservas a este homem e, não somente ele, mas seu filho, seu herdeiro. Becket era o preceptor do filho e o
conselheiro do pai[676]. Como tal, ele sustentava duramente os direitos do rei contra os barões, contra os bispos normandos.
Ele forçou estes últimos a pagarem a escudagem, apesar de suas reclamações e seus lamentos. Depois, sentindo que o rei da
Inglaterra, para ser senhor da Inglaterra, precisava de uma guerra brilhante, ele o conduziu ao sul da França, para a conquista
de Toulouse, sobre a qual Eleonora da Guiana possuía pretensões. Becket conduzia, em seu próprio nome e às suas expensas,
mil e duzentos cavaleiros e mais de quatro mil soldados, sem contar as pessoas de sua casa, assaz numerosas para formar
várias guarnições no sul[677]. É evidente que um tal exército, tão desproporcional em relação à fortuna do mais rico
particular, fora posto sob o nome de um homem sem importância, de modo a menos alarmar os barões.

Uma vasta liga se formara contra o conde de Toulouse, objeto da inveja universal. O poderoso conde de Barcelona,
regente de Aragão, os condes de Narbonne, de Montpellier, de Béziers e de Carcassonne estavam acordados com o rei da
Inglaterra. Este parecia próximo de conquistar aquilo que Luís VIII e São Luís, anos depois, recolheram sem trabalho após a
cruzada dos Albigenses. Era necessário tomar Toulouse por assalto, sem dar tempo para que seu conde pudesse respirar. O rei
da França para aí se lançou e, na qualidade de suzerano, proibiu Henrique de fazer qualquer coisa contra uma cidade que ele
protegia. Este escrúpulo não segurava Becket que aconselhava dar o assalto (Lingard, II, 324). Mas Henrique temia ser
abandonado por seus vassalos caso se arriscasse à uma violação tão clara da lei feudal. O belicoso chanceler não teve por
indenização senão a glória de ter combatido e desarmado um cavaleiro inimigo (Lingard, II, 325).

O sustento das tropas mercenárias que Becket aconselhara a Henrique, e que lhe eram tão necessárias contra seus
barões, exigia despesas para as quais todos os recursos da fiscalidade normanda teriam sido insuficientes. Apenas o clero
podia pagá-las; ele fora ricamente presenteado pela conquista. Henrique desejou ter a igreja em suas mãos. Fazia-se
necessário, de início, assegurar-se da cabeça, quero dizer, do arcebispado de Canterbury, que era quase um Patriarcado, um
Papado anglicano, uma realeza eclesiástica indispensável para completar a outra. Henrique resolveu tomá-la para si e entregá-
la a um segundo si-próprio, ao seu bom amigo Becket[678]. Reunindo, assim, os dois poderes, ele teria erguido a realeza até
àquele ponto que ela atingiu no século XVI, entre as mãos de Henrique VIII, de Maria e de Elisabeth. Era-lhe cômodo colocar
a primazia sob o nome de Becket, assim como antes o fizera com um exército. Era, é verdade, um Saxão; mas o Saxão
Breakspeare vinha de ser eleito Papa precisamente à época do advento de Henrique II (Adriano IV)[679]. Ao próprio Becket
repugnava a idéia: “Prestai atenção”, ele disse ao rei, “eu me tornarei vosso maior inimigo”[680]. O rei não o escutou e o fez
primaz para grande escândalo do clero normando.

Depois dos italianos Lanfranc e Anselmo, a sé de Canterbury fora ocupada por Normandos. Os reis e os barões não
teriam ousado confiar a outros esta grande e perigosa dignidade. Os arcebispos de Canterbury não eram somente os primazes
da Inglaterra; neles encontrava-se, de alguma forma, um caráter político. Nós os encontramos quase sempre à testa das
resistências nacionais, desde o famoso Dunstan[681], que humilhou tão impiedosamente a realeza anglo-saxã, até Estevão
(Étienne ou Stefen) Langton, que obrigou o rei João a assinar a Magna Carta. Esses arcebispos encontravam-se,
particularmente, como os guardiões das liberdades de Kent, a região mais livre da Inglaterra. Paremos, por um momento, para
ver a curiosa história desse grotão.

O país de Kent, bem mais extenso que o condado de mesmo nome, abraça uma grande parte da Inglaterra meridional.
Está posicionado em face da França, na ponta da Grã-Bretanha. Ele é a vanguarda desta e, de fato, era o privilégio dos homens
de Kent formar a vanguarda do exército inglês. Seu país, em todos os tempos, deu a primeira batalha contra os invasores, pois
é lá que primeiro se põem os pés. Aí, desembarcaram César, depois Hengis, depois Guilherme o Conquistador. Por aí,
também, começou a invasão cristã. O Kent é uma terra sagrada. O apóstolo da Inglaterra, Santo Agostinho, aí fundou seu
primeiro monastério, e seu abade, com o arcebispo de Canterbury, eram os senhores dessa região e os guardiões de seus
privilégios. Eles conduziram os homens de Kent contra Guilherme o Conquistador. Quando este último, vencedor em Hastings,
marchava de Dover a Londres, percebeu, segundo a lenda, uma floresta movediça; esta nada mais era que os homens de Kent,
levando, à sua frente, um reparo móvel de ramos e galhos. Eles caíram sobre os Normandos e arrancaram de Guilherme a
garantia de suas liberdades (Thorn, p. 1786, ap. Lingard, II, 7). Qualquer que tenha sido o resultado desta vitória duvidosa,
eles permaneceram livres ao meio da servidão universal e não conheceram outro domínio senão aquele da Igreja. Foi assim
que nossos Bretões da Cornualha, sob os bispos de Quimper, conservavam uma liberdade relativa e insultavam a feudalidade,
todos os anos, na estátua do velho rei Gradlon.

O principal costume do Kent, aquele que ainda hoje distingue esse condado, é a lei de sucessão, a partilha igual entre os
filhos. Esta lei, chamada pelos Saxões de gavelkind, pelos Irlandeses de gabhaïl cine (estabelecimento de família) é comum,
com certas modificações, a todas as populações célticas da Irlanda, da Escócia, do País de Gales e, em parte, da nossa
Bretanha (vide o Tomo I e o Tomo III).

Os grandes juristas italianos, que primeiro ocuparam a sé de Canterbury, foram tanto mais favoráveis aos costumes de
Kent quanto mais acordassem, sob vários aspectos, com os princípios do direito romano. Eudes, conde de Kent, irmão de
Guilherme o Conquistador, desejando tratar os homens de Kent como se fossem habitantes de qualquer outra província,
“Lanfranc resistiu-lhe face-a-face e provou, perante todo mundo, a liberdade de sua terra, pelo testemunho dos velhos Ingleses
que eram versados nos costumes de sua pátria; e libertou seus homens dos maus costumes que Eudes desejava impor-
lhes”[682]. Numa outra ocasião, “o rei ordenou convocar, sem demoras, o condado e reunir todos os homens, Franceses e,
sobretudo, Ingleses, versados no conhecimento das antigas leis e costumes. Chegando em Penenden, todos se sentaram; e todo
o condado foi lá retido durante três dias; e, por todos esses homens sábios e probos foi decidido, acordado e julgado que,
tanto quanto o rei, o arcebispo de Canterbury deveria possuir suas terras com plena jurisdição, com toda independência e
segurança”[683].

O sucessor de Lanfranc, Santo Anselmo, mostrou-se ainda mais favorável aos vencidos. Lanfranc falava-lhe, um dia, de
um Saxão chamado Elfeg que se votara para defender as liberdades do país contra os Normandos: “Para mim”, disse
Anselmo, “creio tratar-se de um verdadeiro mártir aquele que prefere morrer a errar para com os seus. João morreu pela
verdade; igualmente, Elfeg pela justiça; ambos, paralelamente, por Cristo, que é a justiça e a verdade”[684]. Foi Anselmo
quem mais contribuiu para o casamento de Henrique Beauclerc com a sobrinha de Edgar, último herdeiro da realeza saxã; esta
união das duas raças deve ter preparado, o que quer se tenha dito, a reabilitação dos vencidos. O mesmo arcebispo de
Canterbury recebeu, como representante da nação, os juramentos de Beauclerc, quando jurou, pela segunda vez, sua carta dos
privilégios feudais e eclesiásticos (Lingard, II, 181).

Foi uma grande e inesperada surpresa para o rei da Inglaterra saber que Thomas Becket, sua criatura, seu divertido
companheiro, levava a sério sua nova dignidade. O chanceler, o mundano, o cortesão, relembrou-se, repentinamente, que era
povo. O filho de um Saxão tornou a ser Saxão e sua santidade fez com que esquecessem que sua mãe era Sarracena. Ele
cercou-se dos Saxões, dos pobres, dos mendigos, tornou a vestir seu hábito grosseiro, comia com eles e como eles (Vita S.
Thomæ quadripartita, p. 19, 24, ed. Lupus, 1682). A partir de então, ele se distanciou do rei e desfez-se do selo. Existiam,
então, dois reis; e o rei dos pobres, nem por isso foi menos poderoso[685].
Henrique, profundamente ofendido, obteve do Papa uma bula que tornava o abade do monastério de Santo Agostinho
independente do arcebispo de Canterbury. Ele efetivamente o era à época dos reis Saxões. Thomas, em represália, intimou os
barões a restituírem à sé de Canterbury uma terra que seus avós haviam enfeudado dos reis, declarando que não conhecia, de
forma alguma, lei que consagrasse a injustiça e que, portanto, aquilo que fora tomado sem bom título devia ser restituído
(Gervas. Cantuar., ap. Thierry, III, 129) . Tratava-se, então, de saber se a obra da conquista seria destruída, se o arcebispo
saxão deitaria sobre os descendentes dos vencedores a revanche da batalha de Hastings. O episcopado que Guilherme o
Bastardo tornara tão forte no interesse da conquista voltava-se, agora, contra a mesma. Felizmente para Henrique, os bispos
eram mais barões que bispos; o interesse temporal tocava a esses Normandos muito mais profundamente que aquele da Igreja.
A maior parte se declarou pelo rei e prontamente estava preparada para jurar o que a este agradasse. Assim, o alarme dado
por Becket a esta igreja completamente feudal, punha igualmente o rei na condição de fazer com que ela lhe acordasse um
grande poder que, de outra forma, jamais teria ousado pedir.

Eis os principais pontos que os Costumes de Clarendon estipulavam: “A guarda de todo arcebispado e bispado vacante
será dada ao rei e as rendas ser-lhe-ão pagas. A eleição será feita segundo a ordem do rei, com seu assentimento, pelo alto
clero da igreja, de acordo com os conselhos dos prelados que o rei aí mandar assistirem – Quando, num processo, um das
duas, ou as duas partes, forem eclesiásticas, o rei decidirá se a causa será julgada pela corte secular ou episcopal. Neste
último caso, um oficial civil conduzirá o procedimento. E, se o defensor for condenado numa ação criminal, ele perderá sua
paga de clero. – Nenhum administrador do rei será excomungado sem que antes se tenha pronunciado o rei ou, em sua
ausência, o grande magistrado. – Nenhum eclesiástico que ocupe alguma dignidade passará o mar sem a permissão do rei. –
Os eclesiásticos administradores do rei têm suas terras por baronato e são obrigados aos mesmos serviços que os laicos”.

Não era nada menos que o confisco da igreja em proveito de Henrique. O rei, recebendo os frutos da vacância, não
havia dúvidas que as sés permaneceriam vacantes por muito tempo, tal como à época de Guilherme o Ruivo, que fechara um
arcebispado, quatro bispados e onze abadias (Petr. Bles., ap. Lingard, II, 154) . Os bispados seriam a recompensa, não mais
dos barões talvez, mas dos agentes do fisco, dos escribas, dos juízes compassivos. A igreja, submetida ao serviço militar,
tornava-se completamente feudal. As instituições das esmolas e das escolas, dos ofícios religiosos, deviam nutrir os
Brabanções e os Cotereaux[686] e as fundações piedosas deviam pagar o assassínio. A igreja anglicana, perdendo, com a
excomunhão, a única arma que lhe restava, aprisionada numa ilha sem relações com Roma ou com a comunidade do mundo
cristão, iria perder todo o espírito de universalidade, de catolicidade. O que havia de mais grave era o aniquilamento dos
tribunais eclesiásticos e a supressão da paga do clero. Esses direitos davam lugar a grandes abusos, sem dúvida; muitos
crimes eram impunemente cometidos pelos padres; mas, quando se pensa na pavorosa barbárie, na fiscalidade execrável dos
tribunais laicos do século XII, somos obrigados a confessar que a jurisdição eclesiástica era, então, uma âncora de salvação.
Ela podia poupar os culpados mas, quantos inocentes salvava! A Igreja era quase a única estrada pela qual as raças
desprezadas podiam tomar uma via ascendente. Vê-se pelo exemplo dos dois Saxões Breakspeare (Papa Adriano IV) e
Becket. As liberdades da Igreja eram, então, aquelas do mundo.

Assim, todas as raças vencidas apoiaram o bispo de Kent com coragem e fidelidade. Sua luta pela liberdade foi imitada
com mais timidez e moderação, na Aquitânia, pelo bispo de Poitiers[687] e, mais tarde, no País de Gales, pelo famoso
Giraldus Cambrensis (também Giraud de Cambrie ou Giraud de Berri), a quem devemos, dentre outras obras, uma descrição
muito curiosa da Irlanda[688]. Os Baixos-Bretões estavam por Becket. Um Galês o seguiu no exílio, com perigo à sua própria
vida (Scr. fr. XVI, 295. Thierry, III, 160) , assim como o famoso João de Salisbury[689]; aparentemente, os estudantes
gaélicos levaram messagens de Becket, pois Henrique II fechou-lhes as escolas e os proibiu de entrar em qualquer parte da
Inglaterra sem seu consentimento.

Seria, portanto, estreitar esse grande assunto, se o circunscrevêssemos apenas à oposição das raças e se víssemos em
Thomas Becket apenas um Saxão. O arcebispo de Canterbury não foi somente o santo da Inglaterra, o santo dos vencidos,
Saxões e Gaélicos, mas também aquele da França e da cristandande. Sua lembrança não permanece menos viva entre nós,
como também em sua pátria. Exibe-se, ainda, em Auxerre, a casa que o recebeu e, no Delfinado, uma igreja que construiu em
seu exílio. Nenhum túmulo foi mais visitado, nenhuma peregrinação esteve mais em voga, na Idade Média, que aquela de São
Tomás de Canterbury[690]. Conta-se que, em um só ano, seu túmulo foi visitado por mais de cem mil peregrinos. Segundo uma
tradição, teriam sido oferecidas, em um ano, até 950 libras esterlinas à capela de São Tomás Becket, enquanto o altar da
Virgem não recebeu mais que quatro; o próprio Deus não teve uma oferenda sequer.

Tomás foi caro ao povo, entre todos os santos da Idade Média, porque ele próprio era povo pelo seu baixo e obscuro
nascimento, por sua mãe sarracena e seu pai saxão. A vida mundana que ele inicialmente levara, seu amor pelos cães de caça,
pelos cavalos, falcões[691], esses gostos da juventude, dos quais ele nunca se curou muito bem, tudo isso também agradava ao
povo. Ele conservou, sob o hábito do sacerdote, uma alma de cavaleiro, leal e corajosa, cujos ímpetos não reprimia senão a
muito custo. Numa das mais perigosas circunstâncias de sua vida, quando os barões e os bispos de Henrique pareciam prestes
a fazê-lo em pedaços, um deles ousou chamá-lo de traidor; ele se virou vivazmente e replicou: “Se o caráter da minha ordem
não m’o proibisse, o covarde arrepender-se-ia de sua insolência”.

O que houve de grande, de magnífico e de terrível no destino deste homem, é que se ele viu encarregado, ele, fraco
indivíduo e desamparado, dos interesses da Igreja universal, que eram aqueles do gênero humano. Tal papel, que devia
pertencer ao Papa, e que Gregório VII houvera sustentado, Alexandre III não ousou reencená-lo; ele já tivera o suficiente na
luta contra o Anti-Papa, contra Frederico Barba-Ruiva, o conquistador da Itália. Esse Papa era o chefe da liga lombarda, um
político, um patriota italiano; ele negociava, combatia, fugia e retornava; ele encorajava os partidos, provocava deserções,
celebrava tratados, fundava cidades. Ele guardou-se de uma indisposição contra o maior rei da cristandande (falo de Henrique
II), quando já tivera contra si o Imperador. Toda sua conduta em relação a Henrique foi plena de timidez e de vergonhosas
manobras; ele não procurava senão ganhar tempo através de equívocos miseráveis, por cartas e contra-cartas, vivendo o dia-
a-dia, manipulando a Inglaterra e a França, agindo como diplomata, como príncipe secular, enquanto o rei da França aceitava
o patrocínio da Igreja, enquanto Becket sofria e morria por esta. Estranho político que devia ensinar ao povo procurar em
outro lugar, que não fosse Roma, o representante da religião e o ideal da santidade.

Nesta grande e dramática luta, Becket teve de controlar as tentações, o terror, a sedução, seus próprios escrúpulos. Daí,
uma hesitação, no início, que parecia temor. Ele, inicialmente, sucumbiu na assembléia de Clarendon, seja porque acreditasse
que desejavam sua vida, seja porque ainda se sentisse preso ao rei por suas obrigações. Esta fraqueza é digna de piedade num
homem que podia ser combatido entre dois deveres. De um lado, ele muito devia a Henrique, de outro, ainda mais à sua igreja
de Kent, à da Inglaterra, à Igreja universal, cujos direitos ele defendia sozinho. Esta incurável dualidade da Idade Média,
dividida entre o Estado e a Religião, fez o tormento e a tristeza das maiores almas, de Godofredo de Bouillon, de São Luís, de
Dante.

“Desgraçado e infeliz,”, dizia Thomas, voltando de Clarendon, “vejo a igreja anglicana, em punição dos meus pecados,
tornada, para sempre, serva! Isso devia acontecer; eu deixei a corte, não a igreja; eu fora o caçador de bestas selvagens, antes
de ser pastor de homens. O amante dos histriônicos e dos cães tornou-se o condutor das almas... Eis-me, então, abandonado
por Deus!”[692]

Numa outra vez, tendo a violência falhado, Henrique tentou a sedução e Becket não precisava senão dizer uma palavra;
Henrique oferecia-lhe tudo, punha tudo aos seus pés: era a cena de Satã, transportando Jesus sobre a montanha, mostrando-lhe
o mundo e dizendo: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares”[693]. Todos os contemporâneos reconheciam assim, na
luta de Thomas contra Henrique, uma imagem das tentações do Cristo e, na sua morte, um reflexo da Paixão. Os homens da
Idade Média amavam tecer tais analogias. O último livro desse gênero, e o mais ousado, é aquele das Conformidades do
Cristo e de São Francisco[694].

A própria extensão do poder real, que estava no fundo da questão, tornou-se, logo, um objeto secundário para Henrique.
O essencial, para ele, era a ruína, a morte de Thomas; ele teve sede de seu sangue. Que todo esse poder, que se estendia sobre
tantos povos, se quebrasse contra a vontade de um só homem; que, após tantos sucessos fáceis, se apresentasse um obstáculo,
era coisa por demais difícil de suportar para esta criança mimada pela fortuna. Ele estava desolado, ele chorava[695].

Entretanto, pessoas zelosas não faltavam para consolar o rei e para se prontificarem a satisfazer seu desejo. Tentou-se
em 1163. O arcebispo ficou indisposto, doente e ainda mais fraco para se apresentar perante a corte dos barões e dos bispos.
De manhã, ele celebrou o ofício de Santo Estevão, primeiro mártir, que começou com essas palavras: “Os príncipes sentaram-
se para deliberarem contra mim”. Depois, ele caminhou corajosamente e se apresentou vestido de seus hábitos pontificais e
carregando sua grande cruz de prata (Roger. de Hoveden, p. 494. Vita quadrip., p. 58). Isto embaraçou seus inimigos que
tentaram, em vão, arrancar-lhe a cruz. Voltando às formas jurídicas, eles o acusaram de ter desviado rendas públicas; depois,
de ter celebrado a missa sob a invocação do diabo e, assim, desejavam depô-lo. Desta forma, ele então teria sido morto com
tranquilidade de consciência. O rei aguardava impacientemente. As vias de fato já começavam; alguns já começavam a jogar-
lhe palhas trançadas. O arcebipo disse que apelaria ao Papa, retirou-se lentamente e os deixou mudos, sem palavras. Esta foi a
primeira tentação, o comparecimento perante Herodes e Caifás. Todo o povo aguardava em lágrimas. Ele mandou arrumar as
mesas, chamou todos os pobres que se podia encontrar e, assim, tomou a ceia com eles[696]. Na mesma noite, ele partiu e
chegou ao continente com muita dificuldade.

Foi com grande dor que Henrique soube que sua presa escapara. Ele, ao menos, pôs as mãos sobre seus bens e partilhou
seus despojos; ele baniu todos os seus parentes em linha ascendente e descendente, expulsou-os todos, anciãos, mulheres
grávidas e criancinhas. Deles ainda se exigiu que fossem se mostrar àquele que dera causa a isso. O exilado efetivamente os
viu, ao número de quatrocentos, chegarem uns após os outros, pobres e esfaimados, saudarem-no com suas misérias e seus
andrajos; era necessário que ele suportasse esta procissão de banidos. Além disso tudo, chegavam-lhe as cartas dos bispos da
Inglaterra, cheias de amertume e de ironia. Eles o felicitavam pela pobreza apostólica à qual fora reduzido; eles esperavam
que suas abstinências beneficiassem sua saúde. São as consolações dos amigos de Jó[697].

O arcebispo aceitou sua infelicidade e a abraçou como penitência. Refugiado em Saint-Omer, depois em Pontigny,
convento da ordem de Cîteaux, ele aceitou as austeridades desses monges[698]. Daí, ele escreveu ao Papa, acusando-se de ter
sido um intruso na sua sé episcopal e declarando que depunha sua dignidade. Alexandre III, então refugiado em Sens, tinha
medo de tomar partido e trazer um novo inimigo para seus braços. Ele condenou vários artigos das constituições de
Clarendon, mas recusou-se a ver Thomas e contentou-se em escrever-lhe que o restabelecera em sua dignidade episcopal.
“Ide”, ele escrevia friamente ao exilado, “ide aprender na pobreza a ser o consolador dos pobres”.

O único apoio de Thomas era o rei da França. Luís VII estava muito feliz do embaraço onde este caso metera seu rival.
Ele era, além disso, como vimos, um príncipe singularmente suave e piedoso. O bispo, perseguido por defender a Igreja, era
um mártir para ele. Assim, ele o acolheu com favor, acrescentando que a proteção dos exilados era um dos mais antigos
florões da França[699]. Ele concedeu a Thomas e a seus companheiros de infortúnio um auxílio diário em pão e víveres e,
quando o rei da Inglaterra enviou-lhe um pedido de vingança contra o antigo arcebispo: “E quem, então, o depôs?”, perguntou
retoricamente Luís. “Eu também sou rei e não posso depor, em minha terra, o menor dos clérigos”[700].

Abandonado pelo Papa e alimentado pela caridade do rei da França, Thomas não recuou. Henrique, tendo passado à
Normandia, o arcebispo foi para Vézelai, no mesmo lugar onde, vinte anos antes, São Bernardo pregara a segunda cruzada e,
no dia da ascensão, na mais solene cerimônia, ao som dos sinos, sob a luz bruxuleante dos círios, ele excomungou os
defensores das constituições de Clarendon, os detentores dos bens da igreja de Canterbury e aqueles que se haviam entregue
ao anti-Papa que apoiava o Imperador. Ele designava, nominativamente, seis dos favoritos do rei; e, apesar de não designar
este último, manteve o gládio suspenso sobre o mesmo.

Este ousado ato lançou Henrique no mais violento acesso de furor. Ele rolava por terra, jogava seu chapéu, suas roupas,
arrancava a seda que cobria seu leito e roía, como um animal raivoso, a lã e a palha[701]. Voltando um pouco a si, ele
escreveu, e mandou que o clero de Kent também escrevesse, ao Papa, mostrando-se pronto a recorrer às últimas medidas
extremas, rogando e ameaçando, vez por vez. Em uma parte, ele enviava embaixadores ao Imperador para jurar reconhecer o
anti-Papa[702], e ameaçava, mesmo, fazer-se muçulmano[703]; depois, ele se desculpava perante Alexandre III, assegurava
que seus enviados haviam falado sem poderes, depois afirmava que eles nada tinham dito. Ao mesmo tempo, ele comprava
cardeais, enviava dinheiro aos Lombardos, aliados de Alexandre. Ele solicitava aos jurisconsultos de Bolonha prepararem-
lhe uma resposta contra o arcebispo[704]. Ele foi até ao ponto de oferecer ao Papa abandonar todas as suas exigências,
revogar as constituições de Clarendon, tanto ele desejava a destruição de seu inimigo!

Tudo isso findou por funcionar. Henrique obteve cartas pontificais de acordo com as quais Thomas seria suspenso de
toda autoridade episcopal, até que tivesse entrado em bons termos com o rei. Henrique mostrou publicamente essas cartas,
vangloriando-se de ter desarmado Becket e de possuir, doravante, o Papa em sua bolsa[705]. Os monges de Cîteaux,
ameaçados por ele em virtude das posses que possuíam em seus territórios, suavemente disseram a Becket que não ousavam
mais guardá-lo. O rei da França, escandalizado da covardia desses monges, não pôde se impedir de exclamar: “Ó religião, ó
religião, onde estás? Eis que estes, que acreditávamos mortos no século, banem, à vista das coisas do século, o exilado pela
causa de Deus”[706].

O próprio rei da França findou por ceder. Henrique, dominado pela raiva de sua paixão contra Becket, humilhara-se
perante o fraco Luís, reconhecera-se seu vassalo, pedira sua filha para seu filho e prometeu partilhar seus estados entre os
filhos de Luís[707]. Luís portou-se, então, como mediador; ele levou Becket a Montmirail en Perche, para onde foi o rei da
Inglaterra. Palavras vagas foram trocadas, Henrique reservando-se a honra do reino e o arcebispo a honra de Deus[708]. “O
quê esperais, então?”, disse o rei da França, “eis a paz entre vossas mãos!” (Gervas. Cant., ap. Scr. fr. XIV, 460) . O
arcebispo, persistindo em sua obstinação, todos os espectadores das duas nações o acusavam de teimoso. Um dos barões
franceses exclamou que aquele que resistia ao conselho e à vontade unânime dos senhores dos dois reinos não merecia mais
asilo. Os dois reis tornaram a montar seus cavalos sem saudar Becket, que se retirou muito abatido[709].

Assim, foram completos o abandono e a miséria do arcebispo. Ele não teve mais pão, nem abrigo, e foi reduzido a viver
de esmolas do povo. Foi, então, talvez, que ele construiu a igreja cuja obra é-lhe atribuída. A arquitetura era uma das artes
cuja tradição se perpetuava entre os chefes da ordem eclesiástica. Vemos, um pouco após, na cruzada dos Albigenses, mestre
Theodósio, arquidiácono de Notre-Dâme de Paris, reunir, como Becket, os títulos de jurista e de arquiteto[710].

Entretanto, o rei da Inglaterra, para inflingir o último golpe no primaz, tentou transferir ao arcebispo de York os direitos
de Canterbury e fez com que seu filho fosse sagrado por aquele. No banquete de coroação, ele quis, na embriaguez de sua
alegria, servir, ele próprio, a mesa do jovem rei e, não mais sabendo o que fazia, deixou escapar a exclamação de que “depois
deste dia, ele não era mais rei”[711], palavra fatal que não caiu em vão nos ouvidos do jovem rei e dos espectadores.

Thomas, batido por Henrique com esse novo golpe, abandonado e vendido pela corte de Roma, escrevia ao Papa, aos
cardeais, cartas terríveis e palavras de condenação: “Por que colocais em meu caminho a pedra do escândalo? Por que
plantais espinhos na minha trilha? ... Como podeis dissimular a injúria que o Cristo sofre em mim, em vós mesmos, que
deveríeis manter, aqui embaixo, o lugar de Cristo? O rei da Inglaterra invadiu os bens eclesiásticos, atropelou as liberdades
da igreja, levantou a mão sobre os ungidos do Senhor, aprisionando-os, mutilando-os, arrancando-lhes os olhos; não só,
porém, ele os forçou a se justificarem pelo duelo ou pelas provas do fogo e da água. E deseja-se, entre tantos e tais ultrajes,
que nos calemos?... Eles se calam, eles se calarão, os mercenários; mas quem for um verdadeiro pastor da igreja se unirá a
nós...”.

“Eu podia florescer em poder, abundar em riquezas e em delícias, ser temido e honrado por todos. Mas, porque o Senhor
me chamou, indigno e pobre pecador que sou, para o governo das almas, eu escolhi, por inspiração da graça, ser rebaixado em
minha casa, suportar, até à morte, a proscrição, o exílio, as mais extremas misérias, a fazer bom preço da liberdade da igreja.
Que ajam dessa forma aqueles que se prometem longos dias e que encontram, em seus méritos, a esperança de um tempo
melhor. Quanto a mim, sei que o meu será curto, e que se eu calar ao ímpio sua iniquidade, deverei prestar contas de seu
sangue. Então, o ouro e a prata de nada servirão, nem os presentes que cegam até os sábios... Logo estaremos, vós e mim, ó
mui santo padre, perante o tribunal do Cristo. É em nome de Sua majestade e de Seu formidável julgamento que vos rogo
justiça contra aqueles que desejam matá-Lo uma segunda vez”.

Ele ainda escrevia: “Mal somos sustentados pela esmola estrangeira. Os que nos socorriam estão esgotados; aqueles que
tinham piedade de nosso exílio se desesperam, vendo como agiu o senhor papa. Esmagados pela igreja romana, nós que, sós
no mundo ocidental, combatemos por ela, seríamos forçados a abandonar a causa de Cristo, se a graça não nos sustentasse... O
Senhor verá tudo isso do alto da montanha; esta Majestade terrível, que extingue o sopro dos reis, julgará os extremos da terra.
Quanto a nós, vivos ou mortos, pertencemos, pertenceremos a Ele, prontos a tudo sofrer pela Igreja. Queira Deus que Ele nos
ache dignos de suportar a perseguição em nome de Sua justiça” (Epist. S. Thom., p. 774, et Scr. fr. XVI, 418, 420).

... “Não sei como tal se dá que, perante esta corte, seja sempre o partido de Deus aquele que é imolado, de sorte que
Barrabás se salve e que Cristo seja posto à morte. E eis, então, seis anos passados que, pela autoridade da corte pontifícia,
minha proscrição e a calamidade da Igreja se prolongam. Entre vós, os infelizes exilados, os inocentes, são condenados
apenas por isso, por serem fracos, pobres de Cristo e não desejarem desviar a justiça de Deus. Ao contrário, são absolvidos
os sacrilégios, os homicídios, os raptores impenitentes, os homens a respeito dos quais ouso livremente dizer que, se
comparecessem à frente do próprio São Pedro, o mundo em vão poderia defendê-los porque Deus não poderia absolvê-los....
Os enviados do rei prometem nossos despojos aos cardeais, aos cortesãos. Pois, bem! que Deus veja e julgue. Estou pronto
para morrer. Que armem, para minha perdição, o rei da Inglaterra e, se quiserem, todos os reis do mundo: eu, Deus me
ajudando, não descartarei minha fidelidade à Igreja, nem em vida, nem na morte. Para o resto, eu remeto a Deus Sua própria
causa; foi, e é, em Seu favor que me tornei proscrito; que Ele remedie e proveja. Doravante, tenho o firme propósito de não
mais importunar a corte de Roma. Que a ela se dirijam aqueles que prevalecem por sua iniquidade e que, em seu triunfo sobre
a justiça e a inocência, retornem gloriosos à constrição da Igreja. Queira Deus que a estrada de Roma[712] já não tenha
levado tantos infelizes e inocentes à perdição...” [713].

Estas palavras terríveis ressoaram tão alto, que a corte de Roma viu mais perigo em abandonar Thomas que em apoiá-lo.
O rei da França escrevera ao Papa: “É preciso que, enfim, renuncieis a vossos expedientes enganosos e dilatórios”[714], e, ao
dizer isso, ele não era senão o órgão de toda a cristandade. O Papa decidiu-se a suspender o arcebispo de York por usurpação
dos direitos de Canterbury e ameaçou o rei, se o mesmo não restituísse os bens usurpados. Henrique assustou-se; uma
entrevista ocorreu em Chinon entre o arcebispo e os dois reis. Henrique prometeu satisfação, demonstrou muita cortesia em
relação a Thomas, ao ponto de querer segurar o estribo de seu cavalo, quando da partida[715]. Entretanto, o arcebispo e o rei,
antes de se deixarem, trocaram-se palavras amargas, um reprovando ao outro as coisas que haviam feito. No momento da
separação, Thomas fixou, de forma expressiva, os olhos em Henrique e disse-lhe com uma espécie de solenidade: “Eu
acredito que não vos verei novamente”. – “Vós me tomais, então, por traidor?”, replicou vivamente o rei. O arcebispo
inclinou-se em saudação e partiu (Will. Stephanides, p. 71, ap. Thierry, III, 200).

Estas últimas palavras de Henrique não deixaram ninguém seguro. Ele recusou a Thomas o beijo da paz e, a título de
missa de reconciliação, ele mandou dizer uma missa dos mortos[716]. Esta missa foi dita em uma capela dedicada aos
mártires. Um clérigo do arcebispo notou tudo isso e fez a seguinte observação: “Eu de fato acredito que a Igreja não recobrará
a paz senão por um martírio”, ao que Thomas respondeu: “Queira Deus que ela seja entregue, mesmo ao preço de meu
sangue!”[717]. – O rei da França dissera: “Por mim, eu não desejaria, por meu peso em ouro, vos aconselhar de retornar à
Inglaterra, se ele vos recusa o beijo da paz”. E o conde Teobaldo da Champagne acrescentou: “E nem o beijo seria o
suficiente” (Epist. S. Thom., ap. Scr. fr. XVI, 400).

Já há muito tempo que Thomas previa sua sorte e com ela se resignava. Quando de sua partida do convento de Pontigny,
narrou o historiador contemporâneo, o abade o viu, durante a ceia, verter lágrimas. Ele se espantou, perguntou-lhe se
precisava de alguma coisa e ofereceu-lhe tudo o que estivesse em seu poder fazer. “De nada necessito”, disse o arcebispo,
“tudo está findo para mim. O Senhor dignou-se, na noite passada, a mostrar a Seu servo o fim que o aguarda”. – “O que há de
comum”, disse o abade gracejando, “entre um vivo e um mártire, entre o cálice do martírio e aquele que vindes de beber?”. O
arcebispo respondeu: “É verdade que concedo alguma coisa aos prazeres do corpo[718], mas o Senhor é bom e revela Seus
mistérios àquele que foi considerado indigno e ímpio”[719].

Entretanto, ele fora para a costa vizinha de Boulogne-sur-Mer. Estava-se no mês de novembro, na estação do mau tempo
do mar; o primaz e seus companheiros foram obrigados a esperar alguns dias no porto de Wissant, perto de Calais. Um dia em
que passeavam na praia, eles viram um homem correr em sua direção e o tomaram, de início, pelo capitão de seu navio vindo
avisar-lhes para se preparem para a passagem do Canal; mas este homem disse-lhes que era clérigo e deão na igreja de
Bolonha, e que o conde, seu senhor, o enviara para preveni-los a não embarcarem, porque tropas armadas mantinham-se em
observação sobre a costa de Inglaterra a fim de aprisionar ou matar o arcebispo. “Meu filho”, respondeu Thomas, “mesmo
quando eu tivesse a certeza de, na outra costa, ser desmembrado e cortado em pedaços, eu não me interromperia jamais na
minha estrada. Para o pastor e para o rebanho, são demais sete anos de ausência” (Scr. Fr. XVI, ap. Thierry, III, 201) . “Eu
vejo a Inglaterra”, acrescentou, “e eu irei, se Deus quiser. Sei, entretanto, que lá encontrarei minha Paixão”[720]. A festa de
Natal se aproximava e ele desejava, a qualquer preço, celebrar o nascimento do Salvador em sua igreja.

Quando ele se aproximou da praia e que se viu, sobre sua barca, a cruz de Canterbury, a qual era sempre levada à frente
do primaz, a turba do povo precipitou-se, disputando-se sua benção. Alguns se prostravam e lançavam gritos. Outros lançavam
suas roupas à frente de seus passos e bradavam: “Bendito aquele que vem em nome do Senhor!”. Os padres se apresentavam a
ele, à frente de seus paroquiais. Todos diziam que o Cristo chegava para ser crucificado mais uma vez, que Thomas sofreria
pelo Kent como, em Jerusalém, Aquele sofrera pelo mundo[721]. Esta multidão intimidou os Normandos que tinham vindo
com muitas ameaças e que haviam desembainhado suas espadas (Scr. fr. XVI, 613) . Becket alcançou Canterbury ao som de
hinos e de carrilhões e, ascendendo ao púlpito, pregou sobre esse texto: “Eu vim para morrer entre vós” (Vita quadrip., p.
117). Já ele escrevera ao Papa para solicitar-lhe dizer a prece dos agonizantes em sua intenção (Roger de Hoveden, p. 521).

O rei encontrava-se, então, na Normandia. Ele ficou chocado quando o informaram que o primaz ousara atravessar a
Mancha para a Inglaterra. Foi-lhe relatado que o arcebispo caminhava cercado de uma turba de pobres, de servos, de homens
armados; que esse rei dos pobres restabelecera-se em seu trono de Canterbury e tinha prosseguido até Londres, e que consigo
levava bulas do Papa para colocar o reino, novamente, em interdito. Tal era, em efeito, o caráter dúplice de Alexandre II: ele
encaminhara a absolvição a Henrique e o poder de excomunhão ao arcebispo. O rei, fora de si, exclamou: “O quê! Um homem
que comeu meu pão, um miserável que veio à minha corte sobre um jumento manco, esmagará a realeza com os pés! e nenhum
dos covardes que eu alimento terá o coração de me livrar desse sacerdote!”[722]. Era a segunda vez que essas palavras
homicidas saíam de sua boca mas, agora, elas não tombaram em vão. Quatro dos cavaleiros de Henrique acreditavam-se
desonrados se deixassem impune o ultraje feito a seu senhor. Tal era a força do liame feudal, tal era a virtude do juramento
recíproco que um e outro, senhor e vassalo, prestavam-se. Os quatro não aguardaram a decisão dos juízes a quem o rei
encarregara de fazer o processo de Becket. A honra dos quatro estaria comprometida se Becket morresse por outras mãos que
não as suas.

Partindo em horários diferentes, de diferentes partes, eles chegaram, todos ao mesmo tempo, em Saltwood (Vit.
quadrip., p. 120). Ranulfo de Broc trouxe um grande número de soldados. “Então, no quinto dia após o Natal, como o
arcebispo estivesse por volta das onze horas em seu quarto e que alguns clérigos e monges aí tratassem de questões com o
mesmo, entraram os quatro satélites. Saudados por aqueles que estavam sentados perto da porta, eles devolveram a saudação,
mas à voz baixa, e aproximaram-se do arcebispo; então, se sentaram à frente de seus pés sem saudá-lo, nem em seu próprio
nome, nem em nome do rei. Eles se mantiveram em silêncio; o Cristo do Senhor se calara também”[723].

Enfim, Reginaldo filho-d’Urso (FitzUrse ou Fitzurse ou Fitz-Ours ou Fitz-Urse) tomou a palavra: “Nós te trazemos
d’ultramar as ordens do rei. Queremos saber se preferes ouvi-las em público ou em particular”. O santo mandou os seus
saírem; mas aquele que guardava a porta, a deixou entreaberta para que, de fora, fosse possível ver. Quando Reginaldo
comunicou-lhe as ordens, e que Thomas Becket viu que nada tinha a esperar de pacífico, mandou entrar todo mundo e disse:
“Senhores, podeis falar perante estes” (ibid. 122).

Os Normandos então pretenderam que ele sagrara o jovem filho do rei, de forma a que viesse a ser culpado de lesa-
majestade. Eles desejavam pegá-lo sutilmente por suas palavras e, a cada instante, embaraçavam-se nas suas próprias. Eles o
acusavam, ainda, de querer se fazer rei da Inglaterra; depois, pegando ao acaso uma palavra do arcebispo, eles exclamaram:
“Como acusais o rei de perfídia? Vós nos ameaçais; desejais, ainda, nos excomunhar a todos?”. E um deles acrescentou:
“Deus me livre! Ele não o fará jamais, pois eis que já anatematizou muitas pessoas”. Eles então se ergueram furiosos, agitando
seus braços e torcendo suas luvas[724]. Depois, dirigindo-se aos espectadores, disseram: “Em nome do rei, vós nos
respondereis por este homem para apresentá-lo em tempo e lugar”. – “O quê?”, respondeu o arcebispo, “acreditaríeis que
desejo escapar? Eu não fugirei, nem por causa do rei, nem por nenhum homem vivo”. – “Tu tens razão”, disse um dos
Normandos, “se Deus quiser, tu não escaparás”[725]. O arcebispo, em vão, se dirigiu a Hugo de Morville, o mais nobre
dentre os quatro, e aquele que parecia ser o mais razoável[726]. Mas ninguém o escutou e eles partiram em tumulto, com
grandes ameaças.

A porta foi fechada assim que o último dos conjurados passou; Reginaldo armou-se no antepátio e, pegando um machado
das mãos de um carpinteiro que trabalhava, desferiu um golpe contra a porta para abri-la ou quebrá-la. As pessoas da casa,
ouvindo os golpes de machado, suplicaram ao primaz para se refugiar na igreja, que se comunicava com seu apartamento por
um claustro ou uma galeria; ele não quis e, quando estava para ser arrastado à força, um dos assistentes observou que a hora
das vésperas soara. “Visto que é a hora de meu dever, irei à igreja”, disse o arcebispo e, fazendo carregarem sua cruz à sua
frente, ele atravessou o claustro a passos lentos, depois caminhou até o grande altar, separado da nave por uma cerca
entreaberta.

Quando entrou na igreja, ele ouviu o rumor dos clérigos que fechavam as portas com ferrolhos: “Em nome de vosso voto
de obediência”, ele bradou, “nós vos proibimos de fechar a porta. Não convém fazer da igreja uma bastilha”. Depois, ele fez
entrar os seus que haviam permanecido do lado de fora.

Mal havia posto o pé sobre os degraus do altar, que Reginaldo filho-d’Urso apareceu do outro lado da igreja, trajando
sua cota de malhas, tendo à mão sua larga espada de dois gumes, e gritando: “À mim, à mim, leais servos do rei!”. Os outros
conjurados o seguiram de perto, armados, como ele, da cabeça aos pés, e brandindo suas espadas. As pessoas que estavam
com o primaz quiseram, então, fechar a cerca do coro, mas ele próprio os proibiu e deixou o altar para impedi-los; eles
suplicaram-lhe, com muita insistência, para que se colocasse em segurança na igreja subterrânea ou que subisse a escada pela
qual, através de muitas voltas, chegava-se ao topo do edifício. Esses dois conselhos foram repelidos tão positivamente quanto
os primeiros. Durante esse tempo, os homens armados avançavam. Uma voz bradou: “Onde está o traidor?” – “Ei-lo aqui”,
respondeu Becket, “mas não há traidor aqui; o que vindes fazer na casa de Deus com tal paramento de guerra? Qual é vosso
desígnio?”. – “Que tu morras!” – “A isto me resigno; vós não me vereis fugir diante de vossas espadas; mas, em nome de Deus
todo poderoso, eu vos proibo de tocar qualquer de meus companheiros, clérigo ou laico, grande ou pequeno”. Neste momento,
ele recebeu, por trás, um golpe de copo de espada entre os ombros, e aquele que o desferira disse: “Foge ou tu estás morto”.
Ele não fez qualquer movimento; os homens de armas procuraram tirá-lo da igreja, fazendo-se escrúpulos de aí matá-lo. Ele se
debatia contra aqueles e declarou firmemente que não sairia de jeito algum e os constragia a executar, naquele lugar mesmo,
suas intenções ou suas ordens (Thierry, III, 218). – E, virando-se para um outro[727] que via chegar, espada nua na mão, ele
disse-lhe: “O que há, então, Reginaldo? Eu te cobri de favores e te aproximas de mim armado, dentro da igreja?”. O assassino
respondeu: “Tu estás morto”. – Então, ele ergueu sua espada e, com um só golpe de través, cortou a mão de um monge saxão
chamado Edward Cryn e feriu a cabeça de Becket. Um segundo golpe, desferido por um outro Normando, lançou-o de face
sobre o chão, e foi de tal forma violento, que a espada quebrou-se sobre o soalho. Um guerreiro, chamado Guilherme de
Tracy, empurrou com o pé o cadáver imóvel, dizendo: “Que assim morra o traidor que atrapalhou o reino e provocou a
insurgência dos Ingleses”.

Eles se iam, dizendo: “Ele desejou ser rei e mais que rei; pois bem, que o seja agora!”[728]. E, no meio dessas bravatas,
ainda não se sentiam seguros. Um deles tornou a entrar na igreja para ver se Becket estava bem morto, mergulhou sua espada
na cabeça do primaz e fez saltar o seu cérebro[729]. Eles não podiam matá-lo o bastante para satisfazer sua vontade assassina.

O homem é, de fato, uma coisa viva. Não é fácil destruí-lo. Livrá-lo de seu corpo, curá-lo desta vida terrestre, é
purificá-lo, adorná-lo e aperfeiçoá-lo. Nenhum enfeite vai-lhe melhor que a morte. Um momento antes de os assassinos
baterem, os partidários de Thomas estavam cansados e frios, o povo duvidava, Roma hesitava. Desde que foi tocado pelo
ferro, inaugurado por seu sangue, coroado por seu martírio, ele se viu, mui repentinamente, alçado de Canterbury até o céu.
“Ele foi rei”, como disseram os homicidas, repetindo, sem saber, a palavra da Paixão. Todos concordaram com ele, o povo,
os reis, o Papa. Roma, que o houvera abandonado, o proclamou santo e mártir. Os Normandos que o mataram, receberam, em
Westminster, as bulas de canonização, repletos de uma compunção hipócrita e chorando a lágrimas quentes.

No momento mesmo da morte, quando os assassinos pilhavam a casa episcopal e que encontraram, nos hábitos do
arcebispo, os rudes cilícios com os quais mortificava a carne, eles ficaram consternados e se diziam, baixinho, como o
centurião do Evangelho: “Verdadeiramente, este homem era um justo” (Vita quadrip., p. 137). Nas narrativas de sua morte,
todo o povo concordava em dizer que, nunca antes, mártir algum havia reproduzido tão completamente a Paixão do Salvador.
Se havia diferenças, estas eram postas em vantagem de Thomas. “O Cristo”, disse um contemporâneo, “foi posto à morte fora
da cidade, num local profano, e num dia em que os Judeus não tinham por sagrado; Thomas pereceu na própria igreja e na
semana do Natal, no dia dos Santos Inocentes[730].

O rei Henrique se encontrava num grande perigo; todo mundo atribuía-lhe o assassinato. O rei da França e o conde de
Champagne o haviam solenemente acusado perante o Papa. O arcebispo de Sens, primaz das Gálias, o excomunhara. Mesmo
aqueles que mais lhe deviam, afastaram-se horrorizados. Ele acalmou o clamor público à força de hipocrisia. Seus bispos
normandos escreveram a Roma que, durante três dias, o rei nada quisera comer ou beber: “Nós que chorávamos o primaz”,
diziam, “acreditamos que ainda teríamos de chorar pelo rei”[731]. A corte de Roma que, de início, afetara uma grande cólera,
findou, no entanto, por se enternecer. O rei jurou que nada tivera com a morte de Thomas; ele ofereceu aos legados submeter-
se à flagelação; ele pôs aos pés do Papa a conquista da Irlanda que acabara de realizar; ele impôs, nesta ilha, o denário de São
Pedro (NT: um tributo em favor da Igreja) sobre cada casa; ele sacrificou as constituições de Clarendon, propôs-se a pagar
pela cruzada e para ela partir, ele próprio, quando o Papa o exigisse[732], e declarou a Inglaterra um feudo da Santa Sé[733].

Não foi o suficiente ter acalmado Roma; ele estaria quite a muito bom preço. Eis que, logo após, seu filho primogênito, o
jovem rei Henrique, reclama sua parte do reino e declara que deseja vingar a morte daquele que o elevara, do santo mártir
Thomas de Canterbury. Os motivos que o jovem príncipe alegava para reivindicar a coroa pareciam, então, muito graves,
ainda que hoje possam parecer fracos. Inicialmente, o próprio rei, servindo-o à mesa, no dia de sua coroação,
imprudentemente dissera que abdicava. A Idade Média tomava a sério qualquer palavra: aquela de Henrique II bastava para
tornar a maior parte dos súditos incerta entre os dois reis. A letra é toda poderosa nos tempos bárbaros. Tal era, então, o
princípio de toda a jurisprudência: Qui virgulâ cadit, causâ cadit[734].

Além disso, Henrique (pai) nada fizera pela morte de São Thomas senão uma satisfação incompleta. A uns, ele ainda
parecia encharcado do sangue de um mártir. Para outros, lembrando-se que ele se oferecera para submeter-se à flagelação,
vendo-o pagar anualmente um tributo expiatório para a cruzada, ele ainda se encontrava em estado de penitência. E, um tal
estado parecia inconciliável com a realeza. Luís o Debonário tornara-se, aos olhos dos nobres, degradado, aviltado para
sempre.

Os filhos de Henrique tinham, ainda, uma desculpa especiosa. Eles eram encorajados, apoiados, pelo rei da França,
senhor suzerano de seu pai. O vínculo feudal passava, então, por superior a todos aqueles da natureza. Vimos que Henrique I
acreditou dever sacrificar seus próprios filhos crianças a seu vassalo. Os filhos de Henrique II acreditavam dever sacrificar
seu próprio pai a seu senhor. Na realidade, o próprio Henrique aparentemente olhava o juramento feudal como o vínculo mais
poderoso, já que não se acreditou seguro até o momento em que forçou seus filhos a lhe prestarem homenagem.

Numa viagem que fazia no Midi, ele viu todos os seus, filhos, sua mulher Eleonora, escaparem, um a um, e
desaparecerem. O jovem Henrique rendeu-se ao lado de seu sogro, o rei da França e, quando os enviados de Henrique II
vieram reclamá-lo em nome do rei da Inglaterra, eles o encontraram sentado perto de Luís VII, na pompa das vestimentas
reais. “De qual rei da Inglaterra falais a mim?”, disse Luís, “ei-lo aqui, o rei da Inglaterra; mais se é ao pai deste, doravante
rei da Inglaterra, a quem atribuís o título, sabei que ele está morto desde o dia em que seu filho usa a coroa; e que se ele ainda
se pretende rei, após ter, à face do mundo, abdicado o reino entre as mãos de seu filho, esta é uma questão para a qual
ministrar-se-á o remédio, antes que seja tarde”[735].
Os dois outros filhos de Henrique, Ricardo de Poitiers (NT: o futuro “Coração de Leão”) e Godofredo, conde da
Bretanha, vieram juntar-se ao irmão primogênito e prestaram homenagem ao rei da França. O perigo tornava-se enorme.
Henrique conseguira, é verdade, providenciar, com uma atividade notável, a defesa de seus estados continentais. Mas ele
ouvia dizer que seu filho primogênito iria passar o estreito com uma frota e um exército do conde de Flandres, a quem fora
prometido o condado de Kent. Mais acima, o rei da Escócia devia invadir a Inglaterra. Ele se apressou em contratar
mercenários, salteadores Brabanções e Gaélicos. Ele comprou, a qualquer preço, o favor de Roma, declarando-se vassalo da
Santa Sé, tanto pela Inglaterra, quanto pela Irlanda, acrescentando esta cláusula digna de nota: “Nós, e nossos sucessores, não
nos acreditaremos reis da Inglaterra senão até que os senhores Papas nos tenham como reis católicos”[736]. Numa outra carta,
ele roga a Alexandre II defender seu reino como feudo da Igreja Romana[737].

Ele não achava ter feito ainda o bastante e dirigiu-se a Canterbury: do ponto mais distante que viu a igreja, apeou do
cavalo e para ela se encaminhou, trajando um rude hábito de lã, pés nus sobre a lama e o cascalho[738]. Chegando ao túmulo
de Becket, jogou-se de joelhos, chorando e soluçando: “Era um espetáculo de fazer tirar lágrimas de todos os
espectadores”[739]. Depois, ele se despiu e todo mundo, bispos, abades, simples monges, foi sucessivamente convidado a dar
no rei alguns golpes de disciplina[740]. “Foi como a flagelação do Cristo”, disse o cronista, “a diferença é que um foi
chicoteado por nossos pecados, o outro pelos seus próprios”[741]. “Todo o dia e toda a noite, ele permaneceu em oração
perto do santo mártir, sem tomar alimento, sem sair por qualquer motivo. Ele ficou tal como chegara; não permitiu sequer que
um tapete fosse colocado sob si. Após as matinas, ele fez o caminho dos altares e dos corpos santos; depois, da igreja
superior, ele ainda tornou a descer à cripta, ao túmulo de São Thomas. Quando veio a manhã, Henrique II pediu para ouvir a
missa; ele bebeu da água abençoada pelo mártir, com ela encheu um frasco e partiu, jubiloso, de Canterbury”[742].

Aparentemente, ele tinha razão de estar jubiloso: pelo momento, ele ganhara a partida. Neste mesmo dia, fizeram-lhe
saber que o rei da Escócia tornara-se seu prisioneiro. O conde de Flandres não ousou tentar a invasão. Todos os partidários
do jovem rei na Inglaterra foram forçados em seus castelos. Na Aquitânia, a guerra teve lances mais variados. Os jovens
príncipes eram aí apoiados pelo rei da França e, sobretudo, pelo ódio ao jugo estrangeiro. No século XII, como no IX, as
guerras dos filhos contra o pai não fizeram senão encobrir aquelas das raças diversas que desejavam libertar-se de uma união
contrária a seus interesses e temperamentos. A Guiana, o Poitou, faziam esforços para se destacarem do Império Inglês, como
a França de Luís o Debonário e de Carlos o Calvo quebrara a unidade do império carolíngio.

A volubilidade dos meridionais, suas revoluções caprichosas, seus desencorajamentos fáceis, eram um bom jogo para o
rei Henrique II. Eles não eram, além disso, de forma alguma apoiados por Toulouse que, só, podia formar o centro de uma
grande guerra na Aquitânia. A prudência os proibia de renovar as tentativas de libertação que sempre se voltavam para sua
própria ruína. Mas era menos o patriotismo que a inquietude de espírito, o vão prazer de brilhar nas guerras, que armava os
nobres do sul. Pode-se julgá-lo pelo que nos resta do mais célebre dentre os mesmos, o trovador Bertrand de Born. Seu único
gozo era jogar alguma boa partida contra seu senhor, o rei Henrique II, armar contra este algum de seus filhos, Henrique,
Godofredo ou Ricardo; depois, quando tudo estava em fogo, fazer uma boa sirvente[743] em seu castelo de Hautefort, como
aquele conhecido Romano que, do alto de uma torre, cantava o incêndio ao meio de uma Roma em brasas. Se havia chance de
um pouco de repouso, este demônio obsessor rapidamente lançava uma sátira aos reis, que os enrubescia por estarem em
descanso, e tornava a lançá-los à guerra.

Não havia, nesta família, senão guerras encarniçadas e traidores pérfidos. Uma vez, o rei Henrique, vindo a uma
conferência com seus filhos, seus soldados desembainharam a espada contra si (Roger. de Hoveden, p. 536; ap. Thierry, III,
312). Era a tradição das duas famílias d’Anjou e da Normandia. Os filhos de Guilherme o Conquistador e de Henrique VI
tinham, mais de uma vez, dirigido a espada contra o peito de seus pais. Foulques pusera o pé sobre o pescoço de seu filho
vencido. A ciumenta Eleonora, passional e vingativa como uma mulher do Sul, cultivou a indocilidade e a impaciência de seus
filhos, conduziu-os ao parricídio. Esses filhos, nos quais se encontrava o sangue de tantas raças diversas, normanda, aquitânia
e saxã, pareciam ter acima de si o orgulho e a violência dos Foulques d’Anjou e dos Guilhermes da Inglaterra, todas as
oposições, todos os ódios e as discórdias dessas raças de onde saíram. Eles jamais souberam se pertenciam ao sul ou ao
norte. O que sabiam, todavia, era que se odiavam uns aos outros e seu pai ainda mais. Eles não podiam subir na sua genealogia
sem encontrar, em algum grau, o rapto, o incesto ou o parricídio. Seu avô, conde de Poitou, tivera sua filha Eleonora de uma
mulher arrebatada a seu marido e um santo homem lhes dissera: “Nada de bom nascerá de vós”[744]. A própria Eleonora
tivera por amante o pai de seu marido Henrique II, e havia um forte risco dos filhos que ela tivera serem, na verdade, não
filhos do pai, mas irmãos deste. Citava-se, sobre Godofredo Plantageneta, pai de Henrique II, a palavra de São Bernardo:
“Ele veio do Diabo, ao Diabo tornará”[745]. Ricardo, um dos filhos, dizia tanto quanto São Bernardo[746]. Esta origem
diabólica era, para eles, um título de família, o qual era justificado por suas obras. Quando um clérigo veio, cruz na mão,
suplicar ao outro filho, Godofredo, reconciliar-se com seu pai e não imitar Absalão: “O que desejas tu?”, respondeu o jovem,
“que eu me desfaça de meu direito de nascença?” – “Isso não agrada a Deus, meu senhor!”, replicou o padre, “eu nada desejo
para vosso detrimento”. – “Tu não compreendes minhas palavras”, disse, então, o conde da Bretanha, “Está no destino de
nossa família que não nos amemos uns aos outros. Tal é a nossa herança e nenhum de nós a ela renunciará”[747].

Havia uma tradição popular a respeito de uma antiga condessa d’Anjou, avó dos Plantagenetas. Contava-se que seu
marido notara que ela jamais ia à missa e sempre saía em segredo. Ele se preparou para retê-la neste momento por quatro
escudeiros. Mas, deixando seu manto nas mãos deles, assim como dois de seus filhos que estavam à sua direita, ela
arrebanhou, com uma dobra do manto, os outros dois filhos que estavam à sua esquerda, lançou-se voando pela janela com
estes últimos e jamais tornou a voltar[748]. É quase a história da Melusina do Poitou e do Delfinado. Obrigada a se
transformar, todos os sábados, metade mulher, metade serpente, Melusina tinha grande necessidade de se manter escondida
neste dia. Seu marido, tendo-a surpreendido, ela desapareceu. Este marido era Godofredo o Dentuço (“à la Grand’Dent”), do
qual se via a imagem em Lusignan, sobre a porta do famoso castelo. Todas as noites quando alguém da família devia morrer,
Melusina aparecia sobre as torres e lançava gritos[749].

A verdadeira Melusina, mistura de naturezas contraditórias, mãe e filha de uma geração diabólica, é Eleonora da
Guiana. Seu marido a puniu pelas rebeliões de seus filhos, mantendo-a prisioneira num castelo forte... ela, que dera a ele
tantos estados patrimoniais. Esta dureza de Henrique II é uma das causas do ódio que os homens do sul tinham por ele. Um
deles, numa crônica bárbara e poética, expressa a esperança que Eleonora logo será libertada por seus filhos. Segundo o
costume da época, ele aplica a profecia de Merlin à toda essa família[750]:

“Todos esses males sobrevieram depois que o rei de Aquilon [751] bateu o venerável Thomas de Canterbury. É a rainha Alienor quem Merlin
designa como ‘a Águia do tratado rompido...’. Regozija-te, então, Aquitânia, regozija-te, terra do Poitou! o cetro do rei de Aquilon vai se distanciar.
Desgraça a ele! Ele ousou levantar a lança contra seu senhor, o rei do Sul...

Diga-me, águia dupla[752], diga-me onde estavas quando teus filhotes, voando do ninho paternal, ousaram erguer seus bicos contra o rei de
Aquilon... Eis porque tu foste arrebanhada de teu país e levada para terra estrangeira. Os cantos se carregaram de lamentos, a cítara deu lugar ao luto.
Nutrida na liberdade real, nos tempos de tua macia juventudade, tuas companheiras cantavam, tu dançavas ao som das guitarras delas... Hoje, conjuro-te
rainha dupla, modera ao menos um pouco tuas lágrimas. Retorna, se puderes, retorna às tuas cidades, pobre prisioneira.

Onde está tua corte? Onde estão tuas jovens companhias? Onde estão teus conselheiros? Uns, arrastados para longe de suas pátrias, sofreram
uma morte ignominosa; outros foram privados da visão; outros, banidos, erram por diferentes lugares. Tu, tu gritas e ninguém te ouve; pois o rei do Norte te
tem trancafiada como uma cidade que é sitiada. Grita, então, não te canses de gritar; eleva tua voz como uma trombeta para que teus filhos te escutem,
pois o dia se aproxima quando teus filhos te libertarão, quando tu reverás teu país natal”[753].

Tal foi a sorte de Henrique, em seus últimos anos, de ser o perseguidor de sua mulher e a execração de seus filhos. Ele
se afundava, em desespero, nos prazeres. Todo envelhecido que estivesse, embranquecendo-se, exibindo um ventre enorme,
ele variava, todos os dias, o adultério e o estupro. Não lhe era suficiente sua bela Rosamunda, da qual sempre tivera os
bastardos à sua volta. Ele estuprou sua prima Alix, herdeira da Bretanha, que lhe fora confiada como refém[754]; e, quando
obteve para seu filho uma filha do rei da França, a qual ainda não estava em idade nubente, ele também maculou esta
criança[755].

Entretanto, a fortuna não se cansava de golpeá-lo. Ele repousara seu coração no prazer, na sensualidade, na natureza. Foi
como amante e como rei que foi batido. Uma tradição conta que Eleonora penetrara o labirinto onde o velho rei acreditava
esconder Rosamunda e que a matara de sua própria mão[756]. Sua indigna conduta em relação às princesas da Bretanha e da
França suscitaram ódios que jamais se extinguiram. Ele amava sobretudo dois de seus filhos, Henrique e Godofredo, os quais
morreram antes de si. O primogênito desejara, ao menos, ver seu pai e pedir-lhe perdão, mas a traição era tão ordinária entre
esses príncipes, que o velho rei hesitou em ir e, pouco depois, soube que já não era mais tempo[757].

Restavam-lhe dois filhos: o feroz Ricardo e o covarde João. Ricardo achava que seu pai vivia muito; ele desejava
reinar. O velho Henrique, recusando-se a abdicar, Ricardo, na presença, mesmo, de seu pai, abjurou sua homenagem e se
declarou vassalo do novo rei da França, Filipe-Augusto. Este último afetava, para ódio do rei da Inglaterra, uma intimidade
fraternal com seu filho revoltado. Eles comiam do mesmo prato e dormiam no mesmo leito[758]. A pregação da cruzada mal
suspendeu as hostilidades entre o filho e o pai. O velho rei viu-se atacado por todos os lados, ao mesmo tempo: ao norte de
Anjou, pelo rei da França; à oeste, pelos Bretões; ao sul, pelos Poitevinos. Apesar da intercessão da Igreja, ele foi obrigado a
aceitar a paz que Filipe e Ricardo lhe ditaram; era necessário que expressamente se declarasse vassalo do rei da França e se
remetesse à sua misericórdia. Ele teria consentido em declarar João herdeiro de todas as suas províncias continentais; era o
mais jovem de seus filhos e, ao que parece, o mais devotado. Quando os enviados do rei da França viram o velho Henrique II,
doente e acamado que estivesse, ele perguntou os nomes dos partidários de Ricardo cuja anistia era uma condição do tratado.
O primeiro nome que lhe foi dito era o de João, seu filho. “Ouvindo ser pronunciado esse nome, presa de um movimento quase
consulviso, ergueu-se e, vagando os olhos penetrantes e ferozes à sua volta: ‘É realmente verdade”, perguntou, “que João, meu
coração, meu filho predileto, aquele que me é mais caro que todos os outros e por amor de quem eu atraí todas as desgraças
que caíram sobre mim, também se separou de mim?’. – Foi-lhe respondido que assim o era e que não havia nada mais
verdadeiro. – ‘Pois bem”, ele disse, tornando a cair sobre seu leito e virando seu rosto contra a parede, “que, doravante, tudo
vá como puder; eu não me preocupo mais comigo e nem com o mundo” (Thierry, III, 381).

A queda de Henrique II foi um grande golpe para o poder inglês. Ele não se reergueu senão imperfeitamente com
Ricardo e, ainda assim, para tornar a cair com João. A corte de Roma aproveitou-se de seus reveses para fazer com que a sua
soberania sobre a monarquia da Inglaterra fosse, duas vezes, reconhecida. Henrique II e João confessaram-se, expressamente,
vassalos e tributários do Papa.

O poder temporal da Santa Sé aumentou; mas pode-se dizer o mesmo de sua autoridade espiritual? Não teria esta última
perdido alguma coisa no respeito dos povos? Esta diplomacia ardilosa, paciente, que bem sabia agir diversionariamente,
adiar, aproveitar a ocasião e aparecer, por um momento, para escamotear um reino, ela devia certamente inspirar uma alta
idéia do savoir-faire dos Papas mas, ao mesmo tempo, alguma dúvida sobre sua santidade. Alexandre III defendera a Itália
contra a Alemanha. Ele, mui habilmente, também se defendera contra o Imperador e o anti-Papa. Mas quem havia, durante esse
tempo, combatido pelas liberdades da Igreja? Quem falara e sofrera pela causa cristã? Um padre, ora abandonado pelo Papa,
ora traído. O Papa aceitara a homenagem de um rei em troca do sangue de um mártir. E, agora, esse mártir tornara-se o maior
santo do Ocidente. Roma, ela própria, fora obrigada a render-lhe homenagem e a proclamá-lo. Ao tempo de Gregório VII, a
santidade era encontrada no Papa e o sentimento religioso estivera de acordo com a hierarquia. Depois, a humanidade,
materialmente emancipada pela cruzada que os Papas não conduziram, pelo primeiro movimento comunal que organizara com
Arnaldo de Brescia, fora revolvida pela voz de Abelardo no que ela possui de mais profundo. Para continuar sua emancipação
religiosa, Thomas de Canterbury vinha de ensiná-la a procurar, em outro local que não fosse Roma, o heroísmo sacerdotal e o
zelo pelas liberdades da igreja.

Não foi, de forma alguma, ao Papa que aproveitaram a morte de São Thomas e o abaixamento de Henrique mas, muito
mais, ao rei da França. Fora ele quem dera asilo ao santo perseguido; ele não o abandonara senão por um breve instante.
Thomas, partindo para o martírio, transmitira-lhe, pelos seus, o seu adeus, declarando-o seu único protetor. O rei da França
foi o primeiro a acusar Roma do assassinato do arcebispo; ele havia, imediatamente, iniciado a guerra e, ainda que isto
também servisse aos seus interesses, os povos o apoiaram. O próprio Papa, quando o Imperador o expulsara da Itália, foi
buscar um asilo na França. Assim, embora mais de uma vez protegesse a Inglaterra quando a França a ameaçava, era com esta
última que mantinha suas relações mais íntimas, as menos interrompidas. O único príncipe seguro, com quem a igreja podia
contar, era o rei da França, inimigo do Inglês, inimigo do Alemão. “Teu reino”, escrevia Inocente III a Filipe Augusto, “é tão
unido com a igreja que um não pode sofrer sem que o outro não sofra igualmente”. Mesmo nos tempos quando a igreja
castigava o rei da França, ela conservava-lhe uma afeição maternal. No tempo de Filipe I, enquanto o rei e o reino eram
atingidos pelo interdito papal, em virtude do rapto de Bertrade, todos os bispos do norte permaneceram a seu lado e o próprio
Papa Pascoal II não teve escrúpulos em visitá-lo.

Em toda ocasião, grande ou pequena, os bispos emprestavam-lhe suas milícias. Até mesmo sobre as terras do Duque da
Borgonha, Luís VII viu-se apoiado pelas milícias de nove dioceses contra Frederico Barba-Ruiva, de quem temia-se uma
invasão (vide mais acima). Luís VI foi igualmente apoiado ante a aproximação do Imperador Henrique V (Radevic. Frising.,
ad. ann. 1157) e, Filipe Augusto, em Bouvines. Como poderia o clero não defender esses reis educados pelas suas próprias
mãos, das quais recebiam uma educação toda clerical? Filipe I, coroado aos sete anos, leu, ele próprio, o juramento que devia
prestar[759]. Luís VI foi educado na abadia de Saint-Denis e Luís VII no claustro de Notre-Dame de Paris (Suger. vit. Lud.
Grossi, ap. Scr. fr. XII, 11. – Fragm. de Lud. VII, ibid. 90) . Três de seus irmãos foram monges. Ninguém mais do que ele
olhava com respeito e terror os privilégios da igreja[760]. Ele reverenciava os padres e passava à sua frente o menor dos
clérigos. Ele fazia três quaresmas, igualando ou ultrapassando as austeridades monacais. Protetor de Thomas de Canterbury,
ele arriscou uma viagem perigosa à Inglaterra para visitar o túmulo do santo[761]. O que digo, então? o rei da França, não era
ele também um santo? Filipe I, Luís o Gordo, Luís VII, tocavam as escrófulas e não conseguiam fazer com que sua solicitude
bastasse ao povo simples[762]. O rei da Inglaterra não ousaria reivindicar-se assim o dom dos milagres[763].

Então, esse bom rei da França ia crescendo, segundo Deus e segundo o mundo. Vassalo de Saint-Denis, desde que
adquirira o Vexin, ele erguia o estandarte da abadia e a oriflama na sua vanguarda [764]. Ele incorporara em suas armas a
mística flor-de-lis, na qual a Idade Média acreditava ver a pureza de sua fé. Como protetor das igrejas, ele reclamava as
rendas durante as vacâncias das sés e impunha o pagamento de algumas somas ao clero, sob o pretexto de fazer a cruzada
(Fragm. histor., ap. Scr. fr. XII, 95).

Filipe Augusto não degenerou. Com exceção das duas épocas de seu divórcio e da invasão da Inglaterra, nenhum rei
esteve mais no coração dos padres. Era um príncipe cauteloso, mais pacífico que guerreiro, quaisquer que tenham sido, sob
seu reino, as aquisições da monarquia. A Filipíada de Guilherme o Bretão (Guillaume le Breton), imitação clássica da Eneida
por um capelão do rei, nos enganou a respeito do verdadeiro caráter de Filipe II. Os romances conseguiram transformá-lo em
herói de cavalaria. Na verdade, o grande sucesso de seu reino, e a própria vitória de Bouvines, foram os frutos de sua política
e da proteção da igreja.

Chamado “Augusto” por ter nascido no mês de agosto, nós o vemos inicialmente, aos quatorze anos, doente de medo por
ter se perdido numa floresta, durante a noite[765]. O primeiro ato de seu reino é eminentemente popular e agradável à igreja.
Seguindo o conselho de um eremita que, então, gozava de uma grande reputação nas cercanias de Paris, ele expulsa e espolia
os Judeus[766]. Era, na opinião do tempo, uma profissão de piedade, um alívio para os cristãos. Aqueles a quem os Judeus
arruinavam e trancavam em suas prisões não faltaram para aplaudir[767].

Os blasfemadores, os heréticos, foram impiedosamente deixados à igreja e religiosamente queimados[768]. Os soldados


mercenários, que os reis ingleses haviam espalhado no sul e que pilhavam por sua própria conta, foram perseguidos por
Filipe. Ele encorajou, contra estes, a população e a associação dos capuchinhos (capuchons)[769]. Os senhores que
humilhavam as igrejas tiveram o rei como inimigo. Ele atacou o duque da Borgonha, seu primo, para obrigá-lo a tratar com
mais respeito os padres desta província. Ele defendeu a igreja de Reims contra uma opressão semelhante. Também escreveu
para o conde de Toulouse, de forma a que viesse a respeitar as santas igrejas de Deus. Enfim, sua vitória de Bouvines foi
como a salvação do clero da França, pois publicava-se que os barões de Otto IV desejavam partilhar os bens eclesiásticos e
espoliar a igreja (Ibid. Vide o próximo capítulo), como o faziam os aliados de Otto, o rei João e os infiéis heréticos do
Languedoc.

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Capítulo VI
1200. Inocente III – O Papa prevalece pelas armas dos Franceses do norte sobre o Rei da Inglaterra e o Imperador da
Alemanha, sobre o Império Grego e sobre os Albigenses – Grandeza do Rei da França.

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A face do mundo estava sombria no fim do século XII. A ordem antiga estava em perigo e a nova ainda não começara.
Não se tratava mais da luta material do Papa e do Imperador, expulsando-se alternativamente de Roma, como ao tempo de
Henrique IV e de Gregório VII. No século XI, o mal estava na superfície. No XII, no coração. Um mal profundo, terrível,
trabalhava o cristianismo. Quão ele desejava voltar à querela das investiduras e ter de discutir apenas a questão do bastão reto
ou curvado! No tempo de Gregório VII, a igreja era a a liberdade; ela sustentara esse caráter até o tempo de Alexandre III, o
chefe da liga lombarda. Mas o próprio Alexandre não ousara apoiar Thomas Becket; ele defendera as liberdades italianas e
traíra aquelas da Inglaterra. Assim, a igreja iria se isolar do grande movimento do mundo. No lugar de guiá-lo e fazê-lo
avançar, ela esforçava-se em imobilizá-lo, esse movimento, de parar a passagem dos tempos, de fixar a terra que girava sob si
e que a levava. Inocente III pareceu consegui-lo; Bonifácio VIII morreu no esforço.

Momento solene e de uma tristeza infinita. A esperança da Cruzada faltara ao mundo. A autoridade não mais parecia
inatacável; ela prometera, ela enganara. A liberdade começava a se esfarelar, mas sob vinte aspectos fantásticos e chocantes,
confusa e convulsiva, multiforme, disforme. A vontade humana paria todo dia e recuava perante seus filhos. Era como nos dias
seculares da grande semana da criação: a natureza, testando-se, lança, de início, produtos bizarros, gigantescos, efêmeros,
monstruosos abortos cujos restos inspiram o horror.

Um coisa penetrava nesta misteriosa anarquia do décimo-segundo século, que se produzia sob a mão da igreja irritada e
trêmula: era um sentimento prodigiosamente audacioso do poder moral e da grandeza do homem. Esta palavra ousada dos
Pelagianos- Cristo nada tem além de mim, pois posso me tornar divino pela virtude – foi reproduzida no século XI sob uma
forma bárbara e mística. O homem declara que o fim chegou e que nele mesmo encontra-se este fim; ele crê em si e se sente
Deus; em todos os lugares, surgem Messias. E não apenas dentro do cinturão do cristianismo mas, mesmo no maometismo,
inimigo da encarnação, o homem se divinizou e adorou-se. Já os Fatímidas do Egito dão o exemplo. O chefe dos Assassinos
também declara ser o imã há muito aguardado, o espírito encarnado de Ali. O mahdi[770] dos Almôadas da África e da
Espanha é reconhecido como tal pelos seus. Na Europa, um messias apareceu em Anvers e todo o populacho o seguiu[771].
Um outro, na Bretanha, parece ter ressuscitado o velho gnosticismo da Irlanda[772]. Amaury de Chartres e seu discípulo, o
bretão David de Dinan, professam que todo cristão é, materialmente, um membro do Cristo[773], dito de outra forma, que
Deus está perpetuamente encarnado no gênero humano. O Filho já reinou o suficiente, eles dizem; reina, agora, o Espírito
Santo. É, sob qualquer ponto de vista, a idéia de Lessing sobre a “educação do gênero humano”[774].

Nada se iguala à audácia desses doutores que, em sua maioria, lecionavam na universidade de Paris (autorizada por
Filipe Augusto em 1200). Acreditava-se asfixiar Abelardo, mas ele vem e fala através de seu discípulo Pedro o Lombardo
que, de Paris, rege toda a filosofia européia; conta-se quase quinhentos comentários deste escolástico. O espírito de inovação
recebeu dois auxiliares. A jurisprudência cresceu ao lado da teologia, abalando-a; os Papas proibiram os padres de ensinar o
direito e não fizeram senão abrir seu ensino aos laicos. A metafísica de Aristóteles chega de Constantinopla, enquanto seus
comentaristas, vindos da Espanha, serão traduzidos do árabe por ordem dos reis de Castela e dos príncipes italianos da Casa
da Suábia (Frederico II e Manfredo). Não é nada menos que a invasão da Grécia e do Oriente na filosofia cristã. Aristóteles
ganha um espaço quase ao nível de Jesus Cristo[775]. Inicialmente proibido pelos Papas, depois tolerado, ele reina nas
cátedras. Aristóteles no alto e, mais abaixo, mas também presentes, os Árabes e os Judeus, com o panteísmo de Averróes e as
sutilezas da cabala. A dialética entra na posse de todos os assuntos e formula todas as questões ousadas. Simon de Tournai
ensina, à vontade, o “pro” e o “contra”. Um dia que maravilhara a Escola de Paris e provara maravilhosamente a verdade da
religião cristã, ele repentinamente exclamou: “Ó menino Jesus, menino Jesus, como ergui tua lei! Se eu o quisesse, poderia,
melhor ainda, rebaixá-la”[776].

Tal é, portanto, a embriaguez e o orgulho do “eu” no seu primeiro despertar. Através do filosofismo, do republicanismo,
do industrialismo, ele ataca o “não-eu” sob três formas. Ele quebra a autoridade, ele doma a natureza. A Escola de Paris
eleva-se entre as jovens comunas de Flandres e os velhos municípios do sul – a lógica entre a indústria e o comércio.

Entretanto, um imenso movimento religioso explodia no povo, em dois pontos de cada vez: o racionalismo valdense nos
Alpes e o misticismo alemão no Reno e nos Países-Baixos.

É porque, de fato, o Reno é um rio sagrado, cheio de histórias e de mistérios. E não falo somente de sua passagem
heróica entre Mainz e Colônia, onde fura seu caminho através do basalto e do granito. Ao sul e ao norte dessa passagem
feudal, ao aproximar-se das cidades santas de Colônia, de Mainz e de Estrasburgo, ele se suaviza, torna-se popular, suas
margens ondulam docemente em belas planícies; ele corre silencioso sob as barcas que lançam as linhas e as redes estendidas
dos pescadores. Mas uma imensa poesia dorme sobre o rio. Isto não é fácil de definir; é a vaga impressão de uma vasta, calma
e doce natureza, talvez uma voz maternal que chama o homem aos elementos e que, como na balada, o atrai alterado para o
fundo das frescas ondas: talvez a atração poética da Virgem, cujas igrejas erguem-se ao longo do Reno até a sua cidade de
Colônia, a cidade das onze mil virgens. Ela não existia no século XII, esta maravilhosa cidade de Colônia, com suas
resplandescentes rosáceas e suas rampas aéreas cujos degraus vão ao céu; a igreja da Virgem não existia, mas a Virgem sim.
Ela estava em todo lugar sobre o Reno, simples mulher alemã; bela ou feia, não sei, mas tão pura, tão tocante e tão resignada.
Tudo isso via-se no quadro da Anunciação em Colônia; o anjo apresenta à virgem, não um belo lírio, como nos quadros
italianos, mas um livro, uma dura sentença, a paixão do Cristo antes de seu nascimento; antes da concepção, todas as dores do
coração maternal. A Virgem também teve sua paixão; ela foi a mulher que restaurou o gênio alemão. O misticismo despertou
pelas devotas beguinas da Alemanha e dos Países-Baixos[777]. Os cavaleiros, os nobres minnesänger, cantavam a mulher
real, a graciosa esposa do landegrave (landgraf) da Turíngia, tão celebrada nos combates poéticos de Wartburg. O povo
adorava a mulher ideal; fazia-se necessário um Deus-mulher para esta doce Alemanha. Entre esse povo, o símbolo do mistério
é a rosa; simplicidade e profundidade, sonhadora infância de um povo a quem foi dado não envelhecer porque vive no infinito,
no eterno.

Esse temperamento místico devia se apagar, aparentemente, descendo-se o Escalda e o Reno, caindo na sensualidade
flamenga e no industrialismo dos Países-Baixos. Mas a própria indústria criara um mundo de homens miseráveis e sedentos de
natureza que a necessidade de cada dia trancava nas trevas de um atelier úmido; laboriosos e pobres, merecedores e
deserdados, não tendo sequer, neste mundo, lugar ao Sol que o bom Deus parece prometer a todas as suas crianças; eles
aprendiam por “ouvir dizer” o que era a verdura das campanhas, o canto dos pássaros e o perfume das flores; raça de
prisioneiros, monges da indústria, celibatários por força da pobreza ou ainda mais infelizes pelo casamento, sofrendo os
sofrimentos de seus filhos. Essa pobre gente, tecelões na maioria, tinha muita necessidade de Deus; no século XII, Deus os
visitou, iluminou suas sombrias moradas e os ninou, ao menos com aparições e sonhos. Solitários e quase selvagens no meio
das cidades mais populosas do mundo, eles abraçaram o Deus de sua alma, seu único bem. O Deus das catedrais, o Deus rico
dos ricos e dos padres, tornou-se, pouco a pouco, estranho. Que desejassem suprimir-lhes a fé, eles se deixavam queimar,
cheios de esperança e jubilosos com o porvir. Algumas vezes, também, levados ao limite, eles deixavam suas cavernas,
ofuscados pelo dia, ferozes, com esse grande e duro olho azul, tão comum na Bélgica, mal armados com seus utensílios, mas
terríveis na sua cegueira e em seu número. Em Gand (Gent), os tecelões ocupavam vinte e sete cruzamentos e formavam um
dos três corpos de membros da cidade (Oudegherst, Chroniques de Flandre, fol. 295) . Em volta de Ypres, nos séculos XIII e
XIV, eles eram mais de duzentos mil (vide mais acima, Livro III).

Raramente, a fagulha fanática tombava em vão sobre essas grandes multidões. Os outros ofícios tomavam partido, menos
numerosos, mas sempre um pessoal forte, melhor alimentado, vermelho, robusto e ousado, homens rudes que tinham fé no
tamanho de seus próprios braços e no peso de suas próprias mãos; ferreiros que, numa revolta, continuavam a bater a bigorna
sobre a armadura dos cavaleiros, calceteiros, padeiros que sovavam a revolta como o pão; açougueiros que praticavam seu
ofício, inescrupulosamente, sobre homens. Na lama dessas ruas, na fumaça, na turba cerrada das cidades grandes, nesse triste
e confuso murmúrio, existe, e nós a provamos, alguma coisa que vira a cabeça: uma sombria poesia de revolta. As pessoas de
Gand, de Bruges, de Ypres, armadas, arregimentadas de avanço, encontravam-se, ao primeiro golpe no sino, sob o estandarte
do burgo-mestre (burgmeister). Por que? eles nem sempre sabiam, mas não lutavam senão melhor. Era o conde, era o bispo,
ou sua própria gente, a causa. Esses Flamengos não amavam muito seus padres: em 1193, haviam estipulado, nos privilégios
de Gand, que poderiam destituir seus curas e capelões à vontade[778].

Bem longe de lá, no fundo dos Alpes, um princípio diferente conduzia a revoluções análogas. Já bem cedo, os
montanheses do Piemonte, delfinenses, gente raciocinadora, argumentadora e fria, sob o vento dos glaciares, começara a
repelir os símbolos, as imagens, as cruzes, os mistérios, toda a poesia cristã. Lá, nenhum panteísmo, como na Alemanha,
nenhum iluminismo, como nos Países-Baixos; puro bom senso, razão árida e prosaica, espírito crítico sob forma grosseira e
popular. Desde os tempos de Carlos Magno, Cláudio de Turim iniciara esta reforma na vertente italiana; ela foi retomada, no
século XII, na vertente francesa, por um homem de Gap ou de Embrum[779], desta região que forneceu mestres-escola a
nossas províncias do Sudeste. Este homem, chamado Pierre de Bruyus, desceu para o Midi, passou o Ródano, percorreu a
Aquitânia, sempre pregando para o povo, com um sucesso imenso. Henrique, seu discípulo, fez ainda mais; ele penetrou o
norte até o Maine; em qualquer lugar, a multidão os seguia, deixando o clero para lá, quebrando cruzes, não querendo mais
culto mas, apenas, a palavra. Esses sectários, reprimidos por um instante, reapareceram em Lyon, sob o mercador Vaud ou
Valdus (Valdo); na Itália, na sequência de Arnaldo de Brescia. Nenhuma heresia, disse um dominicano, é mais perigosa que
esta, porque nenhuma é mais durável[780]. Ele tinha razão, pois não era outra coisa que a revolta da razão contra a
autoridade, da prosa contra a poesia. Os partidários de Valdo, os Valdenses, anunciam-se, inicialmente, como querendo
apenas reproduzir a Igreja dos primeiros tempos na pureza, na pobreza apostólica; eram chamados de “os pobres de Lyon”. A
igreja de Lyon, como nós dissemos alhures, sempre tivera a pretensão de ter sido fiel às tradições do cristianismo primitivo.
Esses Valdenses tiveram a simploriedade de pedir autorização ao Papa; era o mesmo que pedir permissão para se separar da
Igreja[781]. Rejeitados, perseguidos, proscritos, não sobreviveram nas montanhas, nos frios vales dos Alpes, primeiro berço
de sua crença, senão até os massacres de Mérindol e de Cabrières (NT: Cabrières-d’Aigues), no reinado de Francisco I, até o
nascimento do Zuinglianismo e do Calvinismo, que os adotaram como precursores e se esforçaram para criar para si, para sua
igreja recente, não sei qual tipo de perpetuidade secreta, durante a Idade Média, a despeito da perpetuidade católica.

O caráter da reforma, no século XII, foi, então, o racionalismo nos Alpes e no Ródano e o misticismo no Reno. Em
Flandres, ela foi mista e, ainda mais, no Languedoc.

Esse Languedoc era a verdadeira mistura dos povos, a verdadeira Babel. Situado no cotovelo da grande estrada da
França, da Espanha e da Itália, apresentava uma singular fusão dos sangues ibérico, gálico, romano, sarraceno e gótico. Esses
elementos diversos provocavam fortes oposições e aí deveria ter lugar o grande combate das crenças e das raças. Quais
crenças? Eu diria, tranquilamente, “todas”. As próprias pessoas que as combateram não souberam distingui-las e, assim, não
encontraram outra forma para designar esses filhos da confusão senão pelo nome da cidade de Albi: Albigenses.

O elemento semítico, judeu e árabe, era forte no Languedoc. Narbonne fora, por muito tempo, a capital dos Sarracenos
na França. Os Judeus eram inúmeros. Maltratados mas, entretanto, suportando, eles floresciam em Carcassonne, em
Montpellier, em Nîmes; seus rabinos aí mantinham escolas públicas. Eles formavam o elo entre os cristãos e os maometanos,
entre a França e a Espanha. As ciências aplicáveis às necessidades materiais, medicina e matemáticas, eram o estudo comum
aos homens das três religiões. Montpellier era mais ligada a Salerno e a Córdoba que a Roma. Um comércio ativo associava
todos esses povos, mais próximos que separados pelo mar. Sobretudo depois das Cruzadas, o Alto Languedoc havia como que
se inclinado para o Mediterrâneo e se virado para o Oriente; os Condes de Toulouse eram Condes de Trípoli. Os costumes e a
fé equívoca dos cristãos da Terra Santa haviam refluído para nossas províncias do sul. As belas moedas, os belos tecidos da
Ásia, haviam reconciliado bastante nossos cruzados com o mundo maometano[782]. Os mercadores do Languedoc iam-se
sempre para a Ásia, a cruz sobre os ombros, mas era mais para visitar o mercado de Acre que o Santo Sepulcro de Jerusalém.
O espírito mercantil dominara de tal forma as repugnâncias religiosas, que os bispos de Maguelone e de Montpellier
mandavam cunhar moedas sarracenas, ganhavam com a falsificação e descontavam, sem escrúpulos, a impressão do
crescente[783].

A nobreza poderia, aparentemente, se resguardar melhor das novidades. Mas, aqui no Languedoc, ela não era, de forma
alguma, aquela cavalaria do norte, ignorante e piedosa, que ainda podia tomar a cruz em 1200. Esses nobres do sul eram gente
de espírito, cuja maioria bem sabia o que pensar de sua própria nobreza. Não havia quem, se subisse um pouco em sua
genealogia, não encontrasse alguma avó sarracena ou judia[784]. Já vimos que Eudes, o antigo duque da Aquitânia, o
adversário de Carlos Martelo, dera sua filha em casamento a um emir sarraceno (vide Tomo I, Livro II - já vertido para o
português pelo Tradutor). Nos romances carolíngios, os cavaleiros cristãos desposam, sem escrúpulos, sua libertadora, a
filha do Sultão. Para dizer a verdade, nessa região de direito romano, entre os velhos municípios do Império, não havia
precisamente nobres ou, antes, todos o eram; assim os habitantes das cidades se viam e se classificavam, na medida em que os
mesmos constituíam uma espécie de nobreza em relação aos campos. O burguês possuía, como o cavaleiro, sua casa
fortificada e coroada de torres (Aug. Thierry, Lettres ). Ele aparecia nos torneios de cavalaria e, com frequência, lançava o
nobre, que não fazia senão rir, para debaixo da sela[785]. A se julgar pelas injúrias que eles se dizem nas poesias dos
trovadores, havia mais espirituosidade que dignidade na nobreza do sul. Eles trocavam friamente entre si reprovações pelas
quais os cavaleiros do norte ter-se-iam, cem vezes, cortado as gargantas. Assim, Rambaud de Vaqueiras e o marquês Albert
de Malespina, numa tenção[786], acusavam-se mutuamente de terem traído, roubado etc. (Raynouard, “Choix de poésies de
Troubadours”, IV, 135).

Caso se deseje conhecer esses nobres, que se leia o que ainda resta de Bertrad de Born, este inimigo jurado da paz, este
Gascão que passou sua vida a soprar a guerra e a cantar. Bertrand dá ao filho de Eleonora da Guiana, ao fervente Ricardo, um
apelido: Oc et Non (Sim e Não)[787]. Mas este apelido vai muito bem a si próprio e a todos os volúveis espíritos do Midi.

Graciosa, leviana, imoral literatura, que não conheceu outro ideal que não fosse o amor, o amor da mulher que jamais foi
alçada à beleza eterna. Perfume estéril, flor efêmera que cresceu sobre a rocha e que se cansava de si própria, quando a
pesada mão dos homens do Norte veio se colocar em cima e esmagá-la. O primeiro sinal da decadência logo surgiu; a poesia
se transformava em sutilezas, a inspiração em dogmatismo acadêmico, quando veio a cruzada dos Albigenses. O espírito
escolástico e jurista invadiu, desde seu nascimento, as famosas cortes d’amor (cours d’amour). Nele, passava longe a sutileza
de Scot e o pedanstimo de Barthole. As formas jurídicas aí eram rigorosamente observadas na discussão das questões levianas
da galanteria[788]. Por serem pedantescas, as decisões não eram menos imorais. A bela condessa de Narbonne, Ermengarda
(1143-1197), o amor dos poetas e dos reis, decide, numa sentença conservada religiosamente, que o marido divorciado pode
muito bem voltar a ser o amante de sua ex-mulher casada com um outro. Eleonora da Guiana pronuncia que o verdadeiro amor
não pode existir entre cônjuges; ela permite que se tome, por algum tempo, uma outra amante a fim de se testar o fato
(Raynouard, II, 109). A condessa de Flandres, princesa da Casa de Anjou (cerca de 1134) e a condessa de Champagne, filha
de Eleonora, instituíram tribunais semelhantes no norte da França; e, provavelmente, esses grotões que tomaram parte na
cruzada dos Albigenses, foram mediocramente edificados pela jurisprudência das damas do Midi.

A gente do Norte devia levar ainda mais seriamente tantos sacrilégios amorosos que encontramos nas poesias dos
trovadores. Um destes disse: “Este coração tão terno, só Deus o partilha com ela; e, da parte que Ele é o dono, Ele o
enfeudaria a ela, se Deus pudesse ser vassalo” (Sismondi, “Histoire des Littératures du Midi”, I, 165).

Uma palavra sobre a situação política do Midi. Com isso, compreenderemos ainda melhor sua revolução religiosa.

Ao centro, havia a grande cidade de Toulouse, república sob um Conde. Os domínios deste alargavam-se a cada dia.
Desde a primeira cruzada, era o mais rico príncipe da cristandade. Ele perdera a monarquia de Jerusalém, mas tomara a de
Trípoli. Este grande poder estava, é verdade, muito inquietado. Ao norte, os condes de Poitiers, tornados reis da Inglaterra; no
sul, a grande Casa de Barcelona, senhora da Baixa-Provença e de Aragão, tratavam o conde de Toulouse como usurpador,
apesar de uma posse de vários séculos. Essas duas casas de Poitiers e de Barcelona tinham a pretensão de descender de São
Guilherme, o tutor de Luís o Debonário, o vencedor dos Mouros, aquele cujo filho Bernardo fora proscrito por Carlos o
Calvo. Os condes do Roussillon, de Cerdagne, de Conflant, de Bézalu, reclamavam a mesma origem. Todos eram inimigos do
conde de Toulouse. Ele não estava em melhor situação com as Casas de Béziers, Carcassone, Albi e Nîmes. Nos Pirineus,
eram os senhores pobres e corajosos, singularmente empreendedores, gente à venda, espécie de condottieris que a fortuna
destinava às grandes coisas: eu falo das Casas de Foix, de Albret e de Armagnac. Estes últimos também tinham pretensões ao
condado de Toulouse e, com frequência, o atacavam. Conhecemos o papel que eles encenaram nos séculos XIV e XV: história
trágica, incestuosa, ímpia. As províncias do Rouergue e de Armagnac, situadas uma em face da outra, nas duas esquinas da
Aquitânia, são, com Nîmes, como se sabe, a parte enérgica, frequentemente atroz, do sul. Armagnac, Comminges, Béziers,
Toulouse, jamais estavam de acordo, salvo para fazer a guerra contra as igrejas. Os interditos não as preocupavam. O conde
de Comminges mantinha, tranquilamente, três esposas ao mesmo tempo. O conde de Toulouse, Raimundo VI, possuía um
harém; desde sua infância, ele procurava, de preferência, as concubinas de seu pai. Esta Judéia da França, como foi chamado
o Languedoc, não lembrava a outra somente por seu betume e suas oliveiras; ela também tinha sua Sodoma e sua Gomorra e
era de se temer que a vingança da igreja a presenteasse com seu Mar Morto.

Que as crenças orientais tivessem penetrado neste país, é coisa que não surpreende. Toda doutrina era aí recebida; mas
o maniqueísmo, a mais odiosa de todas no mundo cristão, fez com que as outras fossem esquecidas. Ele cedo aparecera, na
Idade Média, na Espanha. Levado, ao que parece, para o Languedoc da Bulgária e de Constantinopla, ele aí deitou raízes com
facilidade[789]. O dualismo persa pareceu-lhes explicar a contradição que igualmente apresentam o universo e o homem.
Raça heterogênea, ele admitiam, com prazer, um mundo heterogêneo; era-lhes necessário, ao lado do bom Deus, um deus mau
a quem pudessem imputar tudo o que o Antigo Testamento apresenta de contrário ao Novo [790]; a este deus era atribuída,
ainda, a degradação do cristianismo e o aviltamento da Igreja. Neles próprios, e em sua própria corrupção, reconheciam a
mão de um criador malfeitor, que brincava com o mundo. Ao bom Deus, o espírito, ao mau, a carne. Esta, era necessário
imolá-la. Eis aí o grande mistério do maniqueísmo. Aqui se apresentava uma bifurcação no caminho. Era preciso domá-la,
essa carne, pela abstinência, jejuar, e tomar de volta do demônio criador tudo aquilo que pudesse alegrar-lhe a vontade. Neste
sistema, o ideal da vida era a morte e a perfeição seria o suicídio. Ou, talvez, seria necessário domar a carne saciando-a,
calar o monstro enchendo sua goela ladrante, nela jogar alguma coisa de si para salvar o resto... ao risco de nela jogar-se todo
e tombar por inteiro?
Sabemos mal quais eram as doutrinas precisas dos maniqueístas do Languedoc. Nas narrativas de seus inimigos, vemos
que lhes são imputadas, ao mesmo tempo, coisas contraditórias que, sem dúvida, se aplicam a seitas diferentes. Segundo uns,
Deus criou; segundo outros, foi o diabo[791]. Uns querem que a salvação se dê pelas obras e, outros, pela fé[792]. Aqueles
pregam um Deus material; estes aqui pensam que Jesus Cristo não está morto de verdade e que apenas uma sombra é quem foi
crucificada[793]. Por outro lado, esses novadores dizem pregar por todos, e vários deles excluem as mulheres da beatitude
eterna[794]. Eles pretendem simplificar a lei e prescrevem cem genuflexões por dia[795]. A coisa na qual parecem estar de
acordo é no ódio ao Deus do Antigo Testamento. “Este Deus que promente e não cumpre”, dizem, “é um malabarista, um
saltimbanco. Moisés e Josué eram carroceiros a Seu serviço”[796].

“De início, é preciso saber que os heréticos reconheciam dois criadores, um das coisas invisíveis, a quem chamavam ‘o
bom Deus’ e o outro do mundo invisível, que nominavam ‘o deus mau’. Ao primeiro, atribuíam o Novo Testamento e, ao
segundo, o Antigo, que rejeitavam profundamente, com exceção de algumas passagens transportadas do Antigo para o Novo, e
que seu respeito por este último fazia com que as admitissem”.

“Eles diziam que o Autor do Antigo Testamento era um mentiroso porque está dito no Gênesis: ‘Quando comerdes da
árvore da ciência do bem e do mal, morrereis de morte’; e, no entanto”, afirmavam, “após terem dela comido, não morreram.
Eles também O consideravam um homicida por ter reduzido a cinzas aqueles de Sodoma e de Gomorra, por ter destruído o
mundo pelas águas do dilúvio, por ter enterrado, sob o mar, o Faraó e os Egípcios. Eles condenavam os Pais do Antigo
Testamento e colocavam São João Batista entre os grandes demônios. Também diziam que esse Cristo que nascera na Belém
terrestre e visível, e que fora crucificado em Jerusalém, não era senão um falso Cristo; que Maria Madalena fora sua
concubina e que era ela a tal mulher surpreendida em adultério, da qual nos fala o Evangelho. O Cristo, afirmavam, jamais
comeu ou bebeu, nem esteve revestido de corpo real e jamais esteve neste mundo senão em forma espiritual, no corpo de São
Paulo. Nós dissemos ‘Belém terrestre e visível’ porque os heréticos imaginavam uma outra terra invisível, onde o bom Cristo
teria sido posto ao mundo e crucificado”.

“Eles ainda diziam que o bom Deus teve duas esposas, Colla e Coliba, e que engendrou filhos e filhas”.

“Outros heréticos diziam que não existe senão um criador, mas que ele teve dois filhos: o Cristo e o Diabo. Estes diziam
que todas as criaturas tinham sido boas, mas que essas mulheres, das quais nos fala o Apocalipse, as haviam corrompido”.

“Todos esses infiéis, membros do Anticristo, primogênitos de Satã, sementes de pecado, crianças do crime, da língua
hipócrita, seduzindo com mentiras o coração dos pobres, tinham infectado, com o veneno de sua perfídia, toda a província de
Narbonne. Diziam que a igreja romana não era mais que uma caverna de ladrões e esta prostituta da qual o Apocalipse nos dá
notícia. Eles anulavam os sacramentos da igreja a este ponto que ensinavam publicamente que a onda do batismo sagrado em
nada difere da água dos rios e que a hóstia do mui Santo corpo do Cristo nada mais é do que o pão laico; insinuando nas
orelhas dos simples essa blasfêmia horrível que, se o corpo do Cristo fosse tão grande quanto os Alpes, ele teria sido
reduzido, depois de muito tempo, a nada, por todos aqueles que o comeram. A confirmação, a confissão, eram coisas frívolas
e vãs; o santo matrimônio uma prostituição, e ninguém poderia ser salvo deste estado procriando filhos e filhas. Negando
também a ressurreição da carne, forjavam também não sei quantas fábulas inauditas, dizendo que nossas almas são espírito
angélicos que, precipitadas do céu por sua presunçosa apostasia, deixaram no ar seus corpos gloriosos, e que essas almas,
após terem sucessivamente passado sobre a terra, por sete corpos quaisquer, a expiação, tendo terminado, retornam para
retomarem seus corpos primeiros”.

“Além disso, é preciso saber que alguns desses heréticos se autodenominavam Perfeitos ou Bons Homens; os outros se
chamavam os Crentes. Os Perfeitos trajavam uma veste negra, afetavam guardar a castidade, repeliam com horror o consumo
das carnes, dos ovos, do queijo; eles desejavam passar por nunca terem mentido, enquanto debitavam contra Deus
principalmente uma mentira perpétua; eles ainda diziam que por nenhuma razão se deve jurar. Chamavam-se Crentes aqueles
que, vivendo no século e procurando imitar a vida dos Perfeitos, esperavam ser salvos pela fé destes últimos; eram dividos
pelo tipo de vida, mas unidos na fé e na infidelidade. Os Crentes se abandonavam à usura, à bandidagem, aos homicídios e aos
prazeres da carne, aos perjúrios e a todos os vícios. Em efeito, eles pecavam com toda segurança e licença porque
acreditavam que, sem a restituição do bem pelo mal adquirido, sem confissão, nem penitência, desde que, por artigo de morte,
pudessem dizer um pater e receber de seus senhores a imposição das mãos. Os heréticos tomavam entre os Perfeitos os
magistrados, a quem chamavam diáconos e bispos; os Crentes pensavam não poder se salvar se não recebessem deles a
imposição das mãos. Se eles repousassem suas mãos num moribundo, por mais criminoso que fosse, desde que este pudesse
dizer um pater, eles o acreditavam salvo e, segundo sua expressão, consolado; sem dar qualquer outro tipo de satisfação e
sem outro remédio, ele deveria voar direto para o céu”.
“... Alguns herético diziam que ninguém podia pecar do umbigo para baixo. Tratavam como idolatria as imagens que
estão nas igrejas e chamavam os sinos de trombetas do demônio. Diziam, ainda, que não era um pecado tão grande dormir com
a própria mãe ou a própria irmã, assim como com qualquer outra. Uma das maiores loucuras era acreditar que, se algum dos
Perfeitos pecasse mortalmente, comendo, por exemplo, seja um pouco de carne ou queijo ou ovos, ou qualquer outra coisa
proibida, todos aqueles a quem consolara perderiam o Espírito Santo e seria necessário consolá-los novamente; e, mesmo
aqueles que já tivessem sido salvos, o pecado do consolador os fazia cair do céu”.

“Havia também, ainda, outros heréticos chamados Valdenses, do nome de um certo Valdus, de Lyon. Estes eram maus,
mas bem menos maus que os outros; pois conosco concordavam em muitas coisas e não divergiam senão sobre algumas. Para
nada dizer da maior parte de suas infidelidades, seu erro consistia, principalmente, em quatro pontos: calçavam sandálias à
maneira dos Apóstolos; diziam que não era permitido, de forma alguma, jurar ou matar; e, sobretudo, que o primeiro deles
podia, à vontade, visto que calçava as sandálias, mas sem ter sido ordenado pela mão do bispo, consagrar o corpo de Jesus
Cristo”.

“Que bastem essas poucas palavras sobre as seitas dos heréticos. – Quando alguém se dá aos heréticos, aquele que o
recebe diz: ‘Amigo, se queres ser dos nossos, é preciso que renuncies a toda a fé que tens na igreja de Roma’. Ele responde:
‘Eu a ela renuncio’. – ‘Recebe, então, o Espírito Santo dos Bons Homens’; e, então, ele sopra sete vezes dentro da boca do
recém-chegado e diz-lhe: ‘Renuncias tu a esta cruz que o padre te fez, no batismo, sobre o peito, os ombros e a cabeça, com o
óleo e a crisma’? – ‘A ela renuncio’. – ‘Acreditas tu que essa água opera tua salvação?’ – ‘Não acredito’. – ‘Renuncias a esse
véu que, em teu batismo, o padre colocou sobre tua cabeça?’ – ‘A ele renuncio’. – É desta forma que ele recebe o batismo dos
heréticos e renega aquele da Igreja. Então, todos colocam as mãos sobre sua cabeça e dão-lhe um beijo, vestem-lhe uma roupa
preta e, doravante, ele se torna um dentre aqueles”[797].

Assim, ao lado da Igreja, erguia-se uma outra igreja, cuja Roma era Toulouse. Um Nicetas de Constantinopla presidira
como papa, perto de Toulouse, em 1167, o concílio dos bispos maniqueístas [798]. A Lombardia, a França do norte, Albi,
Carcassonne, Aran, tinham sido representadas por seus pastores. Nicètas expôs a prática dos maniqueístas da Ásia, da qual o
povo se informava com avidez. O Oriente, a Grécia bizantina, invadiam, definitivamente, a igreja ocidental. Os próprios
Valdenses, cujo racionalismo parece um fruto espontâneo do espírito humano, haviam mandado escrever seus primeiros livros
por um certo Ydros que, a se julgar pelo nome, devia ser um Grego (Steph. de Borb., ap. Gieseler, II, P.2, p. 508) . Aristóteles
e os Árabes entravam ao mesmo tempo na ciência. As antipatias de língua, de raças, de povos, desapareciam. O imperador da
Alemanha, Conrado, era parente de Manuel Comneno. O rei da França dera sua filha a um César bizantino. O rei de Navarra,
Sancho o Encerrado, pedira a mão de uma filha do chefe dos Almóadas. Ricardo Coração de Leão declarara-se irmão em
armas do sultão Malek-Adhel, irmão de Saladino, e ofereceu-lhe sua irmã. Já Henrique II ameçara o Papa de se fazer
maometano. Assegura-se que João realmente ofereceu aos Almóadas apostasiar-se para obter auxílio dos mesmos. Esses reis
da Inglaterra eram estreitamente unidos com o Languedoc e a Espanha. Ricardo deu uma de suas irmãs ao rei da Castela e a
outra a Raimundo VI. Ele cedeu, mesmo, o condado de Agenês a este último e renunciou a todas as pretensões da Casa de
Poitiers sobre Toulouse. Assim, os heréticos, os descrentes, se uniam, se aproximavam de todas as partes. Coincidências
fortuitas também contribuíam; por exemplo, o casamento do imperador Henrique VI com a herdeira da Sicília estabeleceu
comunicações contínuas entre a Alemanha, a Itália e essa ilha completamente árabe de costumes. Parecia que as duas famílias
humanas, a européia e a asiática, tinham ido uma ao encontro da outra; cada uma delas se modificava, como que para destoar
menos de sua irmã. Enquanto os Languedoquenses adotavam a civilização mourisca e as crenças da Ásia, o maometismo como
que se cristianizara no Egito, numa grande parte da Pérsia e da Síria, adotando, sob formas diversas, o dogma da
encarnação[799].

Quais não seriam, então, neste perigo que ameaçava a igreja, a perturbação e a inquietude de seu chefe visível! O Papa
tinha, desde Gregório VII, reclamado o domínio do mundo e a responsabilidade de seu amanhã. Guindado a uma altura imensa,
ele não via senão melhor os perigos que o cercavam. Nesse prodigioso edifício do cristianismo da Idade Média, nesta
catedral da espécie humana, ele ocupava a flecha e aí permanecia no ápice da ponta da cruz, como ocorre com aquela de
Estrasburgo, de onde se pode abraçar com os olhos quarenta cidades e vilarejos sobre as duas margens do Reno. Posição
escorregadia e de uma vertigem assustadora! ... De lá, ele via não sei quantos exércitos que vinham, martelo à mão, para a
destruição do grande edifício, tribos por tribos, gerações por gerações. A massa era compacta; o edifício vivo, construído de
apóstolos, de santos, de doutores, mergulhava, bem longe, seu pé na terra. Mas todos os ventos batiam contra, do oriente e do
ocidente, da Ásia e da Europa, do passado e do porvir. Nenhuma nuvem no horizonte que não prometesse uma tempestade.

O Papa era, então, um Romano, Inocente III[800]. Tal perigo, tal homem. Grande jurista[801], habituado a consultar o
direito sobre qualquer questão, ele examinou-se a si próprio e acreditou em seu direito. Na realidade, a igreja então possuía a
seu favor a imensa maioria, a voz do povo, que é aquela de Deus. Tinha, em qualquer lugar, em tudo, a posse atual, posse
antiga, tão antiga que podia-se acreditar na prescrição. A igreja, neste grande processo, era o defensor, proprietário
reconhecido, estabelecido sobre o fundo de direito disputado, cujos títulos ela possuía: o direito escrito parecia estar por ela.
O demandante era o espírito humano e ele chegava um pouco tarde. Ademais, parecia que este último ia mal, na sua
inexperiência, praticando chicanas sobre os textos legais ao invés de invocar a eqüidade. Que lhe perguntassem o que
desejava, seria impossível compreendê-lo; vozes confusas erguiam-se para responder. Todos demandavam coisas diferentes,
a maior parte desejava menos avançar que retroceder. Em política, eles queriam a república antiga, quer dizer, as liberdades
urbanas, com exceção dos campos. Em religião, uns desejavam suprimir o culto e retornar, afirmavam, aos apóstolos. Outros
desejavam voltar mais para trás e entrar no espírito da Ásia: queriam dois deuses ou, então, preferiam a estrita unidade do
islamismo. Este avançava na direção da Europa; ao mesmo tempo que Saladino retomava Jerusalém, os Almóadas da África
invadiam a Espanha, não com exércitos, como os antigos Árabes, mas com o número e o aspecto temível de uma migração
populacional[802]. Eles eram trezentos ou quatrocentos mil na batalha de Tolosa (Conde, Hist. de la Domination des Arabes
en Espagne, II, 461). O que teria se tornado o mundo se o maometismo tivesse vencido? Trememos só de pensar... Ele vinha
de deitar seu último fruto na Ásia: a ordem dos Assassinos. Já todos os príncipes cristãos e muçulmanos temiam por suas
vidas. Vários dentre estes comunicavam-se, segundo se narrava, com a mencionada Ordem e a encorajavam ao homicídio
contra seus inimigos. Os reis ingleses eram suspeitos de ligações com os Assassinos. O inimigo de Ricardo, Conrado de Tiro
e de Montferrat, pretendente ao trono de Jerusalém, caiu sob seus punhais, no meio de sua capital. Filipe Augusto fingiu
acreditar-se ameaçado e criou uma guarda pessoal, a primeira que tiveram nossos reis. Assim, o terror e o horror animavam a
igreja e o povo; narrativas tenebrosas circulavam. Os Judeus, vívida imagem do Oriente no meio do cristianismo, pareciam
estar aí plantados para excitar o ódio das religiões. Nas épocas dos flagelos naturais, das catástrofes políticas, eles se
correspondiam, contava-se, com os infiéis e os chamavam para dentro da Europa. Ricos por debaixo de seus andrajos,
retirados, sombrios e misteriosos, eles se prestavam às acusações de todas as espécies. Nessas casas sempre fechadas, a
imaginação do povo suspeitava que houvesse alguma coisa de extraordinária. Acreditava-se que para elas atraíam crianças
cristãs para crucificá-las à imagem de Jesus Cristo[803]. Homens em tal situação, sob tantos ultrajes, podiam, de fato, ser
tentados a justificar a perseguição pelo crime.

Tais pareciam, então, os inimigos da igreja; e a igreja era o povo. Os preconceitos do povo, a embriaguez sanguinária
dos ódios e dos terrores, tudo isso subia por todas as classes do clero até chegar ao Papa. Seria também cometer uma grande
injúria à natureza humana acreditar que apenas o egoísmo ou o espírito de corpo encorajaram os chefes da igreja. Não, tudo
indica que, no século XIII, eles estivessem ainda mais convencidos de seu direito. Admitidos esses direitos adquiridos, todos
os meios pareceram bons para defendê-lo. Não foi em virtude de um interesse humano que São Dominique (São Domingos de
Gusmão) percorria os campos do sul, só e sem arma, ao meio dos sectários que ele remetia à morte, procurando e dando o
martírio com a mesma avidez[804]. E qualquer que tivesse sido, neste grande e terrível Inocente III, a tentação do orgulho e da
vingança, outros motivos também o encorajaram na Cruzada dos Albigenses e na fundação da inquisição dominicana. Ele vira
em sonhos, conta-se, a ordem dos Dominicanos como uma grande árvore contra a qual pendia e se apoiava a igreja de Latrão,
prestes a tombar. Mais ela oscilava, esta Igreja, mais seu chefe aumentava seu orgulho. Quanto mais se negava, mais ele
afirmava. À medida que seus inimigos cresciam em número, ele crescia em audácia e tornava-se cada vez mais inflexível.
Suas pretensões, para além daquelas de Gregório VII e de Alexandre III, aumentaram com seu perigo. Nenhum Papa bateu nos
reis como ele. Para aqueles da França e de Leão, ele tirou-lhes suas esposas; em relação aos de Portugal, de Aragão e da
Inglaterra, ele os tratou como vassalos e os obrigou a pagarem tributo (Gieseler, II, P. 2, p. 106) . Gregório VII chegara a
dizer, ou mandar dizer por seus canonistas, que o Império fora fundado pelo diabo e o sacerdócio por Deus (Id. ibid., p. 95).
O sacerdócio, Alexandre III e Inocente III o concentraram em suas mãos. Os bispos, para ouvi-los, deviam ser nomeados e
depostos pelo Papa, congregados a seu prazer, e seus julgamentos reformados apenas por Roma[805]. Aí residia a própria
Igreja, o tesouro das misericórdias e das vinganças; o Papa, único juiz do justo e do verdadeiro, dispunha soberanamente do
crime e da inocência, desfazia os reis e fazia os santos[806].

O mundo civil se debatia, então, entre o Imperador, o rei da Inglaterra e o rei da França; os dois primeiros, inimigos do
Papa. O Imperador era o mais próximo. Era um costume da Alemanha “inundar” periodicamente a Itália, depois refluir, sem
deixar muitas marcas[807]. O Imperador para lá se dirigia, lança sobre a coxa, pelos desfiladeiros do Tirol, à testa de uma
grande e pesada cavalaria, até à Lombardia, na planície de Roncaglia. Para aí se dirigiam os juristas de Ravena e de Bolonha,
para darem seus pareceres sobre os direitos imperiais (Vide Sismondi, ‘Républiques Italliénnes’, t. II). Após terem
demonstrado aos Alemães, em latim, que seu rei da Germânia, que seu César, possuía todos os direitos do antigo Império
Romano, ele ia à Monza, perto de Milão, com grande desdém pelas cidades, tomar a coroa de ferro. Mas a campanha não seria
bela se ele não esticasse até Roma e não se fizesse coroar pelas mãos do Papa. As coisas raramente chegavam até esse ponto.
Os barões alemães estavam exaustos do sol italiano; tinham dado seu tempo lealmente e, pouco a pouco, escoavam-se dali; o
Imperador, quase só, cruzava, como pudesse, os montes (Ibid, p. 72, 168. Otto Frising, l. II, c. 25. Baron annal., § 75-78). Ao
menos, ele trazia consigo uma magnífica idéia de seus direitos. O difícil era exercê-los. Os senhores alemães, que haviam
pacientemente escutado os doutores de Bolonha, não permitiam a seu chefe, de forma alguma, praticar as lições ouvidas. E,
mesmo para o maior dos grandes imperadores, Frederico Barba-Ruiva, era difícil ensaiá-las. Esta idéia de um direito imenso,
de um gigantesco poder, todos os rancores desta velha guerra, Henrique VI trouxe consigo ao nascer. É, talvez, o único
Imperador no qual nada se encontra do bom temperamento germânico. Ele foi para Nápoles e para a Sicília, herança de sua
mulher, um conquistador sanguinário, um furioso tirano (vide Raumer, ‘Geschichte der Hohenstaufen’, III, l. 6) . Ele morreu
jovem, envenenado por sua própria mulher, ou consumido por suas próprias violências. Seu filho, pupilo do Papa Inocente III,
foi um imperador todo italiano, um Siciliano, amigo dos Árabes, o mais terrível inimigo da Igreja.

O rei da Inglaterra não era menos hostil ao Papa; alternativamente inimigo e vassalo, como um leão que quebra e veste
sua corrente. Era, então, justamente o Coração de Leão, o aquitânio Ricardo, o verdadeiro filho de sua mãe Eleonora, aquele
cujas revoltas a vingavam das infidelidades de Henrique II. Ricardo e João, seu irmão, amavam o sul da França, o país de sua
mãe: eles se entendiam com Toulouse, com os inimigos da Igreja. Sempre prometendo ou fazendo a cruzada, eles eram
afeiçoados aos muçulmanos.

O jovem Filipe, rei aos quinze anos sob a tutela do conde de Flandres (1180), e dirigido por um Clemente de Metz, seu
governador e marechal do palácio[808], desposou a filha do conde de Flandres, malgrado sua mãe e seus tios, os príncipes de
Champagne. Esse casamento ligava os Capetíngios à raça de Carlos Magno, de quem os Condes de Flandres descendiam[809].
O conde de Flandres entregou ao rei a cidade de Amiens, quer dizer, a barreira do Somme, e prometia-lhe o Artois, o Valois e
o Vermandois. Enquanto o rei não possuísse o Oise e o Somme, mal se podia afirmar que a monarquia havia sido fundada.
Mas, uma vez senhor da Picardia, ele pouco tinha a temer Flandres e podia tomar a Normandia por trás. O conde de Flandres
tentou, em vão, retomar Amiens, confederando-se com os tios do rei[810]. Mas este último provocou a intervenção do ancião
Henrique II, que temia em Filipe a amizade de seu filho Ricardo, e ele conseguiu, ainda, que o conde de Flandres lhe rendesse
uma parte do Vermandois (Oise). Depois, quando o Flamengo estava próximo de partir para a cruzada, Filipe, apoiando a
revolta de Ricardo contra seu pai, apoderou-se de duas praças importantes de Mans e de Tours (Rigordus, ap. Scr. fr. XVII,
28): com uma, ele inquietava a Normandia e a Bretanha e, pela outra, ele dominava o Loire. Ele passou a ter em seus
domínios, desde então, os três grandes arcebispados do reino: Reims, Tours e Bourges, metrópoles da Bélgica, da Bretanha e
da Aquitânia.

A morte de Henrique II foi um grande infortúnio para Filipe, pois colocava sobre o trono da Inglaterra seu grande amigo
Ricardo, com quem comia e dormia[811], e que lhe era tão útil para atormentar o velho rei. O próprio Ricardo tornou-se o
rival de Filipe, rival brilhante que possuía todos os defeitos dos homens da Idade Média, e que não poderia melhor agradá-
los. O filho de Eleonora era sobretudo célebre por este valor impetuoso que é tão frequentemente encontrado entre os
meridionais[812]. Mal o filho pródigo teve a herança paterna na mão, que a deu, vendeu, perdeu, gastou. Ele desejava, a
qualquer preço, obter dinheiro sonante e partir para a cruzada. Ele encontrou, então, em Salisbury, um tesouro de cem mil
marcos (Lingard, ‘Histoire d’Angleterre’, II, 500) , todo um século de rapinas e de tirania. Não era o bastante: ele vendeu
Northumberlad ao bispo de Durham, enquanto durasse sua vida (Hoveden, ibid. 501). Ele vendeu ao rei da Escócia Berwick,
Roxburgh e esta gloriosa suzerania que tanto custara a seus pais (ibid). Ele deu a João, acreditando que isso o aproximaria de
si, um condado na Normandia e sete na Inglaterra (Hoveden, p. 373, ibid. 500): era quase um terço de todo o reino. Ele
esperava ganhar na Ásia bem mais do que sacrificava na Europa.

A cruzada tornava-se cada vez mais necessária. Luís VII e Henrique II haviam tomado a cruz e ficaram parados. O atraso
deles ocasionara a ruína de Jerusalém (1187). Essa desgraça era um pecado enorme para os reis defuntos, pesando-lhes sobre
a alma e cobrindo suas memórias com uma mancha, a qual seus filhos pareciam aptos a lavar. Ainda que estivesse bem pouco
impaciente de executar esta expedição ruinosa, tornou-se impossível a Filipe Augusto dela se subtrair. Se a tomada de Edessa
decidira, cinquenta anos antes, a segunda cruzada, qual não deveria ser aquela de Jerusalém? Os cristão não tinham mais a
Terra Santa senão em suas bordas, por assim dizer. Eles sitiavam o Acre (São João d’Acre), o único porto que podia receber
as frotas dos peregrinos e assegurar as comunicações com o Ocidente.

O marquês de Montferrat, príncipe de Tiro e pretendente ao trono de Jerusalém, mandava peregrinar pela Europa uma
representação da infeliz cidade. No meio, erguia-se o Santo Sepulcro e, por cima deste, um cavaleiro sarraceno cujo cavalo
emporcalhava o túmulo de Nosso Senhor. Essa imagem de opróbio e de amarga reprovação perfurava a alma dos Cristãos
ocidentais; não se via senão pessoas que se batiam o peito e lamentavam: “Desgraçado sou!” (Boha-Eddin., Biblioth. des
Croisades, III, 242).

O maometismo provava, depois de cerca de meio século, uma espécie de reforma e de restauração que acarretara a ruína
do pequeno reino de Jerusalém. Os Atabegues da Síria, Zengi e seu filho Nuradino, dois santos do Islamismo[813], originários
do Iraque (Babilônia), haviam fundado, entre o Eufrates e os Montes Tauro, uma potência militar, rival e inimiga dos
Fatímidas do Egito e dos Assassinos. Os Atabegues se sujeitavam à lei estrita do Corão e detestavam a interpretação, fonte de
tanto abuso. Estavam ligados ao califa de Bagdá; este caduco ídolo, desde há muito tempo escravo dos chefes militares que se
sucediam, os viu se submeterem voluntariamente a si e prestarem-lhe a homenagem de suas conquistas. Os Álidas, os
Assassinos, os espíritos fortes, os felah ou filósofos[814], foram perseguidos encarniçadamente e impiedosamente postos à
morte, à semelhança dos inovadores na Europa. Espetáculo bizarro: duas religiões inimigas, estranhas uma à outra,
concordavam inconscientemente em proscrever, na mesma época, a liberdade de pensamento. Nuradino era um jurista, assim
como o era Inocente III,e seu general Ṣ alā ḥ ad-Dīn Yūsuf ibn Ayyūb (Saladino – em curdo: Selah'edînê Eyubî) atropelava os cismáticos
muçulmanos do Egito, enquanto Simon de Montfort exterminava os cismáticos cristãos do Languedoc[815].

Todavia, a escarpa da inovação era tão rápida e tão fatal, que os filhos de Nuradino já se aproximavam dos Álidas e dos
Assassinos e Saladino foi obrigado a esmagá-los. Esse curdo (D’Herbelot, ‘Bibliothèque Orientale), esse bárbaro, o
Godofredo ou o São Luís do maometismo, grande alma a serviço de tão pequenas devoções[816], natureza humana e generosa
que impunha-se a intolerância, ensinou aos Cristãos uma perigosa verdade, a de que um circunciso podia ser um santo, que um
maometano podia nascer cavaleiro pela pureza do coração e pela magnanimidade[817].

Saladino desferira dois golpes sobre os inimigos do Islamismo. De um lado, ele invadiu o Egito, destronou os Fatímidas,
destruiu o lar das crenças ousadas que penetraram em toda a Ásia. De outro, ele atropelou o pequeno reino cristão de
Jerusalém, desafiou e aprisionou o rei Lusignan (NT: Amaury II de Lusignan) na batalha de Tiberíades e se apossou da cidade
santa[818]. Sua humanidade por seus cativos contrastava, de uma maneira chocante, com a dureza dos cristãos da Ásia por
seus irmãos. Enquanto aqueles de Trípoli fechavam suas portas aos fugitivos de Jerusalém, Saladino empregava o dinheiro
que sobrara das despesas do cerco de Jerusalém para a libertação dos pobres e dos órfãos que se encontravam entre as mãos
de seus soldados; seu irmão, Malek Al-Adil (ou Adhel), por sua vez, libertou dois mil (Michaud, ‘Hist. des Croisades’, II,
346, 350).

Quase sozinha, a França executara a primeira cruzada. A Alemanha havia contribuído poderosamente para a segunda. A
terceira foi popular sobretudo na Inglaterra. Mas o rei Ricardo não conduziu senão cavaleiros e soldados; nenhum homem
inútil foi levado, como nas primeiras cruzadas. O rei da França fez outro tanto e ambos passaram à Ásia em vasos genoveses e
marselheses. Entretanto, o imperador Frederico Barba-Ruiva já havia partido por terra com um grande e formidável exército.
Ele desejava reerguer sua reputação militar e religiosa comprometida por suas guerras da Itália. As dificuldades sob as quais
sucumbiram Conrado e Luís VII, na Ásia Menor, Frederico as superou. Este herói, já velho e cansado de tantas desgraças,
ainda assim triunfou sobre a natureza e a perfídia dos Gregos e sobre as armadilhas do sultão de Icônio, a quem impôs uma
formidável derrota[819]; mas tudo isso apenas para perecer, sem glória, nas águas de um malvado ribeirão da Ásia[820]. Seu
filho, Frederico da Suábia, mal sobreviveu-lhe por um ano; languescente e enfermo, ele recusou-se a escutar os médicos que
lhe prescreviam a incontinência e deixou-se morrer, carregando consigo, a exemplo de Godofredo de Bouillon, a glória da
virgindade[821].

Entretanto, os reis da França e da Inglaterra seguiam, juntos, a rota do mar, com percepções bem diferentes. Desde a
Sicília, os dois amigos estavam estremecidos. Era, nós o vimos pelo exemplo de Boemundo e de Raimundo de Saint-Gilles, a
tentação dos Normandos e dos Aquitânios de pararem no caminho da cruzada. Na primeira, eles desejavam estacionar em
Constantinopla, depois, em Antióquia. O gascão-normando Ricardo Coração de Leão também teve vontade de fazer alto nesta
bela Sicília. Tancredo, que nela se fizera rei, não tinha por si senão a voz do povo e o ódio dos Alemães, que reclamavam em
nome de Constância, filha do último rei e mulher do Imperador. Tancredo pusera a viúva de seu predecessor na prisão, a qual
era, por acaso, a irmã do rei da Inglaterra. Ricardo não podia ter pedido nada melhor para vingar esse ultraje. Já, sob um
pretexto qualquer, ele plantara sua bandeira sobre Messina[822]. Tancredo não teve outro recurso senão o de ganhar Filipe
Augusto para si, o qual, como suzerano de Ricardo, obrigou-o a arriar seus pendões. A inveja chegara ao ponto de, a se crer
nos Sicilianos, o rei da França ter-lhes solicitado exterminar os Ingleses. Foi preciso que Ricardo se contentasse com vinte
mil onças de ouro que Tancredo ofereceu-lhe como arras[823] de sua irmã; ele também devia dar a Ricardo um dote em favor
de uma de suas filhas, a qual se casaria com um sobrinho de Ricardo. O rei da França não permitiu que ele, sozinho, recebesse
essa soma enorme. Ele reclamou bem alto contra a perfídia de Ricardo, o qual prometera casar-se com sua irmã e que trouxera
à Sicília, com o status de noiva, uma princesa de Navarra. Ele sabia muito bem que esta irmã fora seduzida pelo velho
Henrique II; Ricardo pediu para fazer a prova da coisa e ofereceu-lhe, ainda, dez mil marcos de prata para ser liberado de seu
compromisso. Filipe embolsou, sem escrúpulos, o dinheiro e a vergonha[824].

O rei da Inglaterra foi mais feliz em Chipre. O pequeno rei grego da ilha, tendo deitado a mão sobre um dos barcos de
Ricardo que fora lançado à praia e no qual se encontravam sua mãe e sua irmã, Ricardo não perdeu uma ocasião tão bela.
Conquistou a ilha sem dificuldade e amarrou o rei com correntes de prata (Bened. Petrob., p. 517. Joh. Bromton, p. 1197) .
Filipe Augusto já o aguardava à frente de Acre, recusando-se a lançar o assalto antes da chegada de seu irmão d’armas.

Um autor estima em seiscentos mil homens o número de cristãos que foram, sucessivamente, combater nesta arena do
cerco de Acre (Boha-Eddin., ‘Bibliot. des Croisades’, IV, 359) . Cento e vinte mil morreram aí[825], uma multidão de homens
de toda espécie, livres ou servos, mistura de todas as raças, de todas as condições, turba cega que se lançava à aventura ou
que era conduzida pelo furor divino, inspiração poética, estro da cruzada. Estes últimos eram os cavaleiros, os soldados, a
flor da Europa. Toda a Europa encontrava-se representada, nação a nação. Uma frota siciliana viera inicialmente; depois, os
Belgas, Frísios e Dinamarqueses; depois, sob o conde de Champagne, um exército de Franceses, Ingleses e Italianos; depois,
os Alemães, conduzidos pelo duque da Suábia, após a morte de Frederico Barba-Ruiva. Então, chegaram, com as frotas de
Gênova, de Pisa e de Marselha, os Franceses de Filipe Augusto e os Ingleses de Ricardo Coração de Leão. Mesmo antes da
chegada dos dois reis, o exército já era tão formidável, que um cavaleiro exclamava: “Que Deus apenas fique neutro e nós
teremos a vitória!” (Galter. de Vinis., ap. Michaud, II, 399).

Do outro lado, Saladino escrevera ao califa de Bagdá e a todos os príncipes muçulmanos a fim de obter auxílio. Era a
luta da Europa e da Ásia, tratando-se de outra coisa que não cidade de Acre. Espíritos fogosos, como os de Ricardo e de
Saladino, nutriam outros pensamentos, com vistas ao porvir. O último não se propunha nada menos que uma anti-cruzada, uma
grande expedição que penetraria através de toda a Europa até o coração do país dos Francos[826]. Esse projeto temerário
teria, entretanto, espantado a Europa, se Saladino, atropelando o fraco império grego, tivesse aparecido na Hungria e na
Alemanha, no preciso momento onde quatrocentos mil Almóadas tentavam forçar a barreira da Espanha e dos Pirineus.

Os esforços foram proporcionais à grandeza do prêmio. Tudo aquilo que se sabia de arte militar foi posto em jogo, as
táticas antigas e as feudais, a européia e a asiática, as torres móveis, o fogo grego, todas as máquinas então conhecidas. Os
cristãos, dizem os historiadores árabes, haviam transportado as lavas do Etna e as lançavam nas cidades, como os relâmpagos
dardejados contra os anjos rebeldes . Mas a mais terrível máquina de guerra era o próprio Coração de Leão. Esse filho
malvado de Henrique II, o filho da cólera, cuja toda vida foi como um acesso de violência furiosa, adquiriu, entre os
Sarracenos, um renome imperecível de valentia e de crueldade. Quando a guarnição de Acre fora forçada a capitular,
Saladino, recusando-se a resgatar os prisioneiros, Ricardo mandou degolá-los todos entre os dois campos. Este homem
terrível não poupava nem o inimigo, nem os seus, nem a si próprio. Ele retornou da contenda, disse um historiador, todo
eriçado de flechas, semelhante a um novelo coberto de agulhas (Gaut. de Vinisauf, ap. Michaud, II, 509). Ainda muito tempo
depois, as mães árabes, para conseguirem calar seus pequenos, invocavam o nome do rei Ricardo; e, quando o cavalo de um
Sarraceno tropeçava, o cavaleiro perguntava-lhe: Então, tu achas ter visto Ricardo da Inglaterra?[827]

Este valor e todos esses esforços produziram pouco resultado. Todas as nações da Europa estavam, nós o dissemos,
representadas no sítio de Acre, mas, também, todos os ódios nacionais. Cada uma combatia como por sua própria conta e
tratava de atrapalhar as outras, ao invés de secundá-las; os Genoveses, os Pisanos, os Venezianos, rivais de guerra e de
comércio, olhavam-se com olhos hostis. Os Templários e os Hospitalários à pena seguravam suas mãos para não irem às vias
de fato. Havia, no campo, dois reis de Jerusalém, Gui de Lusignan, apoiado por Filipe Augusto, e Conrado de Tiro e
Montferrat, apoiado por Ricardo. A inveja de Filipe aumentava na proporção da glória de seu rival. Caindo doente, ele o
acusava de tê-lo envenenado; reclamava, ainda, metade da ilha de Chipre e do dinheiro de Tancredo. Enfim, ele abandonou a
cruzada e embarcou quase só, lá deixando os Franceses envergonhados de sua partida[828]. Ricardo, só, não teve melhor
sucesso: ele chocava todo mundo por sua insolência e seu orgulho. Os Alemães, tendo arborado seus pendões sobre uma parte
dos muros, ele ordenou que fossem jogados à fossa[829]. Sua vitória em Assur foi inútil; ele perdeu o momento de tomar
Jerusalém ao recusar-se a prometer a vida à guarnição. No momento quando ele se aproximava da cidade, o duque da
Borgonha o abandonou com o que restava de Franceses. Desde então, tudo estava perdido; um cavaleiro, mostrando-lhe de
longe a Cidade Santa, ele pôs-se a chorar e ergueu sua cota de malhas à frente de seus olhos, dizendo: “Senhor, não permita
que eu veja Tua cidade, eis que eu não soube libertá-la”[830].

Esta cruzada foi, efetivamente, a última. A Ásia e a Europa se haviam aproximado e se viram invencíveis. Doravante,
será na direção de outros lugares, Egito, Constantinopla, para qualquer lugar que não a Terra Santa, que dirigir-se-ão, sob
pretextos mais ou menos especiosos, as grandes expedições dos cristãos. O entusiasmo religioso, além do mais, diminuiu
consideravelmente; os milagres, as revelações, que distinguiram a primeira cruzada, desapareceram na terceira. Foi uma
grande expedição militar, uma luta de raças, tanto quanto de religião; esse longo sítio é, para a Idade Média, como um cerco
de Tróia. A planície de Acre tornou-se a pátria comum para as duas partes que, medindo-se, vendo-se todos os dias, se
conheceram e os ódios foram apagados. O campo dos cristãos tornou-se uma grande cidade frequentada pelos mercadores das
duas religiões[831]: eles se vêem com prazer, dançam juntos, e os menestréis cristãos associam suas vozes ao som dos
instrumentos árabes[832]. Os sapadores das duas partes, que eventualmente se encontram em seu trabalho subterrâneo,
combinam não se prejudicarem mutuamente. Mais que isso, cada parte vem a odiar-se a si própria mais que ao inimigo.
Ricardo é mais inimigo de Filipe Augusto que de Saladino, o qual, por sua vez, detesta os Assassinos e os Álidas mais que os
cristãos[833].

Durante todo esse grande movimento do mundo, o rei da França tratava de seus negócios com pouco barulho: a honra a
Ricardo, o lucro a si; ele parecia resignado à partilha. Ricardo fica encarregado da causa da cristandade, diverte-se com as
aventuras e com os golpes de espada, imortaliza-se e empobrece. Filipe, que partiu jurando não prejudicar seu rival, não
perde tempo; ele passa em Roma para pedir ao Papa que o desligue de seu juramento[834]. Ele ingressa na França a tempo de
partilhar Flandres, quando da morte de Filipe da Alsácia, e obriga sua filha e seu genro, o conde de Hainaut, a deixarem uma
parte, a título de arras, à viúva; mas ele guarda para si próprio o Artois e Saint-Omer, em memória de sua mulher Isabela de
Flandres (Ibid.. p. 542. Oudegherst, c. 88). Entretanto, ele incentiva os Aquitânios à revolta, encoraja o irmão de Ricardo a
ocupar o trono. As raposas fazem sua mão na ausência do leão. Quem sabe se ele retornará? provavelmente, far-se-á morrer
ou aprisionar. E, de fato, ele foi preso pelos cristãos, em traição. Este mesmo duque da Áustria, que fora ultrajado quando
Ricardo lançou o pavilhão nas fossas de São João d’Acre, o surpreendeu quando passava incógnito sobre suas terras e o
entregou ao imperador Henrique VI[835]. Era o direito da Idade Mèdia. O estrangeiro que passasse sobre as terras do senhor
sem seu consentimento, passava a pertencer-lhe. O Imperador não se inquietou com o privilégio da cruzada. Ele destruíra os
Normandos da Sicília e achou bom humilhar aqueles da Inglaterra. Além do mais, João da Inglaterra e Filipe Augusto da
França ofereciam-lhe tanto dinheiro quanto aquele que Ricardo pudesse dar para resgatar-se (Scr. rer. fr. XVIII, 38) . Ele, sem
dúvida, teria sido guardado pelo Imperador se a velha Eleonora, o Papa e os próprios senhores alemães não o fizessem sentir
vergonha em deter o herói da cruzada[836]. Todavia, ele não o deixou senão após exigir um enorme resgate de cento e
cinquenta mil marcos de prata; além disso, era preciso que, descobrindo a cabeça, Ricardo prestasse-lhe homenagem, numa
dieta do Império[837]. Henrique concedeu-lhe, em retribuição, o derrisório título do reino de Arles. O herói retornou à sua
casa (1194), após um cativeiro de treze meses, rei de Arles, vassalo do Império e arruinado. Bastou-lhe reaparecer para
reduzir João e repelir Filipe. Seus últimos anos escoaram-se sem glória, numa alternância de tréguas e de pequenas guerras.
Entretanto, os condes da Bretanha, de Flandres, de Boulogne, da Champagne e de Blois estavam por si contra Filipe. Ricardo
pereceu no sítio de Châlus, quando desejava forçar o senhor, seu vassalo, a entregar-lhe um tesouro (1199) [838]. João
sucedeu-lhe, ainda que Ricardo houvesse designado como seu sucessor o jovem Arthur, seu sobrinho, duque da Bretanha.

Este período não foi mais glorioso para Filipe. Os grandes vassalos estavam invejosos de seu agigantamento; ele
imprudentemente se desentendera com o Papa, cuja amizade alçara tão alto sua Casa. Filipe, que desposara uma princesa
dinamarquesa com a única esperança de obter um movimento diversionário dos Dinamarqueses contra Ricardo, desgostou-se
da jovem bárbara desde o dia das bodas (Rigord., ap. Scr. fr. XVII, 38. Gesta Innoc. III, ap. Scr. fr., XIX, 343) . Não tendo
mais necessidade do auxílio de seu pai, ele a repudiou para casar-se com Agnès de Meranie, da Casa do Franco-Condado.
Esse infeliz divórcio, que o embrulhou, por vários anos, com a Igreja, o condenou à inação e o tornou espectador imóvel e
impotente dos grandes acontecimentos que se passaram então, entre a morte de Ricardo e a quarta cruzada.

Os Ocidentais tinham pouca esperança em serem bem sucedidos numa empresa onde fracassara seu herói, o Coração de
Leão. Entretanto, uma vez dado o impulso, há um século, o mesmo continuava por si só. Os políticos tentaram colocá-lo a
favor de seus próprios benefícios. O imperador Henrique VI a pregou, ele próprio, na assembléia de Worms, declarando que
desejava expiar o cativeiro de Ricardo. O entusiasmo foi ao cúmulo; todos os príncipes alemães tomaram a cruz. Um grande
número encaminhou-se por Constantinopla; outros decidiram-se a seguir o Imperador, que os persuadiu que a Sicília era o
verdadeiro caminho da Terra Santa. Ele daí tira um poderoso auxílio para conquistar esse reino do qual sua mulher era
herdeira, mas cujo povo, normandos, italianos, árabes, estava de acordo para repelir os Alemães. Henrique não se tornou o
senhor da Sicília senão fazendo correr torrentes de sangue. Conta-se que sua própria mulher o envenenou, vingando sua pátria
na pessoa de seu marido. Este, alimentado pelos juristas de Bolonha na idéia do direito ilimitado dos Césares, contava fazer-
se da Sicília um ponto de partida para invadir o império grego, como fizera Roberto Guiscardo e, depois, retornar à Itália e
reduzir o Papa ao nível do patriarca de Constantinopla.

Esta conquista do império grego, que ele não pôde realizar, foi a sequência, o efeito imprevisto da quarta cruzada. A
morte de Saladino, o advento de um jovem papa, cheio de ardor e de gênio (Inocente III), parecia reanimar a cristandade. A
morte de Henrique VI tornou a Europa, alarmada de seu poder, ainda mais segura. A cruzada pregada por Foulques de Neuilly
foi sobretudo popular no norte da França. Um conde de Champagne vinha de se tornar rei de Jerusalém; seu irmão, que o
sucedeu na França, tomou a cruz e, consigo, a maior parte de seus vassalos; este poderoso senhor era, sozinho, suzerano de mil
e oitocentos feudos (Gibbon, XII, 24. Ducange, observ., p. 254). Designemos, à testa de seus vassalos, seu Marechal de
Champagne, Godofredo de Villehardouin, o historiador desta grande expedição, o primeiro prosador, o primeiro historiador
da França em língua vulgar; é, ainda, um Champanhês, o Senhor de Joinville, que devia contar a história de São Luís e o fim
das cruzadas. Os senhores do norte da França tomaram a cruz em turba: os condes de Brienne, de Saint-Paul, de Boulogne, de
Amiens, os Dampierre, os Montmorency, o famoso Simão de Montfort, que voltava da Terra Santa após ter concluído, em
nome dos cristãos da Palestina, uma trégua com os Sarracenos. O movimento contagiou o Hainaut, em Flandres; o conde de
Flandres, cunhado do conde de Champagne, encontrou-se, pela morte prematura deste último, o chefe principal da cruzada. Os
reis da França e da Inglaterra tinham muitas outras questões com que lidar; o Império estava dividido entre dois imperadores.

Não se pensava mais tomar a rota por terra: a esta altura, já se conhecia bem os Gregos. Bem recentemente, estes haviam
massacrado os Latinos que se encontravam em Constantinopla[839] e tentaram matar, em sua passagem, o imperador
Frederico Barba-Ruiva. Para fazer o trajeto por mar, eram necessários barcos; então, os Venezianos foram procurados [840].
Estes mercadores se aproveitaram da necessidade dos cruzados e não concordaram com menos de oitenta e cinco mil marcos
de prata. Não só, porém; eles quiseram ser associados à cruzada, fornecendo cinquenta galeras. Com esta pequena
contribuição, eles estipulavam a metade das conquistas. O velho doge Dandolo, octagenário e quase cego[841], não desejou
entregar a ninguém a direção de uma empresa que poderia ser tão lucrativa à república, e declarou que ele próprio zarparia
com a frota[842]. O marquês de Montferrat, Bonifácio, corajoso e pobre príncipe que participara das guerras santas, e cujo
irmão Conrado tornara-se ilustre pela defesa da cidade de Tiro, foi encarregado do comando-em-chefe e prometeu conduzir os
Piemontanos e os Saboienses.

Quando os cruzados foram reunidos em Veneza, os Venezianos declararam-lhes, no meio das festas da partida, que não
os aparelhariam antes de serem pagos (Villehardouin, c. 30 e 31). Cada um sangrou-se a seu modo e entregou o que trouxera;
com tudo isso, eram ainda necessários trinta e quatro mil marcos de prata para que a conta ficasse quite[843]. Então, o
excelente Doge intercedeu e demonstrou ao povo que não seria honorável agir com tanto rigor em relação a uma empresa tão
sacra. Ele propôs que os cruzados quitassem a diferença sitiando previamente, em favor dos Venezianos, a cidade de Zara, na
Dalmácia (NT: atual cidade de Zadar, na Croácia, às margens do Adriático) , que se subtraíra do jugo de Veneza para
reconhecer o rei da Hungria. Mas o próprio rei da Hungria também tomara a cruz: era ruim começar a cruzada atacando uma
de suas cidades. O legado papal houve por bem reclamar e o Doge, respondendo-lhe que o exército poderia passar muito bem
sem suas diretivas, colocou, então, a cruz sobre o chapéu ducal e arrastou os cruzados para Zara e, depois, para a República
de Trieste[844]. Os cruzados conquistaram, para seus bons amigos Venezianos, quase todas as cidades da península da Ístria
(NT: hoje, praticamente toda a península pertence à Croácia, havendo pequena parte à Eslovênia e uma outra, ainda
menor, em torno da cidade de Muggia, à Itália).

Enquanto esses bravos e honestos cavaleiros ganham sua passagem para esta guerra, “contemplai”, disse Villehardouin,
“uma grande maravilha, uma ventura inesperada e a mais estranha do mundo”. Um jovem príncipe grego, filho do imperador
Isac, então deposto por seu irmão, vem abraçar os joelhos dos cruzados e promete-lhes imensas vantagens caso desejassem
restabelecer seu pai no trono. Eles serão ricos como nunca, a igreja grega será submetida ao Papa e o imperador restituído os
ajudará, de todo seu poder, na reconquista de Jerusalém. Dandolo foi o primeiro a se comover com o infortúnio do
príncipe[845]. Ele convenceu os cruzados a começar a cruzada por Constantinopla. Em vão, o Papa lançou o interdito; em
vão, Simão de Montfort e vários outros (ibid, p. 151, 157) se separaram deles e singraram até Jerusalém. A maioria seguiu os
chefes, Balduíno e Bonifácio, que se alinharam com a resolução dos Venezianos.

Qualquer que fosse a oposição que o Papa erguesse à empresa, os cruzados acreditavam realizar uma obra santa
submetendo àquele, apesar de sua própria vontade, a igreja grega. A oposição e o ódio mútuo entre Latinos e Gregos não
podiam mais vicejar e, assim, acabariam. A velha guerra religiosa, iniciada por Photius, no século IX[846], foi retomada no
século XI (por volta de 1053)[847]. Entretanto, a oposição comum contra os Maometanos que ameaçavam Constantinopla
parecia que traria uma união. O imperador Constantino Monômaco fez grandes esforços; ele chamou os legados do Papa; os
dois cleros se encontraram, examinaram-se; mas, na língua de seus adversários, acreditaram não ouvir senão blasfêmias e, de
ambos os lados, o horror aumentou. Eles então se separaram e consagraram a ruptura das duas igrejas por uma excomunhão
mútua (1054).

Antes do fim do século, a cruzada de Jerusalém, solicitada pela própria dinastia dos Comnenos, conduziu os Latinos à
Constantinopla. Então, os ódios nacionais somaram-se aos ódios religiosos; os Gregos detestaram a brutal insolência dos
Ocidentais; estes acusavam as traições e perfídias dos Gregos. A cada cruzada, os Francos que passavam por Constantinopla
deliberavam se não deveriam se tornar os senhores da cidade; e tal teriam feito não fosse sua lealdade a Godofredo de
Bouillon e a Luís o Jovem. Quando a nacionalidade grega teve um despertar tão terrível sob o reinado do tirano Andrônico, os
Latinos estabelecidos em Constantinopla foram envolvidos num mesmo massacre (abril de 1182)[848]. O interesse comercial
ainda levou um grandes número deles à Constantinopla, sob os reinados dos sucessores de Andrônico, malgrado o perigo
contínuo. Eles formaram, no próprio seio de Constantinopla, uma colônia inimiga que chamava os Ocidentais e devia secundá-
los se, algum dia, tentassem arrebanhar a capital do império grego. Entre todos os Latinos, apenas os Venezianos podiam e
desejavam esta grande coisa. Concorrentes dos Genoveses pelo comércio do Levante, eles temiam ser precedidos pelos
mesmos. Sem mencionar, obviamente, esse importante nome de Constantinopla e das prodigiosas riquezas encerradas em seus
muros onde o império romano se refugiara; sua posição dominante entre a Europa e a Ásia prometia, a quem pudesse tomá-la,
o monopólio do comércio e o domínio dos mares. O velho Doge Dandolo que, outrora, fora privado da visão pelos Gregos,
perseguia esse projeto com todo o ardor do patriotismo e da vingança. Assegura-se, enfim, que o sultão Malek-Adhel,
ameaçado pela cruzada, fizera toda a Síria contribuir para comprar a amizade dos Venezianos e desviar para Constantinopla o
perigo que ameaçava a Judéia e o Egito. Nicetas Coniates (ou Acominato), bem mais instruído que Villehardouin dos
preparativos da cruzada, assegura que tudo estava preparado e que a chegada do jovem Alexis não fez senão aumentar a
impulsão já dada: “Foi”, ele disse, “uma vaga sobre outra vaga”[849].

Nas mãos de Veneza, os cruzados foram uma força cega e brutal que ela lançou contra o império bizantino. Eles
ignoravam os motivos dos Venezianos, e dos seus entendimentos secretos, e do estado do império que atacavam. Assim,
quando se viram em face desta prodigiosa Constantinopla, quando se deram conta destes palácios, destas inumeráveis igrejas
que brilhavam sob o Sol com seus domos dourados, quando viram estas miríades de homens sobre os reparos das muralhas,
eles não puderam se proteger de alguma emoção: ‘Et sachez”, disse Villehardouin, “que il ne ot si hardi cui le cuer ne
frémist... Chascun regardoit ses armes tels com à lui convint que defisenssent, que par tems en aront mestier” (NT do francês
arcaico: “E sabei que ali não havia ninguem tão ousado que o coração não fremisse ...Cada um olhava suas armas como
prevendo que se aproximava o tempo quando seria necessário empregá-las”)[850].

A população era grande, é verdade, mas a cidade estava desarmada. Era uma convenção aceita pelos Gregos, depois que
haviam repelido os Árabes, que Constantinopla era inexpugnável e esta opinião fazia com que negligenciassem todos os meios
de assim torná-la. Ela possuía mil e seiscentos barcos pesqueiros e somente vinte vasos de guerra, dos quais nenhum foi
enviado para combater a frota latina; nenhum ousou descer a corrente para lançar-lhes o temível fogo grego. Sessenta mil
homens apareceram sobre a praia, magnificamente armados, mas, ao primeiro sinal dos cruzados, volatilizaram-se[851]. Na
realidade, esta cavalaria ligeira não poderia sustentar o choque da pesada infantaria dos Latinos. A cidade não possuía senão
suas fortes muralhas e alguns corpos de excelentes tropas – eu falo da Guarda Varangiana (ou Varegue ou Varega), composta
dos antigos vikings Dinamarqueses e de Saxões refugiados da Inglaterra (Villehardouin, p. 213) . A ela, acrescente-se alguns
auxiliares de Pisa: a rivalidade comercial e política punha os Pisanos em armas, em qualquer lugar, contra os Venezianos
(Nicetas, l. III, p. 288).

Estes últimos provavelmente tinham amigos na cidade pois, desde que forçaram o porto, desde o momento em que se
apresentaram ao pé das muralhas, o estandarte de São Marcos aí panejou, plantado por uma mão invisível, e o Doge
rapidamente se assenhorou de vinte e cinco torres. Mas era-lhe necessário abandonar essa vantagem para ir em socorro dos
Francos, envolvidos por esta cavalaria grega que tanto haviam menosprezado. Naquela mesma noite, o Imperador entrou em
desespero e fugiu; tirou-se da prisão seu predecessor, o velho Isaac Comneno, e os cruzados não tiveram mais nada a fazer
senão entrarem, triunfantemente, em Constantinopla.

Era impossível que a cruzada terminasse assim. O novo imperador não podia satisfazer a exigência de seus libertadores
senão arruinando seus súditos. Os Gregos murmuravam, os Latinos pressionavam e ameaçavam. Enquanto aguardavam,
insultavam o povo de mil maneiras e, mesmo, o Imperador, que era obra deles. Um dia, jogando dados com o príncipe Alexis,
eles o cobriram com um gorro de lã ou de pêlo (Nicetas, p. 358). Eles chocavam com prazer todos os costumes dos Gregos e
escandalizavam-se com tudo que lhes fosse novo. Tendo visto uma mesquista ou uma sinagoga, eles desabaram sobre os
infiéis que se defenderam como puderam. Tocou-se fogo em algumas casas: o incêndio foi se espalhando, queimou a parte
mais povoada de Constantinopla, durou oito dias e estendeu-se sobre uma superfície de uma légua (Nicetas, p. 355).

Este evento levou ao cúmulo a exasperação do povo que se sublevou contra o imperador cuja restauração trouxera tantas
calamidades. A púrpura foi oferecida, durante três dias, a todos os senadores. Era preciso uma enorme dose de coragem para
aceitá-la. Os Venezianos que, aparentemente, podiam intervir, permaneceram fora das muralhas e aguardavam. Talvez
temessem mergulhar nesta cidade imensa onde poderiam ser esmagados. Talvez fosse-lhes conveniente deixar arruinarem o
imperador que tinham acabado de criar para que pudessem entrar em Constantinopla na qualidade de inimigos. O velho Isaac,
de fato, foi posto à morte e substituído por um príncipe da Casa real, Alexis Murtzouphlos (ou Aleixo/Alexis V Ducas
Murtzouphlos), que se mostrou digno das circunstâncias críticas quando aceitou o império. Ele começou por repelir as
propostas capciosas dos Venezianos que ainda pediam uma soma em dinheiro para se contentarem (Nicetas, p. 365). Se aceita,
os Venezianos teriam conseguido fazer com que ele se tornasse ruinoso e odioso ao povo, assim como seu antecessor.
Murtzouphlos levantou dinheiro, mas foi para fazer a guerra. Ele armou os vasos de guerra e, por duas vezes, tentou incendiar
a frota inimiga. O perigo era grande para os Latinos. Entretanto, era impossível que Murtzhouphlos improvisasse um exército.
Os cruzados eram, bem diferentemente, aguerridos e os Gregos não puderam suportar o assalto. Nicetas ingenuamente confessa
que, neste momento terrível, um cavaleiro latino, que atropelava e esmagava tudo à sua frente, pareceu-lhe ter cinquenta pés de
altura[852].

Os chefes dos cruzados esforçaram-se para limitar os abusos da vitória; eles proibiram, sob pena de morte, o estupro
das mulheres casadas, das virgens e das religiosas. Mas a cidade foi cruelmente pilhada. Tamanha foi a enormidade do butim,
que os Venezianos, tendo reunido cinquenta mil marcos à parte, de molde a se quitarem a última parcela da dívida dos
cruzados, ainda restaram outros quinhentos mil para os Francos[853]. Uma quantidade inumerável de monumentos preciosos,
reunida por Constantinopla desde que o Império perdera tantas províncias, pereceu sob as mãos daqueles que a disputavam,
que desejavam partilhá-la ou que destruíam pelo simples prazer de destruir. As igrejas, os túmulos, não foram absolutamente
respeitados. Uma prostituta cantou e dançou no púlpito do Patriarca[854]. Os Bárbaros espalharam as ossadas dos
imperadores; quando chegaram ao túmulo de Justiniano, eles perceberam, com surpresa, que o legislador estava ainda todo
inteiro em seu túmulo.

A quem devia reverter a honra de se sentar no trono de Justiniano e de fundar o novo império? O mais digno era o velho
Dandolo. Mas os próprios Venezianos se opuseram (Rammusius, l. III, c. 36; ap. Sismondi, Rép. Ital., II, 406); não lhes
parecia certo e conveniente dar a uma família o que estava para a República. A glória de restaurar o Império pouco lhes
tocava; o que esses mercadores desejavam eram portos, entrepostos, uma longa cadeia de balcões que lhes assegurasse a rota
do Oriente. Eles tomaram para si as costas marítimas e as ilhas; além disso, três dos oito bairros de Constantinopla, passando
a adotar o bizarro título de senhores d’um quarto e meio do império grego[855].

O Império, reduzido a um quarto de seu tamanho, foi deferido à Balduíno, conde de Flandres, descendente de Carlos
Magno e parente do rei da França[856]. O marquês de Montferrat contentou-se com o reino da Macedônia. A maior parte do
Império, aquela mesma que fora outorgada aos Venezianos, foi desmembrada em feudos.

A primeira preocupação do novo imperador foi de desculpar-se com o Papa, que se encontrava embaraçado com seu
triunfo involuntário e não querido. Foi um grande golpe desferido no dogma da infalibilidade pontifícia que Deus tivesse sido
justificado pelo sucesso de uma guerra condenada pela Santa Sé. A união das duas igrejas, a reaproximação das duas metades
da cristandande, fora consumada por homens manchados com o interdito papal. Não restava ao Papa senão revogar sua
sentença e perdoar esses conquistadores que muito desejavam pedir perdão. A tristeza de Inocente III é visível em sua
resposta ao imperador Balduíno: ele se compara ao pescador do Evangelho que se assusta com a pesca milagrosa e que
depois, ousadamente, pretende ter feito alguma coisa para o sucesso, que também ele puxou o fio: “Hoc unum audacter
affirmo, quia laxavi retia in capturam” (NT: “Este afirma, com audácia, que lançou as redes para a pesca”) [857]. Mas
estava além de seu todo-poder uma tal coisa, de fazer com que o que dissera não tivesse sido dito, que aprovasse aquilo que
anteriormente desaprovara. A conquista do império grego abalava sua autoridade no Ocidente mais do que a estendia no
Oriente.

Os resultados desse memorável evento não foram assim tão grandes quanto poderíamos pensar. O Império Latino de
Constantinopla durou menos ainda que o reino de Jerusalém, ou seja, de 1204 a 1261. Apenas Veneza conseguiu extrair daí
imensas vantagens materiais. A França não ganhou senão em influência: seus costumes e sua língua, levados já tão longe pela
primeira cruzada, espalharam-se no Oriente. Balduíno e Bonifácio, respectivamente Imperador de Constantinopla e Rei da
Macedônia, eram primos do Rei da França. O conde de Blois recebeu o ducado de Nicéia; o conde de Saint-Paul, aquele de
Didimoteico, próximo de Hadrianópolis (NT: ou Adrianópolis, atual cidade turca de Edirne) . Nosso historiador, Godofredo
de Villehardouin reuniu os cargos de Marechal da Champagne e da România. Muito tempo depois da queda do Império Latino
de Constantinopla, por volta do ano 1300, o catalão Montaner nos assegura que, no principado de Moréia[858] e no ducado de
Atenas, “falava-se francês tão bem quanto em Paris”[859].

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(Sequência)

Capítulo VII
Ruína de João – Derrota do Imperador – Guerra dos Albigenses – Grandeza do Rei da França. 1204-1222.

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Eis o Papa, vencedor dos Gregos apesar de si próprio. A reunião das duas igrejas operou-se. Inocente é o único chefe
espiritual do mundo ocidental. A Alemanha, a velha inimiga dos papas, é posta fora de combate; ela é retalhada entre dois
imperadores que tomam o Papa por árbitro. Filipe Augusto vem de se submeter às suas ordens e retomar uma esposa a quem
detesta. O Ocidente e o sul da França não são tão dóceis. Os Valdenses resistem no Ródano, os Maniqueístas no Languedoc e
nos Pirineus. Todo o litoral da França, nos dois mares, Atlântico e Mediterrâneo, parece prestes a se destacar da Igreja. A
costa do Mediterrâneo e aquela do Oceano obedecem a dois príncipes de uma fé duvidosa, os reis de Aragão e da Inglaterra,
e, entre estes, podem ser encontrados os lares da heresia: Béziers, Carcassone, Toulouse, onde o grande concílio dos
Maniqueístas reuniu-se.

O primeiro a ser golpeado foi o rei da Inglaterra, duque da Guiana, vizinho e também parente do Conde de Toulouse,
cujo filho criava[860]. O Papa e o rei da França aproveitaram-se de sua ruína. Mas este evento já estava preparado de longa
data. O poder dos reis anglo-normandos não se apoiava senão sobre as tropas mercenárias que compravam; eles não podiam
confiar nem nos Saxões, nem nos Normandos. A manutenção dessas tropas supunha a existência de recursos e de uma ordem
administrativa que era estranha aos hábitos daquela época. Esses reis não as supriam senão pelas exações de uma fiscalidade
violenta, que aumentava ainda mais os ódios, tornando sua posição mais perigosa e os obrigando, cada vez mais, a se
cercarem de tais tropas que arruinavam e sublevavam o povo. Dilema terrível cuja solução devia fazer com que sucumbissem.
Renunciar ao emprego dos mercenários era colocar-se entre as mãos da aristocracia normanda; deles continuar a se servir
significava marchar numa estrada da perdição certa. O rei devia encontrar sua ruína na reconciliação das duas raças que
dividiam a ilha; Normandos e Saxões deviam findar por se entenderem para o abaixamento da realeza; a perda das províncias
francesas devia ser o primeiro resultado desta revolução.

Ao menos, Henrique II havia juntado um tesouro. Mas Ricardo arruinou a Inglaterra desde o momento de sua partida
para a terceira cruzada. “Eu venderia Londres”, costumava dizer o Coração de Leão, “se eu pudesse encontrar um comprador
idôneo”[861]. “De um mar a outro”, disse um contemporâneo, “a Inglaterra encontrava-se pobre”[862]. Após ter arruinado o
presente, ele arruinou o porvir. Desde então, não mais se devia encontrar um homem que desejasse emprestar ou comprar do
rei da Inglaterra. Seu sucessor, bom ou mau, hábil ou inábil, encontrava-se de avanço condenado a uma pobreza irremediável,
a uma incurável impotência.

Entretanto, o progresso das coisas iria, ao contrário, exigir novos recursos. A desarmonia do império inglês jamais
chegara tão longe. Este império compunha-se de populações que, todas, haviam guerreado entre si antes de serem reunidas sob
um mesmo jugo. A Normandia, inimiga da Inglaterra antes do bastardo Guilherme, a Bretanha, inimiga da Normandia, e o
Anjou, inimigo do Poitou, o Poitou, que reclamava sobre todo o sul os direitos do ducado da Aquitânia, todos, agora, se
encontravam juntos, quisessem ou não. Sob os reinados precedentes, o rei da Inglaterra sempre tivera a seu favor algumas
dessas províncias continentais. O normando Guilherme, e seus dois primeiros sucessores, puderam contar com a Normandia;
Henrique II, com os Angevinos, seus compatriotas; Ricardo Coração de Leão agradava geralmente aos Poitevinos, aos
Aquitânios, compatriotas de sua mãe Eleonora. Ele reergueu a glória dos meridionais que o encaravam como um dos seus; ele
fazia versos na língua deles, ele os tinha, em turba, à sua volta: seu principal lugar-tenente era o basco Marcader. Mas, pouco
a pouco, essas diversas populações distanciaram-se dos reis da Inglaterra; elas se deram conta que, na realidade, Normando,
Angevino ou Poitevino, esse rei, delas separado por tantos interesses diferentes, era um príncipe estrangeiro. O fim do reinado
de Ricardo acaba por desenganar os súditos continentais da Inglaterra.
Tais circunstâncias explicariam a violência, os arroubos, os reveses de João Sem Terra, ainda que ele tivesse sido
melhor e mais hábil. Era-lhe necessário recorrer a expedientes inauditos para extrair dinheiro de um país tantas vezes
arruinado. O que lhe restava fazer após o ávido e pródigo Ricardo? João tentou tirar dinheiro dos barões e estes o obrigaram a
assinar a Carta Magna; ele lançou-se sobre a igreja e ela o depôs. O Papa e seu protegido, o rei da França, aproveitaram-se de
sua ruína. O rei da Inglaterra, sentindo seu navio adernar, jogou ao mar a Normandia e a Bretanha: o rei da França nada mais
fez senão recolhê-las.

Este desmembramento infalível e necessário do Império Inglês viu-se provocado, inicialmente, pela rivalidade de João e
de Arthur, seu sobrinho. Este último, filho da herdeira da Bretanha e de um irmão de João, fora aceito pelos Bretões, desde
seu nascimento, como um libertador e um vingador. Eles o haviam, apesar de Henrique II, batizado com o nome nacional de
Arthur (Chron. Wallteri Hemengf., p. 507, IV, 145) . Os Aquitânios favoreciam sua causa. Só a velha Eleonora estava por seu
filho João, contra seu neto, pela unidade do império inglês que a elevação de Arthur dividiria[863]. Arthur, em efeito, fazia
um bom mercado desta unidade: ele oferecia ao rei da França ceder-lhe a Normandia, desde que tivesse a Bretanha, o Maine,
a Turânia, o Anjou o Poitou e a Aquitânia (Hoveden, p. 598. M. Paris, p. 166). João ficaria reduzido à Inglaterra. Filipe
aceitou de bom grado, posicionou suas guarnições nas melhores praças-fortes de Arthur e, não esperando aí se manter, as
demoliu. O sobrinho de João, assim traído por seu aliado, voltou-se novamente para seu tio; depois, retornou ao partido da
França, invadiu o Poitou, e sitiou sua avó Eleonora em Mirebeau (Rad. Coggesbale, p. 95). Não era coisa nova, nesta raça,
ver os filhos se armarem contra seus pais. Entretanto, João veio em auxílio, libertou sua mãe do cerco, desafiou Arthur e o
aprisionou com a maior parte dos grandes senhores de seu partido. O que ocorreu com o prisioneiro? É o que nunca se soube
bem. Mathieu Paris pretende que João, que inicialmente o tratara bem, ficou alarmado com as ameaças e a obstinação do
jovem Bretão; “Arthur desapareceu”, ele disse, “e queira Deus que tenha sido diferente do que narram as más notícias!”[864].
Mas Arthur animara por demais as esperanças para que a imaginação dos povos se resignasse com esta incerteza. Assegurava-
se que João o mandara matar. Acrescentava-se, logo, que João o matara de sua própria mão [865]. O capelão de Filipe
Augusto conta, como se o tivesse visto, que João levou Arthur num barco e que, então, ele próprio desferiu-lhe duas
punhaladas tendo, após, jogado o cadáver no rio, a três milhas do castelo de Rouen[866]. Os Bretões aproxivamam do seu
país o local da cena do crime; eles a situavam perto de Cherbourg, ao pé destas sinistras falésias que apresentam, ao longo do
Oceano, um precipício vertiginoso (Dumoulin, ‘Hist. de Normandie’, p. 514. Thierry, IV, 151) . Assim, a tradição ia
crescendo em detalhes e em interesse dramático. Enfim, na peça de Shakespeare, Arthur é uma jovem criança sem defesas,
cujas doces e inocentes palavras desarmam o mais selvagem e feroz assassino.

Essa ocorrência posicionava Filipe Augusto na melhor posição. Ele já havia alimentado, contra Ricardo, o rumor das
ligações deste com os infiéis, com o Velho da Montanha; ele tomara guardas para se preservar dos emissários deste
último[867]. Ele explorou, contra João, o rumor da morte de Arthur e se portou como vingador e juiz do crime, intimando João
a comparecer perante a corte dos grandes barões da França ou, como então se dizia, segundo os romances de Carlos Magno, a
corte dos pares. Já ele o havia convocado para se justificar por ter arrebatado Isabelle de Lusignan do conde da Marche. João
pediu, ao menos, um salvo-conduto, o qual lhe foi recusado. Condenado sem ser ouvido, ele levantou um exército na Inglaterra
e na Irlanda, empregando suas últimas violências para forçar os barões a segui-lo; até, mesmo, apreendendo os bens daqueles
que se recusavam e, a outros, a sétima parte de suas receitas. Tudo isso de nada serviu. Os barões se reuniram mas, uma vez
juntos em Portsmouth, declararam ao rei, pela boca do arcebispo Hubert, que estavam decididos a não embarcar. De fato, de
quê lhes importava essa guerra? A maioria, embora Normanda de origem, tornara-se estranha à Normandia. Eles não se
preocupavam em bater-se, pois seria fortalecer o rei contra si mesmos e colocá-lo em posição de subjugar seus súditos
insulares com aqueles do continente.

João também se endereçara ao Papa, acusando Filipe de ter rompido a paz e violado seus juramentos. Inocente
comportou-se como juiz, não do feudo, mas do pecado (Innocen. III, epist., ap. Lingard, III, 18). Seus legados nada decidiram.
Filipe se apoderou da Normandia (1204). O próprio João declarara aos Normandos que não aguardassem qualquer tipo de
auxílio; ele mergulhara, desesperado, nos prazeres. Os enviados de Rouen o encontraram jogando xadrez e, antes de
responder, ele quis terminar a partida: “ele jantava todos os dias esplendidamente com sua bela rainha e prolongava o sono
matutino até à hora do almoço”[868]. Embora ele próprio não agisse, negociava, entretanto, com os inimigos da igreja e do rei
da França. Ele pagava subsídios ao imperador Otto IV, seu sobrinho; confabulava, de um lado, com os Flamengos e, de outro,
com os senhores do sul da França, e criava e educava, em sua corte, seu outro sobrinho, filho do conde de Toulouse.

Este conde, o rei de Aragão e o rei da Inglaterra, suzeranos de todo o Midi, pareciam reconciliados às expensas da
igreja; eles mal observavam alguma deferência exterior. O perigo, nessas paragens, era imenso para a autoridade eclesiástica.
Não eram, de forma alguma, alguns sectários isolados, mas uma igreja inteira que se formara contra a Igreja. Os bens do clero
eram, em todos os lugares, invadidos. O próprio título de padre era uma injúria. Os eclesiásticos não ousavam exibir sua
tonsura em público[869]. Aqueles que se resignavam a vestir a batina clerical eram alguns servos dos nobres, aos quais estes
últimos obrigavam a vesti-la a fim de obterem, sob seu nome, algum benefício. Desde que um missionário católico se
aventurasse a pregar, erguiam-se zombarias e exclamações derrisórias. A santidade, a eloquência, não se lhes impunha. Eles
haviam vaiado São Bernardo![870]

Tal era a situação miserável e precária da igreja católica no Languedoc. Sempre se supõe que, na Idade Média, somente
os heréticos foram perseguidos: é um grave erro. De ambos os lados acreditava-se que a violência era legítima para conduzir
o próximo à verdadeira fé; perseguia-se desde que se fosse forte; testemunham Jerônimo de Praga, Calvino, os Gomaristas da
Holanda[871] e tantos outros. Os mártires da Idade Média raramente tiveram a doçura e a suavidade daqueles dos primeiros
séculos, que não sabiam senão morrer pela fé. Os Albigenses do Languedoc, os Illuminati de Flandres, os protestantes de La
Rochelle e dos Cevenas, não mostraram nem um pouco dessa mansidão; suas reformas, mais ou menos marcadas pelo caráter
guerreiro desse tempo, venceram ou sucumbiram, perseguiram ou sofreram, mas combateram sem consideração.

A luta era iminente em 1200. A Igreja Herética estava organizada; possuía sua hierarquia, seus padres, seus bispos, seu
Papa; seu concílio geral ocorrera em Toulouse: esta cidade teria sido, indubitavelmente, sua Roma, e seu Capitólio teria
substituído o outro. A igreja nova enviava, para todos os lugares, os seus missionários: a inovação explodia nas regiões mais
longínquas, nas menos suspeitas, na Picardia, em Flandres, na Alemanha, na Inglaterra, na Lombardia, na Toscana, às portas
de Roma, em Viterbo (Gesta Innocenti, III, p. 79). Mas, por outro lado, a estranheza oriental do maniqueísmo revoltara muitos
espíritos: reconhecer dois princípios, aquele do bem e este do mal, era, aparentemente, admitir dois Todos-Poderosos, alçar
Satã ao céu e entronizá-lo ao lado de Deus. Esses blasfemos causavam horror. Por outro lado, as populações do Norte viam,
entre si, os soldados mercenários, os salteadores (routiers), cuja maioria estava a serviço da Inglaterra, realizarem tudo
aquilo que se contava acerca dos sacrilégios do sul da França. Eles vinham, parte do Brabant, parte da Aquitânia, o basco
Marcader era um dos principais lugares-tenentes de Ricardo Coração de Leão. Os montanheses do sul, que hoje descem à
França ou à Espanha para ganhar dinheiro por qualquer pequeno trabalho, também o faziam na Idade Média mas, então, o
único trabalho era a guerra. Eles maltratavam os padres da mesma forma que o faziam com os camponeses, vestiam suas
mulheres com os trajes consagrados, batiam nos clérigos e faziam-lhes cantar a missa para diversão. Era-lhes também um
prazer emporcalhar e quebrar as imagens de Cristo, quebrar-lhe os braços e as pernas, de tratá-Lo pior do que se fazia com os
Judeus na Paixão[872]. Esses salteadores eram caros aos príncipes, precisamente por causa de seus sacrilégios, os quais os
tornavam insensíveis às censuras eclesiásticas. A guerra era tenebrosa, feita, assim, por homens sem fé e sem pátria contra os
quais a própria Igreja não era mais um asilo, ímpios, como nós modernos, e selvagens, como os bárbaros. Era sobretudo nos
intervalos das guerras, quando eles estavam sem soldo e sem chefe, que eram um peso e um estorvo sobre a região e a
província, roubando, exigindo resgates, degolando ao acaso. A história deles muito mal foi escrita: mas, a julgar por alguns
fatos, poder-se-ia suplementá-la com aquela dos Mercenários da antiguidade, da qual conhecemos a execrável guerra contra
Cartago (vide o II volume do meu ‘História Romana, 2ª ed., pgs. 280 e segs.). Sobre a fronteira do sul e do norte, na Marche,
na Auvérnia, no Limousin, suas devastações foram horríveis. O povo findou por se armar contra eles. Um carpinteiro,
inspirado pela Virgem Maria, formou a associação dos capuchinhos para o extermínio desses bandos. Filipe Augusto
encorajou o povo, forneceu tropas e, numa única oportunidade, mais de dez mil foram degolados[873].

Independentemente das devastações dos salteadores do Sul, as cruzadas haviam lançado as sementes do ódio. Estas
grandes expedições, que aproximaram o Oriente e o Ocidente, também tiveram por efeito revelar para a Europa do Norte a
Europa do Sul. A última apresentou-se, então, sob o aspecto mais chocante; espírito mercantil mais que cavaleiresco,
desdenhosa opulência[874], elegância e leviandade zombeteira, danças e vestes mouriscas, figuras sarracenas. Mesmo os
alimentos eram um sujeito de distanciamento entre as duas raças; os comedores de alho, de azeite e de figos, lembravam aos
cruzados a impureza do sangue mourisco e judeu, e o Languedoc parecia uma outra Judéia.

A Igreja do século XIII fez-se uma arma dessas antipatias de raças para reter o Midi que lhe escapava. Ela transferiu a
cruzada dos infiéis para os heréticos. Os pregadores foram os mesmos: os beneditinos de Cîteaux.

Várias reformas tiveram lugar já no instituto de São Bento; mas esta ordem era todo um povo; no décimo-primeiro
século, formou-se uma ordem dentro da ordem, uma primeira congregação, a congregação beneditina de Cluny. O resultado foi
imenso: dela saiu Gregório VII. Estes reformadores logo tiveram necessidade de uma reforma[875] que, efetivamente, foi feita
em 1098, na própria época da primeira cruzada. Cîteaux ergueu-se ao lado de Cluny, sempre na rica e vinífera Borgonha, o
país dos grandes pregadores, de Bossuet e de São Bernardo. Eles impuseram-se o trabalho, segundo a primitiva regra de São
Bento, mudaram o hábito negro para o branco[876], declararam que se ocupariam unicamente de sua salvação e que seriam
submissos aos bispos, de quem os outros monges sempre tentavam se libertar[877]. Assim, a Igreja em perigo comprimia sua
hierarquia. Mas os Cirtercienses se faziam pequenos tanto mais crescessem e acrescessem. Eles tiveram até 1.800 casas de
homens e 1.400 de mulheres. O abade de Cîteaux era chamado o abade dos abades. Eles já eram tão ricos, passados vinte anos
de sua instituição, que a austeridade de São Bernardo assustou-se; ele fugiu para a Champagne para fundar Clairvaux. Os
monges de Cîteaux eram, então, os únicos monges para o povo. Eram forçados a subir ao púlpito e pregar a cruzada. São
Bernardo foi o apóstolo da segunda e o legislador dos Templários, dando-lhes suas regras. As ordens militares da Espanha e
de Portugal, San Tiago, Alcântara, Calatrava e Avis, apoiavam-se em Cîteaux e eram-lhe afiliadas. Os monges da Borgonha
espalhavam sua influência espiritual sobre a Espanha, enquanto os príncipes das duas Borgonhas davam-lhes reis.

Toda essa grandeza foi a perdição de Cîteaux. Ela se encontrou, para a disciplina, quase ao nível da voluptuosa Cluny.
Esta última, ao menos, cedo havia afetado a doçura a e a indulgência. Pedro o Venerável aí recebera, consolado, enterrado,
Abelardo. Mas Cîteaux, corrompida, conservou, na riqueza e no luxo, a dureza de sua instituição primitiva. Ela restou animada
pelo temperamento sanguinário das cruzadas e continuou a pregar a fé, negligenciando as obras. Quanto mais, mesmo, a
indignidade dos pregadores tornava suas palavras vãs e estéreis, mais eles se irritavam. Eles jogavam o pouco efeito de sua
eloquência sobre aqueles que, observando seus costumes, julgavam sua doutrina. Furiosos de impotência, ameaçavam,
condenavam, e o povo não fazia senão rir.

Num dia em que o abade de Cîteaux partia com seus monges, num magnífico cortejo, para ir ao Languedoc, a fim de
trabalhar na conversão dos heréticos, dois Castelhanos que voltavam de Roma, o bispo de Osma e um de seus cônegos, o
famoso São Dominique, não hesitaram em dizer-lhes que todo este luxo e esta pompa destruiriam o efeito de seu discuro: “É
com pés nus”, disseram eles, “que é preciso marchar contra os filhos do orgulho; eles desejam exemplos; não os submetereis,
de forma alguma, por palavras”. Os Cistercienses desceram de suas montarias e seguiram os dois Espanhóis[878].

Os Espanhóis, os compatriotas do Cid[879], tiveram a honra desta cruzada espiritual. Um certo Durando d’Huesca, que
fora, ele próprio, um Valdense, obteve de Inocente III a permissão de formar uma confraria de pobres católicos onde
pudessem entrar os pobres de Lyon , os Valdenses. A crença diferia, mas o exterior era o mesmo; mesma veste, mesma vida.
Esperava-se que os católicos, adotando o hábito e os costumes dos Valdenses [880], estes tomassem, em troca, as crenças dos
católicos: enfim, que a forma conduzisse ao fundo. Infelizmente, o zelo missionário imitou tão bem os Valdenses, que se tornou
suspeito aos bispos, e sua tentativa caridosa teve pouco sucesso.

Ao mesmo tempo, o bispo de Osma e São Dominique foram autorizados pelo Papa a se associarem aos trabalhos dos
Cirtencienses. Este Dominique, este terrível fundador da Inquisição, era um nobre Castelhano, singularmente caridoso e
piedoso[881]. Ninguém teve mais do que ele o dom das lágrimas e da eloquência que as faz serem vertidas[882]. Quando
estudava em Palência, uma grande fome reinando na cidade, ele vendeu tudo, até mesmo seus livros, para socorrer os
pobres[883].

O bispo de Osma vinha de reformar o capítulo do bispado segundo a regra de Santo Agostinho; Dominique nele entrou.
Várias missões tendo-o conduzido à França, na comitiva do bispo de Osma, eles viram, com profunda piedade, tantas almas
que se perdiam todos os dias. Havia um tal castelo, no Languedoc, onde não se comungava há trinta anos (Petr. Vall. Sarn., c.
42). As criancinhas morriam sem o batismo[884]. É preciso se posicionar sobre o mesmo ponto de vista dos homens da Idade
Média a fim de compreender com qual tamanha dor viam essas almas inocentes tombarem, pela impiedade de seus pais, na
perdição eterna.

Inicialmente, o bispo de Osma, sabendo que a pobre nobreza confiava a educação de suas filhas aos heréticos, fundou
um monastério próximo a Montréal para subtraí-las a esse perigo. São Dominique deu tudo o que possuía; e, tendo ouvido
alguém dizer a uma mulher que, se ela deixasse os Albigenses, encontrar-se-ia sem recursos, ele desejou vender-se como
escravo para ter com o quê entregar a alma da mulher a Deus[885].

Todo este zelo era inútil. Nenhum poder da eloquência ou da lógica teria bastado para interromper o ímpeto da
liberdade de pensar; além disso, a aliança odiosa dos monges de Cîteaux tirava todo o crédito das palavras de São Dominique
que foi, mesmo, obrigado a aconselher um deles, Pierre de Castelnau, a se afastar, por algum tempo, do Languedoc: os
habitantes o teriam matado. Em relação a Dominique, não puseram as mãos sobre sua pessoa; contentavam-se em jogar-lhe
lama, em escarrar-lhe o rosto; eles colocavam-lhe, disse um de seus biógrafo, palha atrás das costas[886]. O bispo de Osma,
esquecendo sua doçura, ergueu as mãos ao céu e exclamou: “Senhor, deita Tua mão e puna-os: somente o castigo poderá abrir-
lhes os olhos”[887].

Podia-se prever, desde a época da exaltação de Inocente III, a catástrofe do Midi da França. No mesmo ano em que
subiu ao trono pontifício, ele escreveu palavras de ruína e de sangue aos príncipes[888]. O Conde de Toulouse, Raimundo VI,
que sucedera seu pai em 1194, levou ao cúmulo a cólera do Papa. Reconciliado com os antigos inimigos de sua família, os
reis de Aragão, condes da Baixa-Provença, e os reis da Inglaterra, duques da Guiana, ele não temia mais nada e não mantinha
nenhuma circunspecção. Em suas guerras do Languedoc e da Alta-Provença, ele se serviu constantemente desses salteadores
que a igreja proscrevia[889]. Ele tocou a guerra sem distinguir as terras laicas ou eclesiásticas, sem observar o domingo ou a
quaresma, expulsou bispos e cercou-se de heréticos e de Judeus.

“Desde o início, desde o berço, ele quis bem e sempre escolheu os heréticos; e, como os tinha em suas terras, honrou-os
de todas as maneiras. Ainda hoje, segundo asseguram, ele conduz consigo, para todos os lugares, os heréticos, a fim de que, se
vier a morrer, possa fazê-lo em suas mãos. – Um dia, ele disse aos heréticos (eu recebi de boa fonte) que desejava educar seu
filho em Toulouse, entre eles, de modo a que o instruíssem em sua fé ou, digamos melhor, em sua infidelidade. Ele também
disse, um dia, que daria cem marcos de prata para que um de seus cavaleiros abraçasse a crença dos heréticos; que ele o
aconselhara muitas vezes e que o obrigava, com frequência, a pregar. Por isso, quando os heréticos enviavam-lhe presentes ou
provisões, ele os recebia mui graciosamente, mandava guardá-los com cuidado e não permitia que ninguém os aproveitasse,
salvo alguns de seus familiares. Frequentemente também, como o sabemos de ciência certa e segura, ele adorava os heréticos
e, fletindo os joelhos, pedia sua benção e dava-lhes o beijo. Um dia que o conde aguardava algumas pessoas que tinham vindo
ver-lhe e, como não chegassem, ele exclamou: “Vê-se bem que foi o diabo quem fez esse mundo, eis que nada ocorre como se
espera”. Ele também disse ao bispo de Toulouse, como o próprio bispo me contou, que os monges de Cîteaux não podiam
operar a salvação deles, já que suas ovelhas se entregavam à luxúria. Ó heresia inaudita!”.

“O Conde também disse ao bispo de Toulouse que viesse à noite em seu palácio e que ouviria a pregação dos heréticos;
donde resta claro que ele os escutava frequentemente à noite”.

“Ele se encontrava, um dia, numa igreja onde se celebrava a missa; ora, ele tinha consigo um bufão que, como fazem os
saltimbancos desta espécie, zombava das pessoas com caretas histriônicas. Quando o celebrante se virou na direção do povo
dizendo: Dominus vobiscum (NT: O Senhor esteja convosco), o celerado do conde disse a seu bufão contradizer o padre. –
Ele disse, uma vez, que preferia parecer com um certo herético de Castres, na diocese de Albi, a quem haviam cortado os
membros e que arrastava uma vida miserável, a ser rei ou imperador”.

“Quão amava os heréticos, nós tivemos a prova evidente quando nenhum legado da Santa Sé apostólica conseguiu
convencê-lo a expulsar os heréticos de suas terras, ainda que tenha feito, após diversas instâncias desses legados, não sei
quantas abjurações”.

“Ele fazia tão pouco caso do sacramento do casamento que, todas as vezes que sua mulher o desgostava, ele a
dispensava para casa e tomava uma outra; de sorte que teve quatro esposas, das quais três ainda vivem. Ele teve, inicialmente,
a irmã do visconde de Béziers, chamada Béatrix; depois dela, a filha do duque de Chipre; depois desta, a irmã de Ricardo, rei
da Inglaterra, sua prima em terceiro grau; esta última, morrendo, ele desposou a irmã do rei de Aragão, que era sua prima em
quarto grau. Eu não devo omitir que, quando tinha sua primeira mulher, ele a encorajou, habitualmente, a tomar o hábito
religioso. Compreendendo o que desejava dizer, ela perguntou-lhe expressamente se ele desejava que ela entrasse em Cîteaux;
ele respondeu que não. Ela então lhe perguntou se ele desejava que ela se tornasse religiosa em Fontevraud; ele também
respondeu que não. Então, ela perguntou o que ele, afinal de contas, desejava: ele respondeu que se ela consentisse em se fazer
solitária, ele sustentaria todas as suas necessidades, e a coisa se fez assim...”.

“Ele foi sempre tão luxurioso e tão lúbrico, que abusava de sua própria irmã em menosprezo à religião cristã. Desde sua
infância, ele procurava ardentemente as concubinas de seu pai e dormia com elas; e nenhuma mulher não lhe agradava se ele
não soubesse que ela havia dormido com seu pai. Assim, seu pai, tanto por causa de sua heresia, quanto por causa daquele
crime enorme, predizia-lhe frequentemente a perda de sua herança. O conde também possuía um maravilhoso afeto pelos
salteadores, por cujas mãos despojava as igrejas, destruía os monastérios e desapossava, tanto quanto pudesse, todos os seus
vizinhos. É assim que sempre se comportou esse membro do diabo, esse filho da perdição, esse primogênito de Satã, esse
perseguidor encarniçado da cruz e da Igreja, esse apoio dos heréticos, esse carrasco dos católicos, esse ministro da perdição,
esse apóstata coberto de crimes, esse esgoto de todos os pecados”.

“O conde jogava, um dia, xadrez com um certo capelão e, sempre jogando, disse-lhe: “O Deus de Moisés, no qual
credes, não vos ajudará de forma alguma neste jogo”. E acrescentou: “Que esse Deus jamais me ajude!”. – Uma outra vez,
como o conde devesse ir de Toulouse para a Provença a fim de combater algum inimigo, levantando-se no meio da madrugada,
ele vem à casa onde estavam reunidos os heréticos toulousenses e lhes diz: “Meus senhores e meus irmãos, a fortuna da guerra
é volúvel; o que quer que me ocorra, eu remeto em vossas mãos o meu corpo e minha alma”. Depois, ele levou consigo dois
heréticos trajando hábitos seculares, de forma a que, se viesse a morrer, morresse entre suas mãos. – Um dia em que este
maldito conde de Toulouse encontrava-se doente em Aragão, o mal fazendo muito progresso, ele mandou trazerem-lhe uma
liteira e, dentro desta liteira, fez-se transportar a Toulouse; e, como lhe perguntassem o porquê de fazer-se transportar com
tamanha pressa, apesar de destruído por uma grave doença, ele respondeu, o miserável!: “porque não há Bons Homens, nesta
terra, entre cujas mãos eu possa morrer”. Ora, os heréticos se fazem chamar Bons Homens por seus partidários. Mas ele se
mostrava ainda mais claramente herético por seus sinais e seus discursos, pois dizia: “Eu sei que perderei minha terra por
causa desses Bons Homens; pois bem! a perda de minha terra e, ainda, aquela da cabeça, estou pronto a tudo sofrer”.

Qualquer que pudesse ser a verdade dessas acusações de um inimigo passional, ele triunfava sobre o Ródano, à testa de
seu exército, quando recebeu de Inocente III uma carta terrível que predizia sua ruína. O Papa exigia que ele interrompesse a
guerra, subscrevesse, com seus inimigos, um projeto de cruzada contra seus súditos heréticos, e abrisse seus estados aos
cruzados. Raimundo inicialmente recusou-se, foi excomungado e, então, se submeteu; mas ele procurava iludir a execução de
suas promessas. O monge Pierre de Castelnau ousou reprovar-lhe, cara a cara, o que chamava “sua perfídia”; o príncipe,
pouco habituado a tais palavras, deixou escapar palavras de cólera e de vingança, palavras tais como aquelas de Henrique II
contra Thomas Becket[890]. E o efeito foi o mesmo, vez que a devoção feudal não permitia que a menor palavra do senhor
tombasse em vão: aqueles que comiam de sua mesa acreditavam pertencer-lhe, corpo e alma, sem reserva de sua própria
salvação eterna. Um cavaleiro de Raimundo encontrou Pierre de Castelenau no Ródano e o apunhalou[891]. O assassino
encontrou santuário nos Pirineus, próximo ao conde de Foix, então amigo do conde de Toulouse, e cuja mãe e irmã eram
heréticas.

Tal foi o início dessa horrorosa tragédia (1208). Inocente III não se contentou, como Alexandre III, com as desculpas e a
submissão do príncipe; ele mandou pregar a Cruzada em todo o norte da França pelos monges de Cîteaux. Aquela de
Constantinopla habituara os espíritos com a idéia de uma guerra santa contra os próprios cristãos. Aqui, desta vez, a
proximidade era tentadora; não se tratava, de forma alguma, de atravessar os mares: oferecia-se o paraíso àquele que pilhasse,
aqui embaixo, no Sul, os ricos campos e as cidades opulentas do Languedoc. A humanidade também fora posta em jogo para
remitir as almas cruéis; o sangue do legado reclamava, dizia-se, o sangue dos heréticos[892].

A vingança, entretanto, teria sido difícil se Raimundo VI tivesse podido usar de todas as suas forças e lutar sem
consideração contra o partido da igreja. Era um dos mais poderosos príncipes e, provavelmente, o mais rico da cristandade.
Conde de Toulouse, marquês da Alta Provença, senhor do Quiercy, do Rouergue, do Vivarais, ele adquirira Maguelone; o rei
da Inglaterra cedera-lhe o Agenês, e o rei de Aragão o Gévaudan, como dote de suas irmãs. Duque de Narbonne, ele era
suzerano de Nîmes, Béziers, Usez e dos condados de Foix e Comminges, nos Pirineus. Mas esse grande poder não era, em
todo lugar, exercido com o mesmo título. O visconde de Béziers, apoiado pela aliança do conde de Foix, recusava-se a
depender de Toulouse. A própria Toulouse era uma espécie de república. Em 1202, vemos os cônsules desta cidade fazerem a
guerra, na ausência de Raimundo VI, aos cavaleiros do Albigense, e os dois partidos tomam o conde por árbitro e por
mediador (Hist. Génér. du Languedoc, III, p. 115) . Na época de seu pai, Raimundo V, o início da heresia fora acompanhado
de um tal desejo de independência política, que o próprio conde solicitou aos reis da França e da Inglaterra iniciarem uma
cruzada (1178) contra os Toulousenses e o visconde de Béziers (ibid, p. 47). Ela ocorreu, esta cruzada, mas sob Raimundo VI
e às suas expensas.

Todavia, iniciou-se pelo Baixo-Languedoc, Béziers, Carcassonne etc., onde os heréticos eram mais numerosos. O Papa
teria arriscado unir todo o sul contra a igreja e dar-lhe um chefe, se tivesse, inicialmente, se batido contra o conde de
Toulouse. Ele fingiu aceitar sua submissão, o admitiu à penitência, Raimundo rebaixou-se perante todo o seu povo, recebeu
das mãos dos padres a flagelação na própria igreja onde Pierre de Castelanu fora enterrado e tratou-se de fazê-lo passar à
frente do túmulo deste último. Mas, a mais horrível penitência era a de encarregá-lo, ele próprio, da condução do exército dos
cruzados na perseguição dos heréticos, ele, que os amava de todo o coração, de conduzi-los às terras de seu sobrinho, o
visconde de Béziers, que ousava perserverar na proteção dada aos ímpios. O infeliz acreditava evitar sua ruína apertando a
mão àquela de seus vizinhos e se desonrava para viver um dia a mais[893].

O jovem e intrépido visconde pusera Béziers em estado de resistência e se encerrara em Carcassonne quando chegou, do
lado do Ródano, o principal exército dos cruzados; outros vinham pelo Vélay, outros pelo Agenês: “E foi tão grande o sítio,
tantas tendas quanto pavilhões, que parecia que todo o mundo estivesse aqui reunido”[894].Filipe Augusto não veio: ele tinha
em seus flancos dois grandes e terríveis leões[895], o rei João e o imperador Otto, o sobrinho de João. Mas os Franceses
para aí vieram, se o rei não o fez[896]: à sua testa, os arcebispos de Reims, de Sens, de Rouen, os bispos de Autun, Clermont,
Nevers, Bayeux, Lisieux e Chartres; os condes de Nevers, de Saint-Pol, de Auxerre, de Bar-sur-Seine, de Genebra, de Forez,
uma multidão de senhores. O mais poderoso era o duque da Borgonha. Os Borguinhões conheciam o caminho dos Pirineus;
eles haviam brilhado sobretudo nas cruzadas da Espanha. Uma cruzada pregada pelos monges de Cîteaux tornava-se nacional
na Borgonha. Os Alemães, os Lorenos, vizinhos dos Borguinhões, também tomaram a cruz em turbas; mas nenhuma província
forneceu à cruzada homens mais hábeis e mais valentes que a Ilha-de-França. O engenheiro da cruzada, aquele que construía
as máquinas e dirigia os sítos, foi um jurista, mestre Theodósio, arquidiácono da igreja de Notre-Dame de Paris; foi ele,
também, quem fez, em Rouen, perante o Papa, a apologia das cruzadas (1215)[897].

Entre os barões, o mais ilustre, não o mais poderoso, mas aquele que ligou seu nome a esta terrível guerra, foi Simão
(Simon) de Montfort, do chefe de sua mãe, conde de Leicester. Esta família dos Montfort parece ter sido possuída por uma
ambição atroz. Eles pretendiam descender ou de um filho do rei Roberto, ou dos condes de Flandres, saídos de Carlos Magno.
Sua avó Bertrade, que deixou seu marido, o conde d’Anjou, pelo rei Filipe I, e os governou, um e outro, ao mesmo tempo,
tentou envenenar seu enteado, Luís o Gordo, e dar a coroa a seus filhos. Luís, entretanto, confiou nos Montfort; conta-se que foi
um deles quem lhe deu o conselho, após a derrota de Brenneville, de chamar em socorro as milícias paroquiais sob seus
estandartes. No século XIII, Simão de Montfort, de quem iremos falar, falhou em ser rei do Midi. Seu segundo filho,
procurando na Inglaterra a fortuna que lhe faltara na França, combateu pelas comunas inglesas e abriu-lhes a entrada do
Parlamento. Após ter tido em suas mãos o rei e o reino, foi vencido e morto. Seu filho (neto do célebre Montfort, chefe da
cruzada dos Albigenses), vingou-o degolando, na Itália, aos pés dos altares, o sobrinho do rei da Inglaterra que vinha da Terra
Santa[898]. Este ato arruinou os Montfort[899], cujo nome ligava-se a tantas tragédias e revoluções. Eles eram odiados tanto
por serem os promotores das comunas, quanto por serem os carrascos da heresia.

Simão de Montfort, o verdadeiro chefe da guerra dos Albigenses, já era um velho soldado das cruzadas, endurecido
nestas guerras exageradas dos Templários e dos Assassinos. Ao retornar da Terra Santa, ele encontrou, em Veneza, o exército
da quarta cruzada que partia, mas ele recusou-se ir a Constantinopla: ele obedeceu o Papa e salvou a abadia de Vaux-Sernay
quando, com grande perigo à sua própria vida, leu aos cruzados a proibição do pontífice (Petrus Vall. Sarn., c. 20) . Este ato
marcou Montfort e preparou sua grandeza. De resto, não se pode negar que este terrível executor dos decretos da Igreja não
tenha tido virtudes heróicas. Raimundo VI as reconhecia, apesar de Montfort ter-lhe causado a ruína[900]. Sem falar de sua
coragem, de seus costumes severos e de sua invariável confiança em Deus, ele mostrava ao menor dos seus uma atenção que
era coisa nova nas cruzadas. Todos os seus nobres, tendo atravessado consigo, sobre os cavalos, um rio engrossado pela
tempestade, os pedestres e os fracos não podiam passar; Montfort tornou a passar, no mesmo instante, para a outra margem,
seguido de quatro ou cinco cavaleiros, e permaneceu com as pobres pessoas, com grande perigo de ser atacado pelo
inimigo[901]. Também se atribui a ele, nesta guerra horrível, ter poupado as bocas inúteis que eram repelidas de um local, e
de ter mandado respeitar a honra das mulheres prisioneiras. Sua mulher, Alix de Montmorency, não era indigna dele; quando a
maior parte dos cruzados tinha abandonado Montfort, ela assumiu a direção de um novo exército e o conduziu a seu marido
(Hist. du Languedoc, l. XXI, c. 84, p. 194).

O exército reunido à frente de Béziers era guiado pelo abade de Cîteaux e pelo próprio bisto da cidade que redigira a
lista daqueles que ele designava à morte. Os habitantes recusaram-se a entregá-los e, vendo os cruzados traçarem seu campo,
saíram ousadamente para surpreendê-los. Eles não conheciam a superioridade militar de seus inimigos. Os soldados a pé
bastaram para repeli-los; antes que os cavaleiros pudessem ter tomado partido na ação, tais soldados entraram na cidade
misturados aos sitiados e viram-se senhores dela. O único problema era distinguir os heréticos dos ortodoxos: “Matai-os
todos”, disse o abade de Cîteaux, “o Senhor reconhecerá os Seus”[902].

“Vendo isso, aqueles da cidade se retiraram, aqueles que puderam, tanto homens, quanto mulheres e crianças, na grande
igreja de Saint-Nazaire: os padres desta igreja mandaram tocar os sinos até que todo mundo estivesse morto. Mas não houve
nem som de sino, nem padre vestido com seu hábito, nem clérigo, que pudesse impedir que todos fossem passados a fio de
espada. Apenas poucos conseguiram escapar. Esses assassínios e carnificina foram a maior pena da qual jamais se viu ou
ouviu. A cidade foi pilhada; tocou-se fogo em tudo, de tal forma que tudo foi devastado e queimado, como ainda se vê
presentemente, e que aí não habita qualquer ser vivo. Foi uma cruel vingança, visto que o conde não era herético e nem da
seita. Nesta destruição estiveram o duque da Borgonha, o conde de Saint-Pol, o conde Pierre d’Auxerre, o conde de Genebra,
chamado Gui-le-Comte, o senhor de Anduze, chamado Pierre Vermont; e também estiveram nela os Provençais, os Alemães,
os Lombardos; havia gente de todas as nações do mundo, que vieram em mais de trezentas mil, como se disse, por causa do
perdão” (Chron. Languedoc, ap. Scr. fr. XIX, 122).

Alguns querem que sessenta mil pessoas tenham perecido; outras dizem trinta e oito mil. O próprio executor, o abade de
Cîteaux, em sua carta a Inocente III, confessa humildemente que não pôde degolar senão vinte mil (Innoc. III, l. XII, epist.
108).
O terror foi tal que todas as praças foram abandonadas sem combate. Os habitantes fugiram para as montanhas. Não
sobrara senão Carcassonne, onde o visconde se trancara. O rei de Aragão, seu tio, veio inutilmente interceder por ele,
abandonando todo o resto. Tudo o que obteve foi que o conde poderia sair em treze, ele e mais doze companheiros. “Antes
deixar-me esfolar vivo”, disse o corajoso jovem, “o legado não pegará o menor dos meus, pois é por mim que se encontram
todos em perigo” (Chron. Langued., ap. Scr. fr. XIX, 124) . Entretanto, havia tantos homens, mulheres e crianças dos campos
refugiados na cidade, que foi impossível nela permanecer. Eles fugiram por uma passagem subterrânea que conduzia a três
léguas de distância. O visconde pediu um salvo-conduto para apresentar sua causa perante os cruzados e o legado, traindo-o, o
prendeu. Conta-se que cinquenta prisioneiros foram enforcados e quatrocentos queimados.

Todo este sangue teria sido vertido em vão se alguém não se encarregasse de perpetuar a cruzada, de velar em armas
sobre os cadáveres e as cinzas. Mas quem podia aceitar essa rude tarefa, consentir em herdar das vítimas, estabelecer-se em
suas casas desertas e vestir suas camisas ensanguentadas? O duque da Borgonha não o quis. “Parece-me”, ele disse, “que
fizemos muito mal ao visconde, em tomar-lhe sua herança”. Os condes de Nevers e de Saint-Pol disseram outro tanto. Simão
de Montfort aceitou, após terem-no rogado um pouco. O visconde de Béziers, que estava em suas mãos, logo morreu, o que foi
muito conveniente para Montfort[903]. Não lhe restou senão aguardar a confirmação do Papa acerca do dote feito pelos
legados papais; ele impôs sobre cada casa um tributo anual de três denários em benefício da igreja de Roma (‘Preuves de
l’Hist. du Languedoc, p. 243).

Entretanto, não era fácil conservar um bem adquirido desta maneira. A turba dos cruzados ia-se; Montfort ganhara,
cabia-lhe, agora, guardar, se pudesse. Não lhe restou, deste imenso exército, senão quatro mil e quinhentos Borguinhões e
Alemães (Chronic. Langued., ap. Scr. fr. XIX, 128) . Logo, ele não teve outras tropas senão aquelas a quem pagava um alto
soldo. Era-lhe necessário, portanto, aguardar uma nova cruzada e contentar os condes de Toulouse e de Foix a quem
inicialmente ameaçara. O último aproveitou-se dessa prorrogação para ir até Filipe Augusto, depois à Roma, para protestar ao
Papa a pureza de sua fé. Inocente fez-lhe boa cara e o enviou aos seus legados, os quais, tendo a última palavra, ainda
ganharam tempo, fixando-lhe o termo de três meses para se justificar, estipulando não sei quantas condições minuciosas sobre
as quais podiam ocorrer equívocos. Ao termo fixado, o infeliz Raimundo acorreu, esperando enfim obter esta absolvição que
devia assegurar-lhe o repouso. Então, o mestre Theodósio, que conduzia tudo, declarou que todos as condições não haviam
sido cumpridas: “Se ele faltou com as pequenas coisas”, argumentou, “como seria ele fiel nas grandes?”. O conde não pôde
reprimir suas lágrimas. “Qualquer que seja o transbordamento das águas”, disse o padre com uma alusão derrisória, “elas não
chegarão até o Senhor”.

Entrementes, a esposa de Montfort trouxera-lhe um novo exército de cruzados. Os heréticos, não mais ousando fiar-se em
nenhuma cidade, após o desastre de Béziers e de Carcassonne, refugiaram-se em alguns castelos fortes, onde uma valente
nobreza fazia causa comum com os mesmos; eles possuíam muitos nobres em seu partido, como os protestantes do século XVI.
O castelo de Minerva, que se encontrava às portas de Narbonne, era um de seus principais refúgios (Petrus Vall. Sarn, c. 37) .
O arcebispo e os magistrados de Narbonne esperaram desviar a cruzada de sua região baixando leis terríveis contra os
heréticos, mas estes, acossados em todos os antigos domínios do visconde de Béziers, se refugiaram em turba na direção de
Narbonne. A multidão encerrada no castelo de Minerva não podia subsistir senão fazendo carreiras até às portas dessa cidade.
Os próprios Narbonenses chamaram Montfort e o ajudaram. O sítio foi terrível. Os sitiados não esperavam e nem queriam
qualquer piedade. Forçados a se renderem, o legado ofereceu a vida àqueles que abjurassem. Um dos cruzados se indignou
com isso: “Não temei”, disse o padre, “nada perdereis, pois nenhum deles se converterá”[904]. Efetivamente, estes eram os
Perfeitos, quer dizer, os primeiros na hierarquia dos heréticos; todos, homens e mulheres, ao número de cento e quarenta,
correram para a fogueira e nela se jogaram por si próprios[905]. Montfort, correndo ao sul, sitiou o forte castelo de Termes,
outro asilo da igreja albigense. Havia trinta anos que ninguém neste castelo se aproximava dos sacramentos. As máquinas
necessárias para bater a praça-forte foram construídas pelo arquidiácono de Paris (Petrus Vall. Sarn, c. 41) . Foram
necessários esforços inacreditáveis; os sitiantes plantaram o crucifixo no alto dessas máquinas para desarmar os sitiados ou
para torná-los ainda mais culpados se continuassem a se defender, ao risco de baterem no próprio Cristo. Entre aqueles
destinados à fogueira, havia um que declarara desejar se converter; Montfort insistiu para que ele fosse queimado[906]; e é
verdade que as chamas recusaram-se tocá-lo e não fizeram senão queimar os nós que o prendiam.

Era visível que, após apoderar-se de tantos lugares-fortes nas montanhas, Montfort iria se dirigir para a planície e
atacaria Toulouse. O conde, em seu temor, dirigia-se a todo o mundo, ao Imperador, ao rei da Inglaterra, ao rei da França, ao
rei de Aragão. Os dois primeiros, ameaçados pela igreja e pela França, não podiam socorrê-lo. A Espanha estava ocupada
com os progressos dos Mouros. Filipe Augusto escreveu ao Papa. O rei de Aragão o fez também e ele próprio tentou ganhar
Montfort para si, consentindo receber sua homenagem pelos domínios do visconde de Béziers e, para assegurá-lo de sua boa-
fé, confiava-lhe seu próprio filho (Hist. du Lang., l. XXI, c. 96, p. 203). Ao mesmo tempo, esse príncipe generoso, desejando
mostrar que se associava sem reservas à fortuna do conde de Toulouse, deu-lhe uma de suas irmãs em casamento, a outra ao
jovem filho do conde que, mais tarde, tornou-se Raimundo VII (Guill. de Pod. Laur., c. 18) . Ele próprio foi ao concílio de
Arles para interceder em favor do conde Raimundo VI. Mas esses padres não possuíam entranhas. Os dois príncipes foram
obrigados a fugir da cidade sem pedir licença aos bispos que desejavam detê-los (Hist. du Languedoc, l. XXI, c. 98). Eis o
trato derrisório ao qual desejavam que Raimundo se submetesse:

“Primeiramente, o conde dará licença incontinenti a todos os que vieram trazer-lhe ajuda e socorro ou que vierem a
fazê-lo, e os devolverá todos, sem reter um só. Ele será obediente à Igreja, fará reparação de todos os males e prejuízos que
ela suportou, e ser-lhe-á submisso tanto quanto viver, sem nenhuma contradição. Em todo a região, não se comerá senão duas
espécies de carnes. O conde Raimundo expulsará e lançará para fora de suas terras todos os heréticos e seus aliados. O
supramencionado conde intimará e entregará nas mãos dos ditos legados e ao conde de Montfort, para deles fazer de acordo
com sua vontade e ao seu agrado, todos e cada um daqueles que dir-lhe-ão e declarar-lhe-ão e, tudo isso, no termo de um ano.
Em todas as suas terras, quem quer que seja, tanto nobre, como homem de baixa extração, ninguém vestirá trajes caros, senão
nada além de péssimas capas negras. Ele mandará abater e demolir em seu país, até o rés de chão, e sem aí nada deixar, todos
os castelos e praças de defesa. Nenhum dos cavaleiros ou nobres deste país poderá viver em qualquer cidade ou praça, mas
viverão todos fora, nos campos, como aldeões e camponeses. Em todas as suas terras, não se pagará qualquer pedágio, senão
aqueles que era costume pagar e cobrar pelos usos antigos. Cada chefe de casa pagará, todo ano, quatro denários toulousenses
ao legado ou àqueles que forem encarregados de cobrá-los. O conde entregará tudo aquilo que ingressar-lhe das rendas de sua
terra e todos os lucros que delas tiver. Quando o conde de Montfort sair e cavalgar por suas terras e regiões, ele, ou qualquer
um dos seus, tanto pequenos, quanto nobres, nada ser-lhe-á pedido pelo que vier a tomar, nem ninguém resistir-lhe-á no que
quer que seja. – Quando o conde Raimundo tiver feito e executado tudo o que foi supratranscrito, ele partirá ao ultramar para
fazer a guerra aos Turcos e infiéis na Ordem de São João, sem jamais retornar até que o legado o tenha convocado. Quando
ele tiver feito e executado tudo o que foi supratranscrito, todas as suas terras e senhorias ser-lhe-ão rendidas e entregues pelo
legado ou pelo conde de Montfort, quando melhor lhes convier” (Chronic. Langued., ap. Scr. fr. XIX, 136).

Uma tal paz não era outra coisa senão uma guerra! Montfort ainda não atacava Toulouse. Mas seu homem, Folquet,
outrora trovador, agora bispo de Toulouse, tão furioso no fanatismo e na vingança quanto outrora o fora no prazer, trabalhava,
nesta cidade, pela cruzada. Ele aí organizava o partido católico sob o nome de Companhia Branca[907]. A Companhia se
armou, apesar do conde, para socorrer Montfort, que sitiava o castelo de Lavaur[908]. Esta recusa de socorro foi o pretexto
do qual Montfort se serviu para sitiar Toulouse. Ele desejava aproveitar um exército de cruzados que vinha de chegar dos
Países Baixos e da Alemanha e que, entre outros senhores, contava com o duque da Áustria. Os padres saíram de Toulouse em
procissão, cantando litanias e votando à morte o povo que abandonavam. O bispo expressamente pedia que seu rebanho fosse
tratado como aquele de Béziers e de Carcassonne.

Era doravante visível que, nisto tudo, a religião era de menor interesse que a ambição e a vingança. Os monges de
Cîteaux, neste mesmo ano, tomaram para si os bispados do Languedoc; o abade teve o arcebispado de Narbonne e tomou, além
de tudo, o título de duque, do ainda vivente Raimundo, sem a menor vergonha ou pudor (Hist. do Languedoc, l. XXIII, c. 16, p.
223). Pouco após, Montfort, não sabendo mais onde encontrar heréticos para dar de matar a um novo exército que vinha a si, o
conduziu ao Agenês e continou a cruzada em regiões de ortodoxia católica[909].

Então, todos os senhores dos Pirineus se declararam abertamente por Raimundo. Os condes de Foix, do Béarn, de
Comminges, o ajudaram a forçar Simão a levantar o sítio de Toulouse. O conde de Foix quase o destruiu, em Castelnaudary,
mas as tropas mais endurecidas de Montfort seguraram a vitóra. Estes pequenos príncipes foram encorajados vendo os grandes
soberanos confessarem, mais ou menos abertamente, o interesse que tinham por Raimundo. O senescal do rei da Inglaterra,
Savary de Mauléon, estava com as tropas de Aragão e de Foix em Castelnaudary[910]. Infelizmente, o rei da Inglaterra não
ousava agir diretamente. O rei de Aragão estava obrigado a unir todas as suas forças àquelas dos outros príncipes da Espanha
para repelir a terrível invasão dos Almóadas que avançavam ao número de trezentos ou quatrocentos mil. Sabe-se com qual
glória os Espanhóis forçaram à las Navas de Tolosa as cadeias com as quais os Muçulmanos tentaram se fortificar. Esta
vitória é uma nova era para a Espanha; ela não precisa mais defender a Europa contra a África: a luta das raças e das
religiões terminou (16 de julho de 1212)[911].

As reclamações do rei de Aragão em favor de seu cunhado pareceram, então, ter algum peso. O Papa foi, por um
instante, abalado[912]. O rei da França em nada escondeu o interesse que Raimundo lhe inspirava. Mas o Papa, tendo tido
confirmados os seus primeiros pensamentos por aqueles que lucravam com a cruzada, o rei de Aragão sentiu que seria
necessário recorrer à força e mandou desafiar Montfort. Este último, sempre humilde e prudente, tanto quanto forte, mandou
primeiro perguntar ao rei se era bem verdade que ele o desafiara e no quê, ele, fiel vassalo da coroa de Aragão, pudera
desmerecer seu suzerano. Ao mesmo tempo, ele se mantinha preparado, pois possuía poucas pessoas a si e quase todo o povo
estava a favor de seus adversários. Mas os homens de Montfort eram cavaleiros pesadamente armados e como que
invulneráveis, ou, então, mercenários de uma coragem testada e que amadureceram nesta guerra. Don Pedro tinha, quando
muito, milícias das cidades e alguns corpos de cavalaria ligeira, habituada a voltejar como os Mouros. A diferença moral dos
dois exércitos era ainda maior. Aqueles de Montfort acreditavam em sua causa e estavam confessados, recomendados e
haviam beijado as relíquias[913]. Quanto a Don Pedro, todos os historiadores, seu próprio filho, nô-lo representam como
ocupado de outros pensamentos.

“Um padre veio dizer ao conde: ‘Tendes bem poucos companheiros em comparação a vossos adversários, entre os quais
está o rei de Aragão, mui hábil e curtido na guerra, seguido de seus condes e de um exército numeroso, e a partida não será
igual para tão pouca gente contra o rei e uma tal multidão’. Ante essas palavras, o conde tirou uma carta de sua bolsa e disse:
‘Lede esta carta’. Por ela, o padre tomou conhecimento que o rei de Aragão saudava a esposa de um nobre da diocese de
Toulouse, dizendo-lhe que era por amor a ela que vinha expulsar os Franceses de sua terra, além de outras coisas suaves e
doces. O padre, tendo lido, respondeu: ‘Que desejais dizer com isso’? O conde respondeu: ‘O que quero dizer? Ora, que Deus
me ajuda tanto quanto pouco temo um rei que está prestes a cruzar os desígnios de Deus pelo amor de uma meretriz”[914].

Qualquer que fosse a exatidão destas circunstâncias, Montfort, encontrando-se na presença dos inimigos em Muret,
próximo a Toulouse, fingiu desejar fugir ao combate, desviou-se e, repentinamente, caiu sobre eles com todo a massa de sua
pesada cavalaria, dispersou-os e, segundo se conta, matou mais de quinze mil; ele não perdera senão oito homens e apenas um
cavaleiro (Petr. Vall. Sarn, c. 72. Guill. Pod. Laur., c. 22. Guill. Brito) . Vários dos partidários de Montfort haviam se
espalhado para atacar unicamente o rei de Aragão. Um deles tomou um dos inimigos pelo rei, eis que estava encarregado de
levar suas armas; então, caindo em si, disse: “O rei, entretanto, é melhor cavaleiro”. Don Pedro então se lançou e gritou: “Este
não é o rei, eis-me aqui”. No mesmo instante, ele teve seu corpo atravessado por golpes.

Este príncipe de Aragão deixou uma longa e cara memória. Brilhante trovador, marido leviano; mas quem teria coração
para disto se lembrar? Quando Montfort o viu deitado à terra e reconhecível por sua grande estatura, o feroz general do
Espírito Santo não pôde reprimir uma lágrima[915].

A Igreja Romana parecia ter vencido no sul da França, assim como o fizera no Império Grego. Restavam seus inimigos
do Norte, os heréticos de Flandres, o excomungado João e o anti-César Otto.

Já depois de cinco anos (1208-1213), a Inglaterra não mantinha mais relações com a Santa Sé; a separação parecia já ter
ocorrido, como no século XVI. Inocente havia levado João ao extremo e lançado contra ele um novo Thomas Becket. Em
1208, precisamente à época quando o pontífice começava a cruzada dos Albigenses no Midi da França, ele iniciou
uma outra, menos belicosa, contra o rei da Inglaterra, levando um de seus inimigos à primazia. O arcebispo de Canterbury,
chefe da Igreja anglicana, era também, como já o vimos, uma personagem política. Ele era, bem mais que os condes e os
lugares-tenentes do rei, o chefe do Kentia, desses condados meridionais da Inglaterra que formavam a parte menos governável
e a mais fiel ao velho espírito bretão e saxão. O primaz da Inglaterra nos aparece como um depositário das liberdades
nacionais, análogo ao justiza de Aragão. Nada era mais importante ao rei do que colocar, em um tal posto, um homem que
fosse a si; e ele o fazia ser nomeado pelos prelados, pela sua igreja normanda. Mas os monges do convento de Santo
Agostinho, em Canterbury, sempre reclamavam esta eleição como um direito imprescritível de sua Casa, metrópole primitiva
do cristianismo inglês. A voz desses pobres monges do Kent era a única que evocava a velha reclamação do povo e atestava
um antigo direito dos vencidos.

Inocente tirou partido deste conflito, declarando-se a favor dos monges; depois, como estes últimos não estivessem de
acordo entre si, o Papa anulou as primeiras eleições e, sem aguardar a autorização do rei que ele próprio pedira, fez eleger,
pelos delegados dos monges em Roma e sob seus olhos, um inimigo pessoal de João. Era um sábio eclesiástico de origem
saxã, assim como Becket, e seu nome Langton bem o atesta. Ele fora professor na Universidade de Paris, depois chanceler
desta Universidade. Resta-nos dele alguns versos galantes dirigidos à Virgem Maria. Tão logo soube acerca da consagração
do arcebispo, João expulsou os monges de Canterbury da Inglaterra, deitou a mão sobre seus bens e jurou que, se o Papa
lançasse contra si o interdito papal, confiscaria os bens de todo o clero e cortaria o nariz e as orelhas de todos os Romanos
que encontrasse em sua terra. O interdito veio e a excomunhão também. Mas não se encontrou ninguém que ousasse dá-las
conhecer ao rei. Effecti sunt quasi canes muti, non audentes latrare (NT: Os resultados foram como que cães mudos,
ninguém ousava ladrar). Contava-se, baixinho, a terrível notícia; mas ninguém ousava nem promulgá-la, nem com ela se
conformar. O arquidiácono Godofredo, tendo renunciado ao cargo de exchequer, João mandou esmagá-lo até à morte sob uma
capa de chumbo. Por temer ser abandonado por seus barões, ele exigira dos mesmos dois reféns. Eles não ousaram recusar-se
a comungar com o rei que, por si, aceitava ousadamente esse papel de adversário da Igreja; ele recompensou um padre que
pregara ao povo que o rei era o flagelo de Deus e que se fazia necessário auxiliá-lo como o ministro da cólera divina. Este
endurecimento e esta segurança de João faziam tremer: ele parecia se comprazer com isto. Ele devorava, como queria, os bens
eclesiásticos, estuprava as jovens nobres, comprava soldados e zombava de tudo. O dinheiro, ele o tomava tanto quanto o
quisesse dos padres, das cidades, dos Judeus; ele trancafiava estes últimos quando se recusavam a financiá-lo e mandava
arrancar-lhes, um a um, os dentes[916]. Ele gozou cinco anos da cólera divina. O juramento de João era “Pelos dentes de
Deus!”. Per dentes Dei![917]... Era o último termo deste espírito satânico que observamos nos reis da Inglaterra, nas
violências furiosas de Guilherme o Ruivo e do Coração de Leão, no assassinato de Becket, nas guerras parricidas desta
família. Mal! Sois mon bien! (NT: Mal! Sê tu meu bem!)[918].

João nada tinha a temer da França e da Europa enquanto estivessem às voltas com a cruzada dos Albigenses. Mas, à
medida que o sucesso de Montfort foi decidido, seu perigo aumentou[919]. Este terror, esta vida sem Deus, onde os padres
oficiavam sob pena de morte, sentia-se que ela não podia continuar. Quando, mais tarde, no século XVI, Henrique VIII separou
a Inglaterra do Papa, foi para que ele próprio se fizesse Papa. Mas isto não era factível no século XIII e João não tentou algo
assim. Em 1212, Inocente III, seguro do lado do sul, pregou a cruzada contra João e encarregou o rei da França da execução da
sentença apostólica (Mathieu Paris, p. 232). Uma frota, um exército imenso, foram reunidos por Filipe. Na outra margem da
Mancha, conta-se que João reuniu até sessenta mil homens em Dover. Mas em toda esta multidão, não havia ninguém seguro
com quem pudesse contar. O legado do Papa, que passara o estreito, fez-lhe compreender seu perigo; a corte de Roma
desejava humilhar João, mas não queria dar a Inglaterra ao rei da França. João se submeteu e prestou homenagem ao Papa,
comprometendo-se a pagar-lhe um tributo de mil marcos esterlinos de ouro[920]. A cerimônia de homenagem feudal nada
possuía de vergonhosa. Os reis eram, com frequência, vassalos de senhores pouco poderosos em relação a terras destes que
tinham tomado em feudo. O rei da Inglaterra sempre fora vassalo do rei da França pela Normandia ou pela Aquitânia.
Henrique II prestara homenagem da Inglaterra ao Papa Alexandre III e Ricardo ao Imperador. Mas os tempos tinham mudado.
Os barões afetaram acreditar que seu rei fora degradado por sua submissão aos padres[921]. O próprio João mal disfarçou
seu furor. Um eremita predissera que, no dia da Ascensão, João não seria mais rei; ele desejou prová-lo que ainda o era e
mandou arrastar o profeta à cauda de um cavalo que o fez em pedaços.

Filipe Augusto teria talvez invadido a Inglaterra, malgrado a proibição do legado, se o conde de Flandres não o tivesse
abandonado. Flandres e Inglaterra cedo tiveram ligações comerciais: os operários Flamengos precisavam da lã inglesa. O
legado encorajou Filipe a desviar este grande exército contra os Flamengos. Os tecelões de Gand e de Bruges, afinal de
contas, não tinham melhor reputação de ortodoxia que os Albigenses do Languedoc (vide mais acima). Filipe, de fato, invadiu
Flandres e a devastou cruelmente. Dam foi pilhada e de Cassel, de Ypres, de Bruges e de Gand, exigiu-se um resgate. Os
Franceses sitiavam esta última cidade, quando descobriram que a frota de João bloqueava a sua. Eles não puderam subtraí-la
ao inimigo senão queimando-a eles próprios, e se vingaram incendiando as cidades de Dam e de Lille[922].

Neste mesmo inverno, João tentou um esforço desesperado. Seu cunhado, o conde de Toulouse, vinha de perder todas as
suas esperanças com a batalha de Muret e com a morte do rei de Aragão (12 de setembro de 1212). O rei da Inglaterra
arrependeu-se de ter deixado esmagarem os Albigenses, que teriam sido seus melhores aliados. Ele procurou outros na
Espanha e na África; conta-se que se dirigiu, mesmo, aos Maometanos, ao próprio chefe dos Almóadas, preferindo danar-se e
entregar-se ao diabo a fazê-lo em relação à Igreja[923].

Nesse ínterim, ele comprava um novo exército (o seu já o havia abandonado na última campanha); enviava subsídios a
seu sobrinho Otto (Math. Paris, p. 158) e sublevava todos os príncipes da Bélgica. No coração do inverno (por volta de 15 de
fevereiro de 1214), ele passou o mar e desembarcou em La Rochelle. Ele devia atacar Filipe pelo sul, enquanto os Alemães e
os Flamengos tombariam-lhe do lado norte. O momento fora bem escolhido; os Poitevinos, já exaustos do jugo da França,
vieram, em multidão, se posicionar ao lado de João. Do outro lado, os senhores do Norte estavam alarmados dos progressos
do poder do rei. O conde de Boulogne fora por ele despojado dos cinco condados que possuía. O conde de Flandres
reclamava, em vão, Aire e Saint-Omer. A última campanha havia levado aos píncaros o ódio dos Flamengos contra os
Franceses. Os condes de Limbourg, da Holanda, de Louvain, entraram nesta liga, ainda que o último fosse genro de Filipe.
Havia, ainda, Hugo de Boves, o mais célebre dos chefes dos salteadores; enfim, o pobre imperador de Brunswick, que não
passava, ele próprio, de um salteador a serviço de seu tio, o rei da Inglaterra. Pretende-se que os confederados não desejavam
nada menos que dividir a França. O conde de Flandres teria Paris; aquele de Boulogne, o Péronne e o Vermandois. Eles
dariam os bens dos eclesiásticos aos guerreiros, imitando João[924].

A Batalha de Bouvines, tão famosa e tão nacional, não parece ter sido uma ação muito considerável. É provável que
cada exército não passasse de quinze ou vinte mil homens (Sismondi, Hist. des Français, p. 356). Filipe, tendo enviado contra
João a melhor parte de seus cavaleiros, havia composto parte de seu exército, que ele próprio conduzia, com as milícias da
Picardia. Os Belgas deixaram Filipe devastar suas terras ‘regiamente” (Guill. Brito, p. 94) durante um mês e, quando estava
prestes a retornar sem ter visto o inimigo, ele o encontrou entre Lille e Tounai, próximo da ponte de Bouvines (27 de agosto de
1214). Os detalhes da batalha nos foram transmitidos por uma testemunha ocular, Guilherme o Bretão (Guillaume-le-Breton),
capelão de Filipe Augusto, que se manteve atrás deste durante a batalha. Infelizmente, esta narrativa, evidentemente alterada
pela adulação, o é ainda mais pelo servilismo clássico com o qual o historiador-poeta se crê obrigado a calcar sua Filipíada
sobre a Enêida de Virgílio. É preciso, a qualquer custo, que Filipe seja Enéias e o Imperador Turnus. Tudo o que se pode
adotar como certo é que nossas milícias foram, inicialmente, postas em desordem, que os cavaleiros fizeram várias cargas,
que, numa delas, a vida do rei da França correu risco, tendo sido lançado à terra por infantes armados de ganchos. O
imperador Otto teve seu cavalo ferido por Guilherme des Barres, este irmão de Simão de Montfort, o adversário de Ricardo
Coração de Leão, e foi levado na derrota dos seus. A glória da coragem, mas não da vitória, restou aos salteadores
brabantinos; esses velhos soldados, ao número de quinhentos, não quiseram se render aos Franceses e se fizeram, antes, matar.
Os cavaleiros se obstinaram menos e foram presos em grande número; sob estas pesadas armaduras, um homem era pego sem
remédio. Cinco condes caíram entre as mãos de Filipe Augusto, a saber: o de Flandres, o de Boulogne, o de Salisbury, de
Tecklembourg e de Dortmund. Os dois primeiros não foram resgatados pelos seus e permaneceram prisioneiros de Filipe. Ele
entregou outros prisioneiros às milícias que tomaram parte do combate, a fim de que as mesmas pudessem exigir resgate.

João não foi mais feliz no Midi que Otto no Norte; ele teve, de início, rápidos sucessos no Loire; ele tomou Saint-
Florent, Ancenis, Angers. Mas, mal os dois exércitos puseram-se em presença um do outro, que um terror-pânico dominou
ambos, fazendo-os darem-se, mutuamente, as costas. João perdeu mais rápido que ganhara. Os Aquitânios deram a Luís a
mesma boa acolhida com que receberam João, o qual, vendo-se feliz pelo Papa ter-lhe obtido uma trégua por sessenta mil
marcos de prata, retornou à Inglaterra, vencido, arruinado e sem recursos. A ocasião, portanto, não podia ser mais bela para
os barões da Inglaterra e eles a seguraram. No mês de janeiro de 1215 e, de novo, no dia 15 de junho, eles obrigaram João a
assinar o célebre ato conhecido sob o nome de Magna Carta Libertatum (“A Grande Carta das Liberdades”). O arcebispo de
Canterbury, Langton, ex-professor da Universidade de Paris, deu a entender que as liberdades que eram reclamadas do rei não
eram outras senão as velhas liberdades inglesas, já reconhecidas por Henrique Beauclerc numa carta semelhante[925]. João
prometia aos barões não mais casar suas filhas e viúvas contra a vontade das mesmas, de não mais arruinar os pupilos sob
pretexto de tutela feudal ou guarda-nobre; aos habitantes das cidades, de respeitar suas liberdades; a todos os homens livres,
permitir-lhes ir e vir como bem desejassem; de não mais aprisionar, nem desapossar ninguém, de forma arbitrária, de não mais
reter os contenement dos pobres (ferramentas, utensílios etc.)[926]; de não mais levantar, sem consentimento do parlamento
dos barões, a escudagem ou taxa de guerra (fora os três casos previstos pelas leis feudais); enfim, de não mais tomar, por seus
oficiais, as rendas e os veículos necessários à sua casa. A corte real dos apelos comuns não devia mais seguir o rei, mas
permanecer no meio da cidade, sob os olhos do povo, em Westminster. Enfim, os juízes, condestáveis e bailios, deveriam ser,
doravante, pessoas versadas na ciência das leis. Só este artigo já transferia o poder judiciário aos escribas, aos clérigos, aos
juristas, aos homens de condição inferior. O que o rei acordava aos seus administradores imediatos, eles deviam, por sua vez,
transferi-lo a seus administradores inferiores. Assim, pela primeira vez, a aristocracia sentia que não podia afirmar sua vitória
sobre o rei senão estipulando em favor de todos os homens livres. Desde este dia, a antiga oposição dos vencedores e dos
vencidos, dos filhos dos Normandos e dos filhos dos Saxões, desapareceu e apagou-se.

Quanto este ato lhe foi apresentado, João exclamou: “Eles podiam, igualmente, pedir minha coroa”[927]. Ele assinou e,
em seguida, foi tomado por um horrível acesso de furor, roendo a palha e a madeira, como uma besta aprisionada morde as
barras de sua jaula. Quando os barões se dispersaram, ele mandou publicar, em todo o continente, que os aventureiros
brabantinos, flamengos, normandos, poitevinos, gascões, que desejassem serviço, poderiam ir à Inglaterra e tomar as terras de
seus barões rebeldes (Math. Paris, p. 225); ele desejava refazer sobre os Normandos a conquista de Guilherme sobre os
Saxões. Uma turba gigantesca se apresentou na Inglaterra. Os barões assustados chamaram os reis da Escócia e da França. O
filho deste último desposara Branca de Castela, sobrinha de João. Mas esta princesa não era a herdeira imediata de seu tio;
ela não poderia transmitir a seu marido um direito que ela própria não possuía. O Papa também interveio. Ele achava que o
arcebispo de Canterbury fora muito longe contra João. Ele proibiu o rei da França de atacar o rei da Inglaterra, vassalo da
Igreja. O jovem Luís, filho de Filipe, fingindo agir contra a vontade de seu pai[928], passou à Inglaterra à testa de um exército.
Todos os condados da Kentia, o próprio arcebispo, e a cidade de Londres, se declararam pelo Francês. João encontrou-se
novamente abandonado, só, exilado em seu próprio reino. Foi-lhe necessário buscar a vida, a cada dia, na pilhagem, como um
chefe de salteadores. Ao amanhecer, ele queimava a casa na qual havia passado a noite. Ele passou alguns dias na ilha de
Wight e aí subsistiu à custa de piratarias. Ele, porém, carregava consigo um tesouro com o qual ainda contava comprar
soldados. Este dinheiro pereceu quando da passagem de um rio. Então, ele perdeu toda a sua esperança, pegou uma febre e
morreu. Era o que de pior poderia acontecer aos Franceses. O filho de João, Henrique III, era inocente dos crimes de seu pai.
Luís logo viu todos os Ingleses unidos contra si e teve de se ver feliz pelo só fato de conseguir voltar à França, renunciando à
coroa da Inglaterra[929].

Inocente III estava morto dois meses antes do rei João (1216, 16 de julho e 19 de outubro), tão grande, tão triunfante,
quanto o inimigo da Igreja estava humilhado. E, entretanto, este fim vitorioso fora triste. O que ele, então, desejava? Ele
esmagara Otto e feito Imperador o seu jovem Italiano Frederico II; a morte dos reis de Aragão e da Inglaterra mostrara ao
mundo o que era jogar contra a Igreja; a heresia dos Albigenses fora afogada em tamanhas torrentes de sangue que se
procurava, em vão, um combustível para alimentar as fogueiras. Para este grande, para este terrível dominador do mundo e do
pensamento, faltava-lhe o quê?

Nada senão um coisa, uma coisa imensa, infinita, que nada poderia supri-la: sua aprovação, a fé em si. Sua confiança, no
início da perseguição, não fora talvez abalada; mas chegava-lhe, por cima de sua vitória, um grito confuso do sangue vertido,
um lamento em voz baixa, doce, modesta tanto quanto terrível. Quando vieram contar-lhe que o seu legado de Cîteaux
degolara, em seu nome, vinte mil homens em Béziers, que o bispo Foulquet fizera matar dez mil homens em Toulouse, não
teria sido possível que, nestas imensas execuções, o gládio tivesse se enganado? Tantas cidades e vilarejos em cinzas, tantas
crianças punidas pelas faltas de seus pais, tantos pecados para punir o pecado! Os executores tinham sido bem pagos: este
aqui era conde de Toulouse e marquês da Provença[930], aquele lá era o arcebispo de Narbonne; os outros, bispos. A Igreja
ganhara o quê? Uma execração imensa e, o Papa, uma dúvida.

Foi sobretudo um ano antes de sua morte, em 1215, quando o conde de Toulouse, o conde de Foix e os outros senhores
do Midi, vieram se jogar a seus pés, quando ele escutou os lamentos e que viu as lágrimas; então, ele ficou estranhamente
perturbado. Ele desejou reparar e não pôde fazê-lo. Seus agentes não lhe permitiram, de forma alguma, uma restituição que os
arruinasse e os condenasse. Não é impunemente que se imola a humanidade à uma idéia. O sangue derramado reclama dentro
de vosso próprio coração que agita o ídolo ao qual vós o sacrificastes. A idéia vos falta nos dias de dúvida, ela chancela, ela
empalidece, ela escapa; a certeza que ela deixa é a do crime que, por ela, foi executado.

“Quando o santo padre acabou de escutar tudo o que desejaram dizer-lhe uns e outros[931], ele soltou um grande
suspiro: depois, tendo se retirado em privado com seu conselho, os ditos senhores também se retiraram para seus aposentos,
aguardando a resposta que o santo padre haveria por lhes dar”.

“Quando o santo padre ia se retirando, todos os prelados do partido do legado e do conde de Montfort disseram-lhe e
mostraram-lhe que, se ele devolvesse àqueles, que tinham vindo recorrer, as suas terras e senhorias, e se o santo padre se
recusasse a acreditar neles, não haveria mais nenhum homem do mundo que se unisse às questões da Igreja e fizesse algo por
ela. Quando todos os prelados disseram isso, o santo padre pegou um livro e mostrou-lhes a todos como, se não devolvessem
as mencionadas terras e senhorias àqueles de quem haviam sido tomadas, isso seria impor-lhes um grande erro, pois ele
achara e achava o conde Raimundo muito obediente à Igreja e a seus mandamentos, assim como todos os outros que o
acompanhavam. ‘Por tal razão’, ele disse, ‘eu lhes dou autorização e licença de recuperarem suas terras e senhorias daqueles
que as retém injustamente’. Então, vós teríeis visto os ditos prelados murmurarem contra o santo padre e os príncipes, de tal
sorte que se teria dito que mais pareciam pessoas desesperadas que outra coisa, e o santo padre ficou muito pasmo de se ver
num caso em que os prelados se mostravam passionais, tal como eles o estavam contra si”.

“Quando o cantor do coro de Lyon daquela época, que era um dos grandes clérigos que se conhecia em todo o mundo,
viu e ouviu os mencionados prelados murmurarem desta forma contra o santo padre e contra os príncipes, ele se ergueu, tomou
a palavra contra os prelados, dizendo e mostrando ao santo padre que tudo o que os prelados diziam e disseram não era outra
coisa senão uma grande malícia e maldade combinadas contra os ditos príncipes e senhores, e contra toda a verdade, ‘Pois,
senhor’, ele disse, ‘tu bem sabes, no que toca ao conde Raimundo, que ele sempre foi obediente, e que é uma verdade que ele
foi um dos primeiros a colocar suas praças em tuas mãos e em teu poder, ou naquelas do teu legado. Ele também foi um dos
primeiros a se fazer cruzado; ele esteve no sítio de Carcassonne contra seu sobrinho, o visconde de Béziers, o que fez para te
mostrar quão obediente ele era, ainda que o visconde fosse seu sobrinho, do quê também fizeram reclamações. Eis porque me
parece, senhor, que tu farás um grande mal ao conde Raimundo, se tu não lhe entregares e não mandares entregar suas terras, e
tu terás a reprovação de Deus e do mundo e, doravante, senhor, não haverá homem vivente que se fiará em ti ou em tuas cartas
e que terá fé ou crença, enquanto toda a igreja militante estiver incursa na difamação e na reprovação. É porque vós, bispo de
Toulouse, vós cometestes um grande erro e bem demonstrais por vossas palavras que não amais o conde Raimundo e nem
mesmo o povo do qual sois o pastor; pois vós acendestes um tal fogo em Toulouse que jamais se apagará; fostes a causa
principal da morte de mais de dez mil homens e ainda faríeis outros tantos perecerem visto que, por vossas falsas
representações, demonstrais bem perseverar nos mesmos erros; e por vós, e por vossa conduta, a corte de Roma foi de tal
forma difamada que, por todo o mundo, tal é o célebre rumor; e me parece, senhor, que pela cobiça de um só homem, tantas
pessoas não deveriam ter sido destruídas, nem desapossadas de seus bens”.

“O santo padre, então, pensou um pouco nesta questão e, quando terminou, disse: ‘Eu bem vejo e reconheço que foi feito
um grande mal aos senhores e príncipes que assim vieram a mim; mas, todavia, disso sou inocente e de nada sabia; não foi por
ordem minha que cometeram esses erros e eu não me sinto obrigado em relação àqueles que os fizeram, pois o conde
Raimundo sempre veio a mim como homem verdadeiramente obediente, assim como os príncipes que com ele vieram”.

“Então, o arcebispo de Narbonne ergueu-se de pé e tomou a palavra e disse e mostrou ao santo padre como os príncipes
não eram culpados de nenhuma falta para que fossem assim desapossados, e que tudo se fez como o desejava o bispo de
Toulouse, ‘que sempre’, ele continuou, ‘nos deu muito danosos conselhos e ainda o faz presentemente; pois eu vos juro, na fé
que devo à santa Igreja, que o conde Raimundo sempre foi obediente a ti, santo padre, e à santa Igreja, assim como todos os
outros senhores que estão com ele; e se eles se revoltaram contra o teu legado e contra o conde de Montfort, eles não erraram;
pois o legado e o conde de Montfort tomaram-lhes todas as suas terras, mataram e massacraram inúmeras pessoas, e o bispo
de Toulouse, aqui presente, é a causa de todo o mal que se fez, e tu podes bem saber, senhor, que as palavras do mencionado
bispo não são verdadeiras pois, se as coisas fossem como ele as diz e dá a entender, o conde Raimundo e os senhores que o
acompanham não viriam a ti, como o fizeram e como tu o viste”.

“Quando o arcebispo acabou de falar, veio um grande clérigo chamado mestre Theodósio, o qual disse e mostrou ao
santo padre todo o contrário do que dissera o arcebispo de Narbonne. ‘Tu sabes bem, senhor’, ele disse, ‘e foste advertido
dos mui grandes deveres que o conde de Montfort e o legado exerceram, noite e dia, com grande perigo para suas pessoas,
para submeterem e mudarem o país dos príncipes, do qual falamos, o qual encontrava-se repleto de heréticos. Assim, senhor,
tu bem sabes que, agora, o conde de Montfort e teu legado varreram e destruíram os mencionados heréticos e tomaram em suas
mãos o país; o que fizeram com grande trabalho e penosidade, como qualquer um pode muito bem vê-lo; e agora que aqueles
vieram a ti, tu não podes nada fazer, nem usar de rigor, contra teu legado. O conde de Montfort tem bom direito e boa causa
para tomar suas terras e, se tu lhas retirar, cometerás grande erro; pois, noite e dia, o conde de Montfort labora para a Igreja e
pelos seus direitos, tal como te disseram”.

“O santo padre, tendo ouvido e escutado cada um dos dois partidos, respondeu a mestre Theodósio, e àqueles de sua
companhia, que sabia bem o contrário do que o mesmo viera de lhe dizer, pois fora bem informado que o legado destruía os
bons e os justos e deixava os maus sem punição, e que grandes eram os queixumes que, todo dia, chegavam-lhe, de todas as
partes, contra o legado e o conde de Montfort. Todos aqueles, então, que sustentavam o partido do legado e do conde de
Montfort se reuniram e vieram, perante o sante padre, pedir-lhe e rogar-lhe que deixasse para o conde de Montfort, já que as
conquistara, as regiões de Bigorre, Carcassonne, Toulouse, Agen, Quercy, Albigense, Foix e Comminges: ‘E se ocorrer,
senhor’, disseram-lhe, ‘que tu queiras retirar-lhe as ditas regiões e terras, nós te juramos e prometemos que todos nós o
ajudaremos e a ele acorreremos contra todos”.

“Quando assim falaram, o santo padre disse-lhes e respondeu-lhes que, nem por eles, nem por qualquer outra coisa que
lhe tivessem dito, faria nada do que desejavam e que homem nenhum no mundo seria por si desapossado; pois, tal como a
coisa viera de ser posta por eles e que, como o conde Raimundo tivesse feito tudo o que fora dito e demonstrado, o mesmo não
deveria, por tais razões, perder sua terra e sua herança, vez que Deus disse de Sua boca ‘que o pai não pagaria pela
iniquidade do filho, nem o filho por aquela do pai’, e que ninguém ousasse sustentar e manter afirmação contrária; por outro
lado, ele estava bem informado que o conde de Montfort fizera morrer, sem motivo e sem causa, o visconde de Béziers,
apenas para possuir sua terra; ‘pois, tanto quanto eu o sei e reconheço’, ele acrescentou, ‘o mencionado visconde jamais
contribuiu para esta heresia... E eu bem gostaria de saber de vós outros, já que fortemente tomais partido pelo conde de
Montfort, qual será aquele que desejará acusar e culpar o visconde e me dizer o porquê do conde de Montfort tê-lo feito
morrer, ter-lhe devastado as terras e tê-las tomado, estas terras, para si’? Quando o santo padre acabou de falar, todos os seus
prelados responderam-lhe que, bom ou mau grado, para o bem ou para o mal, o conde de Montfort guardaria as terras e
senhorias, pois o ajudaram a se defender por e contra todos, visto que as tinha bem e lealmente conquistado”.

“O bispo Osma, vendo isso, disse ao santo padre: ‘Senhor, não te inquietes com as ameaças deles pois, em verdade, te
digo que o bispo de Toulouse é um grande fanfarrão e que as ameaças deles não impedirão que o filho do conde Raimundo
recupere sua terra sobre o conde de Montfort. Para isso, ele encontrará ajuda e auxílio, pois é sobrinho do rei da França, e
também daquele da Inglaterra, e de outros nobres senhores e príncipes. Por isto é que saberá bem defender seu direito, ainda
que seja jovem”.

“O santo padre respondeu: ‘Senhores, não vos inquieteis pela criança pois, se o conde de Montfort retém-lhe suas terras
e senhorias, outras dar-lhe-ei com as quais reconquistará Toulouse, Agens e, também, o Beaucaire; eu darei, em toda a
extensão da propriedade, o condado de Venaissin que era ao Imperador e, se ele tiver Deus e a Igreja por si, e não fizer mal a
ninguém do mundo, ele terá terras e senhorias o bastante’. O conde Raimundo veio, então, na direção do santo padre, com
todos os príncipes e senhores, para obter as respostas a respeito de seus negócios e dos requerimentos que cada um fizera ao
santo padre; e o conde Raimundo disse-lhe e demonstrou-lhe quão longo tempo haviam permanecido no aguardo das respostas
de seus negócios e dos requerimentos que cada um fizera. Então, o santo padre disse ao conde Raimundo que, para o momento,
nada podia fazer por eles, mas que ele retornasse e lhe deixasse seu filho; e, quando o conde Raimundo ouviu a resposta do
santo padre, pediu licença para partir e deixou-lhe seu filho; e o santo padre deu-lhe sua benção. O conde Raimundo partiu de
Roma com uma parte de sua gente e deixou a outra com o seu filho e, entre outros, aí permaneceu o conde de Foix para pedir
sua terra e ver se poderia recuperá-la; e o conde Raimundo foi diretamente para Viterbo a fim de aguardar seu filho e os
outros que com este estavam, como, então, se contou”.

“Tudo isto realizado, o conde de Foix se apresentou perante o santo padre para saber se a terra retornar-lhe-ia ou não; e,
quando o santo padre findou por ver o conde de Foix, devolveu-lhe suas terras e senhorias, deu-lhe suas cartas, como era
necessário naquela ocasião, do que foi o conde de Foix grandemente jubiloso e alegre, agradecendo largamente o santo padre,
o qual concedeu-lhe sua benção e absolvição de todas as coisas passadas, até o dia presente. Quando a questão do conde de
Foix terminou, ele partiu de Roma, seguiu direto para Viterbo para apresentar-se ao conde Raimundo e contou-lhe todo o seu
caso, como obtivera sua absolvição e como o santo padre também lhe devolvera sua terra e senhoria; ele mostrou-lhe suas
cartas, com o que o conde Raimundo ficou grandemente jubiloso e alegre; de Viterbo, eles então partiram direto para Gênova,
onde aguardaram o filho do conde Raimundo”.

“Ora, a história diz que, após tudo isso e que, tendo o filho do conde Raimundo passado quarenta dias em Roma, ele se
rendeu, um dia, perante o santo padre, acompanhado de seus barões e senhores que estavam em sua companhia. Quando ele
chegou e, após a saudação feita pela criança ao santo padre, tal como zelosamente sabia fazer, pois era sábia e bem emendada,
ele pediu licença ao santo padre para retornar, já que não podia obter uma outra resposta; e, quando o santo padre ouviu e
escutou tudo o que a criança queria dizer-lhe e mostrar-lhe, ele a pegou pela mão, fê-la sentar-se ao seu lado e começou a
dizer: ‘Filho, escuta o que falo e, daquilo que quero te dizer, se tu o fizeres, em nada jamais falharás”.

“Primeiramente, que tu ames e sirvas a Deus e que nunca tomes nada dos bens de outrem; quanto aos teus, mantém-nos e,
se alguém desejar tomá-los de ti, defende-os; assim fazendo, terás terras e senhorias; e, a fim de que não permaneças, nem sem
terras, nem senhorias, eu te dou o condado de Venaissin com todos os seus pertences, a Provença e Beaucaire, os quais
servirão para tua manutenção até que a Santa Igreja tenha se reunido em concílio quando, então, tu poderás retornar para além-
montes para ter direito e razão àquilo que demandas contra o conde de Montfort”.

“A criança então agradeceu ao santo padre do que lhe fora dado e disse-lhe: ‘Senhor, se eu puder recuperar minha terra
contra o conde de Montfort e contra aqueles que as retêm, rogo-te, senhor, não ver faltas em mim, nem contra mim te irritares’.
O santo padre respondeu-lhe: ‘O que vieres a fazer, Deus muito te permite começar e melhor terminar”.

Estes votos de um ancião impotente não deveriam se realizar. Não foram, nem os Raimundos, nem os Montfort, quem
recolheram o patrimônio do conde de Toulouse. O herdeiro legítimo não os recuperou senão para logo cedê-los. O usurpador,
com toda a sua coragem e seu prodigioso vigor de alma, já estava vencido no coração quando uma pedra, lançada das
muralhas de Toulouse, veio libertá-lo da vida (1218)[932]. Seu filho, Amaury de Montfort, cedeu ao rei da França seus
direitos sobre o Languedoc; todo o Midi, salvo algumas cidades livres, se lançou nos braços de Filipe Augusto[933]. Em
1222, o próprio legado e os bispos do Midi suplicavam-lhe, de joelhos, aceitar a homenagem de Montfort[934]. É que, em
efeito, os vencedores não sabiam mais o que fazer de sua conquista e duvidavam se conseguiriam mantê-la. Os quatrocentos e
trinta feudos, que Simão de Montfort dera para serem regidos segundo os Costumes de Paris, poderiam ser arrancados dos
novos proprietários se não se assegurassem com um protetor poderoso. Os vencidos, que viram, em várias ocasiões, o rei da
França opor-se ao Papa, dele esperavam um pouco mais de equidade e suavidade.

Se lançarmos, nesta época, um olhar sobre toda a Europa, descobriremos, em todos os estados, uma fraqueza, uma
inconsequência de princípio e de situação, que deviam voltar-se em favor do rei da França.

Antes da pavorosa guerra que trouxe a catástrofe para o Midi, Don Pedro e Raimundo V tinham sido os inimigos das
liberdades municipais de Toulouse e de Aragão. O rei de Aragão quisera ser coroado pelas mãos do Papa e render-lhe
homenagem para ser menos dependente dos seus nobres. O próprio conde de Toulouse, Raimundo V, solicitara aos reis da
França e da Inglaterra executarem uma cruzada contra as liberdades religiosas e políticas da cidade de Toulouse.
Representante do princípio feudal, ele desejou anular o princípio municipal que incomodava seu poder. O rei da Inglaterra
continuava, contra Canterbury, contra seus barões, a luta de Henrique II. Enfim, o imperador Otto de Brunswick, filho de
Henrique o Leão, advindo de uma família guelfa, completamente inimiga dos imperadores, mas Inglês por sua mãe e criado na
corte da Inglaterra, perto de seus tios Ricardo e João, lembrou-se de sua mãe mais do que de seu pai e, de Guelfo, tornou-se
Gibelino, enquanto a Casa dos Príncipes da Suábia era reerguida pelos Papas, por Inocente III, tutor do jovem Frederico II.
Otto, abandonado pelos Guelfos, abandonado pelos Gibelinos, encontrava-se trancado nos seus estados de Brunswick e
recebia um soldo de seu tio João para combater a Igreja e Filipe Augusto, que o desafiou em Bouvines[935]. Tal era a imensa
contradição da Europa. Os príncipes eram contra as liberdades municipais em favor das liberdades religiosas. O imperador
era Guelfo e o Papa era Gibelino. O Papa, atacando os reis sob o aspecto religioso, os sustentava contra os povos no aspecto
político. Ele sagrou o rei de Aragão, ele anulou a Carta Magna e culpou o arcebispo de Canterbury, tal como quando
Alexandre III abandonara Becket. O Papa renunciava, assim, ao seu antigo papel de defensor das liberdades políticas e
religiosas. O rei da França, ao contrário, sancionava, nesta época, uma enorme quantidade de cartas comunais; tomava parte
na cruzada do sul, mas somente o suficiente para demonstrar sua fé. Ele só, em toda a Europa, possuía uma posição forte e
simples; a ele só pertencia o amanhã.

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Capítulo VIII
Primeira metade do décimo-terceiro século. Misticismo. Luís IX. Santidade do rei da França.

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Esta imensa luta, cujo quadro apresentamos no capítulo precedente, aparentemente terminou com a vantagem do Papa.
Ele triunfou em todos os lugares, e sobre o Imperador, e sobre o rei João, sobre os Albigenses heréticos e Gregos cismáticos.
A Inglaterra e Nápoles tornaram-se dois feudos da Santa Sé e a trágica morte do rei de Aragão foi uma grande lição para todos
os reis. Entretanto, esses diversos sucessos fortificaram tão pouco o Papa, que o veremos, no meio do século XIII, abandonado
por uma grande parte da Europa, mendigando, em Lyon, a proteção francesa; no início do século seguinte, ultrajado, batido,
esbofeteado pelo seu bom amigo o rei da França, obrigado, enfim, a vir colocar-se sob sua proteção em Avignon. Será em
benefício do rei da França que sucumbirão os vencidos e os vencedores, os inimigos da Igreja e a própria Igreja.

Como explicar esta decadência precipitada de Inocente III a Bonifácio VIII, uma queda tal após uma tamanha vitória? De
início, porque a vitória foi mais aparente que real. O ferro é impotente contra o pensamento; antes, é da natureza deste, desta
planta vivaz, crescer sob o ferro, germinar e florescer sob o aço. Quão mais, então, se o gládio se encontra na mão que deveria
menos utilizá-lo, na mão pacífica, na mão do padre; quão mais, se o cordeiro morde e retalha, se o padre assassina...! A Igreja,
perdendo assim seu caráter de santidade, este caráter logo vai passar a um laico, a um rei, ao rei da França. Os povos vão
transportar seu respeito ao sacerdote laico, à realeza. O piedoso Luís IX desfere assim, sem desejá-lo, um terrível golpe na
Igreja.

Os próprios remédios tornaram-se os males. O Papa não venceu o misticismo independente senão abrindo, ele próprio,
grandes escolas de misticismo: eu falo das Ordens Mendicantes. Era combater o mal pelo próprio mal; era empreender a coisa
difícil e contraditória entre todas, querer regular a inspiração, determinar a iluminação, constituir o delírio! Não se brinca
assim com a liberdade: é uma lâmina de dois gumes que fere aquele que acredita manipulá-la e dela se deseja fazer um
instrumento.

As ordens de São Dominique e de São Francisco, sobre as quais o Papa tentou apoiar a Igreja em ruína, tiveram uma
missão comum: a pregação. A primeira era dos monastérios, a era do trabalho e da cultura, na qual os Beneditinos haviam
arado a terra e o espírito dos bárbaros, esta idade tinha passado. Aquela dos pregadores da cruzada, dos monges de Cîteaux e
de Clairvaux, terminara junto com a Cruzada. Era de uma cruzada moral que tinha necessidade a Igreja, uma cruzada onde
chamasse os homens, não mais à Jerusalém da Judéia, mas à Jerusalém da caridade, da união, da simplicidade, da obediência.
A salvação do cristianismo estava certamente na unidade da Igreja. Ao tempo de Gregório VII, ele já fora salvo pelos monges,
auxiliares do papado. Mas os monges sedentários e reclusos não mais serviam quando os heréticos corriam o mundo para
divulgar suas doutrinas. Contra tais pregadores, a Igreja apresentou os seus Pregadores, que é o verdadeiro nome da Ordem
de São Dominique (ou São Domingos)[936]. O mundo, vindo menos à Igreja, ela foi a ele. Esses missionários extraíram da
fonte na qual o cristianismo se sacia todas as vezes em que está fatigado e arquejante: na fonte da graça[937]. Ela jorrou duas
ordens, aquelas de São Dominique e de São Francisco. A fonte fora reaberta, havia para todo mundo e todos para ela vieram;
os laicos foram admitidos a ela. As Ordens Terceiras de São Dominique e de São Francisco receberam uma turba de homens
que não podia abandonar o século e avidamente procurava fazer concorrerem os deveres do mundo e a perfeição monástica.
São Luís e sua mãe pertenciam à Ordem Terceira de São Francisco.

Tal foi a influência comum das duas ordens! Todavia, elas tiveram, nesta semelhança, um caráter diverso. Aquela de São
Dominique, fundada por um espírito austero, por um nobre espanhol, nascida sob a inspiração sanguinária de Cîteaux, no meio
da cruzada do Languedoc, logo interrompeu sua corrida mística e não teve nem o ardor, nem o despreendimento da Ordem de
São Francisco. Ela foi a principal auxiliar dos Papas até a fundação dos Jesuítas. Os Dominicanos foram encarregados de
regrar e de reprimir. Eles tiveram a inquisição e o ensino da teologia dentro do próprio cinturão do palácio pontifical[938].
Enquanto os Franciscanos corriam o mundo nos exageros da inspiração, caindo, levantando-se, alçando-se da obediência à
liberdade, da heresia à ortodoxia, abraçando o mundo e o agitando em transes de amor místico, o sombrio espírito de São
Dominique trancou-se no sacro palácio de Latrão, nas abóbadas graníticas do Escurial[939].
A ordem de São Francisco foi menos obscura; ela se lançou, de cabeça baixa, no amor, no amor de Deus; ela exclamou,
como mais tarde Lutero: ‘Pereça a lei, viva a graça!’. O fundador desta ordem errante foi um mercador ou ambulante de Assis.
Chama-se este italiano de François (Francisco) porque, de fato, ele não falava senão o français (francês)[940]. “Era”, disse
seu biógrafo, “em sua primeira juventude, um homem vaidoso, um bufão, um farsista, um cantor; leviano, pródigo, ousado...
cabeça redonda, testa pequena, olhos negros e sem malícia, sobrancelhas retas, nariz reto e fino, orelhas pequenas e como que
aguçadas, língua ardente e afiada, voz veemente e suave, dentes serrilhados, brancos e iguais, lábios finos, pescoço delgado,
braços curtos, dedos longos, unhas longas, pernas magras, pés pequenos, de pouca ou nenhuma carne”[941]. Ele tinha vinte e
cinco anos quando uma visão o converteu. Ele montou seu cavalo, foi vender suas peles em Foligno, entregou a paga a um
velho padre e, diante da recusa deste, jogou o dinheiro pela treliça da janela. Ele quis, ao menos, permanecer com o padre,
mas seu pai o perseguiu; ele se salvou, viveu um mês num buraco; seu pai o apanhou, deu-lhe socos e o povo o perseguiu com
pedradas. Seus pais o obrigaram a renunciar juridicamente à sua herança, na presença do bispo. Foi sua maior alegria; ele
entregou a seu pai todas as suas roupas sem guardar, mesmo, uma ceroula; o bispo lançou-lhe seu pálio sobre o corpo nu[942].

Ei-lo lançado à terra; ele percorreu as florestas cantando louvores ao seu Criador. Ladrões o pararam e perguntaram
quem era ele: “Eu sou”, ele disse, “o arauto que proclama o Grande Rei”. Eles o mergulharam numa cova cheia de neve; nova
alegria para o santo; ele sai e continua seu caminho. Os pássaros cantam com ele e ele prega para os mesmos que o escutam:
“Pássaros, meus irmãos”, ele dizia, “não amais vós vosso Criador que vos dá asas e plumas e tudo que vos é necessário?”
Depois, satisfeito da docilidade daqueles, os abençoou e permitiu-lhes voar[943]. Ele também exortava todas as criaturas a
louvarem e a agradecerem a Deus. Ele as amava, simpatizava com elas; salvava, quando podia, a lebre perseguida pelos
caçadores, e vendia seu manto para resgatar um cordeiro da morte. A própria natureza morta, ele a abraçava em sua imensa
caridade. Musgos, vinhas, árvores, pedras, ele fraternizava com todos eles e os conclamava, todos, ao amor divino[944].

Logo, um pobre idiota de Assis ligou-se a ele, depois, um rico mercador deixou tudo para segui-lo. Esses primeiros
Franciscanos, e aqueles que a eles se juntaram, deram-se, inicialmente, austeridades alucinadas, comparáveis àquelas dos
faquires da Índia, suspendendo-se por cordas, amarrando-se com correntes de ferro e grilhões de madeira[945]. Depois, tendo
saciado um pouco esta sede de dor, São Francisco procurou dentro de si, por muito tempo, o que valia mais, se a prece ou a
pregação (Vita S. Franc. à S. Bonaventurâ, p. 774). E ele ainda estaria procurando, se não tivesse sido aconselhado a
consultar Santa Clara e o irmão Silvestre: eles decidiram pela pregação. Desde então, ele não mais hesitou, cingiu seus rins
com uma corda grosseira e partiu para Roma. “Tal era seu transe”, contou o biógrafo, “quando apareceu diante do Papa, que
ele mal podia conter seus pés, e agitava-se como se dançasse” (Ibid.). Os políticos da corte de Roma o repeliram
inicialmente; depois, o Papa refletiu e o autorizou. Ele pedia, como graça única, pregar, mendigar, nada ter no mundo, salvo
uma pobre igreja de Santa Maria dos Anjos, no pequeno campo da Porciúncula, que ele reconstruiu com o que lhe
davam[946]. Isto feito, ele dividiu o mundo com seus companheiros, guardando para si o Egito, onde esperava o martírio; mas
ele não o obteve, pois o sultão obstinou-se em devolvê-lo.

Tais foram os progressos da novel Ordem que, em 1219, São Francisco reuniu cinco mil Franciscanos na Itália e eles
existiam em todo o mundo. Esses apóstolos desenfreados da Graça corriam em todos os lugares, pés nus, encenando todos os
Mistérios em seus sermões, arrastando atrás de si as mulheres e as crianças, rindo no Natal, chorando na Sexta-Feira Santa,
desembrulhando, sem nada esconder, tudo o que o cristianismo tem de elementos dramáticos. O sistema da Graça, no qual o
homem nada mais é do que um joguete de Deus, também o dispensa de qualquer dignidade pessoal; é, para ele, um ato de amor
humilhar-se, anular-se, exibir os lados vergonhosos de sua natureza; com isso, parece exaltar ainda mais Deus. O escândalo e
o cinismo tornam-se um gozo piedoso, uma sensualidade de devoção. O homem imola com prazer seu orgulho e seu pudor ao
objeto amado.

Era um grande júbilo, para São Francisco de Assis, fazer penitência nas ruas por ter interrompido o jejum e comido um
pouco de ave por absoluta necessidade. Ele se fazia arrastar completamente nu, bater-se com golpes de corda e a ele gritava-
se: “Eis aqui o glutão que se fartou de galinha sem que vós soubestes”[947]. No Natal, para pregar, ele preparava um
estábulo, como aquele onde nasceu o Salvador. Nele via-se o boi, o asno, o feno; para que nada faltase, ele mesmo balia,
como uma ovelha, pronunciando Belééém e, quando ele anunciava o doce Jesus, passava a língua sobre os lábios e os lambia
como se tivesse comido mel[948].

Estas tolas representações, essas carreiras furiosas através da Europa, que não podiam ser comparadas senão aos
bacanais ou às pantomimas dos sacerdotes de Cibele, davam lugar, pode-se crer, a muitos excessos. Elas não foram, mesmo,
isentas do caráter sanguinário que marcara as representações orgiásticas da antiguidade. O todo-poderoso gênio dramático,
que empurrava São Francisco à imitação completa de Jesus, não se contentou em louvar apenas Sua vida e Seu nascimento;
era-lhe também necessária a Paixão. Nos seus últimos anos, ele era carregado sobre uma charrete, pelas ruas e cruzamentos,
vertendo sangue pelo flanco e imitando, por seus estigmas, aqueles dos Senhor[949].

Esse misticismo ardente foi vivamente acolhido pelas mulheres e, em troca, elas tiveram boa parte na distribuição dos
dons da graça. Santa Clara de Assis começou as Clarissas[950]. O dogma da Imaculada Conceição tornou-se cada vez mais
popular[951]. Este foi o ponto principal da religião, a tese favorita que sustentaram os teólogos, a crença cara e sacra pela
qual os Franciscanos, cavaleiros da Virgem, romperam as lanças. Uma devoção sensual abraçou a cristandande. O mundo
inteiro apareceu a São Dominique no capuz da Virgem, assim como os Hindus o vêem na boca de Krishna ou como Brahma
repousando dentro da flor de lótus. “A Virgem abriu seu capuz perante seu servo Dominique que se encontrava em lágrimas, e
este capuz era de tamanha capacidade e imensidão, que docemente continha e abraçava toda a pátria celeste”[952].

Já havíamos observado, por ocasião de Heloísa, de Eleonora da Guiana e das Cortes d’Amor que, a partir do século
XII, a mulher tomou sobre a terra uma posição proporcional à nova importância que ela adquirira na hierarquia celeste. No
décimo-terceiro século, ela se vê, ao menos, como mãe e regente, sentada sobre vários dos tronos do Ocidente. Branca de
Castela governa em nome de seu filho criança, como a condessa da Champagne pelo jovem Teobaldo, como aquela de
Flandres por seu marido prisioneiro. Isabela da Marche também exerce a maior influência sobre seu filho Henrique III, rei da
Inglaterra. Joana de Flandres não se contentou com o poder e também desejou as honras e as insígnias viris: ela reclamou, na
sagração de São Luís, o direito do conde de Flandres, qual seja, o de levar a espada nua, a espada da França[953].

Antes de explicar como uma mulher governou a França e quebrou a força feudal em nome de uma criança, é preciso
lembrar-se, entretanto, como toda a então circunstância favorecia o progresso do poder real. A realeza nada mais tinha a fazer
senão deixar-se levar; o fio d’água a carregava. A morte de Filipe Augusto nada havia mudado neste quadro (1218). Seu filho,
o fraco e doentio Luís VIII, chamado – e isso parece até ironia – Luís o Leão, não encenou menos o papel de um conquistador.
Ele fracassou na Inglaterra, é verdade, mas tomou o Poitou dos Ingleses. Em Flandres, ele manteve a condessa Joana,
encarregando-a do serviço de guardar seu marido prisioneiro na torre do Louvre. Esta Joana era filha de Balduíno, o primeiro
imperador Latino de Constantinopla, o qual acreditava-se assassinado pelos Búlgaros. Um dia, eis que ele reaparece em
Flandres; sua filha recusa-se reconhecê-lo, mas o povo o acolhe e ela é obrigada a fugir para perto de Luís VIII que a restitui
acompanhada de um exército. O ancião não conseguia responder a certas perguntas, e vinte antos de um duro cativeiro muito
podiam ter alterado sua memória. Ele passou por impostor e a condessa o fez morrer. Todo o povo a olhou como parricida.

Assim, Flandres encontrava-se submetida à influência francesa; logo ocorreu o mesmo com o Languedoc. Luís VIII para
aí foi chamado pela Igreja contra os Albigenses que surgiam sob o governo de Raimundo VII[954]. Além disso, uma boa parte
dos meridionais desejava terminar, a qualquer custo, pela intervenção da França, esta guerra de tigres que ocorria em seu seio
há muito tempo. Luís provara sua docilidade e sua lealdade no sítio de Marmande, onde tentou, em vão, salvar os sitiados.
Vinte e cinco senhores e dezessete arcebispos e bispos declararam que aconselhavam o rei de se encarregar do interesse dos
Albigenses (Histoire du Languedoc, l. XXIV, p. 350, e Preuves, p. 299-300) . Luís VIII pôs-se, de fato, em marcha, à testa de
toda a França do Norte; apenas os cavaleiros eram, neste exército, ao número de cinquenta mil. O alarme foi grande no Midi.
Uma multidão de senhores e de cidades apressou-se em se apresentar antecipadamente para render homenagem. As repúblicas
da Provença, Avignon, Arles, Marselha e Nice, esperavam, entretanto, que a torrente passasse ao largo. Avignon ofereceu
livre passagem extra-muros mas, ao mesmo tempo, conversava com o conde de Toulouse para destruir todas as forragens que
teriam servido à cavalaria francesa que se aproximava. Esta cidade estava estreitamente unida com Raimundo e permanecera,
por doze anos, excomungada por amor a ele. As potestades de Avignon tomavam o título de bailios ou lugares-tenentes do
conde de Toulouse. Luís VIII insistiu em passar por dentro da própria cidade e, ante a recusa desta, a sitiou. As reclamações
de Frederico II em favor desta cidade não foram ouvidas. Fazia-se necessário que ela pagasse resgate, desse reféns e
demolisse suas muralhas. Tudo que se encontrou na cidade de Franceses e de Flamengos foi degolado pelos sitiados. Uma
grande parte do Languedoc apavorou-se; Nîmes, Albi, Carcassonne, entregaram-se e Luís VIII instituiu senescais nesta última
cidade e no Beaucaire. Parecia que ele ia realizar, nesta campanha, toda a conquista do Midi. Mas o sítio de Avignon provara-
se um atraso fatal; o calor ocasionou uma epidemia devastadora em seu exército. Ele próprio languescia, quando o duque da
Bretanha e os condes de Lusignan, da Marche, de Angoulême e da Champagne entenderam-se para se retirarem. Todos eles se
arrependiam de ter ajudado nos sucessos do rei; o conde de Champagne, amante da rainha (ao menos é esta a tradição), foi
acusado de ter envenenado Luís que, pouco após sua partida, morreu (1226).

A regência e a tutela do jovem Luíx IX pertenceria, segundo as leis feudais, a seu tio Filipe Hurepel (o grosseiro)[955],
conde de Boulogne. O legado papal e o conde de Champagne, de quem se dizia serem igualmente favorecidos pela rainha-mãe,
Branca de Castela, asseguraram a regência a esta.
Era uma grande novidade que uma mulher comandasse tantos homens; significava sair, de uma forma resplandescente, do
sistema militar e bárbaro que, até então, prevalecera para entrar na via pacífica do espírito moderno. A Igreja ajudou a isso.
Além disso, o legado, o arcebispo de Sens e o bispo de Beauvais bem desejaram atestar que o último rei tinha, em seu leito de
morte, nomeado sua viúva regente. Seu testamento, o qual temos agora, não faz nenhuma menção a tal desejo[956]. É
duvidoso, além do mais, que ele tivesse confirmado o reino a uma Espanhola, à sobrinha do rei João, a uma mulher que o
conde de Champagne tomara, contava-se, por objeto de suas galanterias poéticas. Este conde, de início inimigo do rei, assim
como os outros nobres senhores, não foi menos o mais poderoso apoio da monarquia após a morte de Luís VIII. Ele amava,
segundo se diz, a viúva deste e, fora isso, a Champagne amava a França; as grandes cidades industriais de Troyes, de Bar-sur-
Seine, etc., deviam simpatizar com o poder pacífico e regular do rei mais do que com a turbulência militar dos senhores. O
partido do rei era o da paz, da ordem, da segurança das estradas. Quem quer que viajasse, mercador ou peregrino, era, com
certeza, pelo rei. Isto ainda explica o ódio furioso dos grandes senhores contra a Champagne, que cedo abandonara sua liga. A
inveja da feudalidade contra o industrialismo, que muito contou nas guerras de Flandres e do Languedoc, não foi certamente
estranha às tenebrosas devastações que o senhores fizeram na Champagne, durante a menoridade de São Luís[957].

O chefe da liga feudal não era nem Filipe, tio do jovem rei, nem os condes da Marche e de Lusignan, sogro e irmão do
rei da Inglaterra, mas o duque da Bretanha, Pierre Mauclerc, descendente de um dos filhos de Luís o Gordo. A Bretanha,
escorando-se na Normandia e, por consequência, na Inglaterra, tanto quanto na França, flutuava entre as duas coroas. O duque
era, além disso, o homem mais apropriado para colher tal ocasião. Educado nas escolas de Paris, grande dialético,
inicialmente destinado ao sacerdócio, mas de coração jurista, cavaleiro, inimigo dos padres, ele foi cognominado Mauclerc
(NT: mau clérigo).

Este homem notável, certamente na vanguarda de sua época, executou muitas coisas ao mesmo tempo e mais do que
podia: na França, ele humilhou a realeza; na Bretanha, era absoluto, apesar dos padres e dos senhores. Ele une os camponeses,
concede-lhes os direitos de pastagem, de uso de árvores mortas, isenções de pedágio (D. Morice, ‘Preuves de l’Hist. de
Bretagne, I, 1096). Ele ainda teve por si os senhores do interior do país, sobretudo aqueles da Bretanha francesa (Avaugour,
Vitré, Fougères Châteaubriand, Dol, Châteaugiron); mas tratou de despojar aqueles do litoral (Léon, Rohan, le Faou, etc.),
disputando-lhes esse precioso direito de destroço (droit de bris) com que eram presenteados pelos vasos naufragados. Ele
também lutava contra a Igreja, a acusava de simonia[958] em relação aos barões, empregava contra os padres a ciência do
Direito Canônico que aprendera deles mesmos. Nesta luta, ele mostrou-se inflexível e bárbaro; um cura, recusando enterrar um
excomungado, ele ordenou que aquele fosse enterrado junto com o defunto (Daru, ‘Hist. de Bretagne’, t. II. Math. Paris, p.
25).

Esta luta interior não permitiu a Mauclerc, de forma alguma, agir vigorosamente contra a França. Era-lhe necessário, ao
menos, ser bem apoiado pela Inglaterra. Mas os Poitevinos, que governavam e roubavam o jovem Henrique III, não deixavam
a este dinheiro o suficiente para um guerra honrosa. Ele passaria o mar em 1226; uma revolta o reteve. Mauclerc o aguardava
também em 1229, mas o favorito de Henrique III foi corrompido pela regente e nada ficou preparado. Ela, a regente, ainda
teve o expediente de impedir o conde de Champagne de se casar com a filha de Mauclerc[959]. Os barões, sentindo a fraqueza
da liga, não ousavam, malgrado toda sua má-vontade, desobedecer formalmente ao rei criança, cujo nome a regente
empregava. Em 1228, intimados por ela a conduzir seus homens contra a Bretanha, eles vieram, cada um, com apenas dois
cavaleiros.

A impotência da liga do Norte permitiu a Branca de Castela, e ao legado que a aconselhava, agir vigorosamente contra o
Midi. Uma nova cruzada foi conduzida no Languedoc. Esta, ao menos, parecia justificada pela horrível crueldade de
Raimundo VII, que mutilava todos os seus prisioneiros (Math. Paris, p. 294). Toulouse teria resistido por muito tempo, mas os
cruzados puseram-se a destruir metodicamente todas as vinhas que faziam a riqueza da região (Guill. de Pod. Laur., ap. Scr.
fr. XIX, 218) . Os indígenas tinham resistido tanto quanto custava seu sangue. Eles obrigaram seu conde a ceder. Era preciso
que este demolisse as muralhas da cidade, nela recebesse guarnição francesa, aí autorizasse o estabelecimento da inquisição,
confirmasse à França a posse do baixo Languedoc, prometesse Toulouse, após a sua morte, como dote de sua filha Joana, que
um dos irmãos do rei devia desposar[960]. Quanto à alta Provença, ele a dava à Igreja: é a origem do direito dos Papas sobre
o condado de Avignon. O próprio Raimundo veio a Paris, humilhou-se, recebeu a disciplina (açoites) na igreja de Notre-
Dame, e constitui-se, por seis semanas, prisioneiro na torre do Louvre (Guill. de Pod. Laur, ap. Scr. fr. XIX, 224) . Esta torre,
onde seis condes haviam sido encarcerados após Bouvines, da qual o conde de Flandres mal acabara de sair, onde o antigo
conde de Boulogne matou-se de desespero, tornara-se o castelo, a casa de recreio, onde os grandes barões se hospedavam,
cada um de seu turno.

A regente ousou, então, desafiar o conde da Bretanha e o intimou a comparecer perante os Pares de França. Este tribunal
de doze pares, calcado sobre o número místico dos doze apóstolos e sobre as tradições poéticas dos romances carolíngios,
não era, absolutamente, uma instituição fixa e regular. Nada poderia ser mais cômodo para os reis. Desta vez, encontravam-se
como Pares de França o arcebispo de Sens, os bispos de Chartres e de Paris, os condes de Flandres, da Champagne, de
Nevers, de Blois, de Chartres, de Montfort, de Vendôme, os senhores de Coucy e de Montmorency e muitos outros barões e
cavaleiros.

Sua sentença não teria acarretado grande coisa, se Mauclerc tivesse sido melhor apoiado pelos Ingleses e pelos barões.
Estes últimos trataram separadamente com a regente. Todo o ódio dos senhores forçados a ceder à Branca recaiu sobre o
conde de Champagne, que foi obrigado a se refugiar em Paris e não voltou aos seus domínios senão após prometer tomar a
cruz em expiação da morte de Luís VIII; era confessar-se culpado.

Todo o movimento que agitara a França do norte escoou, por assim dizer, na direção do Midi e do Oriente. Os dois
chefes rivais, Theobaldo e Mauclerc, foram distanciados por circunstâncias novas e deixaram o reino em paz. Theobaldo viu-
se rei da Navarra pela morte do pai de sua mulher; ele vendeu Chartres, Blois, Sancerre e Châteaudun à regente. Uma nobreza
numerosa o seguiu. O rei de Aragão, que na mesma época começava sua cruzada contra Maiorca e Valência, levou assim
muitos cavaleiros, sobretudo um bom número de faidits[961] provençais e languedoquenses; eram os proscritos da guerra dos
Albigenses. Pouco após, Pierre Mauclerc, que não era conde da Bretanha senão por direito de sua mulher, abdicou ao
condado, deixando-o a seu filho, e foi nomeado, pelo Papa Gregório IX, general e chefe da nova cruzada do Oriente.

Tal era a favorável situação do reino à época da maioridade de São Luís (1236). A realeza nada perdera desde Filipe
Augusto. Paremo-nos um instante aqui e recapitulemos os progressos da autoridade real e do poder central desde o reino do
avô de São Luís.

Filipe Augusto tinha, a bem da verdade, fundado este reino, ao reunir a Normandia à Picardia. Ele havia, de alguma
forma, refundado Paris, dando-lhe sua catedral, seu mercado coberto, seu pátio, hospitais, aquedutos, um novo cinturão de
muralhas, novas armas heráldicas, sobretudo autorizando e apoiando sua universidade. Ele fundara a jurisdição real
inaugurando a assembléia dos pares por um ato popular e humano, a condenação de João Sem Terra e a punição do assassinato
de Arthur. As grandes potências feudais vergavam-se; Flandres, Champagne, Languedoc estavam submetidos à influência real.
O rei formara-se um grande partido na nobreza; ele criara uma democracia na aristocracia, se posso assim dizer; eu falo dos
caçulas; ele mandou consagrar como princípio que esses não mais dependeriam de seus irmãos primogênitos.

O príncipe, em cujas mãos caiu essa grande herança, Luís IX, possuía vinte e um anos, em 1236. Ele foi declarado maior
mas, na realidade, ainda permaneceu, por muito tempo, dependente de sua mãe, a orgulhosa Espanhola que governava há dez
anos. As qualidades de Luís não eram daquelas que brilham logo de início; a principal foi um sentimento requintado, um amor
inquieto pelo dever e, durante muitos anos, o dever pareceu-lhe ser a vontade de sua mãe. Espanhol pelo lado de Branca[962],
Flamengo por sua avó Isabel, o jovem príncipe mamou, junto com o leite, uma piedade ardente que parece ter sido estranha à
maior parte de seus predecessores e que, desde então, seus sucessores jamais demonstrariam.

Este homem, que trazia ao mundo uma tal necessidade de crer, encontrou-se precisamente no meio da grande crise,
quando todas as crenças estavam abaladas. Aquelas belas imagens de ordem que a Idade Média sonhara, o santo pontificado e
o sacro império, o que haviam se tornado? A guerra do império e do sacerdócio haviam atingido o último grau da escala de
violência e os dois partidos inspiravam um igual horror.

De um lado, encontrava-se o Imperador, no meio de seu cortejo de juristas bolonheses e doutores árabes, belo espírito
sanguinário que fazia versos como um saltimbanco do Midi e que enterrava seus inimigos sob chapas de chumbo[963]. Ele
possuía guardas sarracenos, uma universidade sarracena, concubinas árabes. O sultão do Egito era seu melhor amigo[964].
Contava-se que ele escrevera este horrível livro do qual tanto se falava: De Tribus impostoribus, Moisés, Maomé e Jesus.
Muitas pessoas suspeitavam que Frederico podia muito bem ser o Anticristo[965].

O Papa não inspirava confiança maior que o Imperador. A fé faltava ao último, mas a caridade ao primeiro. Qualquer
desejo, qualquer necessidade que ainda se tivesse de reverenciar o sucessor dos apóstolos, era difícil reconhecê-lo sob esta
couraça de aço que ele vestira desde a cruzada dos Albigenses. Parecia que a sede de assassinato tinha se tornado o próprio
temperamento dos padres. Esses homens de paz não pediam senão morte e ruína, palavras apavorantes saíam de suas bocas.
Eles se dirigiam a todos os povos, a todos os príncipes; tomavam, vez por vez, os tons da ameaça e do lamento; pediam,
troavam, rogavam, choravam. O que desejavam com tanto ardor? a libertação de Jerusalém? Nulamente. O melhoramento dos
Cristãos, a conversão dos Gentios? Nada disso! Ora, o quê, então? Sangue. Uma sede horrível de sangue parecia ter-lhes
abrasado desde que, pela primeira vez, haviam degustado aquele dos Albigenses.

O destino desse jovem e inocente Luís IX foi o de herdar o derramamento do sangue dos Albigenses e de tantos outros
inimigos da Igreja. Fora por ele que João Sem Terra, condenado sem ser ouvido, perdera a Normandia, e seu filho Henrique o
Poitou; fora por ele que Montfort degolara vinte mil homens, em Béziers, e Foulquet dez mil, em Toulouse. Aqueles que
pereceram eram, é verdade, heréticos, descrentes, inimigos de Deus; entretanto, nisto tudo havia muitos mortos; e, nesta
espoliação, um nauseabundo odor de sangue. Eis, sem dúvida, o que fez a inquietude e a indecisão de São Luís. Ele tinha
grande necessidade de crer e de se ligar à Igreja para que pudesse justificar, para si mesmo, seu pai e seu avô, os quais tinham
aceito essas doações. Posição crítica para uma alma timorata: ele não podia restituir sem desonrar seu pai e indignar a França.
Por outro lado, ele aparentemente não podia mantê-las sem consagrar tudo o que se fizera, sem aceitar todos os excessos,
todas as violências da Igreja.

O único objeto para o qual uma tal alma ainda podia se virar era a cruzada, a libertação de Jerusalém. Bem ou mal
adquirido este grande poder que se encontrava em suas mãos, era lá, certamente, o local onde devia ser exercitado e expiado.
Por este ponto, ele possuía, ao menos, a chance de uma morte santa.

Jamais a cruzada fora mais necessária e mais legítima. Até aí ofensiva, iria se tornar defensiva. Aguardava-se, no
Oriente, um grande e terrível acontecimento; era como o ruído das grandes águas antes do dilúvio, como o estalido dos diques,
como o primeiro murmúrio das cataratas do céu. Os Mongóis moviam-se do Norte e, pouco a pouco, desciam por toda a Ásia.
Esses pastores, arrastando as nações, expulsando, à frente de si, a humanidade com suas tropas de cavalos, pareciam
decididos a apagar da terra toda e qualquer cidade ou vilarejo, toda e qualquer construção, todo e qualquer traço de cultura, a
fazer do globo um deserto, uma pradaria livre na qual, doravante, seria possível errar despreocupadamente sem obstáculos.
Eles deliberaram se não deviam tratar desta maneira toda a China setentrional, se não devolveriam a este império, pelo
incêndio de cem cidades e a degola de milhões de homens, a primitiva beleza das solidões do mundo nascente. Onde não
podiam destruir as cidades sem grande trabalho, eles se indenizavam pelo massacre dos habitantes: testemunham essas
pirâmides de cabeças decapitadas que mandaram erguer na planície de Bagdá[966].

Todas as seitas e todas as religiões, que dividiam a Ásia entre si, tinham igualmente a temer esses bárbaros e nula
chance de pará-los. Os sunitas e os xiitas, o califa de Bagdá e o califa do Cairo, os Assassinos, os cristãos da Terra Santa,
aguardavam o Julgamento Final. Toda disputa terminaria, todo ódio reconciliado: os Mongóis se encarregariam disto. Daí,
sem dúvida, passariam à Europa a fim de reconciliarem o Papa e o Imperador, o rei da Inglaterra e o rei da França. Então,
eles nada mais teriam a fazer senão darem de comer aveia aos seus cavalos, sobre o altar de São Pedro em Roma [967], e o
reino do Anticristo começaria.

Eles avançavam, lentos e irresistíveis, como a vingança de Deus; já eles estavam presentes, em todos os lugares, pelo
terror que inspiravam. No ano 1238, as pessoas da Frísia e da Dinamarca não ousaram deixar suas mulheres amedontradas
para irem pescar o harenque, segudo seu costume, nas costas da Inglaterra[968]. Na Síria, aguardava-se, de um momento a
outro, ver aparecerem as grandes cabeças amarelas e os pequenos cavalos desgrenhados. Todo o Oriente estava reconciliado.
Os príncipes maometanos, entre outros o Velho da Montanha, haviam despachado uma embaixada suplicante ao rei da França
e um dos embaixadores passou à Inglaterra.

De outra parte, o imperador latino de Constantinopla vinha de expor a São Luís seu perigo, sua indigência e sua miséria.
Este pobre imperador vira-se obrigado a fazer aliança com os Kiptchaks (ou Coumans) e jurar-lhes amizade, a mão sobre um
cão morto. Ele chegava a não ter outra coisa para se aquecer que as vigas de madeira de seu palácio. Quando, mais tarde, a
imperatriz veio novamente implorar a piedade de São Luís, Joinville (NT: Jean de Joinville, Senescal da Champagne, Sire de
Joinville e biógrafo de São Luís) foi obrigado, para apresentá-la ao rei, a dar-lhe um vestido. O Imperador de Constantinopla
oferecia a São Luís ceder-lhe, por um bom preço, um inestimável tesouro, a verdadeira coroa de espinhos que cingira a fronte
do Salvador. A única coisa que embaraçava o rei da França é que o comércio de relíquias bem tinha o ar de ser um caso de
simonia; mas não era proibido, entretanto, dar um presente àquele que fazia uma tal doação à França. O presente foi, então, de
cento e sessenta mil libras e, além disso, São Luís deu o produto de um confisco feito sobre os Judeus, do qual ele se fazia
escrúpulos de beneficiar a si mesmo. Ele foi, pés nus, receber a santa relíquia e, mais tarde, para ela construiu a Santa Capela
(Sainte-Chapelle) de Paris.

A cruzada de 1235 não fora feita para retomar as questões inacabadas do Oriente. O rei champanhês de Navarra, o
duque da Borgonha, o conde de Montfort, bateram-se e foram derrotados. O irmão do rei da Inglaterra, Ricardo da Cornualha,
não teve outra glória senão a de resgatar os prisioneiros. Mauclerc apenas ganhou alguma coisa. Entretanto, o jovem rei da
França ainda não podia deixar seu reino e reparar essas desgraças. Uma vasta liga se formava contra ele; o conde de
Toulouse, cuja filha desposara o irmão do rei, Alphonse de Poitiers, desejava ainda tentar um esforço para guardar seus
estados, já que não pudera guardar seus filhos. Ele se aliara aos reis da Inglaterra, de Navarra, de Castela e de Aragão. Ele
desejava desposar, ou Margarida da Marche, irmã uterina de Henrique III, ou Béatrix da Provença. Com este último
casamento, ele reuniria a Provença ao Languedoc, deserdando sua filha em benefício das crianças que tivesse com Béatrix, e
reunindo todo o Midi. A precipitação fez abortar este grande projeto. A partir de 1242, os inquisidores foram massacrados em
Avignon; o herdeiro legítimo de Nîmes, Béziers e Carcassonne, o jovem Trencavel, arriscou-se a reaparecer. Os confederados
agiram um após o outro. Raimundo estava diminuído quando os Ingleses tomaram as armas. A campanha destes, na França, foi
lamentável: Henrique III contara com seu sogro, o conde da Marche, e os outros senhores que o chamaram. Quando se viram e
se contaram, então as reprovações e altercações se iniciaram. Os Franceses não avançavam menos; eles teriam contornado e
aprisionado o exército inglês na ponte de Taillebourg, sobre o rio Charente, se Henrique não tivesse obtido uma trégua pela
intercessão de seu irmão Ricardo da Cornualha, em quem Luís reverenciava o herói da última cruzada, aquele que resgatara e
devolvera tantos cristãos à Europa[969]. Henrique aproveitou esse prazo para desacampar e se retirar para Saintes. Luís o
cercou de perto; um combate encarniçado ocorreu nas vinhas (inter vineas in arctis viarum) e o rei da Inglaterra findou por
fugir para dentro da cidade e, daí, para Bordeaux (1241).

Uma epidemia, da qual o rei e o exército igualmente sofreram, o impediu de perseguir seu sucesso. Mas o combate de
Taillebourg não foi menos o golpe mortal para seus inimigos e, em geral, para a feudalidade. O conde de Toulouse não obteve
graça senão como primo da mãe de São Luís. Seu vassalo, o conde de Foix, declarou que desejava depender imediatamente do
rei (Hist. du Languedoc, l. XXXV, p. 435) . O conde da Marche e sua mulher, a orgulhosa Isabela de Lusignan, viúva de João
Sem Terra e mãe de Henrique III, foram obrigados a ceder. Este velho conde, quando prestava homenagem ao irmão do rei, a
Alphonse, o novo conde de Poitiers, um cavaleiro surgiu dizendo-se mortalmente ofendido por ele e pedindo para duelar
perante seu suzerano[970]. Alphonse insistia duramente para que o ancião desse encontro ao jovem. O desenlace não era
duvidoso e já Isabela, temendo morrer após seu marido, se refugiara no convento de Fontevraud. São Luís interpôs-se e não
permitiu esse combate desigual. Tal foi, entretanto, a humilhação do conde da Marche, que seu inimigo, que jurara deixar
crescer seus cabelos até que tivesse vingado seu ultraje, mandou-os cortar solenemente, na frente de todos os barões, e
declarou que já tivera vingança o suficiente (Joinville, édit. 1761, p. 24).

Nesta ocasião, como em todas, Luís mostrava a moderação de um santo e de um político. Um barão, que não queria
render-se senão após ter obtido autorização de seu senhor, o rei da Inglaterra, Luís aprovou sua conduta e devolveu-lhe o
castelo sem outra garantia que não seu juramento[971]. Mas, a fim de salvar da tentação do perjúrio aqueles que tinham feudos
de si e de Henrique, ele declarou-lhes, nos termos do Evangelho, que não se podia servir a dois senhores, e permitiu-lhes
optar livremente[972]. Ele desejava, para evitar qualquer causa de guerra, obter de Henrique a cessão expressa da
Normandia; a este preço, ele entregaria o Poitou.

Tal era a prudência e a moderação do rei. Ele não impôs a Raimundo outras condições que não fossem aquelas do
tratado de Paris, o qual fora por este assinado quatorze anos antes (Hist. du Languedoc, l. XXV, p. 437).

Entretanto, a catástrofe tanto temida ocorrera no Oriente. Uma ala do prodigioso exército dos Mongóis avançara até
Bagdá (1258); uma outra entrava na Rússia, na Polônia, na Hungria (Mathieu Paris, p. 438). Os Corasmianos, precursores dos
Mongóis, tinham invadido a Terra Santa e haviam imposto à Gaza, apesar da união dos cristãos e dos muçulmanos, uma vitória
sangrenta. Quinhentos Templários tinham ali permanecido: era tudo o que Ordem então possuía de cavaleiros na Terra Santa;
depois, os Mongóis tomaram Jerusalém abandonada por seus habitantes; esses bárbaros, por um jogo de perfídia, apuseram
cruzes sobre os muros: os moradores, muito crédulos, retornaram e foram massacrados[973].

São Luís estava doente, acamado e quase moribundo, quando essas tristes notícias chegaram à Europa. Ele estava tão
mal que não mais se esperava que vivesse, e já uma das damas que o velavam desejava colocar-lhe um tecido sobre o rosto,
acreditando em seu passamento (Joinville, p. 24). Assim que melhorou um pouco, para grande surpresa de todos que o
cercavam, ele mandou colocar a cruz vermelha sobre seu leito e costurá-la em suas roupas. Sua mãe preferia, antes, vê-lo
morto. Ele prometia, ele, fraco e moribundo, partir para tão longe, no ultramar, sob um clima assassino, dar seu sangue e o dos
seus nesta inútil guerra que se perseguia há mais de um século. Sua mãe, os próprios padres, o pressionavam a renunciar a seu
intento. Ele foi inflexível; esta idéia que se acreditava tão fatal para Luís foi, segundo toda a aparência, o que o salvou: ele
esperou, ele desejou viver e, de fato, viveu. Tão logo convalescente, mandou chamar sua mãe e o bispo de Paris e disse-lhes:
“Visto que não acreditais que eu estava em meu perfeito juízo quando pronunciei meus votos, eis minha cruz que arranco de
meus ombros; eu vô-la entrego... Mas, agora”, ele continuou, “não podeis negar que estou em pleno gozo de todas a minhas
faculdades: devolvei-me, então, minha cruz, pois Aquele que tudo sabe, também sabe que nenhum alimento entrará na minha
boca até que eu esteja novamente marcado com Seu sinal” – “É o dedo de Deus!”, exclamaram todos os espectadores, “não
nos oponhamos à Sua vontade”. E ninguém, desde este dia, contradisse seu projeto.

O único obstáculo que restava a vencer, coisa triste e contra a natureza, era o Papa Inocente IV que enchia a Europa com
seu ódio contra Frederico II. Expulso da Itália, ele reuniu um grande concílio em Lyon[974]. Esta cidade imperial pertencia,
entretanto, à França, sobre o território da qual tinha seus arrabaldes além-Reno. São Luís, que se portara inutilmente como
mediador, consentiu, com repugnância, receber o Papa: foi preciso que todos os monges de Cîteaux viessem arrostar-se aos
pés do rei, que fez o Papa esperar, durante quinze dias, para saber sua determinação (M. Paris, p. 439). Inocente, na sua
violência, contrariava de todo o seu poder a cruzada do Oriente; ele teria desejado voltar as armas do rei da França contra o
Imperador ou contra o rei da Inglaterra que, por um momento, na opinião da Santa Sé, saíra de sua servilidade. Já em 1239,
ele oferecera a coroa imperial a São Luís, quer dizer, para seu irmão, Roberto do Artois; e, em 1245, ele ofereceu-lhe a coroa
da Inglaterra. Estranho espetáculo: um Papa, que de nada se esquecia para entravar a libertação de Jerusalém, oferecendo tudo
a um cruzado para que este violasse seu voto[975].

Luís não pensava em adquirir. Ele, antes, ocupava-se em legitimar as aquisições de seus pais. Ele tentou inutilmente se
reconciliar com a Inglaterra por uma restituição parcial. Ele interrogou, mesmo, os bispos da Normandia para se assegurar
acerca do direito que podia ter, ou não, à posse desta província (Math. Paris, p. 642). Ele indenizou, por uma soma em
dinheiro, o visconde Trencavel, herdeiro de Nîmes e Béziers, e o levou à cruzada com todos os faidits, os proscritos da
cruzada dos Albigenses, todos aqueles que o estabelecimento dos companheiros de Montfort privara de seu patrimônio (Hist.
du Languedoc, l. XXV, p. 457). Desta forma, ele fazia da guerra santa uma expiação, uma reconciliação universal.

Não era uma simples guerra, uma expedição, que São Luís projetava, mas a fundação de uma grande colônia no Egito.
Pensava-se então, não sem bons motivos, que, para conquistar e possuir a Terra Santa, era preciso ter o Egito como ponto de
apoio. Então, ele levou consigo uma grande quantidade de instrumentos agrícolas e utensílios diversos de todas as
espécies[976]. Para facilitar as comunicações regulares, ele quis ter um porto para si no Mediterrâneo; aqueles da Provença
pertenciam a seu irmão Carlos d’Anjou: ele mandou escavar o porto de Aigues-Mortes.

Ele primeiro singrou para o Chipre, onde o aguardavam imensos aprovisionamentos[977]. Aí, ele parou por um bom
tempo, fosse para aguardar seu irmão Alphonse, que trazia-lhe sua reserva, fosse, talvez, para se orientar neste novo mundo.
Ele aí foi entretido pelos embaixadores dos príncipes da Ásia que vinham observar o grande rei dos Francos. Primeiramente,
vieram os cristãos de Constantinopla, da Armênia, da Síria; depois, vieram os muçulmanos, dentre outros os enviados desse
Velho da Montanha, a respeito de quem havia tantas narrativas [978]. Os próprios Mongóis apareceram[979]. São Luís, que os
acreditava favoráveis ao cristianismo em virtude do ódio que devotavam aos outros maometanos, a eles ligou-se contra os
dois papas do islamismo, os califas de Bagdá e do Cairo.

Entretanto, os Asiáticos, tendo se recuperado de seus primeiros temores, familiarizaram-se com a idéia da grande
invasão dos Francos. Estes últimos, na abundância, enervavam-se sob a sedução de um clima corruptor. As prostitutas vinham
posicionar suas tendas até mesmo em volta da tenda do rei e de sua mulher, a casta rainha Margarida, que o seguira[980].

Ele decidiu-se, enfim, a partir para o Egito. Poderia escolher entre Damietta e Alexandria. Uma ventania, tendo-o
empurrado na direção da primeira, ele teve pressa em atacar[981]; ele mesmo lançou-se à água, espada à mão. As tropas leves
dos Sarracenos, que estavam em linha de batalha na praia, tentaram uma ou duas cargas e, vendo os Francos inabaláveis,
fugiram a plenos bridões. A forte cidade de Damieta, que podia resistir, rendeu-se no primeiro pânico. Senhor de uma tal
praça, era necessário ser célere para tomar Alexandria ou o Cairo. Mas a mesma fé que inspirava a cruzada, fazia negligenciar
os meios humanos que lhe teriam assegurado o sucesso. O rei, além disso, rei feudal, não era, certamente, senhor o suficiente
para arrancar sua gente da pilhagem de uma cidade rica; foi como no Chipre: eles não se deixaram trazer senão quando
estavam cansados de seus próprios excessos. Havia, outrossim, uma desculpa: Alphonse e a sua reserva eram esperados. O
conde da Bretanha, Mauclerc, já experimentado na guerra do Oriente, desejava que, inicialmente, se assegurasse Alexandria; o
rei insitiu no Cairo. Fez-se necessário, então, ingressar nesta região cortada de canais e seguir a rota que tivera sido tão fatal a
João de Brienne. A marcha foi de uma singular lentidão; os Cristãos, ao invés de lançarem pontes, construíam um dique para
cada canal. Eles gastaram, assim, um mês para franquear as dez léguas que vão de Damieta a Mançura (Almançora)[982]. Para
atingirem esta última cidade, eles construíram um dique que devia segurar o Nilo e dar-lhes passagem. Entretanto, eles sofriam
horrivelmente com o fogo grego que os Sarracenos lançavam e que os queimava impiedosamente dentro de suas
armaduras[983]. Eles assim permaneceram por cinquenta dias, ao fim dos quais tomaram conhecimento que poderiam ter se
poupado tanto mal e trabalho. Um beduíno indicou-lhes um vau.
A vanguarda, conduzida por Roberto d’Artois, passou com alguma dificuldade. Os Templários, que se encontravam com
ele, o pressionavam a aguardar que seu irmão os alcançasse. O fervilhante jovem tratou-os como covardes e lançou-se, cabeça
baixa, na cidade cujas portas estavam abertas. Ele deixava conduzir seu cavalo por um bravo cavaleiro que era surdo e que
gritava à queima-roupa: Eia! Eia! Ao inimigo![984] Os Templários não ousaram ficar para trás: todos entraram, todos
pereceram. Os mamelucos, saindo de seu imóvel espanto inicial, barraram as ruas com troncos de madeiras e, das janelas,
esmagaram os assaltantes.

O rei, que ainda nada sabia, passou e encontrou os Sarracenos; ele combateu valentemente. Disse Joinville: “Là où
j’étois à pied avec mes chevaliers, aussi blessé vint le Roy avec toute sa bataille, avec grand bruit e grande noise de trompes,
de nacaires, et il s’arrêta sur chemin levé; mais oncques si bel homme armé ne vis, car il paraissoit dessus toute sa gent dès les
épaules en haut, un heaume d’or à son chefe, une épée d’Allemagne en sa main {NT do francês arcaico: Lá onde eu estava a
pé com meus cavaleiros, também ferido veio o Rei com toda a sua batalha, com grande som e grande barulho de trompas,
de timbales (tambores), e ele parou em uma passagem elevada; mas, até então, homem tão belo nunca fora visto, pois ele
estava acima de toda a sua gente, desde os ombros para cima, um elmo dourado em sua cabeça, uma espada da Alemanha
em sua mão}. Ao entardercer, foi-lhe anunciada a morte do conde do Artois e o rei respondeu (Joinville, p. 64): que Diex en
feust aouré de ce que il li donnoit; et lors li choient les larmes des yex moult grosses (NT do francês arcaico: que Deus fora
venerado com o que Lhe fora dado; e, então, escorreram-lhe as lágrimas, muito grossas, dos olhos) . Alguém veio pedir-lhe
notícias de seu irmão: “Tudo o que sei”, respondeu, “é que está no Paraíso” (Jonville, p. 65).

Os mamelucos, vindo à carga de todos os lados, os Franceses defenderam seus entricheiramentos até o fim do dia. O
conde de Anjou, que era o primeiro na rota do Cairo, estava a pé entre seus cavaleiros; ele foi atacado, ao mesmo tempo, por
duas tropas dos Sarracenos, uma a pé, a outra a cavalo; ele estava acabado pelo fogo grego e já o consideravam perdido. O rei
o salvou lançando-se, ele próprio, através dos Muçulmanos. A crina de seu cavalo foi completamente coberta pelo fogo grego.
O conde de Poitiers foi, por um momento, aprisionado pelos Sarracenos; mas ele teve a felicidade de ser libertado pelos
açougueiros, as vivandeiras e as mulheres do exército. O senhor de Briançon não conseguiu conservar seu terreno senão com a
ajuda das máquinas do duque da Borgonha, as quais atiravam através do rio. Gui de Mauvoisin, coberto pelo fogo grego, por
pouco não escapou das chamas. Os batalhões do conde de Flandres, os barões do ultramar que Gui d’Ibelin comandava, e de
Gautier de Châtillon, conservaram, quase sempre, a vantagem sobre os inimigos. Estes últimos, por fim, soaram a retirada e
Luís rendeu graças a Deus, na presença de todo o exército, da assistência que recebera; era, de fato, um milagre ter conseguido
defender, com pessoas a pé e quase todas feridas, um campo atacado por uma irredutível cavalaria (Sismondi, VII, 428).

Ele deveria ter percebido que o sucesso era impossível e apressar-se em voltar para Damieta, mas ele não conseguia se
decidir. Sem dúvida, o grande número de feridos que se encontrava no campo tornava a coisa difícil; mas os doentes
aumentavam cada dia. Este exército, acampando sobre o lodo do Egito, alimentando-se principalmente dos escaravelhos do
Nilo que comiam tantos cadáveres, havia contraído estranhas e repugnantes doenças. Sua carne inchava, apodrecia em volta
das gengivas e, para que conseguissem engolir, as mesmas deviam ser cortadas; por todo o campo, não havia senão lamentos e
gritos de dor, como os das mulheres em trabalho de parto; a cada dia, aumentava o número de mortos. Um dia, durante a
epidemia, Joinville, doente e ouvindo a missa de seu leito, foi obrigado a se erguer para segurar seu capelão, prestes a
desmaiar. “Assim apoiado, ele finalizou seu sacramento, cantou a missa inteira; e, doravante, nunca mais cantou”.

Esses mortos causavam horror, todos temiam tocá-los para dar-lhes sepultura; em vão, o Rei, tomado de respeito por
esses mártires, dava o exemplo e ajudava a enterrá-los com suas próprias mãos. Tantos corpos abandonados aumentavam o
mal a cada dia; fazia-se necessário considerar a retirada para salvar, ao menos, o que restava. Triste e incerta retirada de um
exército diminuído, enfraquecido, desencorajado. O rei, que terminara doente como os outros, poderia ter se colocado em
segurança, mas ele não desejava abandonar seu povo[985]. Completamente moribundo que estivesse, ele conseguiu realizar
sua retirada por terra, enquanto os doentes eram embarcados no Nilo. Sua fraqueza era tal que, não muito depois, foram
obrigados a fazê-lo entrar numa casinha e a colocá-lo sobre os joelhos de uma burguesa de Paris, que ali se encontrava.

Entretanto, os cristãos logo se viram detidos pelos Sarracenos que os perseguiam por terra e os aguardavam no rio. Um
imenso massacre teve início; eles declararam, em vão, que desejavam render-se; os Sarracenos não temiam outra coisa senão
um grande número de prisioneiros e os faziam, então, entrar num cercado e perguntavam-lhes se desejavam renegar o Cristo.
Muitos obedeceram, dentre outros os marujos de Joinville.

Todavia, o rei e os prisioneiros de estirpe foram reservados. O sultão não desejava libertá-los, a menos que rendessem
Jerusalém; eles objectaram que esta cidade pertencia ao imperador da Alemanha e ofereceram Damieta com quatrocentos mil
bezantes de ouro. O sultão consentira quando, então, os mamelucos, a quem aquele devia sua vitória, se revoltaram e o
degolaram aos pés das galeras onde os Franceses estavam detidos. O perigo era grande para eles; os assassinos penetraram,
em efeito, até próximo do rei. Aquele mesmo que arrancara o coração do sultão veio ao rei, a mão ensanguentada, e perguntou-
lhe: “O que me darás tu, que eu te livrei de teu inimigo que te faria matar se houvesse sobrevivido? E o rei não respondeu
nada. Vieram bem uns trinta, espadas nuas e machados dinamarqueses às mãos, em nossa galera”, continuou Joinville, “eu
perguntava a monsenhor Bauduíno d’Ibelin, que conhecia o sarracenês, o que diziam aquelas pessoas e ele me respondeu que
desejavam cortar-nos as cabeças. Muitos se confessavam a um irmão da Trindade que pertencia ao conde Guilherme de
Flandres; mas, quanto a mim, não me lembrava de qualquer pecado que tivesse cometido. Assim, eu pensava que, quanto mais
me defendesse ou mais fizesse algo que poderia provocá-los, seria-me de pior valia. Então, eu me persignei, me ajoelhei aos
pés de um deles que portava um machado dinamarquês de lenhador e disse: ‘Assim morreu Santa Agnes’. Messire Gui
d’Ibelin, condestável de Chipre, ajoelhou-se ao meu lado e eu lhe disse: ‘Eu vos absolvo com o poder que Deus me deu’. Mas
quando me ergui dali, nada colhi que me tivesse dito ou confessado”[986].

Havia três dias que Margarida soubera do cativeiro de seu marido, quando deu à luz um filho chamado João, a quem
atribuiu o sobrenome Tristan (João Tristão de França). Para sua segurança, ela mandava dormir, ao pé de seu leito, um velho
cavaleiro de oitenta anos de idade. Pouco antes de dar à luz, ela se ajoelhou à frente do mesmo e solicitou-lhe uma dádiva,
tendo o cavaleiro, por seu juramento, outorgado-a. Ela, então, pediu-lhe: “Eu vos peço, pela fé com a qual me contemplastes,
caso os Sarracenos tomem esta cidade, que vós me corteis a cabeça antes que me peguem”. Ao que o cavaleiro respondeu:
“Sede segura que o farei com prazer, pois eu já bem considerara e resolvera que vos mataria antes que vos pegassem” (Id. p.
84).

Nada faltava à desgraça e à humilhação de São Luís. Os árabes cantaram sua derrota[987] e mais de uma nação cristã
acendeu fogueiras de júbilo[988]. Ele permaneceu ainda um ano na terra santa para ajudar na defesa, para o caso dos
mamelucos levarem sua vitória para fora dos limites do Egito. Ele reergueu as muralhas das cidades, fortificou Cesaréa, Jaffa,
Sidon, São João d’Acre, e não se separou dessa triste região senão quando os próprios barões da terra santa asseguraram que
sua permanência não mais podia lhes ser útil. Ele, além disso, acabara de receber uma notícia que impunha-lhe o dever de
retornar, o quanto antes, à França. Sua mãe morrera[989]; infelicidade imensa para um tal filho que, durante muito tempo, não
pensara senão através dela, a quem abandonara, apesar da vontade da mesma, por esta desastrosa expedição nesta terra infiel,
na qual deixava um dos seus irmãos, vários servidores leais, os ossos de tantos mártires. A própria visão da França não pôde
consolá-lo. “Se eu tivesse de suportar sozinho a vergonha e a desgraça”, ele dizia a um bispo, “se meus pecados não tivessem
se virado em prejuízo da Igreja universal, eu me resignaria. Mas, ai de mim! toda a cristandade caiu, por minha causa, no
opróbio e na confusão”[990].

O estado no qual ele reencontrava a Europa não era o melhor para consolá-lo. O revés que deplorava era ainda o menor
dos males da Igreja; era, de fato, de uma outra natureza esta inquietação extraordinária que se notava nos espíritos. O
misticismo, disseminado no povo pelo espírito das cruzadas, trouxera seu fruto mais pavoroso: o ódio à lei[991], o selvagem
entusiasmo da liberdade política e religiosa. Este caráter demagógico do misticismo, que se produziria visivelmente nas
jaquerias dos séculos seguintes, particularmente na revolta dos camponeses da Suábia, em 1525, e dos anabatistas, em 1538,
ele apareceu já na insurreição dos Pastores[992], que desabrochou durante a ausência de São Luís. Eram os mais miseráveis
habitantes dos campos, pastores sobretudo, que, ouvindo dizer que o rei era prisioneiro, armaram-se, reuniram-se em tropas,
formaram um grande exército, declararam que desejavam ir libertá-lo[993]. Talvez fosse um simples pretexto, talvez a opinião
que o pobre povo já havia formado de Luís desse uma imensa e vaga esperança de salvação e de libertação. O que é certo, é
que esses pastores mostravam-se, em todos os lugares, como inimigos dos padres, a quem massacravam. Eles mesmos
conferiam-se os sacramentos. Reconheciam por chefe um homem desconhecido a quem chamavam o grande senhor da
Hungria[994]. Eles impunemente atravessaram Paris, Orléans, uma grande parte da França. Conseguiu-se, entretanto, dissipar
e destruir esses bandos[995].

São Luís, de volta, pareceu, por muito tempo, repelir qualquer pensamento, qualquer ambição exterior; ele se confinou,
com um escrúpulo inquieto, no seu dever de cristão, e fazendo compreender todas as virtudes da realeza nas práticas da
devoção, além de imputar-se como pecado, a si próprio, toda e qualquer desordem pública. Os sacrifícios nada lhe custaram
para satisfazer sua consciência timorata e inquieta. Apesar de seus irmãos, de seus filhos, de seus barões e de seus súditos, ele
restituiu ao rei da Inglaterra o Périgord, o Limousin, o Agenês e aquilo que possuía no Quercy e em Saintonge, à condição que
Henrique renunciasse a seus direitos sobre a Normandia, a Turânia, o Anjou, o Maine e o Poitou (1258). As províncias
cedidas não o perdoaram jamais e, quando foi canonizado, recusaram-se a celebrar sua festa.

Esta preocupação excessiva das coisas da consciência teria negado à França toda ação exterior. Mas a França não
estava dentro da mão do rei: o rei se encerrava em si, retirava-se em si; a França tranbordava para fora.
De um lado, a Inglaterra, governada pelos Poitevinos, pelos Franceses do Midi, deles se livrou pelo auxílio de um
Francês do Norte, Simão de Montfort, conde de Leicester, segundo filho do famoso Montfort chefe da cruzada dos Albigenses.
Do outro lado, os Provençais sob Carlos d’Anjou, irmão de São Luís, conquistaram o reino das Duas Sicílias e consumaram,
na Itália, a ruína da Casa da Suábia.

O rei da Inglaterra, Henrique III, sofrera as penas das faltas de João Sem Terra. Seu pai legara-lhe a humilhação e a
ruína. Ele não poderia se reerguer senão colocando-se sem reservas nas mãos da Igreja; do contrário, os Franceses teriam
tomado a Inglaterra, como já o haviam feito com a Normandia. O Papa usou e abusou de sua vantagem; ele deu a Italianos
todos os benefícios da Inglaterra, aqueles mesmos que os barões normandos haviam criado para os eclesiásticos de suas
famílias. Os barões não sofriam pacientemente com esta tirania da Igreja e culpavam o rei, a quem acusavam de fraqueza.
Espremido entre esses dois partidos, e recebendo todos os golpes que desferiam, em quem o rei poderia se fiar? Em ninguém
mais que em nossos Franceses do Midi, nos Poitevinos sobretudo, compatriotas de sua mãe.

Esses meridionais, educados nas máximas do direito romano, eram favoráveis ao poder monárquico e, naturalmente,
inimigos dos barões. Era a época onde São Luís acolhia as tradições do direito imperial e introduzia, de bom ou mau grado, o
espírito de Justiniano na lei feudal. Na Alemanha, Frederico II esforçava-se em fazer prevalecer as mesmas doutrinas. Essas
tentativas tiveram sortes diferentes: na França, contribuíram para a constante elevação da realeza; na Inglaterra e na Alemanha,
a arruinaram.

Para impor à Inglaterra o espírito do Midi, seriam necessários exércitos permanentes, tropas mercenárias e muito
dinheiro. Henrique III não sabia onde encontrá-lo; o pouco que obtinha, os intrigantes que o cercavam punham a mão em cima.
Não se deve esquecer, além disso, uma coisa importante: a desproporção que necessariamente se encontrava entre as
necessidades e os recursos. As necessidades eram já grandes: a ordem administrativa começava a se constituir, tentava-se
manter exércitos permanentes. Os recursos eram pífios ou nulos; a produção industrial, que alimenta o prodigioso coroamento
do fisco nos tempos modernos, mal começara. Era, ainda, a idade do privilégio: os barões, o clero, todo mundo, alegava
possuir tal ou qual direito para nada pagar. Sobretudo depois da Magna Carta, diversos abusos lucrativos, tendo sido
suprimidos, o governo inglês parecia não ser nada além de um método para matar o rei de fome[996].

A Magna Carta, tendo posto a insurreição como Princípio e constituído a anarquia, uma segunda crise era necessária
para assentar uma ordem regular, para introduzir, entre o rei, o Papa e o baronato, um elemento novo: o povo que, pouco a
pouco, os colocou de acordo. A uma revolução, é preciso um homem: este foi Simão de Montfort. Este filho do conquistador
do Languedoc estava destinado a perseguir a guerra hereditária de sua família contra os homens do Midi, a qual se fazia sobre
os ministros poitevinos de Henrique III. Margarida da Provença, mulher de São Luís, detestava esses Montfort (Nangis, ad.
Ann. 1239) que haviam causado tantos males à sua região natal. Simão pensou que nada ganharia permanecendo na corte da
França e passou o estreito, indo para a Inglaterra. Os Montfort, condes de Leicester, pertenciam aos dois países. O rei
Henrique cobriu Montfort de favores, deu-lhe sua irmã em casamento, e o despachou para a Guiana a fim de reprimir os
movimentos desse país. Simão se conduziu com tanta dureza que foi necessário chamá-lo de volta. Então, ele se voltou contra
o rei. Este rei jamais fora tão poderoso em aparência, nem mais tão fraco na realidade. Ele imaginava que poderia comprar,
pedaço a pedaço, os despojos da Casa da Suábia. Seu irmão, Ricardo da Cornualha, vinha de adquirir, dinheiro sonante, o
título de Imperador e o Papa concedera a seu filho aquele de Nápoles. Entretanto, toda a Inglaterra estava coberta de
problemas. Não se ministrara outro remédio para a tirania pontifícia senão o assassinato dos mensageiros e dos agentes do
Papa; mesmo uma associação se formara com este objetivo[997]. Em 1258, um parlamento foi reunido em Oxford; é a
primeira vez que os participantes usam esse título (Parlement – Guizot, ‘Éssais sur l’Histoire de France, p. 458). O rei aí
jurou, novamente, a Magna Carta e a colocou em tutela nas mãos de vinte e quatro barões. Ao cabo de seis anos de guerras, os
dois partidos invocaram a arbitragem de São Luís. O piedoso rei, igualmente inspirado pela Bíblia e pelo Direito Romano,
decidiu que fazia-se necessário obedecer os poderes e anulou os estatutos de Oxford, já cassados pelo Papa. O rei Henrique
deveria entrar na posse de todo o seu poder, observadas as cartas e os louváveis costumes do reino da Inglaterra, anteriores
aos estatutos de Oxford (1264).

Desta forma, os confederados não receberam esta sentença arbitral senão como um sinal de guerra e Simão de Montfort
recorreu a um meio extremo. Ele fez com que as cidades se interessassem na guerra, introduzindo seus representantes no
parlamento. Estranho destino desta família! No século XII, um dos ancestrais de Montfort aconselhara Luís o Gordo, após a
batalha de Brenneville, a armar as milícias comunais. Seu pai, o exterminador dos Albigenses, destruíra os municípios do sul
da França. Já ele convocou as comunas da Inglaterra à participação dos direitos políticos, tentando, todavia, associar a
religião a seus projetos e fazer desta guerra uma cruzada[998].
Conscienciosa e imparcial que fosse a decisão de São Luís, ela era, aparentemente, temerária e o porvir deveria
reapreciar esse julgamento. Era a primeira vez que ele deixava esta reserva que, até então, se impusera. Sem dúvida que, nesta
época, a influência do clero de um lado e, do outro, aquela dos juristas, o preocupavam com a idéia do direito absoluto da
monarquia. Este grande e súbito poder da França, durante as discórdias e a humilhação da Inglaterra e do Império, era uma
tentação. Ela levava Luís a deixar, pouco a pouco, o papel de mediador pacífico entre o Papa e o Imperador com o qual
outrora se contentara. A ilustre e desafortunada Casa da Suábia estava abatida; o Papa levava a leilão suas ruínas. Ele as
oferecia a quem as desejasse, ao rei da Inglaterra, ao rei da França. Luís inicialmente recusou para si próprio, mas permitiu a
seu irmão Carlos d’Anjou aceitar. Significava colocar um reino a mais em sua própria Casa mas, também, o peso de um reino
sobre sua consciência; é verdade, todavia, que a Igreja é quem respondia por tudo. O filho do grande Frederico II, Conrado, e
o bastardo Manfredo eram, contava-se, ímpios, inimigos do Papa, príncipes mais maometanos que cristãos[999]. Entretanto,
tudo isso era o suficiente para privá-los de sua herança? E se Manfredo era culpado, o que fizera o filho de Conrado, o pobre
pequeno Conradino, o último rebento de tantos imperadores? Ele mal tinha três anos!

Esse irmão de São Luís, esse Carlos d’Anjou, de quem seu admirador Villani deixou um retrato tão terrível, este homem
negro que dormia pouco[1000], foi um demônio tentador para São Luís. Ele desposara Béatrix, a última das quatro filhas do
conde da Provença. As três mais velhas eram rainhas e faziam com que Béatrix se sentasse sobre um banquinho escabelo aos
seus pés[1001]. Este fato irritava ainda mais a alma violenta e ávida de seu marido; era-lhe também necessário um trono para
ela, não importando a qual preço. A Provença, assim como a herdeira da Provença, devia desejar uma consolação pelo
casamento odioso que a submetia aos Franceses; se os navios da Marselha subjugada exibiam o pavilhão da França, era
necessário, ao menos, que este pavilhão triunfasse sobre os mares e humilhasse aqueles dos Italianos.

Não posso narrar a ruína desta grande e desgraçada Casa da Suábia sem voltar aos seus destinos, que não são outros
senão a luta do sacerdócio e do império. Que me perdoem esta digressão. Esta família pereceu; é a última vez que dela
devemos falar.

A Casa da Francônia e da Suábia, de Henrique IV a Frederico Barba-Ruiva, e deste a Frederico II até Conradino, em
quem ela se extinguiria, apresentou, no meio de inúmeros atos violentos e tirânicos, um caráter que não permite permanecer
indiferente à sua sorte: este caráter é o heroísmo das afeições privadas. Era o traço comum de todo o partido Gibelino: a
devoção do homem ao homem. Jamais, em suas maiores desgraças, faltaram-lhes amigos prontos a combater e a
voluntariamente morrer por eles. Eles o mereciam por sua magnanimidade. Foi a Godofredo de Bouillon, ao filho dos
inimigos hereditários de sua família, que o Imperador Henrique IV entregou a bandeira do Império; sabe-se como Godofredo
mostrou-se reconhecido por esta confiança admirável. O jovem Conradino de Hohenstaufen teve seu Pílades no jovem
Frederico d’Áustria, crianças heróicas que o vencedor não separou na morte[1002]. Mesmo a pátria, que os Gibelinos da
Itália atrapalharam tantas vezes, era-lhes cara, ainda quando a imolavam. Dante situou no Inferno o chefe dos Gibelinos de
Florença, Farinata degli Uberti. Mas, da forma que dele se fala, não haveria coração nobre que não desejasse um lugar ao lado
de um tal homem, em seu leito de fogo. “Ai de mim”, diz a sombra heróica, “eu não estava só na batalha onde vencemos
Florença mas, no conselho onde os vencedores propunham destruí-la, eu falei só e a salvei”[1003].

Um espírito totalmente diferente parece ter dominado entre os Guelfos. Estes, verdadeiros italianos, amigos da Igreja
tanto quanto ela o fosse da liberdade, sombrios niveladores votados à argumentação severa e prontos a imolar o gênero
humano a uma idéia. Para julgar este partido, é preciso observá-lo, seja na eterna tempestade que foi a vida de Gênova, seja
na depuração sucessiva pela qual Florença desceu, como se o fizesse nos círculos de um outro inferno de Dante, dos Gibelinos
aos Guelfos, dos Guelfos brancos aos Guelfos negros e, depois destes, sob o Terror da Sociedade Guelfa, até que ela
atingisse o fundo deste abismo demagógico, onde um fiador de lã foi, por um instante, gonfaloneiro da república. Lá chegando,
ela pediu, como remédio, o mesmo mal que a horrorizara nos Gibelinos, ou seja, a tirania; tirania violenta e, depois, tirania
suave, quando o sentimento se enfraqueceu.

Este duro espírito guelfo, que sequer poupou Dante, que traçou sua rota e pela aliança da Igreja, e pela aliança da
França, acreditou atingir seu objetivo na proscrição dos nobres. Arrasou-se seus castelos fora das cidades; nas cidades,
tomou-se suas casas fortes; foram postos tão baixo, esses nobres homens, esses heróis, esses Uberti de Florença, esses Doria
de Gênova que, nesta última cidade, enobrecia-se para degradar e, para recompensar um nobre, este era alçado à dignidade de
plebeu. Então, os mercadores ficaram contentes e acreditaram-se fortes. Eles dominaram os campos por seu turno, assim como
fizeram os cidadãos das cidades antigas. Todavia, à nobreza, substituiram-na com o quê? Ao princípio militar que haviam
destruído, o que trouxeram? Soldados de aluguel que os enganaram, deles exigiram resgate e tornaram-se seus senhores até
que, uns e outros, foram massacrados pela invasão dos estrangeiros.
Tal foi, em duas palavrinhas, a história do verdadeiro partido italiano, do partido Guelfo. Quanto ao partido Gibelino ou
Alemão, ele morreu ou mudou de forma desde que deixou de ser alemão e feudal. Ele experimentou uma metamorfose
repugnante, tornou-se tirania pura e renovou, por Eccelino e Galeas Visconti, tudo aquilo que a Antiguidade contara ou
inventara dos Fálaris e dos Agátocles.

A aquisição do reino de Nápoles que, em aparência, alçava tão alto a Casa da Suábia, foi justamente o que a arruinou.
Ela tentou formar a mais estranha mistura a partir de elementos inimigos, unir e misturar os Alemães, os Italianos e os
Sarracenos. Ela conduziu estes últimos à porta da Igreja; e, por suas colônias de Luceria e de Nocera, ela constituiu o Papado
em estado de sítio[1004]. Então, devia se iniciar um duelo de morte. Do outro lado, a Alemanha não se acomodou melhor com
um príncipe completamente Siciliano que desejava nela fazer prevalecer o Direito Romano, quer dizer, o nivelamento do
antigo Império; a só lei de sucessões, tornando a partilha igual entre os irmãos, teria dividido e rebaixado todas as grandes
Casas. A dinastia da Suábia foi odiada na Alemanha como italiana e, na Itália, como alemã ou como árabe; tudo se afastou
dela. Frederico II viu seu sogro, João de Brienne, aproveitar-se do tempo em que ele se encontrava na Terra Santa para
arrebatar-lhe Nápoles. Seu próprio filho, Henrique, a quem designara seu herdeiro, renovou contra si a revolta de Henrique V
contra seu pai, enquanto seu outro filho, o belo Enzo, era encarcerado, para sempre, nas prisões de Bolonha[1005]. Enfim, seu
chanceler, seu amigo mais querido, Pedro das Vinhas ( Petrus de Vinea; Pier della Vigna;Pier delle Vigne ), tentou envenená-
lo (Math. Paris, ap. Sismondi, ‘Rép. Ital., III, 77). Após este último golpe, não lhe restava senão pôr um véu no rosto, como
César nos Idos de Março[1006]. Frederico abjurou qualquer ambição, pediu para renunciar a tudo para se retirar à Terra
Santa (Ibid., 80); ele desejava, ao menos, morrer em paz. O Papa não permitiu.

Então, o velho leão afundou-se na crueldade; no cerco de Parma, ele mandava decapitar, todo dia, quatro dos seus
prisioneiros (Sismondi, ‘Républiques Ital.’, III, 86). Ele protegeu o horrível Eccelino, outorgou-lhe o vicariato do Império e
ele pôde ser visto, por toda a Itália, mendigar seu pão dos homens, das mulheres mutiladas, que relatavam as vinganças do
vigário imperial (vide Rolandinus, ‘de factis in marchiâ Tarvisinâ’; Monachus Patavinus, Sismondi, ‘Rép. Ital.’, III, 109 e
segs., 208).

Frederico morreu labutando[1007] e o Papa soltou gritos de alegria. Seu filho Conrado não se fez presente na Itália
senão para também morrer[1008]. Então, o Império escapou a esta família; o irmão do rei da Inglaterra e o rei de Castela
acreditaram-se, ambos, imperadores. O filho de Conrado, o pequeno Conradino, não estava na idade de disputar nada contra
ninguém; mas o reino de Nápoles ficou para o bastardo Manfredo, para o verdadeiro filho de Frederico II, brilhante,
espirituoso, debochado, ímpio como seu pai, homem à parte que ninguém amava, nem odiava, pela metade. Ele jactava-se de
ser bastardo como tantos heróis e deuses pagãos[1009]. Todo seu apoio encontrava-se nos Sarracenos que guardavam as
praças-fortes e os tesouros de seu pai. Ele não se fiava senão nestes e chamara ainda outros nove mil da Sícilia; e, na última
batalha, era à testa dos mesmos que desferia a carga de sua cavalaria contra o inimigo[1010].

Pretende-se que Carlos d’Anjou deve sua vitória à ordem desleal que deu aos seus homens de bater nos cavalos (Ibid.,
348, V.; também Descr. victor. obt. per Carol., ap. Duchesne, V, 345) . Isso seria agir contra toda a cavalaria. De resto, este
meio era pouco necessário; o esquadrão francês tinha vantangens de sobra contra um exército composto principalmente de
tropas leves. Quando Manfredo viu seus homens em fuga, ele quis morrer e apertou seu elmo, mas ele caiu por duas vezes.
Hoc est signum Dei (NT: Este é o sinal de Deus), ele disse lançando-se através dos Franceses e aí encontrando sua morte.
Carlos d’Anjou desejou negar sepultura ao pobre excomungado; mas os próprios Franceses trouxeram cada um uma pedra e
construiram-lhe um túmulo[1011].

Esta vitória fácil não suavizou o feroz conquistador de Nápoles. Ele lançou, por toda a região, uma nuvem de agentes
ávidos que, fundindo-se como gafanhotos, devoraram o fruto, as árvores e quase a terra[1012]. As coisas foram tão longe, que
o próprio Papa, que chamara o flagelo, arrependeu-se e fez admoestações a Carlos. Os lamentos retumbavam em toda a Itália e
além-Alpes. Todo o partido gibelino de Nápoles, da Toscana, Pisa sobretudo, implorava socorro ao jovem Conradino. A mãe
desta heróica criança o reteve por muito tempo, inquieta de vê-lo, tão jovem ainda, entrar nesta fúnebre Itália, onde toda sua
família encontrara seu túmulo. Mas, quando completou quinze anos, não havia mais como segurá-lo. Seu jovem amigo,
Frederico d’Áustria, despojado, como ele, de sua herança, associou-se à sua fortuna (Sismondi, ‘Rép. Ital.’, III, 371). Eles
cruzaram os Alpes com uma numerosa cavalaria. Mal chegaram à Lombardia, o duque da Baviera alarmou-se e deixou o
jovem filho dos Imperadores prosseguir sua perigosa viagem com somente três ou quatro mil homens em armas. Quando
passaram diante de Roma, o Papa, informado, apenas disse: Deixemos ir essas vítimas (Ptolomæi Luc., ‘Hist. Eccles.’, l.
XXII, c. 36. Raynaldi, § 20, p. 261. Sismondi, III, 380).

Entretanto, a pequena tropa engrossara: além dos Gibelinos da Itália, os nobres espanhóis refugiados em Roma haviam
tomado o partido de Conradino como, em um duelo, teriam desembainhado a espada pelo mais fraco. Havia um grande ardor
neste exército. Apenas os Espanhóis se reuniram e foram esmagados.

Conradino estava preso, o herdeiro legítimo, o último rebento desta dinastia formidável; grande tentação para o feroz
vencedor. Ele se persuadiu, sem dúvida por uma interpretação forçada do Direito Romano, que um inimigo vencido podia ser
tratado como um criminoso de lesa-majestade; e, além disso, o inimigo da Igreja não se encontrava fora de todo direito?
Pretende-se que o Papa confirmou essa impressão e escreveu-lhe: Vita Corradini mors Caroli (NT: “Vida de Conradino,
morte de Carlos”)[1013]. Carlos nomeou juízes entre as suas criaturas para conduzirem o processo de seu prisioneiro. Mas a
coisa era tão inaudita que, entre estes mesmos juízes, encontrou-se um que defendeu Conradino, enquanto os outros se calaram.
Um só condenou e se encarregou de ler a sentença sobre o cadafalso. Mas não impunemente. O próprio genro de Carlos
d’Anjou, o nobre Roberto de Flandres, saltou para cima do cadafalso e matou o juiz com um golpe de espada, ao mesmo
tempo em que bradava: “Não pertence a ti, miserável, condenar à morte tão nobre e gentil senhor!”.

O infeliz adolescente foi decapitado com seu inseparável amigo, Frederico d’Áustria. Ele não deixou escapar nenhum
lamento, senão: “Ó minha mãe, que dura notícia vão te dar de mim”. Depois, ele lançou sua luva para a multidão; conta-se que
esta luva, fielmente recolhida, foi levada à irmã de Conradino, ao seu cunhado o rei de Aragão. Conhece-se as Vésperas
sicilianas.

Uma palavra ainda, uma última palavra sobre a Casa da Suábia. Restava uma filha que fora casada com o duque de
Saxe, quando toda a Europa encontrava-se aos pés de Frederico II. Quando esta família tombou, quando os Papas perseguiram,
por todo o mundo, o que restava desta raça de víboras[1014], o Saxão arrependeu-se de ter tomado por mulher a filha do
Imperador. Ele a surrou brutalmente; ele fez mais: feriu-a no coração, colocando ao lado dela, em seu próprio castelo e à
mesa, uma odiosa concubina, a quem ele desejava forçar sua mulher a prestar homenagem. A desafortunada, julgando bem que
ele logo desejaria seu sangue, resolveu fugir. Um fiel servidor de sua Casa a conduziu num barco, sobre o Elba, até o pé da
rocha que dominava o castelo. Ela deveria descer por uma corda, com grande perigo para sua vida. Mas não era o perigo que
a impedia, senão um filhinho. No momento de partir, ela desejou vê-lo ainda, abraçá-lo, beijá-lo no seu bercinho. Isto foi um
despedaçamento de coração!... No transporte da dor maternal, ela não o beijou, mas mordeu. Esta criança sobreviveu: é
conhecida na história sob o nome de Frederico o Mordido; ele foi o mais implacável inimigo de seu pai[1015].

Até que ponto São Luís teve parte nesta bárbara conquista de Carlos d’Anjou, é difícil determinar. Foi a ele quem o
Papa se dirigiu para vingar-se da Casa da Suábia, “como seu defensor, como seu braço direito”[1016]. Nula dúvida que, no
mínimo, autorizara a empresa de seu irmão. O último e o mais sincero representante da Idade Média devia desposar
cegamente a violência religiosa. Esta guerra da Sicília ainda era uma cruzada. Fazer a guerra aos Hohenstaufen, aliados dos
Árabes, era também combater os infiéis; era uma obra pia arrebatar à Casa da Suábia esta Itália do Sul que ela entregava aos
Árabes da Sicília, fechar a Europa à África, o cristianismo ao maometismo. Acrescente-se que o princípio da Idade Média, já
atacado de todos os lados, tornava-se mais áspero e mais violento nas almas que ainda lhe eram fiéis. Ninguém deseja morrer,
nem os sistemas, nem os indivíduos. Este velho mundo, que sentia a vida escapar-lhe repentinamente, contraía-se e tornava-se
mais feroz. Ele próprio, começando a duvidar de si mesmo, não era senão mais cruel para aqueles que duvidavam. As almas
mais suaves experimentavam, sem saber explicar o porquê, a necessidade de se confirmarem na fé através da intolerância.

Acreditar e bater, pôr-se em guarda para não argumentar e discorrer, fechar os olhos para anular a luz, combater
tateando, tal era a idéia infantil da Idade Média. É o princípio comum das perseguições religiosas e das cruzadas. Esta crença
enfraquecia-se singularmente nas almas, no século XIII. O horror pelos Sarracenos diminuira[1017]; o desencorajamento viera
e a lassidão. A Europa sentia confusamente que pouco poderia segurar esta massiva Ásia. Tivera-se tempo, em dois séculos,
de aprender a fundo o que eram essas tenebrosas guerras. Os cruzados que, com fé em nossos poemas cavaleirescos, foram
procurar impérios de Trebisondas, paraísos de Jericós, Jerusaléns de esmeraldas e safira, não encontraram senão ásperos
vales, cavalaria de abutres, aço cortante de Damasco, deserto árido e a sede sob a magra sombra da palmeira. A cruzada fora
este fruto pérfido das margens do Mar Morto que, aos olhos, oferecia uma laranja e que, na boca, não era senão cinzas. A
Europa passou a olhar cada vez menos na direção do Oriente. Acreditava-se ter feito o bastante, negligenciou-se a Terra Santa
e, quando ela foi perdida, foi a Deus quem se culpou: “Então, Deus jurou”, disse um trovador, “não deixar viver qualquer
cristão e fazer de Santa Maria de Jerusalém uma mesquita? E visto que Seu Filho, que deveria se opor, acha isto bom, seria
uma loucura opor-se. Deus dorme, enquanto Maomé faz brilhar seu poder. Eu gostaria que não se fizesse mais questão de
cruzada contra os Sarracenos, já que Deus os protege contra os cristãos” (‘Le Chevalier du Temple’, ap. Raynouard, ‘Choix
des poésies des Troubadours’, IV, 131).

Entretanto, a Síria nadava em sangue. Depois dos Mongóis, e contra estes, chegaram os Mamelucos do Egito; esta feroz
milícia, recrutada entre os escravos e alimentada com assassinatos, arrebatou aos cristãos as últimas praças-fortes que então
possuíam na Síria. Cesaréa, Arsuf (Tel Arsuf em hebraico ou Apollonia) , Safed (Tzfat em hebraico ou Safad em árabe), Jafa,
Belfort, enfim a grande Antióquia, caíram sucessivamente (Marin. Sanuto, ‘Secreta fidel. Crucis, l. III, P. XII, c. 4-9) . Houve
não sei quantos homens degolados por não terem desejado renegar sua fé; vários foram esfolados vivos. Na só Antióquia,
dezessete mil foram passados a fio de espada e cem mil vendidos como escravos[1018].

Ante essas terríveis notícias, houve, na Europa, tristeza e dor, mas nenhum ímpeto. São Luís recebeu só a chaga no
coração. Ele nada disse, mas escreveu ao Papa que iria tomar a cruz. Clemente IV, que era um hábil homem e mais jurista que
sacerdote, tentou demovê-lo (Gaufred., ‘de Bell. loc., vita et convers. S. Lud.’, c. 37, ap. Duchesne, V, 461. Clement. epist.
269); parece que ele julgava a cruzada do nosso ponto de vista moderno, que compreendia que esta última tentativa nada mais
produziria. Mas era impossível que o homem da Idade Média, seu verdadeiro filho, sua última criança, abandonasse o serviço
de Deus, que renegasse seus pais, os heróis das cruzadas, que deixasse ao vento e ao léu os ossos dos mártires, sem tentar
inumá-los. Ele não podia permanecer sentado em seu palácio de Vincennes, enquanto os Mamelucos degolavam os cristãos ou
matavam suas almas, arrancando-os de sua fé. São Luís ouvia da Santa Capela os gemidos dos moribundos da Palestina e os
gritos das virgens cristãs. Deus renegado na Ásia e maldito na Europa para triunfo dos infiéis, tudo isto pesava na alma do
piedoso rei. Além disso, ele não retornara da Terra Santa senão com grande arrependimento, dela trazendo uma mui pungente
lembrança: a desolação do Egito, as maravilhosas tristezas do deserto, a ocasião perdida do martírio, eis aí os lamentos da
alma cristã.

No dia 25 de maio de 1267, tendo convocado seus barões à grande sala do Louvre, ele ingressou no meio deles
carregando, em suas mãos, a santa coroa de espinhos. Ainda que fraco e doentio estivesse em virtude de suas austeridades, ele
tomou a cruz, fez com que seus três filhos a tomassem e ninguém ousou fazer contrariamente[1019]. Seus irmãos, Alphonse de
Poitiers e Carlos d’Anjou, logo o imitaram, assim como o rei de Navarra, o conde de Champagne, os condes do Artois, de
Flandres, o filho do conde da Bretanha, uma grande quantidade de senhores; depois, os reis de Castela, de Aragão, de Portugal
e os dois filhos do rei da Inglaterra. São Luís esforçava-se em arrastar todos os seus vizinhos à cruzada, portava-se como
árbitro de suas diferenças, ajudava-os a se equiparem. Ele deu sessenta mil libras tornesas[1020] aos filhos do rei da
Inglaterra. Ao mesmo tempo, para que o Midi se vinculasse, ele chamou, pela primeira vez, os representantes dos burgueses às
assembléias dos senescais de Carcassonne e de Beaucaire. Foi o início dos estados do Languedoc.

A cruzada era tão pouco popular que o senescal da Champagne, Joinville, malgrado seu afeto pelo santo rei, dispensou-
se de segui-lo. Suas palavras, a este respeito, podem ser dadas como a expressão do pensamento daquele tempo:

“Avint ainsi comme Dieu voult que je me dormis à matines, et me fu avis en dormant que je véoie le roy devant un
autel à genoillons, et m’estoit avis que pluseurs prélas revestus le vestoient d’une chesuble vermeille de sarge de Reins”
(do francês arcaico: “Adveio assim que, como Deus desejasse que eu estivesse dormindo de manhã, e me foi de aviso, eu
dormindo, que eu visse o rei, perante um altar, de joelhos, e me foi de aviso que vários prelados em hábitos o vestiam com
uma casula vermelha de sarja de Reims”). O capelão de Joinville explicou-lhe que este sonho significava que o rei tomaria a
cruz e que a sarja de Reims queria dizer que a cruzada seria de pouco resultado. “Je entendi que touz ceulz firent peché
mortel, qui li loèrent l’allée” – “De la voie que il fist à Thunes ne weil-je riens conter ne dire, pource que je n’i fu pas, la
merci Dieu” (do francês arcaico: “Eu entendi que todos aqueles cometeram pecado mortal, que o elogiaram por partir” – “Da
vez que ele foi à Túnis, não desejo nada contar, nem dizer, porque para lá não fui, graças a Deus”) – Joinville, p. 153-154.

Este grande exército, lentamente reunido, desencorajado de avanço, e partindo com arrependimento, arrastou-se, por
dois meses, nas cercanias malsãs de Aigues-Mortes. Ninguém ainda sabia para qual lado se dirigiria. O temor era grande no
Egito. Fechou-se a boca pelúsia do Nilo e, desde então, ela permaneceu entulhada[1021] (Michaud, IV, 439) . O imperador
grego, que temia a ambição de Carlos d’Anjou, mandou oferecer a reunião das duas Igrejas.

No entanto, o exército embarcou em navios genoveses. Os Pisanos, gibelinos e inimigos de Gênova, temeram pela
Sardenha e fecharam seus portos. São Luís à pena obteve que seus doentes, já muito numerosos, fossem recebidos em terra.
Havia mais de vinte dias que estavam no mar. Era impossível, com esta lentidão, atingir o Egito ou a Terra Santa. Persuadiu-
se o rei a singrar na direção de Túnis. Era o interesse de Carlos d’Anjou, soberano da Sicília. Ele conseguiu convencer seu
irmão que o Egito extraía grandes auxílios de Túnis[1022]; talvez tivesse pensado, em sua ignorância, que, de uma, seria fácil
passar ao outro. Ele acreditava, além disso, que a aparição de um exército cristão decidiria o sultão de Túnis a se converter.
Este país estava em relações amigáveis com Castela e com a França. Outrora, São Luís, ao batizar um judeu converso, quis
que os embaixadores de Túnis assistissem à cerimônia e disse-lhes em seguida: “Reportai a vosso senhor que muito desejo a
salvação de sua alma, que eu gostaria de estar nas prisões dos Sarracenos pelo resto de minha vida e jamais rever a luz do dia
se, a este preço, eu pudesse tornar vosso rei e seu povo cristãos, como este homem aqui” (Gaufred., ‘de Bello. loc., vita S.
Lud., ap. Duchesne, V, 462).

Uma expedição pacífica, que tivesse somente intimidado o rei de Túnis e o tivesse convencido a se converter, não era o
que tinham necessidade os Genoveses, cujos navios transportavam São Luís; a maioria dos cruzados preferia a violência.
Dizia-se que Túnis era uma cidade rica, cuja pilhagem poderia indenizá-los desta perigosa viagem. Os Genoveses, sem o
menor comprometimento com as intenções de São Luís, iniciaram as hostilidades, aprisionando navios que encontraram à
frente de Cartago. O desembarque ocorreu sem obstáculos; os Mouros não se mostravam senão para provocar e se fazerem
perseguir pelos cristãos, a quem fatigavam. Após languescerem alguns dias na praia abrasadora, os cristãos avançaram na
direção do castelo de Cartago. O que restava do grande rival de Roma reduzia-se a um forte guardado por duzentos soldados.
Os Genoveses o tomaram; os Sarracenos, refugiados nas abóbadas ou nos subterrâneos, foram degolados ou sufocados pela
fumaça ou chamas. O rei encontrou essas ruínas cheias de cadáveres, os quais mandou retirar para aí permanecer com os seus
(Joinville, p. 156). Ele devia aguardar seu irmão Carlos d’Anjou em Cartago, antes de marchar contra Túnis. A maior parte do
exército permaneceu sob o sol da África, na profunda poeira de areia erguida pelos ventos, ao meio dos cádaveres e do fedor
dos mortos. Em volta, rodeavam os Mouros, que sempre levavam alguém. Sem árvores, sem alimentos vegetais; por água,
marés infectas, cisternas cheias de insetos repugnantes. Em oito dias, a peste explodira; os condes de Vendôme, da Marche, de
Viana, Gaultier de Nemours, marechal da França, os senhores de Montmorency, de Piennes, de Brissac, de Saint-Briçon, de
Apremont, já estavam mortos. O legado logo os seguiu. Não possuindo mais energia para enterrá-los, eram lançados ao canal,
cujas águas já se encontravam cobertas de corpos pútridos. Entretanto, o próprio rei e seus filhos estavam doentes: o mais
jovem morreu em seu barco e não foi senão após oito dias que o confessor de São Luís reuniu coragem para contar-lhe. Era o
mais querido e amado de seus filhos; sua morte, anunciada a um pai moribundo, era para este um motivo a mais para se
desapegar da terra, um chamado de Deus, uma tentação de morrer. Assim, sem perturbação e sem arrependimentos, ele
consumou esta última obra da vida cristã, recitando as litanias e os salmos, ditando para seu filho sucessor uma bela e tocante
instrução, acolhendo, mesmo, os embaixadores dos Gregos, que vinham rogar-lhe intervir, em seu favor, junto a seu irmão
Carlos d’Anjou, cuja ambição os ameaçava. Ele falou-lhes com bondade, prometeu-lhes agir com zelo, se vivesse, para
conservar a paz; mas, desde o dia seguinte, ele mesmo viu-se na paz de Deus (Sismondi, VIII, 189).

Na última noite, ele desejou ser tirado de seu leito e estendido sobre as cinzas. Sobre elas morreu, mantendo sempre os
braços em cruz. “E el jour le lundi, li benoiez rois tendi ses mains jointes au ciel, et dist: ‘Biau sires Diex, aies merci de ce
pueple qui ici demeure, e le condui en son pais, que il ne chiée en la main de ses anemis, et que il ne soit contreint renier
ton saint non” (do francês arcaico: “E na manhã da segunda-feira, o abençoado rei ergueu suas mãos juntas ao céu e disse:
‘Bom senhor Deus, tende misericórdia desse povo, que aqui permanece, e o conduzi a seu país; que ele não caia na mão de
seus inimigos, e que ele não seja constrangido a renegar Teu santo nome”).

“En la nuit devant le jour que il trespassast, endementières que il se reposoit, il souspira et dit bassement: ‘O
Jérusalem! O Jérusalem!” (do francês arcaico: “Na noite antes do dia que ele passou, enquanto se repousava, suspirou e
disse baixinho: ‘Ó Jerusalém! Ó Jerusalém!”) – Petri de Gondelo epist., ap. Spicilegium (ed. in fol.), III, 667.

A cruzada de São Luís foi a última cruzada. A Idade Média dera seu ideal, sua flor e seu fruto: ela devia morrer. Em
Filipe o Belo, neto de São Luís, começam os tempos modernos; a Idade Média foi esbofeteada no Papa Bonifácio VIII, a
cruzada foi queimada na pessoa dos Templários.

Falar-se-á ainda, por muito tempo, da cruzada; esta palavra será frequentemente repetida: é uma palavra sonora e eficaz
para arrecadar dízimos e impostos. Mas os nobres e os Papas bem sabem, entre si, o que devem pensar a respeito[1023].
Algum tempo depois (1327), vemos o veneziano Sanuto propor ao Papa uma cruzada comercial: “Não basta invadir o Egito”,
ele dizia, “é preciso arruiná-lo”. O meio que propunha para isto era de reabrir ao comércio da Índia a rota da Pérsia, de sorte
que as mercadorias não passassem mais por Alexandria e Damieta[1024] Assim, anuncia-se de longe o espírito moderno: o
comércio, e não a religião, vai se tornar o móvel das expedições longínquas.

Que a era cristã do mundo tenha tido sua última expressão em um rei da França, isto foi uma coisa importante para a
monarquia e para a dinastia. Foi isto o que tornou os sucessores de São Luís tão ousados contra o clero. A realeza adquirira,
aos olhos do povo, a autoridade religiosa e a idéia de santidade. O verdadeiro rei, justo e piedoso, juiz equitativo do povo,
fora encontrado. Quais puderam ser as influências dos juristas, dos modestos e ardilosos conselheiros, sobre as
conscienciosas determinações desta alma pura e cândida, é o que ninguém pode ainda apreciar. Nós mesmos não tentaremos
fazê-lo aqui. Este grande assunto deve ser apresentado em sua relação com as épocas anteriores e subsequentes de nossa
legislação (vide o III volume).
O interesse da realeza não sendo, então, senão aquele da ordem, o piedoso rei via-se, sem cessar, obrigado a sacrificar-
lhe os direitos feudais que, por consciência e desinteressadamente, teria desejado respeitar. Tudo o que seus hábeis
conselheiros ditavam-lhe para o engrandecimento do poder real, ele o pronunciava pelo bem da justiça. Os sutis pensamentos
dos juristas eram aceitos, promulgados pela simplicidade de um santo. Suas decisões, passando por uma boca tão pura,
tomavam a autoridade de um julgamento divino.

“Maintes foiz avint que en esté, il aloit seoir au boiz de Vinciennes après sa messe, et se acostoioit à un chesne et
nous fesoit seoir entour li; et tout celuz qui avoient à faire venoient parler à li; sans destourbier de huissier ne d’autre. Et
lors il leur demandoit de sa bouche: A yl ci nullui qui ait partie? Et cil se levoient qui partie avoient; et lors il disoit:
Taisiez vous touz, et en vous deliverra l’un après l’autre. Et lors il appeloit monseigneur Pierre de Fonteinnes et
monseigneur Geffroy de Villete, et disoit à l’un d’eulz: Délivrez moi ceste partie. Et quant il véoit aucune chose à amender
en la parole de ceulz qui parloient pour autrui, il meisme l’amendoit de sa bouche. Je le vi aucune fois en esté, que pour
délivrer sa gent, il venoit ou jardin de Paris, une cote de chamelot vestue, un seurcot de tyreteinne sanz manches, un
mentel de cendal noire entour son col, moult bien pigné et sanz coife, et un chapel de paon blanc sur sa teste, et fesoit
estendre tapis pour noius seoir entour li. Et tout le peuple qui avoit à faire par devant li, estoit entour li en estant, et lors il
les faisoit délivrer, en la manière que je vous ai dit devant du bois de Vinciennnes” (do francês arcaico: “Muitas vezes
adveio que, no verão, ele ia se sentar no bosque de Vincennes após sua missa, e se recostava num carvalho e nos fazia sentar
em torno de si; e todos aqueles que tinham alguma questão, vinham falar-lhe; sem impedimento de porteiro de guarda ou de
outrem. E, então, ele lhes perguntava de sua boca: Há alguém que tenha causa? E aqueles que tivessem, se levantavam; e,
então, ele dizia: Calai-vos todos e falai um após o outro. E, então, ele chamava monsenhor Pierre de Fonteinnes e monsenhor
Godofredo de Villete, e dizia a um deles: Encarregai-vos por mim desta causa. E quando via alguma coisa a acrescentar na
palavra daquele que falasse por outrem, ele mesmo a acrescentava de sua boca. Eu o vi uma vez, no verão, que, para ouvir sua
gente, ele vinha ao jardim de Paris, um colete de chamelote vestido, uma sobrecasasa de tiritana sem mangas, um lenço de
sândalo negro em volta de seu pescoço, muito bem penteado e sem gorro, e uma fita de pavão branco sobre sua cabeça, e
mandava estender tapetes para sentarmos em torno de si. E todo o povo que tinha causas para ele, estava à sua volta de pé, e
então ele os fazia pleitear da maneira que vos disse, no bosque de Vincennes”) – Joinville, p. 13.

Em 1256 ou 1257, ele assinou uma sentença contra o senhor de Vesnon, pela qual o condenou a indenizar um mercador
que, em pleno dia, fora roubado num caminho de sua senhoria: os senhores eram obrigados a guardar e a proteger os caminhos,
desde o sol nascente até o poente[1025].

Enguerrand de Coucy, tendo mandado enforcar três jovens que caçavam em seus bosques, o rei o mandou prender e
julgar; todos os grandes vassalos reclamaram e apoiaram o pedido de combate que ele fazia. O rei disse: “Que es fèz des
povres, des églises, ne des persones dont ont doit avoir pitié, l’en ne devoit pas ainsi aler avant par gage de bataille, car
l’on ne trouveroit pas de legier aucun qui se vousissent combatre pour teles manières de persones contre es barons du
royaume...” (do francês arcaico: “Que, em relação aos pobres, às igrejas e às pessoas de quem se deve ter piedade, não se
deve ir assim adiante com penhor de batalha, pois não se encontraria facilmente quem desejasse combater por tais tipos de
pessoas contra os barões do reino...”).

Ele disse a João da Bretanha: “Quant les barons qui de vous tenaient tout nu à nu sanz autre moien, aportèrent devant
nos lor compleinte de vos méesmes, et ils offroient à prouver lor entencion en certains cas par bataille contre vos; ainçois
respondistes devant nos, que vos ne deviez pas aler avant par bataille, mès par enquestes en tele besoigne; et disiez encore
que bataille n’est pas voie de droit” {do francês arcaico: Quando os barões, que de vós se ocupavam por inteiro, sem outro
meio, trouxeram perante nós suas queixas contra vós mesmos, e ofereciam provar sua intenção, em certos casos, por batalha
(combate) contra vós; ainda assim respondestes, perante nós, que não devíeis ir adiante por meio de batalha, mas por
investigações em tais questões; e dissestes, ainda, que a batalha não é via do direito}[1026]. Jean Thourot, que tomara
vivamente a defesa de Enguerrand de Coucy, exclamou ironicamente: “Se eu fosse o rei, teria mandado enforcar todos os
barões; pois um primeiro passo dado, o segundo nada custa”. O rei, que escutou essa zombaria, o chamou: “Como, Jean, dizeis
que eu deveria enforcar meus barões? Certamente, eu não os mandarei enforcar, mas eu os castigarei, se praticarem mal-
feitos”.

Alguns nobres, que tinham por primo um homem mau a quem desejavam emendar, solicitaram a Simão de Nielle, seu
senhor, e que possuía direito de alta justiça em sua terra, a permissão para matá-lo, temendo que ele fosse pego pela justiça e
enforcado para vergonha da família. Simão recusou-se, mas submeteu o caso ao rei; o rei não desejou permiti-lo, “car il
voloit que toute justise fut fète des malféteurs par tout son royaume en apert et devant le pueple, et que nule justise ne fut
fête en report” (francês arcaico: “pois ele desejava que toda justiça fosse feita aos malfeitores, por todo o seu reino, de forma
aberta e perante o povo, e que nenhunha justiça fosse feita em segredo”) – Le Confesseur, p. 383.

Um homem, tendo vindo se queixar a São Luís de seu irmão Carlos d’Anjou, que desejava forçá-lo a vender-lhe uma
propriedade que possuía em seu condado, o rei mandou chamar Carlos perante todo o seu Conselho: “et li benoiez rois
commanda que sa possession lui fust rendue, et que il ne li feist d’ore en avant nul ennui de la possession puisque il ne la
voloit vendre ne eschangier” {NT do francês arcaico: “e o abençado rei ordenou que sua posse fosse-lhe devolvida, e que
ele (Carlos), doravante, não lhe fizesse nula turbação da posse, visto que ele não desejava nem vendê-la, nem trocá-la”} –
Ibid., p. 381.

Acrescentemos, ainda, dois fatos notáveis que igualmente provam que, por se submeter graciosamente aos conselhos dos
padres ou dos juristas, esta alma admirável conservava um senso elevado de equidade que, nas circunstâncias duvidosas, o
faziam imolar a letra ao espírito.

Regnault de Trie, uma vez, trouxe a São Luís uma carta pela qual o rei dera aos herdeiros da condessa de Boulogne o
condado de Dammartin. O selo estava quebrado e não restavam senão as pernas da imagem do rei: todos os conselheiros de
São Luís disseram-lhe que, em virtude disso, ele não estava obrigado à execução de sua promessa. Mas ele respondeu:
“Seigneurs, veez ci séel, de quoi je usoy avant que je allasse outremer, et voit-on cler par ce séel que l’empreinte du séel
brisé est semblable ao séel entier; par quoy je n’oseroie en bonne conscience ladite contée retenir” (francês arcaico:
“Senhores, vede este selo, o qual eu usava antes que me fosse ultramar, e vê-se claramente, neste selo, que a impressão do
selo quebrado é semelhante ao selo inteiro; pelo que eu não ousaria, em boa consciência, reter o dito condado”) – Joinville, p.
15.

Numa sexta-feira santa, enquanto São Luís lia o saltério, os parentes de um nobre detido no Châtelet vieram demandar-
lhe graça, demonstrando-lhe que este dia era um dia de perdão. O rei pousou o dedo sobre o versículo em que estava: “Beati
qui custodiunt judicium, et justitiam faciunt in omni tempore” (“Santos aqueles que observam a justiça e a fazem em todos
os tempos”). Depois, ele ordenou trazerem o prévôt (chefe de polícia) de Paris, e continuou sua leitura. O chefe de polícia
informou-lhe que os crimes do detido eram enormes. Com isso, São Luís ordenou-lhe conduzir, no mesmo momento, o culpado
ao cadafalso (Ægidii de Musis chronic., ap. Art de vérifier les dates, VI, 8).

Esta elevação de espírito, que punha a equidade acima do direito, São Luís a deve em grande parte, sem dúvida, aos
Franciscanos e Dominicanos, dos quais se cercava. Nas questões espinhosas, ele consultava São Tomás de Aquino [1027]. Ele
enviava os Mendicantes para supervisionar as províncias, imitando os missi dominici de Carlos Magno[1028]. Esta Igreja
mística o tornava forte contra a Igreja episcopal e pontifícia; ela deu-lhe a coragem suficiente para resistir ao Papa em favor
dos bispos, e para resistir aos próprios bispos.

Os prelados do reino se reuniram um dia, e o bispo de Auxerre disse, em nome de todos, a São Luís: “Sire, esses
senhores que aqui estão, arcebispos, bispos, me pediram que eu vos dissesse que a cristandade perece em vossas mãos’. O rei
se persignou e disse: ‘Ora, dizei-me como isso se passa!’. Foi-lhe respondido: ‘Sire, é porque, nestes tempos, dá-se tão pouca
importância às excomunhões que os excomungados se deixam morrer nesta condição antes que sejam absolvidos e queiram dar
satisfação à Igreja. Assim, requeremos, Sire, por Deus e pelo que deveis fazer, que ordeneis a vossos prévots e bailios que
todos aqueles que deverão sofrer excomunhão, por um ano e um dia, tenham seus bens apreendidos, até que obtenham a
absolvição. A isto, respondeu o rei que o ordenaria com prazer contra todos aqueles que tivessem errado, desde que disto se
tivesse certeza... E o rei disse que iria cumprir a sua determinação, pois seria contrário a Deus e ao bom senso obrigar as
pessoas a buscar a absolvição, quando os sacerdotes tivessem errado em relação às mesmas” – Joinville, p. 14.

A França, por tão longo tempo votada ao poder eclesiástico, tomava um espírito mais livre no século XIII. Este reino,
aliado do Papa e guelfo contra os imperadores, tornava-se espírito gibelino. Houve sempre, não obstante, uma grande
diferença. Foi pelas formas jurídicas que ela forçou esta oposição, que não foi nada senão mais temível. Desde o início do
século XIII, os senhores tinham vivamente sustentado Filipe Augusto contra o Papa e os bispos. Em 1225, eles declararam que
deixariam suas terras ou tomariam armas se o rei não remediasse o alargamento do poder eclesiástico; a Igreja, adquirindo
sempre e não deixando nada, teria, ao longo, tudo absorvido. Em 1246, o famoso Pierre Mauclerc formou, com o duque da
Borgonha e os condes de Angoulême e de Saint-Pôl, uma liga à qual acedeu uma grande parte da nobreza. Os termos deste ato
são de uma extraordinária energia. A mão dos juristas é visível; já se acredita ler as palavras de Guilherme de
Nogaret[1029].

São Luís associou-se, na simplicidade de seu coração, a esta luta dos juristas e dos senhores contra os padres, que
deveria tornar em seu próprio benefício[1030]; ele se associava, com a mesma boa-fé, à luta dos juristas contra os senhores.
Ele reconheceu ao suzerano o direito de retirar uma terra dada à Igreja. Ele publicou, um ano antes de sua morte, a famosa
Pragmática, fundamento das liberdades da Igreja Galicana.

Mergulhado, nesta época, no misticismo, certamente custava-lhe menos expressar uma oposição tão solene contra a
autoridade eclesiástica. Os reveses das cruzadas, os escândalos que abundavam no século, as dúvidas que se erguiam de todas
as partes, o afundavam tanto mais na vida interior. Esta alma terna[1031] e piedosa, ferida por fora em todos os seus amores,
retirava-se para dentro e procurava-se em si. A leitura e a contemplação tornaram-se toda a sua vida. Ele pôs-se a ler as
Escrituras e os Pais, sobretudo Santo Agostinho. Ele mandou copiar manuscritos[1032]: foi a partir desse fraco e
desinteressado início que surgiu a Biblioteca Real (NT: na evolução, ela chegou à atual Bibliothèque Nationale de France –
BnF). Ele mandava lerem durante suas refeições e à noite, na hora de dormir[1033]. Ele não podia fartar seu coração com
orações e preces e permanecia prostrado, por tanto tempo, que, ao se erguer, narrou o historiador, era tomado por vertigens e
dizia baixinho aos camareiros: “Onde estou?”. Ele temia ser ouvido por seus cavaleiros[1034].

Mas a prece não podia bastar para as necessidades de seu coração. “Li benoiez rois déssirroit merveilleusement grace
de lermes, et se compleignoit à son confesseur de ce que lermes li défailloient, et li disoit débonnèrement, humblement et
privéement, que quant l’en disoit en la létanie cez moz: Biau sire Diex, nous te prions que tu nous doignes fontaine de
lermes, li sainz rois disoit dévotement: O sire Diex, ge n’nose requerre fontaine de lermes; ainçois me soufisissent petites
goutes de lermes à arouser la sécherèce de mon cuer... Et aucune foiz reconnut-il à son confesseur privéement, que aucune
foiz li donna à nostre sires lermes en oroison: lesqueles, quant il les sentoit courre par sa face souef, et entrer dans sa
bouche, eles li sembloient si savoureuses et très douces, non pas seulement au cuer, mès à la bouche” (NT do francês
arcaico: “O abençoado rei desejava maravilhosamente a graça das lágrimas, e lamentava-se, a seu confessor, que essa
lágrimas lhe faltassem, e dizia graciosamente, humildemente e privadamente que, quando lhe falavam, na litania, essas
palavras: ‘Bom senhor Deus, nós Te rogamos que Tu nos concedas a fonte das lágrimas’, o santo rei dizia devotamente: ‘Ó
senhor Deus, eu não ouso pedir a fonte de lágrimas; na verdade, me bastariam algumas gotinhas de lágrimas para regar a
secura de meu coração’.... E, algumas vezes, ele reconheceu a seu confessor, privadamente, que, algumas vezes, Ele deu a
nosso senhor lágrimas durante a oração: as quais, quando ele as sentia correr suavemente por sua face e entrar em sua boca,
elas lhe pareciam tão saborosas e tão doces, não somente ao coração, mas à própria boca)” – Le Confesseur, p. 324.

Essas piedosas lágrimas, esses místicos êxtases, esses mistérios do amor divino, tudo isso se encontra na maravilhosa
igrejinha de São Luís, na Santa Capela. Igreja completamente mística, completamente árabe de arquitetura, que ele mandou
construir, ao voltar da cruzada, por Eudes de Montreuil, a quem levara consigo. Um mundo de religião e de poesia, todo um
Oriente cristão está nesses vitrais, frágil e preciosa pintura que muito se negligencia e que o vento, um dia, carregará. Mas a
Santa Capela não lhe era suficientemente retirada e nem mesmo Vincennes, nos seus bosques, então tão profundos. Era-lhe
necessária a Tebaída de Fontainebleau, seus desertos de grês e de sílex, esta dura e penitente natureza, essas rochas
retumbantes, plenas de aparições e de lendas. Ele aí construiu uma ermida cujos muros posteriormente serviram de base a este
bizarro labirinto, a este sombrio palácio de voluptuosidade, de crime e de capricho, onde ainda triunfa a fantasia italiana dos
Valois.

São Luís erguera a Santa Capela para receber a santa coroa de espinhos vinda de Constantinopla. Nos dias solenes, ele
próprio a tirava da caixa e a mostrava ao povo. Inconscientemente, ele habituava o povo a ver o rei passar sem os padres.
Assim, o próprio Davi pegava da mesa os pães da proposição. Exibe-se ainda, ao sul da igrejinha, uma estreita célula que se
crê ter sido o oratório de São Luís.

Desde São Luís vivente, seus contemporâneos, em sua simplicidade, se perguntavam se ele já não seria santo, e mais
santo que os padres. “Tant com il vivoit, une parole pooit estre dite de li, qui est escrite de saint Hylaire: ‘ô quant très
parfèt home lai, duquel les prestres méesmes désirrent à s’ensivre la vie!’ Car mout de prestres et de prélaz desirroient
estre semblables au beneoit roi en ses vertuz et en ses meurs; car l’on croit méesme que il fust saint dès que il vivoit” (NT
do francês arcaico: “Tanto quanto vivia, uma palavra pode ser dita dele, que está escrita em Santo Hilário: ‘Ó quão mui
perfeito homem laico, o qual mesmo os padres desejam sua vida imitar!’ Pois muitos dos padres e dos prelados desejariam
ser semelhantes ao abençoado rei em suas virtudes e em seus costumes; pois acreditava-se, mesmo, que ele fosse santo desde
quando vivia”)[1035].

Enquanto São Luís enterrava os mortos, “iluecques estoient présens tous revestu, li arcevesques de Sur e li evesques
de Damiète, et leur clergié, qui disoient le service des mors; mès ils estupoient leurz nez pour la puour; mès onques ne fu
veu au bon roy Loys estouper le sien, tant le faisoit fermement et dévotement” {NT do francês arcaico: “ali estavam
presentes, todos paramentados, o arcebispo de Sur e o bispo de Damieta, e seu clero, que diziam o serviço dos mortos; mas
eles tapavam seus narizes por causa do fedor; mas, entretanto, não foi visto o bom rei Luís tapar o seu, tanto o fazia (enterro)
com seriedade e devoção”} – Guill. de Nangis, ‘Annales’, p. 225.

Joinville conta que numerosos Armênios, que iam em peregrinação a Jerusalém, pediram-lhe para autorizá-los ver o
santo rei – “Je alai au roy là où il se séoit en un paveillon, apuié à l’estache du paveillon, et séoit ou sablon sanz tapiz et
sanz nulle autre chose desouz li. Je li dis: ‘Sire, il a là hors un grant peuple de la grant Herménie qui vont en Jérusalem, et
me proient, sire, que je leur face monstrer le saint Roy; mès je ne bée jà à baisier vos os’. Et il rist moult clèrement, et me
dis que je les alasse querre; et si fis-je. Et quant il orent veu le roy, ils le commandérent à Dieu et le roy eulz” {NT do
francês arcaico: “Eu fui ao rei, lá onde ele se sentava, em um pavilhão, apoiado à coluna do pavilhão, e sentava-se na areia,
sem tapete ou sem nenhuma outra coisa debaixo de si. Eu lhe disse: ‘Senhor, há ali fora muita gente, da grande Armênia, que
vai a Jerusalém, e que me pede, senhor, que eu lhes faça mostrar o santo Rei; entretanto eu ainda não desejo beijar vossos
ossos (vossas relíquias)’. E ele riu mui abertamente e me disse para ir procurá-los; e, assim, o fiz. E quando eles viram o rei,
o recomendaram a Deus e o rei a eles”}[1036].

Esta santidade aparece de uma maneira muito tocante nas últimas palavras que escreveu para sua filha: “Querida filha, a
medida pela qual nós devemos Deus amar, é amá-Lo sem medida” (O Confessor, p. 327).

E na instrução a seu filho Filipe:

“Se ocorrer que alguma querela que seja movida entre rico e pobre venha perante ti, sustenta a querela do estranho
perante teu Conselho, mas não mostra tanto teu interesse à querela até que conheças o suficiente a verdade, pois aqueles do teu
Conselho poderiam restar temerosos de falar contra ti, e isto não deves tu desejar. E se entenderes que há algo errado, seja do
teu tempo, ou do tempo dos teus antecessores, resolve-a logo, grande que a coisa seja, tanto em terras, como em dinheiro, ou
em outra coisa” (Ibid. 331) – “O amor que ele tinha a seu povo demonstrou-o quando disse a seu filho primogênito, durante
uma grave doença que teve em Fontainebleau: ‘Bom filho’, ele disse, ‘rogo-te que te faças amar pelo povo de teu reino pois,
verdadeiramente, eu preferiria que um Escoto viesse da Escócia e governasse bem e lealmente o povo do reino a que tu o
governasses mal aos olhos do mundo” (Joinville, p. 4, éd. 1761)[1037].

Belas e tocantes palavras! É difícil lê-las sem se emocionar. Mas, ao mesmo tempo, a emoção mistura-se de volta sobre
si mesma e de tristeza. Esta pureza, esta doçura de alma, esta elevação maravilhosa para onde o cristianismo levou seu herói,
quem nô-la restaurará? ... Certamente que a moralidade é mais esclarecida hoje em dia; seria, porém, mais forte? Eis aí uma
questão bem apropriada para atrapalhar todo sincero amigo do progresso. Ninguém mais que este, que escreve estas linhas, se
associa, de coração, aos passos imensos que o gênero humano deu nos tempos modernos e às suas gloriosas esperanças. Esta
poeira viva que os poderosos esmagavam com os pés, ela tomou uma voz de homem, ela alçou-se à propriedade, à
inteligência, à participação do direito político. Quem não estremece de júbilo vendo a vitória da igualdade? ... Somente temo
que, tomando um tão justo e necessário sentimento de seus direitos, o homem tenha perdido alguma coisa do sentimento de
seus deveres. O coração se aperta quando se vê que, nestes progressos de todas as coisas, a força moral não tenha aumentado.
As noções do livre arbítrio e da responsabilidade moral parecem obscurecer-se a cada dia. Coisa bizarra! à medida que
diminui e se apaga o velho fatalismo de climas e de raças que pesava sobre o homem antigo, sucede-se e engrandece-se como
que um fatalismo de idéias. Que a paixão seja fatalista, que ela logo deseje matar a liberdade, é seu papel, que a ela cabe. Mas
a própria ciência? Mas a arte? E tu também, meu filho? ... Esta larva do fatalismo, onde quer que colocais a cabeça para fora
da janela, vós a encontrais. O simbolismo de Vico e de Herder, o panteísmo natural de Schelling, o panteísmo histórico de
Hegel, a história das raças e a história das idéias, que tanto honraram a França, eles tiveram por bem discordar em tudo;
contra a liberdade, eles estão de acordo. O próprio artista, o poeta, que não se prende a nenhum sistema, mas que reflete a
idéia de seu séculos ele, de sua pluma, inscreveu na velha catedral esta palavra sinistra: Ἀνάγκη (NT: “Necessidade
fatal”)[1038].

Assim, vacila a pobre luzinha da liberdade moral. E, entretanto, a tempestade das opiniões, o vento da paixão, sopram
dos quatro cantos do mundo... Ela queima, ela, viúva e solitária; cada dia, cada hora, ela cintila mais fracamente. Tão
fracamente ela cintila que, em certos momentos, eu acredito, como aquele que se perdeu nas catacumbas, já sentir as trevas e a
fria noite... Pode ela faltar? Nunca, sem dúvida! Nós temos necessidade de nela acreditar e dela nos falarmos, sem o que
tombaríamos de desencorajamento. Ela se extingue, grande Deus, preservai-nos de viver aqui embaixo!

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Capítulo IX
Luta dos Mendicantes e da Universidade. São Tomás de Aquino. Dúvidas de São Luís. A Paixão como princípio da arte
na Idade Média.

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O ETERNO combate da graça e da lei foi ainda realizado, ao tempo de São Luís, entre a Universidade e as Ordens
Mendicantes. Eis aqui a história da Universidade: no século XII, ela se liberta de seu berço da Escola do pátio de Notre-
Dame, ela luta contra o bispo de Paris. No século XIII, guerreia contra os agentes Mendicantes do Papa. No décimo-quarto
século, ela luta contra o próprio Papa. Este corpo formava uma rude e forte demagogia, onde quinze ou vinte mil jovens, de
todas as nações, se exercitavam no exercício dialético, cidade selvagem na cidade que perturbavam com seus atos de
violência e escandalizavam com seus modos[1039]. Era lá que ocorria, todavia, a grande ginástica intelectual do mundo. No
século treze somente, daí saíram sete Papas[1040] e uma multidão de cardeais e bispos. Os mais ilustres estrangeiros, o
espanhol Raimundo Lúlio e o italiano Dante Alighieri, vinham, aos trinta e quarenta anos, sentar-se ao pé da cátedra de João
Duns Escoto (Duns Scot). Eles achavam uma honra terem se disputado em Paris. Petrarca foi tão orgulhoso da coroa que lhe
foi outorgada por nossa Universidade quanto aquela do Capitólio. Ainda no século XVI, enquanto Petrus Ramus ainda dava
alguma vida à Universidade no aguardo da noite de São Bartolomeu, nossas escolas da rua du Fouarre foram visitadas por
Torquato-Tasso. Pura argumentação todavia, vã lógica, sutil e estéril chicana [1041], nossos artistas (os dialéticos da
Universidade se davam este nome) logo seriam ultrapassados. Os verdadeiros artistas, no século XIII, oradores, comediantes,
mímicos, pregadores populares e entusiastas, eram os Mendicantes. Estes aqui falavam de amor e em nome do amor. Eles
haviam retomado o texto de Santo Agostinho: “Amai e fazei o que desejais”. A seca lógica, que tivera tão grandes efeitos ao
tempo de Abelardo, não bastava mais. O mundo, fatigado nesta rude trilha, teria preferido se repousar com São Francisco e
São Boaventura, sob as místicas sombras do Cântico dos Cânticos, ou sonhar com um outro São João, uma nova fé e um novo
Evangelho.

Este título formidável, Introdução ao Evangelho Eterno[1042], foi, efetivamente, colocado na capa de um livro por
João de Parma, general dos Franciscanos. Já o abade Joaquim de Flores, o mestre dos místicos, anunciara que o fim dos
tempos viera. João professou que, da mesma forma que o Antigo Testamento cedera lugar ao Novo, este último também já
cumprira seu tempo; que o Evangelho não bastava mais à perfeição; que ele ainda tinha mais seis anos de vida quando, então,
um Evangelho mais durável iria começar, um Evangelho de compreensão e de espírito; até tal ocorrer, a Igreja não possuía
senão a letra[1043].

Essas doutrinas, comuns a um grande número de Franciscanos, foram também aceitas por diversos religiosos da Ordem
de São Dominique. Foi então que a Universidade explodiu. O mais distinto de seus doutores era um espírito fino e feroz, um
homem do Franco-Condado, um homem do Jura, Guilherme de Saint-Amour. O retrato deste intrépido campeão da
Universidade foi visto, por muito tempo, sobre um vidro da Sorbonne[1044]. Ele publicou contra os Mendicantes uma
sequência de panfletos eloquentes e espirituosos, nos quais esforçava-se para compará-los aos Beguinos e a outros heréticos,
cujos pregadores igualmente eram vagabundos e mendigos: Discurso sobre o publicano e o fariseu; Questão sobre a medida
da esmola e sobre o mendigo válido; Tratado sobre os perigos preditos à Igreja para os últimos tempos [1045], etc. Sua
força está nos escritos que possui, dos quais faz um uso admirável; acrescente-se o picante de uma sátira que se expressa em
meias-palavras. Infelizmente, é por demais visível que o autor tem um outro motivo além da Igreja. Havia, entre os
Universitários e os Mendicantes, concorrência literária e inveja profissional. Os Mendicantes tinham obtido uma cátedra em
Paris, em 1230, época onde a Universidade, ferida pela dureza da regente, retirou-se para Orléans e para Angers (Bullæus,
III, 138). Eles mantiveram esta cátedra e a Universidade não brilhava em nada na presença dessas duas Ordens, cujo sábio era
Alberto o Grande e o lógico era São Tomás de Aquino.

Esse grande processo foi debatido em Anagni perante o Papa. Guilherme de Saint-Amour teve por adversários o
dominicano Alberto o Grande, arcebispo de Mainz, e São Boaventura, general dos Franciscanos[1046]. São Tomás recolheu
de memória toda a discussão e dela fez um livro. O Papa condenou Guilherme de Saint-Amour mas, ao mesmo tempo,
censurou o livro de João de Parma, batendo igualmente os argumentadores e os místicos, os partidários da letra e aqueles do
espírito[1047].
Este meio, este centro tão difícil de manter, onde a Igreja tentou assentar-se e aí permanecer sem escorregar à direita ou
à esquerda, ele foi traçado por São Tomás; eis aí sua imensa glória. Vindo ao fim da Idade Média, como Aristóteles ao final
do mundo grego, ele foi o Aristóteles do Cristianismo, estruturou-lhe a legislação, tentando colocar de acordo a lógica e a fé
para a supressão de toda heresia. O colossal monumento que ele ergueu, extasiou o século em admiração. Alberto o Grande
declarou que São Tomás fixara a regra que duraria até à consumação dos tempos[1048]. Este homem extraordinário foi
absorvido por esta tarefa terrível, nenhuma outra se colocando em sua vida completamente abstrata, cujos únicos ímpetos
foram as idéias. Desde a idade de cinco anos, ele tomou as Escrituras em mãos e não cessou de meditar (Acta SS, p. 660). Ele
era do país do idealismo, da região onde floresciam a escola de Pitágoras e a escola de Eleia (NT: Eleia em grego, Velia em
latim, cidade da Campânia, no golfo de Salerno), da região de Bruno e de Vico. Nas escolas, seus camaradas o chamavam de
“o grande boi mudo da Sicília”[1049]. Deste silêncio, ele não saía senão para ditar e, quando o sono cerrava os olhos do
corpo, aqueles da alma permaneciam abertos e ele continuava a ditar. Um dia, estando ao mar, ele não percebeu uma horrível
tempestade; uma outra vez, sua preocupação era tão forte, que não largou uma candeia acesa que queimava seus dedos (Acta
SS, p. 672, 674). Tomado pelo perigo da Igreja, ele sempre sonhava com o mesmo, inclusive à mesa de São Luís: aconteceu-
lhe, um dia, dar um grande murro na mesa e exclamar: “Eis um argumento invencível contra os Maniqueístas!”; o rei ordenou,
no mesmo instante, que o tal argumento fosse escrito e mandou chamar um escriba (Ibid., pág. 673). Em sua luta contra o
Maniqueísmo, São Tomás se apoiava em Santo Agostinho mas, na questão da graça, ele tomou o partido da liberdade da
vontade. Teólogo da Igreja, era necessário que ele sustentasse o edifício da hierarquia e do governo eclesiástico. Ora, se não
se admite a liberdade, o homem é incapaz de obedecer e não há mais governo possível. E, entretanto, descartar-se de Santo
Agostinho era abrir uma larga porta àquele que desejasse entrar como inimigo da Igreja. Foi por esta porta que, séculos mais
tarde, Lutero entrou.

Tal é, portanto, o aspecto do mundo no século XIII. No cume, o grande boi mudo da Sicília, ruminando a questão. Aqui,
homem e liberdade, lá, Deus, a graça, a presença divina, a fatalidade; à direita, a observação que testemunha a liberdade
humana, à esquerda, a lógica que conduz invencivelmente ao fatalismo. A observação distingue, a lógica identifica; se se
permite esta última, ela resolverá o homem em Deus e Deus na natureza; ela imobilizará o universo em uma indivisível
unidade onde se perdem a liberdade, a moralidade, a própria vida prática. Assim, o legislador eclesiástico se estica sobre o
penhasco, combatendo, pelo bom senso, a sua própria lógica que o teria carregado para o fundo. Ele para, este sério gênio,
sobre a lâmina da navalha, entre dois abismos cuja profundidade mensura. Solene figura da Igreja, ele segura a balança,
procura o equilíbrio e morre no esforço. O mundo que o viu de baixo, distinguindo, argumentando, calculando numa região
superior, não soube de todos os combates que podem ter ocorrido no fundo desta existência abstrata.

Acima desta região sublime, batia o vento e a tormenta. Acima do Anjo, havia o Homem, a moral sob a metafísica, São
Luís sob São Tomás. Em São Luís, o século XIII tem sua Paixão; Paixão de natureza requintada, íntima, profunda, que os
séculos anteriores mal tinham sonhado: eu falo do primeiro rasgão que a dúvida nascente fez nas almas; quando toda a
harmonia da Idade Média se turvou, quando o grande edifício no qual se morava começou a balançar, quando os santos
gritavam contra os santos, o direito erguendo-se contra o direito, as almas mais dóceis se viram condenadas a julgar, a
examinar por si mesmas. O piedoso rei da França, que não pedia senão submeter-se, humilhar-se e crer, logo foi forçado a
lutar, duvidar, escolher. Era-lhe necessário, humilde que era e pouco confiante em si próprio, resistir, inicialmente, à sua mãe;
depois, portar-se por árbitro entre o Papa e o Imperador, julgar o juiz espiritual da cristandade, chamar à moderação aquele a
quem teria desejado tomar como exemplo de santidade. Os Mendicantes, em seguida, haviam chamado sua atenção por seu
misticismo; ele ingressou na Ordem Terceira de São Francisco e tomou partido contra a Universidade. Todavia, o livro de
João de Parma, aceito por um grande número de Franciscanos, deve ter-lhe trazido algumas estranhas desconfianças. Percebe-
se, nas perguntas ingênuas que dirigia a Joinville, toda a inquietude que o agitava. O homem a quem o santo rei se confiava
pode ser tido como o típico honesto homem do século XIII. É um curioso diálogo entre o mundano leal e sincero e a alma
piedosa e cândida, que avança um passo na dúvida, depois recua e se obstina na fé.

O rei fazia com que Roberto da Sorbonne e Joinville comessem à sua mesa: “Quant le roy estoit en joie, si me disoit:
‘Seneschau, or me dites les raison pourquoy preudomme vaut mieux que beguin. Lors si encommençoit la noise de moy et de
maistre Robert. Quand nous avions grant pièce desputé, si rendoita sa sentence et disoit ainsi: ‘Maistre Robert, je vourroie
avoir le nom de preudomme, mès que je le feusse, et tout le remenant vous demourast: car preudomme est si grant chose et si
bonne chose, que ucis au nommer emplist-il la bouche” {NT do francês arcaico: “Quando o rei estava alegre, me dizia:
‘Senescal, agora dizei-me as razões porque prudomem (homem honesto) vale mais que beguino (devoto)’. Então, começava
um ruído entre mim e mestre Roberto. Quando tínhamos disputado por muito tempo, (o rei) rendia a sentença e dizia
assim: ‘Mestre Roberto, eu gostaria de ter o título de prudomem, mas que eu o fosse também, e que todo o resto vos
restasse: pois prudomem é coisa tão grande e coisa tão boa que, mesmo dizê-lo, enche a boca”}.
“Ele me chamou uma vez e me disse: ‘Eu não vos ouso falar, dada a sutil argumentação que tendes, das coisas que tocam
à Deus; e, para isso, chamei esses irmãos que aqui estão, razão porque vos desejo fazer uma pergunta’. E a pergunta foi:
‘Senescal, que coisa é Deus, etc...”[1050].

São Luís contou a Joinville que um cavaleiro, assistindo a uma discussão entre monges e Judeus, pôs uma questão a um
dos doutores judeus e, ante sua resposta, desferiu-lhe uma bastonada que o derrubou. – “Aussi vous di je”, fist li roys, que nul,
se il n’est très bon clerc, ne doit desputer à eulz; mès l’omme lay, quant il ot mesdire de la loy crestienne, ne doit pas défendre
la loy crestienne, sinon de l’épée, de quoi il doit donner parmi le ventre dedens, tant comme elle y peut entrer” (NT do francês
arcaico: “Assim vos digo”, disse o rei, “que ninguém, se não for um clérigo muito bom, deve disputar-se com eles; mas o
homem laico, quando ouve maldizerem a lei cristã, não deve defender a lei cristã senão com a espada, com a qual deve dar
ventre adentro, tanto quanto ela puder entrar”)[1051].

São Luís dizia a Joinville que, no momento da morte, o diabo se esforça em quebrar a fé do agozinante: “E, por isso,
devemos nos guardar e de tal maneira defender-nos desta armadilha, dizendo ao inimigo quando envia tal tentação: ‘Vá-te’ e
deve-se dizer ao inimigo: ‘Tu não me tentarás, pois creio firmemente em todos os artigos da fé, etc...” – (Joinville, p. 10).

Ele dizia que fé e crença eram uma coisa na qual devíamos acreditar mui firmemente, ainda que não estivéssemos certos
senão por ouvir dizer[1052].

Ele contou a Joinville que, um dia, um doutor em Teologia veio encontrar o bispo Guilherme de Paris e expôs-lhe,
chorando, que não podia “forçar seu coração a acreditar no sacramento do altar” (NT: transubstanciação). O bispo
perguntou-lhe se, quando o diabo enviara-lhe esta tentação, ele com ela se comprazeu. O teólogo respondeu que ela o magoava
muito e que antes se mandaria golpear com um machado a rejeitar a Eucaristia. O bispo então consolou-o, assegurando-o que
ele possuía mais méritos que aquele que não tinha dúvidas (Joinville, p. 10-11).

Ainda que leves pareçam esses sinais, eles são graves e merecem atenção. Quando o próprio São Luís encontrava-se
perturbado, quantas outras almas também não deviam sofrer em silêncio! O que havia de cruel, de pungente, neste primeiro
enfraquecimento da fé, é que se hesitava confessá-lo. Hoje, estamos habituados, endurecidos contra os tormentos da dúvida, as
pontas tornaram-se rombudas. Mas é preciso que nos reportemos ao momento primeiro onde a alma, ainda vivaz e ardente de
fé e de amor, sentiu deslizar em si o frio aço. Houve intenso sofrimento, mas houve sobretudo horror e surpresa. Desejais
saber o que ela experimentou, esta alma cândida e crente? Lembrai-vos, vós mesmos, do momento quando a fé vos faltou no
amor, quando ergueu-se em vós a primeira dúvida sobre o objeto amado de vossos corações.

Situar a vida sobre uma idéia, suspendê-la a um amor infinito, e ver que isso vos escapa! Amar, duvidar, sentir-se
odiado por esta dúvida, sentir que o chão foge, que nos precipitamos em sua impiedade, neste inferno de gelo onde o amor
divino não o ilumina jamais... e, entretanto, tornar a pendurar-se nos troncos que flutuam no rodamoinho, esforçar-se em crer
que ainda se crê, temer ter medo e duvidar da dúvida... Mas se a dúvida é incerta, se o pensamento não está certo do
pensamento, não abre isto à dúvida um região nova, um inferno sob o inferno?... Eis a tentação das tentações; as outras nada
são em comparação. Entretanto, ela permaneceu obscura, teve vergonha de si própria até os séculos XV e XVI. Lutero é, lá
embaixo, um grande senhor; ninguém teve uma experiência mais horrível dessas torturas da alma: “Ah! se São Paulo ainda
hoje vivesse, como eu gostaria de saber dele próprio qual tipo de tentação provou. Não era o aguilhão da carne, não era a boa
Santa Técla[1053], como o sonham os papistas... Jerônimo e os outro Pais não conheceram as mais altas tentações, sentindo
apenas as pueris, aquelas da carne que, entretanto, também têm seus incômodos. Agostinho e Ambrósio tiveram as suas: eles
tremeram perante o gládio... Isto é alguma coisa mais importante que o desespero causado pelos pecados... como quando se
diz: “Meu Deus, meu Deus, por que tu me abandonaste?”, isto é como se Aquele que lamenta dissesse: “Tu és meu inimigo
sem motivo”. Ou, na palavra de Jó: “Eu sou justo e inocente”.

O próprio Cristo, cujo tipo era o de Jó, conheceu esta angústia da dúvida, esta noite da alma, onde sequer uma estrela
aparece na linha do horizonte. Está aí o último termo da Paixão, o ápice da cruz. Mas tudo o que precedeu esta fronteira das
dores, tudo o que contém essa palavra da Paixão, em seus diversos sentidos, popular e místico, é aqui que se faria necessário
tentar dizê-lo. Neste abismo está o ideal da Idade Média. Esta era está toda contida no Cristianismo, o Cristianismo na Paixão.
A literatura, a arte, os diversos progressos do espírito humano, desde o terceiro até o décimo-quinto século, tudo depende
deste mistério.

Eterno mistério que, por ter tido seu ideal no Calvário, nem por isso deixou ainda de sê-lo. Sim, o Cristo ainda está
sobre a cruz e não descerá de forma alguma. A Paixão dura e durará. O mundo tem a sua, e também a humanidade, em sua
longa vida histórica, e também cada coração de homem, neste pouco de instantes em que bate. A cada um, sua cruz e seus
estigmas. As minhas datam do dia quando minha alma tombou neste corpo miserável que destruo gastando ao escrever isto.
Minha Paixão começou com minha Encarnação. Pobre alma, que fizeste para arrastar esta carne? Virgem, tu foste lançada,
como Eva, no jardim das seduções, ignorante e apaixonada, ávida e tímida, toda pronta à tentação e à queda. Viver é já um
grau na Paixão.

Depois, esta alma, condenada ao hímen da matéria, materializou-se voluntariamente. Ela tomou gosto por seu suplício,
ela o abraçou, ela nele mergulhou. Ela se pôs a viajar pela lama dos cruzamentos, comendo, bebendo, gozando à cada porta,
como esses deuses encarnados da Índia que, para melhor simularem a humanidade, se profanam com as volúpias humanas; ou,
caso se deseje, como o profeta condenado a representar, por infâmias simbólicas, o adultério de Jerusalém infiel ao seu divino
Esposo.

Esta é a Paixão oriental, a imolação da alma à natureza, o suicídio da liberdade. Mas a liberdade é vivaz, ela não deseja
morrer. Ela se indigna contra a natureza e, inicialmente, repele suas ameaças. Ela rói seus braços contra os leões de Neméia e
as hidras de Lerna. Todos os trabalhos que sua madrasta impõe, ela os executa. Ela doma e pacifica o mundo. Eis aí a Paixão
heróica, eis a força, começo da virtude.

Ainda, se tudo estivesse findo com esta luta exterior! Mas o que será, se o inimigo permanecer em nós? se a alma for
vencida pelo amor? se o forte encontrar em si sua derrota, se Hércules vestir em si mesmo a túnica ardente, se o sábio Merlin,
para obedecer à sua Viviane, deita-se de própria vontade em seu túmulo? Esse delírio, os homens ainda o chamam Paixão.
Esta é antiga, eu penso; ah!, dizei-me quando ela deve terminar?

Contra este inimigo novo, Hércules não tem outro asilo senão sua fogueira. É por esta última provação, as chamas
purificantes das abstinências solitárias pelas quais passaram longos dias os heróis da vida interior, os atletas da moralidade,
esses solitários cristãos, esses Rishi da Índia deteriorados na penitência, cujas almas adquirem, eles dizem, um tal poder, que
os sete mundos virariam pó ao só franzir de suas sobrancelhas. Mas há ainda alguma coisa maior e mais elevada que quebrar
sete globos: é viver puro na impureza do mundo, amá-lo e morrer por ele.

Esta força doce e calma, esta serenidade vitoriosa, a natureza para ela ruge. O infinito material, em face desse infinito
moral, a ele se compara com confusão e desdém. Ele pode o quê, em sua força brutal, em sua grandeza massiva? Ele não pode
senão bater. Colocai, então, de um lado, todos os reis em armas, todos os povos e, se não for o bastante, que todos os globos
tombem. Em face, um junco pensante. Eis um combate estranho, e tanto o é, que apenas Deus seria digno de assisti-lo, se o
próprio Deus não combatesse.

Essa massa, ela bate, ela quebra, ela esmaga... Mas foi apenas o envelope que ela esmagou. Destruído este, o espírito
bate suas asas e voa abençoando seu cruel libertador; ele o ilumina e o santifica: tal é o ideal da Paixão, da Paixão Divina. A
maravilha é que esta Paixão não é completamente passiva. A Paixão é AÇÃO pelo livre consentimento, pela vontade do
Paciente; é, mesmo, a ação por excelência, o drama, para empregar a palavra grega. A Paixão, não importa o que se tenha
dito, é, entre todos os sujeitos, o sujeito dramático.

Ainda que a Paixão seja ativa e voluntária, é pelo fato desta vontade estar num corpo, esta alma num envelope e este
Deus em um homem, que há um momento de temor e de dúvida. Está aí o trágico, o terrível do drama, é o que faz craquelar o
véu do templo, o que cobre a terra de trevas, o que me inquieta ao ler o Evangelho e que, ainda hoje, faz correrem minhas
lágrimas: que Deus tenha duvidado de Deus! que ela tenha dito, a santa vítima: “Meu pai! Meu pai! Vós me
abandonastes?”

Todas as almas heróicas, que ousaram grandes coisas pelo gênero humano, conheceram essa provação; todas se
aproximaram, mais ou menos, deste ideal de dor. Foi em um momento assim que Brutus exclamou: “Virtude, tu não és senão
um nome”. Foi também assim que Gregório VII disse: “Eu amei a justiça e odiei a iniquidade; eis porque morro no exílio”.

Mas ser abandonado por Deus, estar abandonado a si próprio, à sua força, à idéia do dever contra o choque do mundo,
isso é de uma colossal grandeza. Isso é apreender o verdadeiro significado da palavra “homem”, é saborear esse divino
amargor do fruto da ciência, do qual foi dito no começo dos tempos: “Vós sabereis que sois deuses, vós vos tornareis deuses”.

Eis todo o mistério da Idade Média, o segredo de suas lágrimas inexauríveis, e seu temperamento profundo. Lágrimas
preciosas, elas correram em límpidas lendas, em maravilhosos poemas e, amotoando-se em direção ao céu, cristalizaram-se
em gigantescas catedrais que desejavam subir ao Senhor!

Assim, a bordo desse grande rio poético da Idade Média, nelo distingo duas nascentes diversas pela cor de suas águas.
A torrente épica, outrora fugida das profundezas da natureza pagã para atravessar o heroísmo grego e romano, corre misturada
e turva das águas confusas do mundo. Ao lado, corre mais puro o fluxo cristão, que jorra do pé da cruz.

Duas poesias, duas literaturas: uma cavaleiresca, guerreira, amorosa; esta é, desde cedo, aristocrática; a outra, sempre
religiosa e popular.

A primeira também foi popular em seu nascimento. Ela se abre pela guerra contra os infiéis, por Carlos Magno e
Rolando. Que, desde então, e mesmo antes, tenham existido, entre nós, poemas de origem céltica, onde as últimas lutas do
Ocidente contra os Romanos e os Alemães tenham sido celebradas pelos nomes de Fingal ou de Artur, eu nisto acredito
graciosamente. Mas não se deve exagerar a importância do princípio indígena, do elemento céltico. O que é próprio da França
é de ter pouco de si própria, de acolher tudo, de se apropriar de tudo, de ser a França e de ser o mundo. Nossa nacionalidade
é mui poderosamente atrativa, tudo a ela vem, de bom ou mau grado; é a nacionalidade menos exclusivamente nacional, a mais
humana. O fundo indígena foi várias vezes submerso, fecundado pelos aluviões estrangeiros. Todas as poesias do mundo
correram entre nós em regatos e em torrentes caudalosas. Enquanto as colinas verdes de Gales e da Bretanha destilavam as
tradições celtas, como a chuva murmurante nos carvalhos verdes das minhas Ardenas, a catarata dos romances carolíngios
tombava dos Pirineus. Até os distantes montes da Suábia e da Alsácia derramaram, pela Ostrásia, uma vaga dos Nibelungos. A
poesia erudita de Alexandre e de Tróia transbordava, apesar dos Alpes, do velho mundo clássico. E, entretanto, do longínquo
Oriente, aberto pelas Cruzadas, corriam em nossa direção, em fábulas, em contos, em parábolas, os rios reencontrados do
paraíso[1054].

A Europa soube-se Europa combatendo a África e a Ásia: vem daí Homero e Heródoto, daí nossos poemas carolíngios,
com as guerras santas da Espanha, a vitória de Carlos Martelo e a morte de Rolando. A literatura é, inicialmente, a
consciência de uma nacionalidade. O povo é unificado em um homem. Rolando morre nas passagens solenes das montanhas
que separavam a Europa da então africana Espanha. Como os irmãos Filenos divinizados em Cartago, Rolando consagra, com
seu túmulo, o limite da pátria. Grande como a luta, alta como o heroísmo, é a tumba do herói, seu gigantesco tumulus; são os
Pirineus, eles mesmos. Mas o herói que morre pela cristandade é um herói cristão, um Cristo guerreiro, bárbaro; como Cristo,
ele é vendido com seus doze companheiros; como Cristo, ele se vê livrado, abandonado. De seu calvário pirineico, ele brada,
ele soa esse trompa que se escuta de Toulouse a Saragoza. Ele soa, e o traidor Genelon de Mainz, e o despreocupado Carlos
Magno, não desejam, de forma alguma, escutá-lo. Ele soa, e a cristandade, pela qual morre, obstina-se a não responder. Então,
ele quebra sua espada, ele quer morrer. Mas não morrerá, nem do ferro sarraceno, nem de suas próprias armas. Ele infla o
som acusador, as veias de seu pescoço incham, elas explodem, seu nobre sangue escoa; ele morre de sua indignação, do
injusto abandono do mundo.

O retumbar desta grande poesia devia ir se enfraquecendo, como o som da trompa de Rolando, à medida que a cruzada,
distanciando-se dos Pirineus, foi transferida das montanhas ao centro da Península, à medida que o desmembramento feudal
fez esquecer a unidade cristã e imperial que ainda domina os poemas carolíngios. A poesia cavaleiresca, enamorada da força
individual, do orgulho heróico, que foi a alma do mundo feudal, tomou em ódio a realeza, a lei, a unidade. A dissolução do
império, a resistência dos senhores contra o poder central, nos reinados de Carlos o Calvo e dos últimos carolíngios, foi
celebrada em Gérard de Roussillon, nos Quatro Filhos Aymon , galopando a quatro sobre um mesmo corcel; pluralidade
significativa. Mas o ideal não se pluraliza; ele é colocado em um só, em Renaud, Renaud de Montauban[1055], o herói sobre
sua montanha, sobre sua torre; na planície, os sitiantes, rei e povo, inumeráveis contra um só e à pena tranquilos. O rei, este
homem-povo, forte pelo número e representando a idéia do número, não pode ser compreendido por esta poesia feudal; ele
aparece-lhe como um frouxo[1056]; já Carlos Magno fazia uma triste figura em outro ciclo; ele deixou Rolando morrer. Aqui,
ele perseguiu frouxamente Renaud e Gérard de Roussillon e apenas prevaleceu por meios ardilosos. Ele encena o papel do
legítimo e indigno Euristeu perseguindo Hércules e o submetendo a rudes trabalhos.

Esta contradição aparente entre a autoridade e a equidade, que não é, aqui, nada menos que o ódio à lei, a revolta do
individual contra o geral, ela é mal apoiada por Renaud, por Gérard, pela espada feudal. O rei, apesar de tudo o que dizem, é
mais legítimo; ele representa uma idéia mais geral, mais divina. Ele não pode ser desapossado senão por uma idéia ainda mais
geral. O rei prevalecerá sobre o barão e, sobre o rei, o povo. Esta última idéia já se encontra implicitamente em um drama
satírico que, da Ásia à França, foi acolhido e traduzido em todas as nações: eu falo do diálogo entre Salomão e Marculfo.
Marculfo é um Esopo, um bufão grosseiro, um rústico, um vilão; mas completamente vilão que seja, ele engana e embaraça
com suas sutilezas, ele humilha sobre seu trono o bom rei Salomão. Este aqui, prodigamente bafejado por todos os dons, belo,
rico, todo-poderoso, sobretudo sábio e sabido, vê-se vencido por aquele rústico malandro[1057]. Contra a autoridade, contra
o rei e a lei escrita, a arma do feudal Renaud é a espada, é a força; aquela do bufão popular, tão penetrante quanto, é a
argumentação e a ironia.

O rei deve vencer o barão, não somente em poder, mas em popularidade. A epopéia das resistências feudais deve cedo
perder todo o caráter popular e se confinar na esfera limitada da aristocracia. Ela deve empalidecer sobretudo no Midi, onde
a feudalidade não foi jamais senão uma importação odiosa, onde sempre dominou, nas cidades, a existência municipal, resto
vivaz da Antiguidade.

O pensamento comum dos dois ciclos, de Rolando e de Renaud, é a guerra, o heroísmo, a guerra interna e a guerra
externa. Mas a idéia do heroísmo deseja se completar e tende ao infinito; ela alarga seus horizontes; o desconhecido poético
que flutuava inicialmente sobre as duas fronteiras, Ardenas e Pirineus, estende-se ao Oriente e, como aquele das idades
antigas, se lança na direção do Ocidente com suas Hespérides que, da Itália foram à Espanha e da Espanha à Atlântida. Após
as Ilíadas vêm as Odisséias. A poesia vai-se, procurando terras longínquas. Ela procura o quê? O infinito, a beleza infinita, a
conquista infinita. Lembramo-nos, então, que um Grego, um Romano, conquistaram o mundo. Mas o Ocidente não adota nem
Alexandre, nem César, senão sob a condição deles se tornarem ocidentais. A eles é conferida a ordem da cavalaria. Alexandre
torna-se um paladino; os Macedônios e os Troianos são avós dos Franceses; os Saxões descendem dos soldados de César, os
Bretões de Brutus. O parentesco dos povos indo-germânicos (NT: leia-se indo-arianos) que a ciência demonstraria em nossos
dias, a poesia a entrevia em sua divina presciência.

Entretanto, o herói ainda não está completo. Em vão, para aguardá-lo, a Idade Média enalteceu-se sobre a Antiguidade.
Em vão, para completar a conquista do mundo, Aristóteles, tornado mágico, conduziu pelo ar e pelo Oceano o Alexandre
cavaleiresco[1058]. O elemento estrangeiro não bastando, remonta-se ao velho elemento indígena, até ao dólmen céltico, até à
tumba de Artur[1059]. Artur retorna, não mais este pequeno chefe de clã, tão bárbaro quanto os Saxões seus vencedores; não...
um Artur depurado pela cavalaria. Ele é bem pálido, é verdade, este rei dos bravos, com sua rainha Guinevere e seus doze
paladinos em volta da Távola Redonda. O que trazem eles ao mundo, após esse longo sono que a mulher fez Merlin
adormecer? Eles trazem o amor da mulher, está aí seu ideal heróico; sempre a mulher, sempre Eva, esse enganoso símbolo da
natureza, da sensualidade pagã, que promete o júbilo infinito e que mantém o luto e as lágrimas. Que eles fossem, então, às
florestas, tristes amantes, à procura de aventuras, fracos e agitados, revolvendo em suas intermináveis epopéias, como neste
círculo de Dante onde flutuam as vítimas do amor ao sabor de um vento eterno.

De quê serviam essas formas religiosas, essas iniciações, essa mesa dos dozes, esses ágapes cavaleirescos à imagem da
ceia? Um esforço foi tentado para transfigurar tudo isso, para corrigir esta poesia mundana e trazê-la à penitência. Ao lado da
cavalaria profana que procurava a mulher e a glória, uma outra é erigida. Permite-se a esta última as guerras e as carreiras
aventureiras. Mas o objeto mudou. Permite-se que Artur e seus bravos participem, desde que se tenham emendado. A nova
poesia os encaminha, devotos peregrinos, ao misterioso Templo, no qual se guarda o sacro tesouro. Este tesouro, ele não é a
mulher; não é o cálice profano de Jamshid[1060], de Hipérion[1061], de Hércules, mas o casto cálice de José de Arimatéia e
de Salomão, o cálice no qual Nosso Senhor bebeu à ceia, no qual José de Arimatéia recolheu Seu precioso sangue. A simples
visão deste cálice, ou Graal, prolonga a vida de Titurel durante quinhentos anos. Os guardiões do cálice e do templo, os
Templistas, devem permanecer puros. Nem Artur, nem Percival, são dignos de tocá-lo. Por ter se aproximado dele, o
apaixonado Lancelot resta como sem vida durante trinta e quatro dias. A nova cavalaria do Graal é conferida pelos
sacerdotes; foi um bispo quem fez Titurel cavaleiro. Esta poesia sacerdotal posiciona seu ideal tão alto que o faz estéril e
impotente. Em vão ela exalta as virtudes do Graal, ele permanece solitário; apenas os filhos de Percival, de Lancelot e de
Gwain podem dele se apoximar. E, quando se vai enfim realizar o verdadeiro cavaleiro, o digno guardião do Graal, é-se
obrigado a tomar um Sir Galahad, perfeito em todos os pontos, santo desde seu nascimento, mas totalmente obscuro. Este
obscuro herói, posto ao mundo de propósito, não teve grande influência.

Tal foi a impotência da poesia cavaleiresca. Cada dia mais sofística e mais sutil, ela tornou-se a irmã da Escolástica,
uma Escolástica de amor, como de devoção. No Midi, onde os saltimbancos a levavam em pequenos poemas pelas cortes e
castelos, ela se extinguiu nos refinamentos da forma, nos entraves da versificação mais artificial e mais laboriosa que jamais
existiu. Ao Norte, ela tombou da epopéia ao romance, do símbolo à alegoria, quer dizer, ao vazio. Decrépita, ela ainda enruga,
durante o século XIV, nas tristes imitações do triste Romance da Rosa, enquanto, por cima, erguia-se, pouco a pouco, a acre
voz da zombaria popular nos contos e nas fábulas.

A poesia cavaleiresca devia se resignar a morrer. O que fizera ela da humanidade durante tantos séculos? O homem a
quem sua confiabilidade agradara ser simples, mais ignorante, mudo como Percival, brutal como Rolando e Renaud, ela
prometera conduzi-lo pelos degraus da iniciação cavaleiresca até à dignidade de herói cristão, mas ela o deixava fraco,
desencorajado, miserável. Do ciclo de Rolando àquele do Graal, sua tristeza sempre aumentou. Ela o conduziu, errante, pelas
florestas, na perseguição dos gigantes e dos monstros, à procura da mulher. São as carreiras do Hércules antigo e, também,
suas fraquezas. A poesia cavaleiresca pouco desenvolveu seu herói; ela o reteve no estado de criança, como a imprevidente
mãe de Percival que prolonga, em seu filho, a imbecilidade da primeira idade. Assim, ele a deixa, esta mãe, tal como Gerardo
de Roussillon abandonou a cavalaria e se fez carvoeiro e como Renaud de Montauban se fez pedreiro e carregou as pedras
sobre as costas para ajudar na construção da catedral de Colônia[1062].

O cavaleiro se faz homem, se faz povo, se entrega à Igreja. É que apenas na Igreja encontra-se, então, a inteligência do
homem, sua vida verdadeira, seu repouso. Enquanto esta virgem louca da epopéia cavaleiresca corre pelos montes e vales, na
garupa de Lancelot e de Tristão, a virgem sábia da Igreja mantém sua lâmpada acesa, aguardando o grande despertar. Sentada
perto da manjedoura misteriosa, ela vela o povo criança que cresce entre o boi e o asno, durante sua noite de Natal;
oportunamente, os reis virão adorá-lo. A própria Igreja é também povo. Ambos encenam, no templo, o grande drama do
mundo, o combate entre a alma e a matéria, entre o homem e a natureza, o sacrifício, a encarnação, a Paixão. A epopéia
cavaleiresca, aristocrática, era a poesia do amor, da Paixão humana, dos pretensos felizes do mundo. O drama eclesiástico,
também dito “o culto”, é a poesia do povo, a poesia daqueles que pastam, dos pacientes, a Paixão divina.

A Igreja era, então, o verdadeiro domicílio do povo. A casa do homem, esta miserável masmorra para onde ele se
dirigia ao anoitecer, não era senão um abrigo momentâneo. Não havia senão uma Casa, a bem dizer, a Casa de Deus. Não era
em vão que a Igreja possuísse o direito de asilo[1063]; ela era, à época, o asilo universal, tendo a vida social se refugiado
inteiramente em seu seio. O homem aí orava, a comuna aí deliberava, o sino era a voz da cidade e chamava aos trabalhos dos
campos[1064], aos negócios civis e, às vezes, às batalhas da liberdade. Na Itália, era nas Igrejas que o povo-soberano se
reunia. Foi na catedral de São Marcos que os deputados da Europa vieram pedir uma frota para a quarta cruzada. O comércio
se realizava em volta das igrejas; as peregrinações eram feiras. As mercadorias eram abençoadas. Os animais, como ainda
hoje em Nápoles, eram trazidos para receber bençãos: a Igreja não os recusava e deixava que viessem esses pequeninos.
Outrora, em Paris, os presuntos da Páscoa eram vendidos no pátio Notre-Dame e cada um, carregando-os, pedia que fossem
abençoados. Às vezes, fazia-se ainda melhor: comia-se dentro da própria igreja e, após o repasto, vinha a dança. A Igreja
prestava-se a essas alegrias infantis.

Era que, então, o povo e a Igreja, a qual era recrutada no próprio povo, eram a mesma coisa, assim como a criança e a
mãe. Ambos ainda eram sem desconfianças mútuas: a mãe desejava a si mesma bastar a seu filho; ela o aceitava por inteiro,
sem reservas. “... Pandentemque sinus et totâ veste vocantem Cæruleum in gremium” (NT: Abrindo o vestido celeste, mostrava
seu seio e a todos convidava ao colo).

O culto era um diálogo terno entre Deus, a Igreja e o povo, expressando o mesmo pensamento. Ela, a cada turno, com um
tom grave ou apaixonado, combinava a velha língua sacra e a língua do povo. A solenidade das preces era rompida,
dramatizada com cantos patéticos, como este diálogo das Virgens loucas e das Virgens sábias que nos foi conservado [1065].
E também, algumas vezes, ela se fazia pequenina, a Grande, a Douta, a Eterna, ela gaguejava com seu filho. Ela traduzia-lhe o
inefável em lendas pueris, tais como ainda lhe eram necessárias. Ela falava-lhe e ela o escutava. O povo erguia a voz, não o
povo fictício que fala no coro, mas o verdadeiro povo vindo de fora que, quando entrava, inumerável, tumultuoso, com sua
grande voz confusa, gigante criança, como o São Cristóvão da lenda[1066], bruto, ignorante, apaixonado, mas dócil,
implorando a iniciação, rogando carregar o Cristo sobre seus ombros colossais. Ele entrava trazendo para a igreja esse
medonho dragão do pecado, o arrastava esganado com carnes até os pés do Salvador, sob o golpe da prece que deveria imolá-
lo[1067]. Algumas vezes, também, reconhecendo que a bestialidade residia em si próprio, ele expunha em extravagâncias
simbólicas a sua miséria, sua enfermidade. Era o que se chamava a “festa dos idiotas”, a “festa dos loucos”, fatuorum[1068].
Esta imitação da orgia pagã, tolerada pelo cristianismo como o adeus do homem à sensualidade que ele abjurara, se
reproduzia nas Festas da infância do Cristo, da Circuncisão, dos Reis, dos Santos Inocentes e, também, nos dias onde a
humanidade, salva do demônio, tombava na embriaguez da alegria, no Natal e na Páscoa. O próprio clero participava. Aqui,
os cônegos bailavam na igreja, lá, arrastava-se ultrajosamente o odioso arenque da quaresma[1069]. A besta, como o homem,
era reabilitada. A humilde testemunha do nascimento do Salvador, o fiel animal que com seu hálito O aquecera, todo
pequenininho que era, em sua manjedoura, que O carregara com sua mãe ao Egito, que O conduzira triunfante em Jerusalém,
ele também tinha sua parte da alegria[1070]. Sobriedade, paciência, firme resignação, a Idade Média, mais justa que nós,
distinguia no asno um não sei quanto de virtudes cristãs. Por que enrubecer-se-ia dele? o Salvador não se
envergonhara...![1071] Mais tarde, as ingenuidades transformaram-se em zombarias e a igreja foi obrigada a impor silêncio ao
povo, a afastá-lo, a mantê-lo à distância. Mas, nos primeiros séculos da Idade Média, que mal havia nisto tudo? Não é tudo
permitido às crianças? A Igreja enfurecia-se tão pouco com esses dramas populares, que deles reproduzia as passagens mais
ousadas em suas muralhas. Em Rouen, um porco toca violino[1072]; em Chartres é um asno[1073]. Em Essone, um bispo
segura um bastão de bobo[1074]. Em outros lugares, são as imagens dos vícios e dos pecados esculpidas na liberdade um
piedoso cinismo[1075]. O corajoso artista não recuou perante o incesto de Ló, nem às infâmias de Sodoma[1076].

Havia, então, na Igreja, um maravilhoso gênio dramático, pleno de ousadia e de bonomia, frequentemente marcado de
uma puerilidade tocante. Ninguém ria, na Alemanha, quando o novo cura, no meio de sua missa de empossamento, ia pegar sua
mãe pela mão e dançava com ela. Se ela estivesse morta, era salva sem dificuldade: ele colocava sob o candelabro a alma de
sua mãe. O amor da mãe e do filho, de Maria e de Jesus, era, para a Igreja, uma rica fonte do patético. Ainda hoje, em
Messina, no dia da Ascensão, a Virgem, carregada por toda a cidade, procura seu filho, assim como a Ceres da Sicília antiga
procurava Proserpina; enfim, quando se está na hora de entrar na grande praça, é-lhe repentinamente apresentada a imagem do
Salvador; ela estremece e recua surpreendida, e doze aves que partem voando de seu seio, levam a Deus a efusão da alegria
maternal[1077].

No Pentecostes, pombos brancos eram soltos na igreja entre línguas de fogo, as flores choviam, as galerias interiores
eram iluminadas[1078]. Que tentemos nos representar o efeitos das luzes sobre esses prodigiosos monumentos, quando o
clero, circulando pelas rampas aéreas, animava com suas procissões as massas tenebrosas, passando e repassando, ao longo
das balaustradas, sob essas pontes desdentadas e vestindo seus belos hábitos, os círios e os cantos; quando a luz e a voz
giravam de círculo para círculo e que, embaixo, na sombra, o oceano do povo respondia. Era aí o verdadeiro drama, o
verdadeiro Mistério, a representação da viagem da humanidade através dos três mundos, esta intuição sublime que Dante
recebeu da realidade passageira para fixá-la e eternizá-la na Divina commedia.

Este colossal teatro do drama sagrado retirou-se, após sua longa festa da Idade Média, ao silêncio e à sombra. A débil
voz que, agora, aí se escuta, aquela do padre, é impotente para preencher essas abóbadas e conter o trovão da voz do povo.
Ela está viúva, ela está vazia, a Igreja. Seu profundo simbolismo, que outrora falava tão alto, tornou-se mudo. É,
presentemente, um objeto de curiosidade científica, de explicações filosóficas, de interpretações Alexandrinas. A igreja é um
museu gótico que é visitado pelos instruídos: eles circulam em volta, olham irreverentemente e, então, louvam ao invés de
orar. Mas eles bem sabem o que elogiam! O que encontra graça perante seus olhos, o que lhes agrada na igreja, não é a própria
igreja, mas o trabalho delicado de seus ornamentos, a franja de seu manto, suas rendas de pedra, qualquer obra laboriosa e
sutil do gótico em decadência.

Homens rudes e grosseiros que acreditam que essas pedras são pedras, que nelas não sentem circular a seiva e a vida!
Cristãos ou não, reverenciai, beijai o símbolo que elas carregam; este signo da paixão é aquele do triunfo da liberdade moral.
Há, aqui, alguma coisa de grande, de eterna, não importa qual seja a sorte desta ou daquela religião. O futuro do cristianismo
não faz a menor diferença. Que ele doravante seja religião ou filosofia, que passe do senso místico ao senso racional, será
para sempre necessário adorar, nesses monumentos, a vitória da moralidade humana. Não foi em vão que Cristo disse: “Que
essas pedras se tornem pão!”. A pedra tornou-se pão, o pão tornou-se Deus, a matéria espírito, no dia onde o sacrifício os
honrou, justificou, transfigurou, transubstanciou. Encarnação e Paixão: duas palavras idênticas que se explicam por uma
terceira: transubstanciação. Em três degraus diferentes, é a luta, o hímen, a identificação das duas substâncias: dramático e
doloroso hímen no qual o espírito desce e a matéria sofre. O mediador é o sacrifício, a morte, a morte voluntária. Há sangue
nessas bodas. Este dia terrível, este dia memorável, era o ontem, é o hoje, é o amanhã e o sempre. O drama eterno é encenado
todo dia na igreja. A própria igreja é esse drama. É um mistério petrificado, uma Paixão de pedra ou, melhor, o Paciente. O
edifício inteiro, na austeridade de sua geometria arquitetural, é um corpo vivo, um homem. A nave, abrindo seus dois braços, é
o Homem sobre a cruz; a cripta, a igreja subterrânea, é o Homem no túmulo; a torre, a flecha, ainda são Ele, mas de pé e
subindo ao céu. Neste coro, inclinado em relação à nave, podeis ver Sua cabeça pendendo na agonia[1079] e reconhecereis
Seu sangue na púrpura ardente dos vitrais.

Toquemos essas pedras com precaução, caminhemos levemente sobre essas lajes. Tudo isso sangra e sofre ainda. Um
grande mistério se passa aqui. Eu vejo a morte em todos os lugares, aqui, e sou tentado a chorar. Entretanto, esta morte imortal
cuja arte inscreveu a imagem numa florescente vegetação, esta flor da alma, esse divino fruto do mundo, que a natureza decora
com suas folhas e suas rosas, não seria, sob a forma funerária, a vida e o amor? “Sou escura, mas sou bela”, diz a amante do
Cântico dos Cânticos. Essas abóbadas sombrias podem esconder o hímen com um véu. Romeu e Julieta não se uniram em um
túmulo? Doloroso é o abraço, o beijo amargo, e a amante sorri no choro. Esta abóbada imensa cujo mistério está oculto, é ela
uma mortalha ou um vestido nupcial?... Sim, é o vestido da natureza, o antigo véu de Ísis no qual toda criatura está bordada.
Essa viva folhagem onde a arte teceu os animais da terra e os pássaros do céu, é o manto dela, sua amorosa túnica. Ele está
vestido de sua amante[1080].
A solene e santa comédia revolve o círculo de seu drama divino no drama natural que encenam o Sol e as estrelas. Ela
caminha da vida à morte, da encarnação à paixão, à ressurreição, enquanto a natureza se transforma de inverno em primavera.
Quando o semeador enterrou o grão na terra para escondê-lo da neve e da geada, Deus enterrou-se na vida humana, num corpo
mortal, e mergulhou este corpo num sepulcro. Não temei nada: o grão germinará da terra, a vida do túmulo, Deus da natureza.
Ao sopro da primavera, o Espírito será soprado. Quando as últimas nuvens tiverem fugido, distinguireis, no céu transfigurado,
a Ascensão. Enfim, quando da seara, a própria criatura, amadurecida pelo raio divino que a atravessou, subirá com a Virgem
ao Senhor[1081].

Como a humanidade atingiu esse maravilhoso simbolismo? Como a arte caminhou, em sua longa estrada, para chegar a
tão alto? Eu devo tentar dizê-lo. Meu tema também o deseja; longe de mim dele descartar-me e, antes, a ele desço, nele
penetro. A Idade Média, a França da Idade Média, expressaram na arquitetura seus mais íntimos ideais. As catedrais de Paris,
de Saint-Denis, de Reims, essas três palavras dizem mais que a mais longa narrativa. Tais monumentos são grandes fatos
históricos. Devo fazer o quê? Descrevê-los? Compará-los aos monumentos análogos dos outros países? Esta descrição,
mesmo esta comparação, não dariam senão um conhecimento exterior, superficial, confuso. É preciso ir mais além, cavar mais
à frente, é preciso atingir o princípio de sua formação, a lei fisiológica que presidiu esta vegetação de uma natureza particular.
Assim, para além da classificação artificial e exterior de Tournefort[1082], a ciência encontrou os sistemas de Lineu[1083] e
de Jussieu[1084]. A lei orgânica da arquitetura gótica, eu devo procurá-la, numa parte, no gênio do cristianismo, em seu
principal mistério, na Paixão e, noutra parte, na história da arte, em sua fecunda metempsicose.

ARS (NT: arte) em latim, é o contrário de IN-ERS (NT: inércia); é o contrário da inação, é a ação. Em grego, ação se diz
drama. O drama é a ação ou a arte por excelência, o princípio e o fim da arte.

A arte, a ação, o drama, são estranhos à matéria. Para que a inerte matéria se torne espírito, ação, arte, para que ela se
humanize e se encarne, é preciso que ela seja domada, que sofra. É preciso que ela se deixe dividir, retalhar, bater, esculpir,
dobrar, talhar. Que ela suporte o martelo, o cinzel, a bigorna. Que grite, que silve, que gema. Eis a Paixão! Lede na balada
inglesa o Martírio do grão de cevada[1085], o que ele sofre sob o flagelo, sobre a grelha, na cuba. Igualmente a uva na
prensa. A prensa é frequentemente a figura da cruz do Filho do Homem. Homem, uva, grão de cevada, todos tomam da tortura
sua forma mais elevada; outrora grosseiros e materiais, eles se tornam espírito. A pedra também se anima e se espiritualiza
sob o ferro, sob a ardente e severa mão do artista. O artista, que dela faz jorrar a vida, é, na Idade Média, mui
apropriadamente chamado de “o senhor das pedras vivas” ou Magister de vivis lapidibus[1086].

Esta luta dramática entre o homem e a natureza é, por si mesma, tudo ao mesmo tempo: Paixão e Encarnação, destruição
e geração. A ambos, eles engendram um fruto comum, combinação do pai e da mãe: natureza humanizada, matéria
espiritualizada, arte. Mas, assim como o fruto da geração representa mais ou menos o pai ou a mãe, e dá, a cada vez, os dois
sexos, igualmente o produto misto da arte, onde domina, mais ou menos, o homem ou a natureza. Aqui, o signo viril, lá, o
feminino. É preciso distinguir as características sexuais na arquitetura, assim como na botânica e na zoologia.

Isto é marcante na Índia. Ela apresenta, alternativamente, monumentos masculinos e femininos. Estes últimos, vastas
cavernas, vulvas profundas da natureza no seio das montanhas, receberam, em suas trevas, a fecundação da arte; elas aspiram
ao homem e tendem a absorvê-lo em seu seio. Outros monumentos representam o ímpeto do homem em direção à natureza, a
veemente aspiração do amor. Eles se erguem em luxuriantes pirâmides que desejariam fecundar o céu. Aspiração, respiração,
vida mortal e morte fecunda, luz e trevas, macho e fêmea, homem e natureza, atividade, passividade; no total, o drama do
mundo, cuja arte é a séria paródia.

Sim, em face desta toda-poderosa natureza que zomba de nós na ilusória fantasmagoria de suas obras, nós erguemos uma
natureza trabalhada por nós. A esta solene ironia do mundo, a esta eterna comédia que, sempre divertindo o homem, ri e
zomba, nós opomos nossa Melpômene[1087]. A homicida e encantadora natureza, que nos sorri enquanto nos esmaga, dela nos
resguardamos tão pouco, que colocamo-nos, prazeirosamente, a segui-la, a imitá-la. Espectadores e vítimas do drama, nós, de
boa vontade, aí nos misturamos e nos dignificamos, compreendendo-a, aceitando-a, idealizando-a, a catástrofe.

A fecundidade desse duplo drama parece ter sido capturada pelos Indianos. A figueira indiana, o bhôdhi, a árvore-
floresta que, de cada ramo, lança uma árvore na terra, esta arcada das arcadas, esta pirâmide das pirâmides, é o abrigo sob o
qual o Deus alcançou – eles dizem – o estado perfeito da contemplação, o estado do bôdhi, do budista, do sábio-absoluto. Tal
Deus, tal árvore; o nome deles torna-se idêntico, a fecundidade natural e a fecundidade intelectual. Esta árvore, na qual há
tantos pensamentos, eles se erguem juntos, eles aspiram ao ser; é o ideal da fecundidade, da criação. Aspiração, agregação,
eis os princípios macho e fêmea, paternal e maternal, os dois princípios do mundo e do pequeno mundo da arte. Digamos
melhor, o único princípio: aspiração da agregação, de todos em um, de todos em direção a um, como tendem, na direção da
ponta, todas as linhas da pirâmide.

A forma piramidal, a pirâmide abstrata, reduzida às suas três linhas, é o triângulo. No triângulo ogival, na ogiva, duas
linhas são curvas, quer dizer, compostas de um infinito de linhas retas. Esta aspiração comum de linhas infinitas em número,
que é o mistério da ogiva, ela aparece na Índia e na Pérsia[1088]; ela domina no nosso Ocidente, na Idade Média. Nos dois
cantos do mundo, apresenta-se o esforço do infinito em direção ao infinito, também dito, a tendência universal, católica. É a
repetição sem fim do mesmo no mesmo, repetição escalonada numa mesma ascensão[1089]. Posicionai, então, como nos
monumentos indianos, pirâmide sobre pirâmide, lingam sobre lingam; multiplicai, como em nossas catedrais, ogivas e
rosáseas, flechas e tabernáculos, igrejas sobre igrejas; e que a humanidade não pare na ereção de sua piedosa Babel senão
quando os braços lhe tombarem.

Há distância, entretanto, da Índia à Alemanha, da Pérsia à França. Idêntica em seu princípio, a arte varia sobre a estrada,
ela enriqueceu-se de suas variações e nos trouxe o rico tributo. A Índia contribuiu, mas a Grécia também, Roma também; sem
dúvida, ainda outros elementos.

Inicialmente, ao sair da Ásia, o templo grego, simples reunião de colunas sob o triângulo achatado do frontão, mal
apresenta uma lembrança da aspiração ao céu que caracterizava os monumentos da Índia, da Pérsia e do Egito. A aspiração
desaparece e, aqui, a beleza está na agregação, na ordem; mas, mesmo a agregação é fraca. Esta falange de colunas, esta
república arquitetural, ainda não está unida, fechada por uma abóbada. Na arte grega, como na sociedade grega, o liame, o
vínculo, está imperfeito. Sabe-se como o mundo Helênico foi pouco unido malgrado suas anfictionias. Repúblicas e
repúblicas, cidades e cidades, pouca união. A própria colônia não se liga à metrópole senão por uma lembrança religiosa e
filial.

O mundo Etrusco e Romano é, ao contrário, cerrado; igualmente também a arte itálica. Aqui, a arcada reaparece, ela se
cruza, a abóbada se fecha; em outros termos, a agregação se fortifica, a aspiração ao alto deseja reaparecer. Tal arte, tal
sociedade. Aqui, há hierarquia social; a força da associação é grande. A metrópole guarda sob si suas colônias; distantes que
sejam, elas permanecem na cidade. Para expressar um tal mundo, a colônia não basta, nem mesmo os arcos. Vide os
monumentos de Trèves e de Nîmes, com seus duplos e triplos andares de arcadas e pórticos; tudo isso não será suficiente para
representar o que ainda virá. O Oriente deu a natureza, a Grécia a cidade, Roma a cidade do direito. O Ocidente e o Norte vão
fazer a Cidade de Deus.

Sabe-se que a Igreja Cristã, primitivamente, não foi senão a basílica do tribunal romano. A Igreja assenhorou-se do
próprio pretório no qual Roma a condenou. A cidade divina invadiu a cidade jurídica. Aqui, o advogado é o padre, o pretor é
Deus. O Tribunal alarga-se, arredonda-se e forma o coro. Esta igreja, como a cidade romana, ainda é restrita, exclusiva; ela
não se abre a todos. Ela ainda ama as trevas das catacumbas onde nasceu; ela escava-se vastas criptas que a fazem lembrar-se
de seu berço. Os catecúmenos não são admitidos no recinto sagrado e ainda aguardam à porta. O batismo é do lado de fora, do
lado de fora, o cemitério; a própria torre, o órgão e a voz da igreja, ergue-se ao lado. A pesada arcada romana lacra com seu
peso a igreja subterrânea, enterrada em seus mistérios. E assim vai, tanto quanto o cristianismo estiver em luta, tanto quando
durar a tempestade das invasões, tanto quanto o mundo não acreditar em sua duração. Mas, quando a era fatal do ano mil
passou, quando a hierarquia eclesiástica acreditou ter conquistado o mundo, que ela se completou, se coroou e se fechou no
Papa, quando a cristandade convocada no exército da cruzada apercebeu-se de sua unidade, então a Igreja abanou sua estreita
vestimenta, ela se dilatou para abraçar o mundo, saiu das criptas tenebrosas. Ela subiu, ela ergueu suas abóbadas, as construiu
em cristas ousadas e, na arcada romana, reapareceu a ogiva oriental.

A hierarquia romana multiplicou arcada sobre arcada; a hierarquia sacerdotal multiplicou ogiva sobre ogiva, pirâmide
sobre pirâmide, templo sobre templo, cidade sobre cidade. O templo, a própria cidade, não são, aqui, mais que um elemento.
O mundo cristão contém todos os mundos que o precederam; o templo cristão contém todos os templos. A coluna grega aí está,
mas colossal, esfoliada em um feixe de gigantescas colunetas. O arco romano aí se encontra, mais sólido que antes e mais
ousado[1090]. Na flecha, reaparece o obelisco egípcio, mas o obelisco erguido sobre um templo. As figuras dos anjos, dos
profetas, de pé sobre os contrafortes, parecem bradar a prece aos quatro ventos, como o imã sobre os minaretes. Os
arcobotantes que sobem ao teto da nave[1091] com suas balaustradas leves, suas rodas radiantes, suas pontes denteadas,
parecem a escada de Jacó, ou essa ponte aguda dos Persas, por onde as almas são obrigadas a franquear o abismo, ao risco de
perderem o equilíbrio sob o peso de seus pecados.

Eis uma prodigiosa acumulação, uma obra de Encélado[1092]. Para sustentar essas rochas de quatrocentos, de
quinhentos pés no ar[1093], os gigantes, aparentemente, suaram... O (monte) Ossa sobre o (monte) Pélion, o Olimpo sobre o
Ossa... Mas não, não é apenas uma obra de gigantes, não é um confuso empilhamento de coisas enormes, uma agregação
inorgânica... Aí existe algo de mais forte que o braço dos Titãs... Então, o quê? o sopro do espírito. Esse leve sopro, que
passou à frente da face de Daniel, carregando os reinos e destruindo impérios, foi ainda ele quem inflou as abóbadas, quem
soprou as torres ao céu. Ele penetrou com um vida poderosa e harmoniosa todas as partes desse grande corpo, ele suscitou, de
um grão de mostarda, a vegetação da prodigiosa árvore. O espírito é o operário de sua morada. Vede como ele trabalha a
figura humana na qual se encontra preso, como nela imprime a fisionomia, como forma e deforma seus traços; ele cava o olho
da meditação, da experiência e das dores, ele labora a fronte com rugas e pensamentos; mesmo os ossos, o poderoso
vigamento do corpo, ele os flexiona e os curva ao movimento da vida interior. De mesmo, o espírito foi o artesão de seu
envoltório de pedra, ele o moldou para seu uso, ele o marcou por fora, por dentro, com a diversidade de seus pensamentos;
sobre o mesmo, o espírito ditou sua história e cuidou para que sobre ele nada faltasse da longa vida que experimentara,
gravando todas as suas lembranças, todas as suas esperanças, todos os seus lamentos, todos os seus amores e paixões. Ele pôs,
sobre esta fria pedra, seus sonhos, seus pensamentos íntimos. Desde a vez em que escapou das catacumbas, da cripta
misteriosa onde o mundo pagão o prendera[1094], ele a lançou ao céu, esta cripta; quanto mais profundamente ele descia,
tanto mais alto ela se ergueu; a flecha radiante escapou como o profundo suspiro de um peitoral oprimido depois de mil anos.
E tão poderosa era a respiração, tão fortemente batia esse coração do gênero humano, que ele fez luz em todas as partes de seu
envoltório; ela explodiu de amor para receber o olhar de Deus. Observai a órbita emagrecida e profunda da cruzaria gótica,
deste olho ogival[1095] , quando ele faz esforço para se abrir, no século onze. Este olho da cruzaria gótica é o signo pelo qual
se classificou a nova arquitetura[1096]. A arte antiga, adoradora da matéria, se classificava pelo apoio material do templo,
pela coluna, coluna toscana, dórica, jônica. A arte moderna, filha da alma e do espírito, tem por princípio, não a forma, mas a
fisionomia, o olho, não a coluna, mas a cruzaria; não o pleno, mas o vazio. Nos séculos XII e XIII, a cruzaria, encovada na
profundeza dos muros, como o solitário da Tebaída numa gruta de granito, está completamente retirada em si mesma; ela
medita e sonha. Pouco a pouco, ela avança de dentro para fora, chega à superfície exterior do muro. Ela se irradia em belas
rosáceas místicas, triunfantes da glória celeste. Mas mal o século XIV passou, que essas rosas se alteram; elas se transformam
em figuras radiantes; são chamas, corações ou lágrimas? Pode ser tudo isso ao mesmo tempo.

Mesmo progresso no engrandecimento sucessivo da igreja. O espírito, o que quer que faça, sempre se sente mal dentro
de sua morada; ele tem por bem estendê-la, variá-la, enfeitá-la[1097], ele não pode nela permanecer pois asfixia-se. Não... tão
bela que sois, maravilhosa catedral, com vossas torres, vossas flores de pedras, vossos santos, vossas florestas de mármore,
vossos grandes cristos em suas auréolas de ouro, vós não podeis me conter. É preciso que, em volta da igreja, construamos
igrejinhas, que ela irradie capelas[1098]. Para além do altar, ergamos um outro altar, um santuário atrás do santuário;
escondamos, atrás do coro, a capela da Virgem; parece-me que lá respiraremos melhor; lá, haverá joelhos de mulher para que
o homem neles repouse sua cabeça que não pode mais sustentar, um voluptuoso repouso para além da cruz, o amor para além
da morte... Mas como esta capela é ainda pequena, como esses muros são um obstáculo!... Seria então necessário que o
santuário escapasse do santuário, que o arco se reposicionasse sob as tendas, sob o pavilhão do Céu?

O milagre é que esta vegetação apaixonada do espírito, que parecia dever lançar ao acaso o capricho de seus jatos
luxuriantes, ela se desenvolveu dentro de uma lei regular. Ela domou sua exuberante fecundidade ao número e ao ritmo de uma
geometria divina. A geometria e a arte, o verdadeiro e o belo se reencontraram. Foi assim que se calculou, nos últimos
tempos, que a curva mais apropriada para se fazer uma abóbada sólida era justamente aquela que Michelangelo escolhera
como a mais bela para o domo de São Pedro.

Esta geometria da beleza brilha no tipo de arquitetura gótica, na catedral de Colônia[1099]; é um corpo regular que
cresceu na proporção que lhe era própria, com a regularidade dos cristais. A cruz da igreja normal é estritamente deduzida da
figura pela qual Euclides construiu o triângulo equilátero[1100]. Este triângulo, princípio da ogiva normal, pode ser inscrito
no arco das abóbadas; ele assim mantém a ogiva igualmente distante tanto da desgraciosa magreza das janelas agudas do norte,
quanto do pesado achatamento das arcadas bizantinas. Os número dez e doze, com seus subdivisores e seus múltiplos,
dominam todo o edifício. Dez é o número humano, aquele dos dedos; doze, o número divino, o número astronômico; a eles,
acrescentai o sete, em honra dos sete planetas[1101]. Nas torres e, em todo edifício, as partes inferiores derivam do quadrado
e se subdividem em octógono; as superiores, dominadas pelo triângulo, esfoliam-se em hexágono, em dodecágono[1102]. A
coluna apresenta as proporções da ordem dórica na relação de seu diâmetro com sua altura[1103]. A altura iguala-se à largura
da arcada, conformemente ao princípio de Vetrúvio e de Plínio. Assim, neste tipo da arquitetura gótica, subsistem as tradições
da antiguidade.

A arcada, lançada de um pilar a outro, é larga de cinquenta pés. Este número se repete em todo o edifício. É a medida da
altura das colunas. As naves laterais (ou colaterais) têm a metade da largura da arcada, a fachada em triplo. O comprimento
total do edifício possui três vezes a largura total ou, dito de outra forma, nove vezes a largura da arcada. A largura do conjunto
é igual ao comprimento do coro e da nave[1104], igual à altura do miolo (centro) da abóbada[1105]. O comprimento está para
a altura como dois para cinco. Enfim, a arcada, as colaterais, se reproduzem do lado de fora nos contrafortes e nos
arcobotantes que sustentam o edifício. O número sete, o número dos sete dons do Espírito Santo, dos sete sacramentos, é
também aquele das capelas do coro, duas vezes sete aquele das colunas que o sustentam.

Esta predileção pelos números místicos se encontra em todas as igrejas. A de Reims possui sete entradas; as de Reims e
de Chartres, sete capelas em torno do coro (vide Povillon-Piérard, ‘Déscription de Notre-Dame de Reims’; Gilbert,
‘Déscrip. de Chartres’). O coro de Notre-Dame de Paris tem sete arcadas. A cruzaria é comprida de 144 pés (16 vezes 9),
larga de 42 (6 vezes 7); é também a largura de uma das torres, e o diâmetro de uma das grandes rosáceas; as torres da mesma
igreja têm 204 pés (18 vezes 12). Conta-se aí 297 colunas (297:3 = 99 que, divididos por 3 = 33 que, divididos por 3 = 11), e
45 capelas (5x9). O campanário que se sobrepunha à cruzaria tinha 104 pés, como a abóbada principal. Notre-Dame de
Reims, no total, tem 408 pés (34 vezes 12)[1106]. Chartres tem 396 pés (6 vezes 66). As naves de Saint-Ouen de Rouen e das
catedrais de Estrasburgo e de Chartres são, todas três, de comprimento igual (244 pés). A Santa Capela de Paris é alta de 110
pés, longa de 110, larga de 27 (3 elevado à terceira potência).

A quem pertencia esta ciência dos números, esta matemática divina? a nenhum homem mortal, mas à Igreja de Deus. Na
própria sombra da igreja, nos capítulos e nos monastérios, o segredo se transmitia com os ensinos dos mistérios
cristãos[1107]. Somente a igreja podia realizar esses milagres da arquitetura. Com frequência, para terminar um monumento,
ela para aí chamava todo um povo. Cem mil homens trabalhavam ao mesmo tempo na catedral de Estrasburgo (vide
Grandidier, ‘Essais sur la cathédrale de Strasbourg’, ‘Histoire de la cathédrale de Strasbourg’; Fiorillo, ‘Gesh. der
zeichn. Kunste in Deutshland’, I, 350 e segs.); a noite não conseguia interromper o trabalho, tamanho era o zelo, e eles o
continuavam sob as luzes de tochas. Também com frequência, a igreja prodigalizava os séculos, ela realizava lentamente uma
obra perfeita. Renaud de Montauban já carregava pedras para a catedral de Colônia e nela, ainda hoje, se trabalha[1108].
Nada resistia a esta gigantesca paciência.

Que a arte gótica tenha tido análogas em Bizâncio, na Pérsia ou na Espanha, disto não se duvida. Mas o que importa,
afinal de contas? Ela pertence ao lugar onde teve sua mais profunda raiz, onde mais se aproximou de seu ideal. Nossas
catedrais normandas são singularmente numerosas, belas, variadas; suas filhas da Inglaterra são prodigiosamente ricas,
delicadamente, sutilmente trabalhadas. Mas o gênio místico está mais fortemente marcado, ao que parece, nas igrejas da
Alemanha. Nesta, já havia uma terra bem preparada, um solo feito de propósito para suportar as flores de Cristo. Em nula
outra parte o homem e a natureza, o irmão e a irmã, encenaram, sob o olhar do Pai, um amor mais puro e mais infantil. A alma
alemã se afeiçoou com bonomia às flores, às árvores, às belas montanhas de Deus, e ela então construiu, na sua simplicidade,
os milagres da arte, assim como, no nascimento do menino Jesus, os alemães enfeitam a bela árvore de Natal, completamente
carregada de guirlandas, de laços e de candelabros, para a alegria das criancinhas. Foi lá que a Idade Média deu à luz almas
de ouro, que passaram desconhecidas e desapercebidas, almas cândidas, pueris e profundas ao mesmo tempo, que mal
suspeitaram do tempo, que não saíram do seio da eternidade, deixando o mundo correr perante si sem distinguir em suas
correntes tempestuosas outra coisa senão o azul do céu. Como se chamavam? Quem o sabe?... Sabe-se apenas que eram desta
obscura e vasta associação espalhada em todos os lugares. Eles possuíam suas lojas em Colônia e em Estrasburgo. Seu
símbolo, tão antigo quanto a Germânia, era o martelo de Thor. Do martelo pagão, santificado em suas mãos cristãs, eles
continuavam pelo mundo a grande obra do Templo Novo, renovado do Templo de Salomão. Com qual carinho e cuidado eles
trabalharam, obscuros que eram e perdidos na associação, com qual abnegação de si mesmos, é preciso, para sabê-lo,
percorrer as partes mais recuadas, as mais inacessíveis das catedrais. Erguei-vos dentro desses desertos aéreos, às últimas
pontas dessas flechas onde o telhador não se arrisca senão trêmulo, vós encontrareis, com frequência solitárias sob o olho de
Deus, submetidas às rajadas do vento eterno, alguma obra delicada, alguma obra-prima (chef-d’oeuvre) da arte e da escultura,
onde o piedoso operário gastou sua vida. Nem um nome, nem um símbolo, nem uma letra: ele acreditava que deveria esconder
sua glória de Deus. Ele trabalhou apenas para Deus, para a salvação de sua alma. Um nome que, entretanto, conservaram por
uma graciosa preferência, é aquele de uma virgem que trabalhou para a catedral de Notre-Dame de Strasbourg: uma parte da
prodigiosa flecha foi erguida por sua delicada mão[1109]. Assim, na lenda, a rocha que todos os esforços dos homens não
conseguiram abalar, rola sob o pé de uma criança[1110].

É também uma virgem, padroeira dos Maçons (NT: pedreiros), Santa Catarina, que podemos ver com sua roda
geométrica, sua rosa misteriosa, no térreo da catedral de Colônia. Uma outra virgem, Santa Bárbara, aí se apoia sobre sua
torre, perfurada de um trindade de janelas. Todos esses humildes maçons trabalhavam para a Virgem. Suas catedrais, que à
pena se erguiam de uma toesa por geração, eram dedicadas a ela. Apenas ela sabe tudo o que ali existe de vidas humanas, de
devoções obscuras, de suspiros de amor e de preces. O mater Dei! (NT: Ó, mãe de Deus!).
Saído do livre élan místico, o gótico, como já se disse sem compreendê-lo, é o gênero livre. Eu digo livre e não
arbitrário. Se ele se mantivesse preso no belo tipo de Colônia, se ele restasse submetido pela harmonia geométrica, teria
perecido de languidez. Em outras partes da Alemanha, na França, na Inglaterra, menos dominadas pelo cálculo e pelo
idealismo religioso, ele recebeu, em acréscimo, a impressão variada da história. Assim como o direito alemão, transportado
para a França, perde seu caráter simbólico e toma uma característica mais real, mais histórica, mais variável, mais suscetível
de abstrações sucessivas, igualmente a arte gótica perde, aí, sua divindade, para representar, com o pensamento religioso, toda
a variedade das circunstâncias reais, dos homens e do tempo. A arte alemã, mais impessoal, raramente nomeou seus artistas;
os nossos marcaram nossas igrejas com sua ardente personalidade; lê-se seus nomes sobre os muros de Notre-Dame de Paris,
nos túmulos de Rouen[1111], nas pedras tumulares e meandros da igreja de Reims[1112]. A inquietude do nome e da glória, a
rivalidade dos esforços, levaram esses artistas a atos desesperados. Em Caen, em Rouen, encontra-se a história de Dédalo
matando seu sobrinho por inveja. Vede numa igreja desta última cidade, sobre a mesma pedra, as figuras hostis e ameaçadoras
de Alexandre de Berneval e de seu discípulo, a quem apunhalou. Seus cães, deitados a seus pés, ainda o ameaçam. O
desafortunado jovem, na tristeza de um destino irrealizado, carrega sobre seu peito a incomparável rosa com a qual ele teve a
infelicidade de superar seu mestre[1113].

Como contar nossas belas igrejas do século XIII? Eu gostaria, ao menos, de falar de Notre-Dame de Paris[1114]. Mas
alguém colocou neste monumento uma tal garra de leão que ninguém, desde então, arrisca-se a tocá-la[1115]. Esta coisa,
doravante, é seu feudo, é o morgado de Quasimodo. Ele construiu, ao lado da velha catedral, uma catedral de poesia, tão firme
quanto os alicerces da outra, tão alta quanto suas torres. Se eu olhasse esta igreja, assim seria como um livro de história, como
o grande registro dos destinos da monarquia. Sabe-se que seu portal, outrora carregado das imagens de todos os reis da
França, é obra de Filipe Augusto; o portal sudeste, iniciado em 1257, é de São Luís; o setentrional, iniciado em 1312 ou 1313,
é de Filipe o Belo; este último foi construído com os despojos dos Templários, para desviar, sem dúvida, a maldição de
Jacques de Molay[1116]. Este portal fúnebre tem, na sua porta vermelha, o monumento de João Sem Medo (Jean-sans-Peur),
o assassino do duque de Orléans[1117]. A grande e pesada igreja, toda cheia de flores-de-lis, pertence mais à história que à
religião. Ela tem pouco do ímpeto, pouco desse movimento de ascensão tão impactante nas igrejas de Estrasburgo e de
Colônia. As linhas longitudinais que cortam Notre-Dame de Paris imobilizam o ímpeto[1118]; são, antes, as linhas de um
livro. Ela narra ao invés de orar.

Notre-Dame de Paris é a igreja da monarquia; Notre-Dame de Reims é aquela da sagração real. Esta última, ao
contrário do ordinário das catedrais, foi finalizada. Rica, transparente, atraente em sua coqueteria colossal, ela parece
aguardar uma festa; ela não se encontra, agora, senão triste, a festa nunca mais aconteceu. Carregada e sobrecarregada de
esculturas, coberta, mais que qualquer outra, de emblemas do sacerdócio, ela simboliza a aliança do rei e do padre. Sobre as
rampas exteriores da cruzaria, os diabos se divertem e se deixam escorregar nos declives rápidos, fazem caretas para a
cidade, enquanto ao pé do Campanário do Anjo, o povo é amarrado ao pelourinho.

Saint-Denis é a igreja dos túmulos; não uma sombria e triste necrópole pagã, mas gloriosa e triunfante, brilhante de fé e
de esperança, larga e sem sombras, como a alma de São Luís que a construiu; simples por fora, bela por dentro, arremetida e
leve, como se para pesar menos sobre os mortos. A nave se ergue ao coro por uma escadaria que parece aguardar o cortejo
das gerações que devem subir, descer, com os restos dos reis.

À época aonde chegamos, a arquitetura gótica atingiu sua plenitude, ela estava na beleza severa da virgindade, momento
curto, momento adorável, onde nada podia permanecer aqui embaixo. No momento da beleza pura, um outro sucede que nós
bem conhecemos também. Sabei, esta segunda juventude, quando a vida já muito pesou, quando a ciência do bem e do mal
penetra num triste sorriso, que um penetrante olhar escapa das longas pálpebras; então, não são suficientes todas as festas para
enganar os tormentos do coração. É o tempo dos adereços e dos ricos ornamentos. Tal foi a igreja gótica em sua segunda era;
ela exibiu, em seu adereço, uma deliciosa coqueteria. Ricas cruzarias cobertas de triângulos imponentes[1119], encantadores
tabernáculos pendurados às portas, às torres, como engastes de diamantes, fina e transparente renda de pedra fiada no fuso das
fadas; ela foi assim, cada vez mais ornada e triunfante à medida que, dentro, o mal aumentava. Vós o fizestes em vão,
sofredora beleza, o bracelete bambeia em volta de um braço emagrecido; sabeis demais, a argumentação vos queima, vós
languesceis de amor impotente.

A arte afundou cada dia mais neste esmaecimento. Ela se encarniçou sobre a pedra, dela tentou tomar a vida que calava,
ela a furou, a remexeu, a adelgaçou, a subutilizou. A arquitetura tornou-se irmã da escolástica. Ela dividiu e subdividiu. Seu
procedimento foi aristotélico, seu método foi aquele de São Tomás. E foi, então, como uma série de silogismos de pedras que
não alcançaram sua conclusão. Encontra-se frieza nesses refinamentos do gótico, nas sutilezas da escolástica, na escolástica
do amor dos trovadores e de Petrarca. É não saber o que é a paixão; o quão engenhosa, obstinada, renhida, sutil e aguda nas
suas buscas ardentes. Excitada do infinito no qual ela entreviu uma vivacidade extraordinária, ela se tornou um vidro
aumentativo que distingue e exagera os menores detalhes. Ela o persegue, este infinito, na imperceptível bolha de ar onde
flutua um raio do céu, ela o procura na densidade de um belo cabelo louro, na última fibra de um coração palpitante. Divida,
divida, escalpelo afiado, tu podes furar, rasgar, tu podes fender o cabelo e talhar o átomo... tu não encontrarás teu Deus.

Levando cada dia mais adiante esta ardente procura, o que o homem encontrou foi o próprio homem. A parte humana e
natural do cristianismo se desenvolveu cada vez mais e invadiu a igreja. A vegetação gótica, lassa de subir em vão, estendeu-
se sobre a terra e deu suas flores. Quais flores? as imagens do homem, as representações pintadas e esculpidas do
cristianismo, dos santos, dos apóstolos. A pintura e a escultura, as artes materialistas que reproduzem o finito, preencheram,
pouco a pouco, a arquitetura[1120]; esta última, arte abstrata, infinita, silenciosa, não pôde se sustentar contra as suas irmãs
mais vivazes e mais loquazes. A figura humana variou e povoou a nudez dos muros. Sob pretexto de piedade, o homem pôs em
todos os lugares a sua imagem; ela aí entrou como Cristo, como apóstolo ou profeta; depois em seu próprio nome,
humildemente deitada sobre os túmulos; quem teria recusado o asilo do templo a esses pobres mortos? eles se contentaram,
inicialmente, com uma simples laje, na qual a imagem era gravada; depois, a laje tornou-se uma estátua; depois, a tumba foi
um mausoléu, um catafalco de pedras que encheu a igreja; o que digo? foi uma capela, ela mesma uma igreja. Deus, encerrado
em Sua própria casa, ficou feliz de guardar, Ele próprio, uma simples capela. O homem se entronizara na igreja cristã; o que
restava a esta última senão voltar a ser pagã, de vestir-se com a forma do templo Helênico?

A arquitetura repousa sobre duas idéias: a idéia natural, idéia de ordem e a idéia sobrenatural, aquela do infinito. Na
arte grega, a ordem domina a idéia natural e racional. A poderosa coluna grega, elegantemente agrupada, carrega, à sua
vontade, um leve frontão; o fraco sobre o forte; isto é lógico e humano. A arte gótica é sobrenatural, sobre-humana. Ela nasceu
da crença no milagroso, no poético, no absurdo; e isto não é uma irrisão pois tomo emprestada a palavra de Santo Agostinho:
Credo quia absurdum (NT: Creio, ainda que absurdo). A casa divina, por ser o que é, isto é, divina, não tem necessidade de
fortes colunas; se ela aceita um apoio material, é por pura condescendência; bastar-lhe-ia o sopro de Deus. Esses apoios, ela
os reduzirá a nada, se possível. Ela amará posicionar massas enormes sobre finas colunetas. O milagre é evidente. Isto é o
princípio de vida para a arquitetura gótica; é a arquitetura do milagre. Mas é também seu princípio de morte. Este milagre
humano preencheu imperfeitamente a condição do milagre. A idéia do milagre é aquela de um ato instantâneo, de um fiat, de
uma salvação súbita acordada às necessidades do gênero humano; então, ele é sublime. Um milagre regular, como o curso do
Sol, torna-se trivial e sem efeito. Um milagre imóvel, petrificado, sem necessidade urgente, produz todo o efeito do absurdo.
A amor ama acreditar no absurdo; é também um devotamento, uma imolação. Mas, no dia em que o amor faltar, a estranheza e
a bizarria das formas tornarão a sair com prazer e o sentimento do belo será abalado, assim como a lógica[1121].

Se é da essência da arte ser desinteressada, de estar a si mesma ser seu objetivo, a arte gótica é menos arte que a arte
grega. Esta deseja o belo, nada a mais; é uma arte jovem que se satisfaz com a forma. O gótico deseja o bom e o santo; a arte
aí está como meio da religião, como poder moral. A arte ao serviço de uma religião da morte, de uma moral que prescreve a
aniquilação da carne, deve encontrar e acarinhar o feio. A feiúra voluntária é um sacrifício, a feiúra natural uma ocasião de
humildade. A penitência é feia, o vício mais feio ainda. O deus do pecado, o medonho dragão, o diabo, está na igreja, vencido,
humilhado mas, enfim, ele aí está. O gênero grego divizina frequentemente as bestas; os leões de Roma, os corcéis do Partenon
são restos dos deuses. O gótico bestializa o homem para fazê-lo enrubescer de si mesmo antes de divinizá-lo. Eis aí a feiúra
cristã. Onde está a beleza cristã? Ela está nesta trágica imagem de macerações e de dor, neste patético olhar, nestes braços
abertos para abraçar o mundo. Beleza assustadora, feiúra adorável, que nossos antigos pintores não temeram oferecer à alma
santificada. É preciso que venha um tempo onde o homem procure outra coisa, onde ele prefira as graças da vida ao sublime
da morte, onde ele trapaceie sobre as formas um Deus morto por si?

Em todo o gótico, escultura, arquitetura, havia, confessêmo-lo, alguma coisa de complexa, de velha, de penosa. A
massa enorme da igreja apoia-se sobre inumeráveis contrafortes, laboriosamente erguida e sustentada, como o Cristo sobre a
cruz. Ficamos fatigados de vê-la cercada de esteios inumeráveis que dão a idéia de uma velha casa que ameaça cair ou de um
edifício inacabado.

Sim, a casa ameaçava cair, ela não podia ser finalizada. Esta arte, atacável em sua forma, desfalecia também em seu
princípio social. A sociedade da qual saíra era muito desigual e muito injusta. O regime de castas, apesar de muito atenuado
que o fora pelo cristianismo, ainda subsistia. A Igreja parida do povo logo teve medo do povo; dele se distanciou e fez aliança
com a feudalidade, sua velha inimiga e, depois, com a realeza vitoriosa da feudalidade. Ela se associou às tristes vitórias da
realeza sobre as comunas que ela própria ajudara em seu nascimento. A catedral de Reims apresenta, ao pé de um de seus
campanários, a imagem dos burgueses do século XV punidos por terem resistido à criação de um imposto[1122]. Esta figura
do povo torturado é um estigma para a própria Igreja. A voz dos supliciados erguia-se com os cantos. Aceitava Deus, de boa-
vontade, uma tal homenagem? Não sei; mas parece que as igrejas batidas com corvéias, erguidas com os dízimos de um povo
esfaimado, todas decoradas com os brasões de orgulho dos bispos e dos senhores, preenchidas com seus insolentes jazigos,
deviam, cada dia mais, agradá-Lo menos. Sob essas pedras, havia muitas lágrimas.

A Idade Média não podia bastar ao gênero humano. Ela não podia sustentar sua pretensão orgulhosa de ser a última
palavra do mundo, a Consumação. O templo devia se alargar. O abraço divino que os braços abertos do Cristo prometia ao
gênero humano, ele devia se realizar. Neste estreitamento devia se operar a maravilha do amor, a identificação do objeto
amante e do objeto amado. A humanidade devia reconhecer o Cristo em si mesma, perceber em si a perpetuidade da
encarnação e da paixão. Ela O viu em Jó e em José e O reencontrou nos martírios. Esta intuição mística de um Cristo eterno,
renovada sem cessar na humanidade, ela se mostra em todo lugar na Idade Média, confusa, é verdade, e obscura, mas cada dia
adquirindo um novo grau de clareza. Ela era espontânea e popular, estranha, frequentemente contrária à influência eclesiástica.
O povo, sempre obedecendo o padre, distingue muito bem o padre do santo, o Cristo de Deus. Ele cultiva, de era em era, ele
eleva, ele depura este ideal na realidade histórica. Este Cristo de doçura e de paciência, ele aparece em Luís o Debonário
apupado pelos bispos; no bom rei Roberto, excomungado pelo Papa; em Godofredo de Bouillon, homem de guerra e gibelino,
mas que morre virgem em Jerusalém, simples barão do Santo Sepulcro. O ideal ainda cresceu em São Thomas Becket de
Canterbury, desamparado pela Igreja e morrendo por ela. Ele atinge um novo grau de pureza em São Luís, rei-sacerdote e rei-
homem. Repentinamente, o ideal generalizado vai se derramar no povo; ele vai se realizar no século XV, não somente na
mulher pura, na Virgem; chamemo-la por seu nome popular, na Pucelle (Donzela)[1123]. Esta, em quem o povo morre pelo
povo, será a última figura do Cristo na Idade Média.

Esta transfiguração do gênero humano, que reconheceu a imagem de seu Deus em si, que generalizou o que fora
individual, que fixou em um presente eterno o que se acreditara temporário e pretérito, que pôs sobre a terra um céu; ela foi a
redenção do mundo moderno, mas pareceu a morte do cristianismo e da arte cristã. Satã lançou sobre a Igreja inacabada um
riso de imenso escárnio; este riso está nas figuras grotescas dos séculos XV e XVI. Ele acreditou ter vencido; ele jamais pôde
aprender, o insensato, que seu triunfo aparente não é sempre senão um meio. Ele absolutamente não viu que Deus não é menos
Deus por se ter feito humanidade; que o templo não foi destruído senão para se tornar grande como o mundo. Ele não viu que,
para ser imóvel, a arte divina não está morta, mas que somente retoma o fôlego; que, antes de subir a Deus, a humanidade
deve, ainda uma vez, descer em si, pôr-se à prova, examinar-se, completar-se na fundação de uma sociedade mais justa, mais
igual, mais divina.

Enquanto aguarda, é preciso que o velho mundo passe, que o traço da Idade Média finde por se apagar, que vejamos
morrer tudo aquilo que amávamos, o que nos aleitou pequenininhos, o que foi nosso pai e nossa mãe, o que nos cantava
docemente no berço. É em vão que a velha igreja gótica ergue sempre ao céu suas torres suplicantes, em vão que seus vitrais
choram, em vão que seus santos fazem penitência em seus nichos de pedra... “Quando a torrente das grandes águas transbordar,
elas não chegarão até o Senhor”. Este mundo condenado vai-se como o mundo romano, o mundo grego, o mundo oriental. Ele
colocará seus despojos ao lado dos daqueles. Deus acordar-lhe-á, tanto quanto, como a Ezequias, um recuo de graus no
relógio solar[1124].

Ai!, está então tudo acabado?! Não haverá misericórdia? É preciso que a torre freie seu ímpeto na direção do céu? é
preciso que a flecha volte a cair, que o domo desmorone sobre o santuário, que este céu de pedra se prostre e pese sobre
aqueles que o adoraram?... A forma finda, tudo é findo? Nada há para as religiões após a morte? Quando o querido e precioso
despojo, tirado de nossas mãos trêmulas, desce ao caixão, nada resta?... Ah! Eu me fio, pelo cristianismo e pela arte cristã,
nesta própria palavra que a Igreja dirige a seus mortos: “Quem crê em mim não pode morrer”. Senhor, o cristianismo
acreditou, amou, compreendeu; nele se reencontraram Deus e o homem. Ele pode mudar de roupa, mas jamais perecer. Ele se
transformará para ainda viver. Ele aparecerá, uma manhã, aos olhos daqueles que acreditam guardar seu túmulo e ressuscitará
no terceiro dia.

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ESCLARECIMENTO.

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Este volume, já por demais extenso, não pôde conter os documentos que deviam terminá-lo; nós os enviamos aos volumes seguintes. Eles foram tirados em
grande parte dos Arquivos do Reino. Uma palavra somente sobre esses Arquivos, sobre as funções que fizeram ao autor um dever aprofundar a história de nossas
antiguidades, sobre o sossegado teatro de seus trabalhos, sobre o lugar que os inspirou. Seu livro é sua vida; é o resultado quase necessário das circunstâncias onde ele se
viu colocado. Esta consideração valer-lhe-á, talvez, alguma indulgência junto a um leitor equitativo.

Empregado nos Arquivos do Reino e Professor na Escola normal, ele, desde há muitos anos, concentrou seus estudos na história nacional. Os fatos, as idéias
recolhidas neste rico depósito dos atos oficiais da monarquia, eram, graças a essa dupla posição, ensinados aos jovens professores que puderam, de seu turno, espalhá-los
sobre todos os pontos da França.

O caroço dos arquivos é o Tesouro das Cartas (Trésor des Chartes) e a Coleção dos registros do parlamento. A série dos monumentos judiciários, à qual
pertencem esses registros, preenche a Santa Capela e as águas-furtadas do Palácio de Justiça. O Tesouro das Cartas, e a parte mais considerável dos Arquivos (secções
histórica, dominial e topográfica, legislativa e administrativa), ocupam no (bairro do) Marais a tripla mansão de Clisson, Guise e Soubise; antiguidade dentro de antiguidade,
história dentro da história. Uma torre do século XIV guarda a entrada da real colunata do palácio dos Soubise[1125]. Nele entrando, explica-se a orgulhosa divisa dos
Rohan, seus avós: “Roi je ne suis, Prince ne daigne, Rohan je suis” (Rei não sou, Princípe não consinto ser, Rohan eu sou).

O Tesouro das Cartas contém em seus registros a sequência dos atos do governo desde o século XIII, em suas cartas, os atos diplomáticos da Idade Média,
entre outros, aqueles que trouxeram a reunião de diversas províncias, os títulos de aquisição da monarquia, o que constituía, como se dizia, os direitos do rei . Era o velho
arsenal com o qual nossos reis tomavam as armas para bater a feudalidade nas brechas (da lei). Fixado em Paris por Filipe Augusto, este depósito foi confiado ora ao
Guarda dos Selos[1126], ora a um simples clérigo do rei, a um cônego da Santa Capela, em último lugar, ao Procurador-Geral. Entre esses tesoureiros das cartas , é
preciso citar um Budé, dois de Thou[1127]. Os percalços desse precioso depósito não foram outros senão aqueles da monarquia. Cada vez que a autoridade real tomava
mais força e sobressaía-se, ficava-se inquieto com o Tesouro das Cartas; verdadeiro tesouro, de fato, no qual se encontrava títulos a explorar ou onde se pescava terras,
castelos, muitas vezes províncias. Os filhos de Filipe o Belo, esta geração ávida, mandaram fazer o primeiro inventário. Carlos V, bom clérigo e verdadeiro homem
prudente, quando a França, após as guerras dos Ingleses, procurava-se a si própria, visitou o tesouro e se afligiu com a confusão em que o mesmo se encontrava (1371): o
tesouro estava como a França. Sob o reinado de Luís XI, novo inventário; outro sob Carlos VIII. No reinado de Henrique III, a desordem foi ao cúmulo. Sábios homens
ajudaram a reorganizá-lo: Brisson e du Tillet, que trabalhavam para o rei, carregam e dissipam os pedaços. Du Tillet então escrevia sua grande obra da France
Ancienne (A França Antiga), da qual imprimiu diversas partes. Mas este inventário dos direitos da monarquia não foi devidamente feito senão com Richelieu, no século
XVII. Ninguém soube, como este último, enriquecer e explorar os arquivos; por toda a França ele arrasava os castelos e reunia os títulos; foi um grande e admirável
coletor de antiguidades deste gênero. Os “sabujos” que empregou nesta caça de atos diplomáticos, os Du Puy, os Godefroi, os Galaud, os Marca, perseguiram
infatigavelmente sua obra, reunindo, catalogando, interpretando. Um dos principais frutos deste trabalho é o livro dos Droits du Roy, de Pierre Du Puy. É um sábio e
inteligente livro, espantoso de erudição e de servilismo intrépido. Lá vereis que nossos reis são os legítimos soberanos da Inglaterra, que eles sempre possuiram a Bretanha,
que a Lorena, dependência original do reino “francês” da Austrásia e da Lotaríngia, não passou aos imperadores germânicos senão por usurpação, etc. Uma tal erudição
era preciosa para o ministro determinado a completar a centralização da França. Du Puy ia, escavando os arquivos, encontrando títulos desconhecidos, colorindo as
aquisições mais ou menos legítimas; o arquivista conquistador marchava à frente dos exércitos. Assim, quando se desejou deitar a mão sobre a Lorena, Du Puy foi enviado
aos arquivos dos Três Bispados; depois, o duque foi intimado a mostrar seus títulos. O Languedoc foi igualmente desafiado por Galand a provar, por escrito, seu direito de
terra alodial, de propriedade livre. Alegava-se, em vão, os direitos antigos, a tradição, a posse imemorial: nossos arquivistas queriam papéis escritos.

Esse armazém de processos políticos, esse depósito de tantos direitos duvidosos, nosso Tesouro das Cartas, era cercado de um formidável mistério. Era
necessária uma carta selada ao tesoureiro das cartas para ter direito a consultá-lo, e este cargo de tesoureiro findou por ser reunido àquele de Procurador-Geral junto ao
parlamento de Paris. M. d’Aguesseau provocou o banimento, a trinta léguas de Paris, de um homem que viera procurar-se algumas cópias dos documentos depositados no
Tesouro e que delas fazia comércio[1128].

O confisco monárquico fizera o Tesouro das Cartas; o confisco revolucionário fez nossos arquivos tais como os temos hoje. Ao velho Tesouro das Cartas,
outrora proscrito, vieram se juntar os tesouros de Saint-Denis, de Saint-Germain-des-Prés e de tantos outros monastérios. Os veneráveis e frágeis papiros que ainda
carregam os nomes de Childeberto, de Clotário, saíram de seu asilo eclesiástico e vieram comparecer a esta grande revista dos mortos. Nesta concentração violenta e
rápida de tantos títulos, muitos pereceram, muitos foram destruídos: os pergaminhos também tiveram seu tribunal revolucionário sob o título de Bureau du triage des titres
(Escritório da triagem dos títulos), tribunal expedito, terrível em seus julgamentos: uma infinidade de monumentos foi abatida com uma qualificação mortífera: título feudal;
isto dito, isto era um fato. O confisco revolucionário, não se apoiando sobre a autoridade dos textos, dos títulos escritos, como o confisco monárquico, não tinha o que fazer
com esses pergaminhos. Seu título único era o Contrato Social, assim como o Corão para aquele que queimou a biblioteca de Alexandria.

Se a Revolução pouco serviu à ciência pelo exame e pela crítica dos monumentos, ela a serviu muito pela imensa concentração que operou. Ela aspirou
avidamente toda esta poeira: monastérios, castelos, depósitos de todo gênero, ela esvaziou tudo, derramou tudo sobre o soalho, reuniu tudo. O depósito do Louvre, por
exemplo, estava coberto de papéis, mesmo as janelas estavam obstruídas, enquanto o arquivista alugava várias peças à Academia. Caso se desejasse fazer pesquisas, era
necessária uma vela em pleno meio-dia. A Revolução, de uma vez por todas, para aí levou o dia.

Os Du Puy, os Marca, desta segunda época (eu falo somente da ciência), foram dois deputados da Convenção, os MM. Camus e Daunou. M. Camus, galicano
como seu predecessor Du Puy, serviu à república com a mesma paixão que Du Puy demonstrou para a monarquia. M. Daunou, sucessor de M. Camus, foi, para falar
apropriadamente, o fundador dos Arquivos e, nesta época, os Arquivos da França se tornaram aqueles do mundo inteiro. Esta prodigiosa classificação pertence-lhe. Era,
então, um glorioso tempo para os Arquivos. Enquanto M. Daru abria, pela primeira vez, os misteriosos depósitos de Veneza, M. Daunou recebia os despojos do Vaticano.
De outra parte, do Norte e do Midi, chegavam ao Hôtel de Soubise os arquivos da Alemanha, da Espanha e da Bélgica. Dois de nossos colegas foram procurar aqueles
da Holanda[1129].

Hoje, os Arquivos da França já não são mais aqueles da Europa. Ainda se distingue, sobre as portas de nossas salas, os traços das inscrições que nos lembram de
nossas perdas: Bulas, Dataria etc. Todavia, resta-nos ainda cerca de cinquenta mil pastas. Ainda que as províncias se recusem a deixar reunir seus arquivos, ainda que
mesmo vários ministérios continuem a guardar os seus, o estorvo findará por decidi-los a deles se desembaraçarem. Nós venceremos pois somos a morte, dela possuímos a
atração poderosa; toda revolução se faz em nosso proveito. Basta-nos aguardar: “Patiens, quia æternus” (NT: Paciência, ainda que eterna).

Recebemos, cedo ou tarde, os vencidos e os vencedores. Nós temos a monarquia bela e bem presa do alfa ao ômega, a carta de Childeberto ao lado do
testamento de Luís XVI; nós temos a república em nosso armário de ferro, as chaves da Bastilha[1130], a minuta dos direitos do homem, urnas dos deputados e a
grande máquina republicana, o canto dos assinados. Não existe, até o pontificado, quem não nos tenha deixado alguma coisa: o Papa nos retomou seus arquivos, mas nós
guardamos, por represálias, as macas sobre as quais ele foi carregado à sagração do Imperador. Ao lado desses joguetes sangrentos da Providência, está posicionado o
imutável estalão das medidas que cada ano vimos consultar. A temperatura é invariável nos Arquivos.

Quanto a mim, quando entrava pela primeira vez nestas catacumbas manuscritas, nesta admirável necrópole dos monumentos nacionais, eu poderia, com prazer,
ter dito como aquele Alemão que entrava no monastério de Saint-Vannes: Eis aqui a morada que escolhi e meu repouso pelos séculos dos séculos!

Entretanto, não tardei a perceber, no silêncio aparente dessas galerias, que aí havia um movimento, um murmúrio que não era o da morte. Esses papéis, esses
pergaminhos aí deixados há muito tempo, não pediam nada melhor que não fosse virem à luz. Esses papéis não são papéis, mas as vidas dos homens, das províncias, dos
povos. Inicialmente, as famílias e os feudos, brasonadas em sua poeira, reclamavam contra o esquecimento. As províncias se sublevavam, alegando que, erradamente, a
centralização acreditara tê-las aniquilado. As ordenanças de nossos reis pretendiam não ter sido apagadas pela multidão das leis modernas. Se tivéssemos desejado escutá-
los todos, como dizia esse coveiro no campo de batalha, não haveria sequer um morto. Todos viviam e falavam, eles cercavam o autor com um exército de cem línguas que
fazia calar rudemente a grande voz da República e do Império.

Calmamente, senhores mortos, procedamos com ordem, por favor. Todos vós tendes direitos sobre a história. O indivíduo é belo como indivíduo, o geral como
geral. O Feudo tem razão, a Monarquia mais, mais ainda o Império. Por vós, Godofredo! Por vós, Richelieu! Por vós, Bonaparte!... A província deve reviver; a antiga
diversidade da França será caracterizada por uma robusta geografia. Ela deve reaparecer, mas à condição de permitir que a diversidade, apagando-se pouco a pouco, a
identificação do país a suceda por sua vez. Reviva a monarquia, reviva a França! Que um grande teste de classificação sirva uma vez de fio neste caos. Uma tal
sistematização servirá, ainda que imperfeita. Que a cabeça mal se encaixe sobre os ombros, que a perna mal se alinhe à coxa, ainda assim é alguma coisa reviver!

E, à medida que eu soprava sua poeira, eu os via se erguerem. Eles erguiam do sepulcro uma mão, uma cabeça, como no Julgamento Final de Michelangelo ou
na Dança dos Mortos. Esta dança galvânica que conduziam à minha volta, eu tentei reproduzi-la neste livro. Alguns não acharão isso nem belo, nem verdadeiro; eles
ficarão sobretudo chocados com a dureza das oposições provinciais que eu assinalei. Basta-me observar aos críticos que pode se dar que eles não reconheçam seus
próprios avós, que temos entre todos os povos, nós outros Franceses, esse dom que um antigo desejava, qual seja, o dom de esquecer. Os cantos de Rolando e de Renaud,
etc. foram certamente populares; as fábulas sucederam-lhes e, tudo isso já estava tão distante no século XVI, que Joachim du Bellay disse em próprios termos: “Não
existe, em nossa antiga literatura, senão o Romance da Rosa”. Ao tempo de Du Bellay, a França era Rabelais, mais tarde Voltaire. Rabelais está, agora, no domínio da
erudição e Voltaire já é menos lido. Assim vai esse povo, transformando-se e esquecendo a si mesmo.

A França una e identificada pode, hoje, bem renegar essa antiga França heterogênea que descrevi. O Gascão não desejará reconhecer a Gasconha, nem o
Provençal a Provença. Ao que responderei que não existe mais nem Provença, nem Gasconha, mas uma França. Eu hoje a entrego, esta França, na diversidade de suas
antigas originalidades de províncias. Os últimos volumes desta história a apresentarão em sua unidade.

FIM DO TOMO SEGUNDO

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Leia também:

Joseph Fouché - O retrato de um homem político, por Stefan Zweig, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia;

O País do Bom Senso, por Luiz Fernando SMC;

História da França - Tomo I - Livros I e II (até 987 d.C.), por Jules Michelet, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia;
História da França - Tomo III - Livros V e VI (anos 1270 a 1380), por Jules Michelet, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia.
História da FrançaTomo IV - Livros VII, VIII e IX (anos 1380 a 1422), por Jules Michelet, tradução e publicação de Luiz Fernando Serra Moura Correia.

Disponíveis em versão eletrônica na

[1] a fonte em inglês foi, basicamente, a tradução realizada por G. H. Smith, F.G.S, publicada em 1882 pela editora D. Appleton and Company/Nova York, tombada junto
à Universidade de Toronto e digitalizada pela organização Internet Archive – www.archive.org – com fundos da Microsoft Corporation. Como foram várias dezenas de
notas extraídas a partir desta obra, preferi fazer essa menção particular a ter de citá-la todas as vezes em que a empreguei.
[2] Vide o Tomo Primeiro. (NT: Tratado de Estrasburgo, feito em língua românica e em alamânico – vide o Tomo I já vertido para o português pelo Tradutor que é
também seu Editor).
[3] Scrip. Rerum. Fr., t. VII, p. 616-617. Capitul., anni 853 – Vide também Guizot, Cours de 1833, t. III, p. 27. (NT: Nos dias atuais, a França conta com 101
departamentos, sendo 96 na França Metropolitana (continental) e outros 5 no Ultra-Mar. Na época do Império Napoleônico, em virtude das anexações de territórios, o
número atingiu 130 departamentos e, após a restauração da Monarquia (época em que este Tomo II foi escrito), voltou a atingir 86 - fonte:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Département_français)
[4] (NT) no original: ballons des Vosges . A partir de 1989, essa região passou a contar com o Parque Nacional dos Balões dos Vosges (Parc Naturel Régional des
Ballons des Vosges), cuja área cobre partes dos departamentos da Alsácia, Lorena e Franco-Condado. Vide http://www.parc-ballons-vosges.fr/ e
http://br.rendezvousenfrance.com/pt-br/a-descobrir/na-alsacia e https://fr.wikipedia.org/wiki/Parc_naturel_régional_des_Ballons_des_Vosges)
[5] Arthur Young, Voyage Agronomique, t. II da tradução, p. 189. “A França pode ser dividida em três partes principais, onde a primeira compreende os vinhedos, a
segunda, o milho e a terceira, as oliveiras. Essas plantas formam os três distritos: 1º) do norte, onde não há vinhedos; 2º) do centro, onde não há milho; 3º) do sul, onde
encontra-se as vinhas, as oliveiras e os vinhos. A linha de demarcação entre os países viníferos e aqueles onde não se cultiva a vinha é, como eu mesmo observei em
Coucy, a três léguas do norte de Soissons; em Clermont no Beauvoisis, em Beaumont no Maine, e em Herbignai próximo a Guérande, na Bretanha” – Essa limitação,
talvez muito rigorosa, é, não obstante, exata.
O quadro abaixo das importações, com as quais o reino vegetal enriqueceu-se na França, dá uma alta idéia da variedade infinita de solo e clima que caracteriza nossa
pátria:
“O pomar de Carlos Magno, em Paris, passava por único, porque nele via-se macieiras, pereiras, aveleiras, sorveiras e castanheiras. A batata, que hoje alimenta uma tão
vasta parte da população, não nos chegou do Peru senão ao fim do século XVI. São Luís trouxe-nos o ranúnculo inodoro das planícies da Síria. Embaixadores utilizaram de
sua autoridade para procurar em favor da França o ranúnculo dos jardins. É à cruzada do trovador Thibaut, conde de Champagne e de Brie, que Provins* deve seus jardins
de rosas. Constantinopla forneceu-nos a castanheira da Índia no início do século XVII. Durante muito tempo, enviamos à Turquia a tulipa, das quais hoje possuimos
novecentas espécies mais belas que a de outros países. O olmo mal era conhecido na França antes de Francisco I (NT: rei francês de 1515 a 1547) e a alcachofra antes
do século XVI. A amoreira não foi plantada em nossos climas senão em meados do décimo-quarto século. Fontainebleau é devedor de suas chasselas ** deliciosas à Ilha
de Chipre. Fomos procurar o salgueiro-chorão nas vizinhanças da Babilônia; a acácia, na Virginia; o fresno negro e a tuia, no Canadá; a maravilha, no México; o heliotropo,
nas Cordilheiras; o reseda, no Egito; o milhete, na Guinéia; a mamona e o celtis, na África; o maracujá e o tupinambo, no Brasil; a cabaça e o ágave, na América; o tabaco,
no México; o amomum, na Madeira; a angélica, nas montanhas da Lapônia; o hemerocalis amarelo, na Sibéria; a balsamine, Índia; a tuberosa na ilha do Ceilão (NT: desde
1972, o Ceilão se chama Sri Lanka); a uva-espim*** e a couve-flor, no Oriente; a raiz-forte, na China; o ruibarbo, na Tartária; o trigo sarraceno, na Grécia; o linho da
Nova Zelândia, nas terras austrais”. Depping, Description de la France, t. I, p. 51 – Vide também de Candeolle, sur la Statistique végétale de la France, e A. de
Humboldt, Géographie Botanique.
* (NT) Provins: cidade a 77 km de distância de Paris conhecida pela sua confeitaria à base de rosas, cujas principais especialidades são o confeito de pétalas de rosa, o
mel com rosas de Provins, as balas de rosa ou, ainda, o xarope de rosa. As roseiras, ainda hoje, produzem.
** (NT) Chasselas: espécie de uva vinífera branca. “Cultivada principalmente na Suíça, é muito conhecida como Fendant na região de Valais e Vaud. Na França é usada
junto com o Sauvignon Blanc na produção do "Pouilly-sur-Loire" (http://www.vinhovirtual.com.br/uvas-333-Chasselas). Na Alemanha é conhecida pelo nome Gutedel
(https://fr.wikipedia.org/wiki/Chasselas_(cépage).
*** (NT) uva-espim: há diversos nomes comuns para a espécie Berberis vulgaris.
Texto original: épine-vinnete. Vide vide http://jb.utad.pt/especie/berberis_vulgaris e http://www.plantamed.com.br/plantaservas/especies/Berberis_vulgaris.htm)

[6] (NT) Fougère significa feto.


[7] (NT) fronteira, divisa.
[8] (NT): Os bretões são conhecidos por sua teimosia, por sua obstinação,por terem “cabeça dura” (tête dure), serem “cabeçudos” (têtus) e, por essa característica, há
várias anedotas envolvendo os bretões. Neste parágrafo, todavia, o Autor transforma a característica derrisória em virtude.
[9] Vide o Tomo I, Livro I, ao final do Capítulo III.
[10] Ibid.
[11] Ele avançou longe sobre uma linha reta, sem olhar à direita ou à esquerda; e a primeira consequência desse idealismo, que parecia dar tudo ao homem, foi, como se
sabe, o aniquilamento do homem na visão de Malebranche e o panteísmo de Spinosa.
[12] São dois fatos que constato. Mas o quê não seria necessário acrescentar se deseja-se fazer justiça a essas duas cidades heróicas e, assim, pagar-lhes tudo o que a
França deve às mesmas?
Nantes ainda possui uma originalidade que é preciso assinalar: a perpetuidade das famílias comerciantes, as fortunas lentas e honoráveis, a economia e o espírito de família;
alguma aspereza nos negócios, porque se deseja honrar seu comprometimento. Os jovens aí se notam e os costumes aí valem mais que em qualquer outra cidade marítima.
[13] Por exemplo, nos campanários inclinados, ou talhados em jogos de cartas, ou pesadamente escalonados de balaustradas que se vê em Tréguier e em Landerneau; na
catedral tortuosa de Quimper, onde o coro está de través em relação à nave; na tripla igreja de Vannes, etc. Saint-Malo não possui catedral, apesar de suas belas lendas.
Sobre essas lendas, vide os Acta SS. Ord. S. Benedicti, sæc. I e D. Morice, Preuves de l’Histoire de Bretagne, t. I.
[14] O autor se encontrava em Saint-Malo, no mês de setembro de 1831.
[15] No arsenal, sem contar as baterias.
[16] Por exemplo, o Républicain, vaso de 120 canhões, em 1793.
[17] Esse número, que foi-me garantido pelas pessoas do país, talvez seja exagerado. Perde-se, no total, oitenta e oito embarcações por ano na costa ocidental, de
Dunkerke a Saint-Jean de Luz. Discurso de M. Arago, Moniteur, 23 março de 1833.
[18] Dieppe, le Hâvre, la Rochelle, Cette, etc.
[19] Goélands, goélands / Ramenez-vous nos maris, nos amants! (NT): Gaivotas, gaivotas/ Trazei-nos nossos maridos, nossos amantes.
[20] (NT) Triste até à morte.
[21] Conforme atestado pelos próprios policiais. De resto, eles parecem encarar o destroço como uma espécie de direito de aluvião. Esse terrível direito de destroço
era, como se sabe, um dos privilégios feudais mais lucrativos. O Visconde de Léon dizia, referindo-se a um recife: “Eu ali tenho uma pedra mais preciosa que aquelas que
ornamentam as coroas dos reis”.
(NT): O droit de bris (literalmente o “direito de destroço”), era o direito que tinha o senhor feudal sobre as cargas e destroços provenientes de um naufrágio que
tocassem as praias de seu feudo; embora tivesse sido abolido em diversas regiões, ainda no século XII, ele se estendeu, na Bretanha, até o ano de 1681, embora a
proibição não contasse com a simpatia da população que, em algumas ocasiões, chegou a enfrentar a polícia e, em outras, simplesmente manteve o hábito da pilhagem.
Poderia, para esta tradução, ter sido empregado o termo “direito aos salvados” (com apoio no antigo Código Comercial Brasileiro, Lei nº 556 de 1850, artigos 731 a 739,
“Dos Naufrágios e Salvados”); entretanto, não haveria a correta correspondência literal e, mais importante, a correspondência quanto ao titular do direito pois, no direito
de destroço, o bem que era transportado por um navio que vem a naufragar é do proprietário da terra onde chega, trazido pela maré, enquanto no direito aos salvados
mantém-se a propriedade de quem o mandara transportar, não havendo, portanto, translação do direito de propriedade. Sobretudo em razão desta última diferença, o
Tradutor optou pela expressão “direito de destroço”. – para o droit de bris v id e http://fr.wikipedia.org/wiki/Droit_de_bris e, para o Código Comercial, vide
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l0556-1850.htm).
[22] Eu narro essa tradição da região sem garanti-la. É supérfluo acrescentar que os vestígios desses costumes desaparecem a cada dia.
[23] (NT): Plogoff é uma comuna francesa, na qual se encontra a Baía dos Trespassados. Uma lenda bretã conta que, na mencionada baía, Gradlon abadonou a
princesa, sua filha que, encantada pelo diabo, arrebatara as chaves da cidade de Ys do pescoço de seu pai e as entregara àquele que, então, disfarçado de príncipe, abriu
as portas da cidade para uma noite de tempestade. Gradlon consegue fugir, levando sua filha. Mas o bispo de Quimper viu o diabo desaparecer e compreendeu o erro da
jovem, o que faz com que Gradlon abandone a princesa à maré em fúria, enquanto a cidade, atrás de si, desaparece no oceano. Diz-se que, desde então, a princesa chora
sua tristeza no passo do Raz de Sein, encantando marinheiros até à Baía dos Trespassados. Diz-se que o sino de Ys ainda pode ser escutado nas noites de tempestade .
Quanto à Baía dos Trespassados, há uma lenda que conta que os cadáveres dos náufragos aí vinham dar com muita frequência. Entretanto, a lenda parece encontrar eco
na realidade da infeliz atividade marítima de passagem ou pesca costeira nas paragens do passo do Raz de Sein, pois a configuração das correntes da maré e os ventos
dominantes do setor oeste lançavam, de fato, os corpos dos marinheiros náufragos sobre a praia (fontes: https://fr.wikipedia.org/wiki/Baie_des_Tréspassés_(Cap_Sizun)
e https://fr.wikipedia.org/wiki/Plogoff)
[24] Voyage de Cambry, t. II, p. 241-257. (NT) Provérbios bretões: “Nada passou o Raz sem mal ou sem temor” e “Socorrei-me, grande Deus, na ponta do Raz! Meu
barco é tão pequeno e o mar é tão grande!”
[25] Cambry, t. I, p. 109. Eu não tenho aqui outro garantidor. Para todos os outros fatos que tomei emprestado dessa agradável obra, eles foram-me confirmados pelos
homens do país.
[26] Cambry, t. II, p. 77 – Tolland’s Letters, p. 2-3. Nas Hébridas e outras ilhas, o homem tomava a mulher, para teste, por um ano; se ela não lhe conviesse, ele a cedia
a um outro (Martin’s Hebrides, etc.). Ainda há pouco, o paisano que quisesse se casar, pedia a mulher para o Lord de Barra, que reinava nessas ilhas há trinta e cinco
gerações. Sollin, c. 22, assegura que o rei das Hébridas não tinha mulheres para si, mas que usava todas elas.
[27] Vide Tomo I, Livro I, cap. II.
[28] (NT) Não há um consenso sobre o local exato da floresta de Brocéliande. Antigamente, ela era associada à floresta de Quintin. Porém, desde meados do século
XIX, vários autores a localizam na floresta de Paimpont, sendo a mais aceita na cultura popular. Na França, apenas as cidades vizinhas a esta última floresta podem utilizar
o nome “Brocéliande”. Outras teorias propõem sua localização próxima de Huelgoat, de Mont Saint-Michel, de Dol, em Paule, quer dizer, na Normandia. (a partir de
https://fr.wikipedia.org/wiki/Brocéliande)
[29] Cambry, t. II, p 253-264. {NT: “Clamadores”, no original: criérien. É sempre desconfortável traduzir palavras vinculadas a lendas ou ao folclore estrangeiro; o
Tradutor utilizou a palavra “clamador” pelo sentido da frase, uma vez que o verbo crier (gritar, berrar, proclamar, vociferar etc.), donde criérie (berreiro, gritaria, bulha),
admite, como um de seus significados, o verbo “clamar”. Vide, a propósito, o tópico “Ombres” (Sombras), p. 201, do tomo IV, do Dictionnaire Infernal, 2ª edição, 1826,
de Collin de Plancy, disponível em www.books.google.com}.
[30] Vide as figuras na obra de M. de Fréminville e no Cours d’Antiquités monumentales de la France, de M. de Caumont, secretário da sociedade dos antiquários da
Normandia. Essa sábio foi o primeiro a aplicar uma crítica severa sobre essa parte da arqueologia nacional. (NT: há várias imagens e sítios na internet a respeito das
pedras de Locmariaquer, principalmente sobre as Pierres Plates e centenas, talvez milhares, sobre os dólmens e menires da Bretanha).
[31] É a forma que a tradição toma em Anjou. Transplantada para as belas províncias do Loire, ela assim revela um caráter gracioso e, todavia, grandioso em sua
ingenuidade.
[32] Esse astro é sempre temível para as populações célticas. Elas dizem-lhe para desviarem sua influência maléfica: “Tu não encontras o bem, deixa-nos bem”. Quando
ela se ergue, eles põem-se de joelhos e rezam um Pater e uma Ave (Cambry, t. III, p. 35). Em vários lugares, eles a chamam Nossa Senhora. Outros se descobrem,
tirando seus chapéus, quando a ‘estrela’ de Vênus se mostra (Cambry, I, 193) – O respeito pelos lagos e pelas fontes foi também conservado: eles para aí levam, em um
determinado dia, manteiga e pão (Cambry, III, 35. Vide também Depping, I, 76) – Mesmo em 1788, em Lesneven, no primeiro dia do ano, cantava-se solenemente: GUY-
NA-NÉ* (Cambry, II, 26). – No Anjou, as crianças pediam suas estrenas**, gritando: MINHA GUILANEU*** (Bodin, Recherches sur Saumur), no departamento de
Haute-Vienne, gritando: GUI-GNE-LEU – Ainda há poucos anos, nas Órcades, a noiva ia ao templo da Lua e aí invocava Woden (? Logan, II, 360) – A festa do Sol ainda
se celebrava num vilarejo do Delfinado, segundo M. Champollion-Figeac (Sur les Dialectes du Dauphiné, p. 11) – Nas cercanias de Saumur, ia-se, no dia da Trindade,
ver aparecerem três sóis – No dia de São João, ia-se ver erguer-se o sol nascente (Bodin, loco citato) – Os Angevinos chamavam o Sol de Senhor e a Lua de Dama
(idem, Rech. sur l’Anjou).
* (NT): GUI-NA-NÉ: Eis o visco! (gui ou guy = visco, como ficou dito no Tomo I, Livro I, cap. II).
** (NT): “estrenas”, no original étrennes: as estrenas são um pequeno presente oferecido no início do ano, no início do mês de janeiro. É extremamente provável que tenha
sua origem no nome da deusa romana Strena (ou Strenia) que, na antiguidade, era celebrada no dia primeiro de janeiro. Inicialmente, apenas uma dádiva de plantas que
trazem felicidade, desenvolveu-se, ainda no Império Romano, para uma dádiva de alimentação, de vestimenta, dinheiro, objetos preciosos, etc. De origem pagã, foi
combatida pelos pais da Igreja (v.g. Sto. Agostinho), que a consideravam uma prática diabólica (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Étrennes e
http://fr.wikipedia.org/wiki/Strena).
***(NT): Guilaneu (ou, ainda, Guillaneu, l’aguilaneu, l’aguillanu, la Dilannu) e, ainda “gui l’an neuf” (visco do ano-novo), é uma personagem folclórica evocada
durante o período do Advento (as quatro semanas anteriores ao Natal cristão) até o ano-novo. É uma amazona mística que é encontrada em canções e que simboliza a
busca pelo Natal. As crianças, cantando, seguiam um cavalo ornamentado e pediam presentes aos habitantes das aldeias, vilarejos e cidades (a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Guillaneu)
[33] (NT): Segundo o dicionário Larousse, a palavra “chouan” designa o camponês monarquista do oeste da França inssureto contra a Primeira República (1793-1800),
sendo que os chouans devem seu nome ao apelido de um de seus primeiros chefes, Jean Cottereau ou Jean Chouan, porque ele incentivava seus homens aos gritos de
chat-huant (nome francês da Strix aluco que, no Brasil, é conhecida como “coruja-do-mato”). A Chouaneria ( Chouannerie) foi uma guerra civil que, quando da
Revolução Francesa, opôs republicanos e monarquistas no Oeste da França, na Bretanha, no Maine, no Anjou e na Normandia. Estava estreitamente ligada à Guerra da
Vendéia. Os dois conflitos em conjunto são, por vezes, conhecidos como as Guerras do Oeste (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Chouannerie)
[34] (NT): O Autor trouxe aqui um ditado em língua francesa, em forma de versinho (avec ses îles du Morbihan, plus nombreuses qu’il n’y a de jours dans l’an) a partir
do original em língua bretã (Larcin a rer, é héss quemend a inizi ir Morbihan, ell a zë a zou er blaï), para se referir às mais de 365 ilhas do Golfo do Morbihan.
[35] (NT) “Os azuis” (les bleus) são as tropas governistas republicanas, após a abolição da Monarquia pela Revolução Francesa.
[36] Na magnífica obra de M. O’Higgins (Celtic Druids, in-4º, 1829), as dimensões são muito exageradas; ele eleva a vinte e quatro pés a altura das principais pedras de
Carnac.
[37] Na Cornualha, segundo Cambry. – Ocorreu-lhes, igualmente, nas guerras dos chouans, os homens baterem em seus chefes e, logo em seguida, obedecerem-lhes. Eu
garanto essa anedota.
[38] Vide os esboços de Shiel, na eloquente tradução de duas damas, em 1828, com seus consideráveis acréscimos.
[39] vide meu III vol.
[40] (NT) “Domaniers”: é possível que o Autor estivesse se referindo à figura do “domaine congéable”, que era um contrato entre um proprietário de terras e um
explorador agrícola, muito frequente na Baixa Bretanha, pelo qual o proprietário de um bem rural, geralmente o “senhorio” cede a um “tomador” (no Brasil, a figura
jurídica mais próxima seria a do “arrendatário”), por meio de uma renda anual, o gozo da “tenura” [esta, no direito feudal, designa a porção de uma terra senhorial ocupada
e trabalhada por um vilão (camponês livre), por oposição à “reserva”, que era destinada aos servos (camponeses não livres que pertenciam ao senhor)], aí compreendendo
a propriedade das superfícies, o que o domanier aí planta (produções agrícolas, árvores frutíferas etc) ou construídas (casas, granjas, edifícios diversos), reservando-se o
proprietário, todavia, as melhores árvores (bosque de obra) e o direito de caça, à condição que, quando do fim do contrato, o proprietário arrendador retornará à posse
plena e integral em troca de um pagamento indenizatório – (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Tenure_(Féodalité) e http://fr.wikipedia.org/wiki/Domaine_congéable e Dicionário online
Larousse)
“Quévaisiers”: A quévaise (quemaes em médio bretão, kevaez em bretão moderno) era uma prática sucessória de certas senhorias eclesiásticas da Bretanha que foi
posta em funcionamento para facilitar os desmembramentos, visando à valorização agrícola e ao povoamento - (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Quévaise).
[41] vide meu III vol.
[42] Conhece-se as pretensões dessa família descedente dos Mac Tierns de Léon. No século XVI, eles tomaram essa divisa que resume sua história: “Rei não sou,
Príncipe não consinto ser, Rohan, eu sou” (Roi je ne suis, Prince ne daigne, Rohan je suis).
[43] Testemunho de M. o capitão Galleran, na Corte de Assizes* (Cour d’Assises) de Nantes, outubro de 1882.
*(NT): a Corte ou Tribunal de Assizes (a partir do sítio https://e-justice.europa.eu/content_ordinary_courts-18-fr-pt.do) é competente para julgar os crimes mais
graves suscetíveis de uma pena com uma duração compreendida entre os 10 anos de prisão e a prisão perpétua. Trata-se de um tribunal departamental que não é
permanente, mas que se reúne de 3 em 3 meses, durante cerca de 15 dias. Contudo, este tribunal é quase permanente nos departamentos mais importantes. Reúne-se
também na formação de tribunal de assizes de menores com jurados, quando se trata de crimes cometidos por menores.
[44] Daru, Histoire de Bretagne, t. II.
[45] (NT) “Que disso grunham (reclamem), tal é o meu desejo”. É uma expressão medieval pela qual o autor de um ato respondia àqueles que contra o mesmo
protestavam: “que venham me afrontar aqueles que se incomodam com isso”, seria o sentido mais exato da expressão – (a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Qui_Qu’en_Grogne).
[46] Vide o III volume.
[47] Vide as “Lettres de Madame de Sévigné”, 1673, de setembro a dezembro. Lá, muitos homens foram supliciados na roda, enforcados, enviados às galeras. Ela fala
desses fatos com uma leviandade que faz mal. (NT): As cartas da Marquesa de Sévigné (Marie de Rabutin-Chantal) referem-se à correspondência mantida com sua filha,
Françoise-Marguerite de Sévigné, Condessa de Grignan, durante cerca de vinte e cinco anos, ao ritmo de duas ou três por semana. As Cartas foram inicialmente
publicadas numa primeira edição clandestina de 1725 e, posteriormente, por ordem de sua neta, Pauline de Grignan, Marquesa de Simiane, sua publicação foi feita pelo
editor Denis-Marius Perrin (614 cartas entre 1734 e 1737 e, depois, 1772 cartas, em 1754). Há uma forte dúvida sobre a autenticidade de muitas delas já que parece ter
havido uma adaptação para o gosto da época (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/M arie_de_Rabutin-Chantal_(marquise_de_Sévignè). As cartas podem ser lidas, em francês, no sítio
da organização Internet Archive (www.archive.org).
[48] (NT): Louis-René de Caradeuc de La Chalotais, nascido e falecido em Rennes (1701-1785), foi um magistrado bretão. Jansenista*, ele era procurador-geral do
Parlamento da Bretanha e uma das principais personalidades do movimento da fronda parlamentar que se desenvolvou ao fim do reino de Luís XV. Era um feroz opositor
dos Jesuítas, tendo escrito, antes de sua prisão, um memorando dirigido ao Parlamento da Bretanha sobre as constituições da Companhia de Jesus, sob o título Compte
rendu des constitutions des Jésuites (“Prestação de contas - ou “Relatório” - das constituições dos Jesuítas”, estando disponível, em francês, para leitura online ou
download em http://archive.org/details/compterendudesc01chalgoog) – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/La_Chalotais.
* O Jansenismo “foi um movimento de caráter dogmático, moral e disciplinar, assumindo também contornos políticos, que se desenvolveu principalmente na França e na
Bélgica, nos séculos XVII e XVIII, em reação a certas doutrinas e práticas no seio da Igreja Católica. Tem esse nome por ter sua origem nas idéias do bispo de Ypres,
Cornelius Jansen” – extraído a partir de http://pt.wikipedia.org/wiki/Jansenismo).
[49] Segundo M. de Romieu, sub-prefeito de Quimperlé, pode-se mensurar quantos lugares a língua bretã perde dentro de um certo período de anos. Vide, também, os
engenhosos artigos que ele inseriu na Revue de Paris.
[50] O bazvalan era aquele que se encarregava de pedir as moças em casamento. Era, frequentemente, um alfaiate que se apresentava com meiões até os joelhos, um
azul e outro branco.
[51] Esses fatos, e vários outros, foram-me confirmados por M. le Lédan, livreiro e antiquário distinto de Morlaix. Devo outros detalhes dos costumes a várias pessoas
daquela região. Consultei, entre outros Bretões, M. de R. filho, de uma das famílias mais distintas de Brest; tenho toda confiança na veracidade desse heróico jovem.
[52] (NT) Jean-Baptiste CARRIER, 1756-1794, político francês, um dos principais atores da Revolução Francesa, principalmente durante o período do Terror, cujo nome
permanece associado aos “afogamentos de Nantes” (“les noyades de Nantes). Milhares de homens, anciãos, mulheres e crianças foram lançados, na altura de Nantes,
para dentro do Loire, que Carrier chama de “a banheira nacional” e, embora esse fato seja controverso, a ele são atribuídos os “casamentos republicanos”, suplício
consistente em lançar um homem e uma mulher amarrados para dentro do Loire. Os “afogamentos de Nantes” deram-se no episódio das Guerras do Oeste, já acima
mencionadas pelo Tradutor, particularmente na guerra civil da Vendéia. O Autor Michelet dizia que ele era um dos “Missionários do Terror” – (a partir de
http://www.universalis.fr/encyclopedie/jean-baptiste-carrier/ ; http://fr.wikipedia.org/wiki/Noyades_de_Nantes e http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean-
Baptiste_Carrier).
[53] D. Morice, Preveus de l’Histoire de Bretagne, t. I, p. 278. Carlos o Calvo, por sua vez, fez-se erguer uma que olhava a Bretanha.
[54] Ao menos na época merovíngia.
[55] (NT) Philippe Duplessis-Mornay, na realidade Philippe de Mornay, senhor do Plessis–Marly, igualmente chamado Philippe Mornay Du Plessis (1549- 1623) foi um
teólogo reformista, escritor e homem de Estado francês, amigo do rei Henrique IV (Henrique de Navarra e, depois, de França e Navarra) e um dos homens mais
eminentes do partido protestante ao fim do século XVI. A Flèche, ou melhor, o Colégio Henrique IV de Flèche (Collège Henri-IV de la Flèche, também conhecido como
Collège Royal Henri-le-Grand) foi um colégio fundado por Henrique IV, na comuna da Flèche, após ter reabilitado os jesuítas, seus mais ferozes e antigos inimigos. Após
nova expulsão dos jesuítas, em 1762, o colégio tornou-se o Pritaneu Nacional Militar e, desde 1974, tornou-se um colégio militar e local de recrutramento para as classes
preparatórias para ingresso nas Forças Armadas – (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Duplessis-Mornay; http://fr.wikipedia.org/wiki/Collège_Henri-
IV_de_La_Flèche e http://fr.wikipedia.org/wiki/Prytanée_national_militaire).
[56] É uma espécie de grota artificial de quarenta pés de comprimento sobre dez de largura e oito de altura, tudo formado por onze pedras enormes. Esse dólmen, situado
no vale, parece responder a um outro que se percebe sobre uma colina. Eu frequentemente observei essa disposição nos monumentos druídicos, por exemplo, em Carnac.
[57] Vide o Tomo I, Livro II, Capítulo Primeiro (NT: já vertido para o português pelo Tradutor).
[58] (NT) Rilletes são um preparado de carne de porco, ou de aves (ganso, galinha), ou de peixe (salmão), que é picada e cozida na gordura, podendo ser conservadas
por muito tempo. Vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Rillettes
[59] (NT) Agnès Sorel (por volta de 1420 – 1450) era da pequena nobreza sem dinheiro de Angers. Servindo como dama de companhia de Isabela de Lorena, rainha da
Sicília, sua extrema beleza, seu charme, inteligência e conhecimentos, foram notados pelo rei da França Charles VII, extremamente infeliz no casamento, quando em
contato com a corte angevina. Tal foi o arrebatamento do rei que, a partir daí, a existência das amantes, antes um segredo bem guardado, foi tornado público e Agnès
tornou-se a favorita do rei, eclipsando a rainha. Caridosa, boa e piedosa, mas ousada nos costumes, ela inventou o vestido decotado, deixando à mostra, nus, os ombros e o
colo do seios, além de abandonar os véus e mostrar os cabelos. Fez-se pintar com um seio nu à mostra (pintor Jean Fouquet, estando o quadro no Château Royal de
Loches) e inspirou o quadro “La Vierge à l'enfant entourés d'anges”, de Jean Fouquet, em exibição no Museu Real de Belas Artes de Anvers, Bélgica. Gastou uma
quantidade enorme de dinheiro em roupas, estolas e acessórios, fazendo com que as mulheres da corte a imitassem. Conta-se que a ela foi dado o primeiro diamante
lapidado conhecido até esse dia. Soube aproveitar-se de sua influência junto ao rei, negociando interesses de pessoas junto à realeza. Teve quatro filhas com o rei, que
foram legitimadas, três das quais alcançaram a idade adulta. Odiada pelo Delfim, príncipe-herdeiro do trono, Agnès morreu tão rapidamente, que as suspeitas eram de
envenenamento por mercúrio, fato confirmado cinco séculos e meio mais tarde, no ano de 2004, fazendo, porém, surgir uma dúvida pois, como ela estivesse com
ascaridíase (ovos de lombriga foram encontrados em seu tubo digestivo) e, como essa doença fosse tratada com mercúrio àquela época, a dúvida que hoje se apresenta é
se o envenenamento foi acidental ou criminoso, havendo uma tendência a se considerar esta última hipótese, pois a concentração do metal era altíssima em seu corpo – a
partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Agnès_Sorel
[60] Recherches de Bodin – Genoude, Voyage en Anjou et Vendée , 1821. Ao menos nesta epóca, restavam, da abadia, três claustros sustentados por colunas e
pilastras, cinco grandes igrejas e várias estátuas, entre outras aquela de Henrique II (da Inglaterra). O túmulo de seu filho, Ricardo Coração de Leão, havia desaparecido.
(NT): Fontevraud-l’Abbaye, que data do ano 1101, transformou-se, basicamente, na necrópole dos reis plantagenetas da Inglaterra que possuíram essa região. O gisante
do célebre Coração de Leão, ao lado do de sua mãe Eleonora da Aquitânia e de seu pai Henrique II, ocupa local de destaque na capela real da Abadia. Tal gisante, que se
encontrava desaparecido quando o Autor escreveu (1833), foi redescoberto posteriormente, assim como o gisante da catedral de Rouen, contendo a caixa de chumbo no
qual seu coração foi depositado.
[61] (NT): Gaspard de Coligny foi um nobre e almirante francês, nascido em 1519 e assassinado em Paris, em 24 de outubro de 1572, quando do massacre da Noite de
São Bartolomeu, pouco após o casamento de Henrique de Navarra com Margarida (Margot) de Valois, o qual devia selar a paz entre católicos e protestantes na França.
[62] (NT) Príncipe Negro: Eduardo Plantageneta, Príncipe de Gales ou, ainda, Eduardo de Woodstock (1330-1376), foi o filho mais velho e herdeiro do rei Eduardo III, da
Inglaterra. No contexto da guerra do Cem Anos, capturou o rei francês João II, o que permitiu condições vantajosas de negociação para a Inglaterra. Seu apelido, segundo
alguns, deve-se à cor da armadura que utilizava (fato contestado por não ser utilizada por seus contemporâneos) e, para seus detratores, em virtude da “escuridão de sua
alma” (é fato que Eduardo, com seus exércitos e suas famosas cavalgadas durante a guerra, devastou miseravelmente a França) – a partir do sítio
http://fr.wikipedia.org/wiki/Édouard_de_Woodstock
[63] (NT) Mélusine (no original): É uma espécie de sereia. “Melusina é uma personagem da lenda e folclore europeus, um espírito feminino das águas doces em rios e
fontes sagradas. Ela é geralmente representada como uma mulher que é uma serpente ou peixe (ao estilo das sereias), da cintura para baixo. Algumas vezes, é também
representada com asas, duas caudas ou ambos, e, por vezes, mencionada como sendo uma nixie (espíritos aquáticos do folclore alemão e escandinavo)” – extraído de
http://pt.wikipedia.org/wiki/Melusina.
[64] As mulas do Poitou são procuradas pela Auvérnia, Provença, Languedoc e, mesmo, pela Espanha. Stat. de la Vendée , pelo engenheiro La Bretonnière. – O
nascimento de uma mula é mais festejado que aquele de um filho – Nas cercanias de Mirebeau, um asno garanhão vale até 3.000 francos – Dupin, statistique des Deux-
Sèvres (Dupin era prefeito desse departamento).
[65] Os farmacêuticos compram muitas delas no Poitou – Poitiers outrora enviava suas víboras até para Veneza. La Bretonnière. Vide também Dupin.
[66] Ele chegou com seis homens em Antióquia. Vide o cap. 2, do livro III.
[67] O bispo de Angoulême dizia-lhe: “Corrijai-vos”. O conde respondia-lhe: “Quando tu te penteares”. Mas o bispo era calvo.
(NT): Guilherme VII é Guillaume IX de Poitiers ou, no dialeto do Limousin, Guilhem IX de Peitieus (1071-1126), apelidado, depois do século XIX, o Trovador , conde
de Poitiers sob o nome Guilherme VII e duque da Aquitânia e da Gasconha, de 1086 até sua morte. Ele também foi o primeiro poeta conhecido em dialeto occitano
(langue d’Oc). Marca a história, sobretudo, como um homem de letras e foi ele quem chamou para sua corte o bardo galês Blédri ap Davidor, o qual reintroduziu no
continente a história de Tristão e Isolda. É o mais antigo poeta medieval conhecido, depois de São Fortunato, cujas obras em língua vulgar, nem sacras, nem dedicadas à
glória dos heróis guerreiros, foram conservadas. Seus versos ocupam-se mais frequentemente das mulheres, do amor e das proezas sexuais. Sua poesia é, por vezes, muito
crua (por exemplo, na canção adequada, quando ele pergunta a seus companheiro sobre qual cavalo deve montar, de Agnes ou de Arsênio) e pode chegar a falar até
mesmo do amor entre homens. Ele é considerado um dos precursores do amor cortês (l’amour courtois; fin amor, em occitano), sendo um dos modelos influentes da
arte dos trovadores, cuja poesia vai se tornar cada vez mais galanteadora. - (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Guillaume_IX_de_Poitiers)
[68] (NT) Gilbert de la Porée (também conhecido como Gilbertus Poretta ou Pictavieiisis ou, simplesmente, Gilberto de Poitiers), 1076-1154, foi um teólogo escolástico e
filósofo francês, bispo de Poitiers em 1142. Suas quatro proposições sobre a divindade e a Santa Trindade chocaram a fé católica, o que fez o célebre São Bernardo (de
Clairvaux) pressionar o Papa a condená-las, tendo este remetido o assunto a um Concílio que se realizou em Reims, ocasião em que Gilberto se retratou. Findo o Concílio,
Bernardo o procurou para uma discussão teológica a fim de melhor compreender seus pensamentos, a qual, todavia, foi recusada por Gilberto que respondeu que, se
Bernardo quisesse compreender suas idéias, ser-lhe-ia necessário, antes de tudo, estudar todas as artes liberais e, também, as outras (“A natureza da distinção escapa a
certos espíritos rudes e sem cultura, mas ela deve ser afirmada ao mesmo tempo que a simplicidade divina; ela se relaciona a uma condição absoluta do
pensamento, este último fundado no ser” - Gilbert de la Porrée, In libibrum de Trinitate, P.L., t. LXIV, col. 1302-1303) – (a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Gilbert_de_la_Porré)
[69] É deveras notável que os nomes dos heróis e do autor da famosa crônica figurem juntos na história.
[70] (NT) Rosemonde Clifford em francês, ou a Belle Rosemonde (Fair Rosamund) ou, ainda, Rosamund em inglês (1140-1175/76), amante preferida do rei Henrique
II da Inglaterra e considerada uma das mais belas mulheres da época. Devastado pela morte de sua amante, Henrique a fez ser enterrada no coro da igreja do convento de
Godstow, perto de Oxford, em frente ao grande altar. Pouco anos após a morte do rei, o bispo de Lincoln mandou exumar o corpo de Rosamunda para ser enterrado em
outro lugar porque “ela era uma prostituta”. Seu novo túmulo, desta vez na sala capitular do convento, mereceu o seguinte epitáfio sobre sua pedra: « Hic jacet in tumulo
Rosa Mundi non Rosa Munda/Non redolet sed olet quia redolere solet” (Aqui jaz, neste túmulo, a Rosa do Mundo e não a Rosa Pura/Ela não apodrece, mas cheira
àquilo que deve cheirar) – a partir da Wikipedia em inglês, francês e português, por redirecionamento da página sobre Eleonora:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Éléonore_de_Guyenne).
[71] Segundo M. de Genoude, ainda havia alguns Arouets nas cercanias dessa cidade, no vilarejo de Saint-Loup. Voyage etc. p. 21. (NT: O nome de Voltaire era
François Marie Arouet).
[72] O Pântano meridional é inteiramente obra da arte. A dificuldade a vencer era menos o fluxo do mar que os transbordamentos do Sèvre – Os diques são
frequentemente ameaçados – Os cabaniers (habitantes das fazendas chamadas cabanes – cabaneiros/cabanas) caminham com varas de doze pés para saltar as fossas e
os canais – O Pântano molhado, além dos diques, fica sob a água todo o inverno. La Bretonnière. – Noirmoutiers fica a doze pés abaixo do nível do mar e aí encontram-
se diques artificiais por uma extensão de onze milhas toesas (NT: a milha toesa equivale, aproximadamente, a 1.850 metros – vide “A revolução do metro”, em
https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/download/7707/17290, sobre a busca de um padrão de medida). – Os holandeses drenaram o pântano do
Pequeno Poitou por um canal chamado “cinturão dos Holandeses”. Statistique de Peuchet e Chanlaire. Vide também a Description de la Vendée , por M. Cavoteau,
1818.
[73] Os Ingleses outrora davam esse nome a La Rochelle, por causa do reflexo da luz sobre os rochedos e falésias. Vide a história dessa cidade pelo padre Arcère, do
l’Oratoire, 2 v. in-4º - Sobre os Coliberts, Caqueux, Cagots, Gesitanos etc... vide os esclarecimentos (Tomo I).
[74] Para Saint-Malo, vide Daru, Histoire de Bretagne , t. II, p. 177; para La Rochelle, vide Arcère. – Raymon Perraud, nascido em La Rochelle, bispo e cardeal,
homem ativo e ousado, obtém para os Rochelenses, em 1502, bulas papais que proibem a qualquer juiz de fora citá-los perante seu tribunal.
[75] (NT) Leudaste, depois Conde de Tours, é mencionado no Tomo I. Trata-se do servo remelento que, cúpido por dinheiro, fica rico por ter se tornado favorito da
rainha Marcovèfe, esposa do rei Cariberto.
[76] Vide Statistique du département de la Vienne, pelo prefeito Cochon, an. X. – Desde 1537, propõe-se fazer o Viena navegável até Limoges; depois, de juntá-lo ao
Corrèze que se lança no Dordogne; tal teria aproximado Bordeaux e Paris pelo Loire, mas o Viena possui muitos rochedos – Poder-se-ia fazer o Clain navegável até
Poitiers, de maneira a continuar a navegação do Viena; Châtelleraut a isso se opôs, por inveja, contra Poitiers. – Se o Charente se tornasse navegável, até acima de Civrai,
essa navegação, unida ao Clain por um canal, poria em comunicação, em tempo de guerra, Rochefort, o Loire e Paris. – Vide também Texier, Haute-Vienne; e La
Bretonnière, Vendée.
[77] Já citei a palavra notável de M. o capitão Galleran – Genoude, vide em Vendée, 1821: “Os camponeses dizem: ‘sob o reino de M. Henrique (de La
Rochejaquelein*)” – Eles chamavam patauds (NT: desajeitado, grosseiro, esculhambado, rude, grosseiro, tosco) àqueles, dentre si, que fossem republicanos. Para
falarem o bom francês, eles diziam le parler noblat (NT: falar como um nobre) – Os padres possuíam poucas propriedades na Vendéia; todas as florestas nacionais, diz
La Bretonnière (p. 6), provêm do Conde do Artois ou dos emigrados; uma só, de cem hectares, pertencia ao clero.
*NT: Henri du Vergier, conde de La Rochejaquelein (1772-1794), foi um dos chefes dos exércitos vendéios durante as batalhas que se seguiram à Revolução Francesa, a
qual o pegou de surpresa, quando tinha apenas dezesseis anos, durante seus estudos na escola militar. Ao invés de emigrar como seu pai, o Marquês de La Rochejaquelein,
o corajoso, piedoso, humano, habilidoso e enérgico jovem de alta estatura e longos cabelos louros, permaneceu e defendeu o rei, tendo posteriormente organizado as tropas
vendéias contra os republicanos revolucionários. Nomeado Generalíssimo com apenas 21 anos de idade, morreu traiçoeiramente quando um soldado prisioneiro republicano,
ao render-lhe seu fuzil, escutou seu nome e, à queima-roupa, disparou um tiro em sua testa - (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Henri_de_La_Rochejaquelein)
[78] Mémoires de madame La Rochejaquelein* - Resulta do interrogatório de M. d’Elbée que a verdadeira causa da insurreição vendéia foi o recrutamento de 300.000
homens decretado pela República. Os Vendéios odiavam o serviço militar que os distanciava de seus lares. Quando houve necessidade de fornecer um contingente para a
guarda de Luís XVIII, não se encontrou um só voluntário. Cavoleau, Description de la Vendée, 1813.
*(NT: disponível para leitura online, em francês, no Projeto Gutenberg e no Google-Livros).
[79] Piganiol de la Force, XI. – Boulainvilliers. – Texier-Olivier, Haute-Vienne (ele era seu prefeito em 1808), p. 8, provérbio: “O Limousin não perecerá por seca”.
[80] Texier-Olivier, p. 44, 96, etc.
[81] vide meu IV volume.
[82] Os produtos da terra, como os da indústria, são comuns e grosseiros; abundantes, porém, é verdade. De Pradt, Voyage agronom., p. 108.
[83] Ao norte de Saint-Flour, a terra é coberta de uma espessa colcha de pedras-pomes e não é menos bastante fértil. De Pradt, p. 147.
[84] Vide Legrand d’Aussy, Voyage en Auvergne . (NT): a palavra étouffis designa a fumarola de gases que sai do solo de regiões vulcânicas e que pode fazer
depósitos de enxofre (assim como solfatare é, não somente o nome de uma cratera vulcânica da Itália, como também a fumacinha de gases vulcânicos que escapam para
o solo, formando os mesmos depósitos de enxofre). Ao que tudo indica os “étouffis” – palavra que, apesar do regionalismo, poderia ser traduzida por “asfixiados ou
sufocados” (do verbo étouffer) – eram causa de envenamentos involuntários, ao menos até 1850, nas regiões vinícolas (vide p. 183, dos Bulletins du Cercle Pratique
d’Horticultue et de Botanique,5ème. anné, Tome 5, 1850, artigo Asphyxie par le cuvage des vins, disponível em Google-Livros).
[85] (NT) Clermont, a famosa capital da Auvérnia, hoje se chama Clermont-Ferrand, em virtude da união com a cidade de Monferrand determinada por Luís XIII, em
1630.
[86] (NT): A bela e curiosa montanha do Puy de Dôme possui 1.464 metros de altura, ainda que no texto original sejam-lhe atribuídos 1.295 m (uma toesa equivalendo a
aproximadamente 1,85 metros) - vide, em português, o sítio da Wikipédia em http://pt.wikipedia.org/wiki/Puy_de_Dôme e diversas imagens no Google.
[87] De Pradt, p. 74.
[88] No inverno, eles vivem no estábulo e levantam-se às oito ou nove horas (Legrand d’Aussy, p. 283). Vide diversos detalhes dos costumes nas Mémoires d o M.
conde de Montlosier, 1ª v., - Consultar também o elegante quadro do Puy de Dôme, por M. Duché; as curiosas Recherches de M. Gonod, sobre as antiguidades da
Auvérnia, obra do bom cura octagenário Delarbre, etc.
[89] Em Limagne, raça feia, que parece meridional; de Brionde até às fontes do Allier, dir-se-ia de cretinos ou de mendigos espanhóis. De Pradt, p. 70.
[90] O amarume de seus queijos relaciona-se, seja à forma, seja à duração e à acridez da erva; os pastos jamais são renovados.
[91] Até 1784, os Espanhóis vinham comprar as pedrarias grosseiras da Auvérnia. Legrand d’Aussy, p. 247.
[92] De Pradt, p. 74.
[93] Na região d’além Loire, não se emprega senão o arado com rodas, insuficiente para as terras duras. Em todo o sul, as charruas e utensílios são pequenos e fracos. –
Arthur Young viu, com indignação, esse pequeno arado que aflorava a terra e caluniava sua fertilidade. De Pradt, p. 85.
(NT): Charrua X Arado: em francês, a diferença entre aquela (charrue) e este (araire) é que a primeira possui uma lâmina munida de aiveca (ferro em forma de V, com
tombador de terra), enquanto o segundo não. No Brasil, a palavra charrua é mais comumente empregada no Rio Grande do Sul, podendo também ser utizado o sinônimo
“arado de aiveca”, enquanto o segundo, para diferenciar-se deste, é conhecido por “arado simples com rodas”; ambos, porém, movidos a tração animal.
[94] O ilustre ancião certamente não se ofenderá com uma observação crítica que se dirige a todos os grandes homens dessa região.
[95] Donnat, de Clermont; os Laguesle, de Vic-le-Comte; Duprat e Barillon, seu secretário, d’Issoire; l’Hôpital, d’Aigueperse; Anne Dubourg, de Riom; Pierre Lizet,
primeiro presidente do parlamento de Paris, no século XVI; os Du vair, d’Aurillac, etc.
[96] Vide nas Mémoires de d’Aubigné, a parte secreta que o chanceler teve na conjuração de Amboise. Era um provérbio: “Guarde-nos Deus da missa do Chanceler,
do palito de dentes do Almirante e dos padres-nossos do Condestável”.
[97] É, acredito, a primeira região da França que pagou ao rei (Luís VII) um direito para que ele fizesse cessar as guerras privadas. Vide o Glossaire de Laurière , t. I,
p. 164, na palavra Commun de paix e o Decretal de Alexandre III sobre o primeiro cânone do concílio de Clermont, publicado por Marca – Sobre o Rouergue, vide
Peuchet et Chanlaire, statistique de l’Aveyron e, sobretudo, a estimável obra de M. Monteil.
[98] De acordo com M. Blairier, autor da Minéralogie de l’Aveyron, a hulha forma mais de dois terços do solo desse departamento. Ibid, p. 15.
[99] E ela parece retomar essa supremacia, pelo menos na literatura. A publicação de diversos jornais, entre outros da Revue du Midi, recentemente provou tudo o que
há de vida e de poder no gênio da França occitana.
[100] Ela ainda o era no último século, segundo Piganiol de la Force, Description de la France.
[101] Conservava-se aí os mortos de quinhentos anos. Millin, Voyage dans le midi de la France, t. IV, p. 452, Piganiol de la Force, etc.
[102] Millin, IV, 441. (NT): “Que os cônsules velem para que a República não sofra qualquer mal”. A frase é uma adaptação moderna de uma fórmula utilizada por Júlio
César, em “Comentários sobre a guerra civil” (Commentarii de bello civilli, Livro I, 5): “Decurritur ad illud extremum atque ultimum senatus consultum, quo nisi
paene in ipso urbis incendio atque in desperatione omnium salutis sceleratorum audacia numquam ante descensum est: dent operam consules, praetores,
tribuni plebis, quique pro consulibus sint ad urbem, ne quid res publica detrimenti capiat” (“Enfim, recorreu-se a esse senado-consulto que, por sua importância,
vinha por último de todos, quando Roma era, por assim dizer, ameaçada de incêndio e que todos se desesperavam por seu socorro: que os cônsules, os pretores, os tribunos
do povo, e os consulares que estão perto de Roma, velem para que a República não sofra qualquer mal”).
[103] Millin, t. IV, p. 347 – Encontra-se também muitas ovelhas negras no Roussillon (A. Young, t. II, p. 59) e na Bretanha. Essa cor não é rara nos touros da
Camargue.
[104] Arthur Young, t. III, p. 83 – Na Provença, a emigração das ovelhas é quase tão grande quanto na Espanha. Da planíce do Crau até às montanhas de Gap e de
Barcelonnette, aí passam um milhão em tropas de dez a quarenta mil. O caminho leva de vinte a trinta dias (Darluc, Hist. Nat. de Provence, 1782, p. 303, 329).
Statistique de la Lozère, por M. Jerphanion, prefeito desse departamento, ano X, p. 31. “As ovelhas deixam os Baixos-Cevenas e as planícies do Languedoc por volta do
fim do floréal (NT: no calendário republicano revolucionário, o mês do floréal corresponde ao período de 20 de abril a 19 de maio) , e chegam nas montanhas da
Lozère e da Margéride, onde permanecem durante o verão. Eles tornam a ganhar o Baixo-Languedoc por volta do frimário (NT: no calendário republicano
revolucionário, o frimário corresponde ao período do frio, isto é, de 21 de novembro a 20 de dezembro) . – Laboulinière, I, 245. As tropas dos Pirineus emigram,
no inverno, até às charnecas de Bordeaux.
[105] Cinco toesas (NT: cerca de 9,25 metros) de largura, segundo os decretos do parlamento da Provença.
[106] A year in Spain, by an American, 1832. No século XVI, as tropas da Mesta compunham-se de aproximadamente sete milhões de cabeças. Caindo para dois
milhões e meio no começo do século XVII, elas subiram para quatro milhões no fim e, agora, eleva-se a cinco milhões, mais ou menos a metade do que a Espanha possui
de gado. – Os pastores são mais temidos que os próprios ladrões; eles abusam, sem reservas, do direito de citar todo cidadão perante o tribunal da associação, cujas
decisões nunca deixam de lhes serem favoráveis A Mesta emprega alcaides, entregadores, carregadores, que, em nome da corporação, assediam e oprimem os
fazendeiros.
(NT) A Mesta é o “Honrado Concejo de la Mesta de Pastores”: criada em 1273 por Alfonso X o Sábio, reunindo todos os pastores de Leon e de Castela em uma
associação nacional e outorgando-lhes importantes prerrogativas e privilégios, tornou-se poderosíssima no curso da Idade Média, até que, por volta de 1836, já decadente,
desapareceu – (a partir de http://es.wikipedia.org/wiki/Mesta)
[107] (NT) Merino: raça de carneiro originária da Espanha e de Portugal, cuja lã “é tida como a mais nobre para uso em vestimentas e artigos de decoração” – (a partir
de http://pt.wikipedia.org/wiki/Merino).
[108] Déscription des Pyrénées, por Dralet, conservador das águas e florestas, 1813, t. I, p. 242.
[109] A palavra basca murua significa muralha e Pirineus, W. de Humboldt, Recherches sur la langue des Basques.
[110] forma aportuguesada do nome mouro Abd al-Rahmān (“servidor do Misericordioso”).
[111] (NT) Maciço da Maladeta: é o mais alto maciço e o primeiro maciço glacial dos Pirineus. Situa-se na Espanha, na província de Huesca (Aragão). O nome
Maladeta já era conhecido no início do século XVIII e a lenda de maldição era bem conhecida. Os últimos estudos sobre o nome (1989 e 2009) indicam um vocábulo
aragonês, incertamente ligado à palavra latina maledicta (maldita), mas a associação da raiz pré-indoeuropéia (e pré-celta) Mal (montanha rochosa alta) à raiz dicta (dita)
– informada por P. Fouché e A. Dauzat – permanece duvidosa. – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Massif_de_la_Maladeta
[112] Ramon, Voyage ao Mont-Perdu, p. 54: “Esses gramados das altas montanhas, perto dos quais o próprio verdume dos vales inferiores tem um não sei o quê de cru
e de falso” – Laboulinière, I, 220: “As águas dos Pirineus são puras e oferecem a amável nuance chamada verde d’água” – Dralet, 205: “Os rios dos Pirineu, em seus
transbordamentos ordinários, não depositam, como aqueles dos Alpes, um limo maléfico; ao contrário...”.
[113] Dralet, I, 5. – Ramond: “No sul, tudo se projeta repentinamente e de uma vez. É um precipício de mil a mil e cem metros, cuja base é o topo das mais altas
montanhas dessa parte da Espanha. Elas logo degeneram em colinas baixas e arredondadas além das quais abre-se a imensa perspectiva das planícies de Aragão. Ao
norte, as montanhas primitivas encadeiam-se estreitamente e formam uma faixa de mais de quatro miriâmetros* de largura... Essa faixa compõem-se de sete a oito níveis
de altura gradualmente decrescentes”. Esta descrição, contradita por M. Laboulinière, é confirmada por M. Élie de Beaumont. O eixo granítico dos Pirineus está do lado
da França.
*(NT) Miriâmetros (original myriamètres): antiga medida de comprimento adotada na época da Revolução Francesa, correspondendo a 10.000 metros (10 km) ou a três
léguas. – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Myriamètre
[114] Sabe-se que o grande poeta dos Pirineus, M. Ramond, procurou o Monte Perdido durante dez anos. – “Alguns”, ele disse, “asseguravam que o mais ousado
caçador da região não atingira o cimo do Monte Perdido senão com a ajuda do diabo que o conduzira por dezessete degraus”, p. 28. O Monte Perdido é o mais alto dos
Pirineus franceses, como o Vignemale o é dos Pirineus espanhóis. Ibid., 261.
(NT) Maciço do Vignemale, cujo ponto culminante é o Pique Longue, na fronteira franco-espanhola. O Monte Perdido (Mont-Perdu) é também um maciço na fronteira
franco-espanhola.
[115] É entre esses dois vales, sobre o platô chamado Hourquette des cinq ours* , que o velho astrônomo Plantade expirou perto de seu quadrante, murmurando:
“Grande Deus! Como isso é belo!”
* (NT): “Forquilha dos cinco ursos”; a palavra hourquette vem do gascão hurket, esta derivada de hourque (fourche em francês), do latim furca – a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Hourquette_d’Ossoue. Quanto ao astrônomo, trata-se de François de Plantade (1670-1741), que subiu várias vezes ao Pico do Midi de
Bigorre, tendo encontrado aí sua morte, no Passo de Sencours (http://fr.wikipedia.org/wiki/François_de_Plantade)
[116] Ramond, p. 169: “Mal se coloca o pé sobre a cornija que a decoração muda e a borda da varanda corta toda comunicação entre dois sítios incompatíveis. Desta
linha, a qual não se pode abordar sem deixar um ou outro, e que não se saberia ultrapassar sem perder um deles de vista, parece impossível que sejam reais, ambos ao
mesmo tempo; e se eles não estivessem ligados pela cadeia do Monte-Perdido, que salva um pouco o contraste, seríamos tentados a olhar como uma visão, ora aquele que
acaba de desaparecer, ora aquele que vem substituí-lo.
[117] Laboulinière, III, 12.
[118] (NT) gave é um regionalismo dos Pirineus para designar uma torrente, um curso d’água rápido e veloz.
[119] Ela tem 270 pés de altura. Sobre tudo isso, vide Dralet, p. 108, sqq. t. I. (NT: trata-se do Circo de Gavarnie e da cascata que aí existe, que possui 422 metros de
queda.
Vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Cirque_de_Gavarnie e http://fr.wikipedia.org/wiki/Cascade_de_Gavarnie).
[120] Dralet, 2, 217.
[121] Millin, V, 538 – Dralet – Laboulinière, I, 195, etc. (NT: sobre Rolando, sua espada durindana, seu olifante, a canção de Rolando e a brecha que ele fez nos Pirineus
com sua espada, vide o Tomo I).
[122] O Ebro corre para leste, na direção de Barcelona; o Garonne a oeste, na direção de Toulouse e Bordeaux. Ao canal de Luís XIV, responde aquele de Carlos V. É
toda a semelhança.
[123] Dralet, II, p. 197: “O território espanhol, sujeito a uma evaporação considerável, possui poucos pastos gordos para alimentar as bestas de chifres e, como os asnos,
mulas e burros contentam-se com um pasto menos suculento que os outros animais destinados aos trabalhos da agricultura, eles são geralmente empregados pelos
espanhóis para o lavradio e o transporte de víveres. São nossos departamentos limítrofes e a antiga província do Poitou que fornecem a eles esses animais; e a quantidade
é considerável. Quanto aos animais destinados ao corte, somos nós que também os fornecemos às províncias setentrionais, particularmente à Catalunha e à Biscaia.
Apenas a cidade de Barcelona negocia com fornecedores franceses para entregar-lhe, cada dia, quinhentos carneiros, duzentas ovelhas, trinta bois, cinqüenta bodes
castrados; e ela recebe, além disso, seis mil porcos que partem de nossos departamentos meridionais durante o outono de todos os anos. Esses fornecimentos custam à
cidade de Barcelona dois milhões e oitocentos mil francos por ano e pode-se avaliar a um gasto semelhante aquele que recebemos das outras cidades da Catalunha. A
Catalunha paga em piastras e quádruplos, em óleo e cortiça, em rolhas”. As coisas, todavia, mudaram bastante desde a época que Dralet escreveu (1812).
[124] A. Young, I, 78: “Entre La Jonquera e Perpignan, sem passar por uma cidade, uma barreira ou, mesmo, uma muralha, entra-se num novo mundo. Das pobres e
miseráveis estradas da Catalunha, vós passais, repentinamente, para um nobre calçamento, feito com toda a solidez e magnificência que distinguem as grandes estradas da
França; no lugar de ravinas, há pontes bem construídas; não é mais uma região selvagem, deserta e pobre”.
[125] A. Young, t. I, p. 57 e 116: “Encontramos montanheses que me lembraram aqueles da Escócia; começamos a vê-los em Montauban. Eles têm gorros redondos
e chatos e grandes calças”. “Encontra-se gaitistas, gorros azuis, e farinha de aveia”, diz Sir James Stewart, “na Catalunha, na Auvérnia e na Suábia, tanto quando em
Lochaber”. – Todavia, independentemente da diferença de raça e de costumes, há uma essencial entre os montanheses da Escócia e aqueles dos Pirineus; é que estes
aqui são mais ricos e, sob qualquer narrativa, mais civilizados que as diversas populações que os circundam.
[126] Iharce de Bidassouet, Cantabres et Basques, 1825, in-8º. O povo Basco, que conservou, com seus pastos, o meio de fertilizar seus campos e, com seus carvalhos,
o meio de alimentar uma multidão infinita de porcos, vive na abundância, enquanto que a maior parte dos Pirineus...”. Labounière, t. III, p. 416:

“Bearnes, Bearnês,
Fau et courtes. Falso e cortês.
Bigordan, Bigorrano,
Pior que cão.
Pir que can.”

“O Bearnês é reputado possuir mais fineza e cortesia que o Bigorrrano que tem a vantagem no que diz respeito à franqueza e honestidade simples”. Dralet, I, 170. Esses
dois povos têm, além do mais, poucas semelhanças. O Bearnês, forçado pelas neves a conduzir seus rebanhos para as regiões de campos, aí poliu seus costumes e perdeu
sua rudeza natural. Tornado fino, dissimulado e curioso, ele conserva, não obstante, sua soberba e seu amor à independência... O Bearnês é irascível e vingativo, tanto
quanto espirituoso; mas o temor do envelhecimento e da perda de seus bens o faz recorrer aos meios judiciários para satisfazer seus ressentimentos. O mesmo ocorre a
outros povos dos Pirineus, desde o Béarn até o Mediterrâneo, todos são mais ou menos litigiosos e não se vê em nenhum outro lugar tantos homens de leis quantos existem
nas cidades do Bigorre, do Comminges, do Couserans, do condado de Foix e do Roussillon, que tenham percorrido a extensão dessa cadeia de montanhas”.
[127] Iharce de Bidassouet.
[128] (NT) Sancho VII de Navarra (1194-1234), também conhecido como Sancho o Forte (em virtude de sua altura) e, no final de sua vida, devastado pelo câncer
(úlcera varicosa da perna), o que o fez passar a viver recluso na torre do castelo de Tudela, passou a ser cognominado como Sancho o Encerrado – (a partir da
wikipedia em espanhol em http://es.wikipedia.org/wiki/Sancho_VII_de_Navarra).
[129] Laboulinière, I, 238.
[130] Dralet.
(NT): Henri Martin tratou o tema no tomo IV de seu Histoire de France, depuis les temps les plus reculés jusqu’en 1789 , 4ª edição, 1860: “Exibe-se respeitosamente,
em Gavarnie, seis ou sete cabeças que se pretende serem aquelas dos templários martirizados e conta-se que, todo ano, na noite da abolição da Ordem, uma figura,
armada com todo o paramento e vestindo o manto branco com a cruz vermelha, aparece no cemitério e grita três vezes: ‘Quem defenderá o Santo Templo? Quem
libertará o sepulcro do Senhor?’. Então, as sete cabeças despertam e, por três vezes, respondem: ‘Ninguém! Ninguém! O Templo foi destruído!’. Recebemos de M.
Augustin Thierry essa curiosa lenda que não vimos reproduzida em nenhum outro lugar”. – No Guide des Pyrénées Mystérieuses, de Bernard Duhourcau, editora Tchou,
1999, lê-se: “Os crânios, outrora dispostos sobre uma viga da nave, foram instalados em um armário com vidros, cujo cuidado ficava a cargo do coveiro. ‘Quando eles
estão muito velhos, nós os trocamos!”... ele dizia (‘Quoan soun trop bieils que lés cambian’)”. - Os crânios encontram-se na igreja Notre-Dame du Bon Port e podem ser
vistos no mesmo sítio de onde essas informações foram extraídas: http://vppyr.free.fr/pages_transversales/voies_lavedan/lavedan_pat07_gavarnie.php. Vide, ainda,
fotos da igreja e dos crânios: http://www.loucrup65.fr/pgie0606.htm.
[131] Laboulinière, I, 233: Várias espécies animais desaparecem dos Pirineus. Dralet, I, 51: o gato selvagem tornou-se raro; o cervo desapareceu há duzentos anos,
segundo Buffon.
[132] Vide Déscription des Pyrénées, por Dralet, conservador das águas e florestas, 1813, I, 197; II, 220.
[133] Dralet, II, 105: Os habitantes iam roubar madeira até na Espanha. – Há multas altas para quem quer que corte um galho de árvore numa floresta que domina
Cauterets e a protege das neves – Diodoro da Sicília já dizia (lib. II): “Pirineus vem da palavra grega pur (fogo) pois, outrora, o fogo, tendo sido tocado pelos pastores,
todas as florestas arderam” – Processo-verbal de 8 de maio de 1670: “Não há nenhuma outra floresta que tenha sido incendiada tão repetidamente pela malícia dos
habitantes ou para converter os troncos em prados ou terrenos laboráveis”.
[134] Dralet, II, 74.
[135] Id., I, 88. (NT: o ano X do calendário republicano corresponde, no calendário gregoriano, ao período situado entre 23 de setembro de 1801 e 22 de setembro de
1802 - http://fr.wikipedia.org/wiki/An_X).
[136] M. Barberet, professor de história no colégio Louis-le-Grand, vai nos dar uma compilação dos romances históricos do Roussillon e da Catalunha. M. Tastu prepara
grandes trabalhos sobre as antiguidades desse último país. Assim continua essa conquista literária do sul iniciada pelo nosso venerável Raynouard.
[137] Eu falarei mais à frente desse grande monumento do reino de Luís XIV.
(NT) O Tradutor, com o devido pedido de desculpas ao Autor, não pode esperar quase setecentos anos para esclarecer que o “Canal dos Dois Mares”, atualmente “Canal
do Midi” (desde a Revolução de 1789) e inicialmente chamado “Canal Real do Languedoc”, é uma das mais impressionantes obras de engenharia já feitas e ainda em
uso (embora, hoje, predominantemente para fins turísticos e de recreação). Construído de 1666 a 1681 e, possuindo cerca de 240 km de extensão, ele liga o Mar
Mediterrâneo ao Oceano Atlântico. Essa ligação fluvial sempre foi pensada e sonhada por monarcas anteriores a Luís XIV (v.g., Augusto, Nero, Carlos Magno,
Francisco I, Carlos IX e Henrique IV), em virtude das inegáveis vantagens comerciais, políticas, econômicas e estratégicas. Vide, em português:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Canal_do_Midi. Vide, em francês: http://fr.wikipedia.org/wiki/Canal_du_midi e http://www.canaldumidi.com. Em francês ou em
inglês: http://www.canalmidi.com.
[138] Trouvé, Statistique du département de l’Aude, p. 507. O bairro de Narbonne fornecia a manufatura dos sorvetes de Venize, p. 513.
[139] Depping, Description de la France, I, 280.
[140] Trouvé, p. 346.
[141] (NT) Cers é o nome do vento noroeste que sopra no sudoeste da França e é especialmente violento sobre o baixo Languedoc. A etimologia da palavra pode estar
ligada à palavra latina circius (vento do oeste) e parece provável que esta tenha sido tomada emprestada da palavra grega kirkios trazida pelos colonos gregos. A palavra
cers refere-se a um dos deuses dos ventos chamado Cersus a quem Augusto construiu o altar em Narbonne, após uma estadia de um dia nesta cidade – (a partir de
http://www.etymologie-occitane.fr/category/lexique-occitan/c/page/7/.)
[142] Trouvé, p. 347: segundo o mesmo autor, o mesmo ocorre com as feridas na cabeça, em Bordeaux. – O Cers e o Autan* dominam alternativamente no Languedoc.
O Cers (cyrch, impetuosidade em galês), é o vento do oeste, violento, mas salubre – Senec. quæst. natur. l. III, c. 11: Infestat... Galliam Circius: cui ædificia
quassanti, tamen íncola gratias agunt, tanquàm salubritatem cœli sui debeant ei. Divus certe Augustus templum illi, quûm in Galliâ moraretur, et vovit et fecit
(NT: Infesta... a Gália, o Circius: ainda que este derrube, mesmo, os edifícios, os habitantes rendem-lhe graças; eles crêem dever-lhe a salubridade de seu céu. O que há
de certo, é que Augusto, durante sua estadia na Gália, votou-lhe um templo que, em efeito, ele construiu – a partir de
http://remacle.org/bloodwolf/philosophes/seneque/questionsnaturelles5.htm, onde o livro de Sêneca está relacionado como o livro V, capítulo XVII) . – O Autan
é o vento do sudeste, o vento da África, pesado e apodrecedor.
*(NT: vento d’Autan é um vento que sopra no sul/sudoeste da França vindo do sudeste/sul-sudeste, afetando a parte oriental da bacia aquitânica e o sudoeste do Maciço
Central. Dele diz-se, nas regiões onde ele bate – Languedoc e Midi-Pyrénées, principalmente –, que ele pode enlouquecer as pessoas. A palavra Autan provém do latim
altanus significando “alto mar”, denotando-se, portanto “vento de alto mar” – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Autan).
[143] Provérbio: Agde, cidade negra, caverna de ladrões. Ela foi construída com lavas. Lodève é também escura. Millin, IV, 361. (NT: Agde é também conhecida
como a “peróla negra do Mediterrâneo”, em virtude de suas formações basálticas).
[144] Millin, IV, 323: Montpellier é célebre por suas destilarias e perfumarias. Atribui-se a descoberta da aguardente a Arnaud de Villeneuve, que criou as perfumarias
nesta cidade, p. 324. – Outrora, apenas Montpellier fabricava o azinhavre; acreditava-se que apenas as caves de Montpellier eram apropriadas.
[145] Millin, IV, 383: no reino de Francisco I, os muros de Narbonne foram reparados e cobertos com fragmentos de monumentos antigos. O engenheiro colocou as
inscrições sobre os muros e os fragmentos de baixo-relevo perto das portas e sobre as vigas e arcos. É um museu imenso, montes de pernas, de cabeças, de mãos, de
troncos, de armas, de palavras sem o menor sentido; há quase um milhão de inscrições quase completas e que não se poder ler, em virtude da largura do fosso, senão com
uma luneta – Sobre os muros de Arles, vê-se, ainda, um bom número de pedras esculpidas, provenientes de um teatro. Thierry, Lettres sur l’Histoire de France, p. 259.
[146] Trouvé, p. 271: o canal tinha cem passos de largura, comprimento de dois mil e profundidade de trinta. {NT1: a Maison Carrée da cidade de Nîmes é um antigo
templo em estilo hexagonal construído no século I e dedicado por Augusto à glória de seus dois netos. Jamais deixou de ser utilizado nos últimos dois mil anos e, durante os
últimos vinte anos (i.e., de 1992 a 2011), foi cuidadosamente restaurado com materiais originais da época de sua construção – vide: http://fr.wikipedia.org/wiki/Maison_Carrée;
http://pt.wikiped.org/wiki/Maison_Carrée;, respectivamente em francês e português; vide o sítio oficial da Maison em francês, inglês ou alemão em http://arenes-nimes.com/}; {NT2:
a Ponte do Gard é uma estupenda ponte-aqueduto romana, em três níveis, sobre o rio Gardon (ou Gard) – vide, em francês e em português:
http://fr.wikipedia.org/wiki/Pont_du_Gard e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ponte_do_Gard; sítio oficial da Ponte do Gard, legível em francês, inglês ou alemão em http://www.pontdugard.fr/fr).
[147] Vide Caseneuve, Traité du Franc-Aleu em Languedoc.
[148] Asseguraram-me que, em 1814, reprovava-se a várias famílias de emigrados o fato de descenderem dos companheiros de Simon de Montofrt – Vide, mais abaixo,
a narrativa da Cruzada Albigense. Esse capítulo completará o quadro do Languedoc, como o primeiro do livro I iniciou aquele da Gasconha, dando a conhecer a respeito
dos Iberos, ancestrais dos Bascos.
[149] Trouvé, p. 258.
[150] Os dois Chéniers nasceram em Constantinopla onde seu pai era cônsul-geral, mas sua família era de Limoux e seus avós tinham ocupado, por muito tempo, o
cargo de inspetor das minas do Languedoc e do Roussillon. (NT: André e Marie-Joseph CHÉNIER, filhos de Louis de Chénier, diplomata de Luís XVI; o primeiro, poeta,
foi guilhotinado na Revolução e o segundo, dramaturgo e escritor, tendo sido difamado como colaborador para a morte de seu irmão, defendeu-se da calúnia através de
versos – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/André_Chénier e http://fr.wikipedia.org/wiki/Marie-Joseph_Chénier).
[151] (NT): Philippe-François-Nazaire Fabre (1750-1794), ator, dramaturgo, poeta e político francês. Tentou utilizar-se da Revolução para enriquecimento pessoal –
tornou-se, durante algum tempo, o fornecedor do exército – foi acusado de corrupção, tráfico de influência, tentativa de divisão e de destruição da representação nacional,
tendo sido condenado e morto na guilhotina – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Fabre_d’Églantine).
[152] Um provérbio gascão diz: “todo bom gascão pode se desdizer três vezes (tout boun gascoun qués pot réprenqué trés cops) – Em muitos departamentos
meridionais, enrubescer-se-ia de não ir à missa e ter-se-ia vergonha de ir ao confessionário. Isto foi-me confirmado, particularmente, no departamento de Gers.
[153] Três tentativas impotentes dos Romanos, de São Luís e de Luís XIV.
[154] Essa ponte de Avignon, tão cantada, sucedia à ponte de madeira de Arles que, em seu tempo, recebera essas grandes reuniões de homens como, depois, Avignon
e Beaucaire. Arles, dizia Ausônio, pequena Roma gaulesa:
Gallula Roma Arelas, quam Narbo Martius, et quam
Accolit Alpinis opulenta Vienna colonis,
Præcipitis Rhodani sic intercisa fluentis,
Ut mediam facias navali ponte plateam,
Per quem romani commercia suscipis orbis.*
Auson., Ordo. nobil. urbium, VIII
*(NT):
Arelas (Arles), pequena Roma das Gálias, vizinha de Narbo M arius (Narbonne),
E de Viena, que deve sua opulência aos colonos dos Alpes,
A corrente do Ródano te divide em duas, que a ponte de barcos forma uma rua naval,
Por onde recebes o comércio romano e o transmites ao mundo
(adaptado do francês a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/ausone/ordre.htm)
[155] O pastor São Bénézet (NT: ou Santo Benito ou São Bento d’Avignon) recebeu, numa visão, a ordem de construir a ponte de Avignon; o bispo não acreditou
senão após Bénézet ter transportado, sobre suas costas, como primeira pedra, uma rocha enorme. Ele fundou a ordem dos irmãos pontífices que contribuiu para a
construção da ponte do Espírito Santo e que iniciou uma outra sobre o Durance. Bolland, acta SS, 11 april. Héliot, Hist. des ordres religieux , t. II, c. 42. – Bouche, Hist.
de Provence, t. II, p. 163. D. Vaissette, Hist. du Languedoc, t. III, liv. XIX, p. 46 – conforme os Pontifices etruscos e romanos.
[156] Uma das quatro espécies de farandola que Fischer distingue se chama A Turca; uma outra, A Mourisca. Esses nomes e as relações de várias dessas danças com
o bolero, devem fazer presumir que foram os Sarracenos que deixaram seu uso na França. Millin, III, 355.
(NT): A farandola ( farandole) é uma dança tradicional, considerada como a mais antiga das danças, assim como a mais característica e representativa da Provença.
Apelidada de “dança da vida”, o círculo que as pessoas fazem simboliza o curso da vida e sintetiza todas as oposições: o início e o fim, o nascimento e a morte, a origem e
a eternidade. – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Farandole
[157] Millin, II, 487. Sobre a insalubridade de Arles; id. III, 645. – Papon, I, 20, provérbio: Avenio ventosa, sine vento venenosa, cum vento fastidiosa (NT: Avignon
ventoso, sem vento, venenoso, com vento, fastidioso). – Em 1213, os bispos de Narbonne, etc. escreveram a Inocente III que um concílio provincial, tendo sido convocado
em Avignon, “multi ex prælatis, quia generalis corruptio æris ibi erat, nequivimus colloquio interesse; sicque factum est ut necessario negotium differretur” ( NT: “muitos
dos prelados, em virtude da corrupção do ar, não puderam comparecer ao colóquio; por esse fato, foi necessário diferir o negócio”) . – Havia leprosos em
Martigues até 1731; em Vitrolles, até 1807. Em geral, as doenças cutâneas são comuns na Provença. Millin, IV, 35.
[158] Há quatrocentos mil arpentes (NT: 1 arpente = 58,47 metros) de pântanos. Peuchet et Chanlaire, Statistique des Bouches-du-Rhône. Vide também a grande
Statistique de M. de Villeneuve, 4º vol., in-4º. – Os pântanos de Hières tornam essa cidade inabitável no verão; respira-se a morte com os perfumes das frutas e das
flores. Igualmente em Fréjus. – Statistique du Var, por Fauchet, prefeito, ano IX (NT: de 23 de setembro de 1800 a 22 de setembro de 1801), p. 52, sqq.
(NT) Os “pântanos pontinos” são uma região pantanosa situada na Itália central, na região do Lácio, a cerca de 60 Km ao sul de Roma (em italiano agro pontino ).
Obviamente, o autor utilizou-se de uma metáfora para definir a região pantanosa da Provença francesa.
[159] Encontra-se, ao longo do curso do Ródano, vestígios do culto sanguinário de Mitra – Vê-se, em Arles, em Tain e em Valença, altares taurobólicos; um outro em
Saint-Andéol. Em Bâtie-Montsaléon, submerso pela formação de um lago, e desenterrado em 1804, encontrou-se um grupo mitriático. – Em Fourvières, encontrou-se um
altar mitriático consagrado a Adriano; há um outro, em Lyon, consagrado a Sétimo Severo. Millin, passim.
[160] No dia de Santa Marta, uma jovem conduz o monstro acorrentado à igreja para que ele morra sob a água benta que lhe é aspergida. Millin, III, 453. Essa festa se
encontra, eu creio, na Espanha. – O rio Isère é apelidado de serpente, como o Drac de dragão; ambos ameaçam Grenoble:

Le serpent et le dragon A serpente e o dragão


M ettront Grenoble en savon. Porão Grenoble no sabão

Em Metz, faz-se passar, no dia dos Rogos, um dragão que é chamado graouilli; os padeiros e confeiteiros colocam-lhe pãezinhos e confeitos sobre a língua; é a
representação de um monstro do qual a cidade foi livrada por seu bispo, São Clemente. – Em Rouen, é um manequim de vime, a gargouille, a quem outrora enchia-se a
garganta de leitõezinhos de leite; São Romano livrara a cidade desse monstro que vivia no Sena, assim como São Marcelo livrou Paris do monstro do rio Bièvre, etc.
[161] Millin, IV – Em Marselha, três dias antes do Corpus Christi, conduz-se um boi e um pequeno São João Batista. As amas-de-leite fazem o focinho tocar seus
lactentes para preservá-los dos males dos dentes. Papon, I.
[162] Millin, III, 360.
[163] Id., ibid.
[164] Millin, II, 54. Nos Pirineus, é Renaud, montado sobre seu bom cavalo Bayard, quem liberta uma jovem das mãos dos infiéis. Laboulinière, III, 404.
[165] (NT) Pierre André de Suffren, 1729-1788, cognominado “bailio de Suffren” (bailli de Suffren) e também “Suffren de Saint-Tropez”, Vice-Almirante da Esquadra
Real Francesa, foi um dos mais intrépidos marinheiros franceses (entre os anglófanos, ele é praticamente o único marinheiro francês digno de figurar entre os “grandes
marinheiros”; seus inimigos ingleses o chamavam “Almirante Satã”). Devido à sua formação jurídica, ele iniciou sua vida exercendo a função de magistrado. – (a partir
de http://fr.wikipedia.org/wiki/Pierre_André_de_Suffren)
[166] Papon, I, 265. (NT: Capitão-Pachá significa o mais alto posto de Almirante da Marinha do Império Turco Otomano – Kapudan Pasha. Quanto ao renegado
mencionado pelo Autor, o Tradutor não logrou encontrá-lo em suas pesquisas. Se o Autor não estiver errado quanto à data da morte, em 1706, é possível que seja Veli
Mehmed Pacha, cf. http://tr.wikipedia.org/wiki/Kaptan-ı__deryalar_listesi ).
[167] (NT): Fausto de Riez, ou Santo Fausto ou, ainda Faustus (* cerca de 408, † cerca de 495), monge e, depois, abade de Lérins, escreveu contra o arianismo sobre o
Verbo de Deus feito carne, e sobre o Espírito-Santo, consubstancial ao Pai e ao Filho e co-eterno. Mas, em outros escritos, ele não admitiu a primazia da salvação pela
graça com relação ao Livre Arbítrio (Tratado da graça e do livre arbítrio - De gratia dei et libero arbitrio ), tendo sido postumamente condenado por semi-pelagianismo.
Cassiano é João Cassiano, ou Johannes Cassianus, cognonimado “o Romano” ou “o Romeno” (atualmente, este seria o mais correto), nascido entre 360 e 365 e falecido
entre 433 e 435, monge e homem da igreja mediterrânea que marcou profundamente o início da Igreja na Provença, no século V, sendo o fundador da abadia de Saint-
Victor de Marselha, onde seu sarcófago se encontra; apesar de ter sido condenado postumamente por seu semi-pelagianismo, isso não impediu que fosse e ainda seja
considerado um Santo; deixou várias obras escritas, dentre elas as “Conferências”, uma coleção de vinte e quatro conferências relatando as lembranças de Cassiano no
Egito, suas entrevistas sobre a perfeição ascética com os “pais do deserto”, que abordam numerosos temas ligados à vida espiritual. São Cassiano está no rol dos “pais da
igreja latina”, sendo também reconhecido como santo pela Igreja Católica Ortodoxa Grega. As obras de Santo Fausto fazem parte da “Biblioteca dos Pais da Igreja” – a
partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Fauste_de_Riez; http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_Cassien e de http://fr.wikipedia.org/wiki/Pères_de_l’Église).
[168] (NT): Honoré Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau, mais comumente chamado Mirabeau (1749-1791), foi, simultânea ou sucessivamente, um revolucionário
francês, escritor, diplomata, franco-maçon, jornalista e político. Cognominado “o Orador do Povo” e “a Tocha da Provença”, ele permanece como o primeiro símbolo da
eloqüência parlamentar na França. Rejeitado e maltratado por seu pai, repudiado por sua primeira esposa, preso várias vezes em virtude de dívidas decorrentes de uma
vida desregrada, amante de uma marquesa casada que foge com ele para os Países-Baixos, ainda assim possuía a verve e o ímpeto nos discursos. Eleito para a
Assembléia Nacional, enfrenta sua dissolução, determinada pelo rei poucos dias antes da Revolução, falando ao marquês de Dreux-Brézé: “Ide dizer àqueles que vos
enviam que estamos aqui pela vontade do povo e que daqui não sairemos senão pelo poder das baionetas”. Não era contra a monarquia, tanto que passa a ser o apoio de
Luís XVI e de Maria Antonieta quando aquela é abolida. Além de seus discursos, de sua participação na elaboração dos Direitos do Homem e do Cidadão, deixou várias
obras publicadas, das quais se destacam “Ensaio sobre o despotismo”, “Minha conversão”, “Arlequim reformador na cozinha dos monges ou Plano para reprimir a
glutonaria” e “Erotika Biblion”. – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Honoré-Gabriel_Riqueti_de_Mirabeau
[169] “Esta cidade (Fréjus) se torna cada dia mais deserta e as comunas vizinhas perderam, depois de meio século, nove décimos de suas populações” – Fauchet, ano
IX, loc. cit.
[170] Em suas bonitas danças mouriscas, nos romérages de seus burgos, nos usos do tronco calendário, do grão-de-bico em certas festas, em tantos outros costumes.
Millin, III, 346: A festa patronal de cada vilarejo se chama Romna-Vagi e, por corrupção, Romérage, pois ela precedia, com frequência, uma viagem à Roma que o senhor
fazia ou que iria fazer (?).
Millin, III, 336: É no Natal que se queima o calignau ou calendeau, um grosso tronco de carvalho no qual se asperge vinho e azeite de oliva. Gritava-se, outrora, ao se
posicioná-lo, “calene ven, tout ben ven” (calenda vem, tudo vai bem). É o chefe da família quem deve tocar o fogo no tronco; a chama tem o nome de caso fuech (fogo
de amigos). Encontra-se o mesmo costume no Delfinado. Champollion-Figeac, p. 124: chama-se chalendes o dia de Natal. Dessa palavra fez-se chalendal, nome que se
dá a um grosso tronco que se coloca no fogo na véspera do Natal, à tardinha, e que aí permanece aceso até que seja consumido. Desde que ele tenha sido colocado no lar,
derrama-se sobre ele um copo de vinho, fazendo-se o sinal da cruz, e a isso se chama batisa lo chalendal. A partir deste momento, esse tronco é, por assim dizer,
sagrado, e não se pode nele sentar sem risco de ser punido... ao menos pela sarna.
Millin, III, 339: Encontra-se o costume de comer grãos-de-bico em certas festas, não somente em Marselha, mas na Itália, na Espanha, em Gênova e em Montpellier. O
povo desta última cidade acredita que, quando Jesus Cristo entrou em Jerusalém, ele atravessou um sesierou, um campo de grãos-de-bico e que, em memória desse dia, é
que se perpetuou o uso de se comer os sesés – Em certas festas, os Atenienses também comiam o grão-de-bico (nas Pianepsias).
[171] A procissão do bom rei René, em Aix, é uma parada derrisória da fábula, da história da Bíblia. Millin, II, 299: Via-se o duque de Urbino (o infeliz general do bom
rei René) e a duquesa de Urbino montados sobre asnos; via-se uma alma que era disputada por dois diabos; os cavalos frux ou fogosos em papelão; o rei Herodes, a
rainha de Sabá, o templo de Salomão e a estrela dos Reis-Magos na ponta de um bastão, assim como a Morte, abadessa da juventude, coberta de cinzas e de fitas, etc.
etc
[172]Si come ad Arli, ove’l Rodano stagna,
Fanno i sepolcri tutt'il loco varo.
DANTE, Inferno, c. IX.
(NT): Se como em Arles, onde o Ródano estagna/Está, de sepulcros, desigual e incerto (a partir da tradução em http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I9)
Entre outros baixo-relevos notáveis que se encontra sobre os túmulos de Arles, resta um que representa o monograma do Cristo dentro de uma coroa de carvalho que é
erguida por uma águia. É um belo símbolo da vitória de Constantino* – Carlos IX (NT: rei da França de 1550-1574) trouxe da mesma cidade alguns sarcófagos de
pórfiro que pereceram no Ródano e que nele ainda estão.
*(NT): O Crisma (ou lábaro) é um cristograma que nasceu da vontade do Imperador Constantino de encontrar uma representação para o Cristo, rompendo com as
imagens associadas por ele ao paganismo. Ele compõe o símbolo ☧ , formado pela sobreposição das letras gregas κ (ki) e ρ (ro), que são as duas primeiras da palavra
grega para Cristo (Χριστός), com frequência acompanhadas do alfa (Α) e do ômega (Ω). - fontes: http://crismapx.blogspot.com.br/2011/01/significado-do-simbolo-p-x-cristao.html,
http://fr.wikipedia.org/wiki/Chrisme e http://architecture.relig.free.fr/chrisme.htm).
[173] La Lauzière, Hist. d’Arles, I, 306.
[174] Não sei qual é o mais tocante dos lamentos do poeta, se sobre o destino da Itália ou de suas mágoas quando ele perdeu Laura. Não resisto ao prazer de citar esse
soneto admirável no qual o pobre velho poeta confessa a si mesmo, enfim, não ter perseguido senão uma sombra:
“Eu o sinto e ainda o respiro, é o meu ar de outrora. Ei-las, as suaves colinas onde nasceu a bela luz que, tanto quanto o céu o permitiu, preencheu meus olhos de alegria e
de desejo e que, agora, os enche de lágrimas.
Ó frágil esperança! Ó loucos pensamentos!... a relva é viúva e turvas são as ondas. Está vazio e frio o ninho que ela ocupava, esse ninho onde eu desajaria viver e morrer!
Eu esperava, de seus doces rastros, eu esperava, de seus belos olhos que consumiram meu coração, algum repouso após tantas fadigas.
Cruel, ingrata servidão! Queimei, tanto quanto durou, o objeto de meus ardores e, hoje, sigo chorando suas cinzas.”
Soneto CCLXXIX.
(NT): a fonte de Vaucluse ( fontaine de Vaucluse ), onde Petrarca chorou, é uma belíssima exsurgência de água (a mais importante da França continental) que ocorre
perto de Avignon, no departamento de Vaucluse, no território da comuna de Fontaine-de-Vaucluse, e que dá origem ao rio Sorgue (vide
http://fr.wikipedia.org/wiki/Fontaine_de_Vaucluse)

[175] Mesmo espírito crítico no Franco-Condado; assim, Guilhaume de Saint-Amour, o adversário do misticismo das Ordens Mendicantes, o gramático d’Olivet etc. Se
quiséssemos citar alguns dos mais distintos de nossos contemporâneos, poderíamos nomear os MM. Charles Nodier, Jouffroy e Droz. M. Cuvier era de Montbelliard, mas
o caráter de seu gênio foi modificado por uma educação alemã.
(NT): “Mably” é Gabriel Bonnot de Mably (1709-1785), filósofo, crítico do despotismo legal e dos regimes políticos da França e da Inglaterra, considerado um dos
precursores do socialismo utópico e da Revolução. Seu irmão “Condillac” (Étienne Bonnot de Condillac, 1715-1780), abade de Mureau, foi escritor, filósofo, acadêmico e
economista, primeiro e único verdadeiro representante da corrente empirista na França e que, a este título, exerceu uma influência considerável não apenas na França,
como no mundo. “D’Alembert” (Jean le Rond d’Alembert, 1717-1783) foi um famoso matemático, filósofo e enciclopedista, célebre por ter dirigido os trabalhos da
“Enciclopédia” com Denis Diderot e por suas pesquisas na Matemática sobre as equações diferenciais e as derivadas parciais, além de trabalhos relevantes na Física e na
Astronomia. “Lalande” (Joseph Jérôme Lefrançois de Lalande, 1732-1807), de formação jurídica, findou por se dedicar à astronomia e, graças ao seu trabalho conjunto
com o abade Nicolas-Louis de Lacaille, mensurou-se a distância Terra-Lua, o que lhe valeu o ingresso na Academia de Ciências de Berlim com a idade de 21 anos tendo
sido, pouco depois, eleito para a Academia de Ciências de Paris; seus vastos trabalhos foram tão relevantes que seu nome está inscrito sobre a Torre Eiffel (fachada para
o Trocadéro), batizou um liceu em sua cidade natal, uma rua de Paris e uma cratera lunar (em 1935, homenagem da União Astronômica Universal), além de ter-lhe sido
erguida uma estátua entre os “Homens Ilustres”, no palácio do Louvre (os “Homens Ilustres” ou “Homens Célebres” são uma série de 86 estátuas que decoram a
balaustrada do primeiro andar do pátio Napoleão, onde está a pirâmide de vidro de 1989). Finalmente, “Bichat” (Marie François Xavier Bichat, 1771-1802), médico
fisiologista e biologista que revolucionou o estudo da Anatomia (ainda que ao custo de ter violado muitas sepulturas no cemitério de Saint Roch). – informações extraídas
a partir das páginas específicas e respectivas, no sítio Internet da Wikipédia em francês (fr.wikipedia.org).
[176] Nos hábitos lingüísticos dos Delfinenses, encontra-se traços singulares de seu velho espírito litigante. “Os proprietários, que gozam de algum conforto material,
falam o francês de uma forma suficientemente inteligível; mas a ele misturam termos da prática antiga que o advogado não ousa ainda abandonar. Antes da Revolução,
quando as crianças haviam convivido um ano, ou dois, com um procurador, a passarem a limpo as intimações e os salários, sua educação estava feita e eles retornavam ao
arado. Champollion-Figeac, patois du Dauphiné, p. 67.
[177] A cidadezinha de Sarrelouis, que mal conta com cinco mil habitantes, forneceu, em vinte anos, quinhentos ou seiscentos oficiais e militares condecorados, quase
todos mortos no campo de batalha. Cito, de memória, um documento recente que não pude encontrar; mas creio não me enganar sobre as cifras.
[178] Conserva-se, no Museu de Artilharia, a rica e galante armadura das princesas da Casa de Bouillon.
[179] É uma observação que tudo mundo pode fazer no Franco-Condado, na Lorena e nas Ardenas.
[180](NT): “Margot Delaye” ou Margot Catherine Ponsoye, ilustrada no quadro de François Grellet sob o nome de Margot Delaye, foi uma heroína que, em 1570,
defendeu a cidade de Montélimart das tropas protestantes do Conde Ludovico de Nassau; foi no decorrer de um dos assaltos à cidade que nasceu sua lenda, quando os
soldados defensores, à falta de munição, receberam a ajuda do povo, tendo Margot se posicionado sobre o reparo da muralha e, à falta de armas, lançado tudo (pedras e
utensílios) sobre os assaltantes; durante um combate direto com o conde Ludovico, contra o qual avançou armada de uma pesada panela de ferro fundido, perdeu a mão
direita (ou o braço direito, segundo alguns) e, por sua coragem, a cidade de Montélimart ofereceu-lhe “abrigo, pão e vinho”. Philis de La Charce (originalmente
“Phillippe”, 1645-1703), figura histórica do Delfinado, oriunda de eminente família nobre: de espada na mão e sobre um cavalo, ela opôs resistência ao Príncipe Victor
Amadeu de Savóia e libertou as cidades de Gap, Dinois e Baronnies (segundo os detratores, ela teria apenas organizado a resistência popular em Montmorin, onde se
encontrava sua residência de verão, contra os saqueadores que vieram cobrar “a contribuição) – a partir das páginas específicas e respectivas, no sítio Internet da
Wikipédia em francês (fr.wikipedia.org).
[181] Barginet de Grenoble, Les Montagnards: qualquer crítica que se queira dirigir contra esse ardente escritor, não se lê sem interesse seus romances, que foram
escritos na prisão e anotados por um diretor de escola do país – Vide também La Faye de Sassenage, por J. Millet: são as aventuras de Claudine Mignot, chamada a Bela
Lhauda, mulher de Amblérieux, tesoureiro do Delfinado, do Marquês de l’Hôpital, de Casimiro III, rei da Polônia – Louise Serment, a filósofa de Grenoble, morreu com a
idade de 30 anos, em 1692.
[182] Esta simplicidade, esses costumes quase patriarcais, têm a ver, em grande parte, com a conservação das tradições antigas. O ancião é objeto do respeito e o
centro da família e duas ou três gerações exploram, com freqüência juntas, a mesma fazenda. – Os domésticos comem à mesa dos patrões – No dia 1º de novembro (é o
misdu da Bretanha), serve-se aos mortos um repasto de ovos e de farinhas em papa; cada morto tem seu couvert (Barginet, Les Montagnardes, III). Num vilarejo,
celebra-se ainda a festa do sol, segundo M. Champollion. – Encontra-se no Delfinado, como na Bretanha, os brayes célticos.
[183] Malgrado a pobreza do país, o bom senso de seus habitantes os preserva de toda empreitada ousada. Em certos vales, crê-se que existam ricas minas, mas uma
virgem vestida de branco guarda sua entrada com uma foice.
[184] Quando uma viúva ou um órfão experimenta alguma perda de gado, etc., todos se cotizam para repará-la.
[185] Setecentos professores primários sobre quatro mil e quatrocentos emigrantes. Peuchet, etc.
[186] Essas guerras lançaram um grande brilho sobre a nobreza delfinesa que era chamada de “o escarlate (a flor) dos cavaleiros”. É o país de Bayard (NT: Pierre
Terrail, senhor de Bayard) e desse Lesdiguières, que foi rei do Delfinado sob Henrique IV. O primeiro aí deixou uma longa lembrança; dizia-se proeza de Terrail, assim
como lealdade de Salvaing, nobreza de Sassenage – perto do valedo do Graisivaudan é o território de Royans, o valedo Cavaleiro.
[187] O nobre prestava homenagem de pé; o burguês de joelhos e beijando as costas da mão do senhor; o homem do povo também de joelhos, mas beijando somente o
polegar da mão do senhor. Vide Salvaing, Usage des fiefs? – Igualmente em Metz, o Diretor da magistratura municipal falava ao rei de pé e não de joelhos.
(NT): “Vavassalo” ( vavasseur no texto original): o vavasseur, ou vavassalo, do latim medieval vassus vassorum (vassalo dos vassalos) era o vassalo de um senhor que
também era vassalo de alguém. Os vavassalos eram da pequena nobreza e figuras comuns na feudalidade européia – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Vavasseur
[188] No Terror, os operários aí mantiveram a ordem com coragem e humanidade admiráveis, mais ou menos como, em Florença, o fiador de lã Michel Lando, na
inssurreição dos Ciompi.
[189] Diz-se expulsão de Grenoble para a expulsão a pedradas (Les Montagnardes, I, 37); como no Languedoc convite de Montpellier, convite sobre a escada
(“couvit de Mounpeié, couvida à l’escaié”). Millin, V, 328. (NT: Segundo Millin: “Esse provérbio languedoquiano provaria que a urbanidade jamais foi uma das principais
qualidades dos habitantes de Montpellier. É preciso crer que os costumes mudaram a esse respeito; ao menos a maneira pela qual fui acolhido me dá lugar para assim
pensar” – Voyage dans les départemens du Midi de la France, volume 4, parte 1, 1811, em Google Books).
[190] Perrin Dulac, Déscription de l’Isère (Grenoble, 1806, I, 207).
[191] Ele desceu para um albergue mantido por um velho soldado que lhe dera uma laranja na campanha do Egito.
[192] (NT): Grande Cartuxa (Grande Chartreuse) é o primeiro monastério e a casa-mãe da Ordem dos Cartuxos situado na comuna de Saint-Pierre-de-Chartreuse, no
Isère, ao pé do Grand Som, o quarto mais alto pico do Maciço da Chartreuse (Cartuxa).
[193] De início os Valdenses*, mais tarde os Protestantes. Apenas no departamento de Drôme, há cerca de trinta e quatro mil calvinistas (Peuchet et Chalaire,
statistique, etc.). Lembre-se a luta atroz do barão dos Adrets e de Montbrun. – O mais célebre dos protestantes do Delfinado foi Isaac Casaubon, filho do ministro de
Bourdeaux sur le Roubion, nascido em 1559 e enterrado em Westminster, em Londres.
* (NT): Valdenses, no original “Vaudois”, são os membros da Igreja Valdense, seguidores da doutrina de Pierre Valdo ou Pierre Valdès (c. 1174 – c. 1218). “Desde o
início, os valdenses afirmavam o direito de cada fiel ter a Bíblia em sua própria língua, sendo esta a fonte de toda autoridade eclesiástica.Os Valdenses reuniam-se em
casas de família ou, mesmo, em grutas, clandestinamente, devido à perseguição da Igreja Católica. Celebravam a Santa Ceia uma vez por ano. Negavam a supremacia de
Roma, rejeitavam o culto às imagens, vistas por eles como idolatria, e se diziam guardadores da doutrina cristã apostólica. Em virtude de sua recusa em interromper suas
pregações, eles foram excomungados em 1184. Mesmo após a morte de Pedro Valdo , em 1217, seus discípulos continuaram o movimento, sendo nomeados valdenses.
Condenados pelo papado, os valdenses foram perseguidos durante a Idade Média e, durante a Reforma Protestante juntaram-se ao nascente protestantismo no Sínodo de
Chanforan, em 1532. Desde então, os valdenses subscrevem o Calvinismo” – extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Valdenses.
[194] A velha divisa de Besançon era “Que agrade a Deus!” (Plût à Dieu) – Em Salins, lia-se sobre a porta de um dos fortes, onde estavam as salinas, a divisa de Filipe
o Bom: Autre n’auray (NT: “Outro não terei” – divisa da Ordem do Tosão de Ouro, que é uma ordem de cavalaria, criada em 1429, por Filipe III, Duque da
Borgonha, quando de seu casamento com a infanta Isabel de Portugal, filha do rei D. João I – http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_do_Tosão_de_Ouro, por redirecionamento de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Liste_des_devises_d’ordres_civils_et_militaires).
Vários monumentos de Dijon ostentavam a divisa de Filipe o Audaz: Moult me tarde [(NT: “Muito me tarda” – Esse era o grito de guerra de Filipe II da Borgonha,
a respeito do qual o padre Bérigal escreveu, no livro ‘L’illustre Jacquemart de Dijon’ (Dijon, V. Lagier, 1832, p. 16, nota 1), o seguinte: “O divertido Tabourout
fala, em suas ‘Bigarrures’ (Miscelâneas), desse brado de guerra, e pretende que ele seja, na origem, da expressão “mostarda de Dijon” (“ moutarde de
Dijon”). Segundo ele, os Cartuxos desta cidade mandaram esculpir, sobre o portal de sua igreja, as armas do Príncipe e, abaixo, a divisa “Moult me tarde”, a
qual fora gravada sobre uma fita (de pedra) mas, de tal forma disposta, que o monossílabo “me” estava numa dobra um pouco oculta da fita, de sorte que as
únicas palavras “moult tarde” estavam em evidência. Assim, os passantes, ignorantes ou maliciosos, lendo a palavra “moultarde”, diziam que, nos Cartuxos,
encontrava-se a tropa dos moultardiers de Dijon (“mostardeiros de Dijon”)”].
Em Besançon, nasceu o ilustre diplomata Granvelle, chanceler de Carlos Quinto, morto em 1564.
[195] Igualmente na Abadia de Saint-Claude, transformada em bispado em 1741, os religiosos deviam fazer prova de nobreza até os seus trisavós, paternal e maternal.
Os cônegos deviam provar dezesseis quartos, oito de cada lado.
[196] Penchet e Chanlaire, Statistique du Jura. O Franco-Condado é a região melhor arborizada da França. Conta-se trinta florestas sobre os rios Saône, Doubs e
Lougnon. – Muitas fábricas de projéteis, de armas etc. Muitos cavalos e bois, poucas ovelhas; péssimas lãs.
[197] (NT): Frederico Barba-Ruiva (ou Barbarossa, ou Barba-roxa), 1122-1190, foi Frederico I, do Sacro Império Romano Germânico, Rei da Itália e Duque da Suábia
(sob o título Frederico III), sob quem o Império Germânico conheceu grande esplendor, tendo imposto sua autoridade ao papado, além de ter sido postumamente
reconhecido como um dos responsáveis pela unidade do povo alemão. Após ter abdicado em favor de seu filho, empreendeu, com a avançada idade de 68 anos, a terceira
cruzada para tentar reaver Jerusalém das mãos de Saladino, não conseguindo, todavia, realizar seu intento por ter morrido afogado no rio Sélef (hoje Gosku), na Anatólia
(parte oriental da Turquia), após uma queda de cavalo, em virtude do peso de sua armadura -a partir do sítio internet
http://fr.wikipedia.org/wiki/Frédéric_Barberousse e do sítio internet http://pt.wikipedia.org/wiki/Frederico_I,_Sacro_Imperador_Romano-Germânico).
[198] Ausônio consagrou um poema para homenagear o Mosela:
Salve, amnis laudate agris, laudate colonis,
Dignata imperio debent cui mœnia Belgæ:
Amnis odorifero iuga vitea consite Baccho,
consite gramineas, amnis viridissime, ripas:
Salve, magne parens frugumque virumque, Mosella!
(NT):
Salve, rio, ao solo bem-vindo e pelos fazendeiros louvado,
A ti, a quem os Belgas devem a dignidade de pertencerem ao império:
Ó rio, com tuas encostas de cheirosas vinhas plantadas,
cujas margens relvadas, ó rio, são verdejantes:
Salve, tu, Mosela, pai magno do milho e dos homens.
[199] Sobre os costumes dos habitantes dos Três-Bispados, e da Lorena em geral, vide o Memorando manuscrito de M. Turgo que se encontra na biblioteca pública de
Metz: Description exacte et fidèle du pays Messin,etc.. – Os três bispos eram príncipes do Santo Império – Os condados de Créange e a baronia de Fenestrange eram
subvassalas do Império.
[200] Via-se, em Metz, o túmulo de Luís I (o Debonário) e o original dos Anais de Metz, MSS. de 894. – As abelhas, da quais ele faz tanta menção nos capitulares, e
que davam a Metz seu hidromel tão vangloriado, eram criadas, antes da Revolução, pelos curas e eremitas; atualmente, elas são muito negligenciadas. Após cinqüenta
anos, a coleta de mel diminuiu pela metade. Peuchet e Chanlaire, Statistique de la Meurthe.
[201] Piganiol de la Force, XIII: Ela estava pela metade na justiça da cidade e nomeava, com seu Capítulo, os deputados para os Estados da Lorena – A deã
(superiora) e a sacristã dispunham, cada uma, de quatro curas. A sonzier, ou recebedora, partilhava com a abadessa a justiça de Valdajoz (val-de-joux), consistente em
dezenove vilarejos; todos os enxames de abelhas que aí se encontrasse pertenciam-lhe de direito. A abadia tinha um grande preboste (pessoa encarregada de chefiar o
serviço de polícia), um grande e um pequeno chanceler, um grande sonzier etc – Para ser dama de Remiremont, era necessário provar duzentos anos de nobreza dos
dois lados.
[202] Um duque da Alsácia e da Lorena, no sétimo século, desejava um filho; ele não teve senão uma filha cega e a abandonou. Um filho nasceu-lhe mais tarde o qual,
um dia, trouxe a filha ao velho duque, que se tornara feroz e triste, solitariamente retirado no castelo de Hohenbourg. De início, ele a repeliu, depois, dobrou-se e fundou
para ela um monastério que, desde então, leva seu nome: Santa Odília. Do alto dele, descobre-se Baden e a Alemanha. De todas as partes, os reis para aí vinham em
peregrinação: o Imperador Carlos IV, Ricardo Coração de Leão, um rei da Dinamarca, um rei de Chipre, um papa... Esse monastério recebeu a mulher de Carlos Magno e
aquela de Carlos o Gordo – Em Winstein, ao norte do Baixo-Reno, o diabo guarda, num castelo talhado na rocha, preciosos tesouros. – Entre Haguenau e Wissembourg,
uma chama fantástica sai da fonte do piche (Pechelbrunnen); essa chama é o caçador, o fantasma de um antigo senhor que expia sua tirania, etc. – O gênio musical e
juvenil da Alemanha começa com suas lendas poéticas. Os menestréis da Alsácia participavam regularmente de suas assembléias. O Sire (senhor) de Rapolstein
intitulava-se o Rei dos Violinos. Os violinistas da Alsácia dependiam de um senhor: os da Alta-Alsácia deviam se reportar a Rapolstein, aqueles da Baixa, a Bischwiller.
[203] Ao lado dessa bela lenda, onde o êxtase produzido pela harmonia prolonga a vida durante séculos, coloquemos a história dessa mulher que, na época de Luís o
Debonário, escutou a música do órgão pela primeira vez e morreu de júbilo. Assim, nas suas lendas alemãs, a música dá a vida e traz a morte.
[204] Nas vizinhanças de Neufchâteau. Essa árvore tem dezessete pés de diâmetro. Depping, II. (NT: o Carvalho dos Partisans resistiu até o ano de 1926, quando
tombou pelo vento. A ele atribuía-se a idade de 700 anos e foi sob essa árvore que se travou, no ano de 1634, um combate entre as tropas do rei francês Luís XIII e os
guerrilheiros do Duque da Lorena. Um texto de 1926 menciona que ele tinha 14 metros de diâmetro, sua copa começava na altura de 7,50 metros e sua altura total era de
55 metros – a partir de http://krapooarboricole.wordpress.com/2009/09/17/chene-des-partisans-chene-claudot-saint-ouen-les-parey-vosges/).
[205] Guill. Britonis Phillipp., libr. X:
Qui (Lotharingi) cùm simplicibus solcant sermonibus uti,
Non tamen in factis ità delirare videntur.
[NT: Que (os Lorenos), tendo à boca as palavras dos homens simples,/
Ainda assim, estão longe de se mostrar desprovidos de polidez.] - adaptado a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumelebreton/philippide10.htm
[206] Vide as Notices des Manuscrits de la Bibliothèque royale, na sequência das Mémoires de l’Acadèmie des Inscriptions.
[207] Em Metz, nasceram o marechal Fabert, Custines, e esse audacioso e desafortunado Pilâtre de Rozier*, que foi o primeiro a ousar embarcar num balão. O Édito de
Nantes expulsou os Ancillon.
*(NT): Jean-François Pilâtre de Rozier e Pierre Ange Romain foram os pioneiros da conquista do ar e, também, as primeiras vítimas fatais conhecidas de um acidente
aéreo; ambos morreram ao tentarem cruzar o Canal da Mancha, sentido França-Inglaterra, no dia 15 de junho de 1785, e repetir o feito do rival Jean-Pierre Blanchar que,
financiado pelo americano John Jeffries (também seu “co-piloto”), conseguira atravessá-lo em janeiro daquele ano, no sentido inverso, i.e., Inglaterra-França – a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Pilâtre_de_Rozier e http://fr.wikipedia.org/wiki/Jean-Pierre_Blanchard.
[208] (NT): Guillaume de la Marck (? – 1485), cujos apelidos eram Javali das Ardenas ou Guilherme (Guillaume) da Barba. Senhor de Lumain e de Schleiden, e um
dos mais poderosos senhores do Principado de Liège, traiu seu senhor, Luís de Bourbon, Princípe-Bispo de Liège (Liège foi um principado eclesiástico do Sacro
Império Romano-Germânico, de 985 a 1795) e refugiou-se junto ao rei da França, Luís XI, a quem pediu um corpo de tropas, prometendo-lhe garantir passagem livre
pelo Principado toda as vezes que o rei desejasse entrar no Brabant (Ducado de Brabant, situado sobre territórios atualmente da Bélgica e da Holanda ). Luís
aceitou a proposta e forneceu-lhe cem lanceiros e trinta mil soldados. La Marck entrou no Principado com uma parte de sua tropa que, para se reconhecer, trajava uma
veste vermelha com uma cabeça de javali bordada sobre a manga. Ele marchou contra Liège e aí assassinou o Príncipe-Bispo tornando-se, então, o senhor de quase todo o
Principado, e pondo a fogo e sangue tudo e todos que recusassem submeter-se. – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Guillaume_de_La_Marck.
[209] (NT): Gruta de Han: uma das várias grutas e cavernas do complexo turístico natural Domaines des grottes de Han , no departamento de Han-sur-Lesse, região
valã da Bélgica – vide o sítio oficial em www.grotte-de-han.be; a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Domaine_des_grottes_de_Han.
[210] (NT): Os Quatro Filhos Aymon ( les quatre Fils Aymon ) são paladinos celebrados pela literatura medieval de cavalaria saídos das canções de gesta do ciclo
merovíngio, notadamente a Canção dos quatro filhos Aymon , cujos protagonistas (Renaud, Alard, Richard e Guichard) são adversários do rei Carlos Magno, que é
descrito como um senhor feudal cruel e traiçoeiro. O encantador Maugis é primo dos quatro. O cavalo Bayard pertence ao irmão Renaud de Montauban (ou Rinaldo de
Montalbano ou, em português, Reinaldo de Montalvão). A lenda foi muito difundida durante o século XIX por toda a Europa (a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Quatre_fils_Aymon; http://fr.wikipedia.org/wiki/Renaud_de_Montauban http://pt.wikipedia.org/wiki/Reinaldo_de_Montalvão)
[211] Nele se lê como o bom Renaud engabelou Carlos Magno; como ele teve, entretanto, bom fim, passando, humildemente, de cavaleiro a pedreiro, e carregando,
sobre as costas, enormes blocos de pedra para construir a santa igreja de Colônia.
[212] O Saône até o Ródano, e o Ródano até o mar, separavam a França do Império (germânico). Lyon, construída sobretudo sobre a margem esquerda do Saône, era
uma cidade imperial, mas os condes de Lyon possuíam as vizinhanças de Saint-Just e de Saint-Irénée na França.
[213] Sêneca:
Vidi duobus imminens fluviis jugum,
Quod Phoebus ortu semper obverso videt,
Ubi Rhodanus ingens amne prærapido fluit,
Ararque dubitans quo suos cursus agat,
Tacitus quietis alluit ripas vadis.
(NT:)*
Vi um monte elevando-se sobre dois rios,
que Febo sempre vê voltado para o nascer do sol,
onde o Ródano, notável pela torrente ligeira, flui
e o Árar (Saône), hesitante para onde dirigir o seu curso,
banha, silencioso, as margens com suas águas plácidas.
* (adaptado de Apocolocyntosis De Providentia, Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2010 - www.letras.ufmg.br/vivavoz/data1/arquivos/Apocoloquintose_site.pdf)
[214] Suetônio, in C. Caligula – Juvénal, I, 43:
Palleat ut nudis pressit qui calcibus anguem,
Aut Lugdunensem rhetor dicturus ad aram
(NT):*
Mais pálidos que aquele que pisa a serpente com um calcanhar nu,
Ou que está prestes a recitar seu discurso no altar Lionês.
*(adaptado pelo Tradutor a partir da tradução em inglês por G. H. Smith, F.G..S. e do texto em francês em http://remacle.org/bloodwolf/satire/juvenal/satire1a.htm)
[215] (NT): a ponte, construída por volta de 843, não existe mais desde o ano de 1845. O festival de precipitação dos touros, que eram recuperados pelos marinheiros e,
então, abatidos em terra, dava-se, originariamente, à ocasião da Festa da Maravilhas, que acabou emprestando seu nome ao primeiro arco da ponte (arco maravilhoso) –
vide texto e gravuras em http://solko.hautetfort.com/tag/saint-nizier.
[216]
D....M.
ET MEMORIÆ AETERNÆ IVE.
I. ALEXSANDRI NACIONE AFRI.
CIVI.
CARTHAGINENSI. OMINI OPTIMO
OPIFI
CHARTIS VITRIÆ QUI VIX ANOS LXX....
À alma e à memória eterna de Julius
Alexander, nascido na África, cidadão de
Cartago, homem excelente, artesão na
arte da vidraçaria, que viveu 70 anos...

[217]
À alma e à memória eterna de
Vitalinus Félix, veterano da
D.M . legião minervina, homem
ET. M EM ORIÆ ÆTERN. sapientíssimo e fidelíssimo
VITALINI. FELICIS. VET. LEG. negociante de papel, renomado
M . HOM INI. SAPIENTISSIM em Lyon por sua probidade, o
ET FIDELISSIM O NEGOTIA qual morreu após ter vivido 8
RI LUGDVNENSI. ARTIS. C. (?) anos, 5 meses e 10 dias.
TARIÆ QUI. VIXIT ANNIS Nasceu na segunda-feira, partiu
VIII. M . V. D. X. NATUS EST. D. para a guerra na segunda-feira;
M ARTIS. DIE. M ARTIS. PROF obteve sua licença na segunda-
TVS. DIE. M ARTIS. M ISSIONE feira e morreu na segunda-feira.
PERCEPIT. DIE. M ARTIS. DEF Seu filho Vitalinus Felicissimus
VNCTUS. EST. FACIENVUM . C. e sua esposa Julia Nice
VITALIN FELICISSIM VS. FI ergueram-lhe esse túmulo e o
VS. ET. IVLIA NICE. CON dedicaram sob Ascia – Millin, I,
VNX. ET. SVB. ASCIA. DEDI 508, 457.
CAVERVNT.

[218] Falarei mais à frente do industrialismo atual de Lyon. O estado desta cidade é um dos mais graves e mais tristes objetos da história moderna. Todas as altas
questões da economia e da política aí interessam. Tratá-las aqui seria fazer o quadro do mundo em virtude de uma cidade.
[219] Vide o martírio de São Potino em Eusébio, l. I, c. 5.
[220] Ele nasceu em Amboise, em 1743. – Um bispo da Polônia, em 1147, introduziu, numa igreja que mandara construir, os ritos da igreja de Lyon. Commerus, l. VI,
ap. Duchesne, Anciènnes villes de France. Não faz muito tempo, cantava-se o ofício em Lyon sem órgãos, livros ou instrumentos, como na primeira era do cristianismo.
[221] Assim como MM. Ampère, Degerando, Camille Jordan, De Sénancour. Suas famílias, aos menos, são lionesas.
(NT): Pierre-Simon Ballanche, 1776-1847, filósofo e escritor. André-Marie Ampère, matemático, físico, químico e filósofo, 1775-1836, autodidata, sua influência na
física (elétrica, eletromagnetismo, telégrafo etc.) é inegável; seu sobrenome virou unidade de medida e, junto com Lord Kelvin, são os dois únicos seres humanos cujos
sobrenomes batizam duas das sete unidades de base do sistema internacional, também conhecidas por “unidades básicas do SI” -
http://physics.nist.gov/cuu/Units/units.html); seu nome, dentre os dos 72 “grandes sábios”, está gravado na Torre Eiffel.
[222] Após terem redigido este instrumento, os irmãos adotivos presenteavam-se com chapéus de flores e corações de ouro.
[223] Gallia Christiana, t. IV. – Num diploma do ano 1189, Filipe Augusto reconhecia que Lyon e Autun têm, uma sobre a outra, quando uma das sés vier a vagar, o
direito de regalo e de administração. – O bispo de Autun era, de direito, presidente dos estados da Borgonha – Há de se lembrar as ligações que existiam entre São
Leodegário (Saint-Léger), o famoso bispo de Autun, e o bispo de Lyon.
[224] Autun possuía em suas armas, inicialmente, a serpente druídica (vide o Tomo I sobre o “ovo da serpente”), depois o porco, o animal que se alimenta da bolota de
carvalho (símbolo céltico). Rosny, p. 209. – De acordo com os privilégios de Autun, o chefe das armas e da justiça se chamava Vierg (vergobretum em latim, ver-go-
breith, gaélico, “homem para o julgamento”). Courtépée, Description de la Bourgogne, III, 491.
[225] Entre Autun e Saint-Prix, encontra-se lavas lamacentas. O abade Soulavie descobriu um vulcão em Drevin, a cinco léguas leste de Autun. Mémoires de
l’Académie de Dijon, 1783. – A gruta de Argental é célebre por suas belas cristalizações. Millin, I, 343. – Encontra-se também, nas cercanias, prata, cobre, ferro. Rosny,
p. 281.
[226] Inscrição encontrada em Autun:
DEAE BIBRACTI
P. CAPRIL. PACATUS
VIR AUGUSTA.
V. S. L. M

(NT):

Deae Bibracti
P. Capril(ius) Pacatus
Vir Augustal(is) v(otum) s(olvit)
l(ibens) m(erito)

À deusa Bibracte
Publius Caprilius Pacatus
sevir augustal
saldou esses votos de forma livre e
meritoriamente

O dedicante carrega os tria nomina (três


nomes) dos cidadãos Romanos e é um sevir,
ou seja, um escravo liberto designado, para o
ano em curso, para supervisionar o culto
imperial da cidade – adaptado a partir do
texto disponível em
http://theses.univ-lyon2.fr/documents/
getpart.php?id=lyon2.2009.beck_
n&part=159185

[227] Parece que a aristocracia entregou-se inteiramente a Roma, enquanto o partido druídico e popular procurou retomar a independência. “O sábio governo de Autun”,
diz Tácito, “reprimiu a revolta dos bandos fanáticos de Maricus, Boio da laia do povo, que se tomava por um deus e por libertador das Gálias” (Annal., l. II, c. 61). Viu-se,
no Tomo I, a revolta de Sacrovir – Enfim, os Bagaudas saquearam Autun duas vezes. Então, foram fechadas as escolas Moenianas que o grego Eumênio reabriu sob o
patronato de Constâncio Cloro – Francisco I visitou Autun em 1521 e a chamou “sua Roma francesa”. Autun fora chamada a irmã de Roma, segundo Eumênio, ap. Scr.
fr. I, 712, 716, 717.
[228] Ele quase foi arruinada por Aureliano quando de sua vitória sobre Tétrico que aí cunhava suas medalhas. – Saqueada pelos Alemães em 280, pelos Bagaudas sob
Diocleciano, por Átila em 451, pelos Sarracenos em 732, pelos Normandos em 886 e 895. Em 924, não se pôde afastar os Húngaros senão a preço de prata. Histoire
d’Autun, por Joseph de Rosny, 1802.
[229] Vide as armas de Dijon e de Beaune – Um baixo-relevo de Dijon representa os triúnviros segurando, cada um, uma caneca. Esse traço é local. – A cultura da
vinha, tão antiga nesse país, influiu singularmente sobre o caráter de sua história, multiplicando a população nas classes inferiores. Esse foi o principal teatro da guerra dos
Bagaudas. Em 1630, os vinhateiros revoltaram-se sob a condução de um antigo soldado que eles chamavam rei Machas.
[230] Vide a curiosa compilação de la Monnoye – Piron era de Dijon (nascido em 1640, falecido em 1727) – a Festa dos Loucos era celebrada em Auxerre até 1407. –
Os cônegos jogavam bola (pelota), até 1538, na nave da catedral. O último cônego fornecia a bola e a dava ao deão (superior); terminada a partida, vinham as danças e o
banquete. Millin, I.
[231] Não nos esqueçamos também da pitoresca e mística cidadezinha de Paray-le-Monial, onde nasceu a devoção do Sagrado Coração (Sacré-Coeur), onde morreu
madame de Chantal. Há, certamente, um sopro religioso sobre o país do tradutor da Simbólica (NT: “Religions de l'antiquité considérées principalement dans leurs
formes symboliques et mythologiques”, autor Georg Friedrich Creuzer) e do autor de Solitude, MM. Guigniaut e Dargaud.
[232] Sabe-se que assim foi apelidado Carlos VII.
[233] Os muros antigos de Troyes eram construídos com os destroços dos monumentos romanos e as cornijas e os capitéis o eram com as pedras carregadas de
inscrições etc., como os muros de Arles e de Narbonne.
A grande cidade de Bar-sur-Saigne
Fez tremer Troye na Champagne
Froisard
[234] Segundo Loyseau, a partir da morte de muitos nobres em Fontenay (842); segundo Pithou, desde a batalha das Fossas de Jaune perto de Bray; segundo Favin, a
partir da batalha de Massoure; mas essa nobreza de mãe se encontra alhures, também na França e, mesmo, à época da primeira dinastia (Vide Beaumanoir). Carlos V (15
de novembro de 1370) sujeitou os nobres de mãe ao direito de feudo franco. Na segunda redação do Costume de Chaumont, os nobres de pais reclamam contra; Luís XII
ordena que a coisa fique suspensa. – O Costume de Troyes consagrava a igualdade de partilha entre os filhos e, daí, o enfraquecimento da nobreza. Por exemplo, Jean,
Senhor de Dampierre, visconde de Troyes, morreu deixando várias crianças que partilharam o viscondado entre si. Por efeito das partilhas sucessivas, Eustáquio de
Conflans possuiu um terço que ele cedeu a um capítulo de monges. O segundo terço foi dividido em quatro partes e, cada parte, em doze lotes, os quais foram, então,
divididos entre diversas casas e as terras dominiais da cidade e do rei.
[235] Urbano IV (Papa) era filho de um sapateiro de Troyes. Ele aí construiu a basílica de Santo Urbano e mandou representar, numa tapeçaria, seu pai fabricando
sapatos.
[236] E, com frequência, também pelos padres. Os condes de Champagne protegeram São Bernardo, mas eles protegeram igualmente Abelardo, seu rival. Foi às
margens do rio Ardusson, entre Nogent e Pont-sur-Seine, que Abelardo fundou o Paracleto.
[237] O antigo tipo do camponês do norte da França é o honesto Jacques que, entretanto, findou por fazer a Jacqueria*. O mesmo, considerado como simples e
debonário, chama-se Jeannot; quando ele cai num desespero infantil e se torna raivoso, ele toma o nome de Jocrisse. Envolvido pela revolução, ele singularmente
desapatetou-se, ainda que, na epóca da restauração, tenham-lhe apelidade de Jean-Jean. – Essas palavras diversas não designam os ridículos locais, como aqueles de
Arlequim, Pantalon, Polichinele, na Itália. – Os nomes mais comumente apresentados pelos domésticos, na velha França aristocrática, eram os nomes das províncias:
Loreno, Picardo e, sobretudo, Brie e Champagne. O Champanhês é, em efeito, o mais disciplinável dos provinciais, ainda que, sob sua simplicidade aparente, ele possua
muita malícia e ironia.
*(NT): Jacqueria (Jacquerie), ou “Revolta dos Jacques” designa a “Grande Jacqueria” de 1358 e, por extensão, as numerosas revoltas camponesas na França, no
Ocidente Medieval e na Europa do Antigo Regime. O termo é utilizado em História para designar as revoltas componesas do período revolucionário e, de forma análoga,
em ciências políticas, para designar toda sublevação camponesa. Seu nome foi tirado de Jacques Bonhomme, cognome dado aos plebeus e, depois, um apelido que passou
a designar, indistintamente, o camponês francês, provavelmente por vestir calças curtas, chamadas “jacques” (Jacques Bonhomme pode ser traduzido para Tiago Bom-
Homem, se quisermos ter uma noção mais clara do apelido escarnecedor; algo semelhante ao Jeca Tatu brasileiro e que, coincidentemente também designa as
calças curtas na altura das canelas, apelidadas de “Jeca”) –a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Jacquerie
http://fr.wikipedia.org/wiki/Grande_Jacquerie.
[238] Que persiste-se, erradamente, em chamá-lo Kiot de Provence, segundo a ortografia do alemão Wolfram von Eschenbach. Essa engenhosa retificação é do jovem
e sábio M. Michel, que já tanto fez pelas ilustrações das antiguidades literárias da França.
(NT): Chrétien de Troyes (1135-1183), poeta e trovador francês, considerado o fundador da literatura arturiana em francês e um dos primeiros autores dos romances de
cavalaria. Guyot (ou Guiot) de Provins (c. 1150-?) visitou, recitando seus versos, as principais cidades da Europa, partiu em peregrinação para Jerusalém e findou por
se tornar religioso em Cluny, compondo, em seu retiro, sob o título de Bíblia, um poema satírico no qual critica os vícios dos homens de todas as classes, desde os príncipes
até os menores; esse poema de 2700 versos é um dos mais velhos livros onde a bússola é mencionada, sob o nome de “Marinette” – a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Chrétien_de_troyes e http://fr.wikipedia.org/wiki/Guiot_de_Provins.
[239] Passerat e Pithou – O espírito zombeteiro do norte da França brilha nas festas populares. Na Champagne e alhures: rei da esmola (burguês eleito para libertar
dois prisioneiros etc.); rei da péla (ou da bola – Dupin, Deux-Sèvres); rei dos Arbaleteiros com seus cavaleiros (Cambry, Oise, II); rei dos pobres , ainda em 1770
(almanach d’Artois, 1770); rei das roseiras ou dos jardineiros, ainda hoje na Normandia, Champagne, Borgonha etc – Em Paris: festa dos sub-diáconos ou diáconos-
fartos, que fazia um bispo dos loucos e o bajulavam com couro curtido; cantava-se canções obscenas; comia-se sobre o altar. – Em Evreux: no dia 1º de maio, o dia de
São Vital, era a festa dos cornudos, os participantes coroavam-se com folhagens, os padres colocavam suas sobrepelizes ao contrário e lançavam-se, uns contra os
outros, farelos nos olhos; os corneteiros lançavam quebras-focinhos (tortas) – Em Beauvais: levava-se, em passeio, uma jovem e uma criança, sobre um asno,... à
missa! e o refrão cantado em coro era hihan! hihan! – Em Reims: os cônegos caminhavam em duas filas, cada qual arrastando um harenque e cada qual tentando
caminhar sobre o harenque do outro... – Em Bouchain: festa do preboste dos atordoados ; em Châlons-sur-Saône, dos galhardões; em Paris: das crianças sem
preocupação, do regimento do solidéu e da confraria do lombo da vaca – Em Dijon: procissão da madre louca – Em Harfleur: na terça-feira gorda (mardi-gras),
festa da serra (nas armas do Presidente Cossé-Brissac, havia uma serra); os Magistrados beijam os dentes da serra. Dois mascarados carregam os bastões frisados (a
parte de cima da serra) que são depois levados a um marido para que finja bater em sua mulher – Desde o tempo da conquista de Guilherme, existia a associação da
cavalaria de Honfleur (NT: a tradição ainda é mantida em Honfleur e o brasão d’armas da confraria mostra serras horizontais sobre um fundo negro – vide
http://harfleur-histoireetpatrimoine.over-blog.com/article-l-origine-du-nom-de-la-fete-de-la-scie-101606390.html
[240] Sobre a montanha de Langres, nasceu Diderot. É a transição entre a Borgonha e a Champagne. Ele reuniu os dois temperamentos.
[241] Isso deve ser entendido não apenas a respeito do vinho, mas da vinha. As terras que dão o vinho da Champagne parecem caprichosas. As pessoas do país
asseguram que, num terreno de três arpentes perfeitamente semelhantes, não existe, com frequência, senão aquele do meio, que dá o bom vinho.
[242] Uma terra que, semeada de trigo candial, ocuparia cinco ou seis cuidadores, ocupa, todavia, seiscentas ou setecentas pessoas, homens, mulheres e crianças,
quando está plantada com vinhas. Sabe-se como o vinho da Champagne exige isso. Bourgeois-Jersaint, Statistique de la Marne, p. 81. – O estrangeiro (Rússia,
Inglaterra, Alemanha) o consome, hoje, mais que a França. Nós preferimos o vinho da Borgonha. É que, depois de tantas confusões e agitações, não mais precisamos
despertar o espírito irritando os nervos mas, antes, fortificando o corpo.
[243] La Fontaine diz de si próprio:
Je suis chose légère, et vole à tout sujet;
Je vais de fleur en fleur, et d'objet en objet;
À beaucoup de plaisirs je mêle un peu de gloire.
J'irais plus haut, peut-être au temple de M émoire,
Si dans un genre seul j'avais usé mes jours;
M ais quoi! je suis volage en vers comme en amours
(NT):
Sou coisa leve e vôo por qualquer motivo;
Vou de flor em flor, e de objeto em objeto;
A muitos prazeres, eu misturo um pouco de glória.
Iria mais alto, talvez ao templo da Memória,
Se num único gênero eu tivesse gasto meus dias;
Mas como! Sou volúvel em versos como em amores.

“O poeta”, diz Platão, “é coisa leve e sagrada”

[244] Do lado de Coutances, particularmente, diz o inglês Dibdin em seu Voyage Bibliographique, os tipos e a paisagem são singularmente ingleses.
[245] (NT): O Autor fala da conquista da Inglaterra, em 1066, pelo Duque Guilherme da Normandia (Guilherme o Bastardo ou o Ruivo) e vassalo do rei da França que,
após a conquista, tornou-se o rei Guilherme I. Data daí o curioso fato do rei da Inglaterra ser vassalo do rei da França e ter de prestar-lhe hommage (homenagem).
[246] O doutor Milnes atribui a superioridade às catedrais inglesas e atribui o nascimento da ogiva à Inglaterra. Vide M. de Caumont, Cours d’Antiquités
Monumentales, t. II.
[247] (NT): Échiquier significa tabuleiro de xadrex. Entretanto, no contexto histórico e textual, o échiquier constituía-se, no Ducado da Normandia, no equivalente à
Câmara (ou Tribunal) de Contas de outros reinos e principados. O Échiquier foi criado na Normadia, no século X, por Rollo (ou Rollon), seu primeiro Duque. Duas
explicações possíveis para o nome Échiquier: 1ª - o nome guardaria relação com a sala na qual se situava o primeiro échiquier, cujo piso alternava placas de pedras
brancas e pretas, como os tabuleiros de xadrez; 2ª - sobre a mesa onde eram analisadas as contas da tesouraria, colocava-se uma tapeçaria quadriculada em preto e
branco, cujos quadrados serviam para arrumar as diferentes moedas em curso no Ducado; tal tapeçaria era levada para todos os lugares pelos Duques, os quais findavam
suas decisões com essas palavras: actum in scaccario (ato do Erário) ou super scaccarium (sobre o Tesouro). O costume, transportado para a Inglaterra, foi se
transformando, no correr dos séculos, até chegar na palavra Exchequer, órgão do reino perante o qual os sheriffs vinham entregar suas contas e que, mais à frente,
dividiu-se em Upper Exchequer (Câmara de Contas) e Lower Exchequer (encarregado da administração corrente), ambos encontrando-se sob a direção do Chancellor
of the Exchequer, que ainda é a denominação oficial do Secretário do Tesouro ou Second Lord of Treasury ( o First Lord é, usualmente, o Primeiro-Ministro do reino)
- a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Échiquier_(finance), http://en.wikipedia.org/wiki/First_Lord_of_the_Treasury e
http://en.wikipedia.org/wiki/Chancellor_of_the_Exchequer)
[248] “Vedes esse pequeno campo?”, dizia-me M. D., ex-presidente de um dos tribunais da Baixa-Normandia, “se, amanhã, ele passasse a quatro irmãos, ele seria, no
mesmo instante, cortado por quatro sebes. Tanto aqui é necessário que as propriedades sejam claramente separadas” – Os Normandos são tão dedicados aos estudos da
eloquência, diz um autor do século XI, que se escuta até as pequenas crianças falarem como oradores… Quasi rhetore attendas (quase parecidos com oradores),
Gaufred., Malaterra, l. I, c. 3.
[249] Vide a obra de M. Estancelin e a Histoire des villes de France, por M. Vitet, Dieppe, t. II. – Parece que os habitantes de Dieppe teriam descoberto, antes dos
Portugueses, a rota das Índias; mas eles guardaram tão bem o segredo que acabaram perdendo a glória.
[250] Vide a excelente edição que a ele foi dada por M. Auguste Prévost, de Rouen, um dos nossos antiquários mais distintos.
(NT): A Nota do Autor refere-se ao livro Supplément aux notes historiques sur le Roman de Rou, Rouen, Édouard Frère, 1829, de Auguste Le Prévost. O Poema ou
Romance de Rou, escrito por Wace (também chamado Guace ou Wistace), conta a história do Ducado da Normandia, a partir das invasões vikings até a batalha de
Tinchebray, em 1106, sendo considerado a epopéia nacional da Normandia – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Roman_de_Rou e de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Auguste_Le_Prévost.
[251] Essa rudeza da Bélgica é sensível num monte de coisas. Pode-se ver, em Bruxelas, a pequena estátua do Manneken- Pis “o mais velho burguês da cidade”; dá-se
a ela uma roupa nova nas grandes festas.
(NT): O Manneken-Pis ou, em holandês literal, “o menino que mija”, é uma estátua mundialmente famosa. Oficialmente, a estatueta data de 1388 e há quatro principais
histórias de sua divertida origem, a mais antiga delas remontando ao ano de 1142. Na maravilhosa cidade do Rio de Janeiro, uma réplica foi executada, em 1908, por
Belmiro de Almeida “e esteve instalada na Praça Floriano até 1927, quando foi transferida, por ser considerada uma afronta aos bons costumes, para a praia de Botafogo,
próximo à sede do Mourisco, do então Clube de Regatas Botafogo”. Em 1957, tendo este clube vencido o Campeonato Carioca de Futebol, um torcedor vestiu uma camisa
do clube na estátua e, a partir daí, ela se tornou a “mascote” da agremiação; desde então, todas as vezes que o Botafogo obtém um título de campeonato de futebol, veste-
se a estátua com a camisa do clube. Após certas vicissitudes (roubo em 1990, nova réplica em 1993, transferência para a praça em frente à sede do Clube, Palacete
General Severiano, tombamento como patrimônio público pela Prefeitura da Rio de Janeiro, novo ato de vandalismo em 2008, com o furto do pênis da estátua), o Botafogo
passou a zelar por sua manutenção. O Manneken-Pis, no Rio de Janeiro, teve seu nome aportuguesado para “Manequinho”. – a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Manneken_Pis e http://pt.wikipedia.org/wiki/Manequinho.
[252] Poder-se-ia citar, ainda, Gaguin de Douai, Oudegherst de Lille e vários outros.
[253] Vide os Costumes do condado de Flandres, traduzidos por Legrand, Cambrai, 1719, 1º vol. Costumes de Gand, p. 149, rub. 26: (Niemandt en sal bastaerdii wesen
van de mœder…) “Ninguém será bastardo de mãe”; mas eles sucederão à mãe com os outros legítimos (não ao pai). Isso mostra bem que não é o motivo religioso ou
moral que os exclui da sucessão, mas a dúvida da paternidade. Nesses Costumes, há comunidade, partilha igual nas sucessões etc.
[254] Aí em Flandres, encontrareis a predileção pelo cisne que, segundo Virgílio, era o ornamento do rio Mincio e dos outros rios da Lombardia. A partir da entrada da
antiga Bélgica, Amiens, a pequena Veneza, como a chamava Luís XIV, alimentava, no rio Somme, os cisnes do rei. Em Flandres, uma multidão de albergues e hospedarias
tem por símbolo o cisne.
[255] Só a catedral de Milão é coroada de cinco mil estátuas e figurinos. M. Franchetti, o autor da Description desta prodigiosa igreja, assim me assegurou.
[256] Porém, é justo observar que esse instinto musical desenvolveu-se de uma forma notável, sobretudo na parte valã. Liège é a pátria de Grétry.
[257] Vide, no Museu do Louvre, o quatro intitulado Fête Flamande (Festa Flamenga). É o mais desenfreado e o mais sensual bacanal!
(NT): o Autor deveria estar se referindo ao quadro La Kermesse ou Noce Flamande (A Quermesse ou Boda Flamenga), de Rubens (1577-1640) – vide o quadro em
http://www.louvre.fr/oeuvre-notices/la-kermesse-ou-noce-de-village
[258] Para mim, a alta expressão do gênio belga está, para a parte flamenga, em Rubens e, para a parte valã ou céltica, em Grétry. A espontaneidade domina na
Bélgica, a reflexão na Holanda. Os pensadores amaram este último país. Para aí foi Descartes fazer a apoteose do “eu” humano e Spinosa a da natureza. Todavia, a
filosofia própria à Holanda é uma filosofia prática que se aplica às relações políticas dos povos: Grotius. – Se deseja-se comparar a Alemanha e os Países-Baixo, concluir-
se-á que a Áustria está para a Bélgica, assim como a Prússia para a Holanda; mas a Holanda é menos enérgica. Essa energia parece se refletir num caráter habitual de
calma e de taciturnidade. Vereis os calceteiros holandeses tomarem chá, na rua, três ou quatro vezes por dia. “Não encontrareis entre essas pessoas daqui”, disse um
viajante, “nem um ladrão para vos despojar, nem um guia para vos conduzir”.
[259] Seu aluno Van-Dick pinta, num de seus quadros, um asno de joelhos perante uma hóstia. Forster, Voyage en Allemagne en Flandre.
(NT): o quadro chama-se Le miracle de la mule ou o “Milagre da Mula” e encontra-se no Museu dos Agostinhos (Musée des Augustins), em Toulouse, podendo ser
visto em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Antoine_van_Dyck_-_Le_Miracle_de_la_mule_-_Musée_des_Augustins_-_2004_1_44.jpg
[260] Temos aqui a bela sequência dos quadros encomendados a Rubens por Maria de Médicis. Mas essa pintura alegórica e oficial não dá a idéia de seu gênio. É nos
quadros de Anvers e de Bruxelas que se compreende Rubens. É preciso ver, em Anvers, a Santa Família, onde ele colocou suas três mulheres sobre o altar e ele, atrás, de
São Jorge, uma bandeira nos punho e os cabelos ao vento; ele o pintou em dezessete dias – Sua Flagelação é horrível de brutalidade; um dos flageladores, para bater mais
forte, apóia o pé sobre a panturrilha do Salvador, um outro olha por baixo de sua mão e ri na cara do espectador; a cópia de Van-Dyck parece bem pálida ao lado do
quadro original (NT: vide em http://www.wga.hu/frames-e.html?/html/r/rubens/7graphic/06sketch.html ) – No Museu de Bruxelas, existe a “Descida da Cruz”, de um
vigor e de um movimento que levam à vertigem; Madalena enxuga o sangue do Salvador com o sangue-frio de uma mãe que lava o rosto de seu filho – Pode-se ver, no
mesmo Museu, o quadro “O Martírio de São Livino”, uma cena de açougue: enquanto se retalha a carne do mártir e que um dos carrascos a dá aos cães com uma pinça,
um outro mantém, em seus dentes, um estilete gotejando sangue. Ao meio desses horrores, sempre uma exposição de belas e imodestas carnes – O “Combate das
Amazonas” deu-lhe uma bela ocasião de pintar uma multidão de corpos de mulheres em atitudes passionais; mas sua obra-prima é, talvez, essa terrível coluna de corpos
humanos que ele costurou juntos no seu “Julgamento Final” [NT: vide em http://en.wikipedia.org/wiki/The_Great_Last_Judgement_(Rubens)].
[261] Sua família era da Estíria. O que há de mais impetuoso na Europa está nos seus dois cantos: a oriente, os Eslavos da Polônia, Ilíria, Estíria etc; a ocidente, os
Celtas da Irlanda, da Escócia, etc.
[262] A Flandres holandesa é composta de lugares cedidos pelo tratado de 1648 e pelo Tratado da Barreira (1715). Esse nome é significativo – A Marche, ou
Marquesado de Anvers, criado por Otto II, foi dado por Henrique IV ao mais valente homem do Império, a Godofredo de Bouillon, no século XI – Foi em Sas de Gand que
Otto mandou cavar, em 980, a fossa que separava o Império da França – Em Louvain, diz um viajante, a língua é germânica, os costumes são holandeses e a cozinha é
francesa – Com o idioma germânico começam os nomes astronômicos (Al-ost, Ost-ende); na França, como entre todas as nações célticas, os nomes são tomados de
empréstimo à terra (Lille, l’île, a ilha).
[263] Antes da imigação dos tecelões, na Inglaterra, por volta de 1382, havia em Louvain cinquenta mil deles. Forster, I, 364. Em Ypres (sem súvida compreendendo
também o subúrbio), havia duzentos mil em 1342. – Em 1380, “aqueles de Gand saíram com três exércitos”, Oudegherst, Chronique de Flandre , folº 301 – Esse país
úmido é, em várias partes, tanto insalubre quanto fértil. Para designar um homem lívido, dizia-se: “Ele se parece com a morte de Ypres” – De resto, a Bélgica sofreu
menos com os inconvenientes naturais de seu território do que com revoluções políticas. Bruges foi morta pela revolta de 1492; Gand, por aquela de 1540; Anvers, pelo
tratado de 1648, que fez a grandeza de Amsterdã, fechando o Escalda.
[264] A grande batalha dos tempos modernos deu-se precisamente sobre o limite das duas línguas, em Waterloo. Alguns passos para cá desse nome flamengo, encontra-
se o Monte São João (Mont-Saint-Jean) – O montículo que ergueu-se nessa planície parece um tumulus bárbaro, céltico ou romano. (NT: Napoleão chamava a batalha
de Waterloo de batalha do Monte São João, dada a proximidade de uma fazenda de mesmo nome neste lugar, a qual ainda hoje existe e que pertencera, inicialmente, à
Ordem dos Hospitalários de São João de Jerusalém, ordem esta religiosa e militar fundada à época das Cruzadas; a fazenda serviu de hospital para as tropas inglesas
quando da batalha de Waterloo – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Ferme_de_Mont-Saint-Jean).
[265] “Para!... sob teus pés está a poeira de um império... Aqui dorme tudo o que uma revolução do globo acumula de ruínas... O tumulo da França, o homicida
Waterloo!... Aqui, no ‘campo de honra’, a águia planou pela última vez; depois, tombou na planície rasgada de uma terra ensanguentada, trespassada que estava pela
flecha das nações conjuradas... E agora, ela arrasta os elos da corrente quebrada do mundo.”
“Stop!... for thy thread is on an empire’s dust!
...
The grave of France, the deadly Waterloo!
...
In “pride of place” here last the eagle hew,
Then tore with bloody talon the rent plain,
Pierced by the shaft of banded nation through;
...
He wears the shatter’d links of the world’s broken chain,
(Childe Harold’s pilgrimage, c. III, 17-8).
[266] (NT): O “misericórdia” era um punhal longo, estreito e fino utilizado para aplicar o “golpe de misericórdia” em um cavaleiro seriamente ferido e agonizante.
Tratava-se de um punhal que não poderia ser utilizado senão de perto. Segundo alguns, essa arma passou a ter esse nome porque obrigava o combatente a pedir
misericórdia quando ele estivesse sobre sua garganta. Embora fosse mais comumente utilizado sobre o combatente agonizante, não foram raros os casos em que este se
serviu dele para, num último esforço, matar seu vencedor, já que a lâmina poderia ser empurrada através do visor ou dos buracos de visão do elmo, com o objetivo de
alcançar o cérebro, ou através de espaços ou pontos fracos da armadura peitoral (na altura da axila), visando ao coração – http://fr.wikipedia.org/wiki/Miséricorde_(arme) e
http://en.wikipedia.org/wiki/Misericorde_(weapon).
[267] Faulconnier, Histoire de Dunkerque (1780, folº, t. II). Os magistrados de Dunkerque suplicaram em vão à Rainha Anne; eles tentaram demonstrar que os
Holandeses ganhariam mais que os Ingleses com a demolição de sua cidade. Não há leitura mais dolorosa e mais humilhante para um Francês. Cherbourg não existia mais;
não resta mais do que um porto militar de Ostende a Brest.
[268] “Eu aí tenho”, dizia Bonaparte, “uma pistola carregada apontada para o coração da Inglaterra”. “A praça de Anvers”, ele dizia em Santa Helena, “é uma das
grandes causas pelas quais estou aqui; a cessão de Anvers é um dos motivos que me determinaram a não assinar a paz de Châtillon”.
[269] (NT: “Campos, férteis campos esperamos, e as ilhas afortunadas...”, Horácio, “Époda 16” –(adaptado de
http://fleche.org/lutece/progterm/horace/epodes_16.html e de http://nonnumadanda.blogspot.com.br/2011/02/horace-epode-16.html).
[270] Aqui, é preciso ouvir Richelieu, Luís XIV e Bonaparte.
[271] A vítima da Inglaterra, Maria Stuart, deixou seu retrato em Saint-André d’Anvers, onde ainda é admirado.
[272] (NT): A Île-de-France era uma província, sob o Antigo Regime, que manteve seu nome (com exceção do período 1789-1945) até os dias de hoje. Compõe-se,
atualmente, de oito departamentos. Tal região nasceu da terra dominial da realeza constituída, a partir do século X, pelos reis capetíngios. Seu nome de “ilha”, apesar de se
situar em terra, tem duas explicações possíveis: 1ª - designaria a língua de terra delimitada pelos rios Oise, Marne e Sena; 2ª - seria uma alteração da expressão Liddle
Franke – Pequena França – na língua germânica dos Francos, eis que tal região, de fato, foi uma das terras de enraizamento dos povos Francos depois de sua penetração
na Gália, quando das grandes invasões bárbaras. – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Île_de_france.
[273] Em Orléans, a ciência e o ensino do direito romano; na Picardia, a originalidade do direito feudal e costumeiro; dois picardos, Beaumanoir e Desfontaines,
inauguram nossa jurisprudência.
[274] Bourges também era um grande centro eclesiástico. O Arcebispo de Bourges era patriarca, primaz das Aquitânias e metropolitano. Ele estendia sua jurisdição,
como patriarca, sobre os Arcebispos de Narbonne e de Toulouse e, como primaz, sobre aqueles de Bordeaux e de Auch (metropolitano das 2ª e 3ª Aquitânias); como
metropolitano, ele tivera, antigamente, onze eleitores, os bispos de Clermont, Saint-Flour, Le Puy, Tulle, Limoges, Mende, Rodez, Vabres, Castres, Cahors. Mas a elevação
do bispado de Albi em Arcebispado não deixou sob sua jurisdição senão as cinco primeiras daquelas sés.
[275] Como eram freqüentemente chamados nos poemas cavaleirescos da Idade Média. (NT: Foi mantida a grafia antiga, isto é, com “y”. Saint-Denis é São Dionísio
de Paris).
[276] A zombaria orleanesa era amarga e dura. Os Orleanenses receberam o apelido de guêpins*. Diz-se também: “A glosa de Orléans é pior que o texto”**. – A
Sologne (NT: região florestal do centro da França, entre os rios Loire e Cher) tem um caráter análogo: “Falcão de Sologne, que não se engana senão em seu
benefício”.
*(NT): Guêpins: relaciona-se ao inseto vespa (guêpe), devendo ser compreendido em seu sentido figurado, isto é: “VESPA, guêpe, vespe em velho francês, Guespin,
Guépin, Guébin, literário.: vivo e astucioso como a vespa, e também matreiro e astucioso. Diz-se, como apelido, os “Guêpins de Orléans”; o ditado de Trévoux cita
guépin no sentido de matreiro e astucioso: “Não vos fieis nesta mulher, é uma guêpine” (Glossaire etymologique des noms propres de France e d’Angleterre , por
Edouard Le Héricher, 1870, Paris e Avraches, disponível em Google Livros). E, ainda: “O espírito fino e zombeteiro dos Orleanenses fez-lhes ser atribuído o apelido de
guèpins, que é derivado do baixo latim guespa, corrupção de vespa, guêpe, como o indicam esses versos de Teodoro de Bèze: Aurelias vocare vespas suevimus./Ut
dicere olim mos erat nasum atticum (“Orléans tornou-se um sinônimo de suas vespas/Assim como se diz da Ática por sua sagacidade”)” – a partir do livro
“Dictionnaire étymologique, historique et anecdotique des Proverbes e des ...”, de Pierre-Marie Quitard, pag 440, P. Bertrand Livraria-Editora, Paris, 1842,
disponível em Google Livros – a tradução do latim para português deu-se a partir do texto em inglês do livro “Renaissance Studies: Articles 1966-1994”, de Malcolm
Smith, Librairie Droz, Genebra, 1999, p. 252, parcialmente disponível em Google Livros).
** (NT): “A glosa de Orléans é pior que o texto”: no Brasil, há um ditado semelhante para designar a situação em que a correção ou o esclarecimento fica pior que o texto
original, ou seja, “a emenda saiu pior que o soneto”.
[277] Pepino foi aí eleito em 750. Luís d’Ultramar aí morreu.
[278] Esta montanha tem uma altitude de cinqüenta toesas (NT: 92,50 metros) acima da planície, de noventa (NT: 166,50 m) acima do Sena, em Paris e de cem (NT:
185 m) em relação ao nível do mar. Peuchet et Chanlaire, Statistique de l’Aisne. – A três léguas de Laon, encontra-se Notre-Dâme de Liesse, fundada em 1141. Três
cavaleiros da região de Laon, prisioneiros do Sultão, recusam-se a abjurar a fé cristã. O Sultão envia sua filha para seduzi-los: eles a converteram, fazem-lhe aparecer uma
imagem milagrosa da Virgem; ela foge com eles levando a imagem e esta, tornando-se por demais pesada para ser levada mais longe, chega e permanece no burgo de
Notre-Dame de Liesse (NT: a basílica Notre-Dame de Liesse fica na cidade Liesse-Notre-Dame)
[279] Vide, na Revue des Deux Mondes, dois artigos de Victor Hugo e de M. de Montalembert. {NT: as palavras e textos de Victor Hugo dispensam maiores
comentários: ainda assim, ler algo que tenha sido escrito por ele é sempre uma experiência vivificante; bem se sabe que Victor Hugo salvou a Catedral Notre-Dame de
Paris da demolição pela feroz campanha que patrocinou, cujo melhor resultado é o livro “Notre-Dame de Paris”, mais conhecido pelo título que lhe foi dado em inglês e em
alemão e que, hoje, se tornou mundial (“O corcunda de Notre-Dame”). O artigo por ele escrito, brevemente mencionado pelo Autor nesta Nota, se chama “Guerre aux
démolisseurs” (“Guerra aos demolidores”), publicado em 1832, na Revista dos Dois Mundos, tomo 5, páginas 607-622, o qual se encontra disponível em
http://fr.wikisource.org/wiki/Guerre_aux_démolisseurs.}
[280] O torreão (ou torre de menagem) de Coucy tem cento e setenta e dois pés de altura e trezentos e cinco de circunferência. As muralhas têm até trinta e dois pés
de largura. Mazarin mandou explodir a muralha exterior em 1652 e, no dia 18 de setembro de 1692, um tremor de terra rachou o torreão de alto a baixo*. – Um antigo
romance atribui a um dos ancestrais dos Coucy nove pés de altura. Enguerrand VII, que combateu em Nicópolis, mandou colocar seu retrato e o de sua mulher, de altura
colossal, nos Celestinos de Soissons (NT: Enguerrand VII, 1339-1397, além de Senhor de Coucy e outras senhorias, era Conde de Soissons na França e de
Bedford na Inglaterra; Nicópolis é a cidade búlgara de Nikopol - http://fr.wikipedia.org/wiki/Enguerrand_VII e
http://fr.wikipedia.org/wiki/Bataille_de_Nicopolis). – Entre os Coucy, citemos somente Thomas de Marle, autor da Leis de Vervins (legislação favorável aos vassalos),
morto em 1130. – Raul I, o trovador, o amante verdadeiro ou pretenso de Gabrielle de Vergy, morto na cruzada em 1191 – Enguerrand VII, que recusou a espada de
Condestável e a fez ser entregue a Clisson, morreu em 1397 – Pretendeu-se, erradamente, que Enguerrand III, em 1228, quis tomar o trono durante a menoridade de São
Luís. Art de vérifier les dates, XII, 219, segs.
* (NT): O torreão de Coucy resistiu até à Primeira Guerra Mundial, quando, à ocasião de seu recuo sobre a Linha Hindenburg (Linha Siegfried para os alemães) e,
embora isso não fosse justificável do ponto de vista estratégico, as tropas alemãs decidiram destruir o sítio fortificado, além dos três pórticos de entrada da cidade. Vinte e
oito toneladas de chedita foram dispostas dentro do torreão e mais de dez toneladas nas torres de muralha do castelo. O torreão era o mais importante da Europa até sua
destuição e ultapassava o do Louvre (anteriormente destruído) em mais de 20 metros. As ruínas do castelo são, atualmente, objeto de trabalhos de restauração;
escavações arqueológicas trouxeram à luz a base de uma capela. O local é aberto à visitação – vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Château_de_Coucy.
[281] Esta família recente, que pretendia remontar a Carlos Magno, pode bem se orgulhar de ter produzido um dos maiores escritores do décimo-sétimo século e o mais
ousado pensador do nosso.
[NT: O Autor refere-se a Louis de Rouvroy, duque de Saint-Simon, 1675-1755, que, graças à publicação de suas Memórias, deu a conhecer o verdadeiro caráter de Luís
XIV e de seu tempo (as “Mémoires” podem ser lidas em http://rouvroy.medusis.com/) e a Claude Henri de Rouvroy, conde de Saint-Simon, 1760-1825, fundador do
São-Simonismo ou Socialismo (utópico) Francês – nota tomada emprestada à tradução em inglês por G. H. Smith, F.G.S e acrescida pelo Tradutor a partir de
pesquisas junto à fr.wikipedia.org).
[282] Pedro o Eremita. Vide mais abaixo.
[283] Calvino, nascido em 1509 e falecido em 1564.
[284] Condorcet nasceu em Ribemont, em 1743, e faleceu em 1794 – Camille Desmoulins nasceu em Guise, em 1762, e morreu em 1794 – Babœuf nasceu em Saint-
Quentin, morreu em 1797 – Béranger nasceu em Paris, mas de uma família picarda. Vide a Biographie de l’Aisne, por de Vismes.
[285] Nascido em Pithon ou em Ham. Vários generais da Revolução saíram da Picardia: Dumas, Dupont, Serrurier, etc. – Acrescentemos à lista daqueles que
ilustraram esse país fecundo em todo gênero de glória: Anselmo, de Laon; Ramus, morto na noite de São Bartolomeu; Boutillier, o autor da Somme Rurale; o historiador
Guibert de Nogent; o jesuíta Charlevoix; os d’Estrées e os Genlis.
[286] Digo outro tanto para o Artois que produziu tantos místicos; Arras é a pátria do abade Prévost. A região de Bolonha (NT: Boulogne-sur-Mer) pariu, em um
mesmo homem, um grande poeta e um grande crítico; eu falo de nosso Sainte-Beuve (NT: Charles Augustin Sainte-Beuve, 1804-1869).
[287] Cláudio o Loreno nasceu em Chamagne, na Lorena, 1600-1682. – Nicolas Poussin, originário de Soissons, nasceu em Andelys, 1594-1665. – Lesueur nasceu em
Paris, 1617-1655. – Jean Cousin, fundador da Escola francesa, nasceu em Soucy, perto de Sens, por volta de 1501. – Jean Goujon nasceu em Paris e morreu em 1572. –
Germain Pilon, nascido em Loué, a seis léguas de Mans, morto no final do século XVI. – Pierre Lescot, o arquiteto a quem se deve a Fonte dos Inocentes, nascido em
Paris em 1510, falecido em 1571. – Callot, esse rápido e espirituoso artista que gravou mil e quatrocentas pranchas, nascido em Nancy, em 1593, falecido em 1635. –
Mansart, o arquiteto de Versalhes e dos Inválidos, nasceu em Paris em 1645, falecido em 1708. – Lenôtre, nascido em Paris em 1613 e falecido em 1700, etc.
[288] Nascido em 1741, falecido em 1813 – É uma grande e curiosa originalidade essa, a de Liège. Quando terá ela um historiador?
[289] (NT): Tudo indica que o Autor está a se referir ao evento histórico conhecido como “Monarquia de Julho”, ocorrido em 1830, conseqüência direta dos “Três
Gloriosos”, estes compreendendo os três dias anteriores à deposição de Charles X que, tornado rei com a restauração da Monarquia (1815), tentou um golpe constitucional
objetivando o restabalecimento do Antigo Regime e a revogação da Carta Constitucional. A população pariense se enfureceu durante os “três gloriosos”, o rei fugiu, a
reinstituição da República foi discutida (La Fayette, velho e célebre general republicano a quem foi oferecida a República, não desejou suportar o fardo) e, desta forma,
liderados por Tayllerand, foi decretada a deposição de Charles X e a entronização de Louis-Philippe I, da Casa de Orléans, ramo caçula dos Bourbons (o simbolismo é
interessante em dois aspectos: 1º- Luís Filipe não foi “sagrado” rei, mas “entronizado” pelo povo francês, este representado pela Assembléia Nacional, e 2º - Luís Filipe foi
declarado “rei dos franceses” e não “rei da França”) – vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Trois_Glorieuses e http://fr.wikipedia.org/wiki/Monarchie_de_Juillet.

[290] Erasmus Darwin, 1731-1802, “Zoonomia: or the laws of organic life”, 1º vol., seção XXIX, pág 267, Ed. Thomas & Andrews, Boston, 1809, disponível em
Google Books).

[291] Não digo que a Alsácia não tenha nada disso, mas somente que ela os tem num grau inferior ao da Alemanha. Ela produziu, ela possui ainda, vários ilustres
filólogos. Todavia, a vocação da Alsácia é mais prática e política. A segunda Casa de Flandres e aquela da Lorena-Áustria são alsacianas de origem.
[292] Memorando lido na Academia de Ciências por M. Dugès (vide o Journal de Temps, 31 de outubro de 1831).
[293] Concil. Troslej, ann. 909 (Mansi, XVIII, p. 266): Dum jam janque adventus imminet íllius in majestate terribili, ub omnes cum gregibus suis venient pastores in
conspectum pastoris æterni, etc. (NT: “Agora, no dia de Sua volta, estando próximo o terror de Sua majestade, quando todos os pastores com seus rebanhos
virão à presença do Pastor eterno”). - Trithemii chronic., ann. 960: Diem jamjàm imminere dicebat (Bernhardus, eremita Thuringiæ) extremum, et mundum in brevi
consummandum [NT: “Já ele (Bernardo, o eremita da Turíngia) disse que o último dia estava próximo e que o mundo seria em breve consumido”] . - Abbas
Floriacensis, ann. 990 (Gallandius, XIV, 141): De fine mundi coram populo sermonem in ecclesiâ Parisiorum audivi, quod statìm finito mille annorum numero Antechristus
adveniret, et non longo post tempore universale judicium succederet (NT: Eu ouvi um sermão feito às pessoas, na igreja de Paris, sobre o fim do mundo, onde se
afirmava que o Antricristo viria assim que os mil anos se complessatem e que o dia Julgamento Universal em breve o seguiria ). – Will. Godelli chronic., ap. Scr.
Fr. X, 262: Ann. Domini MX, in multis locis per orbem tali rumore audito, timor et mœror corda plurimorum occupavit, et suspicati sunt multi finem sæculi adesse (NT:
“No ano 1.000 do Senhor, em muitos lugares do mundo, tal rumor foi ouvido e os corações ficaram cheios de medo e dor, e muitos pensavam que o fim do
mundo estava próximo”) – Rod. Glaber, l. IV, ibid. 49: Æstimabatur enim ordo temporum et elementorum præterita ab initio moderans secula in chaos decidisse
perpetuum, atque humani generis interitum (NT: “Pois era estimado que as estações e os elementos retornariam ao caos para a destruição do gênero humano”) –
o Tradutor verteu as frases em latim para o português a partir do texto em inglês da tradução de G. H. Smith, F.G.S.
[294] Rod. Glaber, l. IV., c. 9
[NT: O Autor menciona o capítulo 9, do Livro IV, de Rodolfo Glaber ( Rodulfus Glaber, latim ou Raoul Glaber, francês), 985-1047, cujo trecho da versão integral,
disponível em versão bilíngue latim-francês, no sítio internet http://remacle.org/bloodwolf/historiens/glaber/histoire4.htm#IX), apresento:
“Capítulo IX - Do sinal que no Sol apareceu: – No mesmo ano da paixão do Senhor, dia terceiro do Calendário Juliano, sexta-feira, na vigésima-oitava lua (ou 29 de
junho), houve um pavoroso eclipse do Sol que durou desde a sexta até à oitava hora do dia. O próprio Sol parecia cor de açafrão e a parte alta desse astro parecia ter
tomado a forma do último quarto da lua. Todas as faces estavam pálidas como a morte e todos os objetos que eram percebidos no ar estavam amarelos e açafranados. O
espanto e o temor, então, encheram todos os corações e, à vista desse triste presságio, aguardava-se, com receio, algum acontecimento funesto ao gênero humano. Em
efeito, no mesmo dia, quer dizer, naquele da Natividade dos Apóstolos, os senhores romanos, tendo formado uma liga contra o Papa, apresentaram-se na igreja de São
Pedro para degolar o pontífice. Eles não puderam executar seu cruel projeto, mas conseguiram, ao menos, expulsá-lo da Santa-Sé. O Imperador (refere-se a Otto III),
tendo se dirigido à Itália para punir a insolência dos Romanos, tanto nesta ocasião, quanto em muitas outras, restabeleceu o pontífice na sua dignidade”
CAPUT IX. De signo quod in sole apparuit - Anno igitur eodem Dominicæ passionis millesimo, die tertio Kalendarum Juliarum, sexta feria, luna vicesima octava, facta
est eclipsis seu deliquium solis ab hora ejusdem diei sexta usque in octavam, nimium terribilis. Nam sol ipse factus est sapphirini coloris, gerens in superiori parte speciem
lunæ a sua reilluminatione quartæ. Intuitus hominum in alterutrum velut mortuorum pallor conspiciebatur. Res vero quæcunque sub acre crocei coloris esse cernebantur.
Tunc corda humani generis stupor ac pavor tenuit immensus, quoniam illud intuentes intelligebant portendere quiddam fore superventuræ cladis humano generi triste. Nam
ædem die, natali videlicet apostolorum, in ecclesia beati Petri quidam de principibus Romanorum, conspirantes in papam Romanum, cupientes illum interimere, sed minime
valentes, a sede tamen propria expulerunt. Sed , ut præmisimus, tam pro hac re quam pro aliis insolenter patratis, imperator illuc proficiscens propriæ sedi restituit.]
[295] Rod. Glaber, l. V, c. I: “Astitit mihi ex parte pedum lectuli forma homunculi tetérrima speciei. Erat enim staturâ mediocris, collo gracili, facie macilenta, oculis
nigerrimis, fronte rugosa et contractâ, depressis naribus, os exporrectum, labellis tumentibus, mento subtracto ac perangusto, barba caprina, aures hirtas et præacutas,
capillis stantibus et incompositis, dentibus caninis, occipitio acuto, pectore túmido, dorso gibbato, clunibus agitantibus, vestibus sordidis, conatu æstuans, ac toto corpore
præceps; arripensque summitatem strati in quo cubabam, totum terribiliter concussit lectum, ac deinde infit: ‘Non tu in hoc loco ultra manebis’. At ego territus, evigilansque,
sicuti repente fieri contingit, aspexi talem quem praescripsi. Ipse vero infrendens identidem aiebat: ‘Non hic ultra manebis”.
(NT): “(Eu vi) aparecer à minha frente, no pé do meu leito, um monstro terrível que tinha a forma de um homúnculo da pior espécie. Parecia-me ter, tanto quanto posso
estar certo, uma estatura medíocre, um pescoço delgado, uma cara magra, os olhos muito negros, a fronte estreita e enrugada, o nariz achatado, a boca grande, lábios
intumescidos, o queixo curto e afilado, uma barba caprina, as orelhas levantadas e pontudas, os cabelos sujos e descompostos, dentes de cão, o occipício agudo, o peito
protuberante, uma bossa (giba) nas costas, as nádegas pendentes, as roupas imundas ; enfim, todo seu corpo parecia tomado por uma atividade convulsiva e precipitada;
ele segurou a borda do leito onde eu estava deitado, o balançou com uma violência terrível, e se pôs a me dizer : ‘Tu não ficarás mais muito tempo aqui’. Tão logo
acordei apavorado, abri os olhos e percebi essa figura que venho de descrever. O velhaco rilhava os dentes repetindo : ‘Tu não ficarás mais muito tempo aqui’.” – a partir
do texto bilíngüe latim-francês em http://remacle.org/bloodwolf/historiens/glaber/histoire5.htm.
[296] Translatio S. Genulfi, ap. Scr., fr. X, 361 – Chronic. Ademari Cabannes, ibid., 147.
[297] Glaber, l. IV, c. 4 – Em setenta e três anos, houve quarenta e oito de fomes e de epidemias – Ano 987: grande fome e epidemia – 989: grande fome – 990/994:
fome e mal dos ardentes*– 1001: grande fome – 1003/1008: fome e mortalidade – 1010/1014: fome, mal dos ardentes, mortalidade – 1027/1029: fome (antropofagias) –
1031/1033: fome atroz – 1035: fome, epidemia – 1045/1046: fome na França e na Alemanha – 1053/1058: fome e mortalidade durante cinco anos seguidos – 1059: fome de
sete anos seguidos, mortalidade.
* (NT): “mal dos ardentes” também conhecido por ergotismo, envenamento por Ergot, envenenamento por cravagem e, ainda, Fogo de Santo Antônio: intoxicação
causada pela ingestão de alimentos contaminados por um fungo chamado esporão-do-centeio ou, ainda, pelo uso excessivo ou mal orientado de drogas derivadas da
ergolina – a partir de http://pt.wikipedia.org/wiki/Ergotismo)
[298] (NT): o almude é um antiga unidade de volume que variava de região para região e em razão daquilo que se desejava mensurar (vinho, trigo, aveia, sal, etc). A
palavra, em português, deriva do árabe al-mud, havendo registros de seu uso desde o século XI. Em francês, a palavra é “muid” e sua etimologia seria do latim modius –
“a medida” (principal). O almude de trigo, na França, continha um pouco menos de 1,9 m3. – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Muid e de
http://pt.wikipedia.org/wiki/Almude.
[299] Chronic. Virdunense, ap. Scr. Fr. X, 209. Sabe-se que os selvagens da América do Sul e os negros da Guiné comem, habitualmente, barro ou argila durante uma
parte do ano. Ela é vendida frita nos mercados de Java – Alexander de Humboldt, Tableaux de la Nature, trad. por Eyriès (1808), I, 200.
[300] R. Glaber, l. V, c. 1: “Logo viu-se também os povos da Aquitânia e de todas as províncias das Gálias, cedendo ao temor ou ao amor do Senhor, adotarem
sucessivamente uma medida que lhes era inspirada pela graça divina. Ordenou-se que, a partir do anoitecer da quarta-feira, até a manhã da segunda-feira seguinte,
ninguém tivesse a temeridade de arrebatar o que quer que fosse pela violência ou de satisfazer alguma vingança particular ou, mesmo, de exigir caução; que aquele que
ousasse violar esse decreto público, pagaria tal atentado com sua vida ou seria banido de seu país e da sociedade dos Cristãos. Todo mundo conveio de dar a esta lei o
nome de treugue (trégua) de Deus”.
[301] Willelm. Gemet., l. III, c. 8.
[302] Vita S. Richard, ap, Scr. fr., X, 373.
[303] (NT): Trata-se de Henrique II, 973-1024, Sacro Imperador Romano-Germânico, canonizado em 1146, sendo o único Imperador a tê-lo sido (Carlos Magno foi
canonizado pelo Anti-Papa Pascoal III, mas a cúria romana jamais validou ou rejeitou tal canonização; o culto é tolerado e o status de bem-aventurado foi reconhecido por
Bento XIV - http://fr.wikipedia.org/wiki/Henri_II_du_Saint-Empire.
[304] Chronic. Sith. S. Bertini, ap. Scr. fr. X, 299.
[305] Helgaldi, vita Roberti, c. 8, ibid. 102.
[306] Helgaldus, c. 11,
[307] ibid.
[308] Helgadus, c. 7.
[309] Helgadus, c. 9.
[310] Ibid., c. 18.
[311] Alguns acreditaram que a palavra Capeto era uma injúria e vinha de Capito, cabeça grande. Sabe-se que a cabeça grande é frequentemente um sinal de
imbecilidade. Uma crônica chama Carlos o Simples de Capeto (Karolus Stultus vel Capet), Chron. Saint Florent., ap. Scr. fr. IX, 55). – Mas é evidente que Capeto é
tomado por Chapet ou Cappatus (NT: capinha, pequena capa). – Várias crônicas francesas, escritas muito tempo depois, traduziram Hue Chapet ou Chappet (Scr. fr.
X., 293, 303, 313). – Chronic., S. Medard. Suess., ibid., IX, 56: Hugo, cognominatus Chapet. Vide também Richard de Poitiers, ibid. 24, et Chronic. Andegav., X, 272,
etc. Alberic., Tr-Font., IX, 286: Hugo Cappatus e, mais à frente: Cappet – Guill. Nang. IX, 82: Hugo Caputius – Esta última crônica acrescenta que o filho de Hugo, o
piedoso Roberto, cantava as vésperas coberto por uma capa – O antigo estandarte dos reis de França era a capa de São Martinho; foi daí, disse o Monge de São Gallo,
que eles deram a seu oratório o nome de Chapelle (Capela): “...capella, quo nomine Francorum reges propter cappam S. Martini quam secum ob sui tuitionem et hostium
oppressionem jugite ab bella portabant, Sancta sua apellare solebant”, L. I, c. 4 (NT: “... capela, que os reis dos Francos assim chamavam o local santo que
possuíam por causa da capa de São Martinho, que eles portavam em todas as suas guerras como um penhor de segurança para si e de triunfo sobre o
inimigo” – a partir do texto em francês em http://remacle.org/bloodwolf/historiens/eginhard/charles.htm#I).
[312] Glaber, l. III, c. 4, ap. Scr. Fr. X, 29. Caput IV – De innovatione ecclesiarum in toto orbe: Igitur infrà supradictum millesimum tertio jam ferè imminente anno,
contigit in universo penè terrarum orbe, præcipuè tamen in Italiâ et in Galliis, innovari ecclesiarum basilicas, licet pleræque decenter locatæ minimè indiguissent. Æmulabatur
tamen quæque gens christicolarum adversùs alteram decentiore frui: erat enim instar ac si mundus ipse excutiendo semet, rejectâ vetustate, passim candidam ecclesiarum
vestem indueret.
[313] Ibid., c. 6: Revelata sunt diversorum argumentorum indiciis, quorsùm diu latuerant, plurimorum sanctorum pignora. Nam veluti quoddam resurrectionis decoramen
præstolantes, Dei nutu fidelium obtutibus patuêre, quorum etiam mentibus plurimum intulêre solamen. (NT: “Graças a diversas revelações e indicações certeiras,
conseguiu-se encontrar as relíquias santas, há anos fugidias e escondidas de todos os olhos. Os próprios santos vieram, por ordem de Deus, reclamar as
honras de uma ressureição sobre a terra e apareceram aos olhares dos fiéis, a quem encheram a alma de consolações” – a partir do texto bilíngue latim-francês
em http://remacle.org/bloodwolf/historiens/glaber/histoire3.htm#IV).
[314] (NT): o Autor refere-se aos dogmas da Eucaristia e da Transubstanciação: durante a celebração da missa, após o sacerdote consagrar o pão e o vinho, o primeiro
se tranforma na carne de Jesus e o segundo em Seu sangue. Baseia-se no discurso do “Pão da Vida” (O Pão que eu hei de dar é a minha Carne para Salvação do
mundo; O meu corpo é verdadeiramente uma comida e o meu sangue é verdadeiramente uma bebida – João, 6, 55) e naquele proferido na “Última Ceia” (Tomai
todos e comei. Este é o meu Corpo, que é entregue por vós, afirmado como união do fiel à Cristo, de maneira analógica à união da vida trinitária... Em
verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós – João, 6, 57 e 53). Durante
séculos, os sacerdotes católicos o respeitaram e observaram até que, por volta do ano 1.000, o ritual foi incorporado às missas para que todos os fiéis pudessem presenciá-
lo. Houve oposição por parte daqueles que pregavam a doutrina da Consubstanciação [a natureza do pão e do vinho não muda, mas une-se à de Cristo; assim sendo, os
verdadeiros corpo e sangue de Cristo encontram-se presentes, real e localmente, EM, COM e SOB a substância do pão e do vinho, sem modificá-la (i.e., sem transformá-
las, sem transubstanciá-las). “Este conceito opõe-se a definição de transubstanciação, na qual se crê que a substância do pão e do vinho são transformadas nas
substâncias do corpo e do sangue de Jesus”. – vide em http://pt.wikipedia.org/wiki/Transubstanciação e em http://pt.wikipedia.org/wiki/Consubstanciação.
[315] Rod. Glaber, l. I, c. 5.
[316] (NT): Gerberto (Gerbert) d’Aurillac, da Ordem de São Bento (c. 950 – 1003), nascido na região da Auvérnia, foi Papa sob o nome de Silvestre II (de 999 a 1003).
[317] Gerberti, epist. 107, ap. Scr. fr. X, 426:
“Ea quæ est Hierosolymis, universali Ecclesiæ sceptris regnorum imperanti:
Cùm benè vigeas, immaculata sponsa Domini, cujus membrum esse me pateor, spes mihi maxima per te caput attollend jâm penè attritum. Na quicquam diffiderem de te,
rerum domina, si me recognoscis tuam? Quisquamne tuorum famosam cladem illatam mihi putare debebit ad se minimà pertinere, utque rerum infima abhorrere? Et
quamvis nunc dejecta, tame habuit me orbis terrarum optimam sui partem: penès me Prophetarum oracula, Patriarcharum insignia; hinc clara mundi lumina prodierunt
Apostoli; hinc Christi fidem repetiti orbis terrarum, apud me redemptorem suum invenit. Etenim quamvis ubique sit divinitate, tamen, hìc humanitate natus, passus, sepultus,
hinc ad cœlus elatus. Sed cum Prophet dixerit: ‘Erit sepulchrum ejus gloriosum’, paganis loca cuncta subvertentibus, tentat Diabolus reddere inglorium. Enitere ergò, mils
Christi, esto signifer et compugnator, et quod armis nequis, consili et opum auxilio subveni. Quid est quod das, aut cui das? Nempè ex multo modicum, et ei qui omne quod
habes gratis dedit, nec tamen gratis recipit; et hic eum multiplicat et in futuro remunerat; per me benedicit tibi ut, largiendo crescas; et peccata relaxat, ut secum regnando
vivas” *.
Os Pisanos partiram apoiados nesta carta e massacraram, segundo consta, um número prodigioso de infiéis na África. Scr. fr. X. 426.
*(NT): “Da igreja que está em Jerusalém à Igreja Universal que governa os cetros dos reinos:
Pois que gozas de vigor, ó esposa imaculada de Deus, da qual não sou senão um membro, tenho uma grande esperança de poder, por ti, erguer minha cabeça quase
quebrada. Poderia eu duvidar de ti, senhora do mundo, se me reconheces a ti? Esse famoso desastre que me abateu, deveria algum dos teus olhá-lo com indiferença e
desdenhá-lo com desprezo? Ainda que eu esteja agora abatida, o universo, entretanto, teve em mim sua melhor parte. Aqui estão os oráculos dos profetas, os monumentos
dos patriarcas; daqui saem as brilhantes luzes do mundo, os apóstolos; é daqui que o universo recebeu a fé do Cristo; foi em mim que ele encontrou um Redentor; posto
que, segundo a divindade, Ele esteja em todos os lugares, foi aqui, segundo a humanidade, que Ele nasceu, sofreu, foi sepultado e ergueu-se aos céus. Mas, como disse o
Profeta: ‘Seu sepulcro será glorioso’; atráves dos pagãos que destroem os lugares santos, o Diabo busca fazê-los inglórios. Avante, pois, soldados do Cristo, sede Seu
porta-estandarte e Seu companheiro de batalhas e aquilo que não puderdes pelas armas, fazei-o com o auxílio do conselho e da riqueza. O quê dás tu e a quem o dás? Tu
dás pouco e tens muito. Tu dás Àquele que te deu gratuitamente tudo o que tens e que, entretanto, não o recebe gratuitamente; pois Ele o multiplica aqui embaixo a fim que
tu aproveites por Sua generosidade, e Ele remite teus pecados, a fim de que vivas e reines com Ele. – a partir do texto em francês em
http://archive.org/stream/MN5100ucmf_3/MN5100ucmf_3_djvu.txt.
[318] Guill. Malmsbur., l. II, ap. Scr. fr. X, 243: “Non absurdum, si litteris mandemus quæ per omnium ora volitant..... Divinationibus et incantationibus more gentis
familiari studentes ad Saracenos Gerbertus perveniens, desiderio satisfecit..... Ibi quid cantus et volatus avium portendit, didicit; ibi excire tenues ex inferno figuras..... Per
incantationes Diabolo accersito, perpetuum paciscitur hominium” (NT: “Não seria um absurdo desprezar os rumores que voavam se não estivessem escritos...
Adivinhações e encantamentos familiares para os estudantes da raça dos Sarracenos satisfaziam os anseios de Gerberto... Lá, ele aprendeu o que o vôo e as
notas dos pássaros pressagiavam e, para chamar fantasmas das sombras abaixo ... Tendo levantado o diabo por encantamentos, ele concordou em adorá-lo” .
– a partir de “Gerbert ou Sylvestre II et le siècle de fer”, pelo Abade Quèänt, 1868, disponível em
http://archive.org/stream/MN5100ucmf_3/MN5100ucmf_3_djvu.txt) - Fr. Andreæ chronic, ibid. 289: A quibusdam etiam nigromancia arguitur..... a Diabolo enim
percussus dicitur obiisse (NT: Alguns também falaram em necromancia... Porque se diz que ele feriu mortalmente o diabo) — Chronic. reg. Francorum, ibid., 301:
Gerbertum monachum philosophum, quin potius nigromanticum (NT: O monge Gerberto, um filosófo, é, antes, um necromante).
[319] Dante, Inferno, c. 28: Tu non pensavi qu’io loico fossi!
Os dois grandes mitos do sábio confundido com o mágico são, nas lendas da Idade Média, Gerberto e Alberto Magno (NT: “Albrecht von Bollstädt, Albertus Magnus,
conhecido como santo Alberto Magno ou Alberto de Colônia, foi um frade dominicano, filósofo, teólogo, naturalista, químico e alquimista germânico. Professor
renomado no século XIII, foi mestre de Tomás de Aquino - http://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Magno). O que é notável é que, aqui, a França tenha tido sobre a
Alemanha a iniciativa de dois séculos. Em recompensa, o feiticeiro alemão deixou um traço mais forte e ressuscita, no século XV, em Fausto, o inventor da imprensa.
[320] Gerberti, epist., ap. Scr. fr. X, 400: “Quoniam unicus nobis filius et ipse rex, nec ei parem in matrimonio aptare possumus, propter affinitatem vicinorum regum,
filiam sancti imperii praecipuo affectu quaerimus” (NT: “Desde que temos um único filho, ele próprio rei, e não pudemos encontrar um par conveniente para ele
na afinidade dos reis vizinhos, nós veementemente impressionamos uma filha do santo império” – a partir da nota da tradução em inglês por G. H. Smith, F.G.S )
[321] No panegírico alemão de Hanno, arcebispo de Colônia, César, executando as ordens do Senado, invade a Germânia, bate os Suábios, os Bávaros, os Saxões,
antigos soldados de Alexandre. Ele encontra, enfim, os Francos, descendentes, como ele, dos Troianos, conquista-os, leva-os à Itália, expulsa de Roma Catão e Pompeu, e
funda a monarquia bárbara. Schilter, t. I.
[322] Willelm. Gemetic., l. IV, ap. Scr. fr., X, 184. Mortuo Francorum rege Lothario, in illius locum ab omnibus subrogatur Hugo Capeth, adminiculante ei duce
Richardo (NT: Morto Lotário, rei dos Francos, Hugo Capeto, com a ajuda do duque Ricardo, é unanimemente escolhido em seu lugar – a partir da nota da tradução em
inglês por G. H. Smith, F.G.S.).
[323] Luís o manteve prisioneiro, mas um de seus servidores o salvou, levando-lhe num fardo de forragem (Willelm. Gem. Hist. c. 4 e 5).
[324] Alberic. Ad ann. 904: Hastingus, præ timore, venditâ Theobaldo civitate Carnotenâ, elâm discessit. (NT: Hastings, por temor, deixou vender secretamente a cidade
de Chartres para Theobaldo).
[325] (NT): Roberto era aparentado distante de Berta; mas a base da excomunhão foi o fato dele ter sido padrinho de um filho dela, de um casamento anterior, o que era
considerado constituir uma relação espiritual e, de acordo com os cânones da Igreja, representava um impedimento sem a prévia dispensa eclesiástica – nota tomada
emprestada à tradução em inglês por G.H. Smith, F.G.S.
[326] P. Damiani epist., l. II, ap. Scr. fr. X, 492: “Ex quâ suscepit filium anserinum per omnia collum et caput habentem. Quos etiam, virum scilicet et uxorem, omnes
fere Galliarum episcopi communi simul excommunicavere sententia. Cujus sacerdotalis edicti tantus omnem undique populum terror invasit, ut ab ejus universi societate
recederent, etc.” (NT: “De quem ela gerou um filho, tendo o pescoço e a cabeça de um ganso. Cujo marido, verdadeiramente, e a esposa, quase todos os bispos
da Gália excomungaram por consenso; e tão grande foi o terror dessa excomunhão, que o povo, sentindo-o, abandonou-o” - a partir do texto inglês da tradução
de G. H. Smith, F. G. S.) – Vide a dissertação de Bullet sobre a rainha Pédauque (pé-de-ganso).
[327] Glaber, l. III, c. 9: Praestolabantur ilium legati ex Italia directi, deferentes ei arram principatus, ut aiebant, totius Italia- regionis. ... Mediolanenses... existimabant
findem Odonem posse percipere regnum Austrasiorum atque ad eos transire, ut illic gereret principatum (NT: Legados da Itália o esperavam sobre sua passagem para
oferecer-lhe, em nome de toda a Itália, as arras da realeza... Milaneses... pensaram que Eudes poderia de início conquistar o reino da Ostrásia, depois passar
na cidade deles para assim receber o governo desta. – a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/glaber/histoire3.htm#IV).
[328] Id. ibid.. É como a história de Haroldo reconhecido por sua amante Edith. Ela se reproduz na morte de Carlos o Temerário.
[329] Gesta consul. Andegav., ap. Scr. fr. VII, 256: Habitator rusticanus fuit, ex copâ silvestri et venatico excercitio victitans.
(NT: Era habitante de um país rústico,
vivia das plantas silvestres e do exercício da caça selvagem).
[330] Fragment historique, ap. Scr. fr. X, 211: Filiam Guillelmi Tholosani comitis, nomine Constantiam ... (NT: Filha de Guilherme, conde de Toulouse, chamada
Constância...) – Will. Godellus, ibid. 262: Cognomento, ob suæ pulchritudinis immensitatem, Candidam (NT: Chamada Cândida, a quem se atribui uma imensa beleza).
– Rod. Glaber, l. III, c. 2. – Guilherme Talha-Ferro a tivera de Arsinda, filha de Godofredo Manto-Cinzento (NT: Geoffroy Grisegonelle, Godofredo I, de Anjou) ,
conde de Anjou, e irmão de Foulques – Raul Glaber lamenta-se do fato da nova rainha ter levado à corte uma multidão de Aquitânios e Auvérnios “cheios de frivolidade,
vestes e costumes bizarros, cabeças raspadas como histriões, sem fé, nem lei”, Glaber l. III, ad calcem.
[331] Vita Burchardi, ap. Scr. fr. X, 353.
[332] Rod. Glaber, l. III, c. 2: Missi à Fulcone… Hugonem antè regem trucidaverunt. Ipse vero rex, licet aliquanto tempore tali facto tristis effectus, postea tamen,
concors reginæ fuit. (NT: Enviados por Foulques... degolaram Hugo sob os olhos do rei Roberto, que se entristreceu com esse acontecimento mas findou,
todavia, a viver como devia, em bom relacionamento com a rainha – a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/glaber/histoire3.htm#II).
[333] Id. l. II, c. 4.
[334] Esse nome é expressivo para quem viu o Loire.
[335] Ele ia iniciar o cerco do convento de Saint-Germain-d’Auxerre quando um nevoeiro espesso elevou-se do rio; o rei acreditou que São Germano vinha combater-lhe
pessoalmente e todo o exército pôs-se em fuga, Rod. Glaber, l. II, c. 8. Após ter feito o sítio ao convento de Sainte-Bénigne (Santa Benigna), em Dijon, “rex, ut erat mente
benignus, cùm cognovit propter se monachos dispersos, valdè doluit” (NT: o rei, sendo de pensamento benigno, quando soube acerca da dispersão dos monges,
encheu-se dor – adaptado a partir da nota em inglês da tradução de G.H. Smith, F.G.S.).

[336] É assim que o chanceler do Império qualifica todos os reis numa dieta solene, no reino de Frederico Barbarossa: Reges provincialies – Otto Frising, VII, 34: Ad
imperatorem spectat totius orbis patrocinium (NT: A proteção do mundo inteiro pertence ao imperado ). É a esse título que, em 1146, Boris, o rei da Hungria, pede
socorro ao Imperador. Albéric, 309, ap. Raumer, die Hohenstaufen, v. 63.
[337] Imperator est animata lex in terris. Urk, in Meichelb. Hitor. Frising., II, 1, 7.
[338] Uma jovem vem consolá-lo em sua prisão; eles tiveram um filho que se chamou Bentivoglio (eu te desejo o bem). É, segundo a tradição, o tronco da ilustre família
que leva esse nome.
[339] (NT) Conradino (ou Conrado de Hohenstaufen), rei da Sicília e de Jerusalém sob o nome Conrado II, duque da Suábia sob o nome de Conrado III, nasceu em
1252 e morreu decapitado em 1268, sendo o último legítimo representante da Casa de Hohenstaufen. Foi executado por ordem de Carlos d’Anjou, apesar de possuir
apenas 16 anos.
[340] Por exemplo, nos antigos Costumes da Normandia.
[341] (NT) Aubaine, em francês, significa um ganho inesperado, um acréscimo patrimonial extraordinário. O direito de aubana (droit d’aubaine), na França medieval,
era aplicado ao estrangeiros que aí vivessem, cujos bens passavam ao senhor do feudo, ainda que o estrangeiro fosse filho de pai francês. Era uma constante fonte de
problemas para os estrangeiros que moravam na França, tendo sido abolido pela Assembléia Nacional Constituinte de 1789, reestabelecido no Código Civil de 1803 (Código
Napoleão) e, por fim, definitivamente abolido em 1819. O droit de bris (literalmente o “direito de destroço”), consoante já foi anteriormente explicado, era o direito que
tinha o senhor feudal sobre as cargas e destroços provenientes de um naufrágio que tocassem as praias de seu feudo – a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Droit_d’aubaine).
[342] (NT): “Destrier” é a designação para o típico cavalo de batalha utilizado durante a Idade Média, cuja etimologia remete à palavra latina “dextra” (direta, destra).
Não se refere a uma raça específica, senão a um tipo específico de cavalo que reúne as qualidades de força, manobrabilidade, capacidade de carga (em virtude do peso
adicional da armadura que utilizava, além daquela que vestia o cavaleiro), ardor, fidelidade ao dono. Esse tipo de cavalo desapareceu após a utilização das armas de fogo e,
atualmente, crê-se que esse tipo de cavalo estaria num meio-termo entre o cavalo-de-sela (aí incluída a categoria dos corcéis, mais leves e rápidos, como o árabe) e o
cavalo-de-tração (v.g., o bretão ou o percheron) como, por exemplo, o Pura Raça Espanhola ou o Lusitano. A palavra “destrier” é utilizada em português, embora mais
comumente corrompida para as expressões “cavalo de batalha (ou de guerra)” e “grande cavalo” - http://fr.wikipedia.org/wiki/Destrier
[343] Monach. S. Gall., l. I, ap. Scr. fr. V, 109: “Um jovem clérigo vinha de ser nomeado por Carlos Magno para um bispado. Como ele ia todo jubiloso, seus servidores
trouxeram-lhe, considerando a gravidade episcopal, sua montaria para perto de um patamar; mas ele, indignado, e acreditando que o tomavam por canhestro, lançou-se
com tamanha rapidez sobre o cavalo que findou por cair do outro lado. O rei viu pelas treliças do palácio e o chamou imediatamente: “Amigo, tu és vivo e leve, muito
rápido e bastante ágil. Ora, tu sabes quantas guerras turbam a serenidade do nosso Império; eu tenho necessidade de um tal clérigo no meu cortejo ordinário; sê, então, o
companheiro de todos os nossos trabalhos” – Atos do Concílio de Vernon, ano 845, artigo 8º (Baluze, II, 17): Quosdam episcoporum ab expeditionibus corporis defendit
imbecillitas, aliis autem vestra indulgentia cunctis optabilem largitur quietem; præcavendum est utrisque ne per eorum absentiam res militaris dispendium patiatur. (NT: A
enfermidade do corpo impede alguns bispos de atenderem às expedições, sua indulgência permite a outros uma isenção desejável para todos; mas ambos
devem tomar cuidado para que suas guerras não sofram detrimento devido à ausência dos mesmos).
[344] Vide um canto Suíço inserido no Des Knaben Wunderhorn.
{NT: “Des Knaben Wunderhorn (em português - literalmente: A trompa mágica do menino , referindo-se a um objeto mágico como a cornucópia) é uma coleção de
textos de canções populares, publicada em três volumes em Heidelberg pelos poetas e escritores alemães Achim von Arnim e Clemens Brentano entre 1805 e 1808. A
coleção contém canções da Idade Média até o Século XVIII. As canções foram musicadas - entre outros - por Gustav Mahler entre 1892 a 1901. Alguns autores as
mencionam em número de 12, porém o compositor musicou, na verdade, 24 daqueles poemas. Gravações, como a realizada por Leonard Bernstein, Christa Ludwig, Walter
Berry e a Filarmônica de Nova York (outubro de 1967 e fevereiro de 1969, SONY Classical SMK 47590), apresentam esta coleção em número de 13 canções,
obedecendo a uma sequência determinada pelo(s) intérprete(s).” – texto extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Des_Knaben_Wunderhorn - No sítio internet
retromencionado, há links que direcionam para os três volumes da coleção, permitindo-se a leitura online em alemão. - A página em francês
(http://fr.wikipedia.org/wiki/Des_Knaben_Wunderhorn) acrescenta tratar-se de canções populares que remontam desde a Idade Média até à época de sua publicação
(1805-1808), e que são “verdadeira ‘fonte da juventude’ da qual toda uma geração de poetas (Eichendorff, Uhland, Mörike, Geibel, Heine, Lenau) bebeu, fonte de
inspiração para numerosos músicos (Weber, Schubert, Schumann, Brahms, donde sua célebre canção de ninar Guten Abend, gute Nacht, Mahler, R. Strauss), A Trompa
mágica do menino exerceu, paralelamente aos Contos dos irmãos Grimm, uma influência que, ultrapassando largamente o simples romantismo, manifestou-se ao longo de
todo o século XIX”}.
[345] Tratava-se de Christiano, arcebispo de Mainz; ele achou por bem citar essas palavras do Evangelho: Guarda tua espada na bainha ; obteve-se, do Papa, a sua
deposição, Michaud, Hist. des Croisades, IV, 392. – Dithmar. Chron., l. II, 34: um bispo de Regensburg ( Ratisbona) acompanhou os príncipes da Baviera numa guerra
contra os Húngaros. Ele aí perdeu uma orelha e foi deixado entre os mortos. Um Húngaro desejou dar-lhe o golpe de misericórdia: “Tunc ipse confortatus in Domino post
longum mutui agonis luctamen, victor hostem prostravit; et inter multas itineris asperitates incolumis notos pervenit ad fines. Inde gaudium gregi suo exoritur, et omni
Christum cognoscenti. Excipitur ab omnibus miles bonus in clero, et servatur optimus pastor in populo, et fui ejusdem mutilatio non ad dedecus sed ad honorem magis” (NT:
Então, fortalecido por Deus, depois de uma longa e mortal luta, ele conseguiu dominar seu inimigo, e conseguiu efetuar o seu regresso em segurança por
muitos perigos e dificuldades pelo caminho. Assim, uma grande alegria para o seu rebanho e para todos os que conhecem a Cristo. Um bom soldado, tanto
quanto clérigo, ele é bem-vindo por todos e vive como um pastor querido por todos, e a perda de sua orelha foi a sua honra, não a sua desgraça) , Gieseler,
Kirchengeschichte, t. II, p. 1, 197.
[346] Atto Vercellens., ap. d’Achery Spicileg., I, 423: Ipsos etiam parvulos ad pastoralem promovere curam non dubitant… Rident plurimi, alii quasi de infantis honore
gaudentes… Ipse quoque parvulus de aliquibus interrogatus capitulis, quæ si præparare potuerit, memoriter reddet, vel in aliquo tremens leget pitatio (pinacio?) - {NT: Eles
não hesitam em promover seus pequenos ao ofício pastoral... a maioria ri, outros regozijam-se como em honra da criança. O menino também é questionado
sobre alguns artigos da religião, os quais explica de memória, se souber as respostas de cor, ou, então, lê balbuciantemente de algum (livro) de catecismo}.
[347] Nicol. à Clemangis, de præsul. simon., p. 165: Deniquè laici usque adeò persuasum habent nullos cælibes esse, ut in plerisque parochiis non aliter velint presbyterum
tolerare, nisi concubinam habeat, quo vel sic suis sit consulturm uxoribus, quæ nec sic quidem usquequaque sunt extrà periculum (NT: Os leigos estão tão convencidos de
que ninguém deve ser celibatário que, na maioria das paróquias, eles não vão tolerar um padre, exceto se ele tiver uma concubina ou uma esposa que possa
ser consultada, e que assim estarão fora de perigo). – Vide também Muratori, VI, 335. Havia-se decretado que as crianças nascidas de um padre e de uma mulher
livre seriam servos da Igreja; eles não podiam ser admitidos ao clero, nem herdar segundo a lei civil, nem servirem como testemunhas. Schroeckh, Kirchengeschichte, p.
22, ap. Voigt, Hildebrand, als Papst Gregorius der siebente, um sein Zeitalter, 1815.

Rex immortalis! Quâm longo tempore


talis
Mundi risus erunt, quos presbyteri
genuerunt?
Carmen pro nothis, ap. Scr. fr. XI, 444
Rei imortal! Por quão longo tempo serão
o riso do mundo os filhos dos padres?

[348] Daru, Histoire de Bretagne, I, 303: Havia, na Bretanha, quatro bispos casados: aqueles de Quimper, Vannes, Rennes e Nantes; seus filhos tornaram-se padres e
bispos; aquele de Dôle pilhava sua igreja para dotar suas filhas. Cartas do clero de Noyon, 1079, e de Cambra, 1076, conservadas por Mabillon. – Os clérigos lamentavam-
se, como uma injustiça, a recusa de ordenação de seus filhos. Eles davam, mesmo, seus benefícios em dote a suas filhas (no século IX). Suas mulheres tomavam
publicamente a qualidade de sacerdotisas. D. Lobineau, 110, D. Morice, preuves, I, 463, 542. – Ocorria o mesmo na Normandia, segundo os biógrafos dos bem-
aventurados Bernardo de Tiron e Harduíno, abade do Bec: Per totam Normanniam hoc erat ut presbyteri publicè uxores ducerent, filios ac filias procrearent, quibus
hereditaris jure ecclesias relinquerent et filias suas nuptui traductas, si alia deesset possessio, ecclesiam dabant in dotem (NT: Por toda a Normandia, era público que as
mulheres dos padres procriavam filhos e filhas, enquanto os filhos tinham a herança relegada pelo direito da igreja e eram deixados para trás, as filhas, no
casamento, se não tivessem posses, recebiam dotes da igreja).
[349] O Autor deve aqui se posicionar no rigor do ponto de vista católico da Idade Média. Convém lembrar tudo o que há de nobre nesse ponto de vista no momento em
que o são-simonismo propõe-nos uma reconciliação do espírito com a matéria, que não seria outra coisa que a dominação da matéria sobre o espírito.
[350] Goethe, Wilhemmeister.
[351] Um dia, o clero de Laon reprovou seu bispo por ter dito ao rei: “Clericos non esse reverendos, quia penè omnes ex regiâ forent servitute progeniti” (NT: O clero
não deve ser reverenciado, já que quase todos nasceram de servos reais – adaptado da nota da tradução em inglês feita por G.H. Smith) , Guibertus
Novigentinus, de vitâ sua, l. III, c. 8. – Vide mais acima como a igreja se recrutava no reino de Carlos Magno e Luís I. O Arcebispo de Reims, Ebbon, era filho de um
servo.
[352] Voigt, Hist. de Grégoire VII, initio.
[353] Filho da chama ou chama do filho.
[354] Otto Frisingens., l. VI, c. 33: Inclinatus Leo ad monitum ejus, purpuram deponit et ... à clero et populo in Summum Pontificem eligitur.
[355] (NT): o rio Estige é o rio mitológico do Hades dedicado à ninfa de mesmo nome, “filha de Tétis, que ajudou Zeus na guerra Titanomaquia contra os titãs e foi
recompensada com uma fonte de águas mágicas que desaguavam no Tártaro. O Estige é o rio da invulnerabilidade. Segundo uma versão da lenda de Dionisio, uma
promessa feita a partir do Estige é o voto mais sagrado que pode existir. Nem mesmo os deuses podem quebrá-la”. – a partir de http://pt.wikipedia.org/wiki/Estige
[356] Bertold. Constant., ap. Scr. fr. XI, 23: Hujus constitucionis maximè fuit auctor Hildebrandus (NT: O autor dessa promulgação máxima foi Hildebrando).
[357] Marten., Thes. anecd., I, 231: Plebeius error, ... usquè ad furoris sui satietatem injunctâ sibi, ut ait, in clericorum contumelias obedientiâ crudeliter abutitur etc. –
Esse caráter de Gregório VII é posto à luz do dia na bela obra de M. Villemain. Não direi desse livro senão uma palavra que, em meu sentir, compreende todo elogio: ele é
profundamente verdadeiro. Os cronistas contemporâneos encontraram essa verdade no detalhe; mas encontrá-la, na distância de tantos séculos, representa um grande
esforço de erudição, um raro poder de arte e de talento.
[358] Marten, ibid.: Hi clamores insultantium, digitos ostendentium, colaphos pulsantium perferunt (NT: Estes clamam insultos, mostrando os dedos, punhos
transmitindo golpes). Illi autem, laicos dico, ecclesiæ mysteria contemnere, parvulos suos lavacro salutari fraudare, ipsi absque humili peccatorum confessione et solemni
ecclesiæ viatico migrare, religiosum deputant (NT: Os leigos desprezam os mistérios da Igreja, defraudam os seus pequeninos da pia batismal, e até acham
religioso partir desta vida sem a humilde confissão dos pecadores e o solene viático da Igreja) . – Sigeb. Gembl, ann. 1074: Laici sacra mysteria temerant, et de his
disputant, infantes baptizant, sordido humore aurium pro sacro oleo et chrismate utentes, corpus dormini à presbyeris conjugatis consecratum sæpè pedibus conculcaverunt,
et sanguinem Domini voltariè effuderunt, etc. (NT: Os leigos conspurcam os sagrados mistérios, altercam-se sobre eles, batizam crianças, usam a sórdida excreção
das orelhas em vez do óleo santo e da crisma, atropelam com repetidos chutes o Corpo do Senhor consagrado por padres casados, derramam voluntariamente
o sangue do Senhor).
[359] Damiani diz, em uma de suas declamações sobre esse assunto: “Quando, em Lodi, os gordos bois da igreja me cercaram, quando muitos bezerros rebeldes
rangeram os dentes, como se tivessem desejado escarrar-me todo o fel no rosto, eles se apoiaram sobre o cânon de um concílio ocorrido em Tribur que permitia o
casamento aos padres; mas eu respondi-lhes: ‘Pouco me importa vosso concílio; eu tenho como nulos e não ocorridos todos os concílios que não se acordem com as
decisões dos bispos de Roma’. Então, dirigindo-se às mulheres dos clérigos, ele disse às mesmas: ‘É a vós que me dirijo, sedutoras de clérigos, iscas de Satã, escória do
paraíso, veneno das almas, gládio dos corações, penachos de pássaros, mochos, corujas, lobas, sanguessugas insaciáveis, etc... Venite itaque, audite me, scorta, prostibula,
volutabra porcorum pinguium, cubilia spirituum immundorum, sirenæ, lamiæ, etc (NT: vinde, então, ouvi-me vós, ó meretrizes, prostitutas, chiqueiros de porcos
gordos, antros de espíritos imundos, sereias, chacais, etc.).
[360] Manegold, epist. Theoderici, c. 38, ap. Gieseler, II, 25: Hi qui excommunicatos non pro privatâ injuriâ, sed ecclesiam defendendo interficiunt, non ut homicidæ
pœniteantur vel puniantur (NT: Aquele que mata uma pessoa excomungada, não para vingar um mal particular, mas em defesa da Igreja, não deve ser
penitenciado ou punido como homicida – a partir da nota da tradução em inglês de G. H. Smith).
[361] Ele declarou estar satisfeito com a conduta do abade e, pouco tempo depois, o nomeou bispo. Chronic. Casin. III, c. 27, ap. Gieseler, II, 9.
[362] Foi, todavia, acho eu, Pierre Lombard, que viveu um pouco mais tarde.
[363] Gregor. VII, epit. ad episc.: “Francorum Rex vester qui nou rex, sed tyrannus sicendus est, omnem ætatem suam flagitiis et facionoribus polluit... Quod si vos
audire noluerit, per universam Franciam omne divinum officium publicè celebrari interdicite” (NT: “O Rei dos Francos, que não deve ser chamado de rei, mas de
tirano, poluiu toda a era com seus crimes e sórdidos atos. Mas se ele não vos escutar, deixai o reino inteiro da França sob um divino e público interdito”) . –
Bruno, de Bello Sax., p. 121, ibid.: Quòd si in his sacris canonibus noluisset rex obediens existere... se eum velut putre membrum anathematis gladio ab unitate S. Matris
Ecclesiæ minabatur abscindere (NT: Mas se o rei recusasse obediência a esses sagrados cânones... ele ameaçou extirpar-lhe, como se fosse um membro pútrido,
com a espada do anátema, da unidade da Santa Madre Igreja – a partir das notas da tradução em inglês de G.H. Smith).
[364] Gregorii VII, epist. ad reg. Angl., ibid. 6: Sicut ad mundi pulchritudinem oculis carneis diversis temporibus repræsentandam, Solem et Lunam omnibus aliis
eminentiora disposuit (Deus) luminaria, sic… - Vide também Innoc. III, l. I, epist. 401 – Bonifacii VIII, epist., ibid. 197: Fecit Deus duo luminaria magna, scilicet Solem, id
est, ecclesiasticam potestatem, et Lunam, hoc est, temporalem et imperialem. Et sicut Luna nullum lumen habet nisi quod recipit à Sole, sic... (NT: Deus fez as duas
grandes luminárias, o Sol, isto é, o poder eclesiástico, e a Lua, isto é, o temporal e imperial. E assim como a Lua não tem luz, exceto a que recebe do sol, de
modo...). – A glosa das Decretais faz o cálculo seguinte: “Como a Terra é sete vezes maior que a Lua, mas o Sol é oito vezes maior que a Terra, logo a dignidade
episcopal é cinquenta e seis vezes maior que a real” (“Cúm terra sit septies major luna, sol autem ocites major terra, restat ergò ut pontificatûs dignitas quadragies
septies sit major regali dignitate”). Laurêntio vai ainda mais longe: “... O papa é mil setecentas e quatro vezes maior que imperadores ou reis” (“... Papam esse millies
septingenties quater imperatore et regibus sublimorem”.), Gieseler, II, P. 2, p. 98.

[365] Paul. Bernried., c. 110. Otto Frising., l. VI, c. 36: “Dilexi justitiam et odivi iniquitatem; proptera morior in exilio”. – Ele escrevia à abadia de Cluny: “Minha
dor e minha desolação vão ao cúmulo quando vejo a Igreja do Oriente separada, pelo manhoso do Diabo, da fé católica; e se viro meus olhares para o Ocidente, para o Sul
ou para o Norte, aí quase não encontro bispos que o sejam legitimamente, seja por sua conduta no episcopado, seja pela forma através da qual tornaram-se bispos. Eles
governam seus rebanhos, não por amor a Jesus, mas por um ambição completamente profana e, entre os príncipes seculares, não encontro algum que prefira a honra de
Deus à sua própria e a justiça ao seus interesses. Os Romanos, os Lombardos e os Normando, entre os quais vivo, logo serão (e, com frequência, digo a eles) mais
execráveis que os Judeus e os Pagãos. E quando meus olhares tombam sobre mim mesmo, vejo que minha vasta missão está além de minhas forças, de sorte que devo
perder toda esperança de, um dia, assegurar a salvação da Igreja, se a misericórdia de Jesus Cristo não vier em meu auxílio; pois, se eu não esperasse uma vida melhor e
se não fosse apenas pela salvação da Igreja, e tomo Deus por testemunha, eu não mais permaneceria em Roma, onde já vivo há vinte anos, malgrado não querer. Estou,
pois, como batido por mil raios, como um homem que sofre de uma dor que se renova sem cessar e cujas esperanças não são, infelizmente, senão longínquas”.
(NT): Gregório VII, tendo exercido um dos pontificados mais importantes da história da Igreja Católica, temperamento tenaz e corajoso, morreu em 25 de maio de 1085 e,
por se encontrar no exílio, não foi enterrado em São Pedro, em Roma, mas na catedral de Salerno. Na base de seu túmulo, foram gravadas as palavras “Dilexi justitiam et
odivi iniquitatem; proptera morior in exilio” (Eu amei a justiça e detestei a iniqüidade; eis porque morro no exílio) . Foi canonizado em 1606 por Paulo V e, como seu
corpo não foi consumido pela morte, é considerado sanctus incorruptus, estando o mesmo em um caixão de vidro, à vista dos fiéis (vide:
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Salerno_PopeGregoriousVIITomb.JPG).
[366] Gregor. ep., ap. Gieseler, II, 21: Ad oppidum Canusii cum paucis advenit... ibique per triduum, deposito omni regio cultu, miserabiliter, utpotè discalceatus et laneis
indutus, persistens... cum multo fletu (NT: Vem para a fortaleza com alguns poucos ... lá, por três dias, depois de ter deixado de lado todo o adorno real,
permaneceu miseravelmente descalço e vestido de lã, continuando ... com muita lamentação). – Donizo, vita Mathildis, ap. Muratori, V, 366: Ele se lançou aos pés do
Papa, os braços abertos em cruz, e rogando perdão – “Fora a primeira vez”, diz Otton de Freysingen, “que um Papa ousara excomungar um Imperador. Eu tive por bem
ler e reler nossas histórias e não encontrei outro exemplo”. Chron., l. VI, c. 35, De gestis Friderici, I, l. I, c. 1.
[367] Vide a história de M. Villemain.
[368] Ele escreveu ao rei da França, em 1106: “Assim que o vi, tocado até o fundo do coração, tanto de dor quanto de afeição paternal, eu me joguei a seus pés
suplicando-lhe, conjurando-lhe em nome de seu Deus, de sua fé, da salvação de sua alma, ainda quando meus pecados tivessem merecido que eu fosse punido pela mão de
Deus, abster-se, ao menos ele, de manchar sua alma, sua honra e seu nome; pois, jamais, nenhuma lei divina obrigou os filhos a serem os vingadores das faltas de seus
pais”, Sigebert, Gemblac., ap. Struv., I, 856. Sismondi, Républiques italiénnes, I, 198.
[369] (NT): Em sinal de perdão, ele manda enviar a seu filho a sua espada e seu anel, últimos símbolos do poder real que lhe restam. Ele dá a benção paternal a
Henrique V e solicita ser enterrado ao lado de seus avós na catedral de Speyer. Entretanto, é na catedral de Liège que, inicialmente, é enterrado: após ter o coração e as
entranhas extraídos, o bispo de Liège consagra-lhe funerais solenes. Mas os bispos germânicos protestam energicamente e pedem que o templo que abriga a sepultura seja
desantificado. Proclama-se, então, que a catedral restará profanada enquanto os restos de um excomungado aí repousarem. O sarcófago é, então, desenterrado e seu filho
Henrique V transporta os restos para Speyer, onde são depositados na cripta da catedral. Mas, mesmo a catedral imperial é ameaçada de degradação. O caixão é, então,
desenterrado e, durante cinco anos, conservado no subterrâneo da capela de Santa Afra, que ainda não fora abençoada. Apenas em 1111, tendo seu filho obtido do Papa
Pascoal II a revogação da excomunhão, os restos são enterrados no jazigo imperial dos Sálicos da Catedral de Speyer, ao lado do túmulo de seu pai Henrique III. – a
partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Henri_IV_du_Saint-Empire
[370] Na entrevista do castelo de Canossa. Vide Donizo, vita Mathildis, ap. Muratori, v. 866.
(NT): Trata-se de Matilde de Canossa ou, também, Matilde da Toscana, c. 1046-1115, que teve um papel importantíssimo na Questão das Investiduras e foi a principal
interlocutora de Gregório VII com o norte da Europa. Michelângelo, 1475-1564, o célebre pintor, escultor e arquiteto renascentista era seu descendente – a partir de
http://pt.wikipedia.org/wiki/Matilde_de_Canossa.
[371] Vide a Tapeçaria de Bayeux. Ela foi descrita nas Memórias da Academia das Inscrições, t. VIII, p. 602, e mais exatamente em Ducarel, Antiquités Anglo-
normandes. {NT: como escrevi no Tomo I: Nela (na cidade normanda de Bayeux), também se encontra em exposição a gigantesca “Tapeçaria de Bayeux” ou
“Tapeçaria da Rainha Mathilde”, confeccionada no século XII, onde é contada a invasão e conquista da Inglaterra pelos franceses da Normandia, liderados por Guilherme
o Conquistador (ou Guilherme o Bastardo), em 1066. Sítio oficial da Tapeçaria: http://www.tapisserie-bayeux.fr/. Para fazer uma visita interativa sobre a tapeçaria:
http://www.bourlingueur.org/decouvrez/culture/Monuments-du-monde/tapisserie-de-bayeux/la-tapisserie-de-bayeux-premiere-partie.html}.
[372] Guill. Gemetic. l. III, c. 8: Quem (Richard I) confestim pater Baiocas mittens... ut ibi linguâ eruditus danicâ suis exterisque hominibus sciret apertè dare responsa. –
Vide Depping, Hist. des Expéditions Normandes, t. II; Estrup, Remarques faites dans un voyage en Normandie, Copenhaguen, 1821; e Antiquités des Anglo-
Normands. – Encontra-se, nas cercanias de Bayeux, Saon e Saonet (NT: etimologicamente ligadas à Saosson – Saxão). Várias famílias carregam o nome de Saisne,
Sesne. Um capitular de Carlos o Calvo (Scr. fr. VII, 616) designa o cantão de Bayeux pela palavra de Otlingua Saxonia – O nome de Caen é também saxão: Cathim, casa
do conselho. Mémoires de l’Acad. Des Inscript., t. XXXI, p. 242 – Muitos normandos me asseguraram que, em sua província, não se encontrava o louro pronunciado e o
ruivo senão nas terras de Bayeux e de Vire.
[373] Vide em Duchesne, Script. Normann., I, 1023, o catálogo da abadia da Batalha: “Aumerle, Archer, Avenant, Basset, Barbason, Blundell, Breton, Beauchamp,
Bigot, Camos, Colet, Clarvaile, Champaine, Dispencer, Devaus, Durand, Estrange, Gascogne, Jay, Longspes, Lonschampe, Malebranche, Musard, Mautravers, Perot,
Picard, Rose, Rous, Rond, Saint-Amand, Saint-Léger, Sainte-Barbe, Truflot, Trusbut, Taverner, Valence, Verdon, Vilan, etc. etc.. Observa-se, nessa lista, vários nomes de
províncias e de vilarejos da França. Restam, ainda, várias outras listas. Em algumas, os sobrenomes estão agrupados por rimas, dois a dois, ou três a três, a fim de auxiliar
a memória.
[374] Ingulfus Croyland, ap. Scr. fr. XI, 155: Ipsum (Anglicanum) idioma abhorrebant.
[375] Guill. Pictav., ap. Scr. fr.: Æmulabatur Ægyptum regularium cœnobiorum collegiis
(NT: Colégios de mosteiros rivais no Egito) . – Guilherme, diz o mesmo autor,
jamais recusou sua autorização a quem quisesse doar às igrejas – Orderic. Vital., l. IV, p. 237. Cœnobia plurima devotè construxit (NT: Ele construiu muitos
monastérios).
[376] Acta SS. ord. S. Ben., sec. VI, p. 642.
[377] Gaufred. Malaterra, l. I, c. 9, ap. Muratori, Script. rer. Italicarum, V. 352: Normannus Hugo, cognomento Tudebufem (Tueboeuf)... nudo pugno equum in cervice
percutiens uno ictu, quase mortuum dejecit (NT: O normando Hugo, cognominado Mataboi... com o punho nu deu um golpe no pescoço do cavalo, que quase
morto caiu). – Um outro segura a cauda de um leão que pegava uma cabra e os lança por cima de uma muralha. Chron. reg. Fr., ap. Scr. fr. XI, 393.
[378] Gaufred. Malaterra, l. II, c. 30, ibid 567: Ensem, in modum falcis virens pratum resecantis, vibrando ducens, ut sicut in condensis saltibus jacerent à vento diruta
ligna, sic circumquaque sibi adjacerent peremta cadavera. Ipse quo amisso... sellam asportans (NT: Girando sua espada, como uma foice ceifando a grama verde, os
cadáveres amontoados à sua volta, como as árvores de uma floresta densa derrubadas pelo vento. Ele perdeu seu cavalo ... trouxe a sela – a partir da nota na
tradução de G. H. Smith).
[379] Guill. Apulus, l. II, ap. Muratori, V, 259:
“Corpora derident Normannica, quæ breviora
Esse videbantur.”
(NT: O engraçado corpo dos Normandos que, aparentemente, é mais curto).
[380] Gibbon, XI, 151.
[381] Guill. Malmsbur., ap. Scr. fr. XI, 183.
[382] Id. ibid.: Ubi vires non successissent, non minùs dolo et pecuniâ corrumpere (NT: Quando a força não era bem sucedida, eles recorriam a subornos e a
traições).
[383] (NT): Roberto o Astuto (c. 1020-1085): Roberto de Altavila (em francês, Robert d’Hautevile), também conhecido como Roberto Guiscardo (ou Guiscard), da
palavra latina viscardus ou guiscardus (astuto), através do francês antigo viscart. Duque da Apúlia e da Calábria, foi um dos mais célebres aventureiros Normandos na
região do Mediterrâneo, continuando a conquista da Itália meridional sobre os Bizantinos antes de iniciar aquela da Sicília muçulmana, na companhia de seu irmão Rogério
(depois, Rogério I, da Sicília), com o qual lançou as fundações do futuro reino da Sicília – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Robert_Guiscard e de
http://pt.wikipedia.org/wiki/Roberto_de_Altavila.
[384] Guilherme de Jumièges conta (l. I, c. 10) que o bracelete de uma jovem restou suspenso, numa árvore à margem de um rio, durante três anos, sem que alguém o
tocasse.
[385] Wace, Roman de Rou – Gaufred. Malaterra, l. I, c. 3: Est gens astutissima, injuriarum ultrix; spe alias plus lucrandi, patrios agros vilipendens, quæstus et
dominationis avida, cujuslibet rei simulatrix: inter largitatem et avaritiam quoddam medium habens (NT: É uma gente das mais astutas, propensa a vingar injúrias,
desprezando seu próprio país pela esperança de ganhar mais em outros lugares, gananciosa de lucro e de poder, dissimuladora perfeita, e preservando um
fim entre a liberalidade e a avareza). – Guill. Malmsb., ap. Scr. fr. XII, 185. Cum fato ponderare perfidiam, cum nummo mutare sententiam – Guill. Apulus, l. II, ap.
Muratori, 259:
Auditi, ... quia semper Normannica prona
Est ad avaritiam; qui plus præbet, amatur
(NT: Escutai… os Normandos são sempre inclinados à avareza; É mais amado aquele que dá mais). – Aqueles que não podiam fazer fortuna em seu país, ou que
incorriam na desgraça de seu duque, partiam, o quanto antes, para a Itália. Guill. Gemetic., l. VII, c. 19, 30. Guill. Apul., l. I, p. 259.
[386] Baron. annal. eccles., ad ann. 1064.
[387] Chronic. Malleac., ap. Scr. fr. XI, 644: Wiscardus... cùm generis esset ignoti et pauperculi (NT: Wiscardo… sendo de uma pobre e desconhecida família) .
Richard. Cluniac.: Robertus Wiscardi, vir pauper, miles tamen (NT: Roberto Wiscardo, homem pobre, mas um cavaleiro) . Alberic.. ap. Leibnitzii access. histor. p. 124.
Mediocri parentelâ (NT: parentela de recursos médios).
[388] Gaufred. Malaterra, l. I, c. 5: Per diversa loca militariter lucrum quærentes (NT: Por diversos locais, procurando o lucro militar).
[389] Κατὰωᾶν, comandante-geral. É o que Guilherme de Pouille expressa com esse verso: “Quod Catapani Græci, nos juxtà dicimus omne.”, L. I, p. 254.
[390] Cada um dos doze condes possuía, em Melfi, seu próprio bairro e sua casa:
Pro numero comitum bis sex statuêre plateas,
Atque domus comitum totidem fabricantur in urbe – Id. ibid., p. 256.
(NT: Duas vezes o número seis contado em estátuas e ruas/ E a casa conta como muitos edifícios da cidade).
[391] Gaufr. Malaterra, l. I, c. 9: Græci... maximâ multitudine ex Calabriâ et Apuliâ sibi coadunatâ, usquè ad sexaginta millia armatorum {NT: Gregos... prepararam
uma vasta população da Calábria e da Apulia, até sessenta mil (homens) armados}.
[392] Gaufr. Malaterra, l. I, c. 14. Guill. Apul., l. II, p. 261. Hermann Contract, ap. Scr. fr. XI, 21.
[393] Gauttier d’Arc., p. 295: “Guiscardo mandou dizer a seu sobrinho Abelardo que havia acabado de se apoderar de seu jovem irmão mas, que se a praça-forte de San
Severino fosse entregue às suas tropas, ele devolveria a liberdade ao cativo, tão logo ele, Guiscardo, chegasse ao monte Gargano”. Abelardo não hesitou: as portas de San
Severino foram abertas por sua ordem e ele foi encontrar, com toda a pressa, seu tio a fim de cobrar-lhe sua promessa de partir para o Gargano: “Meu sobrinho”, disse-lhe
Guiscardo, “não conto nele chegar antes de sete anos”.
[394] Gaufr. Malaterra, l. I, c. 25.
[395] “Ego Guillelmus, cognomento Bastardus...”. Vide uma carta citada no décimo-segundo volume do Recueil des Historiens de France, p. 568. – Esse nome de
“Bastardo” não era, certamente, uma injúria na Normandia. Lê-se em Raul Glaber, l. IV, c. 6 (ap. Scr. fr. X, 51): “Robertus... Ex concubina tamen filium genuerat,
Willelmi nomen atavi ei imponens. Cui, antequam proficisceretur, universos sui ducaminis principes militaribus astrinxit sacramentis, qualiter illum in principem pro se, si non
rediret, eligerent. Quod etiam statim ex consensu regis Francorum Henrici unanimiter postmodum firmaverunt. Fuit enim usui, a primo adventu ipsius gentis in Gallias, ut
superius pernotavimus, ex hujusmodi concubinarum commixtione illorum principes extisse (NT: Roberto... Tivera um filho de uma concubina a quem chamou
Guilherme, cujo nome era o de seu avô. Antes de partir para sua peregrinação, ele fez com que todos os príncipes de seu ducado prestassem o juramento
militar, pelo qual comprometiam-se a reconhecer como chefe seu filho ilegítimo, se a morte viesse surpreendê-lo nessa viagem. Eles, de fato, cumpriram sua
palavra com um acordo unânime, com a aceitação de Henrique, rei dos Franceses. Já observamos mais acima que, desde sua chegada nas Gálias, quase todos
os Normandos tiveram príncipes nascidos, como Guilherme, de um comércio ilegítimo – a partir do sítio http://remacle.org/bloodwolf/historiens/glaber/histoire4.htm).
O Autor das Gesta consulum Andegavensium copiou essa passagem (Scr. Fr. XI, 265): “Willelmus singulare nothorum decus” (NT: “Guilherme, a singular glória dos
bastardos”), Chonic. Neubrig. apud. Scr. fr. XIII, 93. Sabe-se, ademais, que Guilherme não suportava de forma alguma que lhe lançassem a baixeza de sua origem
maternal: em certa ocasião, os sitiados, para reprová-la, gritavam, imitando vendedores, enquanto batiam sobre pedaços de couro: “Pele! Pele! Olha a peeele!”, pois a mãe
de Guilherme era filha de um curtidor de peles. Guilherme mandou cortar os pés e as mãos de trinta e dois deles. Guill. De Jumièges, l. VII, c. 3.
[396] Will. Malmsb., l. III, ap. Scr. fr. XI, 190: Justæ fuit staturæ, imensæ corpulentiæ: facie ferâ, fronte capillis nudâ, roboris ingentis in lacertis, magnæ dignitatis sedens
et stans, quanquam obesitas ventris nimiùm protensa (NT: Ele tinha uma estatura correta, imensamente corpulento, semblante feroz, fronte nua de cabelos, braços
muito fortes, de grande dignidade, sentado ou em pé, apesar da grande protuberância de sua barriga – a partir da nota da tradução em inglês de G. H. Smith,
F.G.S.).
[397] Order. Vital., ap. Scr. fr., XI, 232.
[398] Acta SS. ord. Bened. sec. VI, pars 2ª, p. 635.
[399] (NT): Trata-se da Abadia dos Homens ( Abbaye aux Hommes) e da Abadia das Mulheres (Abbaye aux Femmes). As imponentes abadias, cujas construções
remontam aos anos 1059-1062, foram milagrosamente poupadas durante o desembarque aliado na Normandia, no curso final da II Guerra Mundial, apesar de Caen ter sido
praticamente toda destruída. O túmulo de Guilherme, Duque da Normandia e Rei da Inglaterra, fica na primeira e o de sua mulher Matilde, Duquesa e Rainha, na
segunda.
[400] Há muito tempo que a Normandia amedrontava a Inglaterra. Em 1003, o rei Etelredo II enviara uma expedição contra os Normandos. Quando seus homens
retornaram, ele perguntou-lhes se traziam o Duque da Normandia: “Nós jamais vimos o duque”, responderam, “mas combatemos, e perdemos, contra a terrível população
de um só condado. Não encontramos, aí, somente valentes guerreiros mas, também, mulheres belicosas que quebram, com seus jarros, as cabeças dos mais robustos
inimigos”. Ante essa narrativa, o rei, reconhecendo sua loucura, enrubesceu cheio de dor”. Will. Gemetic., l. V, c. 4, ap. Scr. fr. X, 186. Em 1034, o rei Canuto III da
Dinamarca, por temor de Roberto da Normandia, teria ofertado aos filhos de Etelredo metade da Inglaterra. Id. l. V, c. 12; ibid, XI, 37.
[401] Diz Guilherme de Malmesbury: “Os Anglo-Saxões tinham, muito antes da chegada dos Normandos, abandonado os estudos das letras e da religião. Os clérigos se
contentavam com uma instrução tumultuária; à pena balbuciavam as palavras dos sacramentos e todos maravilhavam-se se um deles soubesse a gramática. Eles bebiam
sempre juntos e era esse o estudo ao qual consagravam os dias e as noites. Eles consumiam seus rendimentos à mesa, em pequenas e miseráveis casas. Bem diferentes
dos Franceses e dos Normandos que, em seus vastos e soberbos edifícios, não fazem senão bem pequenas despesas. Daí, todos os vícios que acompanham a embriaguez e
que efeminam o coração dos homens. Assim, após terem combatido Guilherme com mais temeridade e cegueira de furor que com ciência militar, vencidos sem pena em
uma só batalha, eles tombaram, eles e sua pátria, em uma dura escravidão. – As túnicas dos Ingleses desciam-lhes até o meio dos joelhos; eles usavam os cabelos curtos e
a barba raspada, seus braços eram carregados de braceletes de ouro, sua pele possuía um relevo de pinturas e de estigmas coloridos; sua glutonaria ia até à devassidão,
sua paixão pela bebida até o abrutalhamento. Eles transmitiram esses dois últimos vícios aos seus vencedores; e, em relação a outras coisas, foram eles quem adotaram os
mores e costumes dos Normandos. De seu lado, os Normandos eram e ainda são (no meio do século XII, época na qual escrevia Guilherme de Malmesbury)
cuidadosos com suas vestimentas, ao ponto do fausto, delicados com sua alimentação, mas sem excessos, acostumados à vida militar e não podendo viver sem guerra;
ardentes no ataque, eles sabem, quando a força não basta, empregar igualmente o ardil e a corrupção. Entre eles, como já disse, eles constroem grandes edifícios e
dispendem gastos moderados para a mesa. Eles são invejosos de seus pares; eles gostariam de ultrapassar seus superiores e, embora despojando seus inferiores, eles os
protegem contra os estrangeiros. Fiéis a seus senhores, a menor ofensa torna-os, entretanto, infiéis. Eles sabem equilibrar a perfídia com a fortuna e vender seu juramento.
De resto, de todos os povos, eles são os mais suscetíveis à benevolência; eles rendem aos estrangeiros tanta honra quanto a seus compatriotas e não desdenham contrair
casamentos com seus súditos” – Willelmus Malmesburiensis, de gestis rerum Anglorum, librum III, ap. Scr. fr. XI, 185 – Math. Paris (edição de 1664), p. 4: Optimates
(Saxonum)... more christiano ecclesiam manè non petebant, sed in cubiculis et inter uxorios amplexus, matutinarum solennia ac missarum à presbytero festinantes auribus
tantum prælibant... Clerici... ut esset stupori qui grammaticam didicisset (NT: Os nobres saxões .... não se dirigem à igreja de manhã, de acordo com o uso cristão
mas, vadiando em seus leitos e nos abraços de suas esposas, eles ficavam contentes com uma apressada palavra dos ritos solenes das matinas e da missa...
Clérigos... que, com o estupor de sono, falam a gramática – a partir da nota da tradução em inglês por G. H. Smith, F.G.S.). Order. Vital., l. IV, ap. Scr. Fr., XI, 242:
Anglos agrestes et penè illiteratos invenerunt Normanni (NT: Os Anglos são selvagens e quase iletrados para os Normandos).
[402] Thierry, Conquête de l’Angleterre etc., 1826, I, 223.
[403] Vide Lingard, Hist. d’Angleterre, I, 448.
[404] Guill. Malmesb., XI, p. 174: Godwinus tantùm brevi valuit, ut Normannos omnes ignominiæ notatos ab Angliâ effugaret
[405] Guill. Pictav., ap. Scr. fr. XI, 91.
[406] Id. ibid., 95.
[407] (NT): É crucial apontar a seguinte cronologia, sem a qual restará incompreensível a crise de sucessão do trono da Inglaterra:
1º) o desembarque, aparentemente acidental, de Haroldo, em terras sujeitas à suzerania de Guilherme, ocorreu no ano de 1064; assim, os eventos concernentes à estadia
de Haroldo, no período de 1064/1065, nas terras de Guilherme, ocorreram ANTES da morte do rei inglês Eduardo o Confessor;
2º) Eduardo o Confessor morreu em 5 de janeiro de 1066 e, pouco antes de morrer, segundo afirmava Haroldo, Eduardo legara-lhe o trono;
3º) a crise da sucessão ocorre, portanto, após a morte do rei Eduardo e envolveu, também, o Rei da Noruega, Harald (Haroldo) III que, entretanto, por ter logo morrido,
viu-se fora da disputa.
[408] Guill. Pictav., ap. Scr. fr. XI, 87: Heraldus ei fidelitatem sancto ritu Christianorum juravit... Se in curia Edwardi, quamdiu superesset, ducis Guillelmi vicarium fore;
enisurum . . . . ut Anglica monarchia post Edwardi decessum in ejus manu confirmaretur, traditurum interim.... castrum Doveram (NT: Haroldo jurou fidelidade sob
santo rito Cristão.... após permanecerem na cúria, Eduardo dela saiu como cavaleiro do duque Guilherme.... A monarquia inglesa, após a morte de Eduardo,
foi confirmada para vir às suas mãos, assim como a transmissão .... do castelo de Dover. ); vide também Guill. Malmsb., ibid. 176, etc. – “Segundo uns”, diz Wace
(Romance de Rou, ap. Scr. fr. XIII, 223), “o rei Eduardo tentou demover Haroldo dessa viagem, dizendo-lhe que Guilherme o odiava e aplicar-lhe-ia algum truque (vide
também Eadmer, XI, 192). Segundo outros, ele o enviou para confirmar ao duque a promessa do trono da Inglaterra:

N’en sai mie voire ocoison,


mais l’un et l’autre trovons.

Não sei em qual escrito acreditamos,


mas um e outro encontramos.
(NT: tradução livre do francês arcaico)

Guillaume de Jumièges (ap. Scr. fr. XI, 49), Ingulf de Croyland (ibid, 154), Orderic Vital (ibid, 234), la Chronique de Normandie (XIII, 222) etc. afirmam que Eduardo
havia designado Guilherme como seu sucessor. O próprio Eadmer não nega o ponto (XI, 192) – No leito de morte, Eduardo, assediado pelos amigos de Haroldo, retira sua
promessa (Roger de Hoved., ap. Scr. fr. XI, 312, Romance de Rou e Chronique de Normandie, t. XIII, 221).
[409] É o que a mulher de Gunther lembra àquela de Siegfried para humilhá-la.
[410] Chronique de Normandie, ap. Scr. Fr. XIII, 229: “Sire, je suis message de Guillaume le Duc de Northmandie, qui m’envoie devers vous, et vous fait savoir que
vous ayiez mémoire du serment que vous lui feistes en Northmandie publiquement, et sur tant de bons saintuaires” – francês arcaico.
[411] Eadmer, ap. Scr. fr. XI, 193: Iterùm ci amicâ familiaritate mandavit (NT: Com amigável familiaridade, ele novamente ordenou).
[412] Guill. Malmsb., l. III: Se illuc iturum, quo Haroldus tutiores se pedes habere putaret (NT: Ele iria até onde Haroldo tivesse os pés mais protegidos).
[413] “Quanto à Haroldo, ele em nada se importava com o julgamento do Papa” (Judicium Papæ parvipendens. Ingulf, ap. Scr. fr. XI, 154, Guill. Malmsb., l. III).
[414] Vide a Tapeçaria de Bayeux.
[415] Guill. Pictav., ap. Scr. fr. XI, 181.
[416] Ord. Vit., XI, 240: Munitiones, quas Galli castella nuncupant, anglicis provinciis paucissimæ fuerant. {NT: Fortificações que os Galos (franceses) chamam de
castelos, eram muito poucas nas províncias inglesas}.
[417] Victu deficiente (NT: Dieta deficiente), Roger de Hoveden, ap. Scr. fr. XI, 312.
[418] Chronique de Normandie, ap. Scr. fr. XIII, 231.
[419] Guilherme, ao contrário, propôs um combate singular – Proponebat Willelmus... soli rem gladiis ventilarent. Math. Paris, p. 2, col. 2, édition 1644.
[420] Order. Vit. XI, 236: Tres equi sub eo confossi ceciderunt – Guill. Pictav., ibid. 98, Guill. Malmsb., ibid. 184.
[421] Lingard, Histoire d’Angleterre, I, 501.
(NT): a Abadia da Batalha ou Abadia de Battle ( l’Abbaye de la Bataille ou the Battle Abbey) fica na cidadezinha rural de Battle, em East Sussex. Teve seus trabalhos
de construção iniciados no ano de 1070 e foi batida a título de penitência imposta pelo Papa Alexandre II aos Normados, em virtude do excesso de violência utilizado em
sua conquista da Inglaterra. O próprio Guilherme não viveu tempo suficiente para vê-la concluída em 1094, pois faleceu em 1087. A Abadia encontra-se parcialmente
arruinada, sendo a causa principal disso a dissolução dos monastérios ordenada por Henrique VIII, no século XVI, seguida por um rastro de saques voltados à reutilização
do material. Propriedade privada dos séculos XVII ao XX, é hoje administrada pelo English Heritage, escritório-executivo vinculado ao Department for Culture, Media
and Sport do governo britânico. As tábuas contendo os nomes dos conquistadores (Battle Abbey Roll) desapareceram por volta do século XVI e houve tentativas, em boa
parte fracassadas, de recompilar os nomes a partir do Domesday Book (Livro do Juízo Final). No website http://www.wyrdlight.com/babbey/battleabbeygoogle.htm, há
cerca de vinte imagens, com legendas em inglês, dos restos da Abadia e arredores, sendo uma das mais tocantes aquela que exibe a placa colocada sobre o local onde,
originariamente, estivera o altar-mor da Abadia, o qual honrosamente assinalava o local onde o rei Haroldo morrera – http://fr.wikipedia.org/wiki/Abbaye_de_la_Bataille;
http://en.wikipedia.org/wiki/Battle_Abbey e http://en.wikipedia.org/wiki/English_Heritage.
[422] Math. Paris, p. 3: Jacentis femur regis gladio præcidit... militiâ pulsus... {NT: A coxa do rei jazido foi cortada pela espada... pulso (disciplina) militar...}.
[423] Order. Vital, ap. Scr. fr. XI, 243: Anglicani locutionem plerùmque sategit ediscere... Ast à perceptione hujusmodi durior ætas illum compescebat. (NT:
Procurando assim aprender o idioma inglês... mas sua vida agitada o impediu de adquiri-lo) – Ele começara por reprimir, através de regulamentos severos, a
licenciosidade de seus mercenários. Guill. Pictav., ibid 101: “Tutæ erant à vi mulieres; etiam illa delicta quæ fierent consensu impudicarum,... vetabantur. Potare militem in
tabernis non multum concessit... seditiones interdixit, cædem et omnem rapinam etc. Portus et quælibet itinera negotiatoribus patere, et nullam injuriam fieri jussit” (NT: As
mulheres estavam salvas de toda violência e mesmo a dissolução ordinária do campo militar era proibida. Ele não permitiu à soldadesca frequentar as
tabernas com regularidade... ele proibiu toda altercação, conflitos sangrentos e pilhagem etc. Ele ordenou que todos os portos e estradas permanecessem
abertos aos mercadores e que nenhuma injúria fosse cometida contra eles) . Essa passagem do panegirista de Guilherme foi copiada pelo consciencioso Orderico
Vital, ibid. 238. – “O homem fraco e sem armas”, acrescenta ainda Guilherme de Poitiers, “ia-se cantando, sobre seu cavalo, onde quer que desejasse, sem tremer à vista
dos esquadrões dos cavaleiros”. – “Uma jovem carregada de ornamentos de ouro”, diz Huntingdon, “pôde atravessar impunemente todo o reino” (Scr. fr. XI, 211). Mais
tarde, todavia, a resistência dos Anglo-Saxões irritou Guilherme e o levou a essas violências que todas as Crônicas ressoam.
[424] (NT): como apontei na tradução do Livro I: “O Domesday Book, ou mais simplesmente Domesday (Livro do Juízo Final), é apenas o registro do grande inventário
da Inglaterra realizado, em 1086, a mando de Guilherme o Conquistador, Duque da Normandia, para poder conhecer os bens e proprietários da terra que ele acabara de
conquistar. Para visualização: http://www.domesdaybook.co.uk.
[425] Vide a obra de M. Augutin Thierry.
[426] Hallam, L’Europe au moyen-âge, II, 57.
[427] (NT): Os thanes eram pessoas nobres da Inglaterra pré-normanda que poderiam ser comparadas, grosso modo, aos barões. Segundo Putnam's Home
Cyclopedia: Hand-Book of Literature and the Fine Arts, pag. 594, edição de 1854: “The thanes in England were formerly persons of some dignity; there were two
orders, the king's thanes, who attended the kings in their courts and held lands immediately of them, and the ordinary thanes, who were lords of manors and who had
particular jurisdiction within their limits. […] After the [Norman] Conquest, this title was disused, and baron took its place” (Os thanes, na Inglaterra, eram
originariamente pessoas de alguma dignidade; havia duas ordens: os thanes do rei, que auxiliavam os reis em seus tribunais e ocupavam as terras por ordem
deles, e os thanes ordinários, que eram senhores dos campos e tinham uma particular jurisdição dentro desses limites. ... Após a conquista normanda, esse
título caiu em desuso e o de barão o substituiu) – a partir de http://en.wiktionary.org/wiki/thane.
[428] (NT): Hida, do inglês medieval hide derivado do anglo-saxônico hid (ou hiwisc) ou “família”. Originalmente, significava a quantidade de terra cultivada necessária
para atender um lar. Findou por tornar-se uma medida variável de área na Inglaterra, durante os séculos VI a XVI, sendo definida em razão do rendimento de produção e
o potencial de taxação de uma terra, muito mais do que em razão de dimensões exatas. Assim, variava de 6 a 12 hectares, em função da fertildade da terra. Cinco hidas
deviam fornecer um soldado armado nos períodos de guerra. Dez hidas formavam um tithing, dez tithing formavam um hundred e os hundreds eram agrupados,
aleatoriamente, para formar um condado (shire) - http://fr.wikipedia.org/wiki/Hide_(unité) e http://en.wikipedia.org/wiki/Hide_(unit).
[429] (NT): As deer-friths eram florestas dentro das quais os animais selvagens, principalmente cervos, veados, corças (deers) estavam sob a proteção (frith) do rei.
[430] Chronic. Saxon., ap. Scr. fr. XIII, 51 – Eu verti para o francês a partir da tradução latina, complementando-a com aquela de Lingard, o qual tivera sob os olhos o
texto anglo-saxônico, um pouco mais extenso.
[431] Era também a opinião de Gibbon e dos autores da “Arte de verificar as datas”.
[432] Chron. Saxon., ap. Scr. fr. XIII, 51: Omnes prædia tenentes, quotquot essent notæ meliores per totam Angliam, ejus facti sunt vassai, ac ei fidelitatis juramenta
præstiterunt. (NT: Todos os arrendatários dos campos, assim como muitos dos melhores por toda a Inglaterra, tornaram-se seus vassalos, e os juramentos de
lealdade eram feitos a ele).
[433] O bispo de Winchester pagava uma peça de bom vinho para que o rei João não se lembrasse de que ele deveiar um cinto de ouro à condessa de Albemarle;
Roberto de Vaux dava cinco cavalos da melhor espécie para que o mesmo rei mantivesse a paz daquele com a mulher de Henrique Pynel; um outro pagava quatro marcos
para ter permissão de comer (pro licentia comedendi). Hallam, L’Europe au moyen-âge, II.
[434] (NT): Danegeld (literalmente, “tributo para os dinamarqueses”) era o nome dado, a partir de meados do século IX, ao tributo exigido das populações ameaçadas
pelos vikings a fim de que estes as poupassem. Foi, igualmente, um tributo criado na Inglaterra por Etelredo II (cerca de 1001) e utilizado, seja para comprar a partida dos
Dinamarqueses cujas frotas desolavam as costas, seja para pagar o soldo das tropas destinadas a repeli-los. Mantido por muito tempo após a expulsão dos Escandinavos
(ou seja, imotivadamente), o Danegeld desapareceu em 1135, no reinado de Estevão da Inglatera. - http://fr.wikipedia.org/wiki/Danegeld.
[435] (NT): Escudagem: escuage (francês arcaico), écuage (francês moderno), scutage (inglês), escudagem (português): palavra derivada do latim scutum (escudo),
era basicamente uma taxa instituída para que os cavaleiros pudessem ser dispensados do serviço militar devido ao Rei. Inicialmente introduzida por Henrique I (1100-
1135), seguida por Estevão (1135-1154), passou a ser constantemente empregada em virtude da preferência pelo emprego de mercenários. A cada guerra, uma
escudagem casuística era exigida daqueles nobres que não desejassem guerrear, tendo havido, por exemplo, a “escuage de Toulouse”, a “escudagem da Irlanda”, dentre
outras. Quando do reinado de João Sem Terra (1199-1216), este não só aumentou seu valor, como também passou a exigi-la sem causa específica, isto é, tornando-a uma
exação ordinária em tempos de paz. Tais fatos irritaram os barões e tiveram seu clímax em 1214, sendo a escudagem uma das mais proeminentes causas que levaram à
rebelião de 1215, a qual findou por dar nascimento, no mesmo ano, à Magna Carta, que proibe a Coroa de levantar qualquer scutage, salvo através do “conselho comum
do reino”: “XII. Nenhuma escudagem ou ajuda será imposta no nosso reino, salvo pelo conselho comum do nosso reino, exceto para o resgate de nossa pessoa, para fazer
cavaleiro nosso filho primogênito e, uma vez, para o casamento da nossa filha mais velha; e, para tais casos, será levantada apenas uma ajuda razoável; proceder-se-á da
mesma forma a respeito das ajudas da cidade de Londres” (XII. No scutage not aid shall be imposed on our kingdom, unless by common counsel of our kingdom,
except for ransoming our person, for making our eldest son a knight, and for once marrying our eldest daughter; and for these there shall not be levied more
than a reasonable aid. In like manner it shall be done concerning aids from the city of London ”); texto original: XII. Nullum scutagium vel auxilium ponatur in
regno nostro, nisi per commune consilium regni nostri, nisi ad corpus nostrum redimendum, et primogenitum filium nostrum militem faciendum, et ad filiam nostram
primogenitam semel maritandam, et ad hec non fiat nisi racionabile auxilium; simili modo fiat de auxiliis de civitate London). - http://en.wikipedia.org/wiki/Scutage;
http://fr.wikipedia.org/wiki/Écuage; http://en.wikipedia.org/wiki/Magna_Carta; www.thelatinlibrary.com/magnacarta.html; www.constitution.org/eng/magnacar.htm e
www.bl.uk/treasures/magnacarta/index.html#
[436] Segundo um jornal inglês, traduzido pelo Temps, nº 8 de novembro de 1831, as receitas da igreja anglicana eram de 236.489.125 francos; aquelas do clero cristão,
no resto do mundo, eram de 224.975.000.
(NT): Desconheço a existência de um estudo ou relatório que se refira aos tempos atuais. Entretanto, é possível que, a partir dos 40 últimos anos do século XX, algumas
igrejas evangélicas tenham ultrapassado a Anglicana, graças ao seu envolvimento com as mídias televisisa e radiofônica, ao seu estreitamento – muitas vezes dúbio - com
partidos políticos e/ou com membros dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, além da abertura de negócios paralelos, como recentemente ocorreu no Brasil, quando
o chefe (cognominado “bispo”) da Igreja Universal do Reino de Deus, pessoa que, até onde se sabe, tem nulo conhecimento da área financeira, tornou-se banqueiro, fato
que fez algumas pessoas “levantarem as sobrancelhas” consoante registrou a revista estadunidense Forbes (link abaixo).
http://www.forbes.com/sites/andersonantunes/2013/07/22/brazilian-billionaire-bishop-edir-macedo-is-now-a-banker-too.
[437] Vide mais abaixo Lanfranc, Sto. Anselmo, T. Becket, Stephen Langron, etc.
[438] Matthæus Paris, libro de Abbat. S. Albani, p. 29, e ap. Scr. fr. XIII p. 52.
[439] Nos primeiros tempos da conquista, a população das cidades havia rapidamente decrescido. Hallam, L’Europe au moyen-âge, II, 59.
[440] Id. ibid., 68.
[441] (NT): A palavra Irã deriva do persa Irān da era da dinastia Sassânida (224 até 651 d.C., quando os árabes muçulmanos invadiram a Pérsia), e significa “reino dos
Arianos”. Histórica e mitologicamente, a palavra designa a região que vai da Escócia ao Irã. Durante a dinastia Aquemênida (550 a 330 a.C.), o atual Irã era chamado de
Parsa (de onde deriva-se Pérsia), uma vez que Ciro o Grande pertencia à tribo parsa (ainda hoje, o território original dessa tribo é chamado de Fars ou Pars). A
totalidade do Império era conhecida como Aryanam, palavra aparentada ao termo Ariano, que significa “nobre”. Na época Parta (248 a.C. – 224 d.C), Aryanam
modificou-se para Aryān que evoluiu para Irānshar e, na época Sassânida, para Irān.
Turã (Turān), do ponto de vista étnico-linguístico, designa o conjunto de povos túrquicos (povos do oeste da China, os Gagaúzes da Moldávia, os Usbeques, os
Turcomanos, os Azeris, os Ávaros e os Mesquetes do Cáucaso, os Turcos da Turquia e dos Bálcãs etc.). A palavra é frequentemente utilizada pelos Panturquistas para
designar um ideal de um grande império turaniano reunindo todos os povos túrquicos tendo, também, uma conotação política.
No texto, o Autor opõe Irã a Turã , uma vez que esta palavra iraniana também era utilizada para designar os povos nômades, rudes e bárbaros do norte do atual Irã,
enquanto a primeira se aplicava aos nobres e aos povos sedentários que receberam o influxo liberal das artes civis e fizeram a grandeza do Império Persa.
Os Arianos (Irã, Irān) tinham como religião o Zoroastrismo (ou Masdaísmo ou Parsismo), revelada pelo profeta Zoroastro (ou Zaratrusta) que pregava a dualidade divina
consubstanciada na existência do Princípio da Luz ou do Bem (Aúra-Masda) e do Princípio das Trevas ou do Mal (Arumã), de cuja luta resultaria a vitória do primeiro; o
Zoroastrismo tem seus textos sagrados no Avesta (principalmente) e no Pálavi, sendo considerado uma religião monoteísta, apesar da dualidade divina, e apresentando
como concepções religiosas, à exemplo do judaísmo e do cristianismo, a crença no paraíso, na ressurreição, no juízo final e na vinda de um messias. Já os Turanianos
(Turã, Turān) são indicados, em várias passagens do Avesta, como inimigos do Zoroastrismo e apoiaram a invasão árabe e muçulmana que praticamente tornou ilegal o
Zoroastrismo – vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Iran; http://fr.wikipedia.org/wiki/Touran; http://pt.wikipedia.org/wiki/Zoroastrismo e http://fr.wikipedia.org/wiki/Avesta.
[442] Os Orientais tem brasões pessoais e não hereditários. Description des monuments musulmans du cabinet de M. de Blacas, t. I, p. 119. Vide também p. 72.
[443] (NT): Surat ou Surate, oitava maior cidade da Índia em população. Pertenceu ao Império ultramarino de Portugal, de 1540 a 1612.
[444] Entre os Muçulmanos, as palavras “mulher” e “objeto proibido pela religião”, podem ser usadas uma por outra, sem mudança de sentido. Bibl. des Croisades, t.
IV, p. 169.
[445] Fátima entrará no Paraíso antes de Maomé; os Muçulmanos a chamam de “Senhora do Paraíso”. – Alguns Xiitas (sectários de Ali) sustentam que, apesar de se
ter tornado mãe, Fátima permaneceu virgem e que Deus fez-se carne nos seus filhos. – Description des Monuments musulmans du cabinet d M. de Blacas, por M.
Reinaud, II, 130, 202.
(NT): Fátima é uma das fihas de Maomé. De todas as filhas de Maomé, foi a única a deixar descendência de seu casamento com Ali ibn Abi Talib (considerado o primeiro
califa pelos xiitas e o quarto pelos sunitas).
“Quando Maomé adoeceu, Fátima ficou triste devido à ligação profunda que tinha com o pai. Segundo uma tradição (hadith) transmitida por Aicha (uma das esposas de
Maomé), Fátima, numa ocasião, chorava por ver o pai doente, mas este consolou-a e Fátima sorriu. Após a morte de Maomé, Aicha perguntou a Fátima o que é que o pai
lhe dissera naquela ocasião; segundo Fátima, Maomé disse-lhe que o anjo Gabriel fazia-lhe visitas mais regulares para lhe revelar o Alcorão e, como o tal, Maomé
pressentira que a sua morte estava próxima. Maomé também contou-lhe que ela seria a primeira pessoa da família a juntar-se ao pai, a primeira a entrar no Paraíso”.
“Fátima é alvo de veneração pelos xiitas e é vista como um modelo pelas mulheres muçulmanas devido às suas virtudes morais e religiosas. Um dos títulos que estes lhe
atribuem é o de al-Zahra, ou "a Resplandecente". Uma dinastia de califas, oriunda do Islã xiita ismailita, afirmava descender de Fátima - dela retirando o seu nome:
fatímidas”.
“A Hamsá - ou Mão de Fátima - é um talismã usado por alguns muçulmanos que acreditam que ele pode afastar o mau-olhado. Também é usado como talismã no
judaísmo, por vezes adornado com estrelas de Davi. Segundo a tradição judaica, esta é a mão de Miriam, irmã de Moisés e Arão, profetas que conduziram o povo judeu do
Egipto à Terra Prometida”. – textos extraídos de http://pt.wikipedia.org/wiki/Fátima_(filha_de_Maomé).
[446] Ainda hoje, províncias inteiras, na Pérsia e na Síria, têm essa crença. “Mesmo aqueles xiitas que não ousaram dizer que Ali era Deus, persuadiram-se que pouco
faltou para isso. E os Persas dizem com frequência: “Não penso que Ali seja Deus, mas creio que não estava longe disso”. Os xiitas dizem a esse respeito que tal era o
brilho que resplandescia da pessoa de Ali, que era impossível olhar para ele. Quando ele aparecia, as pessoas gritavam: “Tu és Deus”. Ante essa afirmação, Ali as fazia
morrer e, em sequência, as ressuscitava; e elas gritavam ainda mais alto “Tu és Deus, tu és Deus!”. Por essa razão, ele foi cognominado “o Distribuidor da Iluminação”;
quando pintavam sua figura, seu rosto era coberto. Reinaud, II, 163.
[447] Segundo alguns doutores, no momento da criação, Deus tinha sob os olhos a idéia de Maomé e esta idéia, substância ao mesmo tempo espiritual e luminosa, lançou
três raios: do primeiro, Deus criou o céu; do segundo, a terra; do terceiro, Adão e toda sua raça. Assim, a Trindade entra no Islamismo como a Encarnação – Os
Ocidentais acreditaram aí ver a hirarquia cristã. “Essas nações”, diz Guibert de Nogent, “têm seu papa como nós”. L. V, ap. Bongars, p. 312-3.
[448] Hammer, Histoire des Assassins, tradução de MM. Hellert e Lanourais, p. 38 e segs.
[449] Ibid., p. 4 – A Casa da Sabedoria não é senão a mesma coisa que esse palácio do Cairo, do qual Guilherme de Tiro deixou-nos uma descrição tão pomposa. A
progressão de riquezas e de grandezas parecia corresponder a graus de iniciação. O que quer que fosse, damos a tradução desse precioso monumento:
“Hugo de Cesaréa e Godofredo, da milícia do Templo, entraram na cidade do Cairo, conduzidos pelo sultão, para desincumbirem-se de sua missão; eles subiram ao palácio,
chamado Casher na língua do país, com uma numerosa tropa de porteiros que caminhava à frente, espadas à mão, e com grande ruído; eram conduzidos através de
passagens estreitas e privadas de luz e, em cada porta, coortes de Etíopes armados rendiam suas homenagens ao sultão com saudações repetidas. Após terem atingido o
primeiro e segundo postos, introduzidos num local mais amplo, onde penetrava o Sol, e exposto ao dia, eles encontraram galerias com colunas de mármore, com painéis de
ouro e decoradas com esculturas em relevo, pisos de mosaicos e dignas, em toda a sua extensão, da magnificência real; a riqueza dos materiais e das obras retinham
involuntariamente os olhos e, o olhar ávido, encantado pela novidade desse espetáculo, à pena conseguia se recompor. Havia também piscinas cheias de uma límpida água;
escutava-se os gorjeios variados de uma variedade de pássaros desconhecidos em nosso mundo, de formas e cores estranhas, e, para cada um deles, uma alimento diverso,
segundo o gosto de sua espécie. Admitidos, ainda mais à frente, sob a condução do chefe dos eunucos, eles encontraram edifícios superiores aos primeiros em elegância,
como se os primeiros fossem casas vulgares. Lá, havia uma surpreendente variedade de quadrúpedes, tal como imagina o capricho dos pintores, tal como podem descrever
as mentiras poéticas, tal como se vê em sonhos, tal, enfim, como se encontra nos países do Oriente e do Sul, enquanto o Ocidente nada viu igual e quase jamais ouviu falar
de parelho. – Após várias voltas e corredores que teriam podido parar os olhares do homem mais ocupado, chegou-se ao palácio propriamente dito, onde corpos mais
numerosos de homens armados e satélites do senhor proclamavam, por seu número e seus trajes variados, a incomparável pompa de seu senhor; o aspecto dos lugares
refletidos nas vestes também anunciava sua opulência e suas riquezas prodigiosas. Quando eles entraram no interior do palácio, o sultão, para honrar seu senhor, segundo o
costume, prostrou-se duas vezes à sua frente e dedicou-lhe, suplicando, um culto que não era devido senão a ele, uma espécie de adoração. Repentinamente, abriram-se,
com uma maravilhosa rapidez, as cortinas, tecidas com pérolas e ouro, que pendiam no meio da sala e escondiam o trono; o rosto do califa foi, então, revelado: ele mostrou-
se sobre um trono de ouro, vestido de forma mais magnífica que os reis, cercado de um pequeno número de domésticos e de eunucos íntimos”. Willelmus Tyrensis, l. XIX,
c. 17.
[450] Esse misticismo dos Alidas (seguidores de Ali) frequentemente aplicou à devoção a língua do amor, como uma tendência que elevava o amor do real àquele do
ideal.
Um poeta Persa diz, dirigindo-se a Deus:
“Foi vossa beleza, ó Senhor, que, embora completamente escondida por trás de um véu, criou um número infinito de amantes;
Foi pela atração de vossos perfumes, que Leila alegrou o coração de Majnun*; foi pelo desejo de vos possuir, que Vamek exalou tantos suspiros por aquela a quem
adorava” – Reinaud, I, 52.
Citaremos, ainda, a seguinte ode:
“A tulipa tornou-se um copo de vinho (de onde extraiu-se os mais maravilhosos conhecimentos), e a rosa uma bela jovem de fresca tez (que faz as delícias dos amantes).
O rouxinol, fazendo ressoar seus gorjeios jubilosos no jardim, é como um músico que conduz a dança.
Vem ao jardim pois, ele está sem mim e sem ti; e que estejamos juntos, pois tudo está pronto para o prazer.
Depois que a rosa retirou o véu de cima de suas bochechas (e, assim, desabrochou), o narciso tornou-se todo olhos para contemplá-la.
A verdura sucedeu aos espinhos (a primavera ao outono); mas ó tu, a quem adoro!, o espinho que cravaste no meu coração ainda causa nele estranhas desolações.
Abre os ohos para contemplar o narciso; tu dirias que é o colar das Plêiades em volta do Sol (o cálice é amarelo com pétalas brancas).
Ou, então, tu dirias que é um cálice de ouro na mão de uma bela jovem com tez prateada, o cálice abraçado por dedos de prata.
A violeta sentiu-se humilhada e escondeu sua cabeça sob o manto púrpura que a cobre: dir-se-ia que a verdura formou sob seus pés um tapete que convida à oração.
Vê essa neblina primaveril; graças à sua liberalidade, o campo se cobre de pérolas e de diamantes.
Mas não, eu me engano; quero dizer que o rei (Deus), em virtude de sua bondade, construiu sob a abóbada de cristal uma tenda destinada aos prazeres.
Jamal, que nesse novo fruto de sua inspiração celebra os encantos primaveris, tirou, da língua muda das plantas que enfeitam o jardim, o louvor do rei (Deus)”. – Reinaud,
II, 468.
*(NT): a história de Leila e Majnun inspirou a ópera “Leila e Majnun” (em azeri, língua falada no Azerbaijão: “Leyli və Məcnun”) de 1908, que é reconhecida como a
primeira ópera do Oriente muçulmano, tendo alcançado grande sucesso; até o ano de 2009, vinte mil apresentações haviam sido computadas; neste mesmo ano, ela se
tornou parte do projeto cultural “Caminho da Seda”, do violinista Yo-Yo-Ma.
[451] O princípio da doutrina era Nada é verdadeiro e tudo é permitido . Hammer, p. 87. Um imã célebre escreveu contra os Hassanitas um livro intitulado Da
Loucura dos partidários da indiferença em matéria de religião.
[452] Hammer, p. 230.
[453] Hammer, p. 97.
[454] Ibid., p. 54.
[455] Ibid., p. 103,0104, 133 etc. Para assassinar um sultão, eles vieram, um a um, até chegarem a cento e vinte e quatro enviados.
[456] Marin. Sanut., l. III, c. 8: Henrique, conde de Champagne, tendo ido visitar o Grão-Mestre dos Assassinos, este o convidou a subir consigo a uma torre alta,
guarnecida em cada seteira com dois fedayins (devotos); ele fez um sinal e dois desses sentinelas precipitaram-se do alto da torre. “Se desejardes”, ele disse ao conde,
“todos esses homens farão o mesmo”.
[457] (NT): como registrei na tradução do Livro I, em nota que inseri quando o Autor compara os servidores de Fredegunda aos sectários dos Assassinos ou “ Ordem
dos Assassinos”: “Seita fundada por Hassan-in Sabah, também conhecido como “o velho da montanha”, no século XI, cujo objetivo era difundir uma nova corrente do Islã.
Eram conhecidos por sua ferocidade e, uma das etimologias para a palavra “assassino” deriva de "Assass" – ou seja, "os fundamentos" da fé islâmica - Vide
http://fr.wikipedia.org/wiki/Nizârites e http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_dos_Assassinos”.
[458] Hammer, p. 233
[459] Ibid., p. 111-112.
[460] O Islandês diz, ainda hoje, desejo de figos para expressar uma ardente vontade.
[461] (NT): rei francês de 1515 a 1547.
[462] (NT): O Vale do Cédron é também conhecido como “Vale da Torrente do Cédron” em virtude das torrenciais águas que descem em virtude de cheias repentinas
nos meses chuvosos de inverno; ele se estende “ao longo do muro oriental de Jerusalém, separando o Monte do Templo do Monte das Oliveiras e continua, no leste, pelo
Deserto da Judéia, em direção ao Mar Morto. O Vale é o local de muitos túmulos judaicos, inclusive o Pilar de Absalão, a tumba de Bene Hezir e o Túmulo de Zacarias.
Certa vez, a água da Fonte de Giom fluiu pelo vale, mas foi desviada pelo Túnel de Ezequias para prover água a Jerusalém. Atualmente, permanece sem água, mesmo no
inverno” - http://pt.wikipedia.org/wiki/Vale_do_Cédron
[463] Willem. Tyr., l. IX, c. 21: ...respondit: “Quod homini mortali sufficere meritò terra pro sede temporali poterat, cui post mortem perpetuum domicilium est
præstitura.” Quod audientes qui gratia tentandi accesserant, admirantes viri responsum, humilitatem et prudentiam, abierunt dicentes: “Quia verè hic est qui universas
regiones debeat expugnare, et cui repositum est de vitæ merito, populis et nationibus principari” (NT: ... ele respondeu: “A terra é boa o suficiente para fornecer um
assento momentâneo ao homem mortal pois, após sua morte, ela se tornará sua residência perpétua”. Aqueles que tinham vindo para tentá-lo, foram tomados
de admiração ao escutar essas palavras e, vendo tanta humildade e sabedoria, se retiraram dizendo: “Este homem é realmente aquele que deve conquistar
todos os países e a quem foi dado, como prêmio de seus méritos, o governo dos povos e das nações”. – vide no sítio internet
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumedetyr/croisade10.htm.
[464] Pierre d’Auvergne, ap. Raynouard, Choix de Poésises des Troubadours, IV, 115 – Raul Glaber, l. IV, c. 6, ap. Scr. fr. X, 50: Per idem tempus, ex universo orbe
tàm innumerabilis multitudo cœpit confluere ad sepulchrum Salvatoris Hierosolymis, quantùm nullus hominum priùs sperare poterat. Ordo inferioris plebis... mediocres...
reges et comites... præsules... mulieres multæ nobiles cum pauperioribus... Pluribus enim erat mentis desiderium mori priùsquàm ad propria reverterentur (NT: Quase ao
mesmo tempo, uma incontável multidão começou a se reunir, de todos os cantos do mundo, para partir ao Sepulcro de nosso Salvador, em Jerusalém, como
nenhum homem poderia antes ter a esperança. Pessoas comuns .... classes medianas ... reis e condes .... bispos .... muitas mulheres nobres juntamente com as
mais pobres .... Era o sincero desejo de muitos morrer ao invés de voltar – a partir da tradução em inglês de G.H. Smith, F.G.S.).
[465] Hammer, Histoire des Assassins.
(NT): Dada a importância histórica das medidas religiosas de al-Hakim para a compreensão do período pré-Cruzadas, o Tradutor transcreverá longos trechos do artigo
disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Al-Hakim_bi-Amr_Allah:
“Abū ʿAlī al-Manṣūr Tāriqu l-Ḥākim, chamado de al-Ḥākim bi-Amr Allāh, literalmente ‘Governante por comando de Deus [Alá]’), foi o sexto califa fatímida e o décimo-
sexto imã ismaelita, governando entre 996 e 1021. Al-Hakim foi o primeiro governante da dinastia dos fatímidas que nasceu no Egito. Era filho do seu antecessor, o califa
al-Aziz. Foi proclamado herdeiro em 993, após a morte do seu irmão mais velho Muhammad e sucedeu ao pai em 996 quando tinha apenas onze anos, com o poder de fato
nas mãos de seu vizir Barjawan até ao ano 1000.
Al-Hakim é uma figura importante para diversas denominações xiitas ismaelitas do Islã, como os 15 milhões de nizaris e, em particular, para os 2 milhões de drusos
residentes no Levante cujo epônimo fundador, Ad-Darazi, proclamou-o como uma encarnação de Deus (Alá) em 1018. Na literatura ocidental, ele é geralmente chamado
de "o califa louco", primordialmente por causa da dessecração fatímida de Jerusalém em 1009, embora alguns acadêmicos (como Willi Frischauer e Heinz Halm)
contestem esse epíteto considerando-o parcial .
As histórias sobre al-Hakim são controversas, pois existem diversos pontos de vista a respeito de sua vida e seu legado. O historiador Paul Walker escreve: ‘No final,
ambos os pontos de vista sobre ele, o do tirano louco e despótico dado a matanças irracionais dos que estavam à sua volta; e o governante supremo ideal,
escolhido e ordenado por Deus e cujas ações são justas e piedosas; persistiram, a primeira entre seus inimigos e entre os que se rebelaram contra ele, a outra,
nos corações dos verdadeiros fiéis que, ainda que perplexos por suas ações, ainda assim permaneceram avidamente fiéis a ele até o final’.
Em 1004, al-Hakim decretou que os cristãos não poderiam mais celebrar a Epifania ou a Páscoa. O uso de vinho (nabidh) e outras bebidas alcoólicas que não eram feitas
de uva (fuqa) também foi ilegalizado, tanto para os muçulmanos quanto para os não-muçulmanos.
Em 1005, o califa ordenou que os judeus e cristãos deveriam seguir a ghiyar ("Lei da Diferenciação") - neste caso, o mintaq ou zunnar ("cinto"; em grego: ζοναριον e
imamah ("turbante"), ambos em preto. Além disso, os judeus deveriam vestir um colar com um bezerro de madeira e os cristãos, uma cruz de ferro. Nos banhos públicos,
os judeus deveriam substituir o bezerro por um sino. Além disso, as mulheres do Ahl al-Kitab deveriam vestir sapatos de cores diferentes, um preto e um vermelho. Estas
leis vigoraram até 1014 . Seguindo o pensamento xiita da época, al-Hakim também ordenou diversas outras medidas restritivas (sijillat). Estas sijill incluíam a proibição de
entrar nos banhos públicos com os genitais descobertos, de mulheres em público com o rosto descoberto e o fechamento de diversos "clubes de entretenimento".
Entre 1007 e 1012, "houve uma notável atitude de tolerância com os sunitas e menos zelo pelo islamismo xiita, ao passo que a atitude em relação aos 'Povos do Livro' foi
de hostilidade". Em 18 de outubro de 1009, al-Hakim ordenou a destruição da Igreja do Santo Sepulcro e de todos os edifícios associados, aparentemente enfurecido pelo
que ele considerava como uma fraude dos monges na cerimônia "milagrosa" da descida do Fogo Sagrado, celebrada anualmente na igreja durante a vigília da Páscoa.
O cronista Yahia nota que "apenas foi poupado o que era muito difícil de demolir". Procissões foram proibidas e, anos depois, todos os conventos e igrejas na Palestina
foram destruídos ou confiscados . Só em 1042 é que o imperador bizantino Constantino IX começou a reconstruir o Santo Sepulcro com a permissão dos sucessores
de al-Hakim.
Al-Hakim acabou permitindo os convertidos à força a retornarem para sua fé e reconstruir seus destruídos edifícios de culto. De fato, entre 1012 e 1021, al-Hakim "se
tornou mais tolerante com judeus e cristãos e novamente hostil com os sunitas. Ironicamente, ele desenvolveu uma atitude particularmente hostil contra os
xiitas. Foi durante este período, no ano de 1017, que a singular religião dos drusos começou a se desenvolver como uma religião independente baseada na
revelação (Kashf) de al-Hakim como uma divindade".
[466] Gesta consulum Andegav., ap. Scr. fr. X, 256: Deluendo dixerunt nullo modo ad Sepulcrum optatum pervenire posse, nisi super illud mingeret... Quod vir prudens,
licet invitus, annuit. Quæsitâ igitur arietis vesicâ, purgatâ atque mundatâ, et opimo vino albo repletâ; quin etiam aptè inter ejus femora posita est, et comes discalciatus...
accessit, vinunque super Sepulcrum fudit. (NT: Foi-lhe dito, de forma a desviá-lo de seu desejo, que ele não poderia, de forma alguma, ver o Santo Sepulcro,
salvo se nele urinasse (mijasse – “mingeret”). O sábio homem, apesar de contrariado, consentiu. Comprou a bexiga de um carneiro, bem limpa e purificada, e
a encheu com o melhor vinho branco; ele a amarrou entre suas coxas e, ficando descalço... alcançou o Santo Sepulcro e nele derramou o vinho . – a partir da
tradução em inglês de G. H. Smith, FGS.
[467] Ingulfus, ap. Gibbon, IX, 258. Additamenta Sigiberto Gemblac., ap. Scr. fr. XI, 638. Baron. annal. eccles., ad. ann. 1064.
[468] Gibbon, IX, 228.
[469] (NT) Alexios I Komnenos, imperador bizantino durante o período 1056-1118, também conhecido como Aleixo ou Alexis.
[470] Guibert. Novig., l. I, c. 4, ap. Bongars, p. 476: Infert denique (Imperator) et quiddam bonorum virorum frugalitati incompetens, ut videlicet “ut præter hæc universa
pulcherrimarum feminarum voluptate trabantur” {NT: Enfim, ele (Imperador) terminava por um outro argumento, que era bem inconveniente de propor a homens
sábios e prudentes, e procurava “atrair aqueles que solicitava, exaltando a extrema beleza e a voluptuosidade das mulheres de seu país . –
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade1.htm}.
[471] Michaud, Histoire des Croisades, t. I – Vide a carta de Gerberto, ap. Scr. fr. X, 426.
[472] Per viam quam jandudum Carolus Magnus, mirificus Francorum rex, aptari fecit usque Constantipolim, Anonymi gesta Franc. Hiersolym, ap. Bongars, p. 1. Robert.
Monach, p. 33 – Os profetas anunciavam que o próprio Carlos Magno viria comandar a cruzada.
[473] Albert. Aquens, l. I, c. 31: Anserem quemdam divino spiritu asserebant afflatum, et capellam non minus eodem repletam; et hos sibi duces fecerant (NT: Eles
asseguravam que o ganso estava tomado pelo Espírito Santo, assim como a cabra, e os escolheram para guias). – Foi assim que os Sabinos desceram de suas
montanhas sob a condução de um lobo, de um pica-pau e de um boi; que uma vaca levou Cadmo até a Beócia etc.
[474] Guibert. Nov., l. II, c. 3: “O povo miúdo, desprovido de recursos, mas muito numeroso, afeiçoou-se a um certo Pedro o Eremita e obedece-lhe como se fosse seu
senhor, ao menos quando as coisas ocorreram no nosso país. Eu descobri que este homem, originário, se não me engano, da cidade de Amiens, levara, inicialmente, uma
vida solitária, num hábito de monge, em uma parte da Gália Superior, que desconheço. Ele partiu de lá, e ignoro por qual inspiração, mas nós o vimos, então, percorrendo as
cidades e os burgos, e pregando sempre; o povo o cercava em multidão, o acumulava de presentes, e celebrava sua santidade com tão altos elogios, que não me lembro de
ter jamais visto alguém receber honras iguais. Ele se mostrava muito generoso na distribuição de todas as coisas que lhe eram dadas. Ele reconduzia a seus maridos as
mulheres que se prostituíram, não sem dar-lhes, ele próprio, alguns presentes, e restabelecia a paz e a boa inteligência, entre aqueles que eram desunidos, com uma
maravilhosa autoridade. Em tudo que fizesse ou dissesse, parecia nele haver algo de divino; de sorte que chegava-se, mesmo, a arrancar os pêlos de sua mula para serem
guardados como relíquias: o que narro, não como louvável, mas para criticar o vulgo que ama todas as coisas extraordinárias. Ele não usava senão uma túnica de lã e, por
cima, um manto de burel que descia-lhe até os calcanhares; ele tinha os braços e os pés nus, não comia, ou quase, pão e se alimentava de vinho e de peixes”.
[475] “Lembrai-vos, ainda”, ele disse, “dessas palavras que o próprio Deus disse à Igreja: ‘Eu trarei vossos filhos do Oriente e Eu vos reunirei aqueles do Ocidente’.
Deus trouxe vossos filhos do Oriente, pois que essa região do Oriente produziu duplamente os primeiros princípios da nossa Igreja e Ele reúne os do Ocidente para reparar
os males de Jerusalém através dos braços daqueles que, por último, receberam os ensinamentos da fé, ou seja, pelos Ocidentais”., Id., l. II, c. 4.
[476] “Houve aqueles que imprimiram a cruz no corpo com um ferro vermelho em brasa”. Alberic. Tr. Front., ap. Leibnitzii Accessiones historicæ, I, 147.
[477] Guibert. Nov., l. II, c. 6.
[478] Os arrabaldes do Reno tomaram pouca parte na cruzada. – Orientales Francos, Saxones, Thoringos, Bavarios, Alemannos, propter schisma quod tempore inter
regnum et sarcerdotium, hæc expeditio minus permovit (NT: A expedição interessou pouco aos Francos orientais, Saxões, Turíngios, Bávaros e Alemães, em virtude
do cisma que, então, dividia o império e o poder sacerdotal). Alleric., ap. Leibnitz Access., p. 119 – Vide Guiberto, l. II, c. 1.
[479] Ann. Comnen., lib. X, p. 287: Καί τινες ὕστερον τῶν ἐκ τοῦ αὐτοῦ γένους τῶν ἀποσφαγέντων βαρβάρων ἐν σχήματι πόλεως οἰκοδομήσαντες τεῖχος μεσέμβολά
τινα καθάπερ κάχληκας τὰ ὀστᾶ τῶν ἀπολωλότων ἐνέθεντο τρόπον τινὰ τάφον αὐτοῖς τὴν πόλιν ποιούμενοι. Ἥτις καὶ εἰς τὴν τήμερον ἵσταται τετειχισμένη ὁμοῦ τε
λίθοις καὶ ὀστοῖς ἀναμὶξ ἔχουσα τὸν περίβολον. (NT: Alguns, querendo construir uma muralha, como para cercar uma cidade, misturaram muitas ossadas com as
pedras e ergueram, ao mesmo tempo, um túmulo para os mortos e uma morada para os vivos. - http://remacle.org/bloodwolf/historiens/comnene/alexis10.htm).
[480] (NT): Roberto Curthose (1051/52 – 1134) é Roberto II da Normandia, Duque da Normandia. Seu nome, em anglo-normando é Robert Courteheuse, sendo esta
última palavra um cognome para “bota curta”, em virtude de sua forma robusta e baixa estatura. - http://fr.wikipedia.org/wiki/Robert_II_de_Normandie.
[481] Order. Vital., l. IV, ap. Scr. fr. XII, 596: Facie obesâ, corpore pingui, brevique staturâ (NT: Face obesa, corpo gordo, baixa estatura ). L. V, p. 603. L. VIII, p.
624: Torpori et ignaviæ subjectus (NT: Preguiçoso e covarde sujeito). Vide também Guibert de Nogent, l. II, c. 16, Raul de Caen, c. 15 (ap. Muratori, V, 291), Guillaume
de Malmesbury, l. I, (ap. Scr. fr. XIII, 8-9), Guillaume de Newbridge (ibid. 93), etc.
[482] Willelm. Tyr., l. VIII, c. 6, 9, 10 – Guibert. Novig., l. VII, c. 8: No cerco de Jerusalém, “ele mandou anunciar para todo o exército, pela voz dos arautos, que quem
trouxesse três pedras para entulhar o fosso receberia, de sua mão, um denário. Ora, seriam necessários, para terminar essa obra, três dias e três noites”. Radulph. Cadom.,
c. 15, ap. Muratori, V, 291: “Ele foi, desde o início, um dos principais chefes e, mais tarde, quando o dinheiro dos outros se fora, o seu chegou e deu-lhe a precedência. É
que, em efeito, toda esta nação é ecônoma e, de forma alguma, pródiga, cuidando mais de seus haveres que de sua reputação; amedrontado do exemplo dos outros, ele
trabalhava, não como os Francos para se arruinar, mas para enriquecê-los de seu melhor”. – Raimundo recebeu também ricos presentes de Alexios (... quibus de die in
diem de domo regis augebatur, Albert. Aq., l. II, c. 24, ap. Bongars, p. 205). Godofredo os recebeu igualmente, mas os distribuiu ao povo e aos outros chefes. Willelm.
Tyr., l. II, c. 12.
[483] Guibert. Nov., l. II, c. 18: “O exército de Raimundo nada cedia a qualquer outro, com exceção da eterna loquacidade desses Provençais”. – Radulph. Cadom., c.
61: “Tanto a galinha difere do pato, tanto os Provençais diferiam dos Francos pelos costumes, pelo caráter, as roupas, a comida; pessoas ecônomas, inquietas e ávidas,
severos no trabalho mas, para não dizer muito, pouco belicosos. Sua previdência ajudou-lhes muito mais durante a fome que toda a coragem do mundo em relação aos
povos mais guerreiros; para eles, na falta do pão, contentavam-se com raízes, não tendo que raspar a casca dos legumes; eles levavam à mão um longo ferro com o qual
procuravam seu sustento nas entranhas da terra: vem daí esse ditado que as crianças ainda cantam: “Os Francos à batalha, os Provençais às vitualhas (mantimentos)”.
Havia uma coisa que eles, com frequência, perpetravam por avidez e para sua grande vergonha: eles vendiam às outras nações cachorro por lebre, asno por cabra; e, se
pudessem se aproximar, sem testemunhas, de algum cavalo ou de alguma mula bem gorda, provocavam-lhe, nas entranhas, uma ferida mortal e o animal morria: grande
surpresa para todos aqueles que, ignorando esse artifício, tinham, antes, visto o animal gordo, robusto e fogoso; nulo traço de ferimento, nenhum sinal da morte! os
espectadores, amedrontados com esse prodígio, diziam-se ‘vamo-nos daqui, o espírito do demônio soprou nesse animal’. Então vinham os autores da morte, aproximavam-
se fazendo cara de nada saber e, como se lhes prevenissem não tocá-lo, diziam ‘preferimos morrer dessa carne a morrer de fome’. Assim, aquele que suportava a perda
apiedava-se do assassino, enquanto o assassino zombava dele. Então, caindo todos como corvos sobre esse cadáver, cada um tirava seu pedaço e o enviava para dentro de
seu ventre ou para o mercado”.
[484] Guibert. Nov., l. II, c. 18: Naturali cuidam suo filio comitatu quem regebat relicto. {NT: Seu filho natural, a quem o conde deixou para reger (administrar,
gerir)}.
[485] (NT): Bohémond de Hauteville ou Boemundo de Altavila (c. 1054-1111): também conhecido por Boemundo de Tarento ou Boemundo I de Antioquia o Grande,
príncipe de Tarento e de Antioquia.
[486] Guibert, l. III, c. 1: “Quando esse inumerável exército, composto de povos vindos de quase todas as regiões do Ocidente, desembarcou na Apúlia (Puglia),
Boemundo, filho de Roberto Guiscardo, não tardou a ser informado. Ele, então, sitiava Amalfi. Ele perguntou o motivo dessa peregrinação e soube que eles pretendiam
libertar Jerusalém ou, melhor, o sepulcro do Senhor e os lugares santos, do domínio dos gentios. Não se lhe escondeu quantos homens, e de alta estirpe e de alta cepa,
abandonando, por assim dizer, o brilho de suas honras, lançavam-se a essa empresa com um ardor inaudito. Ele perguntou se transportavam armas, provisões, quais
insígnias haviam adotado para essa nova peregrinação, enfim, quais eram seus brados de guerra. Foi-lhe respondido que portavam suas armas à francesa; que mandavam
coser em suas roupas, sobre o ombro, ou em qualquer outro lugar, uma cruz de linho ou de qualquer outro tecido, tal como lhes fora prescrito; que, enfim, renunciando ao
orgulho dos gritos guerreiros, eles bradavam todos, humildes e fiéis: “Deus o deseja!”
[487] Annæ Comnenæ Alexias, édit. Paris, p. 404; Veneza, p. 319.
[488] (NT): Côvado é uma medida de comprimento, cuja maior notoriedade está na história de Noé, quando Deus ordenou-lhe construir a Arca, segundo tais e quais
medidas. O côvado, assim como “pés” e “palmos”, é antropométrica, levando em consideração o corpo humano. Supõe-se que tenha sido utilizada no Egito, por volta de
em 3.000 a.C., para representar a distância do antebraçao (do cotovelo à ponta do dedo médio). É, portanto, variável, ficando, na maior parte dos casos entre 45
centímetros (côvado Romano) e 50 centímetros (côvado Egípicio). O côvado Grego médio ometrios pēchys ("côvado médio") tinha cerca de 47,42 cm e é possivelmente,
aquele que Anna Comnena tinha em consideração. – a partir de http://pt.wikipedia.org/wiki/Côvado
[489] Δοκεί μοι καὶ ὁ γέλως ὰυτοὺ ἄλλοις ἐμϐριμηρα ῆν, ibid.
[490] Nascido em Baisy, próximo a Nivelle, num castelo que ainda se exibia no fim do século passado.
(NT): O local de nascimento de Godofredo é discutível. Aparentemente, seria muito improvável que tivesse nascido em Baisy, na atual Bélgica, que teria criado esse mito a
partir de 1830 quando, efetivamente, tornou-se um estado soberano, em virtude da necessidade de exibir suas “glórias passadas”. Uma provável hipótese do local de
nascimento de Godofredo é Boulogne-sur-Mer. No mais, ele nasceu por volta de 1058 e morreu em 1100, em Jerusalém. Cavaleiro franco, descendente direto de Carlos
Magno, herdeiro do Duque da Baixa-Lotaríngia e do Conde de Boulogne, foi o primeiro soberano do Reino de Jerusalém, tendo recusado o título de rei para tomar o de
Defensor do Santo Sepulcro pois argumentava, humildemente, que não poderia portar uma coroa de ouro onde Jesus Cristo utilizara uma de espinhos [essa conduta
humilde e respeitosa em relação à Cidade Santa repetiu-se, 818 anos depois, quando o Marechal de Campo britânico Edmund Allenby, 1º Visconde de Allenby, ao derrotar
os exércitos turco e alemão combinados, apeou de seu cavalo para entrar a pé em Jerusalém (09 de dezembro de 1917), sendo-lhe atribuída a afirmação de que “nenhum
homem deveria entrar em Jerusalém em triunfo, montando um cavalo, até que Jesus retornasse”. Uma outra frase, muito mais controversa, tanto pelo conteúdo,
quanto pela veracidade, também é-lhe atribuída, qual seja: “Hoje, as Cruzadas acabaram”]. Vide os sítios internet a seguir: http://fr.wikipedia.org/wiki/Godefroy_de_Bouillon;
http://fr.wikipedia.org/wiki/Avoué_du_Saint-Sépulcre; http://en.wikipedia.org/wiki/Edmund_Allenby,_1st_Viscount_Allenby;
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jerusalém;
http://www.blessedquietness.com/journal/warroom_poetry_allenby.htm
[491] Vide Thierry, Histoire de la Conquête de l’Angleterre, t. I.
[492] Willelm. Tyr., l. IX, c. 8: Cumque congressionis dies immineret et ordinatis legionibus uterque exercitus in procinctu se haberet praeliandi, convocatis ad se
principibus imperator, quaerit cui tute possit imperiale committere vexillum, et tantorum exercituum constituere primicerium? Cui de communi consilio datum est responsum:
Dominum ducem Lotharingiae Godefridum prae omnibus ad id oneris idoneum et sufficientem esse. Cui, tanquam viro a tot millibus electo, et singulariter omnium judicio
excellenti, tradidit aquilam, multum invito et renitenti.
(NT): O Imperador chamou todos os príncipes à sua volta e perguntou-lhes “a qual, dentre vós, poderei confiar com toda a segurança o estandarte imperial e
quem deve ser nomeado chefe para conduzir tão grandes exércitos?” Todos (os príncipes), de comum acordo, responderam-lhe: “Godofredo, Duque da
Lorena, a todos nos parece ser idôneo e capaz desse ônus”. O Imperador, então, confiou-lhe sua águia como o homem que fora eleito por mil outros e que o
juízo geral considerara como excelente”. – (adaptado a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumedetyr/croisade10.htm).
[493] Willelm. Tyr., ibid: ... contendens, illuc aciem, cui praeerat imperator direxit; ad quam perveniens, confracta et dissoluta acie regis, praesente imperatore et de
principibus aliquot, vexillum quod gestabat, regi per vitalia pectoris immersit; et eo transverberato, ad terram dejecit exanimem: denuo signum, licet cruentatum, erigens
imperiale.
(NT): ... (Godofredo) penetrou e dispersou esse corpo de homens (de Rodolfo) na presença do Imperador e de alguns príncipes, chegou até Rodolfo, enterrou-
lhe a bandeira perto do coração e o lançou à terra, quase morto ; então, ele logo ergueu no ar o estandarte imperial todo coberto do sangue de seu inimigo. –
(adaptado a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumedetyr/croisade10.htm).
[494] A fadiga causou-lhe uma febre violenta; ele fez voto de tomar a cruz e foi curado – Alberic., p. 180: Godefridus... in oppugnando Romam partem muri, quæ sibi
obtigerat, primus irrupit; postea, præ nimio labore, in nimia siti nimium vinum hauriens, febrem quartanam nactus est. Auditâ, autem famâ viæ Hierosolymitanæ, illuc se
iturum vovit, si Deus illi redderet sanitatem. Quo voto emisso, vires ejus penitus refloruerunt.
[495] Guibert. Nov., l. II, c. 12: Dicebat namque se desiderare proficisci Hierosolymam, et hoc non simpliciter, ut alii, sed cum violentia exercitus, si sibi copia suppeteret,
magni. Cui secundum divinum, a quo intuebatur, instinctum, mirabilis super hoc postmodum opportunitas arrisit (NT: Ele dizia, com frequência, que desejava ir a
Jerusalém, não simplesmente como os peregrinos ordinariamente iam, mas de viva força e à testa de um numeroso exército, se tivesse os meios. A fortuna
favoreceu maravilhosamente o cumprimento dessa divina inspiração).
[496] Alberic., ap. Leibnitiz. access. I, 180: Hic etiam inter Francos Romanos et Teutonicos, qui quibusdam amaris et invidiosis jocis fréquenter rixari soient, tamquam in
termino utriusque gentis nutritus, utriusque linguae sciens, médium se interposuit, ac ad commanendum multis modis informavit (NT: Aqui, também, entre os Franceses,
Romanos e Teutônicos, que fazem-se amargas e invejosas piadas que normalmente terminam em rixas, ele, ao final de cada briga, sabendo a língua de todos,
interpunha-se e, no comando, era de muitos modos informado).
[497] Willelm. Tyr., l. IX, c. 5: Robustus sine exemplo, c. 22. Alberic., p. 184, Rad. Cadom, c. 58.
[498] Robert. Monach., l. IV, IX, ap. Bongers, p. 50, 75. – Uma outra vez, num golpe de espada, ele cortou um Turco em dois, pelo meio do corpo: Turcus duo factus est
Turci: ut inferior alter in urbem equitaret, alter arcitenens in flumine nataret (NT: O turco foi feito em dois turcos: o de baixo cavalgou para a cidade, o outro, com
seu arco, nadou no rio).
[499] Rad. Cadom,. c. 14, p. 291: Humilitate, mansuetudine, sobrietate, justitia, castitate insignis; potius monachorum lux quam militum dux emicabat (NT: Humildade,
mansidão, sobriedade, justiça, insigne castidade; ele brilhou mais como a luz dos monges do que como a do líder dos soldados) – Ele trouxera uma colônia de
monges que se estabeleceu em Jerusalém.
[500] (NT): Dirráquio é Durrës, cidade da atual Albânia situada na costa do Mar Adriático, de frente para a Itália. Historicamente, é conhecida por seu nome italiano
Durazzo, derivado do latino Dyrrachium, que só foi substituído no início do século XX, quando a Albânia se tornou independente do Império Turco Otomano. Durante a
agonia final do regime ditatorial comunista imposto à população albanesa (1944 a 1992), a cidade tornou-se o tristemente célebre porto de partida dos barcos carregados de
pessoas (boat-people) que, à semelhança dos cubanos (estes no mar do Caribe), lançavam-se às águas para fugir do paraíso terreno fundado pelo comunismo; os
cubanos, padecendo sob a ditadura comunista dos irmãos Castro neste século XXI, ainda o fazem e, corajosamente, enfrentam águas piores, com tubarões, furacões, maior
distância até alcançarem outra terra (preferencialmente os Estados-Unidos da América); o regime ditatorial comunista de Cuba, comandado por uma Gerontocracia
sanguinária, é incessante, contraditória e insanamente apoiado pelas democracias latino-americanas.
[501] Guibert, l. II, c. 9: “...et detectis ecclesiis, quae plumbo operiebantur, plumbum idem Graecis venale praebebant. (NT: “... e, encontrando as igrejas, levavam os
tetos de chumbo para serem revendidos aos Gregos” – adaptado a partir de remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade2.htm).
[502] Ann. Comnena Alexias.
[503] Alberic. Tr. Font., p. 159: Toxica vel fluminibus vel cibis vel vestibus infundens. (NT: Derramaram veneno nos rios, nos alimentos, nas roupas).
[504] Guibert. Nov., l. III, c. 4: At principes, dux utique Godefridus, Hugo Magnus, Robertusque Flandrensis, et caeteri dixerunt quia nunquam contra aliquem qui
Christiano censeatur agnomine, arma portabant (NT: Mas os príncipes, o duque Godofredo, Hugo o Grande, Roberto de Flandres e outros disseram que jamais
carregariam armas contra um homem que era considerado pertencer à cristandade - http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade3.htm). – Gest.
Franc. Hierosol., l. II, ap. Bongars, p. 5. Raymond d’Agiles, p. 111. Albert. Aq., l. II, c. 14.
[505] Ele foi conduzido por uma galeria do palácio, onde uma porta estava aberta por acaso, permitindo-lhe ver um quarto cheio, de alto a baixo, de ouro, prata, jóias e
móveis preciosos. “Quais conquistas”, ele se maravilhou, “não se faria com um tal tesouro!”. “Ele é vosso”, foi-lhe logo dito. Não foi preciso rogar-lhe muito para
convencê-lo a aceitar tais riquezas. Ann. Comnena, p. 303.
[506] Eles falavam dos Gregos com um supremo desprezo.... “Græculos istos, omnium inertissimos” (NT: “... Gregúsculos, os mais inertes de todos os homens) etc.;
Guibert. Nov., l. III, c. 3.
[507] Ann. Comn. Alexias, ed. Paris, p. 301: Ο δὲ ψράγγος υέν είμι καθαρὸς, ἒφη τῶν εὺγενων, ἓν δἐ ἐπίςαι... Ταῦτα ό βασιλεὐς ὰκηκοὼς, ἒφη εὶ ϖόλεμον τοτε ζητῶν
ὀυχ ἒυρες, ϖάρεςί σοι καιρὸς ὁ ϖολλῶν ας ϖολέμων ἐμπλήσων, etc.
[508] “Ao mesmo tempo, ele (o imperador) enviou ótimos presentes aos chefes, solicitando-lhes boa-vontade através de suas cartas e pela voz de seus deputados; ele
fez-lhes mil ações de graças por esse leal serviço e pelo acréscimo que vinham de dar ao Império”, Willelmus Tyrensis, l. III, c. 12 – “Ele fez”, diz Guiberto, l. III, c. 9,
“doações infinitas aos príncipes e, aos mais pobres, abundantes esmolas; ele assim lançava os germens do ódio entre aqueles de média condição, dos quais sua
munificiência parecia se desviar”. Vide também Raymond d’Agiles, p. 142.
[509] Albertus Aquens., l. III, c. 2.
[510] Raym. de Agil., p. 161: Surgentes delibes et infirmi de cubilibus suis, innixi baculis ad muros usquè perveniebant; et illos lapides quos vix tria vel quatuor paria boum
trahere possent, facilè quidam famelicus revolutus à muro longè projiciebat. (NT: Então, os fracos e enfermos, levantando-se de suas pequenas camas e apoiando-se
sobre bastões, apresentaram-se diante das muralhas ; e lá, essas pedras, que três ou quatro parelhas de bois não teriam arrastado senão com muito esforço,
um homem esgotado pela fome as empurrava sem esforço até o pé dos reparos e as fazia rolar para longe – a partir de
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/raimond/jerusalem.htm).
[511] Guibert. Novig., l. VI, c. 46: “... trecentas et sexaginta ecclesias suis cingens ambitibus... circumpositis eidem quadringentis quinquaginta turribus... centum
quinquaginta tres episcoporum (NT: contém, em seu cinturão, trezentas e sessenta igrejas... guarnecida por quatrocentas e cinquenta torres... cento e cinquenta e
três bispados – http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade6.htm). – Alberico não contou senão trezentas e quarenta igrejas.
[512] Gesta Francorum, c. 20: Summo diluculo audientes illi, qui foris erant in tentoriis, vehementissimum rumoreni strepere per civitatem, exierunt festinantes, et viderunt
vexillum Boamundi [NT: No final da madrugada, os que estavam fora (da cidade) em tendas, ouviram um forte rumor começar a rugir pela cidade; eles saíram e
viram a bandeira de Boemundo]. Fulcher. Carnot. p. 392: ...Vexillum Buamundi rubicundum (NT: A bandeira vermelha de Boemundo).
[513] Guibert., l. V, c. 21: Memorabilis autem Boemundus, cum ad castrum expugnandum vix aliquos suadere valeret, nam qui domi delitescebant, panis aliqui penuria
arctabantur, alii gentilium rabie ac numero terrebantur, gravi animadversione citatus, ex ea civitatis jubet ignem parte supponi qua situm fuerat nuper defuncti palatium
Cassiani (NT: Já o ilustre Boemundo não conseguia, mesmo, reunir alguns homens para conduzi-los contra o ataque à citadela ; uns encondiam-se em suas
casas, onde sequer tinham pão ; outros estavam apavorados pelo furor dos gentios e pela superioridade de suas forças. Tomado de uma viva cólera,
Boemundo deu ordem de atear fogo nessa parte da cidade onde estava o palácio do recentemente falecido Cassiano – a partir de
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade5.htm).
[514] Raymond de Agiles, p. 155. Vidi ego quæ loquor, et Dominicam lanceam ibi (in pugnâ) ferebam (NT: Eu vi essas coisas das quais falo, e lá (na batalha), eu
tinha a lança do Senhor). – Foucher de Chartres exclama: “Audile fraudem et non fraudem!” (NT: Foi ouvida uma fraude e uma não fraude!) e, em sequência,
“Invenit lanceam, fallacites occultatam forsitan” (NT: Ele encontrou uma lança, talvez enganosamente escondida).
[515] Raymond de Agiles, p. 169: “Ele se queimou porque ele próprio duvidara, por um instante; assim ele o disse ao povo, ao sair das chamas, e o povo glorificou o
nome de Deus”. Segundo Guibert de Nogent, ele saiu da fogueira são e salvo, mas as multidão se lançou sobre o mesmo para rasgar suas vestes e guardar os pedaços
como relíquias, e o pobre homem, chacoalhado e amassado, morreu de cansaço e esgotamento; l. VI, c. 22.
[516] Raymond de Agil., p. 55: Multiplicavit insuper adeò Dominus exercitum nostrum, ut qui antè pugnam pauciores cramus quàm hostes, in bello plures eis fuimus (NT:
O Senhor multiplicou de tal forma nosso exército que nós, que antes do batalha éramos menos numerosos que os inimigos, encontramo-nos, durante o combate,
mais numerosos. – http://remacle.org/bloodwolf/historiens/raimond/jerusalem.htm).
[517] “Tancredo”, diz seu historiador Raul de Caen, “teve, de início, uma grande vontade de cair sobre os Provençais; mas ele se lembrou que era proibido verter o
sangue cristão; ele preferiu recorrer aos expedientes de Guiscardo: ele fez seus homens entrarem durante a noite e, tirando as espadas, expulsaram os soldados de
Raimundo, batendo-lhes fortemente de lado”. – “A origem desse ódio”, ele acrescenta, “fora uma briga por forragem, no cerco de Antióquia. Os forrageiros das duas
nações encontravam-se juntos, no mesmo lugar, e bateram-se para saber a quem seria o trigo. – Desde então, cada vez que se encontravam, eles largavam seus fardos e
se entregavam a uma luta de golpes de punho; o mais forte levava a presa”. C. 98, 99, p. 316. – Em seguida, Raimundo e os seus sustentaram a autenticidade da Santa
Lança; “para que as outras nações, em sua simploriedade, levassem-lhe oferendas, o que enchia a bolsa de Raimundo. Mas o ardiloso Boemundo (non imprudens,
multividus, Rad. Cad., p. 317; Robert. Mon., ap. Bongars, p. 40) descobriu toda a mentira. Isso envenenou ainda mais a briga”. C. 101, 102.
[518] Willem. Tyr., l. VII, c. 19: “...Unde factum est, ut hostes, quos prius quasi fortiores horruerant, nunc per nostrorum operam dejectos, et confractis viribus, in imo
videntes constitutos, nostrorum auxilium, quod prius instanter nimis expetierant, contemnebant”. [NT: Na sequência desse sucesso (refere-se à vitória do reino fatímida do
Egito sobre os Turcos, quando o primeiro tomou Jerusalém dos segundos), e vendo caídos, no mais profundo rebaixamento, esses inimigos que eles muito temiam
como os mais fortes, os quais as armas dos cristãos tinham dispersado e destruído, os Egípcios passaram a desprezar o auxílio que tinham antes procurado
com a maior presteza].
[519] Willelm. Tyr., l. VIII, c. 15.
[520] Guibert, l. VII, c. 16: Memores igitur idem præsules Jhericontini quondam casûs, et quod Israelitæ tubis aliquando clangentibus circumitu septeno, et sacræ archæ
circumlatione, diruerant perfidæ mœnia civitatis: cum multa spirituum et corporum contritione processiones agendo, Sanctorum nomina flebiliter inclamando, nudipedalia
exercendo, Jherusalem circumeunt; cum seniores, tum populi, superna implorando subsidia, eidem necessitati concurrunt (NT: Lembrando-se da sorte da antiga Jericó,
recordando-se que, outrora, os Israelitas tinham feito, sete vezes, a volta do lugar, ao som das trombetas retumbantes e levando, à sua frente, a santa arca,
antes de derrubarem as muralhas da cidade pérfida, os cristãos avançaram em procissão, corpos e espíritos tomados de contrição, invocando, com lágrimas,
todos os santos, e percorreram o cinturão externo de Jerusalém caminhando com pés nus ; os senhores e o povo tomaram parte nesta cerimônia, implorando,
todos juntos, o socorro do céu . – adaptado a partir do texto bilíngue de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade7.htm). Alberic., ap. Leibnitzii
accession. histor., I, 175
[521] Os cristãos indígenas tinham sofrido, durante o cerco, os mais cruéis tratamentos da parte dos infiéis. Vide Guilherme de Tiro, l. VIII, c. 8.
[522] Após a tomada de Jerusalém, o poeta muçulmano Abiverdi (NT: Awhad ad-Dîn Ali Anvari Abiverdi) compôs esses versos, cujo sentido apresentamos
(Bibliothèque des Croisades, extraits des auteurs arabes, por M. Reinaud):
“Misturamos o sangue com a abundância de nossas lágrimas. Não nos resta abrigo contra as desgraças que nos ameaçam – Tristes armas, para um homem, derramar
suas lágrimas, enquanto a guerra abraça tudo com suas espadas faiscantes! – Ó filhos do Islã, restam-vos muitos combates a sustentar, nos quais vossas cabeças rolarão a
vossos pés! – Como dormir e fechar as pálpebras, quando se é presa de comoções que acordariam o homem mais profundamente adormecido? Vossos irmãos, na Síria,
não possuem, para repousar, senão o dorso de seus camelos ou as entranhas dos abutres. – Os Romanos os cobrem de opróbios; e vós, vós deixais vossas túnicas se
arrastarem na preguiça, como alguém que nada tem a temer! – Quanto sangue foi derramado! Quantas mulheres a quem não foram deixadas senão as mãos para
cobrirem sua beleza! – Entre golpes de lança e de espada, o choque é tão medonho que a cabeça das crianças embranqueceria de pavor. – Tal é esta guerra que, mesmo
aqueles que se distanciam de seu furor, na esperança de se preservarem, logo rangem os dentes de arrependimento. – Parece-me que vejo aquele que repousa em Medina
(Maomé) levantar-se para bradar de todas as suas forças: Ó filhos de HaShem! – O quê? meu povo não voa contra o inimigo, lança à mão, quando a religião desmorona
em seus fundamentos! – Ele não ousa se aproximar do fogo, com medo da morte, e ele não vê que a desonra é um ferimento que permanece! – É então que os chefes dos
Árabes resignar-se-ão com tais males e que os guerreiros da Pérsia submeter-se-ão a um tal aviltamento? – Que agradasse a Alá, eis que já não mais se batem pelo zelo à
religião, que resistissem, ao menos, pela proteção de seus próximos! – Se renunciam às recompensas celestes quando o perigo os chama, não serão ao menos atraídos pela
esperança do butim?”
[523] Willelm. Tyr., l. IX, c. 2: “... sed de singulis imaginibus et picturis rationem exigebat a sacerdotibus et iis qui horum videbantur aliquam habere peritiam; ita quod
sociis suis affectis aliter, in taedium verteretur, et nauseam: et prandia quae certo et opportuno tempore parata erant, diutina et importuna nimis exspectatione, minus
tempestive, magisque insipida sumerentur” (NT: ... que ele ia se dirigindo aos padres e a todos aqueles, dentre os quais lhe parecessem ter conhecimento desse
tipo de coisa, para pedir-lhes explicações a respeito de cada imagem e cada pintura ; que seus amigos, que não tinham tanto interesse assim, ficavam
extremamente cansados e entediados, pois ele os fazia esperar, de uma forma maçante, pelo repasto que havia sido preparado para uma hora fixa, e que as
iguarias, comidas assim fora de hora, perdiam todo o seu sabor). Alberic., p. 179.
[524] Guibert, l. VII. Alberic., p. 183.
[525] Willelm. Tyr., l. IX, c. 16.
[526] Id. Ibid., c. 19: Eodem tempore, cum jam fere omnes principes qui in expeditione venerant, essent ad propria reversi, ita quod dux solus, cui regnum erat
commissum, et dominus Tancredus, qui in partem sollicitudinis a domino duce tanquam vir prudens, strenuus et felix, erat detentus; tam modicae erant nostrorum facultates
et militantium copiae, ut omnibus convocatis et certatim concurrentibus, vix invenirentur equites trecenti et peditum duo millia (NT: Já a maior parte dos príncipes que
tinha conduzido as tropas de peregrinos havia retornado às suas pátrias ; o duque da Lorena, a quem o reino de Jerusalém tinha sido confiado, aí
permaneceu só com o senhor Tancredo, que ele mantivera como um homem sábio, feliz e valente, e dividia com ele toda a solicitude dos negócios. Nesta época,
esses príncipes não possuíam senão fracos recursos, a tal ponto que, ao convocarem e reunirem todos aqueles que se encontravam em estado de portar armas,
eles encontraram, se tanto, trezentos cavaleiros e dois mil homens a pé – a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumedetyr/croisade10.htm). – Em
Antióquia, Tancredo jurara que não abandonaria o lugar desde que lhe restassem quarenta cavaleiros. Guibert, l. V, c. 18.
[527] Vide meu III volume.
[528] Guibert., l. II, c. I.: “No ano passado, conversava com um arquidiácono de Mainz a respeito da rebelião dos seus, e eu o escutei vilipendiar nosso rei e o povo,
unicamente porque o rei havia bem acolhido e bem tratado, em qualquer lugar, o senhor Papa Pascoal, assim como seus príncipes: ele zombava dos Franceses, nesta
ocasião, até o ponto de, derrisoriamente, chamá-los Francons (NT: Franquinhos). Eu, então, disse-lhe: ‘Se tendes realmente os Franceses por fracos ou covardes, que
acrediteis poder insultar, com vossas piadas, um nome cuja celebridade estendeu-se até o Mar Índico, dizei-me, então, a quem o Papa Urbano dirigiu-se para pedir auxílio
contra os Turcos? Não foi aos Franceses?”. – Id. , l. IV, c. 3: “Nossos príncipes, tendo se reunido em conselho, resolveram, então, construir um forte no cume de uma
montanha, que eles chamavam Malreguard, para fazerem um novo ponto de defesa contra as agressões dos Turcos”. A língua francesa dominava, então, no exército dos
cruzados. Vide, também, as consequências da Quarta Cruzada.
[529] Ο Βασιλευς των Βασιλευς, και αρχηγος του ψραγγικου στρατου. Mathieu Paris (ad. ann. 1254), e Froissard (t. IV, p. 207) dão ao rei da França o título de Rex
regum e de chefe de todos os reis cristãos – Os próprios Turcos queriam descender dos Francos: “Dicunt se esse de Francorum generatione, et quia nullus homo
naturaliter debet esse miles nisi Turci et Franci” (NT: “Dizem que descendem dos Francos, pois nenhum homem era naturalmente um soldado, salvo se fosse Turco
ou Francês”), Gesta Francorum, ap. Bongars, p. 7.
[530] “Eu pensava que tinha tirado uma licença da antiga e agradável companhia de minha vida”, Mém. de Gibbon.
[531] Guibert. Nov., l. VII, c. 22: “Um príncipe de uma tribo vizinha dos gentios enviou-lhe presentes infectados com um veneno mortal. Godofredo se serviu deles sem
desconfiança, repentinamente ficou doente, foi acamado e morreu logo depois. Segundo outros, ele morreu de morte natural...”.
[532] Raym. de Agiles, ap. Bongars, p. 149: Jocundum spectaculum tandem post multa tempora nobis factum... Accidit ibi quodam satis nobis jocundum atque delectabile
(NT: Foi, durante um bom tempo, um espetáculo divertido para nós... Foi, para nós, um divertido e aprazível... – adaptado a partir de
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/raimond/jerusalem.htm). – Guiberto de Nogent também fala assim, com leviandade, do massacre de Antióquia (l. V). Ele conta que
o conde de Toulouse mandou, um dia, arrancar os olhos, cortar os pés, as mãos e o nariz dos seus prisioneiros; e ele acrescenta: “Quantâ ibi fortidudine et consilio comes
claruerit, non facilè referendum est” (NT: Não é fácil fazer justiça à bravura e à sabedoria aqui claramente mostradas pelo conde).
[533] Guiberto reconhece que os Sarracenos podem atingir um certo grau de virtude. “Hospitabatur (Rotbbertus Senior), apud aliquem... vitæ, quantum ad eos, sanctioris
Sarracenum”, L. III, c. 24. {NT: (o Roberto mais velho) foi hospitaleiramente entretido por um Sarraceno ... de vida piedosa que é, para eles...}.
[534] Guibert, l. VII, c. 36: “Ele vivia, em seu ducado, com o maior brilho, de tal forma que, todas as vezes que se punha a caminho, mandava exibir, à sua frente, um
escudo de ouro, que tinha a forma de um escudo grego, sobre o qual estava representada uma águia. Adotando os hábitos dos gentios, ele caminhava vestindo uma túnica
longa; ele deixara sua barba crescer, se deixava dobrar por aqueles que prestassem homenagem de adoração, comia no chão sobre tapetes abertos e, se entrasse numa
cidade que lhe pertencesse, dois cavaleiros, adiante de seu carro, faziam soar duas trombetas”.
[535] Guibert, l. VII, c. 13: Negat se cujuspiam hominum, etiam deterrimae omnium conditionis, causam mortis ullatenus, pro tantilla, cum etiam sit dubia, salute futurum
(NT: Ele negou, pois não desejaria jamais causar a morte de um homem, ainda que da mais detestável raça, para procurar, através de métodos duvidosos,
salvar outra vida – a partir do sítio Internet http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade7.htm) – Albert d’Aix diz, falando das primeiras
cruzadas: “Deus os puniu por terem exercido medonhas violências contra os Judeus; pois Deus é justo e não deseja que se empregue a força para constranger ninguém a
vir até Ele”.
[536] Ele deu a ela, para cobri-la, seu próprio manto: “... data etiam ei, secundum quod optavit, ancilla, et duabus camelis, de quarum lacte nutriretur, designatis, mantello
suo, quo erat indutus, eam involvens, dimisit; et cum exercitu suo profectus est” (NT: ... deixou-lhe, também, segundo seu desejo, uma serva e dois camelos fêmeas
cujo leite pudesse servir à sua alimentação ; depois, ele próprio a cobriu com o manto que usava sobre os ombros e partiu com toda sua tropa – a partir de
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaumedetyr/croisade11.htm), Guillelmus Tyrensis, l. X, c. 11.
[537] Vimos, mais acima, que os barões renunciaram a seus brados de guerra para adotarem o brado da Cruzada “Deus o deseja!” – Fulcher. Carnot, p. 389: “Quem
jamais ouviu dizer que tantas nações, de línguas diferentes, tenham sido reunidas em um só exército, Francos, Flamengos, Frísios, Gauleses, Bretões, Alóbroges, Lorenos,
Alemães, Bávaros, Normandos, Escoceses, Ingleses, Aquitânios, Italianos, Pulianos, Iberos, Dácios, Gregos, Armênios? Se algum Bretão ou Teutão viesse falar-me, era-
me impossível responder-lhe. Mas, apesar de divididos em tantas línguas, parecíamos, todos, irmãos e parentes próximos, unidos num mesmo espírito, por amor ao Senhor.
Se um de nós perdesse alguma coisa de seus pertences, aquele que a encontrasse levava consigo bem cuidadosamente e durante vários dias, até que, à força de procura,
ele tivesse descoberto aquele que a perdera e a devolvesse de boa vontade, como convém a homens que empreendem uma santa peregrinação”.
[538] Guib. Nov, l. IV, c. 15: “Unde fiebat ut ibi nec mentio scorti, nec nomen prostibuli toleraretur haberi, praesertim cum pro hoc ipso scelere, gladiis, gentilium Deo
judice, vererentur addici. Quod si gravidam inveniri constitisset aliquam earum mulierum, quae probabantur carere maritis, atrocibus tradebatur cum suo lenone suppliciis.”
(NT: Assim, não se permitia sequer qualquer mulher de má vida ou qualquer tipo de prostituição, e todos os cristão tinham a temer cair sob o gládio, abatidos
pelo julgamento de Deus, caso se arriscassem a cometer um crime tão grave. Se se constatasse que uma mulher que não tivesse marido estivesse grávida, ela
era logo entregue a suplícios terríveis, assim como seu sedutor – a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade4.htm) – Os costumes
sensuais dos Turcos contrastavam com essa castidade cristã. Após a grande batalha de Antióquia, encontrou-se, nos campos e bosques, vários recém-nascidos aos quais
as mulheres turcas haviam dado à luz durante o curso da expedição. Guiberto, l. V.
[539] Raimundo de Agiles, p. 163, et alias: “Pauperes nostri...”.
[540] Will. Gemetic., l. V, ap. Scr. fr. X, 185: Rustici unanimes per diversos totius normannicæ patriæ plurima agentes conventicula, juxtà suos libitus vivere decernebant;
quatenùs tàm in silvarum compendiis quàm in aquarum commerciis, nullo obsistente antè staturi juris obice, legibus uterentur suis... Truncatis manibus ac pedibus, inutiles
suis remisit... His rustici expertis, estimatò concionibus omissis, ad sua aratra sunt reversi (NT: Os rústicos, tendo realizado vários encontros em toda a Normandia,
unanimemente decidiram que viveriam confome se lhes agradasse e, em desobediência a todas as leis, tomaram os atalhos através das florestas, ou usaram os
rios e os vaus à vontade... Cortando-lhes as mãos e os pés, os inúteis foram mandados de volta... Esses camponeses foram cercados de todos os lados e
devolvidos aos seus arados).
[541] Order. Vit., l. II: Tunc ergò communitas in Fránciâ popularis statuta est à præsulibus, ut præsbyteri comitarentur regi ad obsidionem vel pugnam cum vexilis et
parrochianis omnibus.
[542] Order. Vit., l. XII.
[543] Rob. Wace, Romance de Rou, versos 5979/6038:
Li païsan e li vilain, O paisano e o aldeão,
cil del boscage e cil del plain, este do bosque, aquele do chão,
Ne sai par kel entichement, não sei por qual animação,
Ne ki les meu primierement; nem o que primeiro os moveu,
Par vinz, par trentaines, par cens aos vinte, às trintenas, aos cem,
Unt tenuz plusurs parlemenz. . . . mantiveram várias parlamentos...
Privéement ont porparlé Privadamente, conferenciaram,
E plusurs 1'ont entre els juré E vários dentre eles juraram,
Ke jamez, par lur volonte, que jamais, de sua vontade,
N'arunt seingnur ne avoé. não terão senhor, nem patrão.
Seingur ne lur font se mal nun ; O senhor não lhes fez senão mal;
Ne poent aveir od els raison, nada receberam por tal razão,
Ne lur gaainz, ne lur laburs ; nem por seus ganho, ou seu labor.
Chescun jur vunt a grant dolurs. Cada dia, vão a grandes dores.
Tute jur sunt lur bestes prises. Todo dia, seu gado é tomado
Pur aïes e pur servises .... para ajudas* e para serviços...
' Pur kei nus laissum damagiert? “Por que permitimos esses danos?
M etum nus fors de lor dangier ; Coloquemo-nos fora de seu perigo.
Nus sumes homes cum il sunt, Nós somos homens, como eles são,
Tex membres avum cum il unt temos membros, como eles têm,
Et altresi grans cors avum, e, também, grandes corações temos,
Et altretant sofrir poum. que igualmente podem sofrer.
Ne nus faut fors cuer sulement, Não nos basta coração somente,
Alium nus par serement, aliemo-nos por juramento,
Nos aveir e nus defendum, nossos haveres, nós defenderemos,
E tuit ensemble nus tenum. e mantenhamo-nos todos juntos.
Es nus voilent guerreier, E querendo nos combater,
Bien avum, contre un chevalier, Bem podemos contra um cavaleiro ter
Trente a quarante païsanz trinta a quarenta paisanos
M aniables e cumbatans.' manejáveis e combatentes”.

* NT1: “ajudas”: uma das


denominações para um tipo de tributo
ocasional, provisório e casuístico,
durante a Idade Média)

NT2: adaptado a partir da tradução em


inglês de G.H. Smith, FGS.

[544] Vide Thierry, Lettres sur l’Histoire de France – Se eu tivesse entrado profundamente neste assunto, apenas poderia aqui reproduzir suas admiráveis narrativas
que são, agora, familiares a todos. Todavia, sobre a questão das comunas, da burguesia e da origem do terceiro estado, os princípios não foram postos senão no quinto
volume do Cours de M. Guizot. Eu retorno a esse assunto mais à frente.
[545] Maximiliano, en 1492.
[546] Vide Thierry, Lettres sur l’Histoire de France, p. 362: Miranda quer dizer a maravilha.
[547] Guibert. Nov., ap. Scr. fr. XII, 268.
[548] (NT): Jeanne Hachette: em português, poderia ser traduzido, “ao pé da letra”, por Joana Machadinho, cognome que lhe foi atribuído por Luís XI, uma vez que,
durante o cerco de Beauvais, ela se utilizou de um machado-de-guerra (hache) para atacar um soldado Borguinhão que acabara de saltar da escada. Seu nome verdadeiro
é Jeanne Laisné (a partir do século XVI, passou a ser conhecida por Jeanne Fourquet), nascida em 1456, falecida em data desconhecida, sendo uma figura emblemática da
resistência francesa contra Carlos o Temerário (1433-1477), quarto e último Duque da Borgonha, o qual tentou separar-se do reino da França para fundar o seu próprio -
http://fr.wikipedia.org/wiki/Jeanne_Hachette.
[549] (NT): Pierre-Jean de Béranger, 1780-1857, chansonier francês prolífico que obteve um enorme sucesso em sua época e mereceu reconhecimento, dentre outros,
de Chateaubriand e de Goethe - (http://fr.wikipedia.org/wiki/Pierre-Jean_de_Béranger).
[550] Id. ibid., 261.
[551] Luís VI opusera-se à constituição das cidades da coroa em comunas. Luís VII seguiu a mesma política; à sua passagem em Orléans, ele reprimiu as
manifestações que entendeu sediciosas: “Aqui, ele mitigou o orgulho e a fanfarronice de alguns basbaques da cidade que, em razão da comuna, faziam questão de se
rebelar e de se dirigir contra a coroa; mas muitos deles pagaram caro por isso, pois ele pôs muitos à uma dolorosa morte, como eles a mereciam”, G. Chron. de Saint-
Denis, ap. Scr. fr. XII, 196 – Hist. Ludov, VII, p. 124; vide também p. 126, etc. Ele aboliu a comuna de Vézelay. Chron. de Saint-Denys, p. 206.
[552] “Em nenhum lugar”, diz M. Guizot, “a burguesia, o Terceiro Estado, teve um tão completo desenvolvimento, um destino tão vasto, tão fecundo, como na França.
Havia comunas em toda a Europa: na Itália, na Espanha, na Alemanha, na Inglaterra, assim como na França. E não somente havia comunas em toda parte, mas as
comunas da França não são aquelas que, como tantas outras sob esse nome e na Idade Média, encenaram o maior papel e tiveram o maior lugar na história. As comunas
italianas pariram repúblicas gloriosas; as comunas alemãs tornaram-se cidades livres, soberanas, que tiveram sua história particular, e exerceram muita influência na
história geral da Alemanha; as comunas da Inglaterra aliaram-se a uma porção da aristocracia feudal e com ela formaram uma das Câmaras, a Câmara preponderante do
Parlamento britânico e, desta forma, desde cedo, exerceram um papel poderoso na história de seu país. As comunas da França, na Idade Média, e enquanto existiram sob
esse nome, jamais alçaram-se a essa importância política, a esse grau histórico. E, entretanto, foi na França que a população das comunas, a burguesia , desenvolveu-se
mais completa e eficazmente, findando por adquirir a preponderância mais decisiva na sociedade. Houve comunas em toda a Europa, mas não houve Terceiro Estado
senão na França. Esse Terceiro Estado, que emergiu em 1789, na Revolução Francesa, é um destino, um poder, que pertence somente à nossa história e que se
procuraria, alhures, em vão.
[553] O estandarte é o famoso Oriflamme. Ele se tornou o estandarte dos reis da França quando Filipe I adquiriu o Vexin, uma dependência da abadia de Saint-Denis.
(NT): O Oriflamme vem do latim Aurea flamma ou “chama de ouro”. O nome era atribuído ao estandarte de Carlos Magno nas canções de gesta e, depois, por confusão,
ao estandarte de Saint-Denis, que os reis da França sempre levavam quando partiam para a guerra. O Oriflamme era hasteado no campo de batalha para simbolizar às
tropas francesas que não se devia ceder terreno aos inimigos, donde sua denominação de oriflamme de la mort. Atualmente, em francês, toda bandeira terminada em
pontas é assim chamada; em português, este tipo de bandeira se chama “flâmula” – vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Oriflamme_de_Saint-Denis e, ainda em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Oriflamme.
[554] A soberania própria do rei da França estendia-se apenas sobre a Ilha da França e uma parte da região da Orleanense, o que corresponde aos cinco departamentos
do Sena, Seine-et-Oise, Seine-et-Marne, Oise e Loiret; ainda que pequena fosse essa região, que mal possuía trinta léguas, de leste a oeste, e quarenta e duas, de norte a
sul, ela estava longe de submeter-se totalmente à coroa; veremos, ao contrário, que a grande questão de Luís o Gordo (1081-1137), durante todo o seu reinado (1108-
1137), foi de reduzir à obediência os condes de Chaumont e de Clermont, os senhores de Montléry, de Monfort l’Amaury, de Coucy, de Montmorency, de Puiset, e uma
grande quantidade de outros barões que, no perímetro do ducado da França e do domínio próprio dos reis, recusavam-se a obedecer-lhe.
[555] Ele foi envenenado em sua juventude e permaneceu pálido toda sua vida. Order. Vit., l. XI, ap. Scr. fr. XII, 693.
[556] Vide a história de Roberto o Frísio.
[557] Vide Sismond, IV, 522.
(NT): a história de Bertrade de Montfort (c. 1070-1117) possui todos os ingredientes de um folhetim novelesco e merece ser brevemente narrada:
De família nobre (filha de Simão I, senhor de Montfort), Bertrade viu-se órfã de pai e de mãe aos 17 anos, tendo sido confiada à guarda de seu tio Guilherme, conde de
Évreux. De grande beleza, sua mão foi pedida por Foulques d’Anjou, também conhecido como Foulques o Rabugento, Foulques o Rude (Foulque IV, 1104-1109, conde de
Anjou), trinta anos mais velho, que a obtém, após verdadeiras negociações e barganhas, e após ter repudiado sua esposa sob o argumento de consanguinidade. Filipe I, rei
da França, cansado da tutela de Flandres e de sua primeira mulher, Berta da Frísia, decidiu interná-la num monastério do castelo de Montreuil, a fim de repudiá-la para
poder se casar novamente. Após consultar vários bispos e nobres (inclusive Foulques, marido de Bertrade) de sorte a decidir qual seria o melhor partido para um novo
casamento, conta-se que Bertrade teria feito chegar a Filipe I uma mensagem na qual dizia que seu casamento com Foulques era nulo porque a primeira esposa deste
ainda vivia e que aceitaria casar-se com ele. O rei Filipe, então, seduzido por sua beleza, despachou um destacamento de oficiais para trazê-la a Paris. O bispo Yves de
Chartres protestou vigorosamente, não só contra o casamento mas, também, contra o duplo adultério, e incentivou os bispos da França a não auxiliarem nessas bodas.
Filipe I mandou trancá-lo na prisão. O marido-conde Foulques e o sogro de Berta, Roberto o Frísio, pegaram em armas. Nessa situação, Berta vem a morrer em Montreuil
e Filipe I aproveitou para anunciar que Deus o havia assim liberado dos laços do matrimônio e que os bispos podiam fazer outro tanto por Bertrade, anulando seu
casamento com Foulques. O Papa recusou e exigiu, inicialmente, a submissão e a penitência do rei; o legado papal (Hugo de Lyon) reuniu um concílio em Lyon que
pronunciou a excomunhão de Filipe e de Bertrade. A excomunhão, posteriormente confirmada pelo Papa Urbano II, em 1095, no concílio de Clermont (o mesmo que
decidiu a Cruzada), foi solenemente ignorada pelo povo que não moveu um dedo contra Filipe. Acuado pelo Interdito Papal lançado sobre a França e que o tornava um
pária entre os monarcas cristãos, Filipe fingiu separar-se de Bertrade e tentou envenenar a relação entre os dois partidários do Papa (Yves de Chartres e Hugo de Lyon),
mas o Papa os reconciliou e novamente excomungou Filipe. As excomunhões foram mantidas pelo novo Papa (Pascoal II). A situação chegou a um ponto insustentável
opondo povo e parte do clero, que tratava o casal como pestilento, mas nada evoluía até que, em 1104, o rei e a rainha aceitaram submeter-se a um novo concílio; Filipe
tentou ganhar tempo, porém, um dos participantes do concílio (Robert d’Arbrissel) pronunciou um discurso que, contra toda a expectativa, derrubou a rainha: ela teria
pedido para falar com ele e decidiu renunciar ao seu casamento e aos seus privilégios (eis aí, a saída religiosa: o retorno da criatura a Deus e a correção definitiva).
Bertrade partiu para um vilarejo, fundado por Roberto d’Arbrissel, para acolher penitentes, onde jorrava uma fonte chamada Évrault. Este lugar, tornado famoso pela ajuda
de Ermengarda d’Anjou (filha de Foulques com sua repudiada primeira esposa), tornou-se, posteriormente, a belíssima Abadia de Fontevraud, onde está a necrópole dos
reis capetíngios da Inglaterra. A sentença de excomunhão foi levantada naquele mesmo ano de 1104. (a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Bertrade_de_Montfort).
[558] Suger, vita Ludovici Grossi, c. 2 a 6, ap. Scr. fr. XII, init.
[559] Filipe I dizia a seu filho Luís o Gordo: “Age, fili, serva excubans turrim, cujus devexatione penè consenui, cujus dolo et fraudulentâ nequitiâ nunquàm pacem bonam
et quietem habere potui” (NT: Agora, filho, vigia com cuidado a torre, cuja perturbação me fez velho, cujo dolo e maldade enganosa nunca me fizeram conhecer
a paz completa e quieta), Suger, vita Lud. Grossi, c. 8, ap. Scr. fr. XII, 16.
(NT): A imponente torre, que trouxe a velhice a Filipe I, e as ruínas do castelo, dote de casamento dado a seu filho pelo pai da noiva, o qual devolveu-lhe a esperança,
encontram-se a cerca de 30 km de Paris. Após trabalhos de restauração, terminados no ano de 2012, a torre que tanto perturbava o velho Filipe foi aberta à visitação
pública – vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Château_de_Montlhéry.
[560] Algumas vezes, ele viajava apenas com esse propósito (NT: o Autor está se referindo a Guilherme IX de Poitiers, conhecido como o Trovador).
[561] Guibert. Nov., l. VII: Tacito Burgundiæ duce, quid de Pictavensi comite loquar qui, præter militiæ grandis, quem secum proposuit ductare, globum, etiam examina
contraxerat puellarum? (NT: Se me calo sobre o Duque da Borgonha, o quê diria do Conde do Poitou que, independentemente dos numerosos cavaleiros que
resolvera trazer consigo, reuniu também um enxame de mulheres jovens? – a partir de http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guibertdenogent/croisade8.htm).
[562] Sigebert. Gemblanc., ap. Struv. I, 856.
[563] Suger, vita Lud. Gr., c. 9, XII, p 18: Tanta etenim et regni Francorum, et domini Ludovici præconabatur strenuitas, ut ipsi etiam Sarraceni hujus terrore copulæ
terrerentur (NT: Tamanha era a força do reino dos Francos e tão renomado era o valor de Luís, que os próprios Sarracenos tremiam de terror à só idéia de
uma tal união - http://remacle.org/bloodwolf/historiens/suger/vie1.htm#IX)
[564] Hugo de Cleeriis, de Senescalciâ, ap. Scr. fr. X, 491.
(NT): Um Senescal era um oficial a serviço do rei, príncipe ou senhor temporal, e advém do frâncico (dialeto germânico) sini-skalk que significa “deão dos servidores,
chefe dos servidores”. Podiam ocupar funções administrativas, judiciárias, militares ou todas ao mesmo tempo. Na França, entre os séculos X e XII (época da qual nos
ocupamos), o senescal era o primeiro dos grandes oficiais da coroa, ocupando-se da casa real e dos exércitos; o cargo foi extinto no final do século XII. No sistema
judiciário e administrativo, até o final do século XVIII, os senescais (sul da França) tinham as mesmas funções dos bailios (norte da França), sendo oficiais que auxiliavam
os magistrados administrativos e judiciários.
[565] Order. Vit., l. XII, ap. Scr. fr. XII, 722: Tres solummodo interemptos fuisse comperi (NT: Apenas três foram encontrados mortos).
[566] Os monges de Saint-Denis elegeram Suger para abade sem esperar a presentação real. Luís mostrou-se fortemente irritado e colocou na prisão vários deles
(Suger, Vita Ludov. Grossi, p. 48).
[567] Chronica reg. Fr., ap. Scr. fr. XI, 394: Ele o comprara por 60.000 libras. Foulques o Rabugento também cedera o Gâtinais para obter sua neutralidade.
[568] Suger. Lud. Gr., ap. Scr. fr. XII, 50: “Rex... ut eum tota Francia sequatur potenter invitat. Indignata igitur hostium inusitatam audaciam usitata Franciae
animositas, circumquaque movens militarem delectum...” (NT: O Rei..., de todo seu poder, convidou toda a França a segui-lo. A França, então, com seu ardor
costumeiro, indignou-se da audácia inusual dos inimigos; em todos os lugares, ela pôs em movimento a elite de seus cavaleiros... – a partir de
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/suger/vie3.htm).
[569] Há menos lacunas na sequência dos historiadores. Os mais distintos que apareceram foram, inicialmente, os Alemães, como Otho de Freising, para celebrar os
grandes imperadores da Casa de Saxe, depois os Normandos da Itália e da França, Guilherme Malaterra, Guilherme de Jumièges e o capelão do conquistador da
Inglaterra, Guilherme de Poitiers. A França propriamente dita tivera o espirituoso Raul Glaber e, um século depois, entre uma multidão de historiadores da cruzada, o
eloquente Guiberto de Nogent; Raimundo d’Agiles pertence ao sul.
[570] Já há muito tempo, as escolas de teologia se haviam formado nos grandes centros eclesiásticos: de início, em Poitiers, em Reims, depois no Bec, em Mans, em
Auxerre, em Laon e em Liége. Orléans e Angers professavam especialmente o direito. Escolas judaicas ousaram abrir em Béziers, em Lunel, em Marselha. Sábios
rabinos ensinavam em Carcassonne; mesmo no norte, sob o conde de Champagne, em Troyes e Vitry e na cidade real de Orléans.
[571] Santo Anselmo fala “desses heréticos dialéticos que não fazem coexistir as substâncias essenciais senão na palavra, que não concebem a cor senão num corpo, a
sabedoria senão numa alma”. De fide Trinitatis, c. 2.
[572] Proslogium, c. 2.
[573] Libellus pro insipiente.
[574] Greg. epist. Spicileg. d’Achery, ed. 2, t. III, p. 413. Os partidários do Imperador acusaram Gregório de ter ordenado um jejum aos cardeais para obter de Deus que
Ele mostrasse quem possuía razão sobre o Corpo de Cristo, se Berengário ou a Igreja de Roma. “Quis rectius sentiret de corpore Domini, romanave ecclesia, an
Berengarius? Eccardi corpus histor., medii ævi, t. II, p. 170.
[575] vide l’Histoire littéraire de France.
[576] Ibidem (NT: as Institutas do imperador Justiniano são uma espécie de manual de ensino do Código Justiniano – corpus juris civilis – compilação do antigo Direito
Romano feita pelo imperador Justiniano em 529-534. Esta obra legislativa toma uma importância fundamental no Ocidente pois, foi sob tal forma, que ele o recebeu, a
partir do século XII, passando, paulatinamente, e de forma geral, a adotar o direito romano.. Uma tradução em francês pode ser lida em
http://www.histoiredudroit.fr/corpus_iuris_civilis.html.
Em inglês: http://www.freewebs.com/vitaphone1/history/justinianc.html e uma versão anotada em http://www.uwyo.edu/lawlib/blume-justinian.
Vários sítios oferecem a consulta em latim. Vide, ainda: http://pt.wikipedia.org/wiki/Corpus_Juris_Civilis.)
[577] Ibidem, e Savigny, Geschichte des Roemischen Rechts im Mittelalter, 1822, b. III, p. 369
[578] Chaucer diz de uma abadessa inglesa de alta estirpe: “Ela falava francês perfeita e graciosamente, tal como se ensina em Stratforde-atte-Bow* mas, para o
francês de Paris, ela nada sabia”.
(NT): Stratforde-atte-Bow é a grafia medieval para o atual distrito de Bow em East London. O nome da área era, antigamente, Stratford(e) e o atual nome “Bow” é uma
abreviação do nome medieval Stratforde-atte-Bow, sendo que Bow refere-se a uma ponte construída no início do século XII. O trecho da carta de Geoffrey Chaucer (c.
1345-1400), conhecido como o “Pai da Literatura Inglesa”, no qual menciona a “abadessa inglesa de alta estirpe”, vale aqui a transcrição como uma nota curiosa do inglês
da época:
“And Frenche she spake ful fayre and fetisly,
After the scole of Stratford atte Bowe,
For Frenche of Paris was to hire unknowe."
(fontes: tradução de F. G. Smith, F.G.S., http://en.wikipedia.org/wiki/Chaucer e http://en.wikipedia.org/wiki/Stratford-atte-Bow).

[579] Epistola I, Heloissæ ad Abel. (Abel et Hel. opera, edit. Duchesne): Quod enim bonum animi vel corporis tuam non exornabat adolescentiam? (NT: Carta I, Heloísa
para Abelardo: “Quais vantagens da alma ou do corpo não embelezam tua juventude?” – a partir de “Lettres d’Abélard et d’Héloïse”, por Octave Gréard, Paris,
1875). – Abelardi Liber Calamitatum mearum, p. 10: Juventutis et formæ gratia (NT: Juventude e beleza).
[580] Ele era filho primogênito e renunciou ao seu direito de primogenitura (1079-1142)
[581] Abel. liber Calam., p. 12. Jàm, si qua invenire licebat carmina, erant amatoria, non philosophiæ secreta. Quorum etiam carminum pleraque, adhuc in multis, sicut et
ipse nosti, frequentantur et decantantur regionibus, ab his maxime quos vita simul oblectabat [NT: Agora (ele alude à época de seu amor), quaisquer músicas que eu
concebia soam amorosas, não os segredos da filosofia. Muitas dessas canções, como tu mesma sabes, são ainda comumente cantadas em muitos países;
principalmente por aqueles que encontram prazer na existência] — Heloissæ epist. I: “Duo autem, fateor, tibi specialiter inerant quibus feminarum quarumlibet
animos statim allicere poteras; dictandi videlicet, et cantandi gratia. Quæ cæteros minime philosophos assecutos esse novimus. Quibus quidem quasi ludo quodam laborem
exerciti recreans philosophici, pleraque amatorio metro vel rhythmo composita reliquisti carmina, quæ præ nimia suavitate tam dictaminis quam cantus sæpius frequentata,
tuum in ore omnium nomen incessanter tenebant: ut etiam illiteratos melodiæ dulcedo tui non sineret immemores esse. Atque hinc maxime in amorem tuum feminæ
suspirabant. Et cum horum pars maxima carminum nostros decantaret amores, multis me regionibus brevi tempore nunciavit, et multarum in me feminarum accendit
invidiam” (NT: Heloísa, carta I: Mas, tu tinhas duas qualidades, eu admito, feitas para seduzir prontamente os corações femininos: o talento do poeta e aquele do
cantor; jamais soube que filósofos as possuíssem no mesmo grau. Graças a esses dons, e para te distraíres dos teus trabalhos filosóficos, compusestes tantos
versos e canções de amor, os quais, repetidos em todos os lugares em virtude da inigualável poesia e música que neles há, é que teu nome permanece
incessantemente sobre os lábios de todo o mundo; a só doçura da melodia impedia os próprios ignorantes de esquecê-los. Era sobretudo isso que fazia o
coração das mulheres suspirar. E esses versos, que celebram, na maior parte, os nossos amores, não tardaram a espalhar meu nome em muitos lugares e a
acender a inveja de muitas mulheres).
(tradução das cartas a partir de “Lettres d’Abélard et d’Héloïse”, por Octave Gréard, Paris, 1875)

[582] Liber Calam., p. 4. “... ; et quoniam dialecticorum rationum armaturam omnibus philosophiæ documentis prætuli, his armis alia commutavi et trophæis bellorum
conflictus prætuli disputationum. Præinde diversas disputando perambulans provincias, ubicunque huius artis vigere studium audieram, peripateticorum emulator factus sum
(NT: ; ... e preferindo à todos o aprendizado da filosofia, da dialética e seu arsenal, eu troquei as armas da guerra em favor daquelas da lógica e sacrifiquei
os troféus das batalhas aos assaltos da disputa. É por isso que percorri as províncias discutindo, transportando-me, como verdadeiro êmulo dos peripatéticos,
para onde ouvia dizer que o estudo dessa arte estava em destaque – a partir de http://www.pierre-abelard.com/Tra-Historia%20calamitatum.htm; vide ainda
http://www.thelatinlibrary.com/abelard/historia.html). – Vê-se, em uma de suas cartas, que ele estudara, de início, as leis.
[583] Liber calamitatum, p. 5: “Sed quoniam de potentibus terre nonnullos ibidem habebat emulos, fretus eorum auxilio voti mei compos extiti, et plurimorum mihi
assensum ipsius invidia manifesta conquisivit” [NT: Mas havia invejosos entre os poderosos da região: com o auxílio deles, eu atingi meus fins; a manifestação de
sua inveja (refere-se ao mestre Guilherme de Champeaux) valeu-me, mesmo, inúmeras simpatias - – a partir de http://www.pierre-abelard.com/Tra-Historia%20calamitatum.htm e
http://www.thelatinlibrary.com/abelard/historia.htm].
[584] P. Abelardi Ethica, seu liber dictus Scito te ipsum (Conhece-te a ti mesmo), apud Bern. Pezii Thesaur. anecdotorum, pars 2ª, p. 627: “Sunt qui non mediocriter
moueantur cum audiant nos dicere operationem peccati nihil addere ad reatum uel ad damnationem apud deum” (NT: Algumas pessoas provam uma grande emoção
ouvindo-nos sustentar que o próprio ato do pecado nada adiciona à culpabilidade do pecador, nem à sua condenação pela justiça divina) . -- Nihil ergo ad
augmentum peccati pertinet qualiscumque operum executio, et nihil animam nisi quod ipsius est coinquinat, hoc est consensus quem solummodo peccatum esse diximus, non
voluntatem eum præcedentem vel actionem operis subsequentem (NT: Logo, a execução dos atos nada acrescenta, de forma alguma, ao pecado, e a alma não pode
ser maculada por aquilo que a ela pertence, ou seja, pelo consentimento que, como dissemos, constitui, ele só, o pecado, e que precede o querer ou que segue
a execução) -- Comment, in ep. ad Roman. (ap. Abel. et Hel. opera, p. 522): Quia opera indifferentia sunt in se, nec bona nec mala, sive remuneratione digna, videntur,
nisi secundum radicem intentionis, quæ est arbor bonum vel malum proferens fructum (NT: Porque as obras são indiferentes em si mesmas, nem boas, nem más, ou
indignas de recompensa mas, ao que parece, somente de acordo com a raiz da intenção, que é uma árvore que traz o fruto do bem ou do mal).
[585] Ibid., p. 655: Non possumus dicere martyrum persecutores (quum placere Deo crederent) in hoc peccasse [NT: Não podemos dizer que os executores do
martírio (para agradar àqueles que acreditam em Deus) pecaram nisso]. É preciso, então, acreditar, ele acrescenta, que Deus não os puniu senão temporariamente e
somente como exemplo.
[586] Ibid., 654: Cum parvulos originale peccatum dicimus habere, vel nos omnes in Adam peccasse, tale est, ac si dicceretur à peccato illius originem nostræ pœnæ vel
damnationis sententiam incurrisse. (NT: Para crianças pequenas, podemos dizer haver pecado original, ou que todos nós pecamos em Adão, e tal é como se
disséssemos que o pecado está na origem da nossa pena ou da sentença de condenação em que incorremos). – Vide também Commentaria in Epistolæ ad
Romanus (Abel. et Hel. opera, p. 598). “Mas, então, Deus pune os inocentes? Isso é injusto e atroz. – Talvez”, ele respondeu, “isto não esteja em Deus”, Ibid.
[587] Comment. in. Epist. ad. Rom., p. 550-553: Redemptio itaque nostra est illa summa in nobis per passionem Christi dilectio... ut amore ejus potius quam timore cuncta
impleamus (NT: Então, a nossa redenção é o mais alto amor do Cristo, através do Seu sofrimento ... para preencher tudo com Seu amor, ao invés de medo) . –
“Se não, quem Jesus Cristo teria vindo redimir? Apenas, talvez, os eleitos – E para qual fim?”. Ibid., - São Bernardo dirige-lhe, a respeito desse erro, uma veemente
invectiva (S. Bernardi opera, ed. Mabillon, 1690, t. I, p. 650 e 655).
[588] Ethica, ap. B. Peziith., t. III, p. 627: Peccatum contemptus Creatoris est (NT: O pecado é o desprezo pelo Criador) . – Vide também p. 638 – Abelardo, em sua
Ética (p. 632, etc.) emprega a palavra voluntas no sentido de desejo. Ele distingue, é verdade, a vontade (consensus) do desejo; mas a só confusão dos termos deve ter,
frequentemente, ocasionado um perigoso equívoco. Nos Comentários à Epístola aos Romanos, ele usa voluntas para vontade.
[589] Guill. de S. Theodor. epist. ad. S. Bern. (ap. S. Bernardi opera, t. 1, p. 302): Libri ejus transeunt maria, transvolant Alpes (NT: Seu livro cruzou os mares, voou
através dos Alpes). – São Bernardo escreveu, em 1140, aos cardeais de Roma: Legite, si placet, librum Petri Abelardi, quem dicit Theologiæ; ad manum enim est, cum,
sicut gloriatur, à pluribus lectitetur in Curia (NT: Lede, se vos agradares, o livro de Pedro Abelardo, que ele diz de ser de Teologia; deveis tê-lo à mão, visto que,
gabando-se, ele diz ser lido por muitos na Cúria).
[590] Os bispos da França escreveram ao Papa, em 1140: Cùm per totam ferè Galliam, in civitatibus, vicis et castellis, à scholaribus, non solum inter scholas, sed etiam
triviatim; nec à litteratis aut provectis tantùm, sed à pueris et simplicibus, aut certè stultis, de S. Trinitate, quæ Deus est disputaretur... (NT: Em quase todo o território da
Gália, nas cidades, nas vilas e nos castelos, por todos os escolares, mas não só entre as escolas, mas também nas ruas, não só pelos letrados como também
também pelos velhos, e também pelas crianças e pelos humildes, tanto quanto pelos certamente tolos, é discutida a Santa Trindade de Deus...), S. Bernardi opera,
1, 309. – S. Bernardi, epist. 88 ad Cardinales: “Irridetur simplicium fides, eviscerantur arena Dei, quæstiones de altissimis rebus temerariè ventilantur (NT: Zombou da fé
dos simples, eviscerando a arena de Deus, ventilando questões de altíssmo temor).
[591] Sua mãe era de Montbar, do país de Buffon. Montbar não é distante de Dijon, a pátria de Bossuet.
[592] Neander, Heilige Bernhard un sein Zeitalter, p. 7.
[593] Arnald. de Bonneval, vita S. Bern., l. IV, c. 3 – Chronic. Turon., ap. Scr. fr. XII, 473 – Vide S. Bern., epist. 220, 221, 226 (S. Bernardi opera, edit. Mabillon, 1690,
fol., p. 203-210).
[594] Vide, sobre esta questão, as cartas de São Bernardo às cidades da Itália (Gênova, Pisa, Milão, etc.), à Imperatriz, ao Rei da Inglaterra e ao Imperador, p. 138
segs.
[595] Guillelm. de S. Theodorico, l. I, c. 7, l. III, c. 2
(NT): Sangue coagulado: muitos alimentos são preparados à base de sangue. É possível que São Bernardo confundisse a manteiga com alguma forma de alimento à base
de sangue pastoso (por exemplo, o molho do coq-au-vin ou da cabidela) ou semi-sólido. A culinária francesa possui a especialização da charcuterie (embutidos, grosso
modo), onde o sangue é muito utilizado.
[596] Ibid., l. III, c. 1 – Odo de Diogilo, ap. Scr. R. Fr., XII, 92. – Gaufridus, c. I, in opera S. Bernardi, t. II, p. 1117: Subtilissima cutis in genis modice rubens (NT: Pele
delicadíssima nas bochechas levemente ruborizadas).
[597] Ibid., l. I, c. 3.
[598] Arnald. de Bonneval, l. II, c. 6 – Guill. de S. Theod., l. I, c. 4: “Até aqui, tudo o que ele leu nas Sagradas Escrituras, e o que delas espiritualmente sentiu, veio-lhe
pela meditação e pela oração, nos campos e florestas; e ele tem o costume de dizer, brincando com seus amigos, que jamais teve outros mestres que não fossem os
carvalhos e as faias”. – São Bernardo escreveu a um certo Murdach a quem incentivava tornar-se monge: “Experto crede; aliquid amplius in silvis invenies quàm in libris.
Ligna et lapides docebunt te quod à magistris audire non possis... A non montes stillant dulcedinem, et colles fluunt lat et mel, et valles abundant frumento? (NT: Crê em
quem tem experiência; encontrarás mais nas florestas do que nos livros. Rochas e pedras te ensinarão o que não podes ouvir dos professores. Não destilam as
montanhas a doçura, e as colinas não fazem correr leite e mel, e não abundam os vales com trigo?).
[599] Arnald. de Bon. Vall., l. II, c. 6.
[600] Abæl. liber Historia Calamitatum Mearum, p. 10: “Tanti quippè tunc nominis eram, et juventutis et formæ gratiam præminebam, ut quamcumque feminarum nostro
dignare amore, nullam vererer repulsam” (NT: Eu tinha um tal renome, uma tal graça da juventude e da beleza, que eu pensava não ter nenhuma recusa a temer,
qualquer que fosse a mulher que eu honrasse com o meu amor.).
[601] (NT): O livro se chama Julie ou Nouvelle Héloïse (Júlia ou Nova Heloísa), tratando-se de um romance epistolar escrito por Jean-Jacques Rousseau e
originalmente chamado Lettres de deux amans, Habitans d’une petite ville au pied des Alpes (Cartas de dois amantes, moradores de um pequeno vilarejo no pé dos
Alpes). O livro inspira-se na história de amor de Heloísa e Abelardo, vinte anos mais velho, onde a paixão amorosa é ultrapassada para ceder lugar à renúncia sublime.
Alcançou um sucesso extraordinário no final do Século das Luzes. – vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Julie_ou_la_Nouvelle_Héloïse.
[602] Id. ibid.: “Quæ cum per faciem non esset infima, per abundatiam litterarum erat suprema. Nâm quò bonum hoc, litteratoriæ scilicet scientiæ, in mulieribus est rarius,
eò amplius puellam commendabat, et in toto regno nominatissimam fecerat (NT: “Não a última em beleza, era suprema na extensão do aprendizado. E raro que
fosse, para as mulheres, o dom do conhecimento literário, mais este a distinguiu em sua juventude e tornou seu nome conhecido em todo o reino).
[603] Heloisa escreveu-lhe: “Concupiscentia te mihi potiùs quàm amicitia sociavit, libidinis ardor potiùs quàm amor” (NT: A concupiscência conduziu-te a mim mais
que a amizade, a luxúria mais que o amor).
[604] (NT): Tendo Heloísa engravidado e dado à luz um menino, a quem chamou Astrolábio, Abelardo casou-se com ela ao anoitecer, na presença de poucas
testemunhas, e sem tornar público o matrimônio a fim de não destruir sua carreira docente. É que, desde a reforma gregoriana (1074-1075), os clérigos deviam ser
celibatários e Yves de Chartres decretara que o cônego (posição que Abelardo ocupava) que se casasse perderia seus benefícios. Mas Fulbert revela o casamento
abertamente. Abelardo, tendo colocado Heloisa no convento de Angenteuil para protegê-la de seu tio, este reclama do repúdio e paga os serviços de dois delinquentes para
punir Abelardo. Este, então, é emasculado (seus testítulos foram-lhe cortados). O escândalo é enorme pois, além de envolver o célebre filósofo, trata-se de uma punição
reservada aos adúlteros e aos estupradores. Abelardo, imperfeito de corpo pela mutilação sofrida, sua carreira eclesiástica sofre um golpe brutal, assim como a de
professor. Tratando-se, pois, de uma vingança privada cometida no próprio seio do capítulo da catedral de Notre-Dame (Fulbert também era cônego) e contra o mais
ilustre clérigo da época, ela consterna todo o reino. Os dois delinquentes, como punição, são também emasculados, de acordo com a Lei de Talião, além de terem tido os
olhos vazados; Fulbert é suspenso de suas funções de cônego por dois anos. Heloísa toma o hábito em Argenteuil (com o tempo, torna-se a abadessa) e Abelardo retira-se
como monge na Abadia de Saint-Denis – vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Abélard.
[605] Vide Liber Calamitatum Mearum, pgs. 20, 21, Gaufred. Claravall., l. III, c. 5.
[606] Ele também desejou reformar os costumes do convento. Isto desagradou à Corte, ele mesmo reconhece: “Sciebam in hoc regii consilii esse, ut quò minùs regularis
abbatia illa esset, magis regi esset subjecta et utilis, quantùm videlicet ad lucra temporalia” (NT: Eu sabia que era a vontade real que a abadia se mantivesse
desordenada, já que mais submissa e útil, no que se refere à disposição de suas receitas).
[607] Liber calamit., p. 28: Quod cum cognovissent scolares, ceperunt undique concurrere, et relictis civitatibus et castellis solitudinem inhabitare, et pro amplis domibus
parva tabernacula sibi construere, et pro delicatis cibis herbis aggrestibus et pane cibario victitare, et pro mollibus stratis culmum sibi et stramen comparare, et pro mensis
glebas erigere. (NT: Tão logo conhecido o meu retiro, os discípulos chegaram de todas as partes, abandonando cidades e castelos para morar num deserto,
deixando vastas moradas por pequenas cabanas que eles se construíam de suas próprias mãos, iguarias delicadas por ervas selvagens e um pão grosseiro,
leitos macios pelo colmo e pela palha, suas mesas por torrões de terra – a partir de http://www.pierre-abelard.com/Tra-Historia%20calamitatum.htm e de
http://www.thelatinlibrary.com/abelard/historia.html).
[608] S. Bern. epist. 189 (NT: dirigida ao Papa Clemente II, após o Concílio de Sens): Abnui, tùm quia puer sum, et ille vir bellator ab adolescentiâ: tum quia
judicarem indignum rationem fidei humanis committi ratiunculis agitandam (NT: Recusei, inicialmente, porque sou um jovem em tais coisas e ele um guerreiro
experiente desde a juventude, e porque pensei que era indigno confiar uma questão de fé à decisão da pobre razão humana).
[609] S. Bern. epist. ad Papam, p. 182: “O novo Golias, tal qual um gigante terrível, avança armado com todo o paramento e precedido de seu escudeiro Arnaldo de
Brescia. Eles são, um e outro, como a escama que cobre a escama e não permite o ar penetrar pelas junções; a abelha da França chamou com um assovio aquela da
Itália e as duas se reuniram contra o Senhor e seu Cristo”. – Epist. ad. episc. Constant.: “Pudesse sua doutrina soar tão boa quanto sua vida é rigorosa! Pois deveis
entender que o homem não é nem um glutão, nem um bebedor, mas come e bebe o sangue das almas com o diabo só”. – Epist. ad. Guid., p. 188: "Ele, com a cabeça de
uma pomba e uma cauda de escorpião, a quem Brescia vomitou adiante, Roma repugna, a França rejeita, a Alemanha abomina, a Itália não vai abrigar". – Ele (Arnaldo
de Brescia) tivera por professor Pedro de Bruys (NT: francês, considerado herege e que foi morto por uma multidão -
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_de_Bruys ), Bulæus, Hist. Univ. Paris, II, 155. Platina diz que não se sabe se ele fora padre, monge ou eremita – Trithemius relata
que ele dizia da cátedra, dirigindo-se aos cardeais: “Eu sei que vós, em breve, ireis me matar secretamente e eu chamo o céu e a terra como testemunhas que eu vos
ensinei, mesmo, como o Senhor me ordenou. Mas vós me desprezais e ao vosso Criador. Também não é estranho que vós deveis entregar-me à morte, eu, um pecador
que vos proclama a verdade pois, se Pedro se erguesse e condenasse vossos inumeráveis vícios, vós não o pouparíeis”.
[610] Em Paris, no cemitério do Leste.
(NT): O bonito mausoléu se encontra no cemitério do Père-Lachaise. Quando Abelardo morreu, Heloísa obteve de Pedro o Venerável a transferência do corpo para a
Abadia do Paracleto, onde ela se tornara a abadessa. Ao morrer, Heloísa foi enterrada ao seu lado. Quando da nacionalização dos bens da Igreja pela Revolução
Francesa, os restos mortais de ambos foram transferidos para Nogent-sur-Seine (1792), onde foram expostos, tornando-se objeto de devoção nos círculos românticos. Em
1800, Alexandre Lenoir obteve autorização para removê-los para Paris e, finalmente, em 1817, a cidade de Paris autorizou a construção de um mausoléu próximo à
entrada do Père-Lachaise (cemitério do Leste), destinado a promover esse recentíssimo local de sepultamento. Para uma visita virtual ao cemitério do Père-Lachaise,
havendo, mesmo, uma relação das pessoas célebres ali enterradas, vide http://www.pere-lachaise.com, em inglês ou francês.
[611] Abæl., liber calamit, p. 11: Super quo vehementer me deprecatus, supra quam sperare presumerem votis meis accessit, et amori consuluit, eam videlicet totam
nostro magisterio committens, ut quotiens mihi a scolis reverso vaccaret, tam in die quam in nocte ei docende operam darem, et eam si neglegentem sentirem vehementer
constringerem (NT: Em resposta a meus pedidos, que superou tudo o que esperava, e ele próprio servindo o meu amor, ele a entregou sem reservas à minha
direção, a fim de que, no meu retorno das escolas, eu me ocupasse de instruí-la, tanto de dia, quanto à noite, e que, se eu a achasse negligente, a castigasse
severamente).
[612] Heloissæ epist. 1ª, p. 15.
[613] Ibid.
[614] É Abelardo quem narra essas palavras. Calamit., p. 15.
[615] Heloissæ dilectissimæ sorori suæ in Christo, Abælardus frater ejus in ipso.
[616] Domino suo, imò patri; conjugi suo, imò fratri; ancilla sua, imò filia; ipsius uxor, imò soror; Abælardo Heloissa”. Epist. 1ª
[617] Heloiss. epist. 2ª, p. 60: “In omni (Deus scit!) vitæ meæ statu, te magis adhùc offendere quàm Deum vereor; tibi placere ampliùs quàm ipsi appeto. Tua me ad
religionis habitum jussio, non divina traxit dilectio.
[618] Lucano (NT: Marcus Annaeus Lucanus, 39 d.C – 65 d. C., poeta romano, de quem se conservou apenas uma única obra, a Farsália, guerra civil que opôs César
e Pompeu, no final do século I a. C.):
... O maxime conjux!
O thalamis indigne meis! hoc juris habebat
In tantum fortuna caput! Cur impia nupsi,
Si miserum factura fui? Nunc accipe pœnas,
Sed quas spontè luam.
[619] Comment. in epist. ad Romanos, p. 622.
[620] A ordem de Fontevraud teve trinta abadias na Bretanha. Daru, I, 321. – Fundada por volta do ano 1100, ela contava, já em 1145, segundo Suger (epist. ad Eugen.
II), com quase cinco mil religiosas. Bulæus, II, 7 – Acta SS., Februar., t. III, p. 607: Servos et ancillas Dei plus quàm ad duo vel circiter ad tria millia congregavit (NT:
Congregava mais de dois ou quase três mil servos e servas de Deus). – As mulheres ficavam enclausuradas, cantavam e oravam; os homens trabalhavam – Doente,
Roberto chamou seus monges e disse-lhes: “Deliberare vobiscum, dùm adhùc vivo, utrùm permanere veltis in vestro proposito; ut scilicet, pro animarum vestrarum salute,
obediatis ancillarum Christi præcepto. Scitis enim quia quæcumque, Deo cooperante, alicubi ædificavi, earum potentaui atque dominatui subdidi... “Quo andito, penè omnes
unanimi voce dixerunt: Absit hoc, etc” (NT: Considerai convosco, enquanto ainda vivo, se haveis de cumprir vosso propósito e, para a saúde de vossas almas,
serdes obedientes às servas de Cristo. Porque bem sabeis que todas as casas religiosas que, com a ajuda de Deus, levantei, eu coloquei sob o domínio delas ...
Nisto, quase todos, a uma só voz, exclamaram: ‘Longe de nós... etc.”). – Antes de morrer, ele quis dar um chefe a elas: “Scitis, dilectissimi mei, quod quidquid in
mundo ædificavi, ad opus sanctimonialium nostrarum feci: esique potestatem omnem facultatum mearum præbui: et quod his majus est, et me et meos discipulos, pro
animarum nostrarum salute, earum servitio submisi. Quamobrem disposui abbatissam ordinare” (NT: "Sabeis, meus queridos, que dediquei todas as casas que construí
ao serviço das nossas santas virgens, e coloquei todos os meus bens à sua disposição; e, muito além disso, tenho me submetido, e os meus discípulos, para a
salvação de nossas almas, à regra delas. Por tal razão, tenho a intenção de ordenar a abadessa" ) – Considerando que uma virgem educada no claustro, não
conhecendo senão as coisas espirituais e a contemplação, não saberia governar os negócios exteriores e entender-se no meio do tumulto do mundo, ele nomeia uma mulher
viúva e recomenda-lhe que jamais tomasse por abadessa uma das mulheres educadas no claustro – Ele recomenda-lhe, ainda, falar pouco, não comer carne e vestir-se
rudemente.

[621] Quadam die, cum venisset Rothomagum, lupanar ingressus, sedensque ad focum. pedes calefacturus, meretricibus circumdatur æstimantibus cum causa fornicandi
esse ingressum. Sed prædicante eo verba vitæ, ac misericordiam Christi eis promittente, una è meretricibus, quæ cæteris prærat, dixit ei: Qui es tu qui talia loqueris'? Scias
pro certo quia per viginti quinque annos, quibus hanc domum ad perpetranda scelera sum ingressa, nunqnam aliquis huc advenit qui de Deo loqueretur, vel de ejus
misericordia præsumere nos faceret. Tamen si scirem vera esse, etc. Statim eas de civitate eduxit et ad eremum cum eis gaudens perexit, ibique, peracta pœnitentia,
Christo feliciter transmisit. Manuscrito da Abadia de Vaulx Cernay, citado por Bayle, artigo FONTEVRAULT.
[622] Carta de Mardobus, bispo de Rennes, a Roberto d’Arbrissel: “Mulierum cohabitationem, in quo genere quoddam peccasti, diceris plus amare... Has ergo non solum
communi mensa per diem, sed et communi occubitu per noctem digeris, ut referunt, accubante simul et discipulorum grege, ut inter utrosque medius jaceas, utrique sexui
vigiliarum et somni leges præfigas”. (NT: Dizem que tu és mais dado a coabitar com mulheres com as quais tu previamente pecaste... Dizem que, não só tu o
coloca a uma mesa comum durante o dia, como também em um local comum de descanso à noite, o teu rebanho de discípulus deitados à volta, enquanto tu te
deitas entre os dois sexos e define as leis de dormir e acordar para ambos) . – De Morice, I, 499: “ Foeminarum quasdam, ut dicitur, nimis familiariter tecum habitare
permittis et cum ipsis etiam et inter ipsas noctu frequenter eubare non erubescis. Hoc si modo agis, vel aliquando egisti, novum et inauditum, sed infructuosum martyrii
genus invenisti... Mulierum quibusdam, sicut fama sparsit, et nos aute diximus, sæpe privatim loqueris et carum accubitu novo martyrii genere cruciaris” (NT: Dizem que
tu sofres com a familiaridade de certo tipo de mulher e que não te enrubesces com frequência por deitares com elas, e entre elas, à noite. Se ages assim, tu
descobriste um novo e inaudito, embora infrutífero, martírio. Relata-se que tu te atomentas secretamente com um novo tipo de martírio, deitando-se com certas
mulheres, como antes dissemos). - Carta de Godofredo, abade de Vendôme, a Roberto d’Arbrissel, publicada pelo P. Sirmond. (Daru, Histoire de Bretagne, I, 320):
“Taceo de juvenculis quas sine examine religionem professas, mutata veste, per diversas cellulas protinus inclusisti. Hujus igitur facti temeritatem miserabilis exitus probat;
aliæ enim, urgente partu, practis ergastulis, elapsæ sunt, aliæ in ipsis ergastulis pepererunt” (NT: Nada digo das novilhas a quem te permitiste ensinar religião sem
exame e que, após mudar de vestido, tu trancas em diferentes células. O destino miserável delas prova a extravagância do ato pois, algumas, na véspera do
parto, escaparam de suas prisões, enquanto outras foram confinadas lá), Clypeus nascentis ordinis Fontebraldensis, t. I, p. 69.
[623] Esta festa, segundo alguns escritores, teria existido na Normandia desde o ano 1072, sob o nome de Festa dos Normandos. Gilbert, Description de la cathédrale
de Rouen. Dom. Pommeraye, Histoire de la cathédrale de Rouen.
[624] Vit. Lud. Gross., ap. Scr. fr. XII, 31: “... omnibus potentior, viragoque faceta, et eruditissima illius admirandi muliebris artificii, quo consueverunt audaces suis etiam
lacessitos injuriis maritos suppeditare : Andegavensem priorem maritum, licet toro omnino repudiatum, ita mollificaverat, ut eam tanquam dominam veneraretur, et scabello
pedum ejus saepius residens, ac si praestigio fieret voluntati ejus omnino obsequeretur [NT: (ela).... ainda mais considerável que estes, era corajosa, muito erudita, e
possuía esses admiráveis artíficios das mulheres, com a ajuda dos quais as mulheres audaciosas mantêm sob seus pés mesmo os maridos a quem cobriram de
injúrias: ela de tal forma dobrara o Angevino, seu primeiro marido, que, embora repudiado de seu leito, ele a respeitava como soberana e, frequentemente
sentado sobre o escabelo onde ela descansava os pés, e como que fascinado por seus encantos, a obedecia].
[625] Chart. ann. 1115, pro Bellov., ap. Guizot, V, 323: “Se alguma queixa for levada perante ele ou perante sua esposa... - No sétimo ano de nosso reinado e primeiro
do reinado da rainha Adéle”. – Adèle tomou a cruz com seu marido. Odo de Diog., ap. Scr. fr. XII, 94. – Filipe-Augusto, quando de sua partida para a cruzada, deixou-lhe
a regência.
[626] Em 1134, Ermengarde de Narbonne, sucedendo a seu irmão, pede e obtém de Luís o Jovem a autorização de julgar, coisa proibida às mulheres por Contantino, lib.
21, de procur., e Justiniano, lib. ult. de rec. et arbitr., assim como no Digesto, lib. XII, § 2º, de Judic., l. II, de Regul. Juris. Vide também Duchesne, t. IV: a resposta do
rei... “apud vos deciduntur negotia legibus imperatorum; benignior longè est consuetudo regni nostri, ubi si melior sexus defuerit, mulieribus succedere et hæreditatem
administrare conceditur” (NT: “... para vós, as leis do Império prevaleceriam; mais benigno, porém, é o costume do nosso reino onde, na falta do sexo melhor, as
mulheres podem suceder e administrar sua herança).

[627] “As sucessões de estados não podem ter lugar senão pela admissão das mulheres à herança das soberanias. Que se suponha todos os feudos masculinos, ou o
princípio que, mais tarde, toma o nome de Lei Sálica, e que ele tenha sido adotado em todos os estados. É evidente que cada soberania terá por príncipe um chefe nacional:
os Franceses, um francês, os Ingleses, um inglês, os Espanhóis, um espanhol. A soberania indivisível, passando sempre ao primogênito, o chefe da cada família não poderá
jamais ter senão um estado a cada vez; os chefes dos ramos caçulas permanecerão concidadãos e súditos. Se, quando da extinção do ramo primogênito, eles vierem a
herdar o trono, eles reunirão a esse trono, tanto quanto, seus apanágios que tinham sido destacados e jamais um estado independente. Se, hoje, vemos os membros da
mesma família assentarem-se, ao mesmo tempo, sobre vários tronos, é que, enquanto um seguiu a lei Sálica, todos os outros admitiram mulheres à sucessão. Nenhuma
circunstância poderia dar a um Francês a coroa da Espanha ou de Nápoles, se esta coroa não tivesse sido tirada dos Espanhóis ou dos Napolitanos por uma mulher. Não
foi a lei Sálica da França, mas a lei contrária adotada em Madri e em Nápoles que fez nascer o perigo europeu de uma reunião de três coroas, o perigo para a Espanha ou
para Nápoles de perderem sua independência; o perigo para a França de fazer uma conquista que poderá custar-lhe sua liberdade”, Sismondi, Histoire des Français, v.
189.
[628] Isso é muito evidente nos seus selos. O rei da Inglaterra é representado sentado numa face e, na outra, montado à cavalo e brandindo sua espada. O rei da França
está sempre sentado. Se Luís VII é, às vezes, representado à cavalo (1137, 1138, Archives du Royaume, K. 40), é na posição de Dux Aquitanorum (Duque da
Aquitânia). A exceção confirma a regra.
[629] Conhece-se a obesidade de Guilherme o Conquistador (vide mais acima). “Quando, então, esse homem gordo parirá?”, dizia o rei da França. Quando foi
preciso enterrá-lo, o buraco era muito estreito e o corpo entalou. Ele dispensava somas enormes à sua mesa [Gazas ecclesiasticas conviviis profusioribus insumebat (NT:
Ele gastou as riquezas das igrejas em seus extravagantes banquetes), Guill. Malmsb., l. III, ap. Scr. fr. XI, 188]. Os autores da Arte de verificar as datas (XIII, 15),
atribuem-lhe, de acordo com uma crônica manuscrita, um traço de singular violência. Quando Balduíno de Flandres recusou-lhe sua filha Matilde, “il passa jusques en la
chambre de la comtesse; il trouva la fille au comte, si la prist par les trèces, si la traisna parmi la chambre et défoula à ses pieds” (“ele forçou a passagem até o
quarto da condessa; encontrou a filha do conde, pegou-a pelas tranças, arrastou-a pelo quarto e a soltou sob seus pés”). – Seu primogênito Roberto era chamado
Courte-heuse/Courtheuse (bota curta) ou Bas-court (baixo-curto), Order. Vit., ap. Scr. Fr., XII, 596: “... facie obesâ, corpore pingui, brevique staturâ, undè vulgo
Gambaron cognominatus est, et Brevis-ocrea” [NT: Face obesa, corpo gordo, baixa estatura, por isso cognominado ‘ Gambaron’ (‘pernas redondas’, vide nota de
pé da página 96 em Histoire d’Angleterre depuis la première invasion des Romains, de John Lingard, traduzido pelo Cavaleiro de Ronjoux, t. II, 1827)* e ‘bota curta’];
ele se fazia arruinar pelos histriônicos e pelas prostitutas (ibid., p. 602: Histrionibus et parasitis ac meretricibus; item p 681) – O segundo filho do Conquistador,
Guilherme o Ruivo (Guilherme II da Inglaterra, reinado de 1087-1100) , era de baixa estatura e corpulento; ele possuía os cabelos louros avermelhados e o rosto
corado (Lingard, t. II da tradução, p. 167). “Quando ele morreu”, conta Orderico Vital, “foi a ruína dos abandonados, dos devassos e das mulheres públicas e, conquanto os
sinos das igrejas tocassem para os pobres ou indigentes, eles não soaram para Guilherme” (Scr. rer. fr. XII, 679). – Ibid. “Legitimam conjugem nunquam habuit; sed
obscenis fornicationibus et frequentibus mœchis inexplebiliter inhæsit [NT: “Ele não teve esposa legítima; mas, sem jamais satisfazer-se, entregou-se a uma obscena
libertinagem e a frequentes ligações infames” - é preciso acrescentar que tudo indica que Guilherme o Ruivo fosse homossexual, seja pela ausência de esposa ou de
amantes conhecidas do sexo feminino, seja porque sua guarda pessoal era reputada efeminada. Os monges cronistas da época descrevem seu guarda-roupas como
“demais efeminado” e seu comportamento como indicativo de homossexualidade; Frank Barlow (Oxford Dictionary of National Biography, Oxford University Press,
2004), diz que ele poderia ser bissexual ou um sátiro]. P. 635: “Protervus et lascivus” (NT: “insolente e libertino”). P. 624: “Erga Deum et ecclesiæ frequentationem
cultumque frigidus extitit” (NT: “Ele era frio em relação a Deus e negligenciava os cultos e a igreja) – Suger, ibid., p. 12: “Cumque in Angliam transfretasset, lasciviæ
et animi desideriis... ecclesiarum crudelis exactor, etc.” (NT: “De volta à Inglaterra, entregou-se à lascívia e ao abandono... cruel sanguessuga das igrejas, etc.”) .
Huntingd., p. 216: Luxuriæ scelus tacendum exercebat, non occulte, sed ex impudentia coram sole etc. (NT: “Sua devassidão era tamanha, que não se pode falar, mas
ele não escondeu sua impudência, exibindo-a abertamente). – Henrique Beauclerc, seu jovem irmão, teve mais de quinze bastardos com suas numerosas amantes.
Segundo alguns escritores, sua morte foi causada por sua voracidade, comendo um prato de lampréias (Lingard, II, 241). - Seus filhos, Guilherme e Ricardo (Coração
de Leão), acabavam-se nas mais infames devassidões [Huntingd., p. 218: “Qui omnes, vel fere omnes, sodomitica labe dicebantur, et erant irrititi. Ecce curuscabilis Dei
vindicta!” (NT: “Dizia-se de todos eles, ou de quase todos, estarem manchados pela sodomia, e foram pegos enlaçados. Contemplai a resplandescente vingança
de Deus!”). - Glaber (ap. Scr. fr., X, 51) observa que, desde a sua chegada nas Gálias, os Normandos tiveram, quase sempre, bastardos como príncipes. – Os
Plantagenetas parecem ter continuado essa raça manchada. Henrique II era ruivo, desfigurado pela gordura enorme de seu ventre mas, sempre à cavalo e na caça (Petr.
Bles. p. 98). Ele era, disse seu secretário, mais violento que um leão (“Leo et leone truculentior, dùm vehementius excandescit”; - NT: Leão e o mais truculento dos
leões, de uma veemência raivosa, p. 75); seus olhos azuis logo se enchiam de sangue, sua tez tornava-se viva, sua voz tremia de emoção (Girald. Cambr., ap. Camden, p.
783). Num acesso de raiva, ele mordeu um pajem no ombro. Humet, seu favorito, tendo-lhe, um dia, contradito, ele o perseguiu até em cima das escadarias e, não
conseguindo alcançá-lo, ele roeu, de cólera, a palha que cobria o soalho. “Nunca”, dizia um cardeal, após uma longa conversa com Henrique, “vi um homem mentir tão
descaradamente” (Ep. S. Thom., p. 566). Sobre seus sucessores, Ricardo e João, vide mais abaixo – O ideal desses monarcas é Ricardo III, o Ricardo III de Shakespeare,
como aquele da história.
[630] “The rusty curb of old father antic the law”, Shak, Parte I, Ato I, Cena II, Rei Henrique IV. (NT: a tradução em português é de Carlos A. Nunes, extraída de
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/henry4.html). O “freio” (curb), na verdade, seria a “barbela”, peça do freio de cavalo, “que serve como um ‘freio de carro’ auxiliando
na diminuição da velocidade, através de uma alavanca criada no puxar das rédeas” (http://www.nucleosemfronteiras.com.br/bridao.htm). A barbela, portanto, é uma peça
que possui uma espécie de rolamento.
[631] (NT): Roberto o Diabo: personagem legendário da Idade Média, cuja história foi redigida por um anônimo, no início do século XIII, relacionando-se, certamente, a
uma tradição oral. Segundo a lenda, a mulher do Duque da Normandia, Inde, desesperada para ter uma criança, findou por ter uma do diabo: assim nasceu Roberto o
Diabo que, tendo crescido, tornou-se um terror para as pessoas e para a sua região, até o dia em que, já adolescente, sua mãe revelou-lhe sua origem diabólica. Ele, então,
mudou de atitude, deixou a Normandia e fez-se passar por louco, seguindo os conselhos de um eremita. Em Roma ou em Bizâncio, ele se fez observar pelo imperador,
integrou sua corte e, em três batalhas contra os Sarracenos, salvou o Império. O imperador ofereceu-lhe a mão de sua filha, mas ele recusou e passou a levar uma vida de
eremita. Alguns autores acreditam ver nele Roberto o Magnífico, Duque da Normandia (pai de Guilherme o Conquistador, avô de Henrique o Ruivo e bisavô de
Henrique o Jovem, Ricardo Coração de Leão e João sem Terra) , já que sua vida tem muitas coincidências com a lenda de Roberto o Diabo, principalmente o caráter
violento, cruel e difícil. (vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Robert_le_Diable).
[632] De Diabolo venientes, et ad Diabolum transeuntes, J. Bromton, ap. Scr. fr. XIII, 215.
[633] Ele arrebata de Luís VII sua mulher Eleonora (da Aquitânia), o Poitou, a Guiana, etc.
[634] Todavia, Luís VII era, sem dúvida, um santo, segundo alguns autores. Lê-se, numa crônica francesa inserida no décimo-segundo volume do Recueil des
Historiens de France, p. 226: “Il fu mors...; sains est, bien le savons” (NT: “Ele morreu... um santo, bem o sabemos) ; e, numa crônica latina (ibid): “... et sanctus
reputatur, prout aliâs in libro vitæ suæ legimus” (NT: “... era reputado santo como, aliás, lemos no livro de sua vida”).
[635] Vide uma carta de Luís VII, ap. Scr. fr. XII, 90: “... ecclesiam parisiensem, in cujus claustro, quasi in quodam maternali gremio, incipientes vitæ et pueritiæ nostræ
exegimus tempora” (NT: “... a igreja parisiense, em cujo claustro, como se ao seio de uma mãe, passamos os primeiros e infantis anos de nossa vida”).
[636] Vide sua vida por Guilherme, monge de Saint-Denis, l. I, c. 8, 9; ap. Scr. fr. XII, 195. – Um poeta fala dele:
Qui dùm Francorum populos cum rege gobernas,
Post regem quasi rex, sceptra secunda tenes.
Vide Caseneuve, Traité du Franc-Aleu, p. 178
(NT: Enquanto o povo Franco com o rei governas,/Depois do rei, quase rei, tens o cetro como o segundo).
Suger provavelmente nascera nas cercanias de Saint-Omer, em 1081, de um homem do povo chamado Helinand – Quando Filipe I confiou aos monges de Saint-Denis a
educação de seu filho Luís o Gordo, o encargo coube a Suger, por determinação do abade. – Sua conduta, como aquela de seus monges, provocou, inicialmente, as queixas
de São Bernardo (Ep. 78, ed. Mabillon); mais tarde, ele levou, por conselho do próprio São Bernardo, uma vida exemplar – Ele próprio escreveu um livro sobre as
construções que mandou fazer em Saint-Denis, etc. “O abade de Cluny, tendo admirado por algum tempo as obras e as construções que Suger mandara fazer e, tendo
retornado à pequena célula que esse homem, iminente amigo da sabedoria, arranjara para sua estadia, conta-se que ele gemeu profundamente e lamentou-se: ‘esse homem
nos condena a todos; ele constrói, não como nós, para si próprio, mas unicamente para Deus’. De fato, todo o tempo que durou sua administração, ele não fez para seu
próprio uso senão esta humilde célula, que mal tinha dez pés de largura por quize de comprimento, e a construiu dez anos antes de sua morte a fim de aí recolher sua vida,
que ele confessava ter dissipado muito tempo com as questões do mundo. Era aí, nas horas livres que possuía, que se dedicava à leitura, às lágrimas e à contemplação; aí,
ele evitava o tumulto e fugia da companhia dos homens do século; aí, como disse um sábio, ele não estava jamais só como quando estava só; aí, em efeito, ele aplicava seu
espírito à leitura dos maiores escritores, não importando a época a que pertencessem, entretendo-se com eles, estudando com eles; aí, ele não possuía para dormir, no lugar
da pluma, senão a palha sobre a qual estendia-se, não um fino lençol, mas um cobertor assaz grosseiro de simples lã que, durante o dia, era coberto por carpetes decentes”.
Vita Sugerii, l. II, c. 9, p. 108.
[637] Anonym. Hist. Franc., ap. Scr. Fr., XII, 116: Et mille trecentæ animæ diversi sexûs et ætatis sunt igne consumptæ (NT: E mil e trezentas almas, de diversos
sexos e idades, foram consumidas pelo fogo).
(NT): Vitry, durante anos, foi chamada de Vitry-a-Queimada ( Vitry-le-Brûlé), depois de ter sido inteiramente destruída pelo fogo por Luís VII (1142) e, mais à frente, por
Carlos V (1544). Seu destino parece ter sido sempre o de sofrer com devastações pois, no século XX, teve danos consideráveis em virtude das duas Guerras Mundiais.
Atualmente, chama-se Vitry-en-Perthois, departamento do Marne, região da Champagne-Marne.
[638] (NT): Seis mil cristãos, na noite de Natal do ano 1144, por ordem de Imad ad-Din Atabeg Zengi (al-Malik al-Mansur), também cognominado Sanguinus.
[639] “Ele, mais tarde, desejou conduzi-la. Persuadido que era necessário poupar novos perigos ao rei dos Franceses e ao exército que retornara da Terra Santa, pois um
e outro mal tinham respirado de suas fadigas, ele incentivou os bispos do reino a se reunirem para deliberar sobre essa questão, exortando-os e encorajando-os a
ambicionarem para si a glória de um sucesso recusado aos reis mais poderosos. Tendo fracassado três vezes nos seus planos junto aos bispos e, reconhecendo bem até
onde iam a fraqueza e a covardia dos mesmos, ele acreditou, à falta de todos os outros, digno de si próprio encarregar-se de cumprir sozinho o voto que ele provocava. Ele
certamente teria preferido esconder, ao menos por um tempo, tudo o que havia de magnífico no devotamento de sua piedade, por causa da incerteza dos eventos e para
evitar que fosse acusado de jactância; mas a imensidão dos preparativos traiu sua munificiência. Então, ele passou a se ocupar com ardor dos meios de enviar à Jerusalém,
pelas mãos dos cavaleiros do Santo Templo, todo o dinheiro necessário ao sucesso de um projeto tão grande, e a tomar esses fundos com a elevação das rendas que sua
administração e sua habilidade haviam trazido a seu monastério; e, obviamente, ninguém poderia ficar indignado com isso se refletisse como os cuidados de Suger fizeram
aumentar os produtos de todas as posses de sua igreja, e como seu monastério, no tempo de sua administração, adquirira novos domínios e aumentado o número de igrejas
dependentes. Todas essas medidas, ele as tomava em aparência, como se pensasse em mandar enviar homens em seu lugar; mas, a verdade é que, se sua vida tivesse sido
prolongada, ele teria ido, de sua própria pessoa, ao Oriente” (Vit. Sugerii, ap. Scr. fr. XII, 101).
[640] Em 1128, ele convence um abade a não partir para pereginar em Jerusalém (Operum, t. I, p. 85; vide também, p. 323). – P. 64: Em 1129, ele escreveu ao bispo de
Lincoln, a respeito de um Inglês chamado Filipe que, tendo partido para a Terra Santa, parara em Clairvaux e aí vestira o hábito: “Philipus vester volens profiscisci
Jerosolymam, compedium viæ invenit, et citò pervenit quò volebat... Stantes sunt jâm pedes ejus in atriis Jerusalem; et quem audierat in Euphrata, inventum in campis silvæ
libenter adorat in loco ubi steterunt pedes ejus. Ingressus est sanctam civitatem... Factus est ergò non curiosus tantùm spectator, sed et devotus habitator, et civis
conscriptus Jerusalem, non autèm terrenæ hujus, cui Arabiæ mons Sina conjunctus est, quæ servit cum filiis suis, sed liberæ illius, quæ est sursum mater nostra. Et si vultis
scire, Claræ-Vallis [NT: Seu Filipe, em seu desejo de alcançar Jerusalém, encontrou uma estrada mais curta e rapidamente alcançou o fim de sua jornada...
pois, agora, seus pés estão nos átrios de Jerusalém; e aquele, de quem ouvira falar do Eufrates, descobriu-o nas clareiras da floresta, onde alegremente adora
no local onde seus pés pararam. Entrou na cidade santa... O fato é que ele se tornou, não somente um curioso espectador mas, também, um devoto habitante e
cidadão soldado de Jerusalém,; não daquela terrena, à qual o Sinai da Arábia está ao lado, servindo-a com seus filhos que libertaram esta última, que é a
nossa mãe. E se desejas saber, seu nome é Clairvaux (Claræ-Vallis)] . – Eis aqui uma passagem de um autor árabe que oferece, com as idéias expressas por São
Bernardo, uma notável analogia: “Aqueles que voam à procura da Caaba quando, enfim, atingem o objetivo de suas fadigas, vêem uma casa de pedra, alta, reverenciada,
no meio de um vale sem culturas; eles aí ingressam a fim de ver Alá; eles o procuram por muito tempo e não o enxergam. Quando, com tristeza, terminam de percorrer a
casa, eles ouvem uma voz acima de suas cabeças: ‘Ó adoradores de uma casa! por que adorar a pedra e o barro? Adorai a outra casa, aquela que os eleitos procuram!”
(este belo fragmento, trazido por um jovem orientalista, M. Ernest Fouinet, foi inserido por M. Victor Hugo nas notas de suas Orientales, p. 416, da primeira edição).
[641] S. Bern., ep. 246, ap. Baron. XII, 321.
[642] Sismondi, Histoire des Français, V. 326; Guilherme de Tiro (l. XVI) diz, de acordo com os testemunhos de vários cruzados, que poderia haver, em cada um dos
dois exércitos, em torno de setenta mil homens armados de couraças, sem contar as pessoas a pé e a cavalaria ligeira – Odon de Deuil vai ainda mais longe: “Ouvi dizer
dos Gregos que os cruzados passaram o mar ao número de novecentos mil quinhentos e sessenta e seis”.
[643] Vide Sismondi, V, 331.
[644] Πούτξη, Αλαμάνε. Joann. Cinnam., l. II, c. 18.
[645] Odon de Deuil: “... e, à sua volta, ele sempre pedia as vésperas e as completas, sempre fazendo de Deus o Alfa e o Ômega de todas as suas obras”.
[646] Odo de Diog., l. VI, p. 64, 69.
[647] “O Imperador”, ele conta, “convidava, por cartas insistentes, o sultão dos Turcos a marchar contra os Alemães”. Vide Bibliothéque des Croisades, III, 406. –
Os Cruzados o chamavam de “o Ídolo de Constantinopla”. Odon de Deuil.
[648] Guill. Neubrig., l. I, ap. Scr. fr. XIII, 102: Se monacho, non regi nupsisse.
[649] Vincent. Belvac., specul. hist., t. III, c. 128, ap. Sism., V, 351.
[650] (NT): ou Estevão da Inglaterra, rei de 1135 a 1154 e irmão de Henrique.

[651] Hallan, Europe au moyen-âge, II, 67. É verdade que essas possessões encontravam-se dispersas: 248 solares na Cornualha, 54 em Sussex, 196 em Yorkshire, 99
no condado de Northampton, etc.
[652] “Nova foresta”: era um espaço de trinta milhas que o Conquistador mandara ser reflorestado, destruindo trinta e seis paróquias e expulsando os habitantes.
(NT: ela existe ainda hoje, sob o nome inglês New Forest, cobrindo áreas do sudoeste de Hampshire que se estendem ao sudeste de Wiltshire e na direção leste
de Dorset. 90% dessa área, até 2005, ainda pertenciam à Coroa e, presentemente, é um Parque Nacional - http://en.wikipedia.org/wiki/New_Forest).
[653] Assim Guilherme o Ruivo e seu sucessor Henrique Beauclerc chamaram, ambos, por algum tempo, os Ingleses contra os partidários de seu irmão primogênito,
Roberto Bota-Curta (Courtheuse). Guill. Malmsb., p. 120, 156. Hoved., 461, Chron. Sax., 193, Math. Paris, 42.
[654] Mirabilis militum mercator et solidator. Suger, vita Lud. Gross., ap. Scr. fr. XII, 12.
[655] Order. Vit., ap. Scr. fr. XII, 635: Hic juvenem fraudulentis stimulationibus inquietavit regem, incitans ut totius Angliae reviseret descriptionem, Anglicaeque telluris
comprobans iteraret partitionem, subditisque recideret tam advenis quam indigenis, quidquid inveniretur ultra certam dimensionem (NT: Com suas insinuações
fraudulentas, ele inquientou o rei que, então, o encarregou de verificar e renovar a partilha do território e de suprimir de seus súditos, fossem estrangeiros,
fossem indígenas e pobres, tudo aquilo que, em suas posses, ultrapassasse certa medida. – a partir do texto em francês em
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/vital/normands20.htm).
[656] Id. ibid.: “Unde a Rodberto, dispensatore regio, Flambardus cognominatus est, quod vocabulum ei secundum mores ejus et actus quasi prophetice collatum est.
Flamma quippe ardens multis factis intulit genti novos ritus, quibus crudeliter oppressit populorum coetus, et Ecclesiae cantus temporales mutavit in planctus [NT: O que
fez com que Roberto, dispenseiro (prefeito) do rei, o cognominasse Flambardus, apelido que lhe foi dado como que profeticamente por causa de seus hábitos e
atos. Ardente como a chama (flamma), ele fez, por suas ações, que a nação tivesse de aceitar novos costumes, oprimindo cruelmente as reuniões do povo e
transformando em lamentos os cantos da igreja – ibid.]
[657] Vide a bela narrativa de Thierry, t. III, p. 338, segs.
(NT): Transcreve-se a narrativa mencionada pelo Autor ( Histoire de la conquête de l’Angleterre par les Normands , vol. 2, p. 293/294, 5ª ed., 1835, disponível em
Google Books): “Henrique, o irmão do rei, Guilheme de Breteuil e vários outros chefes o acompanharam à floresta: os caçadores se dispersaram, mas Gaultier Tirel
permaneceu perto dele e seus cães caçaram juntos. Ambos estavam em seus postos, face a face, as flechas nos arbaletes e os dedos nas travas, quando um grande cervo,
acossado pelos batedores, avançou entre o rei e seu amigo. Guilherme atirou, mas a corda de seu arbalete, tendo se rompido, a flecha não partiu, e o cervo, assustado com
o barulho, parou, olhando para todos os lados. O rei fez sinal para que seu companheiro atirasse, mas ele nada fez, seja porque não visse o cervo, seja porque não
entendesse os sinais do rei. Então, Guilherme, impaciente, gritou alto: ‘Atira Gaultier, atira logo, pelo diabo!’. E, no mesmo instante, uma flecha partiu, não se sabe de
Gaultier ou de alguma outra pessoa, vindo a atingi-lo no peito; ele tombou sem pronunciar uma palavra e expirou. Tirel correu até ele mas, encontrando-o sem respiração,
tornou a montar seu cavalo, galopou na direção da costa, passou à Normandia e, daí, para as terras da França.
Ante o primeiro ruído da morte do rei, todos aqueles que assistiam à caça deixaram rapidamente a floresta para correr para seus próprios negócios. Seu irmão Henrique se
dirigiu a Winchester e ao tesouro real, enquanto o cadáver de Guilherme o Ruivo ficou por terra, abandonado como, outrora, o do Conquistador. Os carvoeiros, que o
encontraram atravessado pela flecha, o puseram sobre sua carroça e o envolveram em dois lençóis de linho, através dos quais o sangue pingou sobre todo o caminho. Foi
assim que os restos mortais do segundo rei Normando da Inglaterra chegaram ao castelo de Winchester, onde Henrique já havia chegado e ordenava, imperiosamente, as
chaves do tesouro real. Enquanto os guardas hesitavam, Guilherme de Breteuil, tendo deixado a floresta, chegou esbravejando para se opor a tal ordem: ‘Tu e eu’, ele
disse, ‘devemos nos lembrar lealmente da fé que engajamos ao duque Roberto, teu irmão; ele recebeu nosso juramento de homenagem; ausente ou presente, ele tem
direito’. Uma querela violenta iniciou-se; Henrique levou a mão à espada e, logo, com a ajuda de uma multidão que se reunia em volta, ele se apossou do tesouro e dos
ornamentos reais”.
[658] Order. Vit., ap. Scr. fr. XII, 621: “Aequanimis esto, fili, et confortare in Domino. Pacifice patere ut majores fratres tui praecedant te. Robertus habebit
Normanniam, et Guillelmus Angliam. Tu autem tempore tuo totum honorem, quem ego nactus sum, habebis, et fratribus tuis divitiis et potestate praestabis” (NT: Contenta-
te com isto, filho, e conforta-te no Senhor. Sofre pacificamente que teus irmãos mais velhos te precedam. Roberto terá a Normandia e Guilherme a Inglaterra.
Quanto a ti, terás, quando teu tempo chegar, tudo o que adquiri e, então, sobrepujarás teus irmãos em riqueza e em poder – a partir do texto em francês em
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/vital/normands19.htm).
[659] “Proponho-me”, ele lhes afirmou, “a manter vossas antigas liberdades; eu o farei, se desejardes, um escrito assinado pela minha mão e eu o confirmarei por
juramento”. – Redigiu-se a carta e dela se fez tantas cópias quantos eram os condados. Mas, quando o rei se retratou, ele as recuperou todas, com exceção de três”.
Math. Paris, p. 42, Thierry, III, 344.
[660] Math. Paris, p. 50. Lingard duvida disso pois nenhum contemporâneo fez menção à crueldade. Mas aquele que permitiu vazarem os olhos de suas netas (Ord. Vit.,
loc. cit., p. 717, Angl. Sacra, II, 699) e que mandou que sua filha passasse o inverno, seminua, numa fossa congelada, merece ele, ainda, o benefício da dúvida?
[661] Huntingdon, ap. Scr. fr. XII, 910. Hoveden, ibid. 315. Era Roberto, revoltado contra seu pai, e que o combateu sem saber quem ele realmente era. Reconciliados,
eles romperam ainda uma vez e Guilherme amaldiçoou seu filho. Math. Paris, p. 10.
[662] Order. Vit., ap. Scr. fr. XII, 716: “... sagitam ad patrem traxit”.
[663] (NT) Teobaldo (1201 - 1253), cognominado o Trovador e o Póstumo, foi, desde seu nascimento, conde de Champagne (Teobaldo IV) e, a partir de 1234, rei de
Navarra (Teobaldo I) - http://pt.wikipedia.org/wiki/Teobaldo_I_de_Navarra.
[664] Bened. Petroburg., p. 167 – Ele comprou a Marche por quinze mil marcos de prata. O conde partia para Jerusalém e não sabia o que fazer de suas terras.
Gaufred. Vosiens., ap. Scr. fr. XII, 447.
[665] Vide a narrativa de Thierry, t. III, p. 86.
(NT): Em poucas palavras, por volta de 1189, Henrique de Sully, sobrinho do rei, administrava o convento de Glastonbury, situado no lugar onde uma (das três ou quatro)
tradição popular contava que Artur, o grande chefe câmbrio, se retirara para aí aguardar a cura de suas feridas. Esse abade tornou público, repentinamente, que um bardo
do país de Pembroke recebera revelações sobre a sepultura de Artur e, assim, foram iniciadas grandes escavações no interior do monastério de Glastonbury (com o
cuidado de cercar o terreno com tapumes e afastar as testemunhas suspeitas). A descoberta logo ocorreu e foram encontrados dois esqueletos, um de grande estatura e
outro mais esbelto, além de uma inscrição latina sobre uma cruz de chumbo onde estava gravado “Hic jacet sepultus inclitvs rex Arturius in insulis Avalonia cum
Wenneveria uxore cum sua secunda in insula Avallonia” [Aqui jaz o renomado Artur enterrado com Winnever (Güinever), sua segunda esposa, na ilha de Avalon]. Há
fundadas suspeitas de se tratar de uma fraude a fim de que o monastério obtivesse fundos e renome, em virtude de um incêndio que o destruíra no ano 1184.
[666] Abb. Urspegensis chron., ap. Savigny; Geschichte des Rœmischen rechts im Millelalter, IV, 10: Dominus Wernerius libros legum, qui dudùm neglecti fuerant, ad
petitionem Mathildæ comitissæ renovavit (NT: O senhor Wernério lê livros, que foram negligenciados, cuja leitura foi renovada a pedido da condessa Matilda).
(NT): Trata-se de Irnerius (c. 1050-1125), cognominado lucerna juris (lanterna ou farol da lei), jurista italiano, fundador da Escola dos Glosadores e, portanto, quem
iniciou a construção do Direito Romano Medieval a partir do Código Justiniano (Corpus Juris Civilis), na Universidade de Bolonha, sua cidade natal. A pedido da
condessa Matilda, dedicou-se ao estudo da jurisprudência tendo o Código Justiniano como guia. Passou séculos esquecido até que revivido pelos historiadores alemães do
século XIX. Seu nome também é grafado como Hirnerius, Hyrnerius, Iernerius, Gernerius, Garnerius, Guarnerius, Warnerius, Wernerius, Yrnerius (ele assinava
Wernerius) – a partir de http://en.wikipedia.org/wiki/Irnerius.
[667] Todo o clero de Angers era composto por juristas, nos séculos XIII e XIV. Sob o episcopado de Guilherme o Prefeito ( Guillaume Le Maire), 1290-1314, quase
todos os cônegos de sua igreja eram professores de direito. Bodin, Recherches sur l’Anjou , II, 232. Quatro, entre 19 bispos, que formaram a assembléia do clero, em
1339, haviam ensinado Direito na Universidade de Angers. Ibid., 233.
[668] Robert de Monte, ap. Savigny, Rœmischen recht etc., IV, 10 – Order. Vit., ap. Scr. fr. XI, 242: “O renome de sua ciência espalhou-se por toda a Europa e
numerosos discípulos da França, da Gasconha, da Bretanha, de Flandres, acorreram para ouvi-lo.
[669] Radevicus, II, c. 4, ap. Gieseler, Kirchengeschichte, II, p. 2, p. 72. Scias itaque omne jus populi in condendis legibus tibi concessum, tua voluntas jus est, sicuti
dicitur: “Quod principi placuit, legis habet vigorem, cùm populus ei et in eum omne suum imperium et potestatem concesserit”. – O conselheiro de Henrique II, o célebre
Ranulfo de Glanville, repete essa máxima (de leg. et consuet. reg. anglic., in proem.)
[670] Radevicus, ibid.
[671] Acta SS. ord. S. Bened.: Quandò gloriosus rex Willelmus morabatur in Normanniâ, Lanfrancus erat princeps et custos Angliæ, subjectis sibi ominibus principibus.
(NT: Quando o glorioso rei Guilherme permanecia na Normandia, Lanfranc era príncipe e guardião dos Anglos, sujeitando todos os demais príncipes).
[672] Lingard, II, 318 – Vita quadrip, p. 6: Juri civili operam dedit (NT: Ele estudou direito civil) . J. de Salisbury (Epistolæ, p. 47, et ap. Scr. fr. XVI, 510) parece
reprovar a Becket carregar, na sua querela com o rei, o espírito de um jurista mais do que o de um padre: “... Proindè consilium meum... et summa precum est, ut vos totâ
mente committatis ad Dominum et orationum suffragia; ... differte interim omnes alias occupationes... Prosunt quidem leges et canones; sed mihi credite quia nunc non erit
his opus... Quis à lectione legum aut etiam canonum compunctus surgir? Mallem vos psalmos ruminare, et B. Gregorii morales libros resolvere, quàm scholastico more
philosophari, etc...” (NT: "Portanto, o meu conselho, .... e meu mais sincero pedido, é que deveis comprometer-vos inteiramente com o Senhor .... deixai, por
enquanto, todos os outros estudos .... leis e cânones são, na verdade, proveitosos; mas, crede em mim, eles não são agora necessários. Quem sobe a partir da
leitura de leis e cânones com a sua consciência arrependida? . . . . Eu preferia, antes, que meditásseis sobre os Salmos e ruminásseis sobre os escritos morais
do beato Gregório a que filosofásseis à moda escolástica, etc.”).
[673] Ela não sabia senão duas palavras inteligíveis pelos habitantes do Ocidente: Londres e Gilberto, o nome de seu amante. Com a ajuda da primeira, ela embarcou
para a Inglaterra; chegando em Londres, corria as ruas repetindo “Gilberto, Gilberto”, e ela encontrou aquele a quem chamava. Brompton, p. 1054. Thierry, Conq. de
l’Angleterre, III, 112.
[674] Radulph. Niger, ap. Lingard, II, 315: Servis generosas copulans, pedaneæ conditionis fecit universos [NT: Servos e nobres copulam (se casam), de todos fez
condição subalterna].
[675] Brompton, Chron., p. 1058. J. Sareberiensis ep. (ap. Epist. S. Thomæ, edid. Lupus, 1682, p. 414).
[676] Scr. fr. XIV, 452: Filii sui Henrici tutorem fecit et patrem.
[677] Newbridg. II, 10. Chron. Norm. Lingard, II, 325: “O leitor verá, sem dúvida com prazer, com qual aparato o chanceler viajava na França. Quando entrava em
alguma cidadezinha, o cortejo abria-se com duzentos e cinquenta jovens cantando músicas nacionais; em seguida, vinham os cães encoleirados. Estes eram seguidos de
oito carruagens, cada uma puxada por cinco cavalos e conduzida por cinco cocheiros em vestes novas. Cada carruagem era coberta de peles e protegida por dois guardas
e um grande cão, ora em liberdade, ora acorrentado. Duas dessas carruagens estavam carregadas de tonéis de cerveja para distribuir ao populacho; uma outra carregava
todos os objetos necessários à capela do chanceler, uma outra, ainda, o mobiliário de seu quarto de dormir, uma terceira com a sua cozinha, uma quarta levava sua louça de
prata e seu guarda-roupas, as duas outras eram destinadas ao uso de seus criados. Depois delas, vinham doze cavalos suntuosos, sobre cada qual havia um símio que vinha
sobre os joelhos do ginete que o cavalgava; apareciam, em seguida, os escudeiros carregando os escudos e conduzindo os cavalos de guerra de seus cavaleiros; depois,
ainda, outros escudeiros, as crianças dos nobres, os falcoeiros, os oficiais da casa, os cavaleiros e os eclesiásticos, dois a dois e à cavalo e, o último de todos, enfim,
chegava: o próprio chanceler, Thomas Becket, conversando com alguns amigos. Quando passava, escutava-se os habitantes do país espantarem-se: ‘Que homem deve ser,
então, o rei da Inglaterra, quando seu chanceler viaja com tal equipagem?!”. Steph., 20, 2.
[678] O predecessor de Becket, no sítio de Canterbury, escrevia-lhe: (Bles. epist. 78) In aure et in vulgis sonat vobis esse cor unum et animam unam (NT: Para todos,
as vossas vozes e vossas almas soam como uma única). – Petrus Cellensis (Marten. Thes. anect. III): Secundum post regem in quatuor regnis quis te ignorat: (NT:
Quem ignora que tu és o segundo do rei nos quatro reinos?) – O clero também escreveu a Thomas: In familiarem gratiam tàm latâ vos mente suscepit, ut dominationis
suæ loca quæ boreali Oceano ad Pyrenæum usquè porrecta sunt, potestati vestræ cuncta subjecerit, ut in his solum hos beatos reputarit opinio, qui in vestris poterant oculis
complacere (NT: Sua afeição é tão ilimitada, que ele quis que fostes dono de tudo a ele sujeito, desde o oceano do norte até os Pirineus, de modo que, apenas
são considerados afortunados aqueles que encontraram graça aos vossos olhos). Epist. S. Thom., p. 190.
[679] Foi o único inglês, até hoje, eleito Papa (NT: assim em 1833 como em 2013).
[680] “Citissimè à me auferes animum; et gratia, quæ nunc inter nos tanta est, in atrocissimum odium convertetur” (NT: Sinceramente, tirar-me-ás a alma tão
rapidamente quanto possível; e a graça, que entre nós é tão grande, converter-se-á em atrocíssimo ódio). Script. fr. XIV, p. 453.
[681] S. Dunstan, arcebispo de Canterbury, repreendeu Edgar e obrigou-o a fazer penitência. Ele acrescentou duas cláusulas ao seu acordo de reconciliação: 1ª) que o
rei publicaria um código de leis que trouxesse mais imparcialidade na administração da justiça; 2ª) que o rei mandaria copiar e distribuir nas províncias, às suas próprias
expensas, cópias das santas escrituras para a instrução do povo. – Deveras, segundo Lingard, o verdadeiro texto de Osbern deveria ser: “... Justas legum rationes sanciret,
sancitas conscribere!, scriptas per omnes fines imperii sui populis custodiendas mandaret (que ele deve promulgar leis justas e, quando sancionadas (ratificadas),
mandar distribuir cópias por todo o seu império) , ao invés de sanctas conscriberet scripturas (mandar distribuir cópias das Santas Escrituras). – Lingard,
Antiquités de l’Église anglo-saxonne, I, p. 489.
[682] Vita. S. Lanfranci, ap. Acta SS . ord. S. Bened.
[683] Spence, Origin of the Laws of Europa, 1826, p. 452. “Præcepit rex comitatum absque mora considere, et homines comitatûs omnes Francigenos, et præcipua
Anglos in antiquis legibus et consuetudinibus peritos, in unum convenire. Qui cùm convenerunt apud Penendinam, omnes consederunt, et totus comitatus per tres dies fuit ibi
dentetus – et ab omnibus illis probis et sapientibus hominibus qui affuerunt, fui ibi diratiocinatum et etiam toto comitatu concordarum et judicatum: quod sicut ipse rex tenet
liberas et quietas in suo dominico, ità archiepiscopus Cantuarberiæ tenet suas. Huic placito interfuerunt Gorsfridus episcopus Constansiensis, qui in loco regis fuit, et
justitiam illam tenuit comes Cantiæ, etc. Ricardus de Tunebrigge, etc.
(NT): O episódio é conhecido como o Julgamento de Penenden Heath (Trial of Penenden Heath ), provavelmente no ano de 1076, envolvendo uma disputa entre Eudes
(Odo), bispo de Bayeux e irmão de Guilherme o Conquistador, e Lanfranc, arcebispo de Canterbury. Penenden é um subúrbio da cidade de Maidstone, no Kent. Como diz
o próprio nome “heath”, encontra-se num local formado por charnecas e matagais, com muito espaço livre, o que fez dele o local preferencial das assembléias e execuções
durante a Idade Média – vide, a respeito: http://en.wikipedia.org/wiki/Penenden_Heath e http://en.wikipedia.org/wiki/Trial_of_Penenden_Heath
[684] Anglia sacra, t. II, p. 162: Martyr mihi videtur egregius qui mori maluit... sic ergò Johannes pro veritate, sic et Elphegus pro justitiâ.
[685] Lingard, II, 355: Os conselheiros do rei atribuíram a Becket o projeto de tornar-se independente. Relatou-se que ele dissera a seus confidentes que a juventude de
Henrique pedia um mestre e que sabia quão necessário ele próprio era a um rei incapaz de segurar, sem sua assistência, as rédeas do governo.
[686] (NT): Cotereaux: “Corta-gargantas”. O Rei da Inglaterra, irritado com a sublevação na Bretanha, no século XII, enviou os Brabanções para devastar as terras de
Raul de Fourgères. Esses “corta-gargantas” levavam facas (couteaux) consigo, de onde tiraram seu apelido (E. Cobham Brewer, 1810–1897, Dictionary of Phrase and
Fable, 1898 – a partir de http://www.bartleby.com/81/4183.html).
[687] Henrique II endereçara-lhe, por dois de seus magistrados, instruções ainda mais duras que os Costumes de Clarendon. Vide a carta do Bispo, ap. Scr. fr. XVI,
216. – Vide, também (ibid., 572, 575, etc.), as cartas que João de Salisbury escreveu para deixá-lo ao corrente do estado dos negócios de Thomas Becket. – Em 1166, o
bispo de Poitiers cedeu e fez a paz com o Henrique II. Joan. Saresber, epist., ibid. 523.
[688] Eleito bispo, em 1176, pelos monges de São David, no condado de Pembroke (País de Gales), e expulso por Henrique II, que pôs em seu lugar um Normando;
reeleito, em 1198, pelos mesmos monges, e novamente expulso por João Sem Terra. Mui fracamente apoiado, ele fracassou em sua luta corajosa pela independência da
igreja gaélica; mas sua pátria guardou-lhe um profundo reconhecimento. “Tanto quanto durar nosso país”, disse um poeta gaélico, “aqueles que escrevem e aqueles que
cantam lembrar-se-ão da tua nobre audácia”.
[689] Salisbury faz parte do país de Kent, mas não do condado de mesmo nome (NT: nota tomada emprestada à tradução em inglês: O Autor certamente quis dizer que
Salisbury, eclesiasticamente falando, está na província de Canterbury). Ao tempo do arcebispo Teobaldo, João de Salisbury foi acusado de todas as tentativas da igreja de
Canterbury para reconquistar seus privilégios. Ele escreveu, em 1159: “Régis tota in me incanduit indignatio... Quòd quis nomen romanum apud nos invocat, mihi imponunt,
quòd in electionibus celebrandis, in causis ecclesiasticis examinandis, vel umbram libertatis audet sibi Anglorum ecclesia vindicare, mihi imputatur, ac si dominum
Cantuariensem et alios Episcopos qui facere oporteat solus instruam...”, J. Sareber, epist., ap. Scr. fr. XVI, 496 (NT: “Toda a indignação real cai sobre mim... se o
nome de Roma é invocado por alguém, isso me é imputado; e se a igreja anglicana ousa clamar uma sombra de liberdade, seja na condução das eleições, seja
no exame das causas eclesiásticas, tudo me é imputado, como se eu, sozinho, tivesse instruído meu senhor de Canterbury e os outros bispos sobre o que
fazer”). Em seu Policracticus (Leyde, 1639, p. 206), ele adianta que é medida de equidade e justiça elogiar o tirano a fim de enganá-lo e matá-lo (Aures tyranni
mulcere... tyrannum occidere.. æquum et justum). – No caso de Thomas Becket, sua correspondência trai um caráter interesseiro (ele sempre se inquieta do confisco de
suas propriedades, Scr. fr. XVI, 508, 512, etc.), irresoluto e medroso, p. 509; ele frequentemente pede para que intercedam a seu favor junto a Henrique II, p. 514, etc., e
dá a Becket tímidos conselhos, p. 510, 527, etc. Ele pouco parece se importar com as consequências. Esse defensor da liberdade não dá ao livre arbítrio senão o poder de
escolher o mal (Policracticus, p. 97). Não se deve tirar nenhuma conclusão precipitada sobre o fato dele ter estudado com Abelardo; ele elogia São Bernardo e seu
discípulo Eugênio III (ibid., p. 311).
[690] (NT): Saint Thomas Becket: em português, há as denominações: São T(h)omás Becket, T(h)omas de Cantuária (Canterbury) ou T(h)omas de Londres.
[691] Quando, na sequência do desembarque na França, percebeu alguns jovens, dentre os quais havia um que possuía um falcão, Becket não pôde se impedir de ir,
afobadamente, até a ave para vê-la; um ato que quase traiu sua baixa extração social. Talvez, disse o autor, o temor que sentira em seguida, tenha lavado o pecado de sua
vaidade. Vita quadripartita, p. 65.
[692] Vita quadrip., p. 41: “... De pastore avium sum pastor ovium. Dudùm fautor histrionum et canum sectator, tot animarum pastor... Undè et planè video me jàm à
Deo derelictum”.
Dùm igitur dolor eum sic urgeret, exitus aquarum deduxerunt oculi ejus, inter continuas lacrymas singultibus crebrò erumpentibus (NT: Assim, tão esmagado pela dor ele
estava, que torrentes de lágrimas corriam de seus olhos, e ele continuou chorando e soluçando amargamente).
[693] Ibid., p. 109: “... et certè omnia traderem in manus tuas” (NT: “... e ainda por todas as coisas que entregarei em tuas mãos). . – Et post dies Archiepiscopus
hoc regis verbum Heriberto de Bosaham retulit adjiciens: “et cum rex mihi dixisset sic, recordatus sum verbi illius in evangelio: ‘Hæc omnia tibi dabo, si cadens adoraveris
me”. [NT: O bispo, lamentando as palavras do rei para Heriberto de Bosaham, acrescentou: “Quando então o rei falou, lembrei-me das palavras do
evangelista: ‘Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” - (Mt. 4, 9)].
[694] (NT): O Autor deveria estar se referindo ao livro do padre Valentin Marée (1656), chamado (mantendo-se a grafia original do velho francês) Traicté des
conformités du disciple avec son maistre, c’est-à-dire de St. François avec Jésus-Christ (Tratado das conformidades do discípulo com seu mestre, ou seja, de São
Francisco com Jesus Cristo).
[695] Joan. Saresber, ap. epist. S. Thomæ, p. 233: “... de cantuariensis archiepiscopo gravíssime conquerens, non sine gemitibus et suspiriis multis. Et lacrymatus est,
dicens quod Cantuariensis et corpus et animam pariter auferret” (NT: e, gravemente, reclamava do arcebispo de Canterbury, não sem muitos gemidos e suspiros. E,
lacrimoso, dizia querer tirar, juntos, a alma e o corpo do arcebispo de Canterbury).
[696] Vita quadrip., p. 58: “Dixit: ‘Sinite pauperes Christi... omnes intrare nobiscum, ut epulemur in Domino ad invicem’. Et impleta sunt domus et atria circumquaque
discumbentium” (NT: “Ele disse: ‘Deixai os pobres de Cristo... que todos entrem conosco, e que festejemos no Senhor’. E sua casa encheu-se e, às mesas postas
no átrio, foram convidados”).
[697] Epist. S. Thom., p. 189: “Erat quidem nobis solatio, quod... famâ divulgante pervenit, vos in transmarinis agentem nihil altum sapere, vos in dominum nostrum
Regenm nullâ machinatione insurgere, etc”. (NT: Ficamos de alguma forma confortados quando ouvimos que cruzastes o mar e que não procurais qualquer
projeto ambicioso, nem tramais alguma maquinação contra nosso senhor o Rei).
[698] “Ele usava o cilício e se flagelava. Ele obteve de um irmão um outro repasto que não o saboroso que lhe serviam, e aquele trazia-lhe a ração ordinária dos monges
e, desde então, com ela contentou-se. Mas esse regime, tão contrário aos seus hábitos, logo deixou-o gravemente enfermo”, Vita quadrip., p. 83
[699] Gervas. Cantuar., ap. Scr. fr. XIII, 132: Rex Franciæ dixit: Ite, dicite domino vestro (Henrico), quia, si ipse consuetudines quas vocat avitas nonvult dimittere, nec
ego veteranam regum Franciæ libertatem volo propellere, quæ cunctis exulantibus, et præcipuè personis ecclesiasticis [NT: O Rei da França disse: Ide dizer a vosso
senhor (Henrique), que se ele quer realmente abandonar seus constumes ancestrais, eu quero a liberdade de levá-lo, como o veterano reino da França o faz
durante todo o tempo de exílio e, principalmente, para os eclesiásticos].
[700] Id. ibi., p. 128: Dicente lectore: “Quondam episcopum”, quæsivit quis eum deposuisset, et ait: “Ego quidem rex sum, siout et ipse; nec tamen possum terræ meæ
minimum quemdam clericum deponere”.
[701] Scr. fr. XVI, 215: Pileum de capite projecit, balteum discinxit, vestes longius abjecit, stratum sericum quod erat supra lectum manu propriâ removit, et cœpit
stramineas masticare festucas.
[702] Friderici ep. ap. Epist. S. Thom., p. 108, 110: Legati regis anglici... ex parte regis et baronum ejus apud Witzeburgh juraverunt quod... papa Paschalem, quem nos
tenemus, et ipse tenebit... – Vide também a carta de Henrique, ibid. p. 106, e aquela de João de Salisbury, p. 341.
[703] J. Saresber., ap. Scr. fr. XVI, 584: Cùm Papam blanditiis et promissis dejicere non prævalerent, ad minas conversi sunt, mentientes quod rex eorum Noradini citiùs
sequeretur errores et profanæ religionis iniret consortium quam in ecclesià Cantuariensi Thomam pateratur diutiùs episcopari.
[704] J. Saresber, ap. Scr. fr. XVI, 602, Epist. S. Thom., p. 602 – Becket lamentava-se para o bispo de Óstia: “Quid civitatibus Italiæ nocuimus unquàm? In quo læsimus
sapientes Bononiæ! Qui verò, sollicitati precibus et promissis... noluerunt dare consensum. (NT: Como poderíamos, algum dia, ter injuriado a Itália? Como os eruditos
Bolonheses que, deveras solicitados por pedidos e promessas, puderam aceitá-lo?).
[705] Scr. fr. XVI, 312: Ovans quod Herculi clavam detraxisset. – Ibid., 593: Quia nunc D. Papam et omnes cardinales habet in bursâ suâ.
[706] Vita quadrip., p. 85: “Ô religio, ô religio, ubi es? Ecce enim quos credebamus sæculo mortuos, etc..” – Vide também Gervásio de Canterbury, ap. Scr. fr. XII, 130;
Luís despachou uma escolta de trezentos homens para proteger o arcebispo.
[707] Ep. S. Thom., p. 424 – Em Montmirail, Henrique se remeteu, ele, seus filhos, suas terras, seus homens, seus tesouros, à discrição de Luís. J. Saresber., ap. Scr. fr.
XVI, 595.
[708] Persecutor noster... adjecit: Salvis dignitatibus suis . Ep. S. Thom., p. 504 – Salvo in omnibus ordine suo et honore Dei et sanctæ Ecclesiæ. Roger de
Hoveden, p. 492. Ep. S. Thom., p. 562 e segs. Vita quadrip., p. 95 – Nossos pais, ele disse, sofreram porque não quiseram calar o nome do Cristo e, eu, para recuperar o
favor de um homem, eu teria de suprimir a honra de Deus! Nunca! Nunca! Gervas. Cant., ap. Scr. fr. XIII, 132.
[709] Mas Luís arrependeu-se de ter abandonado Becket; poucos dias depois, ele mandou chamá-lo. Becket veio com alguns dos seus, pensando que iriam intimá-lo da
ordem de deixar a França – Invenerunt regem tristi vultu sedentem, nec, ut solebat, Archiepiscopo assurgentem. Considerantibus autem illis, et diutiùs facto silentio, Rex
tandem, quasi invitus abeundi daret licentiam, subitò mirantibus cunctis prosiliens, obortis lacrymis projecit se ad pedes archiepiscopi, cum singultu dicens: “Verè, ait, tu solus
vidisti. Nos omnes cæci sumus... Pœniteo, pater ignosce, rogo et ab hâc culpâ me miserum absolve: regnum meum et meipsum ex hâc horâ tibi offero (NT: Encontrando
o rei com um semblante triste, este nem se ergueu, como de hábito, para o arcebispo. Eles todos permaneceram parados se olhando e, depois de um longo
silêncio, como se estivesse pronto a dispensá-lo, o rei, repentinamente, para a surpresa de todos os presentes, lançou-se, com uma emocionada torrente de
lágrimas, aos pés do arcebispo, e soluçou: “Meu senhor e pai, apenas tu viste bem”. E exclamou com suspiros: “Em verdade, apenas tu viste bem. Nós todos
estivemos cegos... Arrependo-me, pai; perdão, e te peço para absolver minha miserável falta. A partir de agora, eu e meu reino somos teus”).
[710] Foi Lanfranc quem construiu, de acordo com a ordem de Guilherme o Conquistador, a igreja de Saint-Étienne de Caen, último e magnífico produto da arquitetura
romana. (NT: Trata-se da igreja Saint-Étienne-le-Vieux – que não deve ser confundida com a igreja Saint-Étienne, que está nas proximidades. A igreja em
referência ainda existe, embora sua nave tenha sido destruída por um obus alemão, durante a II Guerra Mundial; a partir de então, os trabalhos de
restauração se encerraram. Ainda assim, ela continua “magnífica”.
[711] Vita quadrip., p. 102-103. Pater filio dignatus est ministrare, e se regem non esse protestari (NT: O pai dignou-se servir o filho e assegurou que não deveria
mais ser rei). Epist. S. Thom., p. 676, 790.
[712] Via Romana: M. Thierry não tomou essa palavra em seu senso místico. Ele traduziu: “a viagem para a Roma”.
[713] Epist. S. Thom., p. 772-773, et Scr. fr XVI, 417: Nescio quo pacto pars Domini semper mactatur in Curiâ, ut Barrabbas evadat et Christus occidatur... Jàm in
finem sexti anni proscriptio nostra... Utinâm via Romana non gratis Peremisset tot miseros innocentes!
[714] Scr. fr. XVI, 563: Ne ulteriùs dilationes suas frustratorias prorogaret. Vide também Epist. S. Thom., p. 597.
[715] Gervas. Cant., ap. Scr. fr. XIV, 134. Vit. quadrip., p. 107. Epist. S. Thom., p. 804.
[716] Escolhera-se esta missa porque nela não se trocava o beijo da paz durante o Evangelho, como nos outros ofícios. Vit. quadrip. p. 109.
(NT): o “beijo da Paz”, após a leitura do Evangeho, foi substituído pelo “sinal da paz”, ocasião em que as pessoas se cumprimentam desejando-se “a paz de Cristo”. Vide o
artigo O modo de comunicar o sinal da paz na Santa Missa em http://ars-the.blogspot.com.br/2012/05/o-modo-de-comunicar-o-sinal-da-paz-na.html.
[717] Vit. quadrip., p. 102: Accessit ad eum de clericis suis, dicens... Cui archiepiscopus sic respondit: “Utinàm vel meo sanguine liberetur!”.
[718] Vide, entretanto, em Hoveden (apud Scr. Anglicos post Bedam, 1601, Francofurti, p. 520), a vida austera e mortificada que o santo levava. Sua mesa era
esplêndida e, no entanto, ele não tomava senão o pão e a água. Ele orava à noite e, de manhã, despertava todos os seus. Ele pedia para aplicaram-lhe, à noite, três ou cinco
açoites de disciplina, outros tantos durante o dia.. etc.
[719] Vita quadrip., p. 86: Subridens abbas inquit: ... Quid esculento, temulento, et martyri... Archiepiscopus inquit: Fateor, corporeis volupttatibus indulgeo; bonus tamen
Dominus, qui justificat impium, indigno dignatus est revelare mysterium.
[720] Vita Quadrip., p. 111: “Terram Angliæ video, et favente Domino terram intrabo, sciens tamen certissimè, quod mihi immineat passio”.
[721] Vit. quadrip., p. 112: In navi vexillo Crucis, quod archiepiscopi Cantuarienses coràm se semper bajulare consueverunt, erecto,... videres turbam pauperum, ... alios
se humi prosternentes, ejulantes, hos plorantes, illos præ gaudio, et omnes conclamantes: Benedictus qui venit, etc. – P. 113: Diceres Dominum secundò ad Passionem
appropinquare... et venire iterùm moriturem in Christo Domini pro anglicanâ ecclesiâ Cantuariæ, qui Hierosolymis pro totius mundi salute in se ipso semel mortuus est. – J.
Saresber, ap. Scr. fr. XVI, 614: Plebs... sic de recepto pastore gavisa est, ac se de cœlo inter homines Christus ipse descenderet (NT: A plebe... regozijou-se com seu
pastor recuperado, como se o próprio Cristo tivesse descido do céu para entre os homens).
[722] Vit. quadrip., p. 119: “Unus homo, qui manducavit panem meum, levavit contrà me calcaneum suum? Unus homo, qui manticato jumento et claudo, primò prorupit
in curiam, depulso regum stemmate, videntibus vobis fortunæ comitibus, triumphans exultat in solio!” – “Omnes quos nutriverat... maledixit, quod de sacerdote uno non
vindicarent...”. Ibid., etc. J. Saresber, epist., ap. scr. fr. XVI, 519.
[723] Vit. quadrip, p. 121: ... Salutati, ut moris erat, à nonnullis in introitu considentibus, resalutatis eis, sod voce submissâ... et considentes antè pedes ejus in terrâ... per
moram aliquantulam compresserunt silentio, innocentissimo Christo Domini nihilominùs tacente.
[724] Vit. quadrip., 126: ... Ad hanc vocem unus illorum: “Minæ, Minæ. Etiamsi totam terram interdicto subjicies, et nos omnes excommunicabis...” Illis igitur exilientibus,
et iræ et conviciis frena laxantibus, chirotecas contorqentibus, brachia furiose jactantibus, et tàm gestibus corporum quam vehementiâ clamorum manifesta insaniæ indicia
dantibus, archiepiscopus etiam surrexit.
[725] Ibid: ... “Quid est hoc? Numquid me fugâ labi velle putatis?... – Satellites inquiunt: “Verè, verè, volente Deo, non effugies”.
[726] Ibid. ... Secutus est eos usque ad ostium lami, Hugonem de More Villâ, qui cæteris, sicut nobilitate generis, ità et virtute rationis debebat præminere, ut secum
reversus loqueretur, inclamans.
[727] Vit. quadrip., p. 180 – Com exceção dessa passagem, todo o parágrafo foi tomado emprestado, literalmente, de M. Thierry, t. III, p. 211-214.
[728] Vit. quadrip., p. 133: ... “Modò sit rex, modò sit rex”. Et in hoc similes illis qui Domino in cruce pendenti insultabant.
[729] Ibid... Ille quippè ethnicus latus Domino aperuit, iste verò christianus Christi Domini capite gladium infixit.
[730] Ibid., 135. {NT: O dia dos Santos Inocentes ou, mais simplesmente, “os Inocentes” é, na tradição católica (particularmente a Medieval), o dia 28 de dezembro,
supostamente o dia quando, como relata o Evangelho de Mateus, os bebês foram mortos na Palestina, na região de Belém, por ordem de Herodes, em virtude do
nascimento de Jesus. Os inocentes mortos são considerados mártires pela Igreja Católica.
[731] Ep. S. Thom., p. 857: Tribus ferè diebus conclusus in cubiculo, nec cibum capere, nec consolatores admittere sustinuit... Qui Sacerdocem lamentabamur primiùs, de
Regis salute cœpimus desperare. Vit. quadr., p. 146.
[732] Vita quadrip., p. 148. Ep. S. Thom., p. 873: ... Quod inveniet ducentos milites per annum integrum sumptibus suis... in terrâ Herosolymitanâ... Quod prava statua de
Clarenduna, etc... dimitteret... Quod si necesse fuerit, ibit in Hispaniam, ad liberandam terram illam à paganis.
[733] “Prætera ego et major filius meus rex, juramus quod a domino Alexandro papâ et catholicis ejus successoribus recipiemus et tenebium regnum Angliæ”. Baron.
annal., XII, 637. – Ao fim do mesmo ano, ele ainda escreveu ao Papa: “Vestræ juridictionis est regnum Angliæ, et quantuùm ad feudatari juris obligationem, vobis duntasat
teneor et astringor (NT: O reino da Inglaterra é vossa jurisdição e, quanto à obrigação legal do feudatário, sois meu único superior).
[734] (NT): “Se faltar a vírgula, a ação faltou”. Ou, ainda, si virgula cadit, actio nequit (se faltar a vírgula, perdeu-se a ação).
[735] Guill. Neubrig., ap. Scr. fr., XIII, 113: Scitote quia ille rex morturus est... porrò quòd adhuc pro rege se regit... maturè emendabitur.
[736] Baron, XII, 637. Muratori, III, 463: “Nos et successores nostri in perpetuum non reputabimus nos Angliæ veros reges, donec ipsi nos catholicos reges tenuerint”.
[737] Patrimonium Beatus Petri spirituali gladio tueatur. Scr. fr. XVI, 650.
[738] Vit. quadrip., p. 150: Per vicos et plateas luteas... Robert de Monte, ap. Scr. f. XIII, 318: Per paludes et acuta saxa.
[739] Robert de Monte, ibid.: Ut videntes ad lacrymas cogeret.
[740] (NT): A “disciplina” é o antiquado nome dado um flagelo de cordas, normalmente contendo de quatro a oito delas, nas quais havia, a espaços pequenos e regulares,
nós cegos ou ossos de carneiro ou qualquer objeto perfuro-cortante. É também conhecida como látego, chicote, azorrague. O Tradutor utilizará o termo “disciplina”.
[741] Id. ibid.: Imitatus Redemptorem, sed ille fecit propter peccata nostra, iste propter propria.
[742] Lætabundus à Cantuariâ recessit. Gervas. Cant., ap. Scr. fr. XIII, 138.
[743] (NT): Sirvente: estilo literário póetico em língua d’oil de caráter satírico, político ou moral que os trovadores cantavam em língua d’oc, nos séculos XII e XIII.
Bertrand de Born foi tão destacado neste estilo, que Dante o representou, na Divina Comédia, chegando ao Inferno. Ezra Pound o consagrou no poema “Sestina:
Altaforte” (vide http://www.poets.org/viewmedia.php/prmMID/15423). Finalmente, o laureado escritor americano Paul Auster inspirou-se nele para escrever seu livro
Invisible (vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Bertrand_de_Born e http://fr.wikipedia.org/wiki/Sirvente) .
[744] “Nusquàm proles de vobis veniens fructum faciat felicem”. J. Brompton, ap. Scr. fr., XIII, 215.
[745] Id. Ibid.: Beatus Bernardus abbas, rege Franciæ præsente, sic prophetavit: “De Diabolo venit, et ad Diabolum ibit”. (NT: O Beato abade Bernardo, presente o
rei da França, assim profetizou: “Ele veio do Diabo e ao Diabo tornará”).
[746] Id. ibid.: Richardus... asserens non esse mirandum, si de tali genere procedentes mutuò sese infestent, tanquàm de Diabolo revertentes et ad Diabolum transeuntes
(NT: Ricardo ... afirmando que não era surpreendente que procedessem de um tal gênero que se infestava mutuamente, tanto quanto devessem retornar ao
Diabo e ao Diabo estivessem).
[747] Id. ibid.
[748] J. Bromton, ap. Scr. fr. XIII, 215: ... Rejecto pallio per quod tenebatur, ... cum reliquis duobus filiis, per fenestram Ecclesiæ... evolavit.
[749] (NT): O belíssimo castelo de Lusignan, da ilustre família de Lusignan, que foi o tronco de várias outras ilustres famílias na França e na Inglaterra, foi
completamente destruído ao longo dos séculos e, o lugar que ocupava, transformou-se em um parque. Dele restou uma única iluminura no livro de horas do duque do Berry
(Les très riches Heures du duc de Berry), no qual pode-se ver Melusina, em sua forma de serpente alada (dragão) sobre a Torre Poitevina – vide wikipedia em francês
e português sobre o “château de Lusignan”.
[750] A profecia era: “Aquila rupti fœderis tertiâ nidificatione gaudebit” {NT: A águia da aliança rompida regozijar-se-á na terceira nidificação (geração)} . Raoul
de Diceto e Mathieu Paris a aplicam à Eleonora – Joann. Saresber., ap. Scr. fr. XVI, 534: “Instant tempus, ut aiunt, quo Aquila rupti fœderis, juxta Merlini vaticinium,
frenum deauratura est quod apro ejus datur aut modò fabricatur in sinu Armorico” {NT: Aproxima-se o tempo, como dizem, quando a águia do pacto quebrado, de
acordo com o vaticínio de Merlin, dourará o freio a ser dado para o seu javali ou que será para ele fabricado no seio da Armórica (Bretanha)}. Por este javali,
ele compreende Henrique II.
[751] (NT): Aquilon, na mitologia latina, é o deus do vento Norte (em grego, Boréas). Assim, pode-se entender a passagem como “rei do Norte”.
[752] Aquila bispertita. Ele assim designa Eleonora. “Dic, aquila bispertita, dic: ubi, etc..”
[753] Richardus Pictaviensis, ap. Scr. fr. XII, 420-21. Segui, nas últimas linhas, a tradução de M. Thierry.
[754] Jo. Saresber., ap. Scr. fr. XVI, 591: Impregnavit, ut proditor, ut adulter, ut incestus (NT: Impregnado, como traidor, como adúltero, como incestuoso).
[755] Bromton, ap. Scr. fr., XIII, 214: Quam post mortem Rosamundæ defloravit {NT: Após a morte de Rosamunda, (ele) a deflorou}.
[756] Id. ibid.: Huic puellæ fecerat rex apud Wodestoke mirabilis architecturæ cameram, operi Dedalino similem, ne forsan à regina facilè deprehenderetur (NT: Esta
jovem estava na câmara feita para o rei pela arquitetura maravilhosa de Woodstock, obra similar à de Dedalino, e talvez não muito fácil de ser encontrada
pela rainha).
[757] Pouco após a morte de seu filho, ele aprisionou Bertrand de Born. “Antes de pronunciar a sentença do vencedor contra o vencido, Henrique desejou apreciar o
prazer da vingança, tratando com desrespeito o homem que o temera e que se vangloriava de não temê-lo. ‘Bertrand’, ele disse, “vós que pretendíeis jamais ter
necessidade da metade de vosso bom-senso, eis agora uma ocasião onde todo ele não vos faria falta’. – ‘Senhor’, respondeu o homem do sul, com a habitual segurança
que lhe dava o sentimento de superioridade de espírito, ‘é verdade que eu disse isso e eu disse a verdade’. – ‘E eu creio’, disse o rei, ‘que o vosso bom-senso vos faltou’. –
‘Sim, Senhor’, replicou Bertand, em tom circunspecto, ‘ele me faltou no dia quando o valente jovem rei, vosso filho, morreu; neste dia, eu perdi o bom-senso, o espírito e o
conhecimento’. Ao ouvir o nome de seu filho que, de forma alguma esperava ser pronunciado, o rei da Inglaterra fundiu-se em lágrimas e desfaleceu. Quando voltou a si,
estava transformado: seus projetos de vingança haviam desaparecido e, no homem que estava em seu poder, ele não via senão o velho amigo do filho que era por si
lamentado. Ao invés de amargas censuras e da sentença de morte ou desapropriação de bens com a qual Bertrand contava, Henrique II falou: ‘Sire Bertrand, foi com boa
razão e bom direito que perdestes o bom-senso por meu filho, pois ele vos queria bem, mais do que a qualquer outro homem no mundo; e eu, por amor a ele, concedo vossa
vida, vossos haveres e vosso castelo. Rendo-vos minha amizade e minhas boas graças e outorgo-vos quinhentos marcos de prata pelos danos que suportastes”. Thierry, II,
356.
[758] (NT): Não se deve entender, por este fato, que fossem, necessariamente, bissexuais, pois uma das maiores provas de honra e confiança, naquela época, era a
demonstração de profunda intimidade e domesticidade entre um senhor e seu vassalo. Embora não haja um consenso sobre a verdadeia tendência sexual de Ricardo
Coração de Leão, “seus contemporâneos supunham que fosse heterossexual (John Gillingham, “Richard I (1157–1199)” , Oxford Dictionary of National Biography,
Oxford University Press, septembre 2004). O historiador Jean Flori não adere à tese de um rei homossexual (Richard Cœur de Lion - Le roi chevalier , Paris, Payot,
Coleção. “Biographies”, 1999, pg. 49). Para este, a conclusão de uma relação homossexual vem de uma interpretação muito “moderna” do termo “amor”; e acrescenta
que partilhar o mesmo leito “não possuía, outrora, a conotação sensual que hoje se denota”. Todavia, com base nas narrativas das penitências do rei Ricardo, em 1191 e
1195, Jean Flori conclui pela possibilidade de um bissexualismo (ibid., pg. 464). Para o historiador William E. Burgwinkle, nada existe nas crônicas contemporâneas que
afirmem, além do forte afeto que sentia por Filipe Augusto, que Ricardo tenha se apaixonado por quem quer fosse, homem ou mulher (Sodomy, Masculinity and Law in
Medieval Literature: France and England, 1050-1230, Cambridge University Press, 2004, pg. 79). O cronista contemporâneo Benedito de Peterborough acusa Ricardo
de estupros cometidos contra mulheres do povo mas, para Burgwinkle, um estupro não é indicativo de um desejo sexual pelas mulheres e, no caso de Ricardo, poderia ter
sido utilizado como forma de controle político. Ricardo teve, com uma amante desconhecida, um filho ilegítimo, Philippe de Cognac (c. 1180 – depois de 1201), que é o seu
único filho conhecido.
[759] Coronatio Phil. I, ap. Scr. fr. XI, 32: Ipse legit, dùm adhùc septennis esset: “Ego... defensionem exhibebo, sicut rex in suo regno unicuique episcopo et ecclesiæ sibi
commissæ... debet” (NT: Ele o leu, com a idade de sete anos: “Eu defenderei, como deve um rei fazê-lo em seu reino, cada bispo e cada igreja a ele confiada”).
[760] Como voltasse de uma viagem (1154), a noite o surpreendeu em Créteil. Ele aí parou e fez com que seus custos fossem pagos pelos habitantes, servos da igreja de
Paris. A notícia, chegando aos cônegos, eles logo interromperam o serviço divino, resolutos a não retomá-lo senão depois que o monarca tivesse restituído a seus servos de
corpo, contou Étienne de Paris, as despesas que lhes foram exigidas. Luís fez a reparação e o ato foi gravado sobre uma viga que a Igreja de Paris conservou por muito
tempo, em memória de suas liberdades. Art de vérifier les Dates, V, 522.
[761] Chronic. Normanniæ, ap. Scr. fr. XII, 789: Transfretavit in Angliam, pergens ad S. Thomam Cantuariensem. – Roger de Hoveden observa que foi a primeira vez
que se viu um rei da França na Inglaterra.
[762] (NT): Escrófula é o aumento de volume dos gânglios linfáticos do pescoço, que pode ser seguido de ulceração. Na Idade Média, o termo era muito pouco preciso,
indicando qualquer tipo de aumento de afecção dos gânglios, seja no pescoço, garganta ou rosto.
A passagem é interessante porque se acreditava que os reis da França (e, depois, os da Inglaterra, como veremos) possuíssem o dom da cura por simples contato (vide
mais em http://fr.wikipedia.org/wiki/Écrouelles).
[763] Guibert. Novig., l. I, c. 1. Os reis Inglaterra não se atribuíram esse poder senão após terem tomado o título e as armas dos reis da França. Art de vérifier les
Dates, V, 519.
[764] Vide o diploma de Luís o Gordo, no tomo XII do Récueil des Historiens de France e a nota dos editores.
[765] Chronica reg. franc., ibid. 214: ... Remansit in silvâ sine societate Philippus; undè stupefactus concepit timorem, et tandem per carbonarium fuit reductus
Compendium; et ex hoc timore sibi contingit infirmitas, quæ distulit coronationem (NT: Filipe permaneceu na floresta sem companhia, onde também ficou espantado
de medo e, finalmente, foi trazido de volta por um carvoeiro. Em resumo, da fraqueza desse medo ficou doente, o que adiou sua coroação).
(NT): O incidente é assim narrado por Rigord (Vie de Philippe-Auguste), na compilação feita por Guizot (Collection des Mémoires relatifs à l’Histoire de France ,
Paris, 1825):
“Ao se aproximar a festa da mui santa virgem Maria, o mui cristão rei foi, então, para Karnópolis (provavelmente trata-se de Compiègne) com seu bem-amado filho.
Mas Deus quis que tudo se passasse de outra forma que Luís não esperava; em efeito, durante a estadia que fez nesta cidade, o ilustre Filipe, segundo o testemunho de um
grande número de pessoas das quais recebemos este fato, obteve de seu pai a permissão de caçar nos bosques com os monteiros do rei. Mal neles entrara que um javali se
apresentou. À vista disto, os monteiros soltaram os cães e se puseram a perseguir a besta através de todos os caminhos e desvios da floresta e dessa vasta ermidão, de
sorte que se dispersaram em diferentes locais do bosque.
Entretanto, Filipe, montado num cavalo fogoso, foi levado para longe dos outros e, por muito tempo, perseguiu sozinho o javali, com a maior rapidez, por uma trilha
abandonada. Ao fim do dia, ele lançou os olhos para trás de si e percebeu que não havia monteiros consigo. Ele errou só, por algum tempo, rédeas soltas, entregue à
vontade de sua montaria, que o levava de cá para lá. Enfim, seu alarme aumentou. Ele olhava para todos os lados e não via ninguém: pôs-se, então, a gemer e a suspirar e,
perseguinando-se com o sinal da cruz, recomendou-se devotamente a Deus, à bem aventurada virgem Maria e ao bem-aventurado Denis, patrono e defensor dos reis da
França. Ao fim de sua prece, ele olhou à direita e repentinamente viu próximo a si um camponês que soprava carvões ardentes. Sua estatura era alta, seu aspecto horrível,
sua aparência medonha e enegrecida pelo carvão; ele tinha um grande machado apoiado perto do pescoço. Ante esta visão, Filipe primeiro estremeceu como uma criança;
mas logo sua grande alma ultrapassou esses primeiros temores. Ele se aproximou desse homem e o saudou com bondade. Explicou-lhe quem era, de onde vinha, como e
porque aí se encontrava e o camponês, reconhecendo a pessoa de seu senhor, abandonou na mesma hora seu trabalho e reconduziu o príncipe, com toda a pressa, até
Karnópolis, por um caminho mais curto. Na sequência desses sustos, Filipe Dieudonné* caiu perigosamente enfermo e este acidente fez com que se diferisse sua
coroação...”.
*Dieudonné (“dado por Deus” ou “presente de Deus” ou “dom de Deus”): Filipe possuía este apelido porque seu nascimento fora considerado um milagre, já que seu pai,
Luís VI, até então sem descendência, era muito velho quando, enfim, sua terceira esposa engravidou e deu-lhe à luz.
[766] Ibid., .... Fecit spoliari omnes unâ die... Recesserunt omnes qui baptizari noluerunt (NT: ele os espoliou, todos, em um só dia... aqueles que recusaram o
batismo, se esconderam). – Eles deram para recompra de tudo 15.000 marcos. Rad. de Diceto, ap. Scr. fr. XIII, 204 – Rigordus, vita Phill. Aug., ap. Scr. fr. XVII. –
Filipe remitiu os devedores dos Judeus de todas as dívidas que tivessem com estes, com exceção de um quinto, o qual reservou a si. Vide, também, a Chronique de
Mailros, ap. Scr. fr. XIX, 250.
[767] O Shylock de Shakespeare não é uma vã pintura da dureza dos Judeus e do ódio que lhes era devotado.
[768] Guillelmi Britonis Philippidos, l. I: “Em todo o seu reino, ele não permitiu viver uma só pessoa que contradissesse as leis da Igreja, ou que se afastasse de um só dos
pontos da fé católica, ou que negasse os sacramentos”.
[769] Os membros desta associação não se encontravam ligados por nenhum voto; eles somente se prometiam trabalhar em comum para a manutenção da paz. Todos
portavam um capuz de toalha e uma pequena imagem da Virgem que pendia-lhes sobre o peito. Em 1183, eles cercaram sete mil salteadores ou cotereaux (corta-
gargantas), entre os quais se encontravam mil e quinhentas mulheres de má vida. “Les coteriau ardoient les mostiers et les églises, et traînoient après eux les prêtres
et les gens de religion, et les appeloient cantadors par dérision; quand ils les battoient et tormentoient, lors disoeient-ils: cantadors, cantets” (NT do francês
arcaico: “Os coteriau queimavam os mosteiros e as igrejas, e arrastavam para si os padres e os religiosos, chamando-os, derrisoriamente, cantadores; quando batiam neles
e os atormentavam, então diziam: cantadores, cantem!). – Suas concubinas se faziam penteados com os lenços da comunhão e quebravam os cálices a pedradas. Guill.
Nang., ad. ann. 1183 – Vide também D. Vaissète, Hist. Génér. du Languedoc, t. III, ann. 1183.

[770] (NT): “Mahdi (em árabe: ‫ﻣﮭﺪي‬, transl. Mahdī, "O Guiado") ou Mehdi, de acordo com as versões xiitas e sunitas da escatologia islâmica, é o redentor profetizado do
Islã que permanecerá na Terra por sete, nove ou dezenove anos (de acordo com as diferentes interpretações) antes da chegada do dia final, o Yawm al-Qiyamah (lit. "Dia
da Ressurreição"). Os muçulmanos acreditam que o Mahdi, juntamente com Jesus, livrará o mundo do erro, da injustiça e da tirania.
O Mahdi não é mencionado de maneira explícita no Corão, nem nas primeiras compilações de hadiths consideradas autênticas pelos sunitas, como o Sahih al-Bukhari
(embora conste de seis outros destes livros); alguns teólogos sunitas, por este motivo, questionam as crenças mahdistas, que formam, no entanto, uma parte crucial da
doutrina xiita.
O advento do Mahdi não é uma crença aceita universalmente pelos muçulmanos, especialmente os sunitas e, entre os que o aceitam, existem diferenças básicas, conforme
as diferentes seitas e correntes do islamismo, acerca de quando esta sua vinda se dará e da natureza de seus atos. O Mahdi é importante para os sufis, e é uma ideia
poderosa e central no credo xiita, que prega que ele é o Décimo-Segundo Imã, Muhammad al-Mahdi, que retornará da ocultação”. – extraído da página em português da
Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mahdi.
[771] Ele proclama a inutilidade dos sacramentos, da missa, da hierarquia, da comunidade das mulheres etc. Ele caminhava suntuosamente coberto de trajes dourados, os
cabelos trançados com pequenas faixas, acompanhado de três mil discípulos e dava-lhes esplêndidos festins. Bulæus, historia Universit. Parisiensis, II, 98. – Per matronas
et mulierculas... errores suos spargere. – Veluti Rex, stipatus satellitibus, vexillum et gladium præferentibus... declamabat (NT: Pelas matronas e mulheres pobres...
aspergiu seus erros. – Como um rei, concedia audiências, cercado por seus satélites e por guardas com gládios e estandarte) . Epistol. Trajectens. eccles. ap.
Gieseler, II, 2ª parte, p. 479.
[772] Ele se chamava Éon de l’Étoile (NT: Éon da Estrela). Esse nome de Éon lembra as doutrinas gnósticas {NT: éon deriva do latim æon que, por sua vez, deriva
da palavra grega aion (αἰών); literalmente, em grego, significa “idade”, “era”, mas seu sentido foi alargado para denotar “vida”, “ser” e, progressivamente,
“eternidade”. Os gnósticos entendem, por éons, as diversas emanações de Deus, encontradas no curso de seu périplo iniciático até o pleroma. Tais emanações
divinas funcionam como uma dupla unidade, quer dizer, como os princípios macho-fêmea, como pode ser em Jesus e Sofia (“sabedoria”). A Sofia caída para a
terra torna-se, por esta união, a “sabedoria-divina” – a partir do sítio internet http://fr.wikipedia.org/wiki/Éon_(ontologie)} . – Era um nobre de Loudéac;
inicialmente eremita na floresta de Brocéliande, ele teria aí recebido de Merlin o conselho de ouvir, na missa, as primeiras palavras do Evangelho: “Per Eum qui venturus
est judicare, etc.” (NT: Por Ele, que virá para julgar...) e deu-se, desde então, por filho de Deus. Ele atraía numerosos discípulos a quem chamava Sapiência,
Julgamento, Ciência etc.. Guill. Neubrig., l. I: Eudo, natione Brito, agnomen habens de Stellâ, illiteratus et idiota... sermone gallico Eon; ... eratque per diabolica præstigias
potens ad capiendas simplicium animas... ecclesiarum maximè ac monasterium infestator (NT: Eudo, da nação Bretã, cognominado ‘da Estrela’, analfabeto e
idiota... chamado Éon em francês; ... poderoso pelos truques do diabo para seduzir as mentes das almas simples... um grande perturbador das igrejas e
monastérios). Vide também Oto de Freysiungen, c. 54, 55, Robert du Mont, Guiberto de Nogent; Bulœus, II, 241, D. Morice, p. 1000. Roujoux, histoire des ducs de
Bretagne, l. II.
[773] Rigord., ibid., p. 375: ... Quod quilibet Christianus teneatur credere se esse membrum Christi (NT: ... Razão pela qual todo cristão é obrigado a acreditar ser
um membro de Cristo). – Concil. Paris, ibid: Omnia unum, quia quidquid est, est Deus, Deus visibilibus indutus instrumentis – Filius incarnatus, i.e., visibili formæ subjectus.
– Filius usquè nunc operatus est, sed Spiritus sanctus ex hoc nunc usquè ad mundi consummationem inchoat operari (NT: Todas as coisas são uma porque, o que quer
que seja, é Deus, Deus exibiu instrumentos visíveis - O Filho encarnou, isto é, sujeitou-se à forma - O Filho, até agora, operou, mas o Espírito Santo começa a
operar desde agora até à consumação do mundo).
[774] (NT): Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), escrivão, crítico e dramaturgo alemão, que também possuía formação em teologia e filosofia. Escreveu o livro A
Educação do gênero humano, seguido dos Diálogos maçônicos, além de outras obras.
[775] Averróes, ap. Gieseler, II, 2ª parte, p. 378: Aristoteles est exemplar, quod natura invenit ad demonstrandam ultimam perfectionem humanam (NT: Aristóteles é
exemplar do que a natureza pode inventar para demonstrar a perfeição última que o homem pode atingir). – Cornélio Agrippa dizia no século XIV: Aristoteles fuit
præcursor Christi in naturalibus; sicut Joannes Baptista... in gratuitis (NT: Aristóteles foi o precursor de Cristo nas coisas da natureza, assim como João Batista o
foi... nas coisas da graça). Ibid.
[776] Math. Paris, ap. Scr. fr., XVII, 681: Deus o puniu: ele tornou-se tão idiota que seu filho mal conseguiu reensinar-lhe o Pater (Pai-Nosso).
[777] Math. Paris, ann. 1250, ap. Gieseler, II, 2ª parte, p. 339: In Alemanniâ mulierum continentium, quæ se Beguinas volunt appellari, multitudo surrexit innumerabilis,
adeo ut solam Coloniam mille vel plures inhabitarent (NT: Na Alemanha, surgiu um grande número de mulheres castas, que chamavam a si próprias Beguinas, das
quais, apenas em Colônia, havia mil ou mais) – Beghin, do saxão beggen, em Ulphilas bedgan (em alemão, beten), rogar, pedir. Mosheim, de Beghardis et
Beguinabus, p. 98 e segs.
[778] E, ainda: “que nenhum burguês de Gand seria citado, em virtude de questão eclesiástica, fora da cidade”. Oudegherst, fol. 149.
[779] Petri Venerabilis epist. ad Arelat., Ebredun. Diens., Wapic. episcopos, ap. Gieseler, II, p. 2ª, p. 481.
[780] Reinerus contrà Waldenses, c. 4, ap. Gieseler, II. P. 2ª, p. 507. Inter omnes sectas quæ sunt vel fuerunt... est diuturnior
(NT: Entre todas as seitas que são ou
foram ... é a mais durável).
[781] Steph. de Borbone, ibid. p. 510: Hi multâ petebant instantiâ, prædicationis auctoritatem sibi confirmare (NT: Eles pediram, com muita insistência, que fosse
confirmada sua autoridade para pregar).
[782] Ricardo vestia, em Chipre, um manto de seda bordado com crescentes de prata.
[783] Epistola Papæ Clementis IV, epist. Magalonensi, 1266; ìn Thes. novo anecd., t. II, p. 403: Sanè de monetâ Miliarensi quam in tua diœcesi facis cudi, miramur
plurimum cujus hoc agis consilio... Quis enim catholicas monetam debet cudere cum titulo Mahometi? ... Si consuetudinem forsam allegas, in adulterino negotio te et
prædecessores tuos accusas (NT: Em verdade, tocando a moeda que cunhaste na tua diocese, admiramo-nos por quais conselhos tu fizeste tal coisa... Para quê
deve o católico cunhar moeda em nome de Maomé? .... Se tu objetas o costume e o hábito em tua defesa, tu acusas a ti e a teus predecessores de um negócio
adulterino). – Em 1268, São Luís escreveu a seu irmão Alfonso, conde de Toulouse, que, no seu Condado Venaissino, cunhava-se moeda com uma inscrição maometana:
In cujus (monetæ) superscritione sit mentio de nomine perfidi Mahometi, et dicatur ibi essa propheta Dei; quod est ad laudem et exaltationem ipsius, et detestationem et
contemptum fidei et nominis christiani; rogamus vos quatinus ab hujusmodi opere faciatis cudentes cessare {NT: Na superfície da qual (moeda) está sobrescrito o nome
do pérfido Maomé, que é chamado de profeta de Deus, sendo louvado e exaltado em ódio e escárnio ao nome cristão; rogamo-vos, deste modo, fazer com que
tal cunhagem cesse). – Esta carta, segundo Bonamy (ac. des Inscr. XXX, 725), encontrar-se-ia num registro há muito perdido e restituído ao Tesouro das Cartas, em
1748. Entretanto, este registro não mais existe atualmente, como tratei de me assegurar.
[784] (NT): O Brasil herdou esse costume mediterrâneo de miscigenação, já que a maior parte de sua população, “se subir um pouco em sua genealogia”, além de
bisavós judeus, mouros, góticos, celtas e germânicos etc., encontrará avós negros ou índios, fato que deveria servir contra a execrável política racialista das cotas que o
país, olhando para o exemplo dos EUA, onde a segregação racial era artigo de lei até meados do século XX, erradamente adotou e o Supremo Tribunal Federal brasileiro
sacramentou como “constitucional”. Dada a fabulosa mistura étnica do Brasil, tal política racialista revela, vez ou outra, situações bizarras, como o famoso caso dos irmãos
gêmeos, cujos genitores eram um negro e um branco, tendo um dos irmãos sido rotulado “branco” e o outro “afro-descendente”, por obra do “tribunal racial”
(provavelmente uma comissão com um nome menos evocativo de uma prática nazista) da Universidade de Brasília (UnB). Está consagrado, no atual momento, o
entendimento de que basta a “autodeclaração” da pessoa, o que significa dizer que, potencialmente, 90% da população brasileira poderá se autodeclarar afro-descendente
(todavia, em se tratando de Brasil e suas estranhas singularidades, não é improvável que, um dia, vejamos surgir tribunais raciais ou decisões judiciais rotulando as pessoas
como “europóides”, “espécie nórdica”, “dolicocéfala loura”, índice de melanina inferior ou superior a tantos por cento, “negróide”, “braquiocéfalo encarapinhado”, etc. É
viver para ver...).
[785] Nas Preuves de l’Histoire Générale du Languedoc , t. III, p 607, encontra-se a confirmação de várias Damoisels (Domicelli – NT: Demoiselles, i.e.,
Senhoritas), cavaleiros, juristas, etc. Quod usus et consuetudo sunt et fuerunt longissimis temporibus observati, et tanto tempore quod in contrarium memoria non exstitit in
senescalliâ Belliquadri et in Provincia, quòd Burgenses consueverunt à nobilibus et baronibus et etiam ab archiepiscopis et episcopis, sine principis auctoritate et licentia,
impune cingulum militare assumere, et signa militaria habere et portare, et gaudere privilegio militari (NT: É um uso e um costume, que são e foram por muito tempo
observados e, há tanto tempo, que não há lembrança em contrário nas Senescalias de Bellecourt e na Provença, dos burgueses, habituados a serem tratados
como nobres e barões, mesmo pelos arcebispos e bispos, e sem a licença ou autoridade do príncipe, cingirem-se com o talabarte militar e ostentarem insígnias
militares para reinvidicarem privilégios militares) . – Chron. Languedoc. ap. D. Vaissète, Preuves de l’Histoire du Languedoc : “Em seguida, um outro barão,
chamado Valats, falou e ele disse ao conde: ‘Senhor, teu irmão te dá um bom conselho (o conselho de poupar os Toulousenses), e se acreditares em mim, tu o farás como
ele te disseste e mostraste; pois, senhor, tu bem sabes que a maior parte é de nobres e, por honradez e nobreza, tu não deverás fazer o que deliberaste”.
[786] (NT): Tenção (tenson em occitano), é um gênero poético saído da tradição dos trovadores que consiste numa espécie de justa verbal baseada no diálogo e na
discussão sendo, não só uma forma literária tradicional mas, também, musical no poesia lírica dos países da língua d’oc. Dante Alighieri também fez uso desta forma
forma. No Brasil, seria possível traçar uma analogia com os famosos “repentes” ou “desafios” do Nordeste e do Rio Grande Sul, sendo que, neste último, também se
chama de “trova” – v. http://fr.wikipedia.org/wiki/Tenson_(chanson) e http://pt.wikipedia.org/wiki/Repente.
[787] Oc et Non. Ibid., V, 77-97. {(NT: Em occitano, “oc” significa “sim”; por tal razão, a região onde ele era assim falado é designada Languedoc, de Langue d’Oc
ou Língua do Oc. Já o norte da França, onde o “sim” era “oil”(que, na evolução, derivou para “oui”) era também conhecido como a região da Langue d’Oil.}
[788] Raynouard, poésies des Troubadours , II, p. 122. A Corte d’Amor era organizada com base no modelo dos tribunais do tempo. Ainda existia uma no reinado de
Carlos V, na corte da França; nela distinguia-se os ouvintes, os mestres de petição, os conselheiros, os substitutos do procurador-geral, etc. etc., mas as mulheres não
possuíam assento.
[789] Os heréticos eram chamados de Bulgares (búlgaros) ou de Catarinos (cátaros) da palavra grega καθαρὸς, i.e., puros. Mon. Autissiod. ap. Gieseler, II, P 2ª, p.
488: Hæresis quam Bulgarorum vocant (NT: chamada de heresia búlgara) . – Godefr. mon. ibi., p. 491: Hos nostra Germania Catharos, Flandria Piphles, Gallia
Texerant, ab usu, texendi, appellat (NT: "Nosso Alemanha os chama Cátaros, Flandres de Piphles e a França de Texerant, a partir de seu comércio de tecelagem).
– Os místicos Beghards (beguinos) também tomavam o nome de Piedosos Operários, Companheiros Tecelões. Entre os comerciantes de tecidos, ao contrário, reinava um
espírito prosaico e mundano. Formou-se, no século XIII, na Lombardia e na Toscana, uma confraria religiosa cujos membros eram, em grande parte, tecelões. É na
Alemanha, sem dúvida, que se deve buscar a origem. Hüllmann, Staedtwesen, I, 234.
[790] Petrus Vall. Sarn., c. 1, ap. Scr. fr. XIX, 5: Duos creatores, invisibilium scilicet... benignum Deum, et visibilium, malignum deum – Novum Testamentum benigno
Deo, vetus verò maligno attribuebant. – Alii dicebant quod unus est creator, sed habuit filios Christum et Diabolum (NT: Dois criadores, o invisível... Deus benevolente,
e o visível, o Deus do Mal – O Deus benigno do Novo Testamento atribui o mal ao Antigo - Alguns disseram que um é o criador, mas que tinha como filhos
Cristo e o diabo). – É assim que, no Magismo, Ormuz e Arimã são subordinados a um Deus supremo, o Eterno, Zurvãn. Vide Creuzer e Guigniaut, Réligions de
l’Antiquité, t. I. – Quidam dicebant quod nullus poterat peccare ab umbilico et inferius (NT: Alguns disseram que ninguém poderia pecar do umbigo para baixo).
[791] Mansi, I, 251, ap. Gieseler, II, P. 504: Omnia quæ facta sunt, facta esse à Diabolo.
[792] Ebrardi liber antihæresis , ibid., p. 501: In operibus solummodo confidentes, fidem prætermittunt (NT: Apenas as obras são confiáveis, a fé é preterida) . –
Petrus Vallis-Sarnaii, c. 2, ap. Scr. fr. XIX, 6: Si morienti cuilibet quantumcumque flatigioso manus imposuissent, dummodò Pater noster dicere posset, ità salvatum (NT:
Se alguém morrer, pouco importa como agiu com a mão vergonhosa, contanto que possa dizer o Pai Nosso e, assim, se salvar).
[793] Id. ibid. – Estes últimos são, sem dúvida, menos maniqueístas que gnósticos; sua heresia é aquela dos Docetas.
[794] Ebrardus, ibid., 501: Fœmineo sexui cœlorum beatitudinem nituntur surripere (NT: O sexo feminino tenta roubar a felicidade do céu).
[795] Heriberti mon. epist., ibid: 487: Centies in die genua flectunt.
[796] Ebrardus, ibid., 500: Eum joculatorem esse, etc. Petrus Vall. Sarnaji, c. 4.
[797] Petrus Vall. Sarnaii, c. 1, ap. Scr. fr. XIX, 5-7. Excerto de um antigo registro da Inquisição de Carcassonne ( Preuves de l’Histoire du Languedoc , III, 371): Isti
sunt articuli, in quibus errant hæretici: 1º) Dicunt quod corpus Christi in sacramento allaris non est nisi parum panis - 2º) Dicunt quod sacerdos existens in mortali peccato
non potest conficere corpus Christi - 3°) Dicunt quod anima hominis non est nisi purus sanguis - 4°) Dicunt quod simplex fornicatio non est peccatum aliquod – 5º) Dicunt
quod oranes homines de mundo salvabuntur - 6°) Dicunt quod nulla anima intrabit Paradisum usque ad diem judicii - 7º) Dicunt quod tradere ad usuram, ratione termini, non
est peccatum aliquod - 8°) Quod sententia excommunicationis non est timenda, nec potest nocere - 9°) Dicunt quod tantum prodest confiteri socio laico, quantum sacerdoti
seu presbytero – 10º) Dicunt quod lex judæorum melior est quàm lex christianorum – 11º) Dicunt quod non Deus fecit terræ nascentia, sed natura - 12°) Quod Dei filius
non assumpsit in beatâ et de beatâ virgine carnem veram, sed fantasticam - 13°) Dicunt quod Pascha, pœnitentiæ et confessiones non sunt inventa ab Ecclesià, nisi ad
habendum pecunias à laicis – 14º) Quòd existens in peccato mortali, non potest ligare vel absolvere - 15°) Quod nullus Prælatus potest indulgentias dare - 16°) Quòd omnis
qui est à legitimo matrimonio natus, potest sine baplismo salvari*.
O Maniqueísmo Ocidental, ainda que tenha podido derivar do Paulicianismo do império Grego, teve sua formação original, e mais se aproximou do antigo Maniqueísmo,
pela sua rejeição ao casamento, pela distinção dos electi, credentes et auditores e sua hierarquia. Manés era maldito pelo Paulicianos e muito honrado pelos Ocidentais –
O Maniqueísmo ocidental se reproduziu no Oriente no início do século XII, na heresia dos Bogomilas. Ann. Commen. (ed. Paris), l. XV, p. 486 e segs.
*(NT): Estes são os artigos nos quais erram os modernos hereges: 1º) Dizem que o corpo de Cristo, no sacramento do altar, é simplesmente pão – 2º) Dizem que um
sacerdote, vivendo em pecado mortal, não pode consagrar o corpo de Cristo – 3º) Dizem que a alma do homem é apenas sangue puro – 4º) Dizem que a simples
fornicação não é um pecado – 5º) Dizem que todos os homens do mundo serão salvos - 6º) Dizem que nenhuma alma entra no Paraíso, até o dia do julgamento – 7º)
Dizem que emprestar com usura, com juros razoáveis, não é pecado – 8º) Que a sentença de excomunhão não deve ser temida, nem pode causar dano – 9º) Dizem que
ser confessado por um irmão leigo tem o mesmo valor quanto por um sacerdote ou um presbítero – 10º) Dizem que a lei dos judeus é melhor do que a dos cristãos – 11º)
Dizem que Deus não fez a Terra nascer, mas a natureza – 12º) que o Filho de Deus não se fez verdadeira carne no sempre bendito ventre da Virgem mas, apenas, de
forma aparente – 13º) Dizem que a Páscoa, a penitência e a confissão, são invenções da Igreja para extorquir dinheiro dos leigos – 14º) Que um sacerdote , vivendo em
pecado mortal, não pode vincular ou absolver – 15º) Que nenhum prelado pode conceder indulgências – 16º) que quem nasce em matrimônio legítimo pode ser salvo sem o
batismo.
[798] Vide Gieseler, II, P. 2ª, p. 495: Anno MCLXVII incarnationis Dominicæ, in mense Madii, in dièbus ecclesia Tolosana adduxit Papa Niquinta in castro S. Felicii, et
magna multitudo hominum et mulierum eccl. Tolosanæ, aliarumque ecclesiarum vicinæ congregaverunt se ibi, ut acciperent consolamentum, quod dominus Papa Niquinta
cœpit consolare. Postea vero Robertus de Spernone Ep. eccl. Francigenarum venit cum consilio suo similiter, et Sicardus Cellarecius eccl. Albiensis Ep. venit cum consilio
suo, et Bernardus Catalani venit cum consilio suo eccl. Carcassensis, et consilium eccl. Aranensis fuit ibi... Post hæc verò Papa Niquinta dixit eccl. Tolosanæ: “Vos dixistis
mihi ut ego dicam vobis consuetudines primitavarum ecclesiarum; sint leves aut graves: et ego dicam vobis septem eccl. Asiæ fuerunt divisas et terminatas inter illas, et
nulla illarum faciebat ad aliam aliquam rem ad suam contradicionem. Et eccl. Romanæ, et Drogometiæ, et Melenguiæ, et Bulgariæ, et Dalmatiæ sunt divisas et terminatas,
et una ad altera non facit aliquam rem ad contradicionem, et ità pacem habent inter se. Similiter et vos facite {NT: No milésimo centésimo sexagésimo sétimo ano
(MCLXVII) do Senhor, no mês de maio, a igreja de Toulouse trouxe o Papa Nicetas para o burgo de São Felício, e uma grande multidão de homens e mulheres
da igreja de Toulouse e das igrejas vizinhas foram trazidos juntos para receberem o conforto com o qual nosso senhor o papa Nicetas estava na iminência de
oferecer-lhes. E, depois de um tempo, Roberto de Spernone, bispo da igreja dos Francos, veio com seu capítulo, e Sicardus Cellarenius, bispo da igreja de
Albi, veio com seu capítulo, e Bernardo Catalão, bispo de Carcassonne, veio com seu capítulo, e o capítulo da igreja de Aran também estava lá... Então, o
verdadeiro Papa Nicetas disse para a igreja de Toulouse: “Vós me pedis para dizer-vos os costumes, pequenos ou grandes, das igrejas primitivas: e eu vos
digo que as sete igrejas da Ásia eram distintas e independentes e que nenhuma nada fez para contrariar a outra: e assim como as igrejas de Roma, da
Bulgária, da Dalmácia, as quais, em sua sabedoria, estavam em paz uma com a outra”} – Sandii nucleus hist. eccles., IV, 404: Veniens Papa Nicetas nomine à
Constantinopoli... (NT: O papa chamado Nicetas veio de Constantinopla...).
[799] O maometismo se reconcilia neste momento, na Índia, com as religiões locais, como com o cristianismo ao tempo de Frederico II. A esposa muçulmana de um
Inglês, vindo a Paris há poucos anos, publicou uma obra importante a respeito disso.
[800] Foi nomeado papa aos trinta e sete anos... Propter honestatem morum et scientiam litterarum, flentem, ejulantem et renitentem. – Fuit ... matre Clariciâ, de
nobilibus urbis, exercitatus in cantilenâ et psalmodiâ, staturâ mediocris et decorus aspectu (NT: "Por conta da pureza de sua moral e de sua habilidade nas letras,
dado às lágrimas, ao lamento e resistente na fé. Era... por sua mãe Claricia, de nobre ascendência, habilidoso nos cânticos e nos salmos, de média estatura e
aparência decorosa). Gesta Innoc. III (Baluze, folº.), I, p. 1, 2.
[801] Erfurt chronic. S. Petrin. (1215): Nec similem sui scientiâ, facundiâ, decretorum et legum peritiâ, strenuitate judiciorum, nec adhùc visus est habere sequentem
(NT: Também não houve um igual a si em conhecimento, eloqüência, habilidade nos decretos e leis, e com a solidez de seus julgamentos, nem ele tinha, ainda,
um tal sucessor).
[802] (NT): Plus ça change, plus c’est la même chose! A Europa vem enfrentando, desde o final dos anos 80 do século XX, uma onda imigratória de africanos do
norte e subsaarianos, o que tem inspirado legislações cada vez mais duras contra a imigração ilegal, que causa penosa sobrecarga na benevolente assitência social dos
países europeus. Há problemas de integração cultural e o islamismo toma o aspecto de “resistência cultural”. Ganham espaço os partidos políticos que defendem um rigor
ainda maior contra os imigrantes ilegais. Escrevo este parágrafo doze dias depois da tragédia de Lampedusa (ilha italiana no Mediterrâneo), ocorrida no dia 03 de outubro
de 2013, quinta-feira, quando um barco lotado de africanos naufragou, causando a morte de cerca de 300 pessoas. A este acidente, seguiu-se novo naufrágio no dia 11,
desta feita com cerca de 30 mortos.
[803] Vide as Ballades publicadas por M. Michel. – Conhece-se a história do tapa que um Judeu recebia, cada ano, em Toulouse, no dia da Paixão. – No Puy, todas as
vezes que surgia um debate entre dois Judeus, eram as crianças do coro que decidiam “a fim de que a grande inocência dos juízes corrigisse a grande malícia dos
querelantes”. Na Provença, na Borgonha, era-lhes proibido o ingresso nos banhos públicos, com exceção da sexta-feira, o dia de Vênus, quando os banhos eram abertos
às bailarinas e às prostitutas. Michaud, Histoire des Croisades, II, 598.
[804] “... locum pertransiens, in quo positas sibi forte suspicabatur insidias, cantans et alacer incedebat. Quod cum insinuatum fuisset hæreticis, mirantes tam
inconcussam ejus constantiam, dixerunt ei: Numquid non horres mortem? Quid acturus fuisses, si comprehendissemus te? - At ille, Rogassem vos, inquit, ne repentinis me
subito perimeretis vulneribus; sed successiva mutilatione membrorum protraheretis martyrium; dehinc autem ostensis ante oculos meos detruncatis membrorum particulis, et
erutis postmodum oculis, truncum reliquum relinqueretis in hunc modum suo sanguine volutantem, et exstingueretis omnino, quo majorem coronam martyrii protractione
mererer (NT: ... o nde quer que passasse por caminhos nos quais suspeitasse que seus inimigos estivessem deitando-lhe emboscada, ele seguia seu caminho
entre hinos e regozijo. Os hereges, cientes disso, ficaram maravilhados com sua constância inabalável e perguntaram-lhe: "Tu não tens medo da morte? O que
farias tu, se te apanhássemos?” - Ele respondeu: "Eu rezaria para que vós não me despachásseis de uma só vez, mas que prolongásseis o meu martírio,
cortando meus membros, um após o outro e, quando vós os tivésseis sucessivamente me mostrado, que me arrancásseis os olhos e, assim, que deixásseis meu
tronco nadando em sangue, e que a lentidão dos meus tormentos pudesse me vestir com a coroa maior do martírio). Acta SS Dominici, p. 549.
(NT): São Dominique é São Domingos de Gusmão, fundador da Ordem dos Pregadores, também conhecida por Dominicanos.

[805] Decretal. Greg., l. II, tit. 28, c. 11 (Alex. III): De appellationibus pro causis minimis interpositis volumus te tenere, quod ei, pro quacumque levi causa fiant, non
minus est, quam si pro majoribus fierent, deferendum. – Já Gregório VII exigira dos metropolitanos um juramento de homenagem e de fidelidade. Acta Roman. Synod.,
ann. 1079, ibid. 217. Ab hac hora et int anteà fidelis ero B. Petro et papæ Gregorio etc. (NT: Deste momento em diante, como antes, serei fiel ao Beato Pedro e ao
Papa Gregório etc.)
[806] Decr. Greg., l. III, tit. 45, c. 1 (Alex. III): “... etiamsi per eum miracula plurima fierent, non liceret vobis ipsum pro Sancto, absque auctoritate romanæ ecclesiæ
publicè venerari” (NT: Embora muitos milagres possam ter sido feitos por ele, vós não deveis prestar-lhe culto público como Santo, sem a autoridade de Roma) .
– Conc. Latern. IV, c. 62: Reliquias inventas de novo nemo publicè venerari præsumat, nisi priùs auctoritate romani pontificis fuerint approbatæ (Relíquias novas recém-
encontradas não devem ser presumidas como veneráveis, sem que tenham sido aprovadas pela autoridade do pontíficie romano). – Inocente III chegou a dizer (l.
II, ep. 209): Dominus Petro non solùm universam ecclesiam, sed totum reliquit seculum gubernandum (NT: O Senhor destinou, não só à Igreja universal, mas ao
mundo inteiro, o governo de Pedro).
[807] “A Alemanha, do seio de suas nuvens, lançava uma chuva de ferro sobre a Itália”, Cornel. Zanfliet, ap. Marten. collect. ( Bibliothèque des Croisades, VI, 201).
Roma se defendia com seu clima:

Roma, ferax febrium, necis est uberrima frugum;


Romanæ febres stabili sunt jure fideles
Petr. Damiani, ap. Alberic., in Leibnitz access., I, 123.
Roma, frutífera em febres, é mais produtiva na destruição das colheitas;
As febres constantes de Roma são, de direito, fiéis.

[808] Era, então, um pequeno cargo.


[809] Balduíno Braço-de-Ferro raptara e, depois, casara-se com Judith, filha de Carlos o Calvo. Epist. Nicolai I, ap. Scr. fr. VII, 391-397. Hincmar, epist. ibid. 214.
[810] Quando Filipe tomou conhecimento dos primeiros movimentos dos grandes vassalos, ele disse, sem mostrar surpresa, na presença de sua corte, conforme uma
antiga crônica manuscrita: “Jaçoit ce chose que il facent orendroit (dorénavant) lor forces; et lor grang outraiges et grang vilonies, si me les convient à souffir; se à Dieu
plest, ils affoibloieront et envieilliront, et je croistrai, se Dieu plest, en force et en povoir: si en serai en tores (à mon tour) vengiè à mont talent” (NT do francês arcaico:
Suponho que, doravante, façam essa coisa com suas forças; e seus grandes ultrajes e grandes vilanias, se me convier sofrê-los; se a Deus agradar, eles se
enfraquecerão e envelhecerão, e eu crescerei, se agradar a Deus, em força e em poder: será, então, minha vez de vingar-me a meu talante).
[811] Roger. de Hoveden, p. 635: Singulis diebus in unâ mensâ ad unum catinum manducabant, et in noctibus non separate eos lectus (NT: Normalmente, em todos os
dias, comiam a uma mesa e de um mesmo prato e, à noite, não separavam seus leitos).
[812] Por exemplo, em Murat e no marechal Lannes.
[813] Extraits des histor. arabes , por M. Reinaud (Bibliot. des Croisades, III, 242: “Quando Nuradino orava no templo, seus súditos acreditavam ver um santuário
dentro de um outro santuário.” – “Ele consagrava à oração um tempo considerável; ele despertava no meio da madrugada, fazia sua ablução e orava até a manhã”. –
“Numa batalha, vendo os seus se dobrarem, ele descobriu a cabeça, prostrou-se e disse alto: ‘Meu Senhor e meu Deus, meu senhor soberano, eu sou Mahmud, teu servo;
não o abandone! Defendendo-o, será a Tua religião que defenderás!’. Ele não cessou de se humilhar, de chorar, de rolar à terra, até que Deus lhe tivesse acordado a
vitória”. – “Ele fazia penitência para as desordens às quais as pessoas se abandonavam em seu campo, vestindo-se com um túnica grosseira, dormindo sobre a superfície
dura, abstendo-se de todo prazer e escrevendo de todos os lugares para as pessoas piedosas, reclamando suas preces. Ele construiu muitas mesquistas, khans, hospitais
etc. Jamais tentou cobrar contribuições das casas dos sufitas, das pessoas da lei, dos leitores do Alcorão. Seu prazer era discutir com os chefes dos monges, os doutores
da lei, os Ulemás; ele os abraçava, os fazia sentarem-se ao seu lado, em seu sofá, e o encontro se dava sobre alguma matéria religiosa. Assim, os devotos acorriam para
perto dele das regiões mais distantes. Chegou-se ao ponto de despertar o ciúme dos Emires”. – Os historiadores árabes, assim como Guilherme de Tiro, o pintavam como
muito ardiloso.
(NT): “Zengi” é mad ad-Din Atabeg Zengi (al-Malik al-Mansur) (c. 1085 - 1146), mais conhecido pela forma abreviada Zengi ou Zangi, Zengui, Zenki, Zanki, Zengid
cognominado de Sanguinus (Sanguíneo) pelos cronistas francos das cruzadas, atabey (atabegue) de Mossul e Alepo a serviço dos turcos seljúcidas, na época em conflito
com os cruzados. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Zengi).
“Nuradino” é al-Malik al-Adil Nur ad-Din Abu al-Qasim Mahmud Ibn 'Imad ad-Din Zangi (1118 - 1174), mais conhecido por diversas variantes da forma abreviada
do seu nome, como Nur ed-Din, Nur al-Din, Nuredino ou Nuradino (em árabe: ‫ ﻧﻮر اﻟﺪﯾﻦ‬ou Nūr ad-Dīn) foi o segundo soberano da dinastia dos zengidas, governando a Síria
e o Iraque de 1146 a 1174 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Nur_ad-Din).
[814] Bibliothèque des Croisades, III vol. (Extraits des Historiens arabes, por M. Reinaud), p. 370 – Acusava-se Kilij Aslan de ter abraçado esta seita. Nuradino
obrigou-o a renovar sua profissão de fé no Islamismo e ele disse “Que isso me importa e eu bem vejo que Nuradino o deseja sobretudo para os descrentes”.
[815] Hist. des Atabeks, ibid.. Nuradino estudara Direito, seguindo a doutrina de Abu-Hanifa, um dos mais célebres jurisconsultos muçulmanos; ele sempre dizia: nós
somos os ministros da lei, nosso dever é manter sua execução; e, quando havia alguma causa, ele próprio demandava perante o Cadi. – Primeiramente, ele instituiu uma
corte de justiça, proibiu a tortura e a substituiu pela prova testemunhal. – Saladino lamenta-se, numa carta a Nuradino, da suavidade de suas leis. Entretanto, em outra
oportunidade, diz: “Tudo o que aprendemos no que toca à justiça, foi dele de quem recebemos”. – O próprio Saladino empregava seu tempo livre para distribuir a justiça,
tendo sido cognominado o Restaurador da Justiça sobre a Terra.
[816] Boha-Eddin (Bibl. des Crois., III, 362, segs.) pinta-o como abandonado às práticas mais minuciosas. – Ele jejuava todas as vezes que sua saúde o permitia, e
mandava ler o Alcorão a todo os seus servidores. Tendo, um dia, visto uma criança pequena que lia para seu pai, ele mostrou-se tocado ao ponto das lágrimas.
[817] A generosidade de Saladino em relação aos Cristãos é celebrada com mais brilho pelos historiadores latinos e, principalmente, pelo continuador de Guilherme de
Tiro, do que pelos historiadores árabes: nestes, encontra-se, mesmo, algumas passagens obscuras, mas que indicam que os Muçulmanos tinham visto com pesar os
sentimentos generosos do Sultão. Michaud, Hist. des Croisades, II, 346.
[818] Na batalha de Tiberíades, com Lusignan, foram feitos prisioneiros o príncipe de Antióquia, o marquês de Montferrat, o conde de Edessa, o condestável do reino, os
grãos-mestres do Templo e de Jerusalém, e quase toda a nobreza da Terra Santa. Jac. de Vitriaco, c. 94. Histor. Hieros., p. 1.153. Bern. Thesaurarii c. 155, 156.
[819] Hist. Hierosolym., ap. Bongars, p. 1161. O historiador pretende que os Turcos eram mais de trezentos mil.
[820] (NT): como já dissemos mais acima: morreu afogado no rio Sélef (hoje Gosku), na Anatólia (parte oriental da Turquia), em virtude do peso de sua armadura, após
uma queda de cavalo.
[821] Godofr. monach. ap. Raumer, Gesch. der Hohenst.: Cùm à physicis esse suggestum posse curari eum si rebus venereis uti vellet, respondit: malle se mori, quàm
in peregrinatione divinâ corpus suum per libidinem maculare (NT: Quando seus médicos sugeriram que poderia ser salvo se mantivesse relações sexuais, ele
respondeu: que preferia a morte a profanar o corpo com coisas libidinosas, enquanto estivesse numa peregrinação divina).
[822] Roger de Hoved., p. 674: Et signa regis Angliæ in munitionibus per circuitum posuerunt.... (NT: E, ao redor das fortalezas, exibiu os símbolos do rei da
Inglaterra). Vide Thierry, Conq. de l’Anglet., IV, 37.
[823] (NT): “arras”: no texto, é um termo antiquado utilizado para designar os bens dotais que eram assegurados pelo noivo à noiva, no caso desta lhe sobreviver.
Modernamente, significa o sinal dado como garantia de um contrato.
[824] Roger de Hoveden, p. 688: Sub hâc conventione dedit ei licentiam ducendi uxorem quamcumque vellet {NT: Sob este acordo, ele (Ricardo) foi liberado para
tomar por esposa quem quer que desejasse}.
[825] O catálogo dos mortos contêm os nomes de seis arcebispos, doze bispos, quarenta e cinco condes e quinhentos barões. Hoveden, p. 390. Galter. de Vinis., ap.
Lingard, II, 517. – Segundo Abul-Farage*, pereceram cento e vinte quatro mil muçulmanos (Bibliothèque des Croisades, IV, p. 359).
*(NT): Abul-Farage é também conhecido por Bar-Hebræus (1226-1286), nascido no Azerbaijão iraniano, foi um historiador, médico e filósofo árabe de religião cristã,
bispo jacobita, escritor de língua síria. Seu verdadeiro nome era Gregorios Abu’l-Faradg Gamal al-Din ou Abu al-Faraj Ibn al-Ibri ou Abul Faradj. Conhecido no
Ocidente sob os nomes latinizados de Abulfaragius e Bar Hebræus - a partir do sítio internet http://fr.wikipedia.org/wiki/Aboul_Faradj.
[826] Boha-Eddin (NT: Bahadino ou Bohadino: Bahā' ad-Dīn Yusuf ibn Rafi ibn Shaddād ), que relata esse propósito, o recebeu da própria boca de Saladino. Vide os
Extraits de M. Reinaud (Bibliot. des Crois., III, 374).
[827] Joinville (édit. 1761, folº), p. 116: “Le roy Richart fist tant d’armes outremer à celle foys que il y fu, que quant les chevaus aus Sarrazins avoient pouour d’aucun
bisson, leur mestre leur disoient: Cuides tu, fesoient ils à leur chevaus, que ce soit le roy Richart d’Angleterre? Et quand les enfans aus Sarrazines bréoient, elles leur
disoient: Tai-toy, tai-toy, ou je irai querre le roy Richart qui te tuera”. (NT do francês arcaico: O rei Ricardo, naquela vez em que para lá foi, levou tantas armas ao
ultramar que, quando os cavalos dos Sarracenos tinham medo de alguma coisa, seus mestres diziam: “Achas tu”, dirigindo-se a seus cavalos, “que seja o rei
Ricardo da Inglaterra”? E, quando as crianças dos Sarracenos berravam, elas lhes diziam: “Cala-te, cala-te, ou irei procurar o rei Ricardo que te matará” ).
[828] Diante da cidade de Ptolemais, vários barões franceses passaram para o pavilhão da Inglaterra: a crônica de Saint Denis, depois desta época, não chama mais o
rei da Inglaterra de Richard, mas de Trichard {NT: Trichard pode ser traduzido por “Trapaçardo” ou “Enganardo”, através da junção do adjetivo tricheur
(trapaceiro, enganador, embusteiro, escroque, vigarista) + com o substantivo próprio Richard (Ricardo)}.
[829] In cloacam dejicere... Scr. fr. XVIII, 27.
[830] Joinville (edição 1761), p. 116: “Tandis qu’ils estoyent en ce paroles, un sien chevalier lui escria: ‘Sire, Sire, venez juesques ici, et je vous moustrerrai Jérusalem’.
Et quant il oy ce, il geta sa cote à armer devant ses yex tout en plorant, et dit à Nostre-Seigneur: ‘Biau Sire Diex, je te pri que tu ne seuffres que je voie ta sainte cité,
puisque je ne la puis délivrer des mains de tes ennemis”.
[831] Por exemplo, o campo de Ptolemais, em 1191. Michaud, II, 451.
[832] Michaud, II, 450. Os cruzados foram com frequência admitidos à mesa de Saladino e os emires àquela de Ricardo. Ibid., 522.
[833] Saladino enviou aos reis Cristãos, em sua chegada, ameixas de Damasco e outras frutas; estes presentearam Saladino com jóias. Michaud, II, 436 (segundo
Brompton). Filipe e Ricardo acusaram-se mutuamente de manterem correspondência com os Muçulmanos. Ricardo ostentava, em Chipre, um manto com bordados em
forma de crescentes de prata. Bibliot. des Crois., II, 685. – Ricardo propôs que Malek-Adhel, irmão de Saladino, desposasse sua irmã, viúva de Guilherme da Sicília; sob
os auspícios de Saladino e de Ricardo, os dois esposos deviam reinar juntos sobre os Muçulmanos e Cristãos e governar o reino de Jerusalém. Saladino, aparentemente,
aceitou essa proposta sem repugnância; os Imãs e os Doutores da lei ficaram muito espantados; os bispos cristãos ameaçaram Joana e Ricardo de excomunhão. Michaud,
II, 477. Saladino desejou conhecer os estatutos da Cavalaria e Malek-Adhel enviou seu filho a Ricardo, a fim de que o jovem muçulmano fosse sagrado cavaleiro na
assembléia dos Barões cristãos. Id. p. 522.
[834] O Papa recusa-se. Bened. Petroburg., p. 541.
[835] Como Ricardo viesse de chegar à Viena, após três dias de marcha, esgotado de cansaço e de fome, seu valete, que falava saxão, foi trocar besantes de ouro e
comprar provisões no mercado. Ele fez muita exposição de seu ouro, posando de homem de corte, afetando belas e boas maneiras; percebeu-se, então, em sua cintura, um
par de luvas ricamente bordadas, tais como as vestiam os grandes senhores da época; isto o tornou suspeito, uma vez que o rumor do desembarque de Ricardo havia se
espalhado na Áustria: o valete foi detido e, sob tortura, tudo confessou. Radulphus de Coggeshale, ap. Scr. fr. XVIII, 72. Vide Thierry, Conquête de l’Angleterre, IV, 70.
(NT): Gore Vidal (1925-2012), um dos grandes intelectuais, escritores e cronistas americanos de todos os tempos, escreveu, em 1950, o delicioso romance histórico A
search for the King , publicado no Brasil sob o título “À procura do Rei”, no qual conta esse período de travessia de Ricardo pela Áustria, sua captura pelo duque
Leopoldo e seu cativeiro sob Henrique VI, além de fazer uma incursão pelo amor cortês (l’amour courtois), através do personagem do valete e trovador Blonde de Néel.
[836] Petri Blesensis ad Papam, epist., ad Gieseler, II, 2ª parte, p. 91: Regem... in sanctâ peregrinatione, in protectione Dei cœli, captum, et vinculis carceralibus
coarctatum tenet (NT: O Rei ... em santa peregrinação, sob a proteção do Deus do céu, foi capturado, e os laços estreitaram-no nos porões do cárcere).
[837] Rog. de Hoved., p. 724: Deposuit se de regno Angliæ, et tradidit illud imperatori sicut universorum domino, et investivit eum indè per pileum suum (NT: Despiu-se
das coisas relativas ao reino da Inglaterra e deu-as ao Imperador, na condição de senhor do universo, e investiu-o com seu chapéu).

[838]
TELUM LIMOGIÆ
OCCIDIT LEONEM ANGLIÆ
No castelo de Limoges
Foi morto o Leão da Inglaterra

Uma religiosa de Canterbury dedicou a Ricardo este epitáfio: “A avareza, o adultério, o cego desejo, reinaram dez anos sobre o trono da Inglaterra; um arbalete os
destronou”. Rog. de Hoveden.
(NT): o castelo de Châlus, arrasado a título de vingança pela morte do rei, mantém um gisante no local onde foram enterradas suas entranhas. Fotos dos três gisantes de
Ricardo – Fontevraud l’Abbaye recebeu o corpo, a Catedral de Rouen o coração e o castelo de Châlus, local de sua morte, as entranhas – podem ser vistas em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Mort_de_Richard_Coeur_de_Lion_à_Châlus. À ocasião do sítio do castelo, o arbaleteiro (Pierre Basile) que lançou a seta e atingiu a
base do pescoço de Ricardo, acima de seu ombro esquerdo, era um dos dois únicos cavaleiros a defender a fortaleza. Tudo indica que Pierre Basile não sabia que Ricardo,
sem suas vestes reais e utilizando apenas um capacete, estivesse no grupo contra o qual mirou seu arbalete. Ele teria sido perdoado pelo agonizante rei mas, segundo o
cronista contemporâneo Roger de Hoveden, apesar deste perdão, Mercadier, fiel capitão de Ricardo, teria ordenado que Pierre fosse esfolado vivo e, depois, enforcado.
Porém, pesquisas históricas e, notadamente a descoberta de um ato datado de 1239, relativo à sucessão de Pierre, fazem pensar que o mesmo viveu durante muito tempo
após sua (involuntária?) façanha de 1199. Vide, também, o sítio http://fr.wikipedia.org/wiki/Pierre_Basile.
[839] Willelm. Tyr., l. XXII, c. 11, 12, 13. Um legado foi massacrado e sua cabeça arrastada à cauda de um cachorro pelas ruas da cidade. Passou-se ao fio da espada
até os doentes do Hospital São João (ad Xenodochium... quotquot in eo repererunt languidos, gladio peremerunt - até nos Hospitais... todos os doentes que nele foram
encontrados, foram mortos pelo gládio). Não se poupou senão quatro mil dos Latinos que foram, no entanto, vendidos como escravos aos Turcos. Vide também a carta
encíclica de Balduíno, 1204 (Ap. Scr. fr. XVIII, 524).
[840] Foi Godofredo de Villehardouin quem transmitiu o pedido; quando terminou, ele mesmo disse: “Maintenant li six messages s’agenoillent à lor piez mult plorant; et li
Dux et tuit li autre s’escrièrent tuit à une voiz, et tendent lor mains en halt, et distrent: nos l’otrions, nos l’otrions. Enki ot si grant bruit et si grant noise que il sembla que
terre fondit” (NT do francês arcaico: “Neste momento, os seis mensageiros se ajoelharam a seus pés chorando muito; e o Doge, e todos os outros, exclamaram,
todos a uma só voz, e ergueram suas mãos para o alto, e disseram: ‘nós o faremos, nós o faremos’. No que se eleva um grande ruído e um tão grande tumulto
que pareceu que a terra tremia”)*. – O Doge então falou ao povo e as cartas do tratado foram redigidas. “Et quant li Duc lor livra les soes chartres, si s’agenouilla mult
plorant, et jura sor sains à bone foy, à bien tenir les convens qui èrent ès chartres, et toz ses conseils ausi, qui ère de xlvj. Et li messages rejurèrent les lor chartres à tenir,
et les sermens à lor seignor, et les lor que il les tenroient à bonne foy. Sachiez que la ot maint lerme plorée de pitié” (NT do francês arcaico: E quando o Doge
entregou-lhes suas cartas, eles se ajoelharam chorando muito, e juraram, sem reservas, a bem observarem os termos que estavam nas cartas, e todas as
cláusulas também, que eram 46. E os mensageiros novamente juraram manter os termos das cartas, e os juramentos a seu senhor, e que os observariam com
boa-fé. Sabei que, lá, foram derramadas muitas lágrimas de piedade). Villehardouin (édit. Petiot), c. 17.
* (NT): Todas as traduções do francês arcaico de Villehardouin foram adaptadas a partir das Mèmoires de Geoffroy de Villehardouin , a partir do sítio internet de P.
Remacle: http://remacle.org/bloodwolf/francais/villehardouin/table.htm
[841] Nic. in Al. Comn. III, c. 9, p. 347: “Dandolo, um homem cego, avinagrado pelos anos, cheio de conspirações e inveja contra os gregos, o qual, cheio de todas as
artimanhas, concebe-se a si próprio ser o mais astuto dos astutos etc.”
[842] “Lors furent assemblé à un dimanche à l'iglise Sain Marc. Si ére une mult feste, et i fu li pueple de la terre, et li plus des barons et des pelerins. Devant ce que la
grant messe commençast, et li dux de Venise qui avoit nom Henris Dandole monta el leteril, et parla al pueple, et lor dist. Seignor acompagnié estes al la meillor gent dou
monde, et por le plus halt affaire que onques genz entrepreissent: et je sui vialz hom et febles, et auroie mestier de repos, et maaigniez sui de mon cors. Més je voi que nus
ne vos sauroit si gouverner, et si maistrer com ge que vostre Sire sui. Se vos voliez otroier que je preisse le signe de la croiz por vos garder, et por vos enseingnier, et mes
fils remansist en mon leu, et gardast la terre, je iroie vivre ou morir avec vos, et avec les pelerins. Et quant cil oïrent, si s'escrierent tuit a une voiz, nos vos proions por Dieu
que vos l'otroiez, et que vos le façois, et que vos en viegnez avec nos” (NT do francês arcaico: “Então, foram congregados em assembléia, num domingo, na igreja
de São Marcos. Era uma grande festa, e para lá foi o povo da terra, e os barões e os peregrinos. Antes que a grande missa começasse, o duque de Veneza,
cujo nome era Henrique Dandolo, subiu ao púlpito e falou ao povo, dizendo-lhe : « Senhores, estais acompanhados da melhor gente do mundo e para o mais
alto caso que jamais foi executado. Sou homem velho e fraco e teria mister de repouso pois sofro do meu corpo. Mas vejo que não saberíeis vos governar e
vos conduzir tanto quanto este vosso Senhor. É por isso que, se desejais que eu tome o sinal da cruz para guardar-vos e para ensinar-vos, e que meu filho
permaneça em meu lugar e guarde a terra, irei viver ou morrer convosco e com os peregrinos’. E, tendo aqueles ouvido, exclamaram todos a uma só voz ‘nós
vos rogamos, em nome de Deus, que o desejais e que o façais, e que vinde conosco”). Ibid., c. 33.
“Mult ot illuec grant pitié del pueple de la terre et des pelerins, et mainte lerme plorée, porce que cil prodom aust si grant ochoison de remanoir, car viels hom ére, et si avoit
les yeulx en la teste biaus, et si n'en veoit gote, que perduë avoit la veuë per une plaie qu'il ot el chief: mult parere de grant cuer. Ha! com mal le sembloient cil qui à autres
pors estoient allé por eschiver le peril. Ensi avala li litteril, et alla devant l'autel, et se mist à genoilz mult plorant, et il li cousiérent la croiz en un grant chapel de coton, porce
que il voloit que la gent la veissent. Et Venisien si commençent à croiser à mult grant foison, et à grant plenté en icel jor, encor en i ot mult poi de croisiez. Nostre pelerin
orent mult grant joie, et mult grant pitié de celle croiz por le sens, et por la proesce que il avoit en lui. Ensi fu croisiez li Dux, com vos avez oï. Lors commença en aliner les
nés, et les galies, et les vissiers às barons por movoir, et del termine ot jà tant allé, que li septembre aproça” (NT do francês arcaico: “Muitos do povo da terra e dos
peregrinos foram tomados de piedade, e muitas lágrimas choraram, porque viram este idoso, que tinha motivo para permanecer, pois era homem velho e que,
apesar de ainda possuir olhos bonitos, havia perdido a visão por conta de uma ferida que recebera na cabeça, mostrar ainda tanta coragem. Ha! quão
malvados pareciam-lhe aqueles que, para fugir ao perigo, tinham ido para outros portos. Assim, ele desceu do púlpito e foi para a frente do altar, e pôs-se de
joelhos chorando muito, e aí coseram-lhe a cruz num grande chapéu de algodão, porque ele desejava que as gentes a vissem. E os Venezianos começaram a
fazer-se cruzados da mesma forma, e para grande inveja uns dos outros, embora o número não fosse grande. Nossos peregrinos (i.e., os Franceses) tiveram
muita alegria e grande compaixão daquela cruz que (o duque) tomara pelos seus, e pelo grande valor que nele viam. Então começou a preparar as naus, e as
galeras, para entregá-las aos barões a fim de que as movessem, e que tal terminassem para irem no mês de setembro próximo). Ibid. c. 34.
[843] Um grande número de cruzados temera as dificuldades da passagem por Veneza e fora embarcar em outros portos: aqueles que permaneceram, estavam
reduzidos a um número menor que jamais pensaram e viram-se em grandes embaraços para pagar o valor convencionado. “Et de ce furent mult lie, cil qui lor avoir avoient
mis arriere, ne ni voldrent riens mettre, que lors cuiderent il bien que li ost fust faillie, et depeçast” (NT do franco arcaico: “E muitos se alegraram por terem deixado
sua fortuna para trás e que, em nada desejando contribuir, imaginando que, por isso, o exército se disfaria e se despedaçaria”) . Essas divisões arriscaram,
várias vezes, abortar toda a empresa (vide mais abaixo).
[844] O Papa ameaçou os cruzados de excomunhão porque o rei da Hungria, tendo tomado a cruz, encontrava-se sob a proteção da igreja (Epist. Innoc. III, ap. Scr. fr.
XIX, 420,421. Petr. Vall. Sarn., c. 19). Capturada a cidade, os cruzados enviaram uma delegação ao Papa para se desculparem: “Li baron vos merci crient de la prise de
Jadres, que il le fistrent com cil qui mielz non pooient faire por le defaute de cels qui estoient allé aus autres porz, et que autrement ne poient tenir ensemble, et sor ce
mandent à vos, corne a lor bon pere, que vos alor commandoiz vostre commandemenz que il sont prest de faire” (NT do francês arcaico: “Os barões humildemente
rogam vosso perdão pela captura de Zara, o que fizeram contrariados e não podendo fazer melhor pela falta daqueles que se tinham ido para outros portos,
sem o que se viram na necessidade de romper o campo e de não poderem voltar sem nada fazer ; então, eles se recomendam a vós, como a seu bom pai, para
que diteis vossos comandos, aos quais estão prontos a obedecer”), Villehardouin, p. 169 – Epist. Innoc. III, apud Scr. fr. XIX, 432.
[845] Guy de Montfort, seu irmão Simão de Néaufle, o abade de Vaux-Sarnay etc., Villehardouin, p. 174 – Em Corfu, um bom número de cruzados resolveu permanecer
nesta ilha “riche et plenteuroise” (rica e abundante). Quando os chefes do exército tomaram conhecimento disto, tentaram disssuadi-los: “Mais alons a els et lor crions
merci, que il aient por Dieu pitié d'els et de nos, et que il ne se honissent, et que il ne toillent la rescosse d'oltremer. Ensi fu li conseils accordez, et allèrent toz ensemble en
une vallée ou cil tenoient lor parlemenz, et menérent avec als le fils l'empereor de Constantinople, et toz les evesques et toz les abbez de l'ost. Et cum il vindrent là, si
descendirent à pié. Et cil cùm il les virent, si descendirent de lor chevaus, et allérent encontre, et li baron lor cheirent as piez mult plorant, et distrent que il ne se moveroient
tresque cil aroient creancè que il ne se mouroient d'els. Et quant cil virent ce, si orent mult grant pitié, et plorérent mult durement {NT do francês arcaico: “Mas vamos a
eles e roguemo-los que, por Deus, tenham piedade de si próprios e de nós, e que não se desonrem e nem tolham o auxílio d’ultramar. Assim, tal resolução foi
acordada e foram todos juntos a um vale onde eles (os cruzados que desejavam permanecer na ilha) mantinham seu parlamento (assembléia) e levaram consigo o
filho do imperador de Constantinopla e todos os bispos e todos os abades da hoste (exército). E, tendo lá chegado, puseram-se a pé (desmontaram dos cavalos).
E quando aqueles (os cruzados que desejavam permanecer na ilha) os viram, também desceram de seus cavalos e foram ao encontro dos primeiros, e os barões
lançaram-se aos seus pés, chorando muito, e disseram que não se moveriam até que eles prometessem não abandoná-los. E quando viram isso, eles (os
cruzados...) tiveram mui grande piedade e choraram intensamente”}. Ibid., p. 173-177. Quando aqueles de Zara vieram propor a Dandolo entregar-lhe a praça-forte,
“Endementiers que il alla parler as contes et as barons, iceie partie, dont vos avez oi arrieres, qui voloit l'ost depecier, parlérent as messages, et distrent lor: Porquoy volez
vos rendre vostre cité? {NT do francês arcaico: Enquanto ele (o Doge) foi falar aos condes e aos barões, aquele partido, a respeito do qual ouvistes falar, e que
desejava estraçalhar a (nossa) hoste (exército), falou aos mensageiros (de Zara) e disse-lhes : ‘Por que desejais render vossa cidade?’} . Essas manobras fizeram
com que a capitulação fosse evitada. – Em Zara, houve um combate entre os Venezianos e os Franceses.
[846] Em 858, o laico Photius fora colocado no cargo do Patriarca Inácio pelo Imperador Miguel III. O Papa Nicolau I tomou o partido de Inácio (Nicol. I, ep. 2, 9, ad
Michael., 10 ad. cler. Const., 3 ad Phot., etc). Photius, então, anatematizou o Papa em 867.
[847] Por uma carta do Patriarca Miguel ao bispo de Trani, a respeito dos Ázimos (NT: Festa dos Ázimos ou Pessa’h, da religião judaica) e do sábado (NT: sabá ou
shabbat, também da religião judaica), e as observâncias da igreja romana. Baron. annal., ad ann. 1053.
[848] Nicetas in Alex. Comm., c. 10. Willelm. Tyr., l. XXII, c. 10-13. – Numa carta encíclica onde conta a tomada de Constantinopla, Balduíno acusa os Gregos de
terem frequentemente contraído alianças com os infiéis, de inovar no batismo, de não honrar o Cristo senão através de pinturas (Christum solis honorare picturis), de
chamar os Latinos de cachorros, de não se acharem culpados por verterem o sangue destes. – Ele evoca a morte cruel do legado papal que fora enviado a
Constantinopla, em 1183. – Hæc et ejusmodi deliramenta... impletis iniquitatibus eorum quæ ipsum Dominum ad nauseam provocabant, divina justitia nostro ministerio dignâ
ultione percussit, et... terram nobis dedit omnium bonorum copiis affluentem, frumento, vino et oleo stabilitam, fructibus opulentam, nemoribus, aquis et pascuis speciosam,
spatiosissimam ad manendum, et cui similem non continet orbis, aëre temperatam ( N T: Estes e tais absurdos ... executadas as iniqüidades das coisas que
provocaram o Senhor até à náusea, a justiça divina, usando-nos como seus instrumentos, tem vingado dignamente, por nosso ministério, crimes como estes e ...
Ele nos deu uma terra que transborda de coisas boas, milho, vinho e azeite, fértil em frutas e bosques, linda em água e pastos, bela e espaçosa cidade para
habitar, e uma temperatura agradável para desfrutar, como não existe em nenhum outro lugar do mundo). Scr. fr. XVIII, 524. Vide também Baronius, ann. 1054.
[849] Nicet. in Alexis Comneno, III, c. 9. p. 348: Κακὸν ὲπὶ κακῷ ϖροσϐάλλει, καὶ κῦμα, ὅ φασιν, ἐπὶ κύματι Ρωμαίοις ὲπικυλίνδεται.
[850] “... Cil des nés et des galies et des vissiers pristrent port, et aancrèrent lor vaissials. Or poez savoir que mult esgardèrent Constantinople cil qui onques mais ne
l'avaient veuë, que il ne pooient mie cuidier que si riche vile peust estre en tot le monde. Cùm il virent ces halz murs, et ces riches tours dont ére close tot entor a la reonde,
et ces riches palais, et ces haltes yglises dont il i avait tant que nuls nel poist croire, se il ne le veist à l'oil et le lonc, et le lé de la ville que de totes les autres ére souveraine.
Et sachiez que il ni ot si hardi, cui le cuer ne fremist; et ce ne fu mie merveille, que onques si grant affaires ne fu empris de tant de gent puis que li monz fu estorez (NT do
francês arcaico : “... E aqueles das naus e das galeras que vieram a dar no porto, ancorando seus vasos. Ora, podeis saber que muito contemplaram
Constantinopla aqueles que jamais a tinham visto, e que não podiam acreditar que tão rica cidade pudesse existir em todo o mundo. Quando viram essas altas
muralhas e essas belas torres que fechavam todo o seu entorno, e esses belos palácios e essas altas igrejas, das quais havia tantas que nem se conseguiria
acreditar se não vissem de seus próprios olhos e, tudo isso, ao longo e ao largo da cidade que, entre todas as outras, era a soberana. E sabei que ali não
havia ninguem tão ousado que o coração não fremisse; e isso não causou espanto, visto que uma tal empresa jamais fora realizada, desde que o mundo foi
criado, por um número tão pequeno de pessoas). Villehardouin, p. 183. Vide também ibid. p. 231; Foulcher de Chartres, c. 41, ap. Bongars, p. 386; Guilherme de Tiro,
l. II, c. 3, XX, c. 26.
[851] Num outro encontro: “Li Grieu lor tornèrent les dos, si furent desconfiz à la première assemblée (au premier choc)” – (NT: “Os Gregos deram-lhes as costas,
tão logo desafiados no primeiro choque). Villehard. , p. 191
[852] Εννεα οργυιας. Em outra passagem, ele se contenta em dizer: “Esses Francos eram tão altos quanto suas lanças”.
[853] Villehardouin, p. 281: “Chascuns garni le chastel qui li fu renduz de sa gent, et fist le tresor garder. Et les autres genz qui furent espandu parmi la ville, gaaigniérent
assez, et fu si granz la gaaiez fait, que nus ne vos en sauroit dire la fin d'or et d'argent, et de vasselement, et de pierres precieuses, et de samiz, et de dras de soie, et de
robes vaires, et grises, et hermines, et toz les chiers avoirs qui onques furent trové en terre. Et bien tesmoigne Joffroi de Ville-Hardouin, li mareschaus de Champaigne à
son escient por verté, que puis que li siecles fu estorez, ne fu tant gaaignié en une ville.... et fu granz la joie de l'onor et de la victoire que Diex lor ot donée, que cil qui
avoient esté en poverté estoient en richeçe et en delit... Bien poez savoir que granz fu li avoirs, que sanz celui qui fu emblez, et sanz la partie des Venitiens, en vint bien
avant cinq cens mil mars d'argent, et bien dix mil chevaucheures que unes que autres. Ainsi fu depaitiz li gaienz de Constantinople, com vos avez oï” {NT do francês
arcaico : Cada um guarneceu o castelo que lhe foi entregue com sua gente e mandou guardar os tesouros. E as outras gentes, que foram espalhadas pela
cidades, ganharam o suficiente ; e foi tão grande o ganho (butim, pilhagem) que não saberíamos vos dizer quanto de ouro e de prata, e de louças, e de pedras
preciosas, e de veludos, e de cortes de seda, e de vestes de peles estampadas (vairs) e de cor-de cinza (gris)*, de arminho, e outros móveis preciosos
semelhantes foram encontrados. E assim bem testemunha Godofredo de Villehardouin, o marechal da Champagne, tanto quanto conhece por verdade, que,
desde que o mundo foi criado, nunca houve tanto ganho numa só cidade... e foi tão grande o júbilo da honra e da vitória que lhes foi dada por Deus, que
aqueles que estavam reduzidos à pobreza encontraram-se na riqueza e nas delícias... Podeis bem saber quão grandes foram os haveres (butim, pilhagem) que,
sem aquela parte que foi escondida e trancafiada, e sem a parte dos Venezianos, vieram-nos antes quinhentos mil marcos de prata e mais de dez mil
calvalgaduras, tanto boas quanto ruins. Assim foram repartidos os ganhos de Constantinopla, como ouvistes}.
* “vestes de pele”: “estampadas” = vairs e “de cor de cinza” = gris: a palavra “vair” significa uma pele de cor de cinza claro misturada a outras cores, advinda da
palavra latina “varius”; é fornecida pelo esfolamento de esquilos, cuja pelagem torna-se cinza-prata durante o inverno e cuja mescla branco e cinza a torna muito valiosa
(“vair”, no francês arcaico da Idade Média, também era um adjetivo e designava uma cor de olhos entre o azul e o marron, mas que não podia ser claramente definida,
tratando-se, portanto, de uma cor cinza-esverdeada ou cinza-azulado e, por analogia, o adjetivo tambérm era empregado para se referir a uma pessoa inconstante, volúvel,
variável). “Gris” ou cinza ou, mais corretamente, “petit-gris”, designa vários tipos de esquilo e, por extensão, sua pele, cuja pelagem não muda de cor, sendo, portanto,
monocromática e menos valiosa. Vide: http://fr.wikipedia.org/wiki/Petit-gris_(écureuil) e http://fr.wikipedia.org/wiki/Vair.
[854] Nicetas, p. 382: “Os cruzados vestiam-se, não por necessidade, mas para exibirem-se ridículos, com trajes pintados, vestimenta ordinária dos Gregos; eles punham
nossos turbantes de toalha sobre as cabeças de seus cavalos e atavam-lhes aos pescoços as fitas que, segundo nosso costumes, devem pender para trás; alguns levavam
papel, tinta e pranchetas em suas mãos a fim de zombarem de nós, como se não fôssemos senão péssimos escribas ou simples copistas. Eles passavam dias inteiros à
mesa; alguns saboreavam iguarias finas e delicadas; outros não comiam, seguindo o costume de seus países, senão carne cozida de boi ou toucinho salgado, alho, farinha,
favas e um molho muito forte”.
[855] Sanu Gibbon, XII, 91. (NT: também conhecidos como senhores d’um quarto e meio do império romano).
[856] Balduíno I de Constantinopla é Baudouin de Flandre et de Hainaut (1171-1205 ou 1206): conde de Flandres (Balduíno IX), conde de Hainaut (Balduíno VI) e
Imperador de Constantinopla (Balduíno I). Primeiro imperador latino de Constantinopla.
[857] Inocente III, epist. t. II, l. VII, p. 619-622. – Ele escreveu ao clero e à Universidade da França para que fossem enviados, o quanto antes, clérigos e livros para a
instrução dos habitantes de Constantinopla. Epist. l. VIII, pgs. 712, 713.
[858] (NT): ou Principado de Acaia, estado vassalo do Império e situado apenas praticamente sobre a Península do Peloponeso que, antigamente, era também conhecido
por Moréia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Principado_da_Acaia.
[859] “E parlaven axi bell frances, com dins en Paris”. Raim. Montaner, ap. Ducange, Præf. ad. glossar.
[860] Chron. Languedoc, ap. Scr. fr. XIX, 156: “Loqual lo Rey d’Anglaterra avia norrit un temps e de sa joynessa (NT: O qual o Rei da Inglaterra havia alimentado
um tempo, durante sua juventude).
[861] Guill. Neubrig., p. 396: “Londonias quoque venderem si emptorem idoneum invenirem”.
[862] Rog. de Hov., p. 544: “Tota Anglia, à mari usquè ad mare, redacta est ad inopiam”.
[863] De fato, sendo a Aquitânia sua herança, ela transferira seus direitos a João. Rymer, I, , 110-112. Lingard, III, 3.
[864] M. Paris, p. 174. Subito evanuit, modo ferè omnibus ignorato, utinam non ut fama refert invida {(NT: Repentinamente desapareceu, de forma ignorada por
todos, cujos relatos esperavam não ser invejosos (maledicentes)}.-
[865] Ann. de Margan, ap. Scr. fr. XIXI, 247: “… Propriâ manu interfecit, et grandi lapide ad collum ejus alligato, projecit in Sequanam (NT: Matou-o de sua própria
mão e, amarrando-lhe uma grande pedra ao pescoço, lançou-o ao Sena).
[866] Will. Brito, VI, p. 167.
(NT): O próprio Mathieu Paris relata, mais à frente, o ruído popular que acusava João de ter apunhaldo seu sobrinho, de sua própria mão, e de tê-lo jogado no Sena. Mas
nada prova que João, irritado com as palavras altivas de Arthur, então prisioneiro em Falaise, não tivesse enviado a ordem, de sua própria vontade, a Huberto de Bourg
(outros dizem a Guilherme de Bray), de matar o jovem ou, ao menos, de vazar-lhe os olhos, ordem esta que não teria sido executada. Todavia, Shakespeare, abraçando
esta tradição, nela encontrou os materiais para uma das mais belas cenas de sua peça (Vida e Morte do rei João , ato IV, cena 1ª). Segundo o padre de Orléans, João,
após ter cometido o homicídio, mandara espalhar o rumor que seu sobrinho havia se afogado desejando evadir-se por uma janela da torre de Rouen (também encontramos
esta tradição em Shakespeare) – nota adaptada a partir da nota nº 20 da tradução de Mathieu Paris, no sítio internet
http://remacle.org/bloodwolf/historiens/paris/chroniques10.htm#20.
[867] Mas ele teve dificuldades em persuadir as pessoas da necessidade: bastou, para destruir a acusação, uma carta falsa do Velho da Montanha, a qual Ricardo fez
circular.
[868] Math. Paris, ap. Scr. r. Fr, t. XVII: Cum reginâ epulabatur quotidiè splendidè, somnosque matutinales usque ad prandendi horam protraxit. Thierry, IV, 154. – Id.
(ed. 1664), p. 148: Omnimodis cum reginâ suâ vivebat deliciis.
[869] Guilherme de Podio Laur. (Guilherme de Puy-Laurens) in prologo, ap. Scr. fr. XIX, 194: Sicut dicitur mallem esse Judæus, sic dicebatur mallem esse Capellatus
quam hoc vel illud facere. Clerici quoque si prodirent in publicum, coronas medias propè frontem pilis occipits occultabant (NT: O ditado “eu prefiro ser judeu”
tornou-se menos corriqueiro do que “eu prefiro ser um monge a fazer isto ou aquilo”. E quando os clérigos saíam em público, eles jogavam os cabelos para
trás, de forma a esconder a tonsura).
[870] Guill. de Pod. Laur, c. 1: “O sante abade de Clairvaux, ardendo com o zelo da fé, visitou esta terra afligida por uma incurável heresia e pensando ir, inicialmente, a
Vertfeuil, onde então florescia uma turba de cavaleiros e povo, acreditava que, se aí pudesse destruir a heresia, triunfaria facilmente em qualquer outro lugar. Quando
começou a falar, dentro da igreja, contra os mais consideráveis do lugar, estes saíram, o povo os seguiu e o santo homem, por sua vez, seguindo-lhes, pôs-se a pregar a
palavra de Deus na rua. Eles foram se esconder em todos os cantos das casas e, quanto a ele (São Bernardo), nem por isso deixou de pregar menos para o populacho que
o cercava. Mas os outros se puseram a fazer um grande barulho e a bater sobre as portas, impedindo o povo de escutar a sua voz e impedindo, assim, a palavra divina;
então, jogando contra eles a poeira de seus pés para fazê-los compreender que não eram senão poeira, ele partiu e, lançando seu olhar sobre o vilarejo, o maldisse,
exclamando: ‘Vertfeuil (verde-folha), que Deus te resseque!’. – Ele anunciou isso sobre indícios manifestos pois, naquele tempo, como conta uma velha narrativa, havia,
nesse castelo, cem cavaleiros que aí viviam, tendo armas, estandartes e cavalos, e se mantendo às próprias expensas, não às expensas de outrem; os quais, desde aquele
momento, enfraqueceram-se, a cada ano, pela miséria, assim como as pessoas violentas e, também, o granizo frequente, a esterilidade, as guerras ou sedições não lhes
permitiram um momento de repouso. Eu mesmo, em minha infância, vi o nobre Isarn Nebulat, antigamente principal senhor de Vertfeuil, a respeito de quem se dizia ser
centenário, viver miseravelmente em Toulouse e contentar-se com apenas um asno. Quão severamente o julgamento de Deus puniu vários senhores do mesmo castelo que
faltaram à Sua causa é o que mostra a própria evidência das coisas, já que tudo aquilo que o santo homem maldissera não pôde respirar nem por um momento, até que o
conde de Montfort, tendo dado Vertfeuil ao venerável padre Foulques, bispo de Toulouse, esta vingança começou, pouco a pouco, a diminuir após a expulsão dos
senhores”. – A mesma coisa ocorreu ao bispo de Carcassonne: “Um dia em que pregasse em sua cidade e que, segundo seu costume, ele reprovava aos habitantes sua
heresia, estes não mais quiseram escutá-lo: ‘Não desejais me escutar’, ele lhes disse, ‘crede em mim: eu lançarei contra vós um rugido tão alto que, das extremidades do
mundo, virão pessoas que destruirão esta cidade. E, tende por certo que vossas muralhas, ainda que fossem de ferro e de prodigiosa altura, não poderiam vos defender da
justa vingança que extrairá o soberano juízo de vossa incredulidade e de vossa malícia’. Assim, por essas mesmas palavras e por outras semelhantes que o santo homem
fazia trovejar às orelhas deles, estes de Carcassonne, um dia, o expulsaram da cidade, proibindo, expressamente, pela voz do arauto e sob pena de uma vingança atroz, que
ninguém, fosse para comprar ou vender, ousasse se dirigir a ele ou com qualquer um dos seus”; Petrus Vall. Sarn., c. 16 – Foulques recebera, em Toulouse, um
acolhimento semelhante, quando tomara posse do bispado; “Ele jamais conseguiu levantar mais que noventa e seis soldos toulousenses; e não ousava enviar ao bebedouro,
sem escolta, quatro mulas que trouxera consigo; fazia com que bebessem de um poço furado em sua casa”.; Guill. de Pod. Laur., c. 7.
[871] (NT): “Franciscus Gomarus (Franz Gomar, François Gomaer, 1563-1641) (* Bruges, 1563 - † Groningen, 1641), foi teólogo, calvinista e Professor de Teologia da
Universidade de Leiden. Foi um ferrenho opositor da teorias religiosas de Jacobus Arminius, o qual foi formalmente julgado durante o Sínodo de Dort (1618-1619)” -
http://pt.wikipedia.org/wiki/Franciscus_Gomarus.
[872] Petrus Vall. Sarn., c. 46: “Eles utilizavam as pernas da imagem para fazer pilões destinados a amassar a pimenta e as ervas que punham em seus molhos”.
(NT): Impossível, para o Tradutor, não se lembrar do grotesco episódio ocorrido em 12 de outubro de 1995 (dia de Nossa Senha Aparecida do Brasil), quando o
ensandecido pastor Sérgio von Helde, da Igreja Universal do Reino de Deus, chutou e desferiu socos na imagem católica de Nossa Senhora, durante uma pregação
televisiva transmitida pela Rede Record. O episódio causou fortíssima comoção pela intolerância demonstrada, tendo o pastor sido condenado criminalmente. O Papa João
Paulo II, à ocasião, pediu aos católicos que não combatessem o mal com o mal. Já o advogado da Igreja Universal do Reino de Deus, o renomado Dr. Márcio Thomaz
Bastos, um tanto quanto desconectado dos fatos e da época, afirmou: “A investigação é produto da inquisição contra o meu cliente”. A expressão “chutar a santa”
consagrou-se no vocabulário brasileiro para designar uma atitude desrespeitosa, violenta e sacrílega (http://pt.wikipedia.org/wiki/Chute_na_santa).
[873] Le Vélay não tardou a prestar homenagem a Filipe Augusto; vide D. Vaissette, III.
[874] “Os príncipes e senhores provençais que haviam chegado em grande número, durante o verão, ao castelo de Beaucaire, aí celebraram diversas festas. O rei da
Inglaterra indicara esta reunião para negociar a reconciliação de Raimundo, duque de Narbonne, com Alfonso, rei de Aragão; mas os dois reis, por certas razões, aí não
puderam se encontrar; de sorte que todo esse preparativo de nada serviu. O conde de Toulouse deu cem mil soldos ao cavaleiro Raimundo d’Agout que, sendo muito
liberal, logo os distribuiu a cerca de dez mil cavaleiros que assistiam esta corte. Bertrand Raimbaud mandou trabalhar todas as cercanias do castelo e aí fez gastar até
trinta mil soldos em denários. Conta-se que Guilherme Gros de Martel, que possuía trezentos cavaleiros em seu cortejo, mandou preparar todas as iguarias na cozinhna
usando archotes de cera. A condessa de Urgel para lá enviou uma coroa estimada em quarenta mil soldos: resolvera-se sagrar como “rei dos saltimbancos” um tal de
Guilherme Mite, se este não estivesse ausente. Raimundo de Venous mandou queimar na frente de todos os convivas, por ostentação, trinta de seus cavalos”, Histoire du
Languedoc, t. III, p. 37 (segundo Gaufrid. Vos., p. 321). – O sul delirava às vésperas de sua ruína, assim como o fizera Pompéia, um dia antes de ser engolida pelo
Vesúvio.
[875] Numa Apologia dirigida a Guilherme de Saint-Thierry, São Bernardo, sempre se justificando da reprovação que lhe haviam feito de ser o detrator de Cluny,
censura, entretanto, os costumes desta ordem (edição Mabillon, t. IV, pgs. 33 e segs.), c. 10: Mentior, si non vidi Abbatem sexaginta equos et eo ampliùs in suo ducere
comitatu (Eu seria mentiroso, se não tivesse visto um Abade com sessenta cavalos, ou mais, levados em sua comitiva) ; c. 11: Omitto oratoriorum immensas
altitudines.... etc. (NT: E eu omito os oratórios de imensas grandezas).
[876] Aqueles de Cluny respondiam aos ataques de Cîteaux: “Ó, ó, Pharisæorum novum genus!... vos sanctis, vos singulares... undè et habitum insoliti coloris prætenditis,
et ad distinctionem cunctorum totius ferè mundi monachorum, inter nigros vos candidos ostentatis” (NT: Ó, ó, nova raça de Fariseus! ... vós santos e só vós... daí
pretendeis a insólita escolha da cor do hábito, em distinção de quase todos os monges do mundo, para que vos mostreis cândidos entre os negros).
[877] S. Bern. de consider. ad. Eugen., l. III, c. 4: Subtrauntur abbates episcopi, episcopi archiepiscopis, archiepiscopi patriarchis sive primatibus. Bonane species hæc?...
(NT: Abades tentavam se subtrair aos bispos, os bispos aos arcebispos, arcebispos aos patricarcas ou primazes. Isto parece bom?...).
[878] Jordanu, Acta S. Dominici (edit. Bollandus), p. 547: “Cùm videret grandem eorum qui missi fuerant, in expensis, equis, et vestibus apparatum: ‘Non sic, ait, fratres,
non sic vobis arbitror procedendum’...” (NT: “Quando viu a grandeza daqueles que tinham sido enviados, em despesas, em cavalos e no aparato das vestes, disse:
'Não é assim’, disse, ‘irmãos, não é assim que deveis proceder’...”). Um outra vez, São Dominique encontrou um bispo ricamente vestido; o bispo descalçou-se para
segui-lo; mas eles haviam tomado por guia, sem sabê-lo, um herético; este os conduziu através de um bosque onde os espinhos dilaceraram-lhes as pernas. Theodor. De
Appoldiâ, ibid. p. 570.
[879] (NT): El Cid, ou “Rodrigo Díaz de Vivar (Burgos, 1043- Valência, 1099) chamado O Cid (do mourisco sidi, "senhor") e de Campeador (Campidoctor), foi um
nobre guerreiro castelhano que viveu no século XI, época em que a Hispânia estava dividida entre reinos rivais de cristãos e mouros (muçulmanos). Sua vida e feitos se
tornaram, com as cores da lenda, sobretudo devido a uma canção de gesta (a Canción de Mio Cid), datada de 1207, transcrita no século XIV pelo copista Pedro Abád,
cujo manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional da Espanha, um referencial para os cavaleiros da idade média. A imagem que emerge desse manuscrito é a do
cavaleiro medieval idealizado: forte, valente, leal, justo e piedoso. Mas há outras fontes que lhe pintam um retrato bem menos favorável.... Ao contrário da tradição
lendária, que aprecia vê-lo morrendo heroicamente em combate, Rodrigo Díaz de Vivar, chamado de "Campeador" ou "El Cid" ou "Mio Cid", faleceu numa cama de seu
castelo em Valência, a 10 de julho de 1099.É nesse ponto da historia que Rodrigo vira uma lenda. Os Mouros ficaram confiantes pois haviam finalmente matado o El Cid.
Sua mulher mandou amarrar seu corpo ao cavalo e sua espada à sua mão, e o mandou ao campo de batalha. Ao verem El Cid em cima do seu cavalo, passaram a fugir e
foram perseguidos e derrotados pelo exército de Rodrigo. Por isso, reza a lenda que Don Rodrigo de Castella venceu uma batalha depois de morto. Seus restos mortais,
juntamente com os de sua esposa, Jimena, estão sepultados na Catedral de Burgos” - http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Cid
[880] Innoc. II, l. XI, ep. 196: Et Pauperes esse decrevimus... Cùm autem ex magnâ parte clerici simus et penè omnes litterati, lectioni, exhortationi, doctrinæ, et
disputationi contrà omnes errorum sectas decrevimus desudare – Religiosum et modestum habitum ferre decrevimus, etc. (NT: E pobres estamos determinados a ser ...
E sendo, a maioria de nós, padres e imbuídos das letras, estamos determinados a laborar contra os erros de todos os sectários pela leitura, pela exortação,
pela doutrina e pela disputa. Hábitos religiosos e modestos devemos vestir, etc.) . – L. XII, ep. 69: Habitum etiam pristinæ superstitionis, scandalum apud catholicos
generantem, in nullos vos penitùs immutasse testantur. (NT: Testemunham que vós não deveis, de forma alguma, pôr fora o fermento da antiga superstição,
gerando escândalo entre os católicos) – Ep. 67: Si verò de pristina superstitione quicquam retineat ad cautelam, ut faciliùs capere possit vulpeculas... tolerandus est
prudenter ad tempus... (NT: Mas, se alguém de vós mantiver algo da velha superstição, o mais fácil para pegar as raposas... é perserverar prudentemente no
tempo).
[881] Sua prece era tão ardorosa, que ele tornava-se como que insensível. Uma noite em que rezasse diante do altar, o Diabo, para turbá-lo, lançou, do alto do teto, uma
pedra enorme que caiu com grande estrondo na igreja e que, em sua queda, tocou o capuz do santo; ele sequer se moveu e o Diabo fugiu gritando. Acta S. Dominici., p.
592.
[882] Quando foram colhidos os testemunhos para a canonização de São Dominique, um monge contou que o via frequentemente, durante a missa, banhado em lágrimas
que corriam-lhe tão abundamente sobre o rosto, que uma gota não esperava a outra. Acta S. Dominici, p. 637 – Sanè de suis oculis quasi quemdam fontem effecerat
lacrymarum, flebatque uberrimè atque creberrimè... in abscondito Patrem orans, deducebat, velut torrentem, lacrymas (NT: Verdadeiramente, de seus olhos ele fez
quase uma fonte de lágrimas, chorando frequente e abundatemente... orando para seu Pai escondido, lágrimas saíam de si como em torrente) , Ibid., p. 600 –
Cùm tantâ lacrymarum effusione loquebatur, ut ipsos (auditores) ad compunctionis gratiam et lacrymas provocaret... Nec est inventus similis illi, cujus verbum sic fratres ad
fletum et ad gratiam emolliret... etc. {NT: Com tamanha efusão de lágrimas ele falava, que neles (ouvintes), pela graça da compunção, provocava lágrimas... Nem
ali havia alguém cujas palavras, como as suas, pudesse levar à graça das lágrimas}, ibid. p. 594-595.
[883] Jordanus, acta. S. Dominici, p. 546: Vendens libros, quos sibi oppido necessarios possidebat, dedit pauperibus (NT: Vendeu os livros, pois sua cidade tinha
necessidades urgentes, e deu aos pobres).
[884] Epist. S. Bernardi, ap. Gaufred. Claravallens., l. III, c. 6 – Guill. de Pod. Laur., c. 7: “A noite da ignorância cobria esse país, e as bestas da floresta do Diabo nele
passeavam livremente”.
[885] Acta S. Domin., p. 549: Seipsum venundare decrevit. – Uma mulher veio, um dia, dizer-lhe que possuía um irmão cativo dos Sarracenos: São Dominique quis
vender-se a estes para resgatar o tal irmão.
[886] Acta S. Domin., p. 570: Sputum et lutum aliaque vilia projicientes in eum, à tergo etiam in derisum sibi paleas alligantes (NT: A lama e saliva, e outras coisas vis
que lançavam nele, riam dele pelas costas, onde punham-lhe palha).
[887] Ibid., p. 549: “Domine, mitte manum, et corrige eos, ut eis saltem hæc vexatio tribuat intellectum!”
[888] Inocente III escreveu a Guilherme, conde de Forcalquier, uma carta sem saudação, na qual o exortava a tomar a cruz: Si ad actus tuos Dominos hactenùs
secundum meritorum tuorum exigenticam respexisset, possuisset te ut rotam et sicut stipulam antê faciem venti, quinimò multiplicasset fulgura, ut iniquitaem tuam de
superficie terræ deleret, et justus lavaret manus suas in sanguine peccatoris. Nos etiam et prædecessores nostri... non solùm in te (sicut fecimus) anathematis curassemus
sententiam promulgare, imò etiam universos fidelium populos in tuum excidium armassemus {NT: Tivesse o Senhor visitado teus feitos de acordo com os teus
merecimentos, ele te teria feito como a roda ou como a palha diante do vento ou, melhor, teria redobrado Seus trovões, de modo a varrer a tua iniqüidade da
face da terra e que o justo pudesse lavar suas mãos no teu sangue pecaminoso. Nós, e os nossos antecessores, não só teríamos te anatematizado, (como temos
feito), como também teríamos armado todas as nações para te destruir}. Epist. Inn. III, t. I, p. 239, anno 1198.
[889] A maior parte era de Aragoneses. Vide a Epist. Innoc. III, l. X, ep. 69 e o juramento prestado ao Papa por Raimundo, em 1198: Hereticos dicor semper fovisse
eisque favisse... ruptarios sive mainadas tenui... Judæis publica commisi officia (NT: Diz-se de mim sempre ter gostado dos heréticos e, para favorecê-los, eu mantive
salteadores e ménades*... posicionei Judeus para oficiarem em cargos públicos ). Vide também as Mandata Raymundo antè absolutionem (NT: Instruções para
Raimundo, antes da absolvição).
* (NT): Ménades: “1.antiga sacerdotisa de Baco; 2. figurado: mulher dissoluta (Do grego mainás, -ádos, «mulher agitada», pelo latim maenăde-, «ménade; bacante»)” –
www.infopedia.pt (Porto Editora, 2003-2013).

[890] Innoc., l. XI, epistola 28: Mortem est publicè comminatus (NT: Foi publicamente ameaçado de morte).
[891] Id. ibid: “Inter costas inferiùs vulneravit” (NT: Entre as costelas inferiores, atingiu-o) . Chroni. Languedoc., ibid, 116: Ung gentilhome, servito d’eldit conte
Ramon, donet d’ung spict à travers lo corps d’eldit Peyre de Castelnau. (NT da Língua d’Oc arcaica: Um cavaleiro, servidor do dito conde Raimundo, deu com um
punhal através do corpo do dito Pierre de Castelnau).
[892] Innoc., l. XI, ep. 28 ad Philippe-Augustus: “Eia igitur, miles Christi! eia, chrisianissime princeps!... Clamantem ad te justi sanguinis vocem audias (NT: Eia, vamos,
soldados de Cristo! Eia, cristianíssimos príncipes! Clama a ti a audível voz do sangue justo). – Ad. Comit., Baron, etc.: “Eia, Christi milites! eia stremui militæ
christianæ tirones! (NT: Eia, soldados cristãos! eia, até o fim, milícia cristã!).
[893] Innoc. III, epist., II, 349: Quandò principes cruce signati ad partes meas accedent, mandatis eorum parebo per omnia... (NT: Quando os príncipes assumirem a
cruz como parte de meu acordo, vou obedecer aos seus mandamentos em todas as coisas). Associatur Christi militibus hostis Christi, rectoque gressu perveniunt ad
Biterrensem civitatem. {NT: Associado aos cavaleiros cristãos contra as hostes do inimigo de Cristo, no ritmo certo para chegar à cidade Biterrense (Béziers)}
Chroni. Langued., ap. Scr. fr. XIX, 118.
[894] Chron. Languedoc, ap. Scr. fr. XIX, 121: “Et fouc tant grand le sety, tant de tendas que pabalhos, que semblava que tout lo monde fosse aqui ajustat”.
[895] Petr. Vall. Sarn., c. 10: Rex autem nuncio domini papæ tale dedit responsum, “quod duos magnos et graves habebat à lateribus leones”.
[896] A religião parecia ter se tornado mais sombria e austera no Norte da França. Sob o reino de Luís VI, o jejum do sábado não era a regra; no reinado de seu filho,
Luís VII, ele era tão rigorosamente observado que mesmo os bufões e os histriões não ousavam dele dispensar-se. Art de vérifier les dates, V, 520.
[897] “Era”, disse Pierre de Vaux-Sernay, “um homem circunspecto, prudente e mui zeloso pelas questões de Deus; ele aspirava, sobre todas as coisas, a encontrar no
direito qualquer pretexto para recusar ao conde a oportunidade de justificar o que o Papa lhe concedera”. Cap. 39.
[898] Montfort l’Amaury, perto de Paris.
[899] Para vingar sobre ele a morte de seu pai, que fora morto combatendo contra o rei da Inglaterra, ele o ataca ao pé do altar e o atravessa de lado a lado com seu
estoque. Ele assim saiu da igreja sem que Carlos ousasse dar a ordem de detê-lo. Chegando à porta, ele aí encontrou seus cavaleiros que o aguardavam – O que fizestes?
perguntou-lhe um deles. – Eu me vinguei. – Como?! Não foi vosso pai arrastado?!... – A estas palavras, Montfort tornou a entrar na igreja, agarrou pelos cabelos o
cadáver do jovem príncipe, e o arrastou até à praça pública. Sismondi, Républiques italiénnes, III, 409.
[900] Chron. Langued. – Guill. Podii Laur., c. 30: “Eu ouvi o conde de Toulouse vangloriar maravilhosamente em Simon, seu inimigo, a constância, a previdência, o valor
e todas as qualidades de um príncipe”.
[901] Petrus Vall. Sarn., c. 68: “Repentinamente, uma chuva mui abundante vem a cair do céu e o rio enche de tal forma, que ninguém podia passá-lo sem correr grande
risco de perder a vida. Ao entardecer, o nobre conde, vendo que quase todos os cavaleiros e os mais fortes do exército haviam atravessado o rio a nado e entrado no
castelo, mas que os pedestres e os inválidos, não podendo fazer o mesmo, tinham permanecido na outra margem, ele chamou seu marechal e disse-lhe: ‘Quero retornar ao
exército’. Ao que este último respondeu: ‘Que dizeis? Toda a força do exército está na praça-forte, não há, além-rio, senão peregrinos a pé: além disso, a água está tão
alta e tão violenta que ninguém poderia passá-la; sem contar que os Toulousenses talvez viessem e vos matariam, à vos e a todos os outros’. Mas o conde: ‘Longe de mim
que eu faça o que me aconselhais! Os pobres do Cristo estão expostos à morte e ao gládio, e eu, eu permanecerei num forte! Que se faça em mim a vontade do Senhor!
Eu certamente irei e permanecerei com eles’. Imediatamente, saindo do castelo, ele atravessou o rio e reencontrou o exército das pessoas a pé, e aí permaneceu com um
número mínimo de cavaleiros, a saber, quatro ou cinco, durante vários dias, até que a ponte fosse reconstruída e que todos pudessem passar”.
[902] Cæsar Heisterbac., l. V, c. 21: “... cædite eos; novit enim Dominus qui sunt ejus”.
(NT): O massacre de Béziers é ilustrado pela terrível fórmula “Matai-os todos, Deus reconhecerá os Seus”, a qual permaneceu nas memórias e que, talvez, seja apócrifa.
Ela foi atribuída pelo monge alemão Cesário de Heisterbach a Arnaud Amaury, abade de Cîteaux e legado do Papa, no “Livro dos milagres” (Dialogus Miraculorum).
Segundo Cesário, por ocasião do saque de Béziers, quando os soldados de Arnaud Amaury perguntaram-lhe ‘como distinguir os bons fiéis dos heréticos?’, ele teria
respondido com esta frase catártica ‘Cædite eos. Novit enim Dominus qui sunt ejus’. Esse cronista é o único a relatar essas palavras. Segundo Régine Pernoud (‘Pour en
finir avec le Moyen Âge’, éditions Seuil, collection Points Histoire, p. 14), Cesário escreveu 60 anos após os acontecimentos e era portador de uma imaginação ardente e
bem pouco preocupada com a autenticidade histórica. A citação suscitou muitas discussões e Jacques Berlioz ( ‘Tuez-les tous, Dieu reconnaîtra les siens. La Croisade
contre les Albigeois vue par Césaire de Heisterbach’, Portet-sur-Garonne, Loubatières, 1994) consagrou-lhe uma obra inteira, na qual julga que a frase é verossímil. – a
partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Béziers.

[903] Chron. Langued., ap. Scr. fr. XIX, 128: “Et moret, coma dit es, prisonier, donc fouic bruyt per tota la terra, que lo dit conte de Montfort l’avia fait morir. (NT da
Língua d’Oc arcaica: “E morreu, como foi dito, prisioneiro, do que se fez rumor por toda a terra, que o dito conde de Montfort o havia feito morrer”).
[904] Id. ibid.: “Ne timeatis, quia credo quòd paucissimi convertentur”.
[905] Id. ibid.: “Nec opus fuit quòd nostri eos projicerent, quia obstinati in sua nequitia omnes se in ignem ultrò præcipitabant (NT: Nem foi necessária obra nossa para
lançá-los pois, obstinados em sua impiedade, todos eles se precipitaram para o fogo).
[906] “Se mente”, disse Montfort, “ele não terá senão o que merece. Se ele deseja realmente se converter, o fogo expiará seus pecados”. Petrus Vall. Sarn., c. 22.
[907] Louvada por Dante Alighieri.
[908] “Na tomada de Lavaur”, conta o monge de Vaux-Sernay, “arrastou-se para fora do castelo Aimery, senhor de Montréal, e outros cavaleiros, até o número de
oitenta. O nobre conde de Montfort logo ordenou que fossem todos suspensos nos patíbulos; mas, tão logo Aimery, que era o mais nobre dentre eles, foi enforcado, os
patíbulos tombaram pois, na grande pressa que a todos tomava, eles não haviam sido bem fixados na terra. O conde, vendo que isso provocaria um grande retardo, ordenou
que os outros fossem degolados; e os peregrinos, recebendo esta ordem com a maior avidez, logo os massacraram neste mesmo lugar. A dama do castelo, que era irmã de
Aimery e herética execrável, foi, por ordem do conde, lançada para dentro de um poço que foi enchido de pedras; na sequência, nossos peregrinos reuniram os
inumeráveis heréticos que o castelo continha e os queimaram vivos com uma alegria extrema”. Petr. Vall. Sarn., c. 52.
[909] Entretanto, eles encontraram, no castelo de Maurillac, sete Valdenses e “os queimaram”, conta Pierre de Vaux-Sernay, “com uma alegria indizível” (c. 79). –
Em Lavour, eles haviam queimado “inumeráveis heréticos com uma alegria extrema”. Id., c. 52.
[910] Chron. Langued., ap. Scr. fr. XIX, 144 – Petr. Vall. Sarn., c. 57, 79. O próprio João, rei da Inglaterra, opôs-se formalmente ao sítio de Marmande e ameaçou
atacar os cruzados.
[911] (NT): Será? O Autor não viveu para ver a segunda metade do século XX, quando movimentos radicais islâmicos, inspirados basicamente no novo “credo” que
Sayyid Qutba trouxe para a Irmandade Muçulmana do Egito (livro ‘Marcos’ ou ‘Milestones’), passaram a pregar a jihad contra o mundo ocidental, contra os cristãos (e,
mais à frente, contra os judeus). Na África e na Ásia muçulmana, cristãos (católicos, protestantes, ortodoxos gregos etc.) são martirizados constantemente sem que o
mundo pareça tomar maior consideração. Países muçulmanos proibem a construção de igrejas cristãs; missas e cultos celebrados secretamente, no seio de residências
familiares, podem levar seus participantes à morte, uma vez que ‘na terra do Profeta (Maomé), não pode existir outro Deus, que não seja Alá’ {vide, a propósito, o
relatório em francês elaborado pela organização Portas Abertas (www.opendoors.org) em http://www.portesouvertes.fr/persecution-des-chretiens/extrait-du-rapport-
de-l-index-mondial-de-persecution; mencionada organização dedica-se a denunciar a perseguição a cristãos e a ajudá-los: 36 dos 50 países mais perigosos para os
cristãos são de maioria muçulmana, mas a Coréia do Norte lidera, desde o ano de 2001, o ranking das perseguições; em 2013, os mártires foram contados ao número de
2.123, mas a cifra, diz o relatório, é subestimada; os fatos violentos contra cristãos (ataque a igrejas e aos estabelecimentos comerciais, industriais e profissionais de
cristãos, agressões físicas e sexuais, ameaças, expulsão e banimento etc.) são contados, também de forma subestimada, em 1.144}. Inocentes turistas ocidentais, crianças
inclusive, são frequentemente massacrados e explodidos em pedaços durante passeios de férias. O problema da contínua imigração para a Europa de africanos saarianos e
subsaarianos que professam a fé islâmica, e sua resistência à integração social e cultural à nova terra, fazendo da religião um símbolo de identidade nacional, é um fato já
cantado e decantado. A França, a Itália e a Espanha parecem ser o destino preferencial da África islâmica, enquanto o Reino Unido e a Alemanha o são da Ásia.
[912] Ele reprovou a Montfort “estender mãos ávidas até sobre aquelas terras de Raimundo que não estavam nulamente infestadas pela heresia, e de não ter-lhe deixado
senão Montauban e Toulouse...”. Don Pedro de Aragão se queixava que haviam sido injustamente invadidas as possessões de seus vassalos, os condes de Foix, de
Comminges e do Béarn, e que Montfort arrebatara-lhe suas próprias terras enquanto ele combatia os Sarracenos. Epist. Innoc. III, 708-710.
[913] Guill. de Pod. Laur., c. 21: Diem instantem Exaltationis sanctæ Crucis bello Crucifixi pugiles elegerunt, et factis confessionibus peccatorum, et audito ex more
divino officio, cibo salutari altaris refecti, et prandio sobrio confortati, arma sumunt et ad prælium se accingunt (NT: Os pugilistas do Crucifixo escolheram para
combater o dia próximo da exaltação da santa Cruz e, confessados de seus pecados, e tendo ouvido o ofício divino como de costume, nutridos do pão salutar
do altar, e reconfortados por um sóbrio repasto, vestem suas armas e se preparam para a luta – http://remacle.org/bloodwolf/historiens/guillaume/albigeois.htm#XXI).
[914] Id. ibid. “... Quid volo dicere? Sic Deus me adjuvet, quòd ego regem non vereor, qui pro unâ venit contrà Deum meretrice”. Comment. del rey en Jaeme, c. 8
(citado na Histoire Général du Languedoc, III, 253): “Ele passara a noite com uma de suas amantes e encontrava-se tão fatigado que, quando ouvia a missa antes do
combate, ele não pôde permanecer de pé durante o Evangelho e foi obrigado a se sentar”.
[915] Petr. Vall. Sarn., c. 72: Videns regem prostratum, descendit de equo, et super corpus defuncti planctum fecit. (NT: Vendo o rei prostrado, desceu do cavalo e
pranteou o grande corpo do defunto).
[916] Chron. de Mailros, ap. Scr. fr. XIX, 249 – Math. Paris, p. 160: Jussit rex tortoribus suis,ut diebus singulis unun ex molaribus excuterent dentibus... Die octavo
Judæus... dedit pecuniam (NT: O rei ordenou a seus algozes extrair, a cada dia, um dos dentes molares... no oitavo dia, os Judeus... deram seu dinheiro).
[917] Seu pai jurava “Pelos olhos de Deus!” (Par les yeux de Dieu!). Epist. Sancti Thomæ, p. 493, etc.
[918] “Evil, be thou my good”. John Milton, Paradise Lost, B. IV, v. 110. – Eu lamento que Shakespeare não tenha ousado escrever uma segunda parte de King
John.
[919] O rei da Inglaterra era inimigo pessoal dos Montfort; o avô de Simão, conde de Leicester, ousara pôr as mãos sobre Henrique II. O irmão uterino de Simão, um
dos mais valentes cavaleiros que combateram na batalha de Muret, era este Guilherme des Barres, homem de uma força prodigiosa que, na Sicília, lutou em dois exércitos
contra Ricardo Coração de Leão e forneceu-lhe a humilhação de ter encontrado um igual a si. – O segundo filho de Simão de Montfort deve, como nós o dissemos,
perseverar, em nome das comunas inglesas, a luta de sua família contra os filhos de João. Este não ousou enviar tropas a Raimundo, seu cunhado, mas destinou a maior
cólera àqueles de seus barões que se uniram a Montfort; quando João vem à Guiana, eles todos deixaram o exército dos cruzados. Os senhores da corte de João
defenderam Castelnaudary e Marmande contra Montfort.
[920] Rymer, t. I, P. I, p. 111: “Johannes Dei gratiâ rex Angliæ, ... liberè concedimus Deo et SS. Apostolis, etc., ac domino nostro Papæ Innocentio ejusque catholicis
successoribus totum regnum Angliæ, et totum regnum Hiberniæ, etc.... illa tanquam feodatarius recipientes... Ecclesia romana mille marcas sterlingorum percipiat annuatim,
etc.” (NT: João, rei da Inglaterra pela graça de Deus, ... livremente concede a Deus e à Sua Santidade Apostólica, etc... ao nosso senhor o Papa Inocente,
assim como aos seus sucessores católicos, todo o reino de Inglaterra, e todo o reino da Irlanda, etc. .... sendo ela a destinatária feudatária... a Igreja Romana
perceberá mil marcos esterlinos anualmente, etc).
[921] Math. Paris, p. 271: “Tu Johannes, lugubris memoriæ pro futuris sæculis, ut terra tua, ab antiquo libera, ancillaret excogitasti, factus de Rege liberrimo tributarius,
firmarius, et vassalus servitutis” (NT: Tu, João, de lúgubre memória para os séculos futuros, para a tua terra que desde a antiguidade era livre e a qual agora
fizeste serva e, de rei livre, te fizeste tributário, locatário e vassalo da escravidão).
[922] Onde, entretanto, falava-se francês.
[923] Math. Paris, p. 169: “Ele enviou, com toda a celeridade, mensageiros confiáveis, quer dizer, Thomas Herdinton e Raul, filho de Nicolas, ambos cavaleiros, e um
clérigo chamado Roberto de Londres, ao Almirante, ao grande rei da África, do Marrocos e da Espanha, a quem vulgarmente se chama Miramumelin, dando-lhe saber
que, se o mesmo desejasse, ele lhe renderia a si e seu reino e o manteria, se fosse de seu agrado, como seu tributário; e também que, abandonando a lei cristã, a qual não
via senão como algo vão, se submeteria fielmente à lei de Maomé... Eles entregaram ao Almirante a carta real; um intérprete, a quem foram chamar, explicou-lhe
claramente. Após esta leitura, o rei fechou um livro que acabava de ler, pois ele estudava sentado perto de seu púlpito; era um homem de média altura e de idade, o gesto
tranquilo, a palavra fácil e prudente. Após ter deliberado por algum tempo consigo mesmo, ele disse: “Eu estava lendo, agora mesmo, um livro escrito em grego por um
Grego sábio e cristão, chamado Paulo, cujos atos e discursos muito me agradaram. Uma coisa apenas me desgostou nele: foi que não se manteve fiel à lei sob a qual
nasceu e passou, como trânsfuga e um ladrão, a uma outra. E eu digo isso em relação ao vosso senhor, o rei dos Ingleses, que, nascido sob a piedosa e santa lei dos
cristãos, agora queima de desejo, inconstante e volúvel que é, em abandonar uma por outra”. E acrescentou: “Deus, que tudo sabe, também sabe que se eu já não tivesse
uma lei, eu escolheria a cristã sobre todas as outras e a abraçaria ardentemente”. Em seguida, ele quis saber que tipo de homem era o rei da Inglaterra e o que era seu
reino... Soltando um grande suspiro, o rei respondeu: “Jamais li, nem ouvi dizer, que algum rei, possuidor de um tão belo reino submisso e obediente, desejasse, de
independente, tornar-se tributário, de livre, tornar-se escravo, de feliz, tornar-se miserável...”. Depois, ele se informou, sem disfarçar o desprezo, de sua idade, de sua
estatura, de sua bravura. Foi-lhe respondido que ele passara dos cinquenta anos, que já possuía os cabelos todos brancos, que era forte de corpo, nada alto de estatura mas,
antes, mais corpulento e robusto em todos os seus membros... Enfim, repassando em sua memória todas as respostas dos enviados, após um curto silêncio, o Almirante,
indignado, disse com uma risada de desprezo: “Já não há, aí, um rei, mas um reizinho já imbecil e decrépito e eu não me preocupo com ele; ele é indigno de minha aliança”.
E, olhando Thomas e Raul de través: “Não tornai a aparecer perante a minha pessoa e que vossos olhos jamais vejam meu rosto novamente”. Os mensageiros, retirando-
se bem confusos, o rei olhava Roberto, o clérigo, o terceiro embaixador, que era pequeno e mais escuro, tendo um braço mais longo que o outro, os dedos mal alinhados,
dos quais dois mantinham-se juntos e, com isso, parecendo-se com a figura de um Judeu. O rei, então, refletindo que uma tão pobre figura não teria sido escolhida para
uma missão tão difícil, se não fosse hábil, inteligente e isenta, vendo a coroa de sua cabeça e sua tonsura, e daí julgando que fosse um clérigo, o chamou para perto de si
pois, enquanto os outros falavam, ele se mantivera em silêncio e à parte... o rei perguntou-lhe se João possuía algum mérito, se procriara crianças vigorosas e se a
faculdade geradora era nele poderosa. E acrescentou que, se Roberto mentisse em suas respostas, ele não mais acreditaria em nenhum cristão, particularmente nos
clérigos. Roberto pôs a lei cristã à prova, dizendo que responderia sinceramente a todas as questões. Ele, então, disse e assegurou que João era antes um tirano que um rei,
arruinando seus povos no lugar de governá-los, opressor dos seus e amigo dos estrangeiros, leão para seus súditos e cordeiro para os estrangeiros e rebeldes, que perdera,
por sua preguiça, o ducado da Normandia e muitas outras terras e que ainda estava sedento por também perder ou destruir o reino da Inglaterra, insaciável por dinheiro,
dissipador de seu patrimônio. Ele não procriou senão poucos ou, antes, não engendrou nenhuma criança vigorosa, todas, na verdade, dignas de seu pai (sed patrizantes). Ele
tem uma mulher que lhe é odiosa e que o odeia, incestuosa, feiticeira e adúltera e mil vezes condenada por seus crimes. Também, que o rei, seu marido, mandou
estrangular seus amantes sobre o leito. O próprio rei desonrou as mulheres de vários de seus nobres e, mesmo, de seus parentes; ele manchou a honra de suas filhas e de
suas irmãs núbeis. ‘Quanto à fé cristã, ele é, como vindes de ouvir, volúvel e cheio de dúvidas’. O Almirante, tendo ouvido tudo isso, teve não somente desprezo por João
como, também, horror e o maldisse segundo a lei, e perguntou: ‘Por que esses miseráveis Ingleses deixam reinar-se por um tal homem? São, na verdade, efeminados e
servis’! - Roberto respondeu: ‘Os Ingleses são os mais pacientes dos homens até que os ultrajes e os maus tratamentos passam da medida. Mas, hoje, como um elefante
ou um leão que se sente ferido e se vê ensanguentado, eles se indignam e desejam, um pouco tarde, é verdade, afastar o jugo que os esmaga”. O rei Almirante reprovou
aos Ingleses sua excessiva paciência e, segundo o intéprete que estivera sempre presente, deve-se entender que o rei Almirante falou em ‘covardia’. – Ele dispensou
Roberto carregando-o de presentes em ouro e em prata, em pedrarias e tecidos de seda. Os outros deputados, ele os dispensou sem saudação e sem honrá-los com
qualquer tipo de presente. – O rei João ficou amargamente aflito de se ver desta forma desprezado pelo rei Almirante e atravancado em seu projeto. – Com os presentes
do estrangeiro, Roberto agiu liberalmente em relação ao rei João que o honrou mais que aos outros e deu-lhe, embora não estivesse vacante, a guarda da abadia de Santo
Albano (Saint Alban)... Ele contou a alguns de seus familiares a história de suas pedrarias e tudo o que lhe fora secretamente dito pelo Almirante. Entre os ouvintes
encontrava-se Mathieu, que escreveu e contou isto”.
[924] Math. Paris, p. 715: Otto declarara que um arcebispo não devia ter mais que doze cavalos, um bispo seis e um abade três. Urspr. 326, ap. Raumer, Hohenstaufen.
[925] Hallan suspeita, aqui, tratar-se de uma fraude piedosa.
[926] Hallam, L’Europe au Moyen-Âge , II, 87. (NT: contenement é uma antiga palavra francesa que expressa os bens móveis necessários para que cada homem
pudesse exercer seu trabalho, como as armas de um cavaleiro, a mercadoria de um comerciante, o arado e as carroças de um camponês).
[927] É dito, na Magna Carta, que se os Ministros do rei a violarem em alguma coisa, a questão será encaminhada ao conselho dos vinte e cinco barões. “Então, estes,
com a comunidade de toda a terra, molestar-nos-ão e perseguir-nos-ão de qualquer maneira, i.e., pela tomada de nossos castelos, etc.”. A consagração da guerra civil, tal
é a primeira tentativa de garantia. Essais, de Guizot, p. 439-441.
[928] Math. Paris, p. 236: A Corte dos Pares de França reuniu-se em Melun. Luís disse a Filipe: “Meu senhor, eu sou o homem lígio * para os feudos que me destes no
aquém-mar; mas, quanto ao reino da Inglaterra, não vos cabe, de forma alguma, decidir... Eu vos peço somente não colocar obstáculos às minhas iniciativas, pois estou
determinado a combater até à morte, se for necessário, para recuperar a herança de minha mulher”. O rei declarou que não lhe daria nenhum apoio.
* (NT) “Lígio: dizia-se do vassalo proprietário de grandes feudos doados pelo soberano e que, por isso, além da prestação de serviços, comum a todos os vassalos, era
obrigado a acompanhá-lo na paz e na guerra” (Infopédia, www.infopedia.pt, Porto Editora, 2013/2013).
[929] A se acreditar nos Ingleses, Luís teria, mesmo, prometido devolver, quando de sua coroação futura, as conquistas feitas por seu pai, Filipe Augusto.
[930] Numa carta de 1216, Simão de Montfort intitula-se: Simon, providentiâ Dei dux Narbonæ, comes Tolosæ, et marchio Provinciæ et Carcassonæ vice-comes, et
dominus Montis-fortis (NT: Simão, pela providência de Deus, Duque de Narbonne, Conde de Toulouse e Marquês da Provença e Visconde de Carcassonne, e
senhor de Montfort).
[931] Chronique Languedociènne, nas Preuves de l’Histoire du Languedoc , t. III, p. 59-62. Eu sigo a tradução de M. Guizot, salvo algumas modificações. Eu creio,
como ele, na alta antiguidade desse documento. Todavia, a respeito de vários fatos importantes, a crônica está em oposição com os historiadores contemporâneos. Talvez
ela aqui mostre o papa mui favoravelmente ao conde de Toulouse. Vide, também, o fragmento da Crônica em versos, publicada por M. Fauriel, na Revue des Deux
Mondes.
[932] Guill. de Pod. Laur., c. 30: “O conde estava doente de exaustão e dissabor, arruínado por tantas despesas e esgotado, e não podia mais suportar o aguilhão com o
qual o legado o apertava por sua despreocupação e sua languidez; assim, segundo se conta, ele rogava ao Senhor remediar seus males com o repouso da morte. Na
véspera de São João Batista, uma pedra lançada por uma manganela* caiu-lhe sobre a cabeça e ele expirou no local”.
*(NT): “manganela”: original francês mangonneau: espécie de catapulta medieval utilizada para lançar projéteis contra paredes de castelos, cuja precisão era melhor que
a de um trabuco (trebuchet), também espécie de catapulta. “A manganela lança projéteis em uma trajetória mais baixa e em velocidade mais elevada do que o trabuco
com a intenção de destruir muralhas e fortificações, mas também foi muito utilizada nos campos de batalha”. - http://pt.wikipedia.org/wiki/Manganela.
[933] Preuves de l’Histoire du Languedoc, III, 275: Raimundo VII escreveu a Filipe Augusto (julho de 1222): “Ad vos, domine, sicut ad meum unicum e principale
recurro refugium... humiliter vos deprecans et exortans quatinùs meî misereri velitis (NT: A vós, senhor, como meu único e principal recurso e refúgio... humildemente
rogo-vos e exorto-vos a desejar ter misericórdia de mim).
[934] Preuv. de l'Hist. du Langued., III, 276 (Dezembro, 1222) “Cum... Amalricus supplicaverit nobis ut dignemini juxta beneplacitum vestrum, terram accipere vobis et
hæredibus vestris in perpetuum, quam tenuit vel tenere debuit, ipse, vel pater suus in partibus Albigensibus et sibi vicinis, gaudemus super hoc, desiderantes Ecclesiam et
terram illam sub umbra vestri nominis gubernari et rogantes affectuose quantum possumus, quatenus celsæ majestatis vestræ regia potestas, intuitu regis regum, et pro
honore sanctæ matris Ecclesiæ ac regni vestri, terram prædictam ad oblationem et resignationem dicti comitis recipiatis; et invenietis nos et cæteros prælatos paratos vires
nostras effundere in hoc negotio pro vobis, et expendere quidquid ecclesia in partibus illis habet, vel est habitura.” (NT: "Quando ... Amaury nos rogou dignarmos
conceder justo beneplácito para aceitar, por vós e para vossa perpetuidade, a terra que ele e seu pai receberam e mantiveram na porção do Albigense e
vizinhanças, ficamos com isso muito satisfeitos, desejando muito que a terra e a Igreja possam ser governadas sob a sombra de vosso nome e rogando, tão
afetuosamente quanto podemos, porquanto o poder real pertence à Vossa Majestade, pela graça do Rei dos reis, e para a honra da Santa Madre Igreja e de
vosso reino, que recebeis a oferta da terra retromencionada e a renúncia do referido conde; e encontrareis a nós e nossos prelados preparados para nos
esforçamos ao máximo nesta questão, em vosso nome, e para usarmos os meios que a Igreja aqui tem, ou pode vir a ter).
(1223): “Dùm dudùm et diu soli sederemus in Biterris civitate, singulis momentis mortem expectantes, optataque nobis fuit in desiderio, vita nobis existente in supplicium,
hostibus fidei et pacis undique gladios suos in capita nostra exerentibus, ecce, rex reverende, intravit kal. Maii cursor ad nos, qui... nuntiavit nobis verbum bonum, verbum
consolationis, et totius miseriæ nostræ allevationis, quod videlicet placet celsitudinis vestræ magnificentiæ, convocatis prælatis et baronibus regni vestri apud Melodunum, ad
tractandum super remedio et succursu terræ, quæ facta est in horrendam desolationem et in sibilum sempiternum, nisi Dominus ministerio regiæ dexteræ vestræ citius
succurratus; super quo, tanto mœrore scalidi, tanta lugubratione defecti respirantes, gratias primum, elevatis oculis ac manibus in cœlum, referimus altissimo, in cujus manu
corda regum consistunt, scientes hoc divinitus vobis esse inspiratum, etc.. Flexis itaque genibus, reverendissime Rex, lacrymis in torrentem deductis, et singultibus lacerati,
regiæ supplicamus majestati quatenus vobis inspiratæ gratiæ Dei non deesse velitis... quod universalis Ecclesiæ imminet subversio in regno vestro, nisi vos occurratis et
succurratis, etc...” (NT: Quando tínhamos sido deixados em sábia solidão em Béziers, esperando a morte a cada momento e, como este fosse nosso desejo, já
que nossa vida se passava sob o suplício e os inimigos da fé e da paz expunham suas espadas sobre as nossas cabeças, eis que, ó reverendo rei, um
mensageiro chegou no primeiro de maio em curso .... que nos trouxe uma mensagem de boas-vindas, uma palavra de conforto, para o alívio de toda a nossa
miséria , ou seja, que agradasse à magnificência de vosso poder, no conselho dos prelados e barões do seu reino, reunido em Melun, levar em consideração o
remédio e o socorro para uma terra que seria transformada em deserto e em uma palavra de reprovação eterna, se o Senhor não tivesse nos socorrido
rapidamente pelo ministério do vosso direito real para o qual, esquálidos de tristeza e respirando longamente com extremo pesar, agradecemos, levantando
olhos e mãos para o céu, primeiramente ao Altíssimo, em Cujas mãos estão os corações dos reis, sabendo que era por Sua inspiração que vós, etc... Portanto,
com os joelhos dobrados, reverendíssimo rei, com torrentes de lágrimas e dilacerados por soluços, imploramos a Vossa Majestade real obedecer ao chamado
de Deus .... visto que vosso reino é ameaçado pela subversão da Igreja Universal, a não ser que a ele vós acorreis e socorreis, etc..) Ibid., 278.
[935] (NT): “Os Guelfos e Gibelinos são duas facções medievais que se opõem militar, política e culturalmente na Itália, especialmente na República Florentina. Elas
sustentam, inicial e respectivamente, duas dinastias que disputam o trono do Sacro Império Romano-Germânico. O partido Guelfo apoia as pretensões da dinastia Welf
(Guelfe) e o papado, depois, da Casa d’Anjou, enquanto o partido Gibelino apóia as da dinastia dos Hohenstaufen e, em virtude disto, aquelas do Sacro-Império.
A oposição entre os dois partidos tem por origem longínqua a crise de sucessão de 1125, quando o imperador Henrique V morreu sem herdeiro direto. Aqueles que,
naquela época, ainda não são identificados por “Guelfos”, sustentam uma linha política de autonomia contra todo tipo de intervenção exterior, contra os privilégios
nobiliárquicos e representam a Igreja como penhor de oposição e de independência em face do Império. Os adversários, futuros “Gibelinos”, opõem-se ao poder dos
Pontífices, afirmando a supremacia da instituição imperial. Quando da morte de Henrique V, os “papistas” instalam Lotário III, duque do Saxe, sobre o trono da Alemanha,
a quem se opõe Conrado III, da família Hohenstaufen, o qual será excomungado pelo Papa Honório II, em razão de sua luta contra a Igreja.
Em 1138, morto Lotário III, seu genro não chega a sucedê-lo e os “imperiais” triunfam e instalam sobre o trono do Império, de forma durável, os Hohentaufen:
primeiramente Conrado III e, depois, Frederico Barba-Ruiva (Frederico I). A expedição italiana deste último, no meio do século XII, mostra-se como a primeira etapa da
institucionalização das duas facções, particularmente quando da criação da Liga Lombarda, imaginada como um escudo contra as pretensões do Império na Península. A
intervenção imperial, ameaçando as liberdades e privilégios de certas comunidades urbanas, traspõe para a Itália do Norte um conflito que, no solo comunal, muda de
natureza.
Conflito em aparência propriamente germânico, a oposição entre Guelfos e Gibelinos será transportada para várias partes da Europa, principalmente para as cidades da
península italiana. Nesta bipolarização, às vezes superestimada, as fidelidades dinásticas são, por vezes, secundárias, as adesões volúveis e será preciso aguardar o reino de
Frederico II (1194-1250) para que o papado e o império se tornem símbolos fortes de reunião e que se construa uma verdadeira divisão antitética. Esta clivagem
encontrará manifestações nos domínios cívico e religioso e cristalizará as tensões entre as cidades italianas no seio de suas elites e, por vezes, entre a cidade e seu
condado. O eco do conflito se manifestará em épocas ulteriores, trajando novas características e estigmatizando as oposições ideológicas novas”. – a partir de
http://fr.wikipedia.org/wiki/Guelfes_et_gibelins.

[936] (NT): “A Ordem dos Pregadores (latim: Ordo Prædicatorum, O. P. ), também conhecida por Ordem dos Dominicanos ou Ordem Dominicana, é uma ordem
religiosa católica que tem como objectivo a pregação da mensagem de Jesus Cristo e a conversão ao cristianismo. Foi fundada em Toulouse, França, no ano de 1216 por
São Domingos de Gusmão (São Dominique), sacerdote castelhano (actual Espanha), o qual era originário de Caleruega. Os dominicanos não são monges, mas sim
religiosos: realizam voto de pobreza, castidade e obediência. Vivem em comunidade, que se designam por conventos e não como abadias ou mosteiros. Os seus conventos
são tradicionalmente junto das cidades”. – extraído do sítio http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_dos_Pregadores.
[937] As universidades vinham de abandonar Santo Agostinho em favor de Aristóteles (Brulæus, II, 269): os Mendicantes retornaram a Santo Agostinho.
[938] Honório III aprovou, em 1216, a regra de São Dominique e criou, em seu favor, o escritório do Mestre do Sacro Palácio Apostólico.
(NT): Magister sacri palatii apostolici (Mestre do Sacro Palácio Apostólico) ou Pontificalis Domus Doctor Theologus (Doutor Téologo da Casa Pontifícia): era o
ofício de um dignitário da Corte Pontifícia, pertencente à Ordem dos Irmãos Pregadores (Dominicanos), que residia no Palácio Apostólico, onde exercia a função de
teólogo do Papa. Tal denominação existiu por 700 anos até que, em 1968, o Papa Paulo VI apresentou a carta apostólica Pontificalis Domus reformando a estrutura
interna do Vaticano, a qual modificou o nome do cargo para “Teólogo da Casa Pontifícia”; entre outras mudanças, transformou o nome de sua estrutura administrativa de
“Corte Papal” para “Casa Pontifícia” (Pontificalis Domus). vide sítios: http://it.wikipedia.org/wiki/Maestro_del_sacro_palazzo_apostolico (em italiano),
http://en.wikipedia.org/wiki/Theologian_of_the_Pontifical_Household (em inglês) e http://en.wikipedia.org/wiki/Pontificalis_Domus (em inglês).
[939] Fundado por Filipe II.
{NT: trata-se do Palácio do Escurial (ou Real Sitio de San Lorenzo de El Escorial), fundado por ordem dada por Felipe II da Espanha, em 1557, para expiação dos
excessos cometidos pelas tropas espanholas que massacraram civis na igreja de Saint-Laurent, na França, por ocasião das guerras religiosas do século XVI. É um grande
complexo (monastério, museu, colégio, biblioteca e palácio) que se encontra a 45 km noroeste de Madri, sendo uma antiga residência do rei de Espanha}.
[940] (NT) O nome de batismo de São Francisco de Assis era Giovanni di Pietro Bernardonne; sua mãe era da Provença (Joanna Pica de Bourlémont) e seu pai (Pietro
Bernardone dei Moriconi) fazia bons negócios em território francês, para onde São Francisco ia com frequência.
[941] Acta SS. octobris, t. II, vita S. Francisci à Thomâ Cellano, p. 685, 706 (Thomas de Celano foi seu discípulo e escreveu sua vida, duas vezes, por ordem de Gregório
IX).
[942] Ibid. Th. Cellan., pgs. 687-88: Nec femoralia retinens, totus coràm omnibus denudatur. Episcopus... palio quo indutus erat, contexit eum.
[943] Th. Cellan., p. 699: “Fratres mei aves, multum debetis laudare creatorem, etc...”. Um dia que as andorinhas o impediam de pregar com sua chilreada, ele pediu que
se calassem: “Sorores meæ hirundines, etc” (NT: “Minhas irmãs andorinhas...”). Elas logo o obedeceram.
[944] Th. Cellan, p. 705: Segetes, vineas, lapides et silvas, et omnia speciosa camporum... terramque et ignem, aërem et ventum ad divinum monebat amorem, etc....
Omnes creaturas fratres nomine nuncupabat frater cinis, soror musca, etc. (NT: Culturas, vinhas, pedras e madeiras, e todas as espécies do campo... tanto à terra
quanto ao fogo, ao ar e ao vento, ele aconselhava o amor divino, etc.... Ele chamava todas as criaturas em irmandade, assim, irmão cinzas, irmã mosca, etc.).
[945] Th. Cellan., p. 695: Aliquis suspensus funibus.
[946] Th. Cellan. p. 699.
(NT): A capela Santa Maria dos Anjos, também conhecida como Porciúncula ( Porziuncola, em italiano), foi construída por S. Francisco no lugar reputado das aparições
dos anjos que lhe mandaram restaurá-la. A pequena capelinha, de altíssimo valor histórico e espiritual, está hoje englobada pela Basílica Santa Maria dos Anjos, que
também envolve o Trânsito (Transitus), enfermaria do convento primitivo, na qual morreu São Francisco. Vide os sítios internet em francês e italiano, com fotos, em
http://fr.wikipedia.org/wiki/Basilique_Sainte-Marie-des-Anges_d’Assise e http://it.wikipedia.org/wiki/Basilica_di_Santa_Maria_degli_Angeli,
http://it.wikipedia.org/wiki/Porziuncola e http://www.porziuncola.eu/.
[947] Th. Cellan, p. 696: “... Videte glutonem, qui impinguatus est carnibus gallinarum, quas, vobis ignorantibus, manducavit!” (NT: Vide o glutão que se engordurou
com carne de galinha, a qual vós ignoráveis que ele comera).
[948] Th. Cellan., p. 706-707: More balantis ovis Bethleem dicens; ... et labia sua, cùm Jesum nominaret, quasi lingebat linguâ. – O feno do estábulo produziu milagres:
ele curava os animais doentes. Ibid.
[949] Vide também Barthélemi de Pisa, Liber conformitatum B. Francisci aut vitam Jesu-Christi, ed. 1501, fol. 227 segs. – O autor começa por estabelecer a
possibilidade da transformação do sujeito amante em objeto amado, de São Francisco em Jesus Cristo. Depois, ele imagina uma árvore alegórica, dividida em dez galhos,
cada um carregando, por frutos, quatro conformidades, a saber: dois atributos de Jesus Cristo e duas semelhanças de São Francisco.
[950] Esta ordem obteve de São Francisco, em 1224, uma regra particular. Agnés da Boêmia a levou para a Alemanha. – Et multæ filiæ ducum, comitum, baronum et
aliorum nobilium de Alamaniâ, mundum deserenes, exemplo beatæ Claræ et Agnetis, sponso cœlesti sunt junctæ (NT: E muitas filhas de duques, condes, barões e
outros nobres da Alemanha, desertando o mundo, a exemplo das beatas Clara e Agnes, uniram-se a um casamento celeste) . Liber conformitatum (ed. 1501), folº.
85.
[951] A igreja de Lyon o instituíra em 1134. São Bernardo escreveu-lhe uma longa carta para contê-la nesta inovação (Epist. 174). Ela foi aprovada por Alain de Lille e
por Petrus Cellensis (L. VI, epist. 23; IX, 9 e 10). O concílio de Oxford o condenou em 1222. – Os Dominicanos se declararam por São Bernardo e a Universidade pela
igreja de Lyon. Bulæus, Hist. Univers. Paris, II, 138; IV, 618, 964. Vide Duns Scot, Sententiarum liber III, dist. 3, qu. I, et dist. 18, qu. I. Ele bateu-se, segundo se conta,
pela Imaculada Conceição contra duzentos Dominicanos e levou a Universidade a declarar: “Ne ad ullos gradus scholasticos admitteretur ullus, qui priùs non juraret se
defensurum B. Virginem à noxâ orignariâ” (NT: “Não permitiria que nenhum escolástico se graduasse, exceto se primeiro jurasse que defenderia a Santa Virgem
do pecado original”). Wadding., Ann. Minorum, ann. 1394. Bulæus, IV, p. 71.
[952] Acta SS., Theodor. de Appoldiâ, p. 583: Tota cœlestem patriam amplexando dulciter continebat. – Pedro Damião (São Pedro Damião) dizia que o próprio Deus
fora inflamado de amor pela Virgem. Ele exclama num sermão (Sermo XI, de Annunciatione Beatæ Mariæ, p. 171): “O venter diffusior cœlis, terris amplior, capacior
elementis! etc.” (NT: Ó ventre mais largo que o céu, mais amplo que a terra, mais espaçoso que os elementos! etc.) . Num sermão sobre a Virgem, do arcebispo de
Canterbury Estevão (Stephen/Etiennne) Langton, encontra-se este verso:

Belle Aliz matin leva, Bela Alice de manhã despertou,


Sun cors vesti et para, Seu corpo vestiu e enfeitou,
Ens un vergier s’en entra, E num pomar entrou,
Cink flurettes y truva; Cinco florezinhas aí encontrou;
Un chapelet fit en a Uma capelinha, então, construiu
De belle rose flurie De belas rosas floridas.
Pur Deu trahez vus en là, Deus para lá vos levou,
Vus ki ne amez mie! Vós, que não O amais!

Na sequência, ele aplica misticamente cada verso à mãe do Salvador, e exclama com estusiasmo:

Ceste est la belle Aliz, É ela a bela Alice,


Ceste est la flur, É ela a flor,
Ceste est le lis! É ela o lírio!

ème ème
ROQUEFORT, Poésie du XII et XIII Siècles.

Atribuiu-se ao Franciscano Bonaventura o Saltério menor (Psalterium minus) e o Saltério maior (Psalterium majus) B. Mariæ Virginis. Este último é uma espécie de
paródia séria, onde cada versinho é aplicado à Virgem. Psalm. I: “... Universas enim fœminas vincis pulchritudine carnis!” (NT: Dentre todas as mulheres, venceis na
beleza da carne!).
[953] Por uma singular coincidência, em 1250, uma mulher sucedia, pela primeira vez, a um sultão (Chegger-Eddourd a Almoadano). Nunca antes se vira o nome de
uma mulher gravado sobre as moedas e pronunciado nas preces públicas. O califa de Bagdá ergueu-se contra o escândalo desta inovação. Michaud, Hist. des Croisades,
IV, 357.
[954] Vide a carta dos bispos do Midi a Luís VIII. Preuves de l’Histoire du Lang., p. 289, e as cartas de Honório III, ap. Scr. fr. XIX, 699-723.
[955] (NT) Philippe Hurepel: hurepel, em francês antigo, seria uma gíria para ‘cabelos eriçados’ – vide http://fr.wikipedia.org/wiki/Philippe-Hurepel_de_Clermont.
[956] Arquivos do Reino, J, caixa 401, Carta e testemunho do arcebispo de Sens e do bispo de Beauvais. – J, caixa 403, Testamento de Luís VIII.
[957] Alberic., p. 541: “... communias burgensium et rusticorum facit (Campaniæ comes), in quibus magis confidebat quàm in militibus suis {NT: (O conde de
Champagne) criou comunas de burgueses e de camponeses (rusticorum), nas quais confiava mais que em seus soldados}.

[958] (NT): “Simonia é a venda de favores divinos, bençãos, cargos eclesiásticos, prosperidade material, bens espirituais, coisas sagradas, objetos ungidos, etc. em troca
de dinheiro. É o ato de pagar por sacramentos e consequentemente por cargos eclesiásticos ou posições na hierarquia da igreja. A etimologia da palavra provém de Simão
Mago, personagem referido nos Atos dos Apóstolos (8, 18-19), que procurou comprar de São Pedro o poder de transmitir, pela imposição das mãos, o Espírito Santo ou de
efetuar milagres. O Direito Canônico também estipula como simonia atos que não envolvem a compra de cargos, mas a transação de autoridade espiritual, como dinheiro
para confissões ou a venda de absolvições”. – extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Simonia.
[959] Ela escreveu-lhe, dizendo: “Sire Thibauld de Champaigne, j’ai entendu que vous avez convenancé et promis à prenre à femme la fille au comte Perron de
Bretaigne. Portant vous mande que si se voulez perdre quan que vous avez au royaume de France, que vous ne le faites. Si cher que avez tout tant que amez au dit
royaume, que vous ne le faites. La raison pourquoy vous sçavez bien. Je n’ai jamais trouvé pis qui mal m’ait voulu faire que luy” {NT do francês antigo: Senhor
Theobaldo da Champagne, ouvi que conviestes e promestestes tomar como mulher a filha do conde Pierre da Bretanha. Portanto, eu vos notifico, se não
desejardes perder tanto quanto tendes no reino da França, que não o façais. Tão caro que tendes tudo o quanto amais no dito reino, que não o façais. A
razão porquê, bem a sabeis. Eu jamais encontrei (alguém) pior que mal me quisesse fazer do que ele}, D. Morice, I, 158.
[960] Vide os artigos do Tratado, inserido no Tomo III das Preuves de l’Histoire du Languedoc , p. 329 e segs., e no Tomo XIX do Recueil des Historiens de
France, p. 219, segs.
[961] (NT): antiga palavra francesa para designar “banidos, exilados”.
[962] Ele era parente, por sua mãe, de Alfonso X, rei de Castela; este prometera-lhe auxílio para a cruzada, mas morreu em 1252 e São Luís “ficou muito aflito com
isso”. M. Paris, p. 565. – “Quando de seu retorno, ele mandou cunhar”, contou Villani, “moedas, nas quais uns viam algemas, em memória de seu cativeiro, e outros viam
as torres de Castela”. O que vem em apoio desta última opinião é que os irmãos de São Luís, Carlos e Alfonso, puseram as torres de Castela em seus brasões d’armas.
[963] A se acreditar em Dante (Inferno). – Raynaldi apresenta Ezzelino (Ezzelino III da Romano, cognominado “o Feroz”, 1194-1259, senhor e condottiere
italiano) como lugar-tenente de Conrado e conselheiro de Frederico II. Michaud, IV, 456.
[964] Extraits d’historiens arabes, por Reinaud (Bibl. des Croisades, IV, 417 e segs.): “O emir Fakr-Eddin* entrara fortemente na confiança do imperador”, contou
Yaféi; “eles tinham frequentes discussões sobre a filosofia e suas opiniões pareciam convergir em muitos pontos”. – “Essas estreitas relações muito escandalizaram os
cristãos... ‘Eu não teria insistinto tanto’, ele disse a Fakr-Eddin, ‘para que me entregassem Jerusalém, se não receasse perder todo o crédito no Ocidente; meu objetivo não
fora o de libertar a cidade santa, nem nada de semelhante; eu apenas desejei conservar a estima dos Francos” {*NT: nesta passagem, parece ter havido um erro de
Reinaud, pois o primeiro emir com o nome de Fakr-Eddin morreu em 1544, trezentos anos depois do ponto em que se situa a narrativa, quando o sultão do
Egito era Malik al-Kamil (sultanato de 1218-1238), com quem o imperador Frederico II (1194-1250) manteve fortes laços de amizade, dele obtendo a cidade
de Jerusalém num simulacro de batalha}. – “O imperador era vermelho e calvo; ele tinha a vista fraca; se tivesse sido escravo, não dariam por ele sequer duzentos
dracmas. Seus discursos mostravam o suficiente que não acreditava na religião cristã; quando dela falava, era para ridicularizá-la.... etc ..... um muezim (ou almoadem)
recitou perto dele um verso do Alcorão que nega a divindade de Jesus Cristo. O sultão desejou puni-lo, mas Frederico se opôs” – Na margem do texto árabe de Makrizi,
encontra-se algumas palavras isoladas que parecem dizer que, no fundo, Frederico menosprezava sua religião e que, se não tivesse receio de sublevar seus súditos, ele
teria manifestado seus verdadeiros sentimentos. Ele se irritou contra um padre que entrara numa mesquita, Evangelho à mão, e jurou punir severamente todo e qualquer
cristão que nela entrasse sem uma permissão especial. – Vimos, mais acima, quais relações amigáveis Ricardo manteve com Saladino e Malek-Adhel. – Quando João de
Brienne foi cercado em seu campo (1221), ele foi coberto pelo sultão com testemunhos de boa-vontade: “desde então”, disse um autor árabe (Makrizi), “estabeleceu-se
uma ligação sincera e durável e, tanto quanto viveram, jamais cessaram de se presentearem e de manterem um comércio de amizade”. Numa guerra contra os
Kharismins, os cristãos da Síria puseram-se, por assim dizer, sob as ordens dos infiéis. Via-se cristãos marcharem com suas cruzes erguidas; os padres misturavam-se nas
fileiras, distribuiam bençãos e ofereciam de beber, de seus cálices, aos muçulmanos. Ibid. 445, segundo Ibn-Giuzi, testemunha ocular.
[965] (NT): De Tribus Impostoribus ou os Três Impostores: a tese do livro Os três Impostores, conhecida na Europa desde o século XIII, tendo sido mencionada por
Thomas de Cantimpré (teólogo e hagiógrafo nascido na hoje Bélgica, em 1201), foi atribuída a diversas pessoas suspeitas de ateísmo ou acusadas de blasfêmia ou heresia.
Entre os vários nomes propostos como autores da idéia e/ou da obra anônima, e para ficarmos apenas nos mais célebres, estão Averroés, Frederico II, Boccage (Giovanni
Boccaccio), Pomponazzi, Maquiavel, Pietro Aretino, Bernardino Ochino, Miguel Servet, Girolamo Cardano, Giordano Bruno, Marc-Antoine Muret, Vanini, Hobbes,
Spinoza, Mathias Knutzen, o barão de Holbach (Paul-Henri Thiry, barão de Holbach, nascido Paul Heinrich Dietrich von Holbach). Este tema dos três impostores foi posto
em voga na Europa do século XVIII, onde vários livros, que foram chamados ou cognominados “Tratado dos Três Impostores”, circularam clandestinamente. Um deles,
redigido em francês, é mais conhecido sob o título “A vida e o espírito do Sr. Bento Spinoza” ( La Vie e l’esprit de M. Benoit Spinoza ) ou “O espírito de Spinoza”
(l’Esprit de Spinoza). Ainda que uma das versões traga a data de 1598, o primeiro Tratado dos Três Impostores pode não ter surgido senão no século XVIII,
provavelmente composto pelo jurista Johan Joachim Muller (De Tribus Impostoribus). O texto medieval, até onde se sabe, permanece desconhecido, embora, como já dito,
haja registro de sua existência no século XIII – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Traité_des_trois_imposteurs.

[966] Tamerlão (ou Tamerlan, Timur-i-Lenk ou Timur o Coxo), após ter arruínado Damasco de cima a baixo, mandou cunhar moedas exibindo uma palavra árabe, cujo
sentido era: DESTRUIÇÃO. Esta palavra indicava, por seu valor numeral, o ano 803 da Hégira, época da tomada de Damasco. Reinaud, Description des Mon.
musulmans, etc., I, 89. Chardin, IV, 292. – Um outro cronomograma de Tamerlão, correspondente ao ano 773 da Hégira, também significa DESTRUIÇÃO . Vide
D’Herbelot, Bibliothèque Orientale.
[967] É a expressão que se atribuiu, no século XV, ao sultão dos Turcos, Bayezid I.
[968] Disse Mathieu Paris: “Eles haviam devastado e despovoado a grande Hungria; enviado embaixadores com cartas ameaçadoras a todos os povos. Seu general
dizia-se enviado do Altíssimo Deus para domar as nações que Lhe eram rebeldes. As cabeças desses bárbaros são grandes e desproporcionais em relação a seus corpos;
eles se alimentam de carnes cruas e, mesmo, de carne humana; são arqueiros incomparáveis; carregam consigo barcas de couro com as quais atravessam todos os rios;
são robustos, ímpios, inexoráveis; sua língua é desconhecida a todos os povos que mantêm alguma relação conosco (quos nostra attingit notitia). São ricos em tropas de
ovelhas, de gados, de cavalos que, aliás, são tão rápidos que fazem três dias de marcha em apenas um. Eles vestem, na frente, uma boa armadura mas, por trás, nenhuma,
a fim de que jamais sejam tentados a fugir. Eles chamam de Khan seu chefe, cuja ferocidade é extrema. Habitando a praia boreal, os mares Cáspios, e aqueles que lhes
confinam, são chamados Tártaros em virtude do nome do rio Tar. Seu número é tão grande que parece ameaçar de destruição o gênero humano ( ebullire creduntur in
partem). Ainda que já se tenha experimentado outras invasões por parte dos Tártaros, o terror foi maior este ano porque eles parecem estar mais furiosos que de costume;
assim, os habitantes da Gótia e da Frísia, temendo seus ataques, não vieram este ano, como de ordinário fazem, às costas da Inglaterra para encherem seus barcos com
harenque: os harenques mostraram-se, em consequência, de tal forma abundantes na Inglaterra, que eram vendidos por quase nada: mesmos nos locais mais distantes do
mar, comprava-se quarenta ou cinquenta dos mais excelentes com apenas uma moedinha. Um mensageiro sarraceno, poderoso e ilustre de nascimento, que viera em
embaixada solene ao rei da França, principalmente da parte do Velho da Montanha, noticiava essas ocorrências em nome de todos os Orientais e pedia auxílio ao
Ocidentais para reprimir o furor dos Tártaros. Ele enviou um dos seus companheiros de embaixada ao rei da Inglaterra a fim de expor-lhe as mesmas coisas e dizer-lhe
que, se os Muçulmanos não conseguissem sustentar o choque desses inimigos, nada os impediria de invadir todo o Ocidente. O bispo de Winchester, que estava presente
nesta audiência (era o favorito de Henrique III), e que já tomara a cruz, pediu inicialmente a palava e, em tom jocoso: ‘Deixemos esses cães devorarem-se uns aos outros
para que morram o quanto antes. Quando, na sequência, chegarmos sobre os inimigos do Cristo que permaneceram vivos, nós os degolaremos mais facilmente e
purgaremos a superfície da terra. Então, o mundo inteiro será submisso à Igreja Católica e não restará senão um só pastor e um só rebanho”, Math. Paris, p. 318.
[969] Math. Paris, p. 400: Et vocabant eum multi redemptorem suum, quia per compositionem pacis eos in terrâ sanctâ liberaverat... Et hoc impetravit, tùm quia
favorabilis persona Francis fuit, pro nobilium dictâ liberatione in terrâ sanctâ, tùm quia fuit domini regis Francorum consanguineus, tùm qui fuit dies Dominica {NT: E muitos
dos seus o chamavam de redentor porque, por meio de um acordo de paz na Terra Santa, haviam sido libertados... E ele obtivera isso tanto pela estima que os
Franceses tinham por si, quanto pela dita libertação de seus nobres na Terra Santa, e porque era parente do senhor rei dos Franceses, bem assim porque era
o dia do Senhor (Dominica – domingo)} – Filipe Augusto jamais combatia aos domingos.
[970] Math. Paris, p. 409: “More Francorum, chirotecam suam ei porrexit, exigens sibi exhiberi in duello justitiæ plenitudinem, secundum legem Francorum antiquitus
(NT: Conforme o costume dos Francos, estendeu sua luva para ele, exigindo justiça em sua plenitude por meio de um duelo, segundo a antiga lei dos Francos).
[971] Math. Paris, p. 402: “Tu solus fideliter te gessisti”... Satim accepto ab eo juramento fidelitatis, ipsum ei custodiendum confidenter liberavit.
[972] Math. Paris, p. 446: Rex Francorum Parisiis convocatos omnes ultramarinos qui terras habuerunt in Angliâ, sic est affatus: Quicumque in regno meo conversatur,
habens terras in Anglia, cùm nequeat quis competenter duobus dominis servire, vel penitùs mibi vel regi Angliæ inseparabiliter adhæreat {NT: O Rei da França convocou
a Paris todos aqueles que possuíam terras ultramarinas na Inglaterra e assim se dirigiu (a eles): Quem quer que ao meu reino esteja associado e que tenha
terras na Inglaterra, uma vez que não pode servir leamente a dois senhores, deverá servir totalmente ou a mim ou ao rei da Inglaterra, de forma inseparável}.
[973] Mathieu Paris, p. 420: Signa Christianorum qui subito fugani inierant, super propugnacula murorum civitatis in propatulo elevaverunt.
[974] Math. Paris, pgs. 443-447 e segs. – “Esmaguemos, de início, o dragão”, ele dizia, “e logo esmagaremos essas serpentes de reizinhos”. Dixit in iracundiâ magnâ,
voce susurrâ, oculos obliquando et nares corrugando: Expedit ut componamus cum principe vestro: contrito enim vel pacificato dracone, citò serpentuli conculcabuntur”
(NT: Disse com grande ira, voz sussurante, olhos obliquando e narinas corrugando: É aconselhável nos compormos com vosso príncipe: esmagado ou
pacificado o dragão, as serpentezinhas serão pisoteadas).
[975] “Os barões ingleses não ousavam passar à Terra Santa, temendo as peças que a corte de Roma poderia pregar-lhes” (Muscipulas Romanæ curiæ formidantes)”.
Mat. Paris, ap. Michaud, IV, 261.
[976] Ligones, tridentes, trahas, vomeres, aratra, etc. (NT: Pás, forcados, dragas, arados, charruas etc.), Math. Paris.
[977] Joinville, édit. 1761, in-folº., p. 29: “... Et quant on les véoit, il sembloit que ce fussent montaingnes; car la pluie qui avoit batu les blez de lonc-temps, les avoit fait
germer par desus, si que il n’i paroit que l’erbe vert”. {NT do francês antigo: “... E quando se os via, parecia que fossem montanhas; pois a chuva, que por tanto
tempo batera sobre os trigos, os fizera germinar por cima, o que fez com que parecessem grama (erva) verde}.
[978] Ele mandou pedir ao rei a isenção do tributo que pagava aos Hospitalários e aos Templários. “Darière l’amiral avoit um Bacheler bien atourné, qui tenoit trois
coutiaus en son poing, dont l’un entroit ou manche de l’autre; pour ce que se l’amiral eust été refusé, il eus présenté au Roy ces trois coutiaus pour li deffier. Darière celi
qui tenoit les trois coutiaus, avoit un autre qui tenoit un bouqueran entorteillé entour son bras, que il eust aussi présenté au Roy pour li ensevelir, se il eust refusée la
requeste au vieil de la montaigne” {NT do francês arcaico: “Atrás do almirante, havia um Bacharel bem equipado, que tinha três facas (adagas) em seu punho, as
quais uma entrava no cabo da outra; a fim de que, se o almirante fosse recusado, este as apresentasse ao Rei para desafiá-lo. Atrás daquele que tinha as três
adagas, havia um outro que tinha um bouqueran (um pedaço de toalha de algodão) enrolado em volta de seu braço, que ele teria apresentado ao Rei para
envolvê-lo (simbolizando, assim, uma mortalha), se este recusasse a demanda do Velho da Montanha”} , Joinville, p. 95 – “Quand le viex chevauchoit, il avoit un crieur
devant li qui portoit une hache danoise à lonc manche toute couvert d’argent, à tout pleins de coutiaus ferus ou manche et crioit: ‘Tournés-vous de devant celi qui porte la
mort des Roys entre ses mains” {NT do francês arcaico: “Quanto o velho cavalgava, ele tinha um clamador (arauto) à sua frente, que portava um machado-de-
guerra dinamarquês de cabo longo, todo coberto de prata, todo cheio de adagas presas no cabo, e que gritava: ‘Prostrai-vos perante aquele que leva a morte
dos Reis entre suas mãos”}, p. 97.
[979] M. de Rémusat (Mémoire sur les Tartares) não vê, como de Guignes, impostores nos embaixadores mongóis.
[980] Joinville, p. 37: “Le commun peuple se prist aus foles femmes, dont il avint que le Roy donna congié à tout plein de ses gens, quant nous revinmes de prison; et je li
demandé pourquoy il avoit ce fait; et il me dit que il avoit trouvé de certein, que au giet d’une pierre menue, entour son paveillon tenoient ci leur bordiaus à qui il avoit donné
congié, et ou temps du plus grant meschief que l’ost eust onques été” – Les baron qui deussent garder le leur pour bien emploier en lieu et en tens, se pristrent à donner les
grans mangers e les outrageuses viandes” {NT do francês arcaico: O povo comum se apegou às prostitutas, do que adveio que o Rei licenciou muitos de sua
gente, quando retornamos da prisão; e eu perguntei-lhe por que ele assim fizera; e ele me disse que soubera com certeza que, ao passo de uma pedra, em volta
de seu pavilhão, mantinham seus bordéis a quem ele dispensara e que, no tempo dos maiores percalços, a hoste (exército) ali também estivera – Os barões que
deviam guardar-se para bem se empregarem (lutarem) em tempo e lugar, se puseram a dar grandes banquetes e carnes dispendiosas (outrageuses viandes)}.
[981] É verossímil que São Luís tivesse realizado seu desembarque no mesmo ponto que Bonaparte (a légua e meia de Alexandria), se a tempestade que o atingiu,
saindo de Limisso (Limassol), e os ventos contrários não o tivessem levado à costa de Damieta. Os autores árabes dizem que o sultão do Cairo, instruído dos desígnios de
São Luís, enviara tropas, tanto à Alexandria, como à Damieta, para resistirem ao desembarque. Michaud, IV, 236.
[982] Joinville, p. 40. Bonaparte pensava que, se São Luís tivesse manobrado como os Franceses o fizeram, em 1798, ele poderia, partindo de Damieta aos 08 de junho,
ter chegado ao 12 em Mançora e, aos 26, no Cairo. Vide as Mémoires de Montholon.
[983] “Toutes les fois que nostre saint Roy ooi que il nous getoient le feu grejois, il se vestoit en son lit, et tendoit ses mains vers notre Seigneur, et disoit en plourant:
‘Biau Sire Diex, gardez-moy ma gent” (NT do francês arcaico: “Todas as vezes que nosso santo Rey ouvia que eles nos jogavam o fogo grego, ele se erguia de
seu leito e levava suas mãos à nosso Senhor, e dizia chorando: ‘Gracioso Senhor Deus, guardai-me minha gente”), Joinville, p. 45.
[984] Joinville, p. 53 – Id, p. 47. “Le bon conte de Soissons se moquoit à moi, et me disoit: ‘Seneschal, lessons huer cette chiennaille que, par la quoife Dieu, encore en
parlerons-nous de ceste journée es chambre des dames” {NT do francês arcaico: “O bom conde de Soissons zombava-se para mim e me dizia: ‘Senescal, deixemos
esta canalha vaiar que, pelo capelo de Deus (era sua jura tradicional), ainda falaremos deste dia nos quartos das damas”}.
[985] Joinville. – Um historiador árabe assim disse: “O rei da França poderia ter escapado das mãos dos Egípcios, seja a cavalo, seja num barco; mas este príncipe
generoso jamais desejou abandonar suas tropas”. Abul-Mahassen, ap. Michaud, IV, 317. – Retornando à ilha de Chipre, o navio de São Luís bateu num rochedo e três
toesas da quilha foram levadas. Aconselhou-se o rei a abandoná-lo. “A ce respondi le roy: ‘Seigneurs, je vois que se je descens de ceste nef, que elle sera de refus, et voy
que il a céans huit cens personnes et plus; et pource que chascun aime autretant sa vie comme je fais la moie, n’oseroit nulz demourer en ceste nef, ainçois demourroient
en Cypre; parquoy, se Dieu plaît, je ne mettrai ja tant de gent comme il a céans en péril de mort; ainçois demourrai céans pour mon peuple sauver” {NT do francês
arcaico: A isto respondeu o rei: ‘Senhores, vejo que se eu descer desta nave, ela será (considerada) perdida e vejo que há, a bordo, cerca de oitocentas
pessoas e mais; e porque cada uma ama sua vida, tanto como eu amo a minha, ninguém ousaria permanecer nesta nave, e assim permaneceriam em Chipre;
razão porque, se Deus quiser, não colocarei tanta gente, como aqui há, em perigo de morte; assim, permanecerei embarcado para meu povo salvar}, Joinville, p.
3.
[986] Joinville, p. 75 – Contou-se ao rei que os almirantes deliberaram fazê-lo sultão da Babilônia... “Et il me dit qu’il ne l’eust refusé. Et sachiez que il ne demoura pour
autre chose que pource que il disoient que le roy estoit le plus ferme crestien que en peust trouver; et cest exemple en monstroient, à ce que quant ils se partoient de la
héberge, il prenoit sa croiz à terre et seignoit tout son cors; et disoient que se celle gent fesoient Soudane de li, il les occiroit tous, ou ils devendroient crestiens” {NT do
francês arcaico: E ele me disse que não o teria recusado. E sabei que este desígnio não se manteve por outra coisa que não porque dissessem que o rei era o
mais firme cristão que poderiam encontrar; e este exemplo (esta prova) demonstrou-se quando, ao partirem do abrigo, ele pegou sua cruz da terra e persignou
todo seu corpo; e disseram que a gente (as pessoas) que dele fizesse um Sultão, ele as chacinaria todas ou elas se tornariam cristãs}, Joinville, p. 78.
[987] Segundo M. Rifaut, a canção que foi composta nesta ocasião ainda hoje é cantada. Reinaud, Extraits d’historiens Arabes (Bibliot. des Croisades, IV, 475).
[988] Segundo Villani, em Florença, onde os Gibelinos dominavam, celebrou-se com festas os reveses dos cruzados. Michaud, IV, 373.
[989] Joinville, p. 126: “A Sayette vindrent les nouvelles au roy que sa mère estoit morte. Si grant deuil en mena, que de dous jours on ne pot onques parler à li. Après ce,
m'envoia querre par un vallet de sa chambre. Quant je ving devant li en sa chambre, là où il estoit touz seux, et il me vit, il estandi ses bras et me dist ; «: A ! Seneschaus,
j'ai pardue ma mère” (NT do francês arcaico: Em Sídon, vieram as notícias ao Rei que sua mãe estava morta. Tão grande luto o atingiu que, durante dois dias,
não se pôde falar com ele. Após o que, mandou-me procurar por um valete de quarto. Quando a ele vim, em seu quarto, lá onde estava completamente só, ele
me viu e estendeu seus braços e me disse: Ah, Senescal! Eu perdi minha mãe!) – Quando São Luís tratava com o Sultão o valor de seu resgate, ele lhe disse que se
desejasse uma soma razoável, pediria à sua mãe que a pagasse. “Et il distrent: ‘Comment est-ce que vous ne nous voulez dire que ‘vous ferez ces choses?’ Et li Roy
respondi que il ne savoit se la réyne le vourroit faire, pour ce que elle estoit sa dame” (NT: E eles disseram: ‘Como se dá que não desejais dizer que vós fareis essas
coisas?’ E o Rei respondeu que não sabia se a rainha desejaria fazê-lo, porque ela era sua dama”) Ibid. 73.
[990] Math. Paris, p. 601: Oculis in terram defixis, cum summâ tristitiâ et crebris imaginabatur captionem suam, et per eam, christianitatis generalem confusionem. – Si
solus opprobium et paterer adversitatem et non redundaret peccata mea in ecclesiam universalem, æquanimiter sustinerem. Sed heu mihi! Tota Christianitas per me induit
confusionem - Cantou-se uma missa do Espírito Santo para acalmá-lo, e ele teve algum consolo.
[991] “Pereça a lei, viva a graça!” Lutero.
[992] Math. Paris, p. 550, segs. – Nas primeiras sublevações do povo de Sens, os rebeldes deram-se um clero, bispos, um papa e seus cardeais. Continuateur de
Nangis, 1315. – Os Pastores também possuíam uma espécie de tribunal eclesiástico. Ibid., 1320. – Os Flamengos se submeteram a uma hierarquia, graças a qual puderam
prolongar, por muito tempo, sua obstinada resistência. Grande Chronica de Flandres , século XIV. – Os mais famosos Salteadores haviam tomado o título de
arquipadres. Froissart, vol. I, ch. 177. – Os próprios Jacques haviam formado uma monarquia. Ibid., ch. 184. – Os Maillotins, igualmente, haviam se classificado em
dezenas, cinquentenas e centenas. Ibid., ch. 182-3-4. Juven. des Ursin, ann. 1382, et Anon. de Saint Denis, hist. de Charles VI. Monteil, t. I, p. 286.
(NT): Esses episódios são conhecidos como as Cruzadas dos Pastores, movimentos populares sem apoio dos poderosos e, muitas vezes, contra os mesmos. A primeira
ocorreu por volta de 1251 e a segunda se deu em torno de 1320. – vide o sítio http://fr.wikipedia.org/wiki/Pastoureau.
[993] Math. Paris, p. 550: Multiplicati sunt vehementer, adeò ut ad centum millia et plures recensiti, signa sibi facerent militaria, et in signo eorum agnus vexillifer
figurabatur (NT: Eles se multiplicaram sobremaneira, que atingiram os cem mil e muito mais, e faziam suas próprias normas miltares, e tinham, como signo na
bandeira, um cordeiro).
[994] Ele pretendia ter em mãos uma carta da Virgem Maria que convocava os pastores à Terra Santa; e, para que acreditassem nesta fábula, ele mantinha esta mão
constantemente fechada. Ibid.
[995] Ibid.: Dispersi sunt, et quase canes rabidi passìm detruncati (NT: Eles foram dispersos e, como cães raivosos, destroçados).
[996] É a opinião do próprio Hallan.
[997] À sua cabeça, encontrava-se Roberto Twinge, cavaleiro de Yorkshire, a quem uma provisão papal privara do direito de nomeação a um benefício proveniente de
sua família. Esses associados, ainda que não fossem cerca de oitenta, conseguiram, pela celeridade e pelo mistério de seus movimentos, persuadir o povo que estavam em
grande número. Eles assassinaram os mensageiros do Papa, escreveram cartas ameaçadoras aos eclesiásticos estrangeiros etc. Ao cabo de oito meses, o rei impôs sua
autoridade, Twinge dirigiu-se a Roma, onde ganhou seu processo e conferiu o benefício. Lingard, III, 161.
[998] Na véspera da batalha de Lewes, ele mandou que os soldados apusessem uma cruz branca sobre o peito e sobre o ombro e que empregassem a tarde seguinte aos
atos de religião.
[999] Como seu pai, eles haviam confiado a justiça a Sarracenos.
[1000] “Este Carlos foi sábio e prudente nos conselhos, bravo nas armas, severo e muito temido por todos os reis do mundo, magnânimo, e de elevadas idéias que o
faziam digno dos seus grandes projetos; inabalável na adversidade, firme e fiel em todas as suas promessas, falando pouco e agindo muito, não rindo quase nunca, decente
como um religioso, católico zeloso, apto a fazer a justiça, feroz em seus olhares. Sua estatura era grande e nervosa, a cor de sua tez era olivácea, seu nariz muito grande.
Ele parecia feito, mais que qualquer outro senhor, para a majestade real. Ele quase nada dormia. Ele foi pródigo em armas em relação a seus cavaleiros; mas ávido em
adquirir, em qualquer lugar que estivesse, terras, senhorias e dinheiro, para benefício de seus projetos. Jamais mostrou sentir prazer perto dos mímicos, dos trovadores, dos
cortesãos”. Giov. Villani, liv. VII, c. 1, ap. Sismondi, Républiques Italiènnes, III, 329.
[1001] As três mais velhas eram mulheres dos reis da França, da Inglaterra e do Imperador Ricardo da Cornualha.
[1002] (NT): “Pílades é filho de Estrófio, rei da Fócida, e de Anaxíbia, filha de Atreu e Aérope. Quando Orestes, seu primo, se refugiou em sua casa, viraram grandes
amigos. Depois da morte de Agamênon, Orestes matou Clitemnestra e Pílades matou Egisto” - extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Pilades.
[1003] Dante, Inferno, canto X:
Ma fu’io sol colá dove sofferto
Fu per eiascun di torre via Fiorenza,
Colui che la difesi a viso aperto
(NT):
Porém achei-me só, quando exigia
o geral brado a ruína de Florença,
De peito aberto eu a defendi.
(adaptado de www.ebooksbrasil.org/eLibris/inferno.html#I10)

[1004] 1223, 1247. Nocera foi cognominada Nocera de’ Pagani. Sismondi, Républiques ital., II, 440.
[1005] Quando da morte de Conradino, ele tentou evadir-se escondido num tonel; mas uma mecha de seus cabelos o traiu. “Ah! Não há senão o rei Enzio que possa ter
tão belos cabelos louros!...” – Há uma carta de Frederico aos Bolonhenses para lembrá-los da inconstância da fortuna e reclamar-lhes a devolução de seu filho,
ameaçando-os com toda a sua cólera. Petri de Vincis, t. II, c. 34.
[1006] (NT): “Idos eram, no calendário romano, uma das três divisões dos meses (as outras eram as calendas e nonas). Os Idos eram a 15 de Março, Maio, Julho e
Outubro, a 13 nos restantes meses. Ficaram célebres os Idos de Março do ano 44 a.C., data em que foi assassinado Júlio César às mãos de Brutus e outros
conspiradores”. – extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Idos.
[1007] “Frederico”, disse Villani (l. VI, c. 1), foi um bom homem dotado de um grande valor e de raros talentos; ele deve sua sabedoria tanto aos estudos quanto à sua
prudência natural. Versado em todas as coisas, ele falava a língua latina, nossa língua vulgar (italiano), alemão, francês, grego e árabe. Abundante em virtudes, ele era
generoso e, aos seus dons, ainda acrescentava a cortesia; guerreiro valente e sábio, ele também foi temido. Mas foi dissoluto na procura dos prazeres; ele tinha muitas
concubinas, segundo o costume dos Sarracenos e, como estes, era servido pelos Mamelucos; ele se abandonava a todos os prazeres dos sentidos e levava uma vida
epicurista, não estimando que qualquer outro tipo de vida se seguisse a esta... Esta foi também a principal razão pela qual tornou-se o inimigo da santa Igreja...”.
“Frederico”, disse Nicolas de Jamsilla (“Hist. Conradi et Manfredi, t. VIII, p. 495), “foi um homem de grande coração; mas a sabedoria, que nele não foi menor, temperava
sua magnanimidade, de sorte que uma paixão impetuosa jamais determinava suas ações, mas que sempre procedia com a maturidade da razão... Ele era zeloso com a
filosofia e a cultivou por si próprio, espalhando-a por seus estados. Antes do tempo feliz de seu reino, não se encontraria, na Sicília, senão poucas ou nenhuma pessoa de
letras; mas o Imperador abriu, em seu reino, escolas para as artes liberais e para todas as ciências, chamando professores de diferentes partes do mundo e oferecendo-lhes
recompensas liberais. Ele não se contentou em acordar-lhes um salário, mas tomou de seu próprio tesouro para pagar uma pensão aos escolares mais pobres, a fim de que,
em todas as condições, os homens não fossem descartados, pela indigência, do estudo da filosofia. Ele próprio fez prova de seus talentos literários, os quais se dirigiam à
história natural, escrevendo um livro sobre a natureza e o cuidado dos pássaros, no qual se pode ver quão grandes foram os progressos do Imperador na filosofia. Ele
prezava a justiça e a respeitava tanto, que era permitido a qualquer homem pleitear contra o Imperador, sem que o ranque de monarca lhe desse qualquer favorecimento
perante os tribunais, ou sem que qualquer advogado hesitasse em pugnar contra ele a causa do último de seus súditos. Mas, malgrado este amor pela justiça, ele às vezes
temperava seu rigor com a clemência” .
(Tradução de Sismondi. Observe-se que Villani é guelfo e Jamsilla gibelino).
[1008] Na primavera do ano 1254. Ele tinha apenas vinte e seis anos. Jamsilla, t. VIII, p. 507; Sismondi, Rép. Ital., III, 148
[1009] Eis aqui o retrato que dele faziam os contemporâneos, Math. Spinelli, Ricordon, Summonte, Collonueio, etc.: ele era dotado de grande coragem, amava as artes,
era generoso e tinha muita urbanidade. Era bem feito e belo de rosto; mas levava uma vida dissoluta; desonrou sua irmã casada com o conde de Caserta; ele não temia
nem Deus, nem os santos; ligou-se aos Sarracenos, dos quais se serviu para tiranizar os eclesiásticos e voltou-se à astrologia supersticiosa dos Árabes. – Ele se
vangloriava de seu nascimento ilegítimo e dizia que os grandes, ordinariamente, nasciam de uniões proibidas. Michaud, V, 43.
[1010] Em sua fuga de 1254, ele encontrou abrigo apenas em Luceria. Os Sarracenos aí o acolheram tranportados de júbilo. Antes da batalha, Manfredo enviou
embaixadores para negociar. Carlos respondeu: “Vá dizer ao sultão de Nocera que não desejo senão batalha e que, ainda hoje, eu o mandarei para o inferno ou ele me
mandará para o Paraíso”, Simondi, Rép. Ital., III, 153, 347.
[1011] O legado papal mandou desenterrá-lo e espalhá-lo pelos confins do reino de Nápoles e do campo de Roma. – Dante, ‘Purgatorio’, c. III:
Biondo era e bello et gentile aspetto...:
Poi sorridendo disse: io son M anfredi...
Se’l pastor di Consenza ch’alla cacia,
Di me fu messo per Clemente, allora
Avesse in Dio ben letta questa faccia,
L’ossa del corpo mio sarieno ancora
In co del ponte presso a Benevento,
Sotto la guardia della grave mora.
Or le bagna la pioggia e muove’l vento...

(NT):
Louro era, e belo e de gentil aspecto...
Depois, sorrindo, disse: eu sou Manfredo...
Se o pastor de Consenza, que à caça
De mim foi posto por Clemente, então
tivesse em Deus lido esta página,
Os ossos do corpo meu estariam ainda,
Ao pé da ponte, perto de Benevento,
Sob a guarda do montinho de pedras.
Agora, os banha a chuva e os açoita o vento.

bibliotheque.editionsducerf.fr/par%20page/2386/TM.htm

[1012] A todos os empregos públicos que existiam na antiga administração, Carlos d’Anjou adicionou todos os empregos correspondentes que ele conhecia na França,
de sorte que o número de funcionários foi mais que dobrado. Sismondi, t. III, p. 357, após Malaspina, l. III, c. 16.
[1013] Giannone, l. XIX, c. 4: M. Sismondi crê que esta tradição deve ser rejeitada. Vários escritores asseguram que o Papa reprovou amargamente a Carlos a morte
de Conradino. Sismondi, Schmidt, e a maior parte dos historiadodres modernos que falaram de Conradino, negligenciaram usar os escritos de Joannes Vitoduranus.
Alhures, a isso voltaremos.
[1014] De Vipereo semine Frederici secundi (NT: A Viperina semente de Frederico segundo).
[1015] (NT): Frederico I o Mordido, (1257-1323). Conde Palatino do Saxe, Margrave de Meissem, Landgrave da Turíngia. Filho de Alberto II o Degenerado e de
Margarida de Hohenstauffen.
[1016] Tanquàm ad defensionis suæ dexteram. Nangis, ap. Preuves des Libertés de l’Église gallicane, t. 1, p. 6.
[1017] São Luís mostrou pelos Sarracenos uma grande gentileza. “Il fesait riches mout de Sarrazins que il avait fêt baptizier, et les assemblait par mariages avecque
crestiennes... Quand il estait outre mer, il commanda et fist commander à sa gent que ils n’occissent pas les femmes ne les enfanz des Sarrazins; ainçois les preissent vis et
les amenassent pour fère les baptisier. Ausinc, il commandoit em tant come il pooit, que les Sarrazins ne fussent pas ocis, mès fussent pris et tenuz en prison. Et aucune
foiz forfesait l’en en sa court d’escueles d’argent ou d’autres choses de telle manière; et donques li benoiez rois le soufroit débonnèrement, et donnait as larrons aucune
some d’argent, et les envéoit outre mer; et ce fist-il de plusieurs. Il fut tosjors à autrui mout plein de miséricorde et piteus” (NT do francês arcaico: “Ele tornou ricos
muitos Sarracenos que fizera batizar, e os uniu por casamento a cristãs... Quando estava no ultramar, ordenou e fez ordenar à sua gente que não
chassinassem as mulheres e as crianças dos Sarracenos; ao contrário, que os pegassem vivos e os trouxessem para se fazerem batizar. Igualmente, ele
ordenou, tanto quanto pôde, que os Sarracenos não fossem chacinados, mas fossem pegos e mantidos em prisão. E quando, alguma vez, eram furtadas louças
de prata ou outras coisas semelhantes, então o abençoado rei com isso sofria debonariamente e dava aos ladrões alguma soma de dinheiro e os enviava
ultramar; e isto ele fez várias vezes. Ele sempre foi a outrem com muita misericórdia e piedoso”), Le confesseur, p. 302, 398.
[1018] Ibid, c. 9: Usquè XVII millia personarum interfecta sunt, et ultrà centum millia captivata sunt; et facta est civitas tàm famosa, quase solitudo deserti (NT: Até 17
mil pessoas foram mortas, e mais de cem mil foram escravizadas; e, pelo fato de ter se tornado um deserto solitário, a cidade tornou-se famosa).
[1019] No monastério de Roiaumont, onde ajudava os monges a construir, ele forçava seus irmãos a fazer o mesmo: “Li benoiez rois prenoit la civière, et la portoit
charchiée de pierres, et aloit devant, et un moine portoit derrière... Et pourceque ses frères voloient aucune foiz parler et crier et jouer, li benoiez rois leur disoit: ‘Les
moines tiennent orendroit silence, et aussi la devon nos tenir’. Et comme les frères du benoiet roy charchassent mout leur civières et se vosissent reposer en mi la voie,
ainçois que ils venissent au mur, il leur disoit: ‘Les moines ne se reposent pas, ne vous ne vos devès pas reposer” (NT do francês arcaico: “O abençoado rei pegava a
padiola e a levava carregada de pedras, e ia à frente, e um monge a segurava atrás... E porque seus irmãos quisessem, alguma vez, falar e gritar e brincar, o
abençoado rei dizia-lhes: ‘Os monges doravante observam o silêncio e assim também devemos mantê-lo’. E como os irmãos do abençoado rei tivessem
sobrecarregado suas padiolas e desejassem repousar a meio-caminho, ao invés de virem até o muro, ele lhes disse: ‘Os monges não se repousam, nem vós
deveis vos repousar”), Le Confesseur, p. 334.
[1020] (NT): Libra Tornesa (livre tournois): “8. Julgo a proposito mencionar que a denominação da antiga moéda de França e Inglaterra, e como ella passou daquelle
Reino para Portugal. Servius Tullius foi o primeiro que em Roma mandou bater moéda, que denominou as, ou libra contendo o pezo d’uma libra romana de bom cobre;
esta libra tinha de pezo 12 onças, ou era dividida em 12 onças; este nome passou para a França, e parece que na cidade de Tours foi aonde pela primeira vez se fixou o
pezo, e dali vem o nome de libra tornesa, algum tanto maior que a libra romana; e passou para Inglaterra com a denominação de libra de Troy , corrompido de Troyes,
cidade de França, na qual havia uma grande feira...” (“Sobre a moeda, sua origem, natureza, e officios” in Revista Estrangeira, segundo anno, vol. 1º, pg. 52, Porto, 1838,
disponível em Google Livros).
[1021] (NT): “Pelúsio (em latim: Pelusium ou Ostium Pelusiacum, "Boca Pelúsia") foi uma antiga cidade do Baixo Egito, situada no extremo nordeste do delta do Nilo,
na desembocadura mais oriental do Nilo. Situava-se cerca de 30 quilômetros a sudeste de Port Said. A cidade foi conhecida por outros nomes, como Sena, Per-Amon,
Per-Amun ("templo ou casa de em Amon em egípcio e copta), Pelousion (Πηλούσιον em grego clássico), Sin (em caldeu e hebraico), Seyân (em aramaico), Farama ou
Al-Farama (em algumas fontes históricas árabes, derivado dos nomes coptas) e Tell el-Farama (em árabe egípcio e árabe moderno). É citada com o nome de Sin,
fortaleza do Egito, no Antigo Testamento, no Livro de Ezequiel.
[1022] Ademais, os piratas de Túnis incomodavam muito os navios cristãos. Marin. Sanuto, l. III, P. XII, c. 10. Guill. Nangis, Annal. du règne de saint Louis (ed.
1761), p. 27.
[1023] Petrarca (Bâle, p. 421) conta que, uma vez, deliberava-se em Roma sobre o chefe que seria escolhido para uma cruzada. Don Sancho, filho de Alphonso, rei de
Castela, foi escolhido. Ele foi à Roma e foi admitido ao consistório, onde a eleição devia ocorrer. Como ignorasse o latim, ele mandou entrar consigo um dos seus cortesãos
para servir-lhe de intérprete. Don Sancho, tendo sido proclamado rei do Egito, todo mundo aplaudiu esta escolha. O príncipe, ante o barulho dos aplausos, perguntou ao seu
intérprete o que ocorria. “O Papa”, disse-lhe o intérprete, “vem de vos consagrar rei do Egito”. “Não se deve ser ingrato”, respondeu Don Sancho, “levanta-te e proclama
o Santo Padre califa de Bagdá”. Michaud, V, 129.
[1024] Marini Sanuti Secreta fidelium crucis – edit. Bongars, Hanau, 1611.
O livro primeiro é dedicado à exposição desse projeto; o segundo, uma discussão dos meios a empregar para a execução da cruzada; o terceiro, uma história dos
assentamentos e das expedições no Oriente. Sanuto a ele juntara mapas do Mediterrâneo, da Terra Santa e do Egito. – O Papa elogiou muito o projeto, todos os príncipes
cristãos o acolheram, mas não o seguiram. Sanuto dirigiu-se ao Imperador de Constantinopla e passou sua vida a pregar a cruzada.
(NT): Pouco mais de século e meio depois do veneziano Sanuto, o comércio da Índia foi reaberto: não pela rota da Pérsia, mas por uma nova, aquela da África, obra do
reino de Portugal, pelas mãos de Vasco da Gama (1498); seis anos antes, também procurando a rota das Índias, um genovês descobrira as Américas (Cristóvão Colombo).
[1025] Hénault, t. I. – Encontra-se uma sentença semelhante redigida contra o conde do Artois, em 1287. Bouchel, p. 243.
[1026] Vida de São Luís (Vie de saint Louis), pelo confesor da rainha Margarida (éd. 1761), p. 379-80. – Entre outras penas que São Luís infligiu a Enguerrand, ele
retirou-lhe toda a alta justiça dos bosques e dos aquíferos, e o direito de aprisionar ou pôr à morte.
[1027] Guill. de Thoco, vit. S. Thom. Aquin.: “De rege Franciæ S. Ludovico dicitur quòd semper in rebus arduis dicti Doctoris requirebat consilium, quod frequenter
expertus fuerat esse certum... Cum primo Parisiis de aliquibus arduis et necessariis in crastino deberet habere consiliu, de serò mandabat prædicto Doctori ut illâ nocte
super dubio imminentis casus mente intenderet, ut quòd esset utile respondendum, in crastino cogitaret.
[1028] Math. Paris, ad. ann. 1247, p. 493. – Por seu testamento (1269), ele legou-lhe seus livros e grandes quantias de dinheiro, e instituiu, para nomear aos benefícios
vacantes, um conselho composto do bispo de Paris, do chanceler, do prior dos Dominicanos e do guardião dos Franciscanos. Bulæus, III, 1269. – Após a primeira cruzada
de que participou, ele sempre teve dois confessores, um dominicano, o outro franciscano. Gaufred, de Bell. loc., ap. Duchesne, V, 451. – O confessor da rainha Margarida
narra que ele pensou fazer-se dominicano e que não foi senão com muita insistência que sua mulher o impediu. – Ele teve o cuidade de mandar transmitir ao Papa o livro
de Guilherme de Saint-Amour. O Papa o agradeceu, rogando-lhe continuar ouvindo os monges de sua proteção; Bulæus III, 313 { - Numa carta dirigida ao Papa pelos
professores da Universidade, onde eles se recusam a admitir os Mendicantes em seu seio, vê-se que São Luís dera-lhes guardas: “Quoniam ipsi, de mandato domini regis,
paratam semper habeant ad nutum suum multitudinem armatorum, undè etiam solennitates magisteriorum suorum nuper sine nobis cum armatis plurimis celebrare cœperunt
(NT: Desde então, por ordem de nosso senhor o rei, eles podem ter, sempre que desejarem, uma multidão de homens armados, com os quais começaram a
celebrar as solenidades de seus magistérios, sem nós, com muitos homens armados) Ibid, 290.

[1029] “Considerando que a superstição dos clérigos (esquecendo-se que foi pela guerra e pelo sangue derramado, sob Carlos Magno e outros, que o reino da França foi
convertido dos erros dos gentios à fé católica) absorve de tal forma a jurisdição dos príncipes seculares, que esses filhos de servos julgam, segundo sua lei, os livres e os
filhos dos libertos, embora, segundo a lei dos primeiros conquistadores, deveríamos, antes, ser nós a julgá-los... Todos nós, nobres do reino, considerando atentamente que
não foi pelo direito escrito, nem pela arrogância clerical, mas pelo suor dos guerreiros, que o reino foi conquistado... nós estatuímos que ninguém, clérigo ou laico, doravante
apresente quem quer que seja perante o juízo ordinário ou delegado, senão por heresia, por casamento ou por usura, sob pena do infrator perder todos os seus bens ou
sofrer mutilação de um membro; nós despachamos, para este fim, nossos mandatários, a fim de que nossa jurisdição reviva e enfim respire, e que esses homens
enriquecidos com nossos despojos sejam reduzidos ao estado da Igreja primitiva, que vivam na contemplação, enquanto nós levaremos, como o devemos, a vida ativa, e que
eles nos façam ver os milagres que já há muito tempo nosso século não mais conhece”. Trésor des chartes, Champagne, VI, nº 84; et ap. Preuves des libertés de
l’Église gallicane, I, 99. A.D. 1247. Ligue de Pierre de Dreux Mauclerc, avec sons fils le duc Jean, le comte d’Angoulême et le comte de Saint-Pôl, et beaucoup
d’autres seigneurs, contre le clergé.
“A todos aqueles que estas cartas verão, nós todos, cujos selos pendem neste presente escrito, fazemos saber que nós, pela fé de nossos corpos, afiançamos e
observamos, nós e nossos herdeiros, sempre ajudarmos uns aos outros, e a todos aqueles de nossas terras e de outras terras que desejarem estar nesta companhia, a
perseguirem, a requererem e a defenderem nossos direitos e os seus, de boa-fé, contra o clero. E para que este desiderato seja alcançado, nós elegemos, por comum
consenso e outorga de todos nós, o duque da Borgonha, o conde Perron (Pierre) da Bretanha, o conde de Angoulême e o conde de Saint-Pôl; ... e se alguém desta
companhia for excomungado, por erro cometido pelo clero, e que seja de conhecimento desses quatro, ele (o excomungado) não abandonará seus direitos feudais, nem seu
direito de querela (de combate), pela excomunhão, nem por qualquer outra coisa que se lhe oponham à face, etc.”. Preuves des Lib. de l’Égli. Gallic., I, 99. vide também
p. 95, 97 e 98.
[1030] Em 1240, o Papa, tendo manifestado o projeto de romper as tréguas concluídas entre si e Frederico II, São Luís, para impedi-lo, mandou interromper os subsídios
que o Papa, por seu legado, mandara levantar sobre o clero da França. Math. Paris (éd. 1664), p. 366. – Em 1247, o Papa envia os irmãos Pregadores e Menores à França
para tomar dinheiro emprestado ao clero, prometendo devolvê-lo fielmente. “Quod cùm regi Francorum innotuisset, suspectam habens Romanæ Curiæ avaritiam, prohibuit:
ne quis Prælatus regni sui sub pœnâ amissionis omnium bonorum suorum, taliter terram suam depauperaret” (NT: Quando o rei da França tomou conhecimento,
suspeitando da avareza da Cúria Romana, proibiu: nenhum dos Prelados de seu reino, sob pena de perder todas as suas posses, deveria, de tal forma,
empobrecer sua terra). Ibid. p. 485.
[1031] Quando São Luís resolveu voltar à França: “Lors me dit robe entre ly et moy sanz plus, et me mist mes deux mains entre les seues, et le légat que je le
convoiasse jusques à son hostel. Lors s’enclost en sa garde-commensa à plorer moult durement; et quant il pot parler, si me dit: ‘Seneschau, je suis moult lie, si en rent
grâces à Dieu, de ce que le Roy et les autres pélerins eschapent du grant péril là où vous aves esté en celle terre; et moult sui à mésaise de crier de ce que il me convendra
lessier vos saintes compaingnies, et aler à la court de Rome, entre cel desloial gent qui y sont” (NT do francês arcaico: Então, ele me disse um segredo que ficou entre
ele e mim, e colocou minhas duas mãos entre as suas, e mandou que eu convocasse o legado até seus aposentos. Então, quando o legado entrou com sua
guarda, este começou a chorar muito amargamente; e quando pôde falar, disse-me: “Senescal, estou muito feliz, e rendo graças a Deus que o Rei e os outros
peregrinos escapem ao grande perigo em que vos encontráveis nesta terra; e muito triste estou em dizer que eu seja obrigado a deixar vossas santas
companhias e partir para a corte de Roma, entre essa gente desleal que lá se encontra”).
[1032] Ele preferia mandar copiar os manuscritos a fazer-se presentear pelos conventos, a fim de multiplicar os livros. Ganfred., de Bello loco., ap. Duchesne, V, 457.
[1033] Vie de saint Louis, pelo confessor da rainha Margarida, p. 322: “Em seus estudos, punha-se a ler a Sagrada Escritura, pois ele possuía a Bíblia glosada e
originais de Santo Agostinho e de outros santos, e outros livros da Sagrada Escritura, os quais lia e mandava ler muitas vezes para si entre o jantar e a hora de dormir...
quando se apostava quanto dormiria, ele se demorava muito pouco em seu sono.
[1034] Ibid., 323: “Quant li chapelains se départoit d’ilecques, li benoiez Roy demouroit seul ilecques ou delez son lit, et estoit ilecques en oroison par lonc tens, enclin à
terre, en tenant ses coutes au banc, si longuemente que il ennuioit mout à la mesniée de sa chambre qui l’atendoient par dehors... Il estoit en oroissons delez son lit si
souvent, que ses esperiz estoient si afébloiez et sa veue, pource que li gisoit enclin à terre et le chief encliné delez terre, que quant il se levoit il ne savoit revenir à son lit,
ainçois demandoit à aucun de ses chambellens qui l’avoit atendu, quant il revenoit d’ouroison et li disoit: ‘Où sui-ge?’ à basse voiz, toutes voies, por les chevaliers qui
gisoient en sa chambre” {NT do francês arcaico: Quando os capelães partiam dali (da Santa Capela), o abençoado rei lá permanecia só ou ao lado de seu
leito, e aí permanecia por muito tempo, deitado à terra, mantendo seus cotovelos no banco, tão longamente, que ele muito entendiava os encarregados de seus
aposentos que o aguardavam do lado de fora... Ele permanecia em orações, ao lado de seu leito, tão frequentemente, que seu espírito e sua vista se
enfraqueciam, porque ele jazia à terra e a cabeça inclinada sobre a terra que, quando se levantava, não sabia voltar a seu leito, pelo que chamava algum de
seus camareiros que o atendiam, quando ele voltava da oração, e perguntava-lhe: ‘Onde estou?’ a baixa voz, todas as vezes, em razão dos cavaleiros que
permaneciam em seus aposentos}.
[1035] Le Confesseur, p. 371 – “Ele mandava fazer o serviço de Deus tão solenemente e com tão grande prazer, que ele assim se cansava, e a todos os outros, pela
duração do ofício” (Il fesoit fère le service de Dieu si solempnelment et si par loisir, que il ennuioit ausi comme à touz les autres pour la longueur de l’ofice). Ibid.
p. 312
[1036] Joinville, p. 118 (esta passagem está truncada na edição Petiot, t. II, p. 362). Não podemos nos impedir de acrescentar a essas citações uma passagem admirável
do Confessor da rainha Margarida: “Le tens de croissance covenable à travaus endurer, à engins embesoigner, à cors par œures exerciter, premier jour très bon
à chétiz mortels, ne fouy pas le benoiez saint Loys en vain; ainçois le trespassa très saintement, comme cil qui savoit bien que les meilleurs choses s’envolent et
les pires choses remaignent. Tout ausi comme em la cruche pleine: que le premier qui est très pur, en court hors, et ce qui est troublé s’assiet; tout ausi en aage
d’omme, ci que est très bon est le commencement et le tens de jeunesse” {NT do francês arcaico: “O tempo de crescimento conveniente para o trabalho aguentar, aos
engenhos de arte se dedicar, ao coração, por obras, exercitar, o primeiro dia favorável aos mortais não foi, para o abençoado São Luís, em vão; assim ele morreu mui
santamente, como aquele que bem sabe que as melhores coisas se vão e as piores coisas remanescem. Assim como na jarra cheia: que o primeiro (o que está em cima),
que é muito puro, logo corre para fora, e o que está turvo, se assenta; igualmente na vida do homem, o que é muito bom é o início e o tempo da juventude}. P. 301.
[1037] (NT): “Se il avient que aucune querele qui soit meué entre riche et povre viegne devant toi, sostien la querele de l'estrange devant ton conseil, ne montre pas que
tu aimmes mout ta querele, jusques à tant que tu connoisses la vérité, car cil de ton conseil pourroient estre cremeteus de parler contre toi, et ce ne dois tu pas vouloir. Et
se tu entens que tu tiegnes nule chose à tort, ou de ton tens, ou du tens à tes ancesseurs, fai le tantost rendre, combien que la chose soit grant, ou en terre, ou en deniers, ou
en autre chose” – “L'amour qu'il avoit à son peuple parut à ce qu'il dit à son aisné filz en une moult grant maladie que il ot à Fontene Bliaut: ‘Biau fils, fit-il, je te pri que tu
te faces amer au peuple de ton royaume; car vraiement je aimeraie miex que un Escot venist d'Escosse et gouvernast le peuple du royaume bien et loïalement, que tu le
gouvernasses mal apertemen”.
[1038] (NT) A alusão é a Victor Hugo, em seu romance Notre-Dame de Paris.
“A palavra grega ananké significa coação, força, necessidade fatal. Foi por isso que se atribuiu este nome à deusa do sortilégio na mitologia grega. Ela significava a
necessidade inevitável e era representada como árbitro do mundo com um fuso. Neste contexto, é interessante ver que, na mitologia germânica, as assim ditas nornas, que
decidem, no nascimento de um homem, seu destino e o fim de sua vida, tramam igualmente o fio da vida e o cortam ao fim. Esta deusa grega ultrapassava Zeus e todos os
outros deuses. A deusa que ocupava a posição equivalente na mitologia romana se chamava Necessitas. Como Victor Hugo conhecia muito bem a mitologia grega, o
significado da deusa Ananké lhe era familiar...
No prefácio de Notre-Dame de Paris, Victor Hugo narra uma visita à catedral, quando ele descobriu a inscrição. Ele disse que esta inscrição não era mais visível hoje e
que ele escrevera o romance a fim de salvar esta palavra. A inscrição, então, tem uma função geradora do texto” – (a partir do trabalho ἈΝΑΓΚΗ comme générateur de
texte dans Notre-Dame de Paris de Victor Hugo, de PD Dr. Patricia Oster-Stierle, Universidade de Tübingen, disponível na WWW).
“No século XIX, o termo encontra uma atualidade nova com Victor Hugo. A palavra Ananké, gravada sobre uma pedra da catedral, está no centro das meditações de
Claude Frollo em Notre-Dame de Paris (1830). E, em 1866, Victor Hugo indicará que três de seus principais romances estão unidos pelo mesmo tema: ananké dos
dogmas (Notre-Dame de Paris) , ananké das leis (Os Miseráveis) , ananké das coisas (Os trabalhadores do mar). Ele acrescenta: “A essas três fatalidades que
envolvem a humanidade, junta-se a fatalidade interior, o ananké supremo, o coração humano”; é fácil encontrar aqui o anúncio de um tema dominante para o romance que
vem a seguir: O Homem que ri” - a partir de http://www.universalis.fr/encyclopedie/ananke/.
[1039] Jacob. Vitriæ, ap. Bulæus, II, 687: Meretrices publicæ ubiquè cleros transeuntes quasi per violentiam pertrahebant. In unâ autem et eâdem domo scholæ erant
superiùs, prostibula inferiùs (NT: Meretrizes públicas arrastavam, quase por violência, os clérigos que transitavam. Encontrava-se, numa mesma casa, escolas na
parte de cima, prostíbulos na parte de baixo).
[1040] O anti-Papa Anacleto, Inocente II, Celestino II (discípulo de Abelardo), Adriano IV, Alexandre III, Urbano III e Inocente III. (Bulæus, II, 554).
[1041] Pierre le Chantre (Petrus Cantor, c. 1130-1197) e outros escritores contemporâneos relatam o traço seguinte: “Em 1171, mestre Silo, professor de filosofia, pediu
a um dos discípulos, que estava à morte, que retornasse do além-túmulo para contar-lhe do estado em que se encontraria no outro mundo. Alguns dias após sua morte, o
escolar apareceu-lhe vestido de uma capa toda coberta de teses, “de sophismatibus descripta et flamma ignis tota confecta” (“toda confeccionada com escritos sofistas
e chamas de fogo”). Ele contou-lhe que vinha do purgatório e que a capa era-lhe mais pesada que uma torre: “Et est mihi data ut eam portem pro gloriâ quam in
sophismatibus habui” (“e ela me foi dada para usar em virtude do orgulho que eu sentia nos sofismas”). Ao mesmo tempo, ele deixou cair uma gota de seu suor
sobre a mão do mestre, a qual foi furada até o outro lado. No dia seguinte, Silo disse a seus escolares:

Linquo coax ranis, cras corvis, vanaque vanis;


Ad logicen pergo, quæ mortis non timet ergo
Deixo o coaxar aos sapos, o crocitar aos corvos, a vaidade aos vaidosos;
E me apresso a afastar-me da lógica, que não teme a morte.

e partiu para se enclausurar num monastério de Cîteaux”. Bulæus, II, 393.


[1042] Introductorius ad Evangelium Æternum. “O Evangelho perdurável” (Romance da Rosa, ap. Bulæus, III, 299). Encontra-se, nos registros da Inquisição de
Roma, vinte e sete proposições condenadas, extraídas do livro de João de Parma:
Quod novum Testamentum est evacuandum, sicut vêtus est evacuatum (NT: Que o novo Testamento está para ser concluído, assim como o velho o está) — Quod
quantumcumque Deus affligat Judæos in hoc mundo, illos tamen salvabit, quibus benefaciet manentibus in Judaismo etc. (NT: Que conquanto Deus aflija os Judeus
neste mundo, ainda assim salvará aqueles que permanecem no Judaísmo, etc.) — Quod Evangelium J.-C. neminem ducit ad perfectum (NT: Que o Evangelho de
Jesus Cristo não conduz ninguém à perfeição) — Quod spiritualis intelligentia novi Testamenti non est commissa Papæ Romano, sed tantum litteralis (NT: Que o
sentido espiritual do novo Testamento não foi conferido ao Papa Romano, mas apenas o literal). — Quod recessus ecclesiæ Græcorum à Romani ecclesiâ fuit
bonus (NT: Que a secessão da igreja Grega da igreja Romana foi boa) — Quod populos Græcus magis ambulat secundùm spiritum quàm populus Latinus (NT: Que o
povo Grego anda mais de acordo com o espírito que o povo Latino) . — Quod Christus et apostoli ejus non fuerunt perfecti in via contemplativa (NT: Que Cristo e
Seus apóstolos não foram perfeitos na vida contemplativa). — Quod activa vita usque ad tempus abbatis Joachim fructuosa fuit, sed nunc fructuosa non est {NT: Que
a vida ativa, desde o tempo do abade Joaquim (de quem João tomou emprestada parte de sua doutrina) frutificou, mas que não mais frutifica}. Os monges
substituirão, na nova lei, o clero secular, etc. etc. (Bulæus, Histoire Univ., Paris, III, 292 e segs.) – Amaury de Chartres já havia sustentado doutrinas análogas. Guill. de S.
Amore, c. 8: “Jam transacti sunt anni LV, quòd aliqui laborabant ad mutandum Evangelium, quod dicunt fore perfectius, melius et dignius, quod appellant Evangelium
spiritus sancti, s. Evangelium æternum (NT: Já se passaram cinquenta e cinco anos desde que alguns laboraram para mudar o Evangelho, o qual dizem será
ainda mais perfeito, melhor e mais digno, o qual chamam de Evangelho do Espírito Santo, o Eterno Santo Evangelho) – O Papa já escrevera ao bispo de Paris mandar
destruir, sem barulho, este livro. Mas a Universidade, já em briga com as Ordens Mendicantes, fê-lo queimar publicamente no pátio da Notre-Dame. João de Parma
demitiu-se do generalato. São Boaventura, que sucedeu-lhe, iniciou um inquérito contra ele e mandou jogar na prisão os seus seguidores. Um deles aí passou dezoito anos,
o outro morreu. Vide Math. Paris, ann. 1256; Richerius (ap. d’Achery Spicileg, II), l. IV, c. 37; São Tomás de Aquino, opusc. XIX, c. 24; Nic. Eymericus in Directorio
Inquisitorum, P. II, qu. 9; Echardus, Scr. Dominic., I, 202; d’Argentré Collectio Judicior., I, 163, etc etc.
[1043] Hermann. Cornerus, ap. Eccardi, hist. med. ævi, II, 849: ... Item dicit Evangelium æternum esse spirituale, Evangelium Christi litterale (NT: Ele igualmente diz
que o Evangelho Eterno é espiritual, o Evangelho de Cristo é literal) — Quod tertius status mundi, qui proprius est S. Spiritûs, erit siae ænigmate et sine figuris... et
veritas duorum Testamentorum sine velamine apparebit {NT: Que o terceito estado do mundo, que é próprio do Espírito Santo, será sem enigmas (parábolas) e
figuras... e que o verdadeiro significado dos dois Testamentos aparecerá sem véu} . — Quod sicut in principio primi status.... Abraham , Isaac et Jacob... et sicut in
principio novi... Zacharias, Johannes Baptista, homo Christus Jésus... sic in principio tertii, erunt tres similes illorum, scilicet vir indutus lineis (Joachim), et angelus quidam
habens falcem acutam (Dominicus), et alius angelus habens signum Dei vivi (Franciscus). Et habebit similiter angelus duodecim,... sicut Jacob in primo, Christus in secundo
{NT: Que, como no início do primeiro estado,... Abraão, Isaac e Jacó ... que, como no início do novo... Zacarias, João Batista, e o homem Cristo Jesus... assim,
no início do terceiro, haverá três como eles, os quais serão o homem vestido de linho (Joaquim), e o anjo segurando uma foice afiada (Dominique), e outro
anjo tendo o sinal (a marca) do Deus vivo (Francisco). E ele igualmente terá doze anjos... como Jacó no primeiro e Cristo no segundo} — Quod Evangelium
æternum traditum sit et commissum principaliter illi ordini qui integratur et procedit æqualiter ex ordine laïcorum et clericorum, quem ordinem appellat Independentium (NT:
Que o Evangelho Eterno será entregue e confiado àquela ordem que for íntegra e proceder com igualde, composta de laicos e clérigos, à qual ele chama de
Os Independentes). — Quòd novum Testamentum non durabit in virtute suâ, nisi per sex annos proximè futuros, scilicet usquè ad annum 1260 (NT: Que a virtude do
Novo Testamento durará apenas pelos próximos seis anos futuros). — Ecclesia Romana litteralis est et non spiritualis (NT: A Igreja Romana é literal e não
espiritual). — Quod papa græcus magis ambulat secundùm Evangelium quàm papa latinus (NT: Que o Papa Grego anda mais de acordo com o Evangelho que o
Latino).
[1044] Este retrato foi gravado na capa de suas obras (Constance, 1632, in. 4º).
NT: Guillaume de Saint-Amour ou Guillaume Dumont, nasceu em 1202, em Saint-Amour, no Jura. Responsável pelo capítulo da catedral de Mâcon e, depois, da
Universidade de Paris, onde se tornou mestre em sacra pagina, exerceu, por volta de 1250-1252, a função de regente da faculdade de Teologia. É o autor, em 1255, de um
panfleto – provavelmente o mesmo que São Luís encaminhou para o Papa – contra as novas ordens Mendicantes (Franciscanos e Dominicanos), chamado “Tractatus
brevis de periculis novissimorum temporum” (Breve Tratado sobre os perigos do fim do mundo). Este panfleto deve muito à injustiça da qual se ressentia Guilherme de
Saint-Amour face o sucesso das ordens Mendicantes que captam, cada vez mais, as oblações, cêntimos e direito e outras porções canôninas que constituem o essencial de
suas rendas. Em 1257, o Papa Alexandre IV o condenou e Luís IX (São Luís) o expulsou da França. Morreu em 1272. – a partir do sítio internet em francês
http://fr.wikipedia.org/wiki/Guillaume_de_saint-amour. Vide, a propósito, a excelente obra, em inglês, de 2008, “William of Saint-Amour: Tractatus brevis de periculis
novissimorum temporum”, edição, tradução e introdução por G. Geltner, coletânea Dallas Medieval Texts and Translations 8, ed. Peeters, ISBN 978-90-429-2010-1}.
[1045] Concio de publicano et pharisæo; De quantitate eleesmosynæ; De valido mendicante quæstiones; Tractatus de periculis novissimorum temporum ex scripturis
sumptus, etc. A última dessas obras foi rapidamente traduzida em versos franceses: “Quanquam Anagniæ damnatus, nibilominus à petulante juventute in linguam Gallicam,
inque rythmos vernaculos translatus est, ut facilius à populo intelligeretur” (NT: Apesar de condenado por Anagni*, esta petulante juventudade de língua Galicana o
traduziu em rimas de vernáculo, o que facilitou ao povo compreendê-lo). Bulæus, III, 348 – Ele será reimpresso em Rouen, no reinado de Luís XIII; mas o conselho
privado proibiu sua venda por decreto de 14 de julho de 1633.
* (NT): Anagni é uma cidade próxima a Roma para onde os Papas praticamente se mudaram a partir do século XII, tendo conhecido seu apogeu no século XIII. Por tal
razão, onde se lê “condenado por Anagni” há de se compreender “condenado pelo Vaticano” – vide http://en.wikipedia.org/wiki/Anagni.
[1046] As Ordens Mendicantes estavam muito assustadas: “Cum prædicto volumini respondere fuisset prædicto doctori (Thomæ), non sine singulu et lacrymis,
assignatum, qui de statu ordinis et pugnâ adversariorum tàm gravium dubitabant, Fr. Thomas ipsum volumen accipient et se fratrum orationibus recommendans...” {NT:
Quando ao referido volume foi encarregado de responder o referido doutor (Tomás), não sem lágrimas e soluços daqueles que duvidavam da capacidade da
Ordem de resistir a tais adversários, o irmão Tomás aceitou o volume e recomendou-se às orações dos irmãos”} , Guill. de Thoco, vit. S. Thomæ, ap. Acta SS.
Martis, I.
[1047] Ele condenou publicamente Guilherme de Saint-Amour e, com menos barulho, João de Parma. Bulæus, III, 329.
[1048] Processus de S. Thom. Aquin., ap. Acta SS. Martis, I, p. 714: “Concludit quòd Fr. Thomas in scripturis suis imposuit finem omnibus laborantibus usquè ad finem
sæculi, et quòd omnes deinceps frustrà laborarent”. – Os Dominicanos decidiram, em dois capítulos que ocorreram, um em Paris (1286), e o outro em Carcassonne (1342),
“que os irmãos seguiriam fielmente a doutrina de São Tomás, e que se algum mestre, bacharel ou irmão, a descartasse, ele seria imediatamente suspenso de suas
funções”. Martene, Thes. anecd., IV, 1817. Holstenii cod. regul., ed. Brockie, IV, 114.
[1049] Esta expressão é significativa para quem tem presente a figura sonhadora e monumental dos grandes bois da Itália do Sul. “Fuit (S. Thomas) magnus in corpore
et rectæ staturæ, ... coloris triticei, ... magnum habens caput... aliquantulùm calvus. Fuit tenerrimæ complexionis in carne” {NT: Era (São Tomás) grande de corpo e reta
(alta) estatura, ... da cor do trigo, ... tinha uma grande cabeça... um tanto quanto calvo. Era de tenra (macia) compleição na carne}. Acta SS., p. 672. – “Fuit
grossus” (NT: Era gordo), Processus de S. Thom., ibid.
[1050] Joinville, p. 6. Em seguida, ele perguntou a Joinville o que preferiria: ter cometido um pecado mortal ou ser leproso. Joiville respondeu que preferiria ter cometido
trinta pecados mortais. “E quando os irmãos partiram, ele me chamou sozinho, fez-me sentar a seus pés, e me disse: ‘Como dissestes aquilo ontem?’ E eu lhe respondi que
ainda o dizia, e ele me disse: ‘Vós falastes como um irreflexivo tolo, pois nenhuma lazarice, por mais feia, é como encontrar-se em pecado mortal (‘Comment me desistes
vous hier ce? Et je lis dis que encore li disoie-je, et il me dist: ‘Vous deistes comme hastiz musarz; car nulle si laide mezelerie n’est comme d’estre en péchié
mortel, etc”).
[1051] Id. p. 12: “Na doutrina que deixou ao rei Filipe, seu filho, ... contida nela havia uma cláusula que é esta: ‘Faz, de teu poder, os búlgaros* e outros malfeitores
serem expulsos de teu reino, com o quê a terra seja, por este bem, purgada” (“En la doctrine que il lessa au roi Phelipe, son fiuz,... il y avait une clause contenue,
qui est tele: ‘Fai à ton pouoir les bougres et les autres mal genz chacier de ton roayume, si que la terre soit de ce bien purgée”), Le Confesseur, p. 305.
*(NT): “búlgaros”, bougres no original. Segundo o Dictionaire du Moyen Français – DMF (http://www.atilf.fr/dmf/), tanto pode se referir a heréticos (em virtude da
heresia cátara trazida da Búlgaria), como também pode significar sodomita (da qual os heréticos búlgaros são particularmente acusados), homossexual, pederasta.
[1052] Id., ibid. – G. Villani, XIII, 200: Um dia, vieram dizer-lhe que o rosto do Cristo aparecera numa hóstia: “Que aqueles que duvidam partam para vê-lo; quanto a
mim, eu o vejo em meu coração”.
[1053] (NT): “Santa Técla foi uma virgem e protomártir membro de uma rica e influente família de Icônio. Foi agraciada pela Igreja com o título de "Igual aos
Apóstolos" e "protomártir entre as mulheres". Muitas igrejas a ela foram dedicadas, entre as quais uma erigida em Constantinopla por Constantino. Técla foi a intercessora
das orações dos ascetas, tendo sido invocada durante a tonsura de mulheres no monaquismo.
Santa Técla não é citada na Bíblia, e a única fonte de informações sobre sua vida é o Atos de Paulo e Tecla , livro escrito provavelmente no século II e tido como
apócrifo. De acordo com o livro, quando o apóstolo Paulo chegou à Icônio, hospedou-se na casa de Onesíforo, do qual Técla era vizinha. Nesta altura com 18 anos,
prometida a Tamire, Técla ouve a pregação de São Paulo e então decide dedicar sua vida à pregação do Evangelho. A mãe de Técla opôs-se aos planos da filha, enquanto
seu pretendente delatou Paulo para o prefeito da cidade, que o aprisionou.
Subornando os guardas com todo seu ornamento em ouro, Técla vai ao encontro de São Paulo, que lhe transmitiu diversos preceitos paternais. Três dias depois, os servos
de sua família a encontraram e a levaram a força. Irredutível quanto ao casamento foi, a mando de sua mãe, condenada à fogueira. Segundo a tradição, ao entrar no fogo
e fazer um sinal da cruz sobre si mesma, uma luz a cercou e as chamas não conseguiram tocá-la. Uma forte chuva acompanhada com granizo apagou o fogo e seus
torturadores dispersaram-se em pavor.
Técla abandonou a cidade e foi ao encalço de São Paulo, que estava em uma caverna nas cercanias da cidade junto de seus companheiros; Técla acompanhou Paulo em
sua viagem de pregação na Antióquia da Pisídia. Na cidade, o dignitário Alexandre, deslumbrado por sua beleza, a pede em casamento e novamente a virgem recusa o
pedido, o que provoca ira em Alexandre, que ordena que animais famintos sejam investidos contra ela. Segundo a tradição, os animais recusaram-se a tocar nela.
Posteriormente, Técla foi amarrada em cordas puxadas por dois bois e, também segundo a tradição, as cordas arrebentaram como teias de aranha e os bois fugiram. Após
tais fatos Técla é libertada.
Técla estabeleceu-se em uma região desolada, nas proximidades de Selêucia Isauria, onde por muitos anos pregou a palavra de Deus, curou enfermos e converteu pagãos
ao cristianismo. Com cerca de 90 anos, feiticeiros pagãos, invejando a popularidade de Técla, enviam seus seguidores para matá-la. Segundo a tradição, quando eles
estavam próximos, Técla gritou em súplica a Deus e uma rocha se abriu e escondeu a virgem, que entregou sua alma a Ele. Em Ma'loula, na Síria, há um convento, Deir
Mar Takla, dedicado a Santa Técla, construído próximo do local onde a rocha abriu-se para ela. Atualmente parte de suas relíquias está em uma catedral em Milão”. -
(extraído de http://pt.wikipedia.org/wiki/Santa_Tecla)

[1054] Sem falar dos trabalhos antigos de Faucher, Tresson, Saint-Palaie, o grande d’Aussy, Barbasan, Méon, etc. Mencionaremos aqueles de Becker e de Goerres,
aqueles dos MM. Fauriel, Monin, Quinet e do último editor de Warton. – Vide também M. P. Paris, Introduction au roman de Berte, dedicado a M. de Montmerqué: “Na
sequência do romance de Renard, seguiram, sob vossos auspícios, a nossa primeira ópera cômica (Le Jeu de Robin et Marion) e nosso primeira drama (Le Jeu d’Adam
le Bossu d’Arras). M. de Roquefort tem, por sua vez, oferecido em tributo as poesias de Marie de France, e M. Crapelet o gracioso romance do Châtelain de Coucy.
M. F. Michel, não contente de ter publicado o romance do Comité de Poitiers e aquele da Violette, vai trazer à luz, auxiliado pela ciência de um estimado orientalista, um
poema de Mahomet, destinado a nos fazer conhecer a opinião que formávamos no Ocidente, no século XIII, da religião e da pessoa do mencionado legislador árabe. M.
Bourdillon se ocupa de fazer uma edição do Chant de Roncevaux, e M. Robert, conhecido por seu trabalho sobre La Fontaine, deve logo publicar o belo romance de
Partenopex de Blois. Enquanto isso, M. Raynouard dá a última demão no Glossaire des langues vulgaires , e o abade Delarue supervisiona a impressão de uma grande
obra sobre Les bardes, les jongleurs et les trouvères”. – Delarue, Bardes Armoricains, p. 64. “Quantos romances da Távola Redonda em latim já não vimos? Nennius,
o Falso Gildas, o Bruto da Inglaterra, a Vida de Merlin, suas Profecias, o romance do Cavaleiro do Leão, aquele de José de Arimatéia, etc. não se encontram em todas as
grandes bibliotecas? Nelas também não se encontra, em latim, o romance de Carlos Magno por Jean Turpin, e aquele da Viagem deste Imperador a Jerusalém, o romance
de Holger Danske da Dinamarca, aquele de Amis e Amilião, aquele de Athis e de Porphilias, aliás, do Cerco de Atenas, aqueles de Alexandre, de Dolopathos, etc etc?
Enfim, não temos nós um grande número de nossas fábulas no Disciplina clericalis de Pedro Alfonse e nos Gesta Romanorum?’”
[1055] Pleonasmo. Alban, Alp, quer dizer monte nas línguas célticas.
[1056] Passagem de “Guilherme do Nariz-Curto” (Guillaume au Court-Nez), Paris, introdução de “Berta dos pés grandes” (Berte aux grands pieds), citado em
Gérard de Nevers:

Grant fu la cort en la sale à Loon,


M oult ot as tables oiseax et venoison.
Qui que manjast la char et le poisson,
Oncques Gilllaume n'en passa le menton:
Ains menja tourte, et but aigue à foison.
Quant mengier orent
li chevalier baron,
Les napes otent escuier et garçon.
Li quens Guillaume mist le roi à raison:
— “Qu'as en pensé” dit-il, “li fiéz Charlon?
Secores-moi vers la geste M ahon”?
Dist Loéis: “Nous en consillerons,
Et le matin savoir le vous ferons
M a volonté, se je irai o non”.
Guillaume l'ot, si taint come charbon;
Il s'abaissa, si a pris un baston.
Puis dit au roi : “Vostré fiez vos rendon,
N'en tenrai mès vaillant une esperon,
Ne vostre ami ne serai ne voste hom,
Et si venrez, o vous voillez o non”

Grande foi a multidão na sala de Laon,


Bem fornidas as mesas com aves e caça,
Para que comessem a carne e o peixe,
Jamais Guilherme passou algo de seu queixo:
Assim comeu pão e bebeu água em profusão.
Quando comeram
o cavaleiro e o barão,
os guardanapos tiraram o escudeiro e o pajem.
Então conde Guilherme chamou o rei à razão:
“O que concluíste”, disse, “sobre teu filho Carlinho”? (Charlon)
Ajudar-me-ás na guerra contra M aomé”?
Disse Luís: “Nós faremos conselho,
E pela manhã vos faremos saber
minha vontade, se irei ou não”.
Guilherme ouviu, se queimou como carvão;
Abaixou-se e pegou a si um bastão.
Depois disse ao rei: “Vosso filho enviareis
Ou não me tereis valendo sequer uma espora,
Nem vosso amigo serei, nem vosso homem,
E assim iremos, desejai vós ou não.

{NT: na forma original, é marcante, como em todos os outro


poemas trazidos neste livro, a assonância nas palavras finais e que,
infelizmente, se perde na tradução}

(Monseigneur de Gérard de Nevers, nº 7498, século XIII, corrigido sobre o texto mais antigo do Monseigneur de Guillaume au Cornés, nº 6995).
[1057] Roquefort, p. 196, nota 3. “O Dictz de Marcoul et Salomon , nº 7218, e Fonds de Notre-Dame, nº 2, foram, indubitavelmente, feitos a partir do título de uma
obra antiga, Contradictio Salomonis. Este romance, um dos mais antigos da Europa, parece ter saído de fontes gregas ou, antes, asiáticas; ele foi inicialmente traduzido
para o latim e, em seguida, para a maioria dos idiomas vulgares. Já ao fim do quinto século, o Papa Gelásio I o colocou entre os livros apócrifos. Guilherme de Tiro fala
dele, mas se engana quando pensa poder encontrá-lo nas antiguidades judaicas de Josefo. Fora isso, esse romance existe em antigos versos alemães e franceses: é o
Bertoldo dos Italianos que, de todas as versões, tornou-se a mais célebre porque uma sociedade de gente de letras concebeu a idéia de continuá-lo e transmiti-lo. Este
ensaio, executado de uma maneira assaz bizarra, nos obrigou a encontrar um dicionário de dialetos italianos que fosse muito, muito bom”.
(NT): Os tais “Diálogos (ou Ditos) de Marculfo (ou Marcoulfo ou Marcoul) e Salomão” podem ser encontrados na internet em francês, latim, alemão e inglês. Quanto à
versão de Bertoldo que, de todas, se tornou a mais célebre, há uma interessante edição publicada pela Livraria e Editora Quaresma, Rio de Janeiro, 1913, em
www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/biblioteca/0008/index.htm.
[1058] Vide o poema de Alexandre, por Lambert-le-Court e Alexandre de Paris, nascido em Bernai. O poeta pretende apenas uma tradução do latim. – Há também
uma Alexandríada latina (várias vezes impressa), publicada em 1180 por um cônego de Amiens, Gautier de Châtillon, nascido em Lille; nas escolas, era explicada de
preferência aos autores antigos. – Os versos da Alexandríada francesa, citados por Legrand d’Aussy (Notices et Extraits des Mss. de la Bibl. Roy.), são elegantes e
sonoros:

Si long comme il estoit, mesura la campagne


M ’espée muert de fain, et ma lance de soi, etc.
Tão alto como era, mediu a campanha,
Minha espada morta de fome, e minha lança de sede.

[1059] O principal depósito das tradições bretãs da Idade Média é a obra de Godofredo (Geoffroy) de Monmouth. Sobre a veracidade desse autor e as fontes das quais
bebeu, vide Ellis, Intr. metrical romances ; Turner, Quarterly Review, janeiro 1820; Delarue, Bardes Armoricains; e sobretudo a última edição de Warton (1824), com
notas de Douce e de Park; vide também as críticas de Ritson, algumas passagens das poesias de Maria de França, publicadas por M. de Roquefort, 1820, etc.
[1060] (NT) Jamshid (ou Jamshēd ou, ainda, Jamshyd). Com o decorrer do tempo, o herói do Avesta Yma Xšaēta tornou-se Jamshid, o xá reinante sobre o mundo da
lenda e da mitologia persa. Jamshid era o quarto rei do mundo e comandava os anjos e demônios do mundo, sendo, a cada turno, o rei e grande sacerdote de Aúra-Mazda.
Foi responsável por várias invenções que tornaram a vida dos homens mais segura (armas, armaduras, tecelagem e tingimente da lã, da seda, do cânhamo, a construção de
casas de tijolos, a procura das jóias e dos metais preciosos, a fabricação de perfumes e a navegação das águas do mundo). Os homens, que até então viviam com as peles
dos animais, atingiram, com Jamshid, um nível de grande civilização. Conta-se que Jamshid possuía um cálice de sete anéis mágicos, o Jām-e Jam, que estava repleto do
elixir da imortalidade e servia-lhe para observer o universo.
[1061] (NT) Hipérion ou Hiperião é um dos titãs (fogo astral e visão), filho de Urano (Céu) e Gaia (Terra, Mãe-Terra).
[1062] Após ter falado da poesia cavaleiresca, eu deveria passar à poesia cristã, considerada nas lendas, etc. Mas eu conto aprofundar esse grande assunto alhures.
Aqui, eu falarei somente da poesia do culto e da arte cristã.
[1063] Assim, em Paris, as igrejas Saint-Jacques-la-Boucherie e Sainte-Geneviève, etc. O abade Lebœuf notou, sobre a fachada desta última igreja, um enorme anel de
ferro por dentro do qual passavam os braços aqueles que vinham solicitar asilo. – Era, ainda, nas igrejas, que se vinha acomodar os doentes, particularmente aqueles que
eram atingidos do mal dos ardentes (NT: “também conhecido por ergotismo, envenamento por Ergot, envenenamento por cravagem e, ainda, Fogo de Santo
Antônio” – vide mais acima).
[1064] O sino de prata, em Reims, soava no dia 1º de março para anunciar a retomada dos trabalhos agrícolas. Um outro sino, em 1498, começou a soar de manhã e
ao anoitecer, nos momentos de abrir e de fechar os portões da cidade e os ateliers.
[1065] ‘Monuments primitifs de la langue romane’, publicados por M. Raynouard, em sua grande obra.
[1066] Falarei, alhures, desta bela lenda.
[1067] Em Tarascon, o drac; em Metz, o graouilli; em Rouen, a gargouille; em Paris, o monstro do Bièvre, etc. Vide mais acima, Livro III. Vê-se a gárgula nos selos
de Rouen. Arquivos do Reino.
[1068] Vide Ducange, verb. halendæ, cervulus, abbas cornadorum; Lobineau, ‘Hist. de Paris’, I, 224; Dutillet, ‘Mémoires pour servir à l’histoire de la Fête des
Fous’; Flœgel, ‘Geschichte des Groteskekomichen’; Marlot, ‘Metropolis Remensis Historia’; Millin, ‘Déscription d’un dyptique qui renferme un missel de la Fête
des Fous’. O legado Pedro de Cápua proibiu, em 1198, a celebração dessa festa na diocese de Paris. Mas ela não cessou completamente senão em 1444. Encontramo-la
na Inglaterra, em 1530. – Em 1671, as crianças do coro da Santa Capela pretendiam ainda comandar o dia dos Santos Inocentes e ocupavam as estalas (cadeiras bispais à
frente) com a capa e o bastão cantoral. Monrad, ‘Histoire de la Sainte-Chapelle’, p. 222.
[1069] Vide mais acima, Livro III, a indicação das festas burlescas que subsistem em parte em nossas províncias.
[1070] Em Beauvais, em Autun, etc., celebrava-se a Festa do Asno. – “Rubricæ MSS. festi asinorum”, ap. Ducange: “In fine missæ sacerdos versus ad populum vice:
Ite, missa est, ter hinhannabit; populus verò vice: Deo gratias, ter respondebit: Hinham, hinham, hinham” {NT: “Ao final da missa, o sacerdote, virando-se para o povo
(dizia): ‘Ide, a missa terminou, zurrai três vezes’; então, o povo, com a fórmula (dizia): ‘Graças a Deus’ e, três vezes: ‘Hinham, hinham, hinham”} . - Cantava-se
a prosa seguinte:
Orientis partibus Aurum de Arabia,
Adventavit asinus Thus et myrrhum de Saba,
Pulcher et fortissimus, Tulit in ecclesia
Sarcinis aptissimus. Virtus asinaria.
Hez, sire asnes, car chantez Hez, sire asnes, etc.
Belle bouche rechignez,
Vous aurez du foin assez Dum trahit vehicula
Et de 1'avoine a plantez M ulta cum sarcinula,
Illius mandibula
Lentus erat pedibus Dura terit pabula.
Nisi foret baculus Hez, sire asnes, etc.
Et eum in clunibus
Pungeret acculeus. Cum aristis hordeum
Hez, sire asnes, etc. Comedit et carduum;
Triticum e paleâ
Hic in collibus Sichem, Segregat in areâ.
Jam nutritus sub Ruben, Hez, sire asnes, etc.
Transiit per Jordanem,
Saliit in Bethleem. Amen, dicas, Asine,
Hez, sire asnes, etc. (hic genuflectebatur)
Jam satur de gramine:
Ecce magnis auribus Amen, Amen itera,
Subjugatis filius, Aspernare vetera.
Asinus egregius, Hez va! hez va! hez va hez!
Asinorum dominus. Biax sire asnes car allez,
Hez, sire asnes, etc. Belle bouche car chantez."

Saltu vincit hinnulos, (MSS do século XII, ap. Ducange,


Damas, et capreolos, Glossário)
Super dromedarios
Velox M adianeos.
Hez, sire asnes, etc.

Da parte do Oriente, Ouro da Arábia,


veio o asno. incenso e mirra de Sabá,
Belo e fortíssimo, trazidos à igreja,
Carregador aptíssimo. pelo valor asinino.
Ei, senhor asno, então cantai, Ei, senhor asno, etc.
Bela boca entortai,
Tereis feno o bastante Enquanto puxa carroças,
E aveia em quantidade. M uitas com pouca carga,
Com suas mandíbulas
Era lento do pé esmaga a dura comida.
A não ser que um bastão Ei, senhor asno, etc.
ou então um aguilhão
O picasse nas nádegas. Com milho e cevada
Ei, senhor asno, etc. Ele comeu e o cardo;
O trigo do joio
Aqui, nas colinas de Siquém, Ele separa no lixo.
Já seguido por Rubem, Ei senhor asno, etc.
ele cruzou o Jordão,
e saiu em Belém Amém, diga, ó Asno,
Ei, senhor asno, etc. (aqui todos se ajoelham)
estando saturado de grama:
Veja as grandes orelhas, Amém, Amém repete,
o filho subjugado, Rejeita a velha vida.
o asno excelente Ei, vá! Ei, vá! Ei, vá, ei!
o senhor dos asnos. Senhor bom asno para ir,
Ei, senhor asno, etc. bela boca para cantar.

Nos saltos vence as corças, (NT: adaptado a partir da


veados e caprinos, tradução em inglês, op. cit.)
mais veloz que os dromedários
dos M idianitas.
Ei, senhor asno, etc.

[1071] “Nostri nec pœnitet illas, nec te pœniteat pectoris, divine poëta” (NT: Eles não se envergonharam de nós, não te envergonhes deles, ó divino poeta) ,
Virgílio, écloga X.
[1072] No portal setentrional da catedral (portas das Livrarias).
[1073] Sobre um contraforte do campanário velho.
[1074] Na igreja de Saint-Guenault. Millin, ‘Voyage’, t. I, p. 20 e prancha IV.
[1075] Vide as estalas de Notre-Dame de Rouen, de Notre-Dame de Amiens, de Saint-Guenault de Essone, etc. – São Bernardo escreveu, por volta de 1125, a
Guilherme de saint Thierry: “A qual bem todos esses monstros grotescos na pintura ou na bossa que colocam à vista das pessoas que choram seus pecados? A que serve
esta bela deformidade ou esta beleza disforme? O que significam esses símios imundos, esses leões furiosos, esses centauros monstruosos?”. Ed. Mabillon, p. 539.
[1076] Era o motivo de um baixo-relevo exterior da catedral de Reims, que se mandou apagar.
[1077] J. Blunt, ‘Vestiges of ancient manners and customs discoverable in modern Italy and Sicily’ , Londres, 1823, p. 158. – Como é que M. Blunt pôde nisto ver
uma momice ridícula?!
[1078] Na Santa Capela, via-se descer da abóbada a figura de um anjo segurando uma mamadeira de prata, com a qual vertia água sobre as mãos do celebrante.
Morand, ‘Hist. de la Sainte-Chapelle’, p. 180. – Em Reims, no dia da Dedicação, posicionava-se um círio aceso entre cada arcada.
[1079] O coro se inclina no sentido noroeste nas igrejas de Notre-Dame de Paris, de Notre-Dame e de Saint-Ouen de Rouen, de Quimper, etc.
[1080] Montaigne a respeito do manto de seu pai que ele adorava vestir: “Eu me embrulhei do meu pai”.
[1081] O Zodíaco e o Evangelho se alternam sobre os pórticos e nas rosáceas das igrejas. Assim em Notre-Dame de Paris, em Saint-Denis, em Reims, em Chartres,
etc., a cada um dos signos do zodíaco, correspondem baixos-relevos representando os trabalhos de cada mês. Em Notre-Dame de Paris, a série se abre pela história de
Adão, para indicar que foi depois de sua queda que o homem foi condenado ao trabalho. – Também, com frequência, vê-se pequenas figuras nas estalas que representam
as artes e os ofícios; vide as estalas de Saint-Denis, transportadas do castelo de Gaillon, e aquelas das catedrais de Rouen, de Chartres, etc.
[1082] (NT): Joseph Pitton de Tournefort (1656-1708), botânico francês.
[1083] (NT): Carolus Linnæus (Carlos Lineu) “e, em sueco, após sua nobilitação, Carl von Linée (1707 – 1778), botânico, zóologo e médico sueco, criador da
nomenclatura binominal e da classificação científica, sendo assim considerado o pai da taxonomia moderna” - http://pt.wikipedia.org/wiki/Carolus_Linnaeus.
[1084] (NT): A família Jussieu produziu vários botânicos que também eram médicos. Provavelmente, o autor refere-se a Bernard de Jussieu (1699-1777) que, ao
receber o encargo que lhe foi confiado por Luís XV de criar uma escola de botânica, nos jardins do Trianon, não seguiu a classificação de Lineu, criando uma nova,
baseada nos caracteres morfológicos das plantas (vem daí a classificação monocotiledôneas e dicotiledôneas, etc.). Esse sistema foi refinado por seu sobrinho Antoine-
Laurent de Jussieu – a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Bernard_de_Jussieu.
[1085] (NT) Em inglês: Death of John Barleycorn. Uma canção do folclore inglês na qual o cereal cevada é personificado. Na canção, John Barleycorn (João Grão
de Cevada) sofre ataques, morte e injúrias que correspondem aos vários estágios do cultivo da cevada. – vide em http://en.wikipedia.org/wiki/John_Barleycorn.
[1086] Sobrenome de um dos arquitetos que Ludovico Sforza mandou vir da Alemanha para fechar as abóbadas da catedral de Milão. Gaet. Franchetti, Storia et
descrizione del duomo di Milano, 1821.
[1087] (NT): Melpomene (“Canto”) uma das nove musas da mitologia grega. “Era a musa da tragédia, apesar de seu canto alegre. É representada com uma máscara
trágica e usando botas de couro (coturnos), tradicionalmente usadas por atores trágicos. Costuma usar uma faca ou bastão em uma mão e uma máscara na outra. Na
cabeça é apresentada com uma coroa de cipreste”. – a partir de http://pt.wikipedia.org/wiki/Melpômene.
[1088] John Crawford, ‘Journal of an embassy to the court of Ava in year 1827’; in-4º, 1829, p. 64: “Em todos os templos antigos, prevalece o arco gótico; os
edifícios modernos não apresentam, absolutamente, este caráter”. – M. Lenormant crê que a ogiva seja originária da Pérsia; o palácio de Sapor, e os outros monumentos
dos Sassânidas, sempre apresentam esta figura. Seria lógico, de fato, que esta forma mística tivesse sido criada por um povo místico (vide Chardin). M. Lenormant
encontrou, no Egito, ogivas do século nono. A Sicília e Nápoles teriam sido o anel que reuniu as arquiteturas oriental e ocidental.
[1089] Relatório de M. Eug. Burnouf, sobre a coleção das visões da Índia, por Daniel, 5 de novembro de 1827 (Journal Asiatique, t. XI, p. 316): “Os monumentos
religiosos, desenhados pelo autor, pertencem a todas as partes da quase-ilha, mas sobretudo às cercanias de Benares (NT: ou Varanasi) , de Bihar, de Maduré (NT: ou
Madurai), onde a conquista muçulmana não penetrou, e à extremidade meridional da península. Examinando essas vastas construções sob um ponto de vista geral, todas
parecem marcadas de uma característica comum e que as distiguem essencialmente dos monumentos da arquitetura grega; enquanto estes últimos são compostos de
partes inseparáveis, do acordo das quais resulta a harmonia do todo, e que nada seriam se não estivessem juntas, e que sem o conjunto das quais o todo nada seria, os
templos hindus mais gigantescos são formados da reunião e, se podemos assim expressar, da adição de partes todas idênticas umas às outras, e que poderiam permanecer
independentes do edifício ao qual pertencem, porque elas o representam exatamente em todas as proporções. Cada monumento é, então, por assim dizer, o total de um
maior ou menor grande número de outros monumentos construídos da mesma maneira, mas em dimensões diversas, de sorte que sua reunião forma, não um conjunto, mas
uma agregação em tudo semelhante a cada uma das partes que a compõem. Essa característica, que talvez não se tenha observado atentamente, se encontra nos menores
detalhes da escultura dos Indianos, por exemplo, nas singulares estátuas de suas divindades que o artista sobrecarregou no desenhos dos mesmos atributos mil vezes
repetidos. Sem aqui pesquisar como este sistema de arquitetura pode ter sido inspirado nos Hindus pela visão das cenas naturais que os cercam, e sobretudo pelas idéias
originais, se não sempre justas, que dominam todo o seu sistema religioso, nós diremos que é impossível não se sentir abalado à vista dos monumentos desenhados por M.
Daniel”.
[1090] As abóbadas cimbradas são sujeitas a fletir no cume. – As abóbadas góticas quase nunca são construídas em pedras de talhe, mas com pequenas pedras
misturadas a muita argamassa; assim, em diversas igrejas, a abóbada não possui mais que seis polegadas de largura; em Notre-Dame de Paris, ela tem três ou quatro.
Nesta última igreja, o vigamento ou floresta repousa unicamente sobre os muros laterais e passa acima da abóbada sem nela se apoiar. Ela apresenta um telhado de
chumbo do peso de quarenta e duas mil e duzentas e quarenta libras, sobre o qual, outrora, havia um elegante campanário de cento e quatro pés de altura. Gilbert,
Déscription de Notre-Dame de Paris.
[1091] Foi no século XII (segunda época do estilo ogival primitivo) que se começou a projetar no ar os arcobotantes. No século XI, eram ainda escondidos sob a
armação do telhado das alas. – Então, os contrafortes se ergueram como as torres, além das armações das alas, e se coroaram de pequenos campanários. Foram
escavados nichos aos pés dos contrafortes, denteou-se as arcadas, foram-lhes abertos trevos e rosáceas. Caumont, II, p. 238. Vide também as pranchas magníficas de
Boisserée, Déscription de la cathédrale de Cologne.
[1092] (NT): Encélado é um dos quatro Gigantes, filhos de Gaia (Terra) fertilizada pelo sangue de Urano (Céu). Junto com seu irmão Tifão, lutaram contra Zeus e
Atenas em uma batalha sangrenta, tendo sido postos fora de combate pela lança desta deusa e aprisionados no monte Etna, onde se encontram até hoje, lançando sua fúria
(erupções) sobre a Terra. - (adaptado dos sítios http://pt.wikipedia.org/wiki/Encélado_(mitologia); http://fr.wikipedia.org/wiki/Encelade_(mythologie).
[1093] Esta altura de quinhentos pés parece ter sido o ideal ao qual aspirava a arquitetura alemã. Assim, as torres da catedral de Colônia deviam, segundo os planos que
ainda subsistem, se elevar a quinhentos pés alemães (quatrocentos e quarenta e três pés de Paris); a flecha de Estrasburgo é alta de quinhentos pés de Estrasburgo
(quatrocentos e quarenta e cinco pés de Paris). Fiorillo, ‘Geschichte der zeiehmenden Kunste in Deutshland’, I, p. 411.
[1094] À pena poder-se-ia nomear alguns exemplos de criptas posteriores ao século XII. Gaumont, ‘Antiquités monumentales’, t. II, p. 123. Foi nos décimo-primeiro,
décimo-segundo e décimo-terceiro séculos que teve lugar o grande ímpeto da arquitetura ogival. – A maior cripta que se encontra na França é aquela da catedral de
Chartres. Vide Gilbert, ‘Notice historique et descriptive sur Notre-Dame de Chartres’, p. 76.
[1095] Dá-se como raiz da palavra ogiva a palavra alemã aug, olho; os ângulo curvilíneos se parecem com os cantos dos olhos. Gilbert, ‘Déscription de Notre-Dame
de Paris’, p. 56. – Na arquitetura ogival primitiva, as janelas eram estreitas e alongadas; os antiquários ingleses deram-lhes o nome de lancetas. Com frequência, duas
lancetas se unem e se enquadram numa arcada principal. Entre as extremidades das lancetas geminadas, e aquela da arcada principal, resta um espaço no qual quase
sempre se abria um trevo, um quatro-folhas (trevo de quatro-folhas, quadrifoglio) ou uma rosácea. Caumont, p. 251.
[1096] É ao menos o principal elemento da classificação que nossos antiquários da Normandia acreditaram poder estabelecer após terem comparado mais de mil e
duzentas igrejas de diferentes eras. A glória de ter dado um princípio científico à história da arte gótica é atribuída à província que oferece o maior número de monumentos
desse gênero. À testa de nossos antiquários normandos, devo citar os MM. Auguste Prévot e de Caumont.
[1097] No século XIII, o coro se torna mais longo que antes era, comparativamente à nave. Prolongou-se as colaterais em volta do santuário, e elas foram sempre
ornamentados com capelas. Caumont, p. 236.
[1098] Foi sobretudo no século XII que se empregou, geralmente, esta disposição. Ibid., p. 122.
[1099] Os mestres desta cidade construíram muitas outras igrejas. João (Johannes - Johann) Hültz, de Colônia, continua o campanário de Notre-Dame de
Estrasburgo. – João de Colônia, em 1369, construiu as duas igrejas de Kampen, às margens do Zuiderzee sobre o plano da catedral de Colônia. Aquela de Praga ergue-se
sobre o mesmo plano. – Aquela de Metz com ela se parece muito. – O bispo de Burgos, em 1442, traz dois talhadores de pedras de Colônia para terminarem as torres de
sua catedral. Eles fazem as flechas com base no plano das de Colônia. Artistas de Colônia constroem Nossa Senhora do Espinho (Notre-Dame de l’Épine) em Châlons-
sur-Marne. Boisserée, p. 15.
(NT): vide a interessante pesquisa sobre os mais famosos arquitetos da Idade Média em http://fr.wikipedia.org/wiki/Liste_d’architectes_du_Moyen_Âge.
[1100] Tomamos emprestada esta observação e, geralmente, todos os detalhes que seguem na página seguinte, da ‘Déscription de la cathédrale de Cologne’, por
Boisserée (francês e alemão), 1828.
[1101] (NT): os “sete planetas” eram Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, além do Sol e da Lua, sendo conhecidos como os “sete planetas esotéricos”. São
Tomás de Aquino, na Summa Teologica, questão 102, diz sobre o Menorah: “Habebat autem candelabrum septem calamos, ut Iosephus dicit, ad significandum septem
planetas, quibus totus mundus illuminator” (O candelabro tinha sete braços, como diz Josefo, significando os sete planetas, pelos quais todo o mundo é iluminado).
Na Bíblia, sete foram os dias que Deus levou para criar o mundo e o sétimo dia dedicou a Si e ordenou que os homens o guardassem em Sua honra. Na simbologia judaica,
o sete aparece nas seis pontas da estrela de Davi acrescidas do centro, no qual se encontra Deus. Na simbologia católica, sete são os pecados capitais (luxúria, gula,
avareza, ira, inveja, preguiça e vaidade), sete são os sacramentos (batismo, crisma, eucaristia, penitência, unção dos enfermos, ordem e matrimônio), os arcanjos (Miguel,
Gabriel, Rafael, Uriel, Jegudiel, Salatiel e Jeremiel). Na oração que o Salvador nos ensinou, há sete petições, três das quais dedicadas a Deus (“santifcado seja o Vosso
nome”, “venha a nós o Vosso reino” e “seja feita a Vossa vontade”) e as quatro últimas aos homens (“o pão nosso de cada dia nos dai hoje”, “perdoai-nos as nossas
ofensas...”, “não nos deixeis cair em tentação” e “livrai-nos do mal”). O sete é o somatório de três com o quatro, sendo o três representado por um triângulo, ou seja, o
Espírito, e o quatro, representado por um quadrado, ou seja a Matéria; quer dizer, que o sete é o Espírito apoiado sobre os Quatro Elementos da Terra ou, ainda, a Matéria
iluminada pelo Espírito, inferindo-se que o sete representa a Totalidade do Universo. O sete, por fim, é o último algarismo do “número áureo de Pitágoras” {1 4 2 8 5 7}
que representa as Energias Divinas distribuídas pelos sete regentes planetários. Não se deve confundir, a propósito, o “número áureo de Pitágoras” com a “proporção
áurea de Phidias” representada pela letra grega maiúscula phi (Φ), cujo valor arredondado é de 1,618, a qual se encontra na natureza (vegetais, animais, seres humanos,
razão de machos e fêmeas numa colméia de abelhas, etc), e que inspirou a matemática (v.g., Fibonacci), a arquitetura (v.g., o Partenon construído por Phidias no século
V a.C), a geometria (v.g., Pitágoras), a pintura (v.g., Leonardo da Vinci, Boticelli, Salvador Dalí, etc.), a música (v.g., Beehoven, Debussy, etc).
[1102] Além disso, o coro é finalizado por cinco lados de um dodecágono e cada capela por três lados de um octágono.
[1103] Esta relação é de 1:6 e de 1:7.
[1104] O alpendre, o quadrado da transversal, as capelas com a colateral que as separa do coro, são, cada uma, iguais à largura da arcada principal e, somadas, iguais à
largura total. A largura da transversal, ou cruzaria, está, com seu comprimento total, na razão de 2 para 5 e, com a largura do coro e da nave, na razão de 2 para 3.
[1105] A altura das abóbadas laterais iguala 2/5 da largura total, quer dizer, 2 vezes 150/5 ou 60 pés. – Para a abóbada do centro, a largura na obra está para a altura na
razão de 2 para 7, e para as abóbadas laterais, na razão de 1 para 3. Mesma relação entre a altura de cada andar e aquela do conjunto.
[1106] O comprimento exterior é de 438 pés e 8 polegadas; 438 é divisível por 3, por 2, por 4 (NT: ?), por 12 (NT: ?); dividido por 12, ele dá 365,5, que é o número de
dias do ano mais uma fração, o que ainda é de grande exatidão {NT: ? houve, por parte do Autor, algum erro matemático ou, mais provavelmente, utilizou-se de
algum outro fator que negligenciou explicar em seu cálculo. O Tradutor, para chegar ao quociente de 365,5 a partir do divisor 438 (comprimento) e do
dividendo 12 (meses do ano), multiplicou o divisor por 10 (“dez é o número humano”) e, então, obteve: 4380/12 = 365; se utilizadas as 8 polegadas que
equivalem a 0,666... pés, teremos 438,66 pés X 10 = 4386,6/12 = 365,55)}. – Há 36 pilares-botantes exteriores, 34 interiores. – A arcada central é larga de 35 pés;
35 estátuas, 21 arcadas laterais.
[1107] Era uma tradição que os mais ilustres bispos da Idade Média fossem arquitetos e construíssem. Foi Lanfranc quem construiu a magnífica igreja de Saint-Étienne
de Caen. – Seguindo uma tradição que mencionamos mais acima, Thomas Becket construiu uma igreja durante seu exílio na França etc.
[1108] Somente a abóbada do coro foi finalizada; ela possui duzentos pés de altura. M. Boisserée adicionou à sua ‘Déscription’ um projeto de restauração e de
acabamento segundo os planos primitivos dos arquitetos que foram reencontrados, há poucos anos, pelo mais feliz acaso. Vide também Fiorillo, I, 389-423.
[1109] Sabina de Steinbach (Sabina von Steinbach) que, junto com Erwin de Steinbach (Erwin von Steinbach), começou as torres em 1277. Elas tinham quinhentos e
noventa e quatro pés de altura. Fiorillo, I, 356. Conhece-se, também, alguns outros nomes de arquitetos alemães. Minha afirmação, em geral, nem por isso é menos
verdadeira.
(NT): Sabina era filha de Erwin, mestre artesão da guilda dos pedreiros e escultores. Sua participação foi, provavelmente, uma irregularidade para a qual, dada sua grande
habilidade, todos fecharam os olhos; todavia, ao fim e ao cabo, as mulheres podiam assumir o ofício de seus pais. Algumas fontes atribuem à construção da Catedral de
Estrasburgo a origem da fundação da Ordem da Franco-Maçonaria. - a partir de http://fr.wikipedia.org/wiki/Sabina_Von_Steinbach.
[1110] É a lenda do Mont Saint-Michel.
[1111] Lê-se numa urna, em Saint-Ouen: “Hic jacet frater Johannes Marcdargent, aliàs Roussel, quondàm abbas istius monasterii, qui incepit istam ecclesiam ædificare
de novo, et fecit chorum, et capellas, et pilliaria turris et magnam partem crucis monasterii antedicti (NT: Aqui jaz o irmão João Marcdargen, também conhecido por
Roussel, antigo abade deste monastério, que iniciou a reconstrução desta igreja, e fez o coro, as capelas, os pilares das torres e a maior parte da cruzaria do
antes mencionado monastério). Gilbert, ‘Déscrip. de l’église de Saint-Ouen’, p. 18. – Este Marcdargent foi abade de 1303 a 1339. Mas a cruzaria, a torre que a
sobrepõe, e uma parte da nave não foram finalizadas senão no início do século XVI. Id. ibid.
[1112] Vê-se em várias igrejas, entre outras nas catedrais de Chartres e de Reims, uma espiral de mosaico, ou labirinto, ou dædalus (dédalo), situado abaixo do centro
da cruzaria. Para aí ia-se em peregrinação: era o emblema do interior do templo de Jerusalém. O labirinto de Reims leva o nome dos quatro arquitetos da igreja. Pavillon-
Piérard, ‘Déscrip. de Notre-Dame de Reims’. – O labirinto de Chartres é cognominado la lieue (a légua); ele tem setecentos e sessenta e oito pés de extensão, em linha
reta. Gilbert, ‘Déscrip. de Notre-Dame de Chartres’, p. 44.
[1113] Berneval finaliza, no início do século XV, a cruzaria de Saint-Ouen e fez, em 1439, a rosácea do sul. Seu aluno fez aquela do norte e superou seu mestre.
Berneval o matou e foi enforcado. D. Pommeraye, ‘Histoire de l’Abbaye de Saint-Ouen’, etc. p. 196. – O cardeal Cibo, sobrinho de Leão X, e abade de Saint-Ouen,
mandou erguer às suas expensas, em 1515, a fachada principal. Gilbert, ‘Déscrip. de Saint-Ouen’, p. 28.
[1114] (O Papa) Alexandre III colocou a primeira pedra de Notre-Dame de Paris em 1163. A fachada principal foi finalizada, no mais tardar, em 1223. A nave,
igualmente, é do início do século XIII.
[1115] (NT): O Autor refere-se, por óbvio, a Victor Hugo, autor de Notre-Dame de Paris, que praticamente ninguém conhece por esse nome, senão pelo cognome que
veio a tomar no século XX (O corcunda de Notre-Dame).
[1116] Foi na esplanada Notre-Dame que foi queimado {NT: há inúmeras referências segundo as quais Jacques de Molay, último Grão-Mestre da Ordem do
Templo, foi queimado na antiga Ilha dos Judeus que, no século XVI, foi aterrada e unida à Ilha da Cidade, dando origem, nos tempos modernos à Praça do
Verde-Galante (Square du Vert-Galant), na qual foi aposta uma placa comemorativa do local da execução}. No pátio, também se encontrava a escada patibular do
bispo; ela foi destruída no começo do século XVII e foi substituída, em 1767, por um gargantilha de grilhão presa a um poste: a partir deste poste é que partiam todas as
distâncias itinerárias da França. Ele foi derrubado em 1790. Gilbert, ‘Déscrip. de Notre-Dame de Paris’.
[1117] 1404-1419. (NT: João Sem Medo é João I da Borgonha, 1371-1419, duque da Borgonha; o duque de Orléans, Luís, era irmão do rei da França,
Carlos VI).
[1118] Notre-Dame de Paris, o antigo colégio de Mantes-sur-Seine e a igreja abacial de Saint-Remi de Reims, apresentam sós duas partes de igrejas erguidas uma
sobre a outra. Em volta de Notre-Dame de Paris reina uma tripla galeria. Gilbert, ‘Déscrip. de Notre-Dame de Paris’.
[1119] Esses triângulos são o ornamento predileto do século XIV. Eles foram então acrescidos a muitas portas e cruzarias do XIII. Vide aqueles de Notre-Dame de
Paris.
[1120] A pintura vitral começa no século onze (os Romanos se serviam, desde Nero, dos vidros coloridos, sobretudo em azul). O excelente vermelho é mais frequente
nos antigos vitrais; dizia-se proverbialmente: Vinho cor dos vitrais da Santa Capela . Os desta igreja são da primeira era; aqueles de Saint-Gervais, da segunda e da
terceira, e das mãos de Vinaigrier e de Jean Cousin (pai). Na segunda era, as figuras, tornando-se gigantescas, são cortadas pelos vidros quadrados. A esta época
pertencem ainda os belos vitrais das grandes janelas de Colônia, que trazem a data de 1509, apogeu da escola alemã; eles são tratados de uma forma monumental e
simétrica. – Angelico de Fiesole é o patrono dos pintores em vidro. Cita-se ainda Guilherme de Colônia e Jacques Allemand. Jean de Bruges inventou os esmaltes ou
vidros de dois leitos. – A Reforma reduziu esta arte, na Alemanha, a um uso puramente heráldico. Ela floresceu, na Suíça, até 1700. A França adquirira tanta reputação
neste gênero, que Guilherme de Marselha foi chamado a Roma, por Júlio II, para decorar as janelas do Vaticano. Na época da influência italiana, a necessidade de
harmonia e de claro-escuro fez empregar a grisalha (grisaille) para as janelas de Anet e Écouen; era o protestantismo entrando na pintura. Em Flandres, a época dos
grandes coloristas (Rubens, etc.) traz o desgosto pela pintura vitral. Vide na Revue Française um extrato do relatório de M. Brongniart à Academia das Ciências sobre a
pintura em vidro; vide também o artigo de M. Langlois sobre os vitrais de Rouen e a obra que deverá ser publicada por M. de Caumont sobre a pintura na Idade Média.
[1121] A arquitetura caiu da poesia ao romance (prosa), do maravilhoso ao absurdo, quando ela adotou as mísulas, no século XV, quando as formas piramidais dirigiram
suas pontas do alto para baixo. Vede aquelas de Saint-Pierre de Caen, que parecem prestes a vos esmagar.
[1122] São oito figuras de tamanho gigantesco, servindo de cariátidas. Um dos burgueses tem uma bolsa de onde tira o dinheiro, um outro apresenta marcas de
envilecimento; outros, cobertos de marcas de ferimentos, apresentam papéis de imposto rasgados. Alguns amadores acreditam que essas figuras façam alusão a uma
revolta originada da gabela, em 1461, e conhecida sob o nome de miquemaque. Luís XI mandou enforcar duzentos dos rebeldes. Outros pretendem que, desde o século
XI, os súditos de Reims, tendo se revoltado contra Gervais, seu arcebispo, foram condenados a construir o campanário às suas expensas. Quatro estátuas semelhantes
foram posicionadas sobre as colunas de prata que cercavam o altar-mor. Povillon-Piérard, ‘Déscrip. de Notre-Dame de Reims’. – Sobre a história e as antiguidades desta
cidade importante, nós aguardamos as novas luzes de M. Varin, um dos professores de história mais distintos da Universidade.
[1123] (NT): Joana d’Arc, a Donzela de Orléans.
[1124] (NT) 2, Reis, 20:8 a 11 (Bíblia).
[1125] (NT) O Hôtel de Soubise pertenceu, na ordem, aos Clisson, depois aos Guise e, enfim, aos Soubise. Após várias vicissitudes, Napoleão o adquiriu, em 1808,
para o estado francês e o afetou aos Arquivos Imperiais, estando, atualmente, afetado aos Arquivos Nacionais, nele também funcionando o Museu de História da França –
vide em http://fr.wikipedia.org/wiki/Hôtel_de_Soubise.
[1126] (NT): o Ministro da Justiça da França ainda mantém este título (Garde des sceaux, Guarda dos Selos) criado em 1194, eis que seu ocupante era o depositário do
selo real com o qual eram marcados os atos oficiais.
[1127] Ver o artigo de Du Puy sobre a história do Tesouro das Cartas, manuscrito in-4º da biblioteca do Rei; impresso ao fim de seu livro sobre os Direitos do Rey
(Droits du Roy), 1655. Vide também Bonamy, nas Mémoires de l’Académie des Inscriptions.
[1128] Vide as cartas originais de D’Aguesseau, encimando uma cópia do inventário do Tesouro das Cartas, na biblioteca do Rei, fundos de Clairambaut.
[1129] (NT): Indubitavelmente, o Autor teve em mente as guerras napoleônicas que fizeram com que a França dominasse quase toda a Europa apropriando-se, em
consequência, dos Arquivos dos países vencidos.
[1130] Esses diversos objetos foram depositados nos Arquivos em virtude dos decretos de nossas Assembléias republicanas.

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