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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Flavia Medeiros

“Matar o morto”
A construção institucional de mortos no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro

Niterói
Abril de 2012
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

Flavia Medeiros

“Matar o morto”
A construção institucional de mortos no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro

Dissertação apresentada pela aluna Flavia


Medeiros Santos ao Programa de Pós – Graduação
em Antropologia, do Instituto de Ciências Humanas
e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense
como parte dos requisitos para a obtenção do título
de mestre.

Orientador: Prof. Roberto Kant de Lima


Co-Orientadora: Dra. Lucía Eílbaum

Niterói
Abril de 2012

ii
Ficha Catalográfica

T306.9
M 488 Medeiros, Flavia
“Matar o morto”: a construção institucional de mortos no Instituto
Médico-Legal do Rio de Janeiro/ Flavia Medeiros Santos - 2012.

177 f.: il.

Orientador: Roberto Kant de Lima

Dissertação ( Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense,


Programa de Pós-Graduação em Antropologia.
Bibliografia: f. 142-153

1. Teoria Antropológica. 2. Mortos. 3. Medicina-Legal. 4. Burocracia Cartorial. 5.


Polícia Civil. I. Lima, Roberto Kant de. II. Universidade Federal Fluminense.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia. III.Título.

iii
Banca Examinadora:

_________________________________________
Prof. Dr. Roberto Kant de Lima - Orientador
Universidade Federal Fluminense

_________________________________________
Dra. Lucía Eílbaum – Co-orientadora
Universidade Federal Fluminense

_________________________________________
Dr. Antônio Rafael Barbosa
Universidade Federal Fluminense

_________________________________________
Dra. Letícia Carvalho de Mesquita Ferreira
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

_________________________________________
Dra. Glaucia Maria Pontes Mouzinho (suplente)
Universidade Federal Fluminense

_________________________________________
Dra. Maria Victoria Pita (suplente)
Universidade de Buenos Aires

iv
RESUMO

Esta dissertação aborda os processos de construção institucional de um morto no


Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro - IML, destacando as relações sociais ativadas
a partir dos procedimentos burocráticos realizados pelos policiais civis em relação aos
cadáveres. Busca identificar como auxiliares e técnicos de necrópsia, papiloscopistas,
peritos médico-legais e outros funcionários do IML interagem entre si e com os mortos
seja através da burocracia público-estatal, seja através de procedimentos de
identificação e exames necroscópicos, ou pelos sentidos e sentimentos envolvidos na
relação cotidiana de trabalho com os cadáveres. Dessa maneira, pretende-se elucidar
como corpos sem vida são construídos enquanto pessoas sem vida e como
cotidianamente se dá essa construção.

As questões tratadas nesta dissertação, fruto de pesquisa etnográfica, estão estruturadas


a partir da representação, das práticas e das narrativas daqueles que trabalham na
instituição e de suas relações com os vivos e os mortos.

PALAVRAS-CHAVE: Mortos – Medicina-Legal – Burocracia Cartorial - Polícia Civil

v
ABSTRACT

This work discusses the processes of institutional construction of dead in Rio de


Janeiro’s Morgue, called Medical-Legal Institute - IML, highlighting the social
relationships stimulated by bureaucratic procedures performed by police officers in
relation to corpses. It seeks to identify how autopsy assistants and
technicians, fingerprints specialist, forensic experts and other IML's
officials interact with the dead, and among themselves, through the public-
state's bureaucracy, either through identification and autopsy examinations, or by the
senses and feelings involved during the daily routine in relation to the corpses. Thus, I
intend to elucidate how dead bodies are constructed as people without a longer life and
how this construction takes place.

The issues addressed in this thesis, were produced by ethnographic research results, and
they are structured considering representation, practices and narratives of those
who work inside the institution mentioned above and their relation with the alive and
the dead.

KEY-WORDS: Dead – Legal Medicine – Burocracy – Police

vi
RESUMEN

Esta tesis discute los procesos de construcción institucional de un muerto en el Instituto


de Medicina Legal en Río de Janeiro – IML, destacando las relaciones sociales
activadas por los trámites burocráticos realizados por agentes de la policía en relación a
los cadáveres. Se trata de identificar de que manera los asistentes y técnicos de las
autopsias, los papiloscopistas, expertos forenses y otros funcionarios del IML
interactúan entre sí y con los muertos, sea a través de la burocracia estatal-pública, sea a
través de exámenes de identificación y de la autopsia, o por los sentidos y los
sentimientos involucrados en la relación de trabajo diario con los cadáveres. De esa
forma, tiene como objetivo presentar cómo los cadáveres son construidos como
personas sin vida y cómo, de forma cotidiana, esta construcción se lleva a cabo.

Los temas abordados en esta tesis, resultado de investigación etnográfica, se estructuran


a partir de la representación, las prácticas y las narrativas de los que trabajan en la
institución y sus relaciones con los vivos y los muertos.

PALABRAS- CLAVE: Muertos – Medicina-Legal – Burocracia Cartorial - Policía


Judiciária

vii
Para o meu pai, in memoriam.

viii
Agradecimentos

No começo da dissertação estão os agradecimentos. Aquela parte que fazemos somente


quando chegamos no fim e que destinamos para todos aqueles que estiveram no meio.
Estar no meio poder ser estar na frente incentivando, ou estar atrás dando apoio e
também, estar ao lado acompanhando. São a esses, que estiveram comigo ao longo do
caminho, que agradeço.

A minha mãe, Dora, pelo amor e pela incansável dedicação. Por buscar me apoiar nos
passos dos caminhos que escolhi percorrer e por permitir-me fazer com que esse
trabalho fosse possível. Também agradeço a minha irmã Ana Clara, por sua
compreensão infantil, pela curiosidade de quem está conhecendo o mundo e por todo
carinho. Ao meu irmão Rafa e minha cunhada, Lidi, a quem agradeço por todas as
conversas e pelo incentivo.

Seguindo, agradeço a toda minha família. As minhas generosas e amadas avós, Alzira e
Quinha. Aos meus tios e tias, em especial as dindas Dalva e Diana sempre preocupadas
e atentas. Agradeço também aos meus primos, sempre com perguntas curiosas e
conversas divertidas.

No meio do caminho também estão minhas queridas amigas. Anna Carolina Ferraz,
Natália Nichols, Lívia Motta, Luciana Vasconcellos, Amanda Morato e Ludmylla
Mendes, que mais de perto ou mais de longe, que por telefone, ou pela internet, que na
praia, no bar, na noitada ou em casa, que há anos e há vidas, me acompanham, me
animam, me aconselham e me apoiam. Muito obrigada, queridas!

Também agradeço àqueles que estão super no meio e “por dentro”, os amigos que
reconheci nos colegas durante a graduação, “aquele pessoal”: Eric Macedo, Victor
Hugo Barreto, Rômulo Labronici, Vânia Nascimento e Alessandra Freixo.

Agradeço também a Frederico Policarpo, por estar ao meu lado e por tentar estar por
perto mesmo quando estivemos distantes. Pelo companheirismo e carinho. Por todo
incentivo e bom humor. Por nossa amizade e nosso amor.

ix
A brilhante equipe do NUFEP e do InEAC. A Virgínia por toda a eficiência e pelas
gentilezas. A Lúcio pelas dicas e observações perspicazes. A Sônia (e sua equipe) por
todo auxílio e confiança. A Cláudio Salles pela criatividade e dedicação.

Jamais deixaria de agradecer a Lucía Eilbaum, que me co-orientou nessa dissertação.


Muito obrigada por todas as infinitas vezes que me ouviu, e por todas as vezes que me
fez te ouvir. Por todas as ideias e sugestões. Pelos conselhos e por preocupar-se. Por me
ajudar e me apoiar. Sem você não teria sido possível realizar esse trabalho. Agradeço
também a pequena Olívia, pelo olhar atento, por ter sido um bebê paciente e pela
menina linda e alegre que é. A Lenin Pires, pela atenção e apoio. Pelas perguntas e
sugestões, e pela generosidade em compartir.

Agradeço a querida Marta Fernandez, atenta, dedicada e amiga. A Juliana Rodrigues


pela alegria, amizade e disposição! A Bárbara Lupetti e Izabel Nuñez, nos encontros e
desencontros, pelas conversas e por compartilharem. Ao querido Fábio Mota, por sua
energia e olhar atento. Pelo cuidado com os jovens colegas e pela vontade de ensinar e
de aprender. Ao Zé Colaço, pelas histórias de pescadores e das madrugadas. A Marcos
Veríssimo pelos comentários e observações, pelo interesse que sempre demonstrou pelo
meu trabalho e pela amizade.

Ao Kant, meu orientador e professor, que acreditou e me ajudou a fazer essa


dissertação. Através dos conselhos e dos puxões de orelha, das conversas ou das piadas,
Obrigada por fazer com que o nosso convívio seja repleto de aprendizagem. Sua força e
sua inteligência são inspiradoras.

Agradeço a Antônio Rafael, meu primeiro professor de Antropologia, e que desde então
me auxilia no percurso intelectual. Obrigada por todas as aulas, pelas brilhantes
sugestões em minha banca de qualificação e por aceitar o convite para fazer parte da
banca de defesa dessa dissertação.

A Edílson Márcio, carismático professor, que faz parte da minha trajetória e me


apresentou ao mundo da pesquisa. Obrigada pelas dicas musicais, mas, principalmente,
pelas observações antropológicas sejam em sala de aula ou nas conversas informais.
Também agradeço imensamente as sugestões e comentários realizados na banca de
qualificação desse trabalho.

x
A Glaucia Mouzinho, por sempre ter me incentivado e pelos comentários generosos.
Muito obrigada também por ter aceito o convite para participar da banca.

Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia, seus funcionários e as professoras


Ana Paula Miranda, Simoni Guedes e Laura Graziela pela atenção dedicada durante as
disciplinas cursadas e pelo interesse todas as vezes que conversamos sobre minha
pesquisa.

Aos colegas do Equipo de Antropología Juridica y Politica que me acolheram


institucionalmente em Buenos Aires. Gracias Sofia Tiscornia, Carla Villalta, Josefina
Martinez, Florencia Corbelle y Maria Inês. Agradeço também a Maria José que me
auxiliou na pesquisa em Buenos Aires e sempre foi muito atenta e generosa ao discutir
comigo a pesquisa. Gracias especial a Joaquin Gómez, pelas conversas musicais e
antropológicas e, pela amizade seja no Rio de Janeiro ou em Buenos Aires.

A Maria Victoria Pita, por ter aceito o convite de fazer parte da banca de defesa dessa
dissertação. Pelas ideias inspiradoras e por todas as sugestões porteñas e acadêmicas.

A Letícia Ferreira, que conheci através de suas impecáveis etnografias, e tenho o prazer
de ter como membro da banca de defesa. Obrigada!

A Coordenação de Apoio e Pesquisa de Ensino Superior – CAPES, por ter fomentado


essa pesquisa através de uma bolsa de mestrado e outra de mestrado sanduíche, que
permitiram a realização dessa dissertação.

Aos interlocutores do IML. Na maioria das vezes interessados e dispostos a ajudar em


minha pesquisa e a responder as minhas perguntas. Obrigada por me permitirem
participar de sua rotina e tentar compreender o óbvio e o não óbvio do matar os mortos.

xi
“Cedo ou tarde você vai perceber, como eu, que há uma
diferença entre conhecer o caminho e percorrer o
caminho."
(Morpheus - Matrix)

“De mim, Sim, também de si, não por ser você, mas por
estar desse lado, Que lado, O dos vivos, é difícil a um vivo
entender os mortos, Julgo que não será menos difícil a um
morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter
sido vivo, conhece todas as coisas deste mundo e desse
mundo, mas os vivos são incapazes de aprender a coisa
fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre,
Nós, vivos, sabemos que morreremos, Não sabem,
ninguém sabe, como eu também não sabia quando vivi, o
que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Para
filosofia, parece-me insignificante, Claro que é
insignificante, você nem sonha até que ponto tudo é
insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do
lado da vida, Então deve saber que coisas, desse lado, são
significantes, se as há, Estar vivo é significante, Meu caro
Reis, cuidado com as palavras, viva está a sua Lídia, viva
está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o
saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que
separa os vivos uns dos outros não é menos opaco que o
que separa os vivos dos mortos, Para quem assim pense, a
morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é
uma espécie de consciência, um juiz que julga tudo, a si
mesmo e à vida, Meu caro Fernando, cuidado com as
palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as
palavras todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as
necessárias, E você, já as sabe, Só agora comecei a ser
absurdo, Um dia você escreveu Neófito, não há morte,
Estava enganado, há morte, Di-lo agora porque está morto,
Não, digo-o porque estive vivo, digo-o, sobretudo, porque
nunca mais voltarei a estar vivo, se você é capaz de
imaginar o que isto significa, não voltar a estar vivo.”
(José Saramago – O ano da morte de Ricardo Reis)

xii
Lista de Abreviatura e Siglas

 ACADEPOL – Academia de Polícia


 ARC – Auto de Remoção de Cadáveres
 BAM – Boletim de Atendimento Médico
 CBMERJ - Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro
 CP – Código de Permanência
 CSRC - Coordenação do Serviço de Remoção de Cadáveres
 DH – Divisão de Homicídios
 DO – Declaração de Óbito
 DP – Delegacia Policial
 GRC - Guia de Remoção de Cadáveres
 IIFP – Instituto de Identificação Fêlix Pacheco
 IML – Instituto Médico Legal
 IMLAP – Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto
 IML-RJ – Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro
 INCT-InEAC – Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração
Institucional de Conflitos
 NUFEP – Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa
 PDL – Programa Delegacia Legal
 PPGA – Programa de Pós-Graduação em Antropologia
 RO – Registro de Ocorrência
 SEDESC - Secretaria de Defesa Civil Estadual
 SDP – Setor de Descoberta de Paradeiros
 SILO – Serviço de Identificação e Liberação de Óbito
 SIM – Sistema de Informação de Mortalidade
 SVO - Serviço de Verificação de Óbito
 TRIC – Termo de Reconhecimento e Identificação de Cadáver
 VPI – Verificação Preliminar de Inquérito

xiii
Lista de Imagens

Imagem 1. Homenagem a Nestor Kirchner na Plaza de Mayo


Imagem 2. Telão no veredicto da Causa ESMA
Imagem 3. Fachada do IMLAP
Imagem 4. Rabecão
Imagem 5. Corpos no saco preto
Imagem 6. Balcão da recepção do Serviço de Necropsia
Imagem 7. Sala de Necrópsia vista da porta
Imagem 8. Equipamentos do Setor de Cortes
Imagem 9. Equipamentos para costura no IMLAP
Imagem 10. Carrinho com equipamentos do Setor de Evidências Criminais
Imagem 11. Corredor do serviço de Necropsia, ao fundo, a câmara frigorífica
Imagem 12. Hall da câmara frigorífica
Imagem 13. Laboratório de Necropapiloscopia
Imagem 14. Maleta do papiloscopista
Imagem 15. Vidros com falanges em hidratação
Imagem 16. Câmara Frigorífica
Imagem 17. Caixão com roupas
Imagem 18. Mural na recepção do Serviço de Necrópsia
Imagem 19. Fachada da casa de Wellington
Imagem 20. Cova de Wellington

xiv
SUMÁRIO
Prólogo .................................................................................................................................... 3
Introdução ............................................................................................................................... 7
Do princípio .................................................................................................................... 8
Do objeto ...................................................................................................................... 10
Do campo ...................................................................................................................... 13
Do texto ........................................................................................................................ 15
Dos capítulos ................................................................................................................ 15
Capítulo 1 - Esqueleto .......................................................................................................... 17
Morte............................................................................................................................. 17
Mortos ........................................................................................................................... 23
Medicina ....................................................................................................................... 32
Polícia ........................................................................................................................... 36
Medicina-Legal ............................................................................................................. 46
O Instituto Médico-Legal ............................................................................................. 49
Capítulo 2 - Carne e Sangue ................................................................................................ 52
Entre linhas ................................................................................................................... 53
A remoção .................................................................................................................... 56
A Guia de Remoção de Cadáveres ............................................................................... 58
Na Permanência ........................................................................................................... 60
No balcão...................................................................................................................... 61
Da Itinerância à Necrópsia ........................................................................................... 63
Na Necrópsia: “Seis baleados, tudo de Manguinhos” ................................................. 65
Na Necrópsia: “Hemoperitônio devido a ruptura de tumor hepático” ....................... 68
Nas Evidências Criminais............................................................................................. 73
No Processamento de Laudos ...................................................................................... 74
O Laudo Médico-Legal ................................................................................................. 78
Os quesitos .................................................................................................................... 79
Na Identificação ............................................................................................................ 83
De volta ao balcão ........................................................................................................ 88
Os documentos.............................................................................................................. 88
Na Liberação do Óbito ................................................................................................. 89
Capítulo III - Espírito .......................................................................................................... 94
Estando aqui.................................................................................................................. 95
“Quem vê nem acredita que ela possa fazer um trabalho de campo desses!” .............. 96
Dente de alho ................................................................................................................ 98
Estando lá.................................................................................................................... 100
Cheiro ......................................................................................................................... 105
Banquete ..................................................................................................................... 108
Piadas e Sacanagens ................................................................................................... 111
Impressões e comentários ........................................................................................... 113
Necroshopping............................................................................................................. 114
O corpo morto ............................................................................................................. 116
A continuidade dos mortos ......................................................................................... 121
Família ........................................................................................................................ 122
Não-identificado Reclamado ...................................................................................... 126
O caso do “menino Juan” ........................................................................................... 129
Não-reclamados .......................................................................................................... 131
Considerações Finais: Matar o Morto ............................................................................... 135
Epílogo - O atirador de Realengo ....................................................................................... 138
Referências Bibliográficas..............................................................................................142
Anexos..............................................................................................................................154
Esquema de lesões localizadas na face posterior do corpo.....................................155
Esquema de lesões localizadas na face esquerda do corpo........................................156
Ficha de Impressão Datiloscópica – Frente e Verso ................................................... 157
Termo de Reconhecimento e Identificação de Cadáver - Página 1: ........................... 158
Termo de Reconhecimento e Identificação de Cadáver - Página 2: ........................... 159
Declaração de Óbito: .................................................................................................. 160
Tabela do Setor de Não-Reclamados: ......................................................................... 161
Certidão de Óbito de Cadáver Identificado Não-Reclamado ..................................... 162
Carta de Wellington .................................................................................................... 163

2
Prólogo

O Homem1 saiu de casa antes das onze horas da manhã, do último dia do mês de março, como
fazia a cada três dias. Em sua motocicleta, se dirigiu ao trabalho localizado no bairro de
Honório Gurgel, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Quando virava na esquina da rua de
seu posto de trabalho, perdeu o controle da motocicleta. Caiu próximo ao meio-fio e foi
atropelado por um ônibus que se aproximava da calçada onde estava o ponto de ônibus. O
Homem usava capacete. No entanto, esse não foi suficiente para proteger sua cabeça da força
de uma das quatro rodas do ônibus.

Logo, se reuniram algumas pessoas ao redor do acidente. E o corpo do Homem, que não tinha
mais vida, ficou em “posição de decúbito dorsal”2 por aproximadamente quinze minutos na
via. O veículo do Corpo de Bombeiros, que realizava o translado de cadáveres, chegou. O
cadáver do Homem foi levado ao necrotério policial.

Quando o Homem, sem vida, chegou no necrotério, os que deveriam realizar os


procedimentos necroscópicos e burocráticos referentes ao cadáver já o aguardavam. Assim,
imediatamente após a chegada do corpo do Homem, foi iniciado o exame de necrópsia.
Homem media aproximadamente um metro e setenta e três centímetros. No momento do
acidente vestia camiseta, jaqueta de couro e calça jeans. O exame indicou que a causa da
morte foi um “politraumatismo craniano por ação contundente”3. Foi também identificada
que sua última refeição havia sido recente e que, enquanto se dirigia ao trabalho, seu
organismo digeria banana, pão e um líquido que poderia ser suco de laranja.

Após a realização do exame, os cortes que foram feitos no corpo foram suturados
cuidadosamente. O policial que se dedicou a realizar a sutura na parte da cabeça cuidou para
que os ossos cranianos ficassem organizados, e dedicou algum tempo montando parte do

1
A maioria dos nomes utilizados nessa dissertação é fictícia. Além de nomes próprios que criei para os meus
interlocutores, utilizei as formas de nominação apresentadas em registros ou acionadas pelos atores. A exceção
são os nomes de mortos em casos repercutidos em veículos de comunicação, nos quais uso os nomes
verdadeiros.
2
Informação explicitada no registro preenchido pelos bombeiros que realizaram o translado do cadáver.
3
Informação explicitada no registro preenchido pelos policiais que realizaram o exame necroscópico do cadáver.
3
quebra-cabeças que eram os ossos fraturados do cadáver do Homem. Depois, dois policiais do
necrotério lavaram o corpo do Homem e passaram um pano úmido sobre toda a extensão de
sua pele. Um deles utilizou uma grande faixa para enrolar na cabeça do cadáver do Homem,
mantendo firme a mandíbula e topo da cabeça, e fazer o que, no necrotério, denominam
“capacete”.

O corpo do Homem foi retirado da mesa de necrópsia, e posto numa bandeja sobre um
carrinho. Nessa, seus braços foram cruzados sobre o corpo, os pés postos paralelamente e a
cabeça apoiada num retângulo de madeira, o que permitia que ela se mantesse um pouco
inclinada e evitasse qualquer tipo de hemorragia. Chumaços de algodão foram postos na boca,
narinas e orelhas do corpo do Homem.

Após esses procedimentos, o corpo sem vida do Homem foi dirigido à câmara frigorífica para
aguardar os tramites burocráticos que, simultaneamente, já estavam sendo realizados em outro
setor do necrotério policial.

Chegava o meio dia. Havia dois cadáveres na parte externa da câmara frigorífica que iriam ser
depositados em caixões. Uma das funcionárias da chefia do necrotério, responsável pelo seu
bom funcionamento, apressava o papiloscopista para que fosse logo realizada a identificação
via impressão digital do cadáver do Homem. Homem era pardo, divorciado, tinha quarenta e
oito anos e possuía anotações criminais por “peculato mediante erro de outrem”4, como
disposto no artigo 313 do Código Penal Brasileiro. O papiloscopista afirmava que logo ia
preencher o documento com a identificação do cadáver, mas a responsável reclamava que
havia muita demora para a coleta das digitais. “Qual é o problema?” perguntava, e impunha
um ritmo de trabalho acelerado a esse policial.

Logo depois, a responsável se dirigiu aos policiais que finalizam os documentos referentes à
liberação do corpo e atendem os familiares. Os familiares do Homem ainda não haviam
chegado. Um dos policiais a informou que havia uma muda de roupas, meia e sapatos que
deveriam ser entregues àqueles que iriam vestir e preparar o corpo do Homem no caixão. A

4
Trata-se de um crime contra a administração pública que se refere a apropriação de dinheiro ou qualquer
utilidade no exercício da função por funcionário público, quando diante do erro de outra pessoa.
4
responsável solicitou que o papiloscopista, quando coletando as digitais, informasse ao
policial do setor que vestia os cadáveres que buscasse as roupas naquele outro setor.

A documentação do cadáver do Homem já estava pronta quando o papiloscopista se dirigiu à


câmara frigorífica para poder coletar as impressões digitais do corpo. Procurou Homem, e só
o encontrou quando olhou na parte interna dessa. O papiloscopista retirou o cadáver da
câmara frigorífica.

O corpo do morto estava nu e limpo. As suturas, na cabeça e no tronco, realizadas após o


exame de necropsia apresentavam pontos firmes e curtos. Os braços que estavam cruzados
sobre o corpo foram abertos pelo papiloscopista para a coleta das impressões digitais. Após a
coleta, o papiloscopista deixou o cadáver na parte externa da câmara frigorífica.

Aproximadamente, cinco minutos depois a responsável se aproximou com quatro colegas de


trabalho do Homem e com um dos policiais que participou do exame necroscópico. A
responsável consolava os homens e pedia que o policial explicasse o exame que fora realizado
e como a causa da morte foi identificada. Após as explicações, o policial se dirigiu à câmara
frigorífica com os quatro homens e mostrou as suturas no corpo do Homem. A pedido dos
colegas de trabalho do Homem, pôs sobre a bandeja onde repousava o cadáver, os braços que
haviam sido abertos pelo papiloscopista.

O policial se afastou um pouco e deixou os quatro homens a sós com o corpo sem vida do
Homem na câmara frigorífica. Os quatros homens queriam se despedir. Um deles beijou a
testa do colega morto, enquanto outro passava as mãos sobre o seu braço esquerdo. Os outros
dois observavam atentamente o cadáver, quando um deles começou a chorar, pondo as mãos
no rosto. Foi rapidamente consolado pelo colega.

Os quatro homens deram-se as mãos e fizeram um círculo ao redor do corpo do Homem.


Iniciaram, então, a oração católica „Ave Maria‟ e depois rezaram o „Pai Nosso‟. Após a
oração, os homens ficaram em silêncio por alguns minutos. Um deles fez o sinal da cruz na
testa do Homem. Retiraram-se da sala, abraçados.

5
Antes de uma hora da tarde, o corpo sem vida do Homem era posto no caixão. Camisa, calça,
meias e sapatos foram vestidos no seu corpo sem vida. O cadáver do Homem, que chegou no
necrotério sem vida, envolto por um saco preto e com sangue por todo o corpo, saiu numa
caixa de madeira, limpo e com meias novas.

6
Introdução

Em vinte de julho de 2011, o Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro – IML-RJ, realizava a


necrópsia no cadáver de número três mil quatrocentos e cinqüenta e três. Desses, pelo menos
duzentos e quarenta e um corpos haviam sido enterrados como não-reclamados; pelo menos
um corpo não era um cadáver, mas um boneco de plástico confundido com um feto por
policiais da Divisão de Homicídios; pelo menos um corpo era de um policial civil; pelo
menos cento e dezesseis corpos foram enterrados sem nome; pelo menos cinco corpos não
completaram um ano de idade com vida; e outros tantos não contabilizados eram corpos de
homens e mulheres baleados; atropelados; carbonizados; suicidas; adoentados; corpos de
mortos5.

A sede do IML-RJ, cujo nome homenageia o médico Afrânio Peixoto, realiza em média
dezessete necrópsias por dia. Nessa instituição, que compõe parte do quadro da Polícia
Técnico-Científica da Polícia Civil do Rio de Janeiro, corpos de pessoas vítimas de “mortes
violentas”6 são examinados e identificados a partir das técnicas de Medicina-Legal e registros
públicos são construídos através de práticas burocráticas. Os exames dos corpos e a produção
de registros têm como objetivo revelar a causa da morte do corpo; determinar a identificação
civil do cadáver, declarando assim o morto; produzir informações sobre a morte o e morto; e
encaminhar o corpo ao enterro.

Foi no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto – IMLAP7, que realizei oito meses de trabalho
de campo para a elaboração desta dissertação de mestrado em Antropologia que apresento sob
a forma de etnografia. Aqui, demonstro como o IML dá prosseguimento à morte na medida
em que a define. Em termos nativos, esse processo é reconhecido como “matar o morto” e se

5
Dados referentes aos meses de janeiro a junho de 2011 que construí juntos aos registros dos Setores de Não-
reclamados e de Identificação e Liberação de Óbito.
6
Ao discorrer sobre as “mortes violentas”, Miranda e Pita (2011) afirmam que enquanto em Buenos Aires a
categoria “mortes violentas” se refere a mortes que agenciam tanto o sistema de saúde quanto o sistema penal
sendo usada principalmente para distinguir, no âmbito do sistema de saúde, as mortes que foram advindas de
enfermidades de outras mortes e engloba “mortes por acidentes de trânsito, suicídios e homicídios” (:177). No
Rio de Janeiro, de forma semelhante, a categoria “morte violenta” tem seu foco na circunstância da morte e na
imposição de um limite aos procedimentos burocráticos e jurídicos vinculados à morte. “Desse modo, a
instituição policial não tem acesso a todos os tipos de mortes, mas apenas àquelas relacionadas a possíveis
crimes. (...) Nos dados provenientes do sistema de saúde (Sistema de Informação de Mortalidade – SIM), os
casos de mortes violentas também não representam todas as mortes ocorridas, mas o problema de qualidade das
informações têm outras explicações, das quais vale ressaltar a dificuldade de identificação de cadáveres”. (ibid.)
7
Ao longo da dissertação utilizo, indistintivamente, três diferentes siglas para me referir a instituição onde
realizei trabalho de campo: IML, IML-RJ e IMLAP.
7
refere ao identificar o corpo morto e a causa da sua morte. Isto é, definir quem morreu e como
morreu.

Do princípio

Dia 23 de dezembro de 2010, antevéspera do Natal. Acompanhada de Nilson, papiloscopista


do Instituto de Identificação Félix Pacheco - IIFP, contato a mim indicado por uma colega do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia - PPGA, entrei pela primeira vez na nova sede
do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro - IML-RJ. Diferentemente do antigo prédio,
onde eu já havia ido por acaso no ano de 2008, acompanhando um amigo advogado, a nova
sede do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, que fora inaugurada em novembro de 2009,
possuía uma estrutura física voltada à principal atividade dessa instituição, a realização de
exames médicos-legais.

O novo prédio do IML havia sido planejando e construído com a finalidade de abrigar o
Instituto Médico-Legal. De acordo com a descrição realizada por Aldé, que realizou uma
pesquisa sobre a qualidade do ambiente de trabalho do policiais do IMLAP, o edifício antigo
era uma construção adaptada às atividades do IML que apresentava grandes deficiências
quanto à estrutura dos ambientes de trabalho e à conservação dos equipamentos:

Em todos os setores o que se via eram equipamentos antigos e mal conservados, ambientes
escuros, mobiliário velho ou improvisado. Em algumas salas administrativas, vários
funcionários trabalhavam em um espaço reduzido, enquanto andares quase inteiros pareciam
espaços abandonados, com salas vazias, sucatas de antigos equipamentos, estantes cheias de
papéis jogados, sem organização ou finalidade, possíveis informações valiosas perdendo-se no
descaso. (ALDÉ, 2003:26).

A implantação de uma nova sede veio com o intuito de melhorar as condições de trabalho dos
policiais com espaços de trabalho organizados e bem iluminados e laboratórios e salas
equipadas. Essa mudança também demonstrava uma tentativa de modificar o perfil do IML,
dando a esse instituto uma nova cara frente à população e no âmbito da própria instituição.

Foi Nilson quem me apresentou pela primeira vez os corredores e setores do lugar, que a
partir de então, seria o espaço empírico da minha pesquisa. Nos encontramos no Instituto de
Identificação Félix Pacheco – IIFP, onde Nilson trabalhava como papiloscopista. No caminho
ao IMLAP comentei que o meu objetivo era pesquisar como são identificados os corpos sem
vida.
8
Quando chegamos no IMLAP, ele me deu seu crachá de identificação da polícia civil e pediu
que eu o colocasse. Perguntei a ele o que fazer se alguém me perguntasse algo. Ele respondeu
que ninguém ia perguntar nada, exatamente por eu estar usando aquele crachá.

Entramos pelo acesso que estava de frente ao estacionamento. Nilson cumprimentou duas
moças na recepção, e abriu a porta de uma sala onde havia três homens com quem conversou
brevemente. Após, entramos por uma porta com a indicação “acesso restrito” e Nilson me
mostrou o setor onde eram necropsiados os corpos. Perguntou-me se eu tinha medo de ver
cadáveres e eu, quase que instintivamente, respondi que não. O policial buscava identificar
meus limites e, naquele momento, eu não deveria ou queria explicitar nenhum deles.

Seguimos andando e passamos por um corredor com diversas portas com janela de vidro. Na
última havia umas seis macas com corpos. No final do corredor uma grande porta se abria a
uma sala bem ampla, onde ficavam as câmaras frigoríficas.

Dois serventes lavavam uma das salas de necrópsia. Saímos pela mesma porta que entramos e
nos dirigimos ao Setor de Necropapiloscopia. Havia um homem na sala, Miguel. Nilson
perguntou por Soares, que não estava presente. Automaticamente, talvez por considerar que
aquela sala era o meu destino final, retirei o colar de identificação e entreguei ao Nilson.
Miguel “brincou” dizendo que aquilo era “falsidade ideológica!” Fomos apresentados e
Nilson, me apresentou como sua amiga. Ele também explicou sinteticamente a Miguel, que eu
era antropóloga e desejava escrever minha dissertação de mestrado sobre a identificação de
cadáveres no IML. Miguel perguntou se eu era jornalista. Respondi negativamente, e tentei
explicar com um pouco mais de detalhes minhas motivações.

Logo, Nilson se despediu, e eu fiquei com Miguel na sala. Miguel me ofereceu a cadeira onde
estava sentado e disse: “aqui tem jornal, computador com internet, fique à vontade”. Eu
sentia que ele não estava muito à vontade com a minha presença. Mesmo assim, iniciamos
uma conversa. Miguel era um senhor de aproximadamente sessenta anos. Trabalhava na
polícia civil há mais de vinte anos, quando realizou o concurso para papiloscopista. Na época,
recém-casado, buscava um emprego estável e a carreira pública era a melhor opção.

Miguel começou a me explicar quais caminhos são feitos por um corpo dentro do IML. Que
se inicia no Setor de Necrópsia, que se tira uma foto e que por último há a identificação
através da datiloscopia. Segundo ele, a impressão digital é o principal instrumento para a
identificação. Através de doze pontos característicos, que são comparados com a impressão
9
digital presente nos documentos obrigatórios de identificação, é que se pode afirmar a
identidade de um cadáver,

Com aproximadamente quinze minutos de conversa, entrou na sala Fernando. Na época, chefe
do Setor de Identificação e Liberação do Óbito - SILO. Fernando tinha aproximadamente
trinta e cinco anos, era formado em Direito. Ao longo da pesquisa se tornou um dos meus
principais interlocutores no IML. Depois de iniciada a pesquisa, Fernando trocou de função,
tornando-se chefe do Setor de Necropapiloscopia8.

Do objeto

A principal curiosidade dos policiais era saber o que uma jovem de vinte e dois anos gostaria
de saber no IML. A resposta que eu havia dado a Miguel parecia não ser suficiente. E eu ainda
não tinha para mim uma resposta muito clara do que desejava discutir. Parecia-me que aos
meus interlocutores, eu como antropóloga, deveria perguntá-los sobre um problema social.
(LENOIR,1998)9

Dessa maneira, ao longo do trabalho de campo, me informavam sobre casos de violência, os


mortos pelo narcotráfico e pelas milícias, as melhorias e diminuição de mortes devido à Lei
Seca10 e à implementação das Unidades de Polícia Pacificadora11. Indicavam-me também

8
O cargo de chefe não modificava em nada o salário ou os abonos recebidos pelos policiais, apenas os fazia
responsáveis pela organização dos plantões de trabalho e culpabilizados caso o setor apresentasse problemas
(KANT de LIMA, 2009).
9
Remi Lenoir (1998) apresenta que quando um fato específico de um grupo social passa a ser tomado como uma
dificuldade à sociedade, através da imposição dessa dificuldade e da expansão de seus questionamentos para
além do grupo diretamente afetado, esse se torna um “problema social”. O autor demonstra que é no processo de
apreensão e compreensão desse “problema social” que os cientistas sociais constroem um “objeto sociológico”.
10
A “Lei Seca” é o nome pelo qual ficou conhecida a lei 11.705/2008, que alterou regras do Código de Trânsito
Brasileiro, no ano de 2008. A partir dessa lei, o consumo de qualquer quantidade de bebida alcoólica por
condutores de veículos foi criminalizado. No Rio de Janeiro, o governo do Estado, implantou uma intensa
campanha à Operação Lei Seca, que inclui planfetagem e as denominadas “Blitz da Operação Lei Seca” –
BOLS, nas vias. De acordo com o governo e diversos agentes, como os policiais do IML, essa ação educativa
mas também repressiva, diminuiu drasticamente o consumo de bebidas alcoólicas por parte de motoristas, e
como conseqüência, também diminui o número de acidentes no trânsito. (ver JERMANN, 2010)
11
As Unidades de Polícia Pacificadora – UPP, fazem parte da atual política de segurança pública implementada
em favelas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. Tem ênfase na pacificação através da expulsão dos
narcotraficantes, do controle do espaço público pela Polícia Militar e da regularização dos serviços públicos. Tal
política se insere no escopo de modificações na cidade em conseqüência dos futuros eventos esportivos a serem
realizados no Rio de Janeiro (a Copa do Mundo, em 2014; e os Jogos Olímpicos, em 2016). Como argumentado
por Machado da Silva (2010), a implementação de UPP tem influenciado diretamente na sensação de segurança
dos moradores da cidade, sejam os que habitam as favelas ou não, e recebido uma avaliação positiva. Mas, o
controle do espaço público e as estratégias de regularização colocam problemas aos moradores das favelas que
tem seu estilo de vida posto em jogo. (CUNHA e MELLO, 2011).
10
casos de mortos em brigas familiares e destacavam como as “recentes tragédias” das chuvas
após desabamentos em Angra do Reis12 e no Morro do Bumba13, em Niterói, intensificaram o
trabalho.

Ao decorrer da pesquisa de campo, passei a perceber que esses casos que eram a mim
relatados faziam parte da rotina de trabalho no IML, mas eram acionados sempre que
necessários exemplos que reivindicassem a relevância do trabalho daquele instituto.

Se aos meus interlocutores, como antropóloga eu deveria olhar para um problema social, eu
me propunha, como antropóloga, construir, dentro dos limites do IML um objeto sociológico.
Ao identificar essa problemática obrigatória (BOURDIEU, 2001)14, durante a pesquisa
busquei perceber como todos esses fatos, histórias e casos de repercussão se vinculavam às
práticas cotidianas no âmbito dessa instituição.

Quando o trabalho de campo, e fui apresentada a Nilson, Miguel e Fernando, me interessava


saber como uma instituição da Polícia Civil do Rio de Janeiro, o Instituto Médico-Legal,
identificava cadáveres. Chamava-me a atenção a grande quantidade de indivíduos que era
enterrada sob a categoria de “não-identificados” (FERREIRA, 200715) e como se relacionava

12
No réveillon de 2010, a cidade de Angra dos Reis, litoral sul do Rio de Janeiro, foi atingida por chuvas
intensas que resultaram em dois desabamentos e vitimaram fatalmente cinqüenta e três pessoas. A maioria das
vítimas ocupava uma pousada e sete casas de veraneio na Enseada do Bananal, localizada na Ilha Grande. Outras
onze vítimas viviam no Morro da Carioca, comunidade residencial de ocupação irregular próxima ao Centro
Histórico de Angra dos Reis. Os policiais do IML destacavam que, “por sorte” dos moradores do Morro que
também houve no desabamento na Ilha vítimas fatais, pois só assim houve quantidade de mortos suficiente para
demandar os serviços do IML da capital e a atenção devida dos órgãos públicos e de mídia. A “sorte” também se
dava por que enquanto no Morro viviam famílias pobres, aqueles que estavam comemorando a virada do ano na
Ilha eram turistas e famílias ricas e de classe média alta, o que chamava mais atenção à tragédia.
13
Após três dias de fortes chuvas na região metropolitana do Rio de Janeiro, os moradores do “Bumba”, ouviram
um grande estrondo. Em sete de abril de 2010, na cidade de Niterói, um grande deslizamento vitimou fatalmente
mais de duzentos e sessenta pessoas. O deslizamento ocorreu no chamado “Morro do Bumba”, comunidade
residencial regularizada pela prefeitura que em fins dos anos oitenta teve seu inicio. Antes, o terreno era utilizado
como depósito de lixo pelo município. A instabilidade do terreno devido a grande camada de lixo combinada aos
processos de decomposição que produzem gás metano e chorume (um líquido tóxico gerado a partir da
decomposição de lixo) provocou o saturamento do solo da região que, com a chuva, desmoronou. O espaço
ocupado pela parte desmoronada do morro se tornou uma área de lazer e ainda há pessoas que habitam o local.
Ninguém foi responsabilizado pelo acidente e mais de dez pessoas ficaram desaparecidas nos escombros.
14
Para Pierre Bourdieu (2001: 207), a “problemática obrigatória” se refere ao “conjunto de questões obrigatórias
que definem o campo cultural de uma época”. Nesse sentido, o “problema social” da “violência urbana” e as
“tragédias” indicadas a mim como relevantes pelos meus interlocutores compõem o “repertório de lugares-
comuns” no contexto do IML.
15
A antropóloga Letícia Ferreira (2007) realizou sua pesquisa nos arquivos de registros do IML na qual
desenvolveu como era estabelecido o processo identificatório de cadáveres classificados enquanto não-
reclamados entre os anos de 1942 e 1960.
11
a “não resolução” de casos de homicídios, em que havia desconhecimento por parte das
instâncias policiais de quem eram as vítimas dessa categoria de “morte violentas”16.

Nesse sentido, durante a pesquisa, busquei reconhecer as práticas institucionalizadas de


trabalho dos profissionais do IML no que se refere à produção de registros dos cadáveres.
Assim, observando como era a rotina burocrática da instituição, observei que, mais do que
identificar, ou não, cadáveres enquanto indivíduos ou pessoas, o IML constrói
institucionalmente corpos sem vida enquanto mortos.

A partir dessa constatação, passou a me chamar a atenção como tais práticas


institucionalizadas de trabalho se inserem num percurso, ou nos termos de Tiscornia (2009),
num “labirinto burocrático”, onde dezenas de registros eram preenchidos diariamente para
que, ao final de todo caminho, um cadáver pudesse ser inumado.

A entrada no campo através do setor de Necropapiloscopia se vinculava ao interesse de


identificar os procedimentos relativos à identificação, e permitiu que eu percorresse o fluxo
dos profissionais e dos papéis em relação aos cadáveres. Afinal, todos os cadáveres que
ingressam no IML têm suas impressões digitais coletadas pelo papiloscopista. Nessa rotina de
papeis e de corpos, com e sem vida, notei que inclusive os não - identificados (FERREIRA,
2007) são parte dessa rotina.

Ao identificar uma rotina de trabalho no IML, chamava-me atenção a presença de


características da burocracia cartorial brasileira (KANT de LIMA, 1995; MIRANDA, 2000).
O interesse em compreender essa faceta burocrática e a possibilidade de identificar questões
nesse sentido vincula-se diretamente a minha participação enquanto pesquisadora no Núcleo
Fluminense de Estudos e Pesquisas – NUFEP17, e no Instituto Nacional de Estudos

16
De acordo com o Conselho Nacional do Ministério Público (2011), o Estado do Rio de Janeiro é aquele com o
maior número absoluto de homicídios não solucionados, quer dizer, inquéritos referentes a homicídios que foram
arquivados. Se no ano de 2007, era um total de 8.526, em 2010 totalizavam mais de 60 mil casos não resolvidos
nos últimos dez anos. O arquivamento de inquéritos foi uma forma do estado, através do Ministério Público
Estadual, cumprir uma meta nacional que dizia que todos os inquéritos abertos até o ano de 2007 deveriam estar
concluídos em 2011. Sobre a produção de estatísticas por parte do Estado, Miranda e Pita (2011), demonstram
como essa se refere a produção da “linguagem do Estado”que configura as classificações produzidas por seus
agentes. Dessa maneira, os registros estatísticos são reflexo das categorias escolhidas pelo Estado para que ele
diga sobre ele próprio.
17
O NUFEP é o Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa, com sede na Universidade Federal Fluminense -
UFF, que está vinculado academicamente, ao Programa de Pós-graduação em Antropologia – PPGA, e
administrativamente ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Criado em 1994, o NUFEP organiza um
espaço na academia que congrega membros docentes e discentes independentemente das rotinas e ordenações
inerentes à atividade acadêmica regular. Os projetos desenvolvidos buscam focalizar processos de administração
12
Comparados em Administração Institucional de Conflitos18, INCT-InEAC.

Devido a minha inserção num grupo de pesquisa que há mais de quinze anos investiga
práticas policiais e jurídicas, destacou-se, também, a importância que esses corpos
apresentam, sendo por vezes fragmentados e olhados através de suas partes destacadas como
evidências criminais que permitem o estabelecimento de verdades policiais. Assim, cadáveres
construídos enquanto mortos que, transformados em provas de crimes, permitem a produção e
a reprodução de verdades, estando sujeitos a mecanismos institucionalizados de construção da
verdade.

Nessa dissertação, discuto como uma instituição da burocracia pública estatal, submetida à
polícia, exerce o controle sobre corpos sem vida e como esses corpos mortos são produzidos
pela burocracia. Demonstro como os registros públicos são produzidos, mas também destaco
como se dão outros momentos de interação no cotidiano de trabalho com cadáveres que não
são registrados e que se relacionam à produção de verdades sobre os mortos. Assim, elucido e
discuto as formas como mortos são produzidos institucionalmente e cotidianamente no âmbito
dessa instituição policial, bem como analiso um conjunto de representações sobre a morte e os
mortos.

Do campo

A descrição de como são transformados cadáveres em mortos e de como são produzidos


corpos pela burocracia, a partir da observação da realização de exames médicos-legais,
permite explicitar como os policiais no IML constroem documentos públicos e estabelecem
verdades. Para isso, realizei trabalho de campo no período de dezembro de 2010 a agosto de
2011 no Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto – IMLAP. Também acompanhei o trabalho
da Coordenação de Serviço de Remoção de Cadáveres – CSRC, entre os meses de agosto a

institucional de conflitos, em perspectiva comparada. Dois ambientes empíricos originalmente se destacam nas
abordagens dos pesquisadores: as políticas públicas ambientais envolvendo pescadores artesanais e os sistemas
de segurança pública e de justiça criminal. Minha pesquisa se insere nessa segunda abordagem que busca
analisar os conflitos e as formas de administração de instituições e atores vinculados às áreas da Segurança
Pública e da Justiça Criminal.
18
O INCT-InEAC é o Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos.
Coordenado pelo professor Roberto Kant de Lima, foi criado em fevereiro de 2009, através da iniciativa do
Programa “Institutos de Ciência e Tecnologia”, proposto pelo CNPq em parceria com a FAPERJ. O InEAC
promove um programa de pesquisa e Formação, nas áreas de Ciências Humanas e Ciências Sociais, sobre a
diversidade das formas institucionais de administração de conflitos nos diferentes âmbitos dos sistemas de
Segurança Pública e de Justiça Criminal, em uma perspectiva comparada.

13
novembro de 2010.

Durante esse período, sistematicamente, realizei trabalho de campo com uma equipe, que
cumpria plantão semanal de vinte quatro horas e também, quando possível, acompanhei os
plantões dessa mesma equipe nos domingos. Em relação aos horários, me propunha estar a
maior parte do dia possível no IML. Em geral, chegava no IML poucas horas depois do
plantão, que se iniciava às oito horas da manhã, ter começado. Assim acompanhava a chegada
dos primeiros corpos, e os primeiros exames realizados pelos policiais daquele plantão.
Passava toda a parte da manhã e da tarde no IML, participando da rotina de trabalho. Muitas
vezes ficava até a noite, quando o ritmo de trabalho era menos intenso, mas a entrada de
corpos era sempre aguardada. Por algumas madrugadas fiquei no IMLAP, acompanhando o
trabalho dos policiais e descansando no alojamento destinado de policiais, enquanto quase
todos dormiam. Essa rotina de pesquisa permitiu-me compreender a rotina de trabalho dos
policiais, bem como os fluxos de corpos, pessoas e papéis.

Além de dados que construí na pesquisa no Rio de Janeiro, ao longo da dissertação apresento
brevemente, em caráter contrastivo, dados sobre Buenos Aires. Tais foram obtidas, após
estadia por período de três meses, de setembro de 2011 a dezembro de 2011, no âmbito do
convênio CAPG-BA entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, do qual
eu sou aluna e o Mestrado e o Doutorado em Antropologia da UBA19. Essa missão de estudos
se insere num bem sucedido percurso de convênios binacionais entre Brasil e Argentina com
sede no InEAC, através dos programas CAPES/SPU e CAPES/MinCyT. Tais convênios vêem
possibilitando a produção de trabalhos diversos que analisam, em particular, os sistemas de
administração de conflitos no Rio de Janeiro e em Buenos Aires20.

Em Buenos Aires, tive a oportunidade de realizar pesquisa na Morgue Judicial de Lomas de


Zamora, localizada na parte sul do conurbano de Buenos Aires, na Província de Buenos Aires,
Argentina que abrange uma área correspondente a dois milhões e meio de habitantes. Essa
instituição é a responsável pela identificação de cadáveres e realização de exames médico-
legais em corpos vítimas de “mortes violentas” ou por razão desconhecida. Por ser a única

19
Realizada através do projeto “Experiências comparadas em Antropologia Social. Brasil e Argentina” CAPG –
BA 041/10 coordenado pela Dra. Simoni Lahud Guedes e pelo Prof. Claudio Guevara.
20
Destaco os trabalhos Pires, 2010 e Eilbaum, 2010, que utilizo ao longo dessa dissertação.
14
Morgue Judicial da Província, além da Morgue da capital21, corpos de pessoas mortas pela
polícia na província de Buenos Aires também são encaminhados a Lomas de Zamora.

A realização de breve trabalho de campo em outro país, permitiu-me compreender melhor


aspectos da pesquisa que realizei no Rio de Janeiro pois, a partir da identificação de práticas e
representações diferentes pude contrastar elementos com aqueles observados no IMLAP.
Assim, a desnaturalização e o estranhamento provocados pela pesquisa em Buenos Aires
propiciaram compreender quão diversas podem ser as relações que os vivos estabelecem com
os mortos. Discutir acerca do lugar social dos mortos e elucidar os procedimentos
institucionais referentes aos cadáveres em Buenos Aires, me possibilitaram contrastar e
reconhecer esses fatores no Rio de Janeiro.

Do texto

Ao construir essa descrição etnográfica, organizei a análise a partir das categorias nativas mas
dando destaque a essas na medida de sua relevância no campo e, constituindo assim, a minha
discussão. Nesse sentido, as categorias nativas estão apresentadas em letra cursiva – itálico, e
as extraídas das falas ou dos registros, estarão também entre aspas. Os conceitos teóricos que
serão apresentados estão apenas entre aspas.

Dos capítulos

Inspirando-me em Malinowski (1978), ao discorrer sobre as técnicas de realização do trabalho


etnográfico, os dados que construí a partir dessas experiências estão organizados em três
capítulos, que denominei: Esqueleto, Carne e Sangue e Espírito.

No primeiro deles, Esqueleto, apresentarei como a morte, os mortos, a medicina, a polícia e a


medicina-legal são partes constituintes do Instituto Médico-Legal e possibilitam a existência
dessa burocracia pública. Dessa maneira, utilizando-me, principalmente, da produção
antropológica sobre esse tema enfatizarei como o acontecimento morte se tornou tema de
discussão científica. Discutirei também a relevância dos mortos na definição e apreensão
desse acontecimento. E, apresentarei em caráter comparativo, o lugar social dos mortos na
sociedade portenha e qual o lugar do corpo sem vida na construção dos mortos.

21
Todas as outras dezessete morgues localizadas na província de Buenos Aires estão subscritas à Policía da
Província de Buenos Aires. A Morgue de Lomas de Zamora está vinculada ao sistema de justiça através do órgão
acusatório que é o Ministério Público Fiscal.

15
Ainda no Esqueleto, destaco aqueles saberes e poderes que considerei como estruturantes da
cultura na construção institucional de mortos. Nesse ponto, discutirei como diferentes saberes
e poderes da medicina e da justiça constituíram a medicina-legal e, como numa instituição
policial, o saber médico e o saber médico-legal se articulam. Assim sendo, o Esqueleto é o
que está anterior ao próprio IML, constituindo-o e possibilitando a sua existência.

No segundo capítulo, denominado Carne e Sangue, explicitarei como são cotidianamente


produzidos os mortos. Nesse sentido demonstrarei como desde a remoção via rabecão, o
Serviço de Necrópsia do IML se apresenta enquanto espaço de construção de significados
sobre os cadáveres, mas também como uma linha de produção de linhas classificatórias entre
vivos e mortos. Para compreender a construção dessas linhas e dos seus significados, passarei
a explicitar os imponderáveis da vida institucional e as práticas dos sujeitos no que se refere à
produção de cadáveres que mata os mortos. A partir dos cadáveres, buscarei descrever a
produção de registros e verdades e, através dos cadáveres e dos registros, compreender como
é vivida a rotina na instituição que constrói mortos entre os corpos e os papeis. Logo, Carne e
Sangue se refere ao que circula e conforma o IML e sua rotina.

Finalmente, no Espírito, o terceiro e último capítulo, remontarei como a minha experiência


enquanto antropóloga no Instituto Médico-Legal me permitiu acessar certas ideias, sensações
e sentimentos no que se refere ao cotidiano com os mortos. Assim, explicitarei nesse capítulo
a maneira como são compartilhados e vividos o tempo e o espaço do IML, seja pela percepção
de odores, por piadas e comentários jocosos ou pela relação estabelecida com os mortos.
Também destacarei nesse capítulo à continuidade dos mortos. Isto é, como a construção
institucional dos mortos classifica-os no que concernem as suas relações sociais. O Espírito é,
em certo sentido, o que é dito e construído sobre e pelos mortos após a sua morte. É o que dá
vida ao IML e aos mortos.

Logo, nessa dissertação demonstrarei como os mortos são mortos burocraticamente e como
nessa instituição pública responsável por construir os mortos institucionalmente são
estabelecidas às relações dos vivos com os mortos.

16
Capítulo 1 - Esqueleto

Neste capítulo vou descrever a anatomia que sustenta o Instituto Médico-Legal. O esqueleto é
o que possibilita a existência social desta instituição e o que permite captar a “organização da
tribo e a anatomia de sua cultura” (MALINOWSKI, 1978 p.33) a fim de compreendê-la.
Busco assim, explicitar a organização cultural do IML com o fim de elucidar um ponto
específico: o que orienta a construção institucional dos mortos?

Dessa maneira, nesta dissertação o esqueleto é o que orienta as práticas realizadas no Instituto
Médico-Legal. A morte e os mortos que dão vida à estrutura organizada pelos saberes da
medicina; da polícia; do direito e da Medicina-Legal, e conformam o esquema básico da vida
burocrático-institucional, dando significado a ela na medida em que permitem que tal
burocracia exista e se reproduza.

Morte

Somente a humanidade tem consciência da morte e somente os homens, através das culturas,
constroem significados para ela. As relações presentes na sociedade fazem com que a morte e
as maneiras de lidar com esse acontecimento sejam particulares. Assim, cada cultura atribui
significados próprios para a morte e os mortos. Mas é a consciência de que essa é uma
condição ontológica aos indivíduos, fazendo da própria morte algo inevitável, que transforma
este acontecimento comum à humanidade. Logo, a morte também é um acontecimento
universal.

De acordo com o trabalho desenvolvido pelo antropólogo José Carlos Rodrigues (2006), os
processos de construção da representação da morte a inscreveram culturalmente enquanto
uma relação de poder. Com fins de afastar e esquecer a morte, a sociedade ocidental
industrializada constitui maneiras de lidar com esse poder que impõe para a morte o status de
tabu. O acontecimento físico e biológico, e também acontecimento biográfico, passa a ser
temido e um sistema de controle e de mercado age para lidar com o fim da vida22.

Banida, produzida, administrada, a morte está em toda parte na sociedade industrial e esta
presença é o grande paradoxo de uma sociedade que pretende divinizar a vida. Este paradoxo é
talvez a mais fundamental explicação desta sociedade (RODRIGUES, 2006:247).

22
O autor destaca desde a difusão de planos de saúde e clínicas médicas particulares, que possibilitariam o
adiamento da morte, até seguros de vida; empresas funerárias e títulos em cemitérios, que organizariam e
controlariam o momento da morte.
17
Nessa relação, enquanto tabu, a morte ocupa nos sistemas de classificação o lugar de
impureza e perigo (DOUGLAS, 2010). Principalmente, através da figura do cadáver, são
colocados desafios à classificação do mundo social. Esse ser, ao parecer pertencer a conjuntos
distintos, o mundo dos humanos e o mundo dos mortos, impõe uma série de práticas à
sociedade para o estabelecimento de sua posição no sistema classificatório. Para isso, “é
preciso exorcizar o cadáver, a morte, e tudo o que diga respeito a eles” (RODRIGUES, 2006,
p. 61). E é através dos ritos funerários que se constitui o morto enquanto tal e se explicitam
uma série de particularidades no que concerne à representação que as sociedades têm da
morte.

Seguindo a proposta do sociólogo Norbert Elias (2001), a sociedade ocidental, fruto do


processo civilizador, estabeleceu em relação à morte um distanciamento natural e
cronológico. Quer dizer, os conhecimentos produzidos pela ciência, em especial pela
medicina, permitiram tanto visualizar a morte como a parte final de um processo biológico,
quanto prolongá-lo cronologicamente e, o quanto possível, adiá-lo. Assim, a consciência da
morte enquanto parte do processo biológico, combinada ao reconhecimento do indivíduo
como ser biológico fez com que a morte se reforçasse na sociedade ocidental como um tabu.

Dessa maneira, o significado atribuído à morte e às maneiras de lidar com ela refletem as
práticas que os indivíduos constroem quando enfrentam esse acontecimento. Seja através da
hospitalização, do luto e dos rituais funerários, seja pelos procedimentos de herança e
burocráticos, é somente durante a vida que lidamos com a morte. Com as palavras do próprio
Elias: “A morte é um problema dos vivos. Os mortos não têm problemas”. (2001:10).

Tabu para uns, tema para outros. Nas artes plásticas, na literatura, no cinema, nas ciências
sociais e outros campos, entre idas e vindas, no decorrer da História, são abertos espaços para
discutir e explicitar o fim da vida (AIRES, 1989a, 1989b; MORIN, 1988). Sinais da
transposição do esquecimento, do ocultamento e do distanciamento imposto pelos processos
civilizadores de socialização que, modificando os interesses sociais dos homens, modificaram
também suas relações com a morte. (ELIAS, 2001).

Norbert Elias (2001, 1994) acredita que a internalização da disciplina é uma forma de
socialização. Por sua vez, Pierre Bourdieu (1994) e Michel Foucault (2007) atribuem a essa
mesma disciplina formas de dominação dos corpos. Esses autores denominam os processos de

18
construção das homogeneizações dos indivíduos como de violência simbólica23 ou de
normalização24, respectivamente. Para ambos, as regras são impostas e internalizadas.
Destaco esse ponto, pois acredito que, ao referir-me à morte e a seus processos de
institucionalização, me aproximo mais da perspectiva desses autores.

Quero dizer, a humanidade não aceita a morte e se socializa através dessa inevitabilidade,
como propõe Elias (2001). A morte é uma imposição da vida sobre os indivíduos. É uma regra
externa e coercitiva internalizada e que homogeneíza os indivíduos a partir desse ponto em
comum.25 De certa maneira, é um mecanismo de poder que se impõe e deixa marcas no
espaço social.

A morte situa-se exactamente na charneira bioantropológica. É a característica mais humana,


mais cultural, do anthropos. Mas se, nas suas atitudes e crenças perante a morte, o homem se
distingue mais nitidamente de outros seres vivos, é aí mesmo que ele exprime o que a vida tem
de mais fundamental. Não tanto o querer viver, o que é um pleonasmo, mas o próprio sistema
do viver. (MORIN, 1988, p. 16-17)

Assim, o viver se apresenta como correlato ao morrer. (MARTINS, 1983). Esses dois verbos
intransitivos que se relacionam entre si por oposição onde o morrer se apresenta como uma
das principais idiossincrasias do viver, “porque morrer é, afinal de contas, o que há de mais
normal e corrente na vida” (SARAMAGO, 2005, p. 130)26.

23
A violência simbólica é uma conceituação elaborada por Pierre Bourdieu (1994, 1998) enquanto uma forma de
coação apoiada no reconhecimento de uma imposição determinada e legitimada. Dessa maneira, se dá através da
continuidade estabelecida pelos processos de socialização em determinadas crenças onde os indivíduos se
posicionam no espaço social seguindo critérios e padrões do discurso dominante. A violência simbólica é o meio
de exercício do poder simbólico.
24
A normalização, desenvolvida por Michel Foucault (2007), é o processo que se dá através da disciplinalização
coercitiva sendo os seus mecanismos grandes instrumentos de poder da sociedade moderna. Ela constrange os
indivíduos para homogeneizá-los, suprimindo as multiplicidades. Simultaneamente, a normalização individualiza
ao impor distâncias entre os indivíduos e determina níveis, especializações e marca diferenças.
25
No filme holandês „A excêntrica família de Antonia‟ de 1995, Antonia é representada como uma mulher
determinada e forte que construiu sua vida e sua excêntrica família pelas escolhas e pela liberdade. O filme
perpassa o tempo de quatro gerações e entre começos e recomeços, expõe a força da vida “que quer viver”. A
única coisa que consegue deter Antonia é a morte, que ela pressente e comunica aos familiares. Numa vida que
fugiu aos diversos padrões de normalização da sociedade situada numa pequena vila, a personagem reivindica
sua força, senão controlando, mas se sujeitando ao dia que chegou ao fim sua própria vida. Como todos na
história do filme, mas diferentemente de todos, Antonia nasceu e morreu.
26
O escritor português José Saramago apresenta em seu livro “Intermitências da Morte” os conflitos gerados na
vida de uma sociedade a partir de um período de suspensão das mortes. Nessa fábula, a “morte” – com inicial
minúscula reivindicada pela própria, indignada com as reclamações e o repúdio dos homens ao morrer, resolve
suspender todo e qualquer tipo de falecimento em um país. Tal decisão revela uma série de problemas ao Estado,
19
A morte, tal como tantos outros acontecimentos e eventos identificados pela Antropologia, é
elemento da cultura. Além de ser vista pela sua universalidade natural, a morte também se
caracteriza por representar um fenômeno cultural presente nas sociedades. É na busca do
significado desse acontecimento e das práticas que o rondam que etnógrafos têm observado a
morte como importante elemento de compreensão social (cf. HERTZ, 1980; VAN GENNEP,
1960; DURKHEIM, 1973; MAUSS, 1979; MALINOWSKI, 1993). A morte é prismada
antropologicamente e o acontecimento que traz questões à humanidade se torna tema das
etnografias.

Igualmente, tanto na Antropologia Funcional-Estruturalista Britânica quanto na Escola


Sociológica Francesa, ambas datadas como clássicas27, o acontecimento morte surge como
tema. Através de sua preocupação com o estudo das estruturas sociais, em especial das
estruturas de parentesco, apresentam-se trabalhos que descrevem de que maneira diferentes
sociedades lidam com esse acontecimento, principalmente no que se refere aos rituais e às
representações das mortes. Isto é, como a morte interfere na organização da estrutura social.

Com o objetivo de desenvolver teorias gerais, esses investigadores demonstram que uma das
principais contribuições da morte enquanto tema para a Antropologia é a noção de que a
morte é vista como um acontecimento tabu. E, aqui incluo também os antropólogos inseridos
no processualismo, denominado também dinamismo (MERCIER, 1974), para os quais a
ruptura que constrói a separação entre os indivíduos é superada através dos rituais que
promovem a reintegração. (cf. HERTZ, 1980; VAN GENNEP, 1960; TURNER, 2005a). Esses
antropólogos desenvolveram um lugar não estático da morte na estrutura social e, através
desse objeto privilegiado, analisaram as representações coletivas, pois, se objetivamente a
morte é o fim da trajetória de um indivíduo, correspondentemente promove a mudança no
grupo social.

A partir dos anos 70, a análise dos sistemas sociais como um todo deixou de ser subjacente às
pesquisas antropológicas de diferentes sociedades e suas interpretações universalizantes. O
recorte temático passou a ser o modo de construir as análises etnográficas. Dessa maneira o

à Igreja, aos hospitais, às famílias e às diversas esferas da sociedade que leva a reflexão do lugar da morte na
vida social, inclusive à própria “morte”.
27
Aqui utilizo os marcos histográficos e teóricos desenvolvidos por Paul Mercier (1974) em relação às correntes
de pesquisa e, principalmente por Peirano (1997), ao afirmar que “eles [os clássicos] são essenciais para a
continuidade de um conhecimento que, em determinadas circunstâncias, se tornou disciplinar: a questão de se
saber quem são, onde são gerados, ou como se formam, embora extremamente importante, é secundária diante
da sua existência indispensável” (p. 68)
20
tema morte, entre outros tantos, como direito, parentesco, religião e sistema de trocas, foi se
conformando e tornou-se o objeto central das análises etnográficas das sociedades. Fixa-se aí
a Antropologia da Morte.

Grande parte das etnografias que trazem a morte como objeto descreve os significados
atribuídos à morte pelos indivíduos e como os indivíduos vivos se sentem em relação à morte,
destacando as práticas funerárias e as experiências de trabalho com moribundos (SUDNOW,
1976; ELIAS, 2001; MENEZES, 2004; KÜBLER-ROSS, 2000). Novamente, o conhecimento
sobre a morte e o distanciamento em relação a essa se fazem presentes. Se antes a morte era
analisada como uma parte da trajetória dos indivíduos no seu grupo social, agora a morte
passa a ser o objeto antropológico que permite compreender determinadas noções que os
indivíduos têm sobre a vida. De acordo com essas noções, a morte ritualizada segue
classificada como um tabu social.

Inerente à vida humana, a morte marca no tempo o seu lugar e reivindica sua importância. A
morte, nesse sentido, é um acontecimento do fenômeno vida que marca a história e, por
conseqüência, a estrutura social (SAHLINS, 1990). Quero dizer, a morte está presente na
sequência cronológica e também lógica da vida. A morte é um acontecimento dos vivos. E é
aquilo que predomina até mesmo sobre a mudança. A morte acontece cotidianamente e, para
aqueles que a esperam, a morte está no previsível28. O acontecimento faz parte da estrutura e é
a partir dela que visualizamos os rituais e as representações que as sociedades identificam
como o seu modo de lidar com a morte.

O evento, em contraste, ao acontecimento “não é somente um acontecimento no mundo; é a


relação entre um acontecimento e um dado sistema simbólico”. (SAHLINS, 1990:191). Isto é,
o eventual é o que desafia as interpretações da estrutura a partir do inesperado. Os rituais e as
representações são modificados frente a um evento, pois a interpretação que indivíduos têm
deles são também outras.

Um evento não é apenas um acontecimento característico do fenômeno, mesmo que enquanto


fenômeno ele tenha forças e razões próprias, independentes de qualquer sistema simbólico.
Um evento transforma-se naquilo que é lhe dado como interpretação (SAHLINS, 1990:15)

Sob uma perspectiva contemporânea, a Antropologia da Morte tem discutido duas diferentes

28
Como diz um ditado popular no Brasil: “A única certeza que temos na vida é a morte”.
21
formas de continuidade social dos mortos (DaMATTA, 1997), após o acontecimento morte:
uma que leva em conta o indivíduo que prevalece socialmente sobre a morte, característico
das sociedades individualistas. Nesse, se há o acontecimento morte, não há mais indivíduo e a
morte é um assunto isolado, generalizante e fundamental. Dessa maneira, a morte é uma
questão científica e filosófica, e pensar nela sob essa chave permite o esquecimento dos
mortos.

Outra forma, vinculada às sociedades tribais e tradicionais, leva em conta as relações que são
estabelecidas entre indivíduos. Assim, quando há acontecimento morte, há o rompimento de
uma série de relações que conectavam esse indivíduo aos outros. A morte se apresenta como
um problema social e um evento, mesmo que seja para um número restrito de pessoas. A
ruptura provocada pela morte se dá através de processos que pretendem deixar os mortos em
seu devido lugar, distante dos vivos.

No que se refere ao problema que apresento nessa dissertação, não basta discutir apenas o que
concerne à existência, mas também reconhecer o fenômeno morte como algo que acontece e
que coloca questões à ação. A morte é vista como um processo a ser construído. Na
construção desse processo, é o caráter relacional vinculado à interpretação do sujeito social
envolvido, que caracteriza a morte como acontecimento.

Dessa maneira, considerando que na sociedade brasileira são as relações sociais estabelecidas
entre os indivíduos que as constituem enquanto pessoas (DAMATTA, 1997, 1979), proponho
que o processo de construção da morte é interpretado a partir da construção dos mortos
realizada no IML. Nesse momento de passagem imposto pela morte que individualiza as
pessoas, a transformação de cadáveres em mortos visa reestabelecer as relações sociais que
foram ressignificadas pelo acontecimento morte.

A morte, como um estado individualizador por excelência, implicaria necessariamente uma


redefinição de toda a rede de relações sociais numa escala e numa intensidade que a sociedade
moderna, igualitária e individualista, obviamente não conhece. (DAMATTA, 1997:140)

Dito isso, para além do par analítico de rito e tabu, proponho pensar que no IML, o que torna
o previsível inesperado não é a morte, mas os mortos. Quero dizer, qualquer situação de morte
produz uma transformação na estrutura do grupo social em que o morto estava inserido. Mas,
em uma instituição em que sua função é o trato com os mortos, não se pode olhar para a morte

22
como tabu a ser esquecido. Dentro das salas e entre os corredores do IML, a morte não está
escondida. O IML é o esconderijo do tabu da morte.

Mortos

Uma das primeiras coisas que observei a partir da interlocução que estabeleci com os
profissionais do IML é que nem todas as mortes são ali interpretadas da mesma maneira. E, o
que difere na interpretação dessas mortes e a representação dos profissionais que ali trabalham
são os indivíduos sem vida, os corpos mortos que adentram esse esconderijo. Há mortos e
outros mortos. Entre as diversas mortes acontecimento, há mortes evento que têm seu
significado diferenciado pelo que são, ou melhor, por quem foram os cadáveres. E são esses
corpos apresentados que fazem com que o acontecimento morte seja reinterpretado. Assim,
quem é o morto e como foi sua morte faz uma morte ser vista, ou não, como um evento no
IML.

Retorno ao relato que inicia essa dissertação, no Prólogo. Como demonstrarei mais adiante,
tratava-se de uma morte evento. Isto é, todos os procedimentos cotidianos, eventuais e
previsíveis àqueles que trabalham no IML foram reinterpretados29 naquele momento que
descrevi no relato. Os procedimentos realizados em relação àquele cadáver se inserem na
classe dos “imponderáveis” (MALINOWSKI, 1978), diferentemente daqueles que os meus
interlocutores descrevem como os rotineiros nas suas práticas. Não foi à toa.

O “Homem” que chegava ao trabalho de motocicleta e fora morto após o atropelamento de


um ônibus era um cadáver eventual. Ele, Homem, era um policial civil que trabalhava numa
delegacia. A mesma onde trabalha o pai da funcionária responsável pela organização do
trabalho no IMLAP que, relembro, é uma instituição da Polícia Civil. A morte do “Homem”,
ou melhor, o morto Homem foi o que provocou a desigualdade no significado cultural da
morte atribuído a esse cadáver no IML.

Quando cientes da existência de um cadáver de sua corporação30 (KANT de LIMA, 2009), a


morte mudou de lugar na estrutura. Ao observar a movimentação dos policiais e a agitação
que impunha a responsável pelo serviço me chamou atenção o cuidado no tratamento do
corpo e a agilidade no preenchimento dos papéis. Comumente os corpos são manipulados

29
Em relação aos procedimentos eventuais e cotidianos, descrevo no capítulo seguinte, Carne e Sangue.
30
Corporação se refere a um conjunto de pessoas que age como se fosse um só corpo em busca de objetivos
comuns, sendo também referente a um grupo de pessoas submetido a um mesmo conjunto de regras e valores.
23
rapidamente e os papéis preenchidos com certo cuidado para que não apresentem equívocos
ou incoerências ao sistema burocrático. Os policiais se demonstravam mais preocupados do
que o habitual em finalizar os procedimentos.

Observei que essa morte não significou a morte que cotidianamente acontece. Esse morto
provocou a apreensão do acontecimento morte de forma diferenciada e, por conseqüência,
com significados diferenciados. Chamou-me também a atenção, a oração realizada que destoa
do caráter científico e cético das práticas rotineiras no IML. Esse morto fez da morte um
evento no IMLAP.

Por isso, seguindo o proposto pelo antropólogo Roberto DaMatta (1997), a pesquisa
antropológica que se refere ao tema da morte não deve focar na morte enquanto problema
analítico. Como apresentei, são os mortos que revelam as interpretações possíveis a esse
acontecimento e, além, “promovem a possibilidade de uma síntese entre espaços sociais
descontínuos e apontam para uma alternância social e moral que parece ser importante em
todas as sociedades relacionais” (p. 157).

Em relação às suas classificações enquanto verbos, “viver” e “morrer‟‟ já esclarecem o seu


sentido e não necessitam de complementos que os expliquem. Em relação às suas
aplicabilidades na vida social e aos sujeitos dessas ações, esse par de verbos necessita de
modos explicativos para compreendermos como se fazem presente no cotidiano. Pois, não há
apenas uma forma de morrer, tampouco há apenas uma forma de viver (PITA, 2010). Tais
modos se referem às circunstâncias desses atos que produzem a vida e a morte e que, em
relação aos indivíduos, produzem vivos e mortos desiguais e diferentes.

Cabe aqui ressaltar, com fins comparativos, o lugar social dos mortos na vida social de outras
sociedades. Em especial, destaco a Argentina onde, como já explicitado, realizei trabalho de
campo por três meses. Durante a minha estadia nesse país, notei que diversas vezes os mortos
são acionados, seja entre conversas com amigos, seja nos meios de comunicação, isto é, nas
ruas em protestos, comemorações, cartazes e estênceis31.

31
Estêncil é uma técnica de aplicação de imagens via uma prancha com a figura desejada vazada e, na maioria
das vezes, com tinta spray. Tal técnica tem sido muito utilizada por grafiteiros e pichadores (sobre pichadores,
ver SOUZA, 2007), pois facilita a execução em locais públicos e/ou proibidos por sua aplicação rápida e
simples. Em Buenos Aires é comum ver esse tipo de aplicação em diversos lugares de cidade que, como marcas
e muros, postes e calçadas são a expressão de opiniões no espaço público.
24
No dia vinte e sete de outubro, alguns amigos comentaram que haveria uma homenagem ao
primeiro ano de morte do ex-presidente argentino Néstor Kirchner32 na Plaza de Mayo.
Resolvi dar uma passada depois da aula de espanhol. Segui à estação de metro mais próxima
da linha A e já no subte33 me chamou à atenção a quantidade de jovens, adultos e também
idosos que se dirigiam ao microcentro da cidade naquele horário, aproximadamente oito horas
da noite. Alguns portavam bandeiras, vestiam camisas com o rosto de Kirchner e usavam
adereços nas cores azul, branco e amarelo.34

Optei por descer na estação Peru, uma antes


da Plaza de Mayo para, primeiro, olhar de
longe à praça. Antes mesmo de subir as
escadas já era possível escutar música
emitida pelas caixas de som. Havia milhares
de pessoas ocupando a praça e seus
arredores. Barracas vendendo cerveja, água,
refrigerante e choripan35; outras vendiam
camisetas, bottons, bandeiras e fotos de
Nestor e Cristina Kirchner. Pessoas se
organizavam em pequenos grupos, alguns
sentados nos gramados acompanhados por
um mate, outros de pé conversando e
tomando cerveja. Muitos portavam faixas e
cartazes homenageando o casal Kirchner e Imagem 1: Homenagem a Nestor Kirchner na
Plaza de Mayo
prestando homenagem ao morto, mas
também uma forma de prestar homenagem à presidenta Cristina Kirchner, que havia sido

32
Nestor Kirchner morreu em 27 de outubro de 2010. Ele foi presidente argentino de 25 de maio de 2003 a 10 de
dezembro de 2007, sendo sucedido no cargo presidencial por sua esposa, Cristina Fernandez Kirchner. Essa que,
por sua vez, é a atual presidenta da Argentina, desde que assumiu em 10 de dezembro de 2007 o governo
presidencial. A figura política do casal Kirchner conformou o movimento político argentino chamado de
kirchnerismo, que tem entre uma das suas características a luta pelos direitos humanos e a origem reivindicada
na esquerda peronista.
33
Subte é o metro da capital argentina.
34
Cores da bandeira argentina.
35
Sanduíche, onde „chori‟ remete a chorizo, que em português significa lingüiça. E „pan‟ ao pão.
25
reeleita dias antes36. Havia também carros de som próximos a Catedral e ao Cabildo. E,
próximo a Casa Rosada, um palco com show de rock ao vivo e um público bastante animado.
No centro da praça, um busto caricatural inflável gigante de Nestor Kirchner era atração para
fotos.

Enquanto tomava uma cerveja e comia um choripan, pensava o quão improvável era aquele
tipo de celebração no Brasil. Nem mesmo poderia imaginar algo ou alguém que um ano
depois de sua morte mobilizasse tantas pessoas para a realização de um ato na rua37.

Também na televisão, quando voltei para casa, programas de TV de emissoras governistas ou


não comentavam e homenageavam o falecido. Naquele vinte e sete de outubro, Néstor
Kirchner, o morto, era o tema. De certa maneira, a vida era celebrada se recordando do morto.
Do morto era o corpo, representado por fotos, bustos e sósias que se apresentam como
centrais no estabelecimento das relações que os vivos estabelecem com a morte. O morto
estava presente.

Uma das principais razões atribuídas à importância dos mortos é relacionada pelos argentinos
com o período da última ditadura militar, entre os anos de 1976 a 1983. Durante esse período
os argentinos sofreram com o “terrorismo de estado”38 que atingiu de forma avassaladora
grande parte da sociedade (GARAÑO, 2008; VECCHIOLI, 2000). Muitas pessoas de
diferentes idades, inclusive crianças, e classes sociais foram desaparecidas por todo o país 39.
Os militares envolvidos nos processos de persecução, seqüestro, morte e conseqüente

36
A presidenta Cristina Fernandez Kirchner foi reeleita no dia 23 de outubro de 2011 com mais de cinqüenta por
cento dos votos.
37
Talvez no Carnaval, festa popular brasileira que revela determinados aspectos da cultura da sociedade
brasileira como descrito por Roberto da Matta (1978) ao invertê-los. De acordo com esse antropólogo, o evento
carnaval transposta ao mundo da rua os ideais das relações espontâneas, afetivas, e essencialmente simétricas
provocando uma inversão na ordem social hierárquica brasileira. Lembro que os organizados e
profissionalizados desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, uma das mais importantes manifestações do
Carnaval carioca contemporâneo, costumam homenagear pessoas quando essas estão vivas como fora com o
cantor Roberto Carlos; o cantor e compositor Chico Buarque; o apresentador e empresário Silvio Santos; e a atriz
Dercy Gonçalves, homenageados pelas Escolas de Samba Beija Flor em 2011; Mangueira em 1998; Tradição em
2001; e Viradouro em 1991, respectivamente. As duas primeiras escolas se consagraram campeãs nos seus
respectivos anos.
38
Caracterizado como a violação sistemática e planificada por parte do estado de direitos fundamentais dos
cidadãos.
39
Sobre o roubo de crianças, “prática inédita” em ditaduras militares, e a posterior apropriação renomeada
enquanto adoção ver Villalta (2005, 2004). A autora demonstra como o “terrorismo de estado” se apropriava de
filhos de presos políticos, os tomando como abandonados e posteriormente, essas crianças eram encaminhadas à
adoção e quais foram as estratégias de familiares, principalmente em conformação de associações como Abuelas
de Plaza de Mayo, para acionar os órgãos competentes da justiça.
26
desaparecimento de pessoas se valiam da precedência da inexistência do corpo como
inexistência de delito penal. O desconhecimento e o desaparecimento forçados eram
estratégias de controle no país (DUHALDE, 1999; GARAÑO, 2008; MORA, 2005).

Familiares e militantes políticos iniciaram grupos de buscas e reivindicação políticas e


judiciais40 pelos “desaparecidos” por parte do estado, categoria acionada ao se referir aos
indivíduos submetidos aos desaparecimentos forçados. Dados provenientes de organizações e
grupos defensores dos direitos humanos contabilizam até trinta mil desaparecidos. Desde
então, a Argentina se caracteriza no contexto Latino-Americano por sua reivindicação aos
direitos humanos e pela judicialização dos procedimentos de detenção, tortura e
desaparecimentos no período da ditadura militar. Nesse contexto, os corpos e as condições dos
mesmos são tomados como provas jurídicas e exemplos centrais da memória social.

Foram dois os momentos em que presenciei a expressão da construção e afirmação dessa


memória mais fortemente. O primeiro foi quando conheci o trabalho do Equipo Argentino de
Antropologia Forense41, localizado na Morgue da Cidade de Buenos Aires. Centenas de
caixas de papelão ocupavam estantes de metal e em cada uma delas se faziam presentes
ossadas. A sala que se assemelhava a um corredor contava com três mesas de metal onde
estavam dispostas três ossadas quase completas. Na cabeceira das mesas uma placa indicava:
nombre y apellido42. Eram três irmãos, três pessoas, que se tornaram três ossadas. Os
antropólogos forenses43 se ocupavam de completar o quebra-cabeça de ossos que sustenta
cada ser humano44 para, quando finalizado, depositar os esqueletos completos em três caixas e

40
Uma relevante análise sobre a caracterização do Poder Judicial Argentino durante a última ditadura militar
argentina é o trabalho da antropóloga Maria José Sarrabayrouse (2011). Nele, a autora descreve, através da
análise da Causa da Morgue Judicial, como eram realizados os procedimentos médicos de autópsia e
identificação de cadáveres e, revela as redes de interdependência e os grupos que caracterizavam o poder judicial
e possibilitavam o uso das instituições da justiça pelas forças repressivas de Estado.
41
O Equipo Argentino de Antropologia Forense é uma organização científica não governamental que se formou
em 1984 com o objetivo de investigar casos de pessoas enterradas como NN (sigla que significa no nombre) e
desaparecidas durante a mais recente ditadura militar argentina. Atualmente, suas atividades se estendem por
mais de trinta países do mundo, em especial na América Latina, que sofreram com a violação dos direitos
humanos. Para a identificação das ossadas, utilizam técnicas de arqueologia e antropologia forense mas
principalmente, via DNA adquirida através de mostras sanguíneas de parentes de pessoas desaparecidas.
42
Nome e sobrenome, em português.
43
Vale ressaltar, devido a sua verossimilhança no que se refere aos procedimentos do trabalho direto com
ossadas, o seriado estadunidense Bones. Nele, a antropóloga forense Temperence Brennan trabalha para o
Federal Bureau of Investigation (FBI) na identificação de cadáveres vítimas de crimes (murders em inglês).
44
O Esqueleto é a estrutura de sustentação do corpo.
27
entregá-los aos pais dos jovens mortos no período da ditadura.

Outro momento foi no dia vinte e um de outubro, na leitura do veredicto do caso ESMA45.
Diante do Tribunal onde era realizada a audiência, um palco foi montado e quase dois mil
militantes de diferentes organizações entre advogados, sociólogos, professores, jornalistas,
artistas, além de familiares e conhecidos de desaparecidos políticos ocuparam a rua que fora
fechada para tal manifestação. Em um telão eram reproduzidas imagens das vítimas e uma
pequena biografia, bem como dos imputados, os réus. Sobre cada rosto de imputado que
aparecia, um carimbo gráfico circular imprimia a palavra assassino, em vermelho. Sobre cada
rosto de vítima que surgia outro carimbo com as mesmas características, imprimia a palavra
presente.

Às dezenove horas, a leitura da sentença


agendada para as dezessete horas, ainda
não havia começado. Enquanto isso, nós,
público, aguardávamos tomando mate,
comendo biscoitos, conversando sobre
atualidades e, no meu caso, recebendo
explicações sobre o que era o caso, quem

Imagem 2: Telão no veredicto da Causa ESMA eram os imputados e quem eram as


vítimas, o que significavam algumas
palavras incompreendidas, qual era a dinâmica do julgamento, quais características daquele
tribunal, quem eram os grupos políticos que estavam presentes e quem eram as pessoas que
organizavam o ato46.

Ainda no palco, revezavam-se militantes declamando palavras de ordem, lendo poesias ou

45
Foi na antiga Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA), sob a administração da marinha argentina que
funcionou um dos maiores centros clandestinos de detenção e extermínio da Ditadura Militar Argentina. A
„megacausa ESMA‟, como ficou conhecida, unifica três diferentes processos de lesa humanidade, entre eles o
sequestro e roubo de bens e o desaparecimento forçado do jornalista Rodolfo Walsh; e o seqüestro e posterior
desaparecimento de três fundadoras da Associação „Madres de Mayo‟. O processo chegou ao juízo com
dezessete imputados, referente a mais de setecentas vítimas. Na sentença doze réus foram condenados à prisão
perpétua, dois foram absolvidos e os outros condenados a pelo menos mais de dezoito anos de prisão. Durante o
governo de Néstor Kirchner, o prédio onde funcionava a ESMA foi transformado no Centro Cultural de la
Memoria Haroldo Conti (CCMHConti) Sobre a causa Esma ver: http://www.cels.org.ar/esma/index.php e sobre o
CCMHConti ver: http://www.derhuman.jus.gov.ar/conti/default.htm
46
O trabalho de Marta Patallo (2011) apresenta como, contemporaneamente, estão sendo administrados
judicialmente os crimes realizados durante a mais recente ditadura militar Argentina, em especial nos Tribunais
Orais da Justiça Federal da cidade de Rosário, localizada na Província de Santa Fé.
28
convidando mais pessoas a participarem da militância. De repente, subiu ao palco um grupo
de cumbia47. Pasma com a presença daquele grupo, eu me virei aos meus colegas, em sua
maioria familiares e amigos de familiares de desaparecidos, para perguntar se era comum esse
tipo de apresentação antes da leitura das sentenças. A pergunta não foi necessária, pois
inclusive eles se colocaram admirados com o que chamaram de “desrespeito ao caso”. Um
dos líderes do ato sobe ao palco para apresentar o grupo, e em agradecimento afirma que
aquele era um dia de celebração à justiça que iria ser feita alguns minutos depois e que, não
tinha dúvidas de que os desaparecidos estavam ali presentes, comemorando esse fato.

Quando começavam a terceira música, vimos no telão os juízes ocuparem as mesas do


tribunal. O grupo de cumbia parou a música e todos se silenciaram para acompanhar a leitura.
Havia pelo menos três câmeras na sala. Uma que filmava os juízes, outra que mostrava o
público: na parte inferior, lotada, estavam os familiares das vítimas, na parte superior, com
vários espaços vazios, os familiares dos imputados. E uma terceira, na sala de audiências que
focalizava cada imputado ao ser lida a sentença e os advogados de ambas as partes.

Essas três câmeras eram os olhos das quase duas mil pessoas que se concentravam sob o frio
na rua, diante do tribunal. A cada pena declamada, o público comemorava com gritos e
flanando bandeiras. Após a leitura das dezessete sentenças, as pessoas se abraçavam, algumas
choravam, outros telefonavam. Os vídeos voltaram a ser reproduzidos e a cada vítima que
tinha seu nome lido, o público gritava: presente! Após o vídeo, o grupo de cumbia voltou a
tocar pois, como já havia sido dito, era dia de festejar.

Além dos processos contra o terrorismo de Estado, mais recentemente, as vítimas da violência
policial (TISCORNIA, 2009) figuram na preocupação da sociedade argentina no que se refere
aos direitos humanos. Os mortos passaram a ser, nessa sociedade, parte da estratégia para
resolver os problemas da morte e a preocupação pelos mortos é direcionada aos corpos e ao
tratamento simbólico a esses destinados (PITA, 2010). Seja em instituições públicas,
universidades, em praças e nas ruas, há diversas placas com os nomes dos desaparecidos e de
vítimas da Guerra das Malvinas48, das revoltas frente a crise econômica de 200149 e de outras

47
Cumbia é um tipo de música de origem Colombiana e considerado o ritmo musical mais popular da Argentina.
Entre os instrumentos estão presentes tambores, maracas e gaitas. A dança, que pode ser dançada em casal ou só,
é vista como sensual sendo marcada por movimentos dos braços, giros e rebolados.
48
A Guerra das Malvinas ocorreu entre os dias 2 de abril e 14 de junho de 1982. Onde o governo argentino,
comandado pelos militares, lutou pela soberania dos arquipélagos austrais ilhas Malvinas, Geórgia do Sul e
Sandwich do Sul que foram tomados à força em 1833 e dominados a partir de então pelo Reino Unido. O Reino
29
tragédias. Logo, é a presença do morto o que possibilita significar a morte, numa sociedade
onde a figura e a simbolização do corpo é alimento de lutas políticas.50

Mais além, a repressão exercida pela ditadura militar, que influencia diretamente a relação
que a sociedade argentina estabelece com os mortos, seja através da reivindicação pela
memória, seja pela reivindicação por “verdade e justiça”, há de se destacar o caráter
individualista dessa sociedade e o valor difundido da noção de direitos humanos. A
importância do indivíduo morto se vincula com a importância que cada um exerce no mundo
social. E, quando essa morte é causada por algum tipo de violência, o significado que os
direitos humanos adquiriram na Argentina se apresenta como valor compartilhado maior que
os vínculos que o Estado estabelece com os indivíduos.

Quando familiares de vítimas da violência policial dos bairros pobres da Grande Buenos Aires,
ameaçam a polícia dizendo: “vou chamar os direitos humanos”, essa singular personificação
prediz sobre um limite que, ainda quando seja precário, pode ser não obstante reivindicado
(TISCORNIA, 2009:22).

Parece-me que a reivindicação pela memória visa demonstrar à sociedade o fato de ocorrência
da morte violenta. Quero dizer, destacar aquilo que ocorreu com o indivíduo morto ou
desaparecido, seja pela violência, seja pela repressão do Estado. Em uma sociedade que se

Unido saiu vitorioso da guerra que resultou na morte de 649 soldados argentinos, 255 britânicos e 3 civis das
ilhas.
49
Em dezembro de 2001, o governo argentino declarou a moratória de sua dívida externa. Os problemas
econômicos administrados desde 1991, através de uma crescente divida externa pública se estenderam a uma
grave crise financeira e social, com altos índices de desemprego e inflação. Setores das classes populares e média
da Argentina ocuparam as ruas em protesto às políticas econômicas do governo. Os piqueteros, como foram
denominados esses manifestantes, fecharam ruas e estradas. Em 19 de dezembro de 2001, um grande panelaço
ocupou as ruas de Buenos Aires, e a polícia entrou em conflitos com a população. Desses, o mais violento foi o
que ocorreu próximo a Casa Rosada – sede do governo nacional argentino. Quando ao menos cinco pessoas
foram mortas pela polícia. O presidente em exercício , Domingo Cavallo, decretou estado de sítio, suspendendo
as garantias constitucionais dos cidadãos. Pacificamente, a população manifestou seu descontentamento durante
toda a noite, enquanto a polícia tentava-a manter distante da Casa Rosada utilizando-se de gás lacrimogêneo. Na
mesma noite, o presidente renunciou. No dia seguinte, novos conflitos entre a polícia e os manifestantes,
reunidos na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada. Em doze dias, o país teve cinco presidentes diferentes.
Calcula-se que, nos conflitos com a políca, trinta pessoas tenham sido mortas na Plaza de Mayo.
50
Outro relevante fato na trajetória histórica argentina, que me foi apresentado, em relação aos corpos é
recordado no conto do desaparecido político, vítima na causa ESMA (ver nota trinta e quatro), Rodolfo Walsh,
„Esa Mujer‟ de 1963. Nele, Walsh relata um diálogo entre um jornalista investigativo que está buscando o
cadáver embalsamado de Eva Péron e um dos coronéis que compunha o serviço de inteligência do Estado
argentino, e foi responsável pelo ocultamento deste cadáver. Maria Eva Duarte de Péron morreu aos trinta e três
anos por metástase de um câncer que se originou no útero e foi a segunda esposa do militar e presidente
Argentino, Juan Carlos Péron. Através desse conto, onde Esa Mujer é uma alusão da nunca nomeada Eva Péron,
Walsh demonstra como o corpo de Eva foi fruto de adoração, necrofilia e se tornou símbolo de um movimento
político – o peronismo.
30
preza como igualitária, os direitos e deveres devem ser reconhecidos igualmente e a
explicitação das vítimas de violências demonstra as desigualdades existentes, e promove o
constrangimento e a reação frente às injustiças numa sociedade que se representa, ou se
pretende, enquanto justa.

No Brasil, que se caracteriza pelo holismo hierárquico (DAMATTA, 1997) e pelo elitismo
desigual (O`DONNELL, 1997), o indivíduo morto não importa, pois a morte é vista como
parte do ciclo social que compõe o coletivo, e o lugar que antes era ocupado pelo morto, pode
e é suprido por outro indivíduo sem que isso prejudique ou modifique as características mais
gerais do mundo social.

A desigualdade social se faz presente tanto na sociedade e suas representações cotidianas


(DAMATTA, 1997), quanto no paradoxo legal e no inconsciente jurídico (KANT, 1995).
Nesse sentido, os indivíduos são representados desigualmente e não faz sentido recorrer à
memória quando há indivíduos (e mortos) com menos direitos que outros. A distribuição
desigual dos direitos e dos deveres constrói limites nos espaços e, por conseqüência, nas
relações que podem ser estabelecidas entre os indivíduos. São elas que controlam os
parâmetros de justiça. Assim, tragédias e fatalidades são descritas como “estar no lugar
errado, na hora errada” ou “estava com as companhias erradas”.

Entre os cariocas e fluminenses, me parece haver maior inclinação para a resignação das
pessoas – e aqui faço referência à distinção que Damatta (1997: 225) faz desta categoria em
relação à de indivíduo - frente à idéia que o Rio de Janeiro pode não ser para todos, fazendo
com que se observe uma ordem na qual tenha vigência o “cada macaco no seu galho”.
(PIRES:387-388, 2009)

Para a maioria das vítimas de violência no Brasil, seja pela violência, seja pela repressão do
Estado, o morrer é uma questão de sorte, ou, principalmente azar.

No âmbito dessas observações, vale destacar o lugar ocupado pelo desaparecido, como
apresentado por Ferreira (2011). Em seu trabalho, a antropóloga demonstra o vazio
institucional referente aos desaparecimentos civis na cidade do Rio de Janeiro. A burocracia
público-estatal, que determinou um órgão específico a esse tipo de evento, o Setor de
Descoberta de Paradeiros – SDP, da Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, atribui aos
familiares a responsabilidade em relação ao ente desaparecido. Corroborando com o que
afirmei acima, é no âmbito das redes de relações sociais do individuo que o Estado localiza a

31
responsabilidade desse desaparecimento. Afinal, é no conjunto de suas relações sociais que o
indivíduo exerce a sua importância e significância no mundo social.

Na Argentina, a memória e a reivindicação pelo não esquecimento dos mortos e dos


desaparecidos revelam a presença e a importância dos indivíduos no cotidiano dessa
sociedade e a responsabilidade do Estado nesse desaparecimento. No Brasil, o esquecimento e
a concentração da memória no pequeno diâmetro das relações sociais dos indivíduos mortos e
sumidos os mantêm apagados e distantes da vida social, sendo os familiares culpabilizados e
não só responsabilizados (KANT de LIMA, 2009) pelo ocorrido.

O controle da sociedade sobre os indivíduos começa no corpo e com o corpo. Seja procurando
os corpos desaparecidos, seja esquecendo e desaparecendo com eles, seja os construindo
enquanto mortos, é essa biopolítica (FOUCAULT, 1979) que inicia e encerra os corpos.
Destaco duas das formas instituídas (BOURDIEU, 2008) de controle dos corpos. Primeiro, a
medicina que, nesse sentido, é o conhecimento disciplinado discursivamente que objetiva o
discurso do corpo natural e tem como estratégia biopolítica o controle e a normalização dos
corpos. Em seguida, o controle do Estado através da polícia, instrumento de poder
discricionário e particularizado, que vigia e controla os indivíduos impondo limites não
consensualizados e dissipando os conflitos através do domínio dos corpos dos indivíduos
(KANT de LIMA, 2004). Curiosamente, ambos encontraram no IML do Rio de Janeiro uma
relação particular que destaco a seguir.

Medicina

Na porta uma folha de tamanho A4 fazia às vezes de cartaz, onde se podia ler: “A sala 01 está
reservada pela direção nos dias 05 e 06 de abril”. A sala correspondente era uma das três
salas de necrópsia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Através do vidro localizado
na porta pude ver que nela, uma dúzia de jovens paramentados com avental, toucas médicas,
luvas cirúrgicas e galochas plásticas ouviam e observavam atentos um homem de
aproximadamente cinqüenta anos. Com auxílio de uma pequena câmera, órgãos internos
humanos eram exibidos nos televisores dispostos nas laterais da sala. Era, através deles, que
os jovens, alunos do curso de Medicina de uma importante faculdade particular da cidade do

32
Rio de Janeiro, compreendiam como se realiza uma esplenectomia51.

A compreensão daquilo que já havia sido lido e estudado nos livros utilizados nas aulas
teóricas era possível pela presença de um corpo, o cadáver de um indivíduo morto por lesão
contundente52 não-reclamado. Um dos peritos médico-legista do IMLAP era quem, com o
auxílio de um assistente, manipulava o cadáver. Além de perito, o médico também era
professor da faculdade onde estudavam os alunos e seu assistente era um dos seus monitores
bolsistas.

Tal tipo de aula era habitual no IML, tanto para faculdades particulares de medicina quanto
para faculdades públicas. Também eram realizados cursos para policiais, bombeiros e para
alunos de alguns cursos superiores de Enfermagem. Em geral, os cursos para os
universitários, diferentemente daqueles para futuros bombeiros e policiais, não versavam
sobre Medicina-Legal, especialidade daquele instituto, mas sim se serviam dos corpos de
cadáveres para a explicitação o mais real possível dos mecanismos orgânicos de um corpo
humano.

A medicina é a ciência produzida pelo corpo e para os corpos. É o conhecimento que acumula
informações sobre o corpo humano tanto quanto é produzido a partir dos corpos humanos.
Bryan Good (2003), ao desenvolver como a medicina constrói seus objetos, demonstra como
os estudantes de medicina compreendem essa ressiginificação do corpo-pessoa, ao corpo-
ferramenta. Isto é, como os médicos aprendem a pensar numa pessoa anatomicamente,
construindo o corpo humano como objeto de estudo. Para esses (futuros) profissionais, o
corpo humano é um conjunto complexo de compartimentos naturais, “um complexo espaço
tridimensional”.

Os estudantes descrevem uma série de mudanças em sua percepção que tem lugar dentro deste
espaço delimitado. Na vida corrente, o corpo protubera – a pele, as mãos, os olhos, o rosto, a
roupa – e transmite uma personalidade. No interior de uma pessoa, se constituem seus
pensamentos, experiências, personalidade. No laboratório, as mãos, os pés, e a cabeça seguem
articulados, e o tronco e os membros são objetos de detida atenção. Ao retirar a pele emerge
um interior distinto. (GOOD, 2003, p. 142-143)

51
Cirurgia realizada para a remoção do baço, órgão situado no abdômen com funções de filtro do sangue.
52
Lesão contundente é um tipo de lesão oriunda de alguma espécie de pressão exercida em alguma parte do
corpo, batendo ou chocando-o contra algum objeto ou superfície.
33
Os alunos que estavam ali não tinham interesse, no exercício futuro da profissão médica, em
manipular cadáveres. Uma parte, inclusive, tinha repúdio a esse tipo de contato, mas a
considerava importante para sua formação. No processo de socialização médica, o laboratório
de anatomia é o espaço fundamental para o desenvolvimento desse tipo de conhecimento que
se caracteriza por apresentar uma linguagem cultural específica que se vincula a uma
determinada versão da realidade e de um sistema de relações sociais que se confluem nas
preocupações morais e nas funcionalidades técnicas do corpo humano (GOOD, 2003). É no
laboratório de anatomia que o corpo humano aberto é ressignificado e os médicos constroem
respostas às perguntas que eles mesmos criaram.

A medicina, dessa maneira, reconstrói o significado de pessoa a um olhar médico que vê o


corpo humano sob uma ótica específica. Dentro do idioma da medicina, a categoria pessoa é
inexistente. O indivíduo deixa de ser essa construção social e cultural e passa a ser um corpo
orgânico, um “caso”, um “paciente” ou um “cadáver”. É nesse idioma, nessa linguagem
específica, que os médicos expressam suas observações técnicas e seus conceitos. A
linguagem médica “É um meio dialógico, de confrontação, de interpretação, de conflito e, às
vezes, de transformação” (GOOD, 2003, p. 166). A medicina é uma prática discursiva
específica.

Vida, doença e morte conformam a tríade técnica e conceitual dessa discursividade organizada
e institucionalizada em forma de disciplina (FOUCAULT, 2010). Enquanto tal, a medicina
apresenta uma forma específica de expressão que é “controlada, selecionada, organizada,
redistribuída por certo número de procedimentos” (FOUCAULT, 2010:9). Procedimentos
esses que, no caso da medicina, se caracterizam pela vontade de verdade, um dos sistemas de
exclusão definidos por Foucault no que tange aos discursos. Assim, a medicina

apóia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo
um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros da
edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é
também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado
em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído (id,
p.17).

Com o status de discurso verdadeiro, a medicina enquanto disciplina estabelece-se por esse
procedimento interno de controle. Isto é, a organização dessa discursividade enquanto uma
disciplina é um procedimento de controle interno que visa definir seus objetos e os métodos,
34
além de suas técnicas, regras e instrumentos, “tudo isto constitui uma espécie de sistema
anônimo à disposição de quem ou que pode servir-se dele”(id, p. 30).

A morte, luz da medicina, produz uma das principais ferramentas desse campo do
conhecimento, o corpo morto. “É do alto da morte que se podem ver e analisar as
dependências orgânicas e as seqüências patológicas”. (FOUCAULT, 1977, p. 165). É da
morte que a medicina pode olhar de forma atenta ao conjunto tridimensional que monta de
maneira complexa o corpo humano.

O conhecimento da Anatomia, um espaço considerado sagrado entre os iniciados no campo da


Medicina, só é possível através dos cadáveres. Esses são o material didático privilegiado para
a prática e o simbolismo fundamental que fora construído através da centralidade do corpo no
estabelecimento da Medicina enquanto um saber legitimado e disciplinado. (MARTINS,
1983)

Esse conhecimento disciplinar posiciona a morte como iluminadora da relação tempo e


espaço, entre organismo e doença e é caracterizado por ser um discurso que constrói unidade
sobre sua matéria prima, o corpo humano, tanto quanto estabelece o controle deste. A
medicina é o discurso disciplinado que disciplina os corpos e, por isso, se constitui enquanto
campo de conhecimento hegemônico em relação aos corpos humanos. A morte que ilumina
essa relação que é definida pela própria medicina. São os médicos que têm a legitimidade para
afirmar e declarar que o corpo de um indivíduo se tornou um morto.

No Brasil, a afirmação institucional dessa morte é realizada através da Declaração de Óbito –


DO –, documento de modelo único que baseia o Sistema de Informações sobre Mortalidade
do Ministério da Saúde – SIM/MS. É através da DO que qualquer morte atestada é declarada
“fato” e essa se caracteriza por ser um ato médico. Assim, qualquer DO emitida no Brasil
apenas pode ser preenchida e assinada por um médico. Nesse registro, além do nome
completo, deve constar o número do registro desse médico no Conselho Regional de
Medicina, data e local que atestou a morte e sua assinatura. A DO é o documento que permite
a elaboração da Certidão de Óbito. Quero dizer, não há morte se não há corpo, assim como,
institucionalmente, não há morto se não há a declaração por parte de um médico. A medicina,
nesse sentido, se apresenta como um saber que se relaciona com o poder cartorial.

Outra característica da medicina brasileira se refere ao nunca implementado projeto moderno


de disciplinalização dos corpos, como descrito por Foucault. Essa sociedade nunca se
35
conformou como uma sociedade de controle, pois as técnicas mesmo de controle e
normalização dos indivíduos não se orientam pela difusão e homogeneização das práticas.
Barbosa (2005) demonstra, por exemplo, como o encarceramento se tornou o sistema de
controle e “reforma dos indivíduos” desenvolvido e como, no caso brasileiro, esse fora
reelaborado no cotidiano relacional das cadeias.

Assim, o controle sobre os indivíduos através dos seus corpos é realizado através da
repressão. De certa maneira, a técnica do exame se expressa vislumbrando esse não
adestramento dos corpos. Isto é, instituições responsáveis pelo adestramento coletivo ou da
sociedade não o realizam de forma extensa e ampla a todos. As instituições repressoras
passam a ocupar o lugar de impor as normas, já que essas não foram socializadas ou
internalizadas pelos indivíduos.

O exame, domínio de algumas instâncias legitimadas, é uma das estratégias que vincula o
saber com o poder. É um mecanismo normalizante que, por ser um saber, permite qualificar e
classificar e, enquanto poder, controlar e punir e não apenas conhecer:

Quer dizer que pode haver um “saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu
funcionamento, e um controle de suas forças que é mais que a capacidade de vencê-las: esse
saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo
(FOUCAULT 2007, p. 26).

Polícia

“O IML ser visto como um órgão médico, não como policial, é um problema”, me afirmava
João após ter entregado a Declaração de Óbito à mãe de um homem morto. O homem morava
sozinho num apartamento próprio na região de Jacarepaguá, zona oeste da cidade do Rio de
Janeiro. Sua mãe, portuguesa, havia vindo com os pais ainda criança para viver no Rio de
Janeiro.

Moradores da região da Tijuca, a família se estabeleceu através da atividade comercial. Seu


pai era brasileiro de origem árabe e também exercia atividade comercial. Junto com a família
da esposa, ampliou os limites dos estabelecimentos. Pouco tempo depois de casados, tiveram
um filho ao qual deram o nome de José. A situação financeira da família, tanto de seus avôs
quanto de seus pais, proporcionava a José uma vida confortável.

Como sua mãe relatou durante a entrevista com os policiais, na adolescência, José pela

36
primeira vez experimentou substâncias psicoativas. Aos dezoito anos, ingressou no curso de
Engenharia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Aos vinte e seis anos, já
formado e exercendo sua profissão, José foi internado pela primeira vez numa clínica para
tratamento de dependentes químicos. Entre seus vinte e seis e trinta e seis anos, sua mãe
contabiliza mais de dez internações. Na metade do caminho dessas, o pai de José faleceu num
acidente de trânsito. A família de José já não tinha tantos bens e era com dificuldades que sua
mãe administrava a herança deixada pelo marido e os cuidados que devia dedicar à mãe, avó
de José.

Aos trinta e cinco anos, antes da sua última internação, José foi morar sozinho no apartamento
que mantinha na Freguesia, bairro da região de Jacarepaguá. Havia se separado de sua
segunda esposa. José não tinha filhos. Aos quarenta e dois anos, José foi encontrado
enforcado na sala de sua casa.

Ao ser informada da morte do filho, a mulher ligou para uma das suas melhores amigas que
ofereceu que seu filho, advogado, a acompanhasse no IML. Este conhecia José desde a
infância devido à amizade de suas mães, mas durante a adolescência os jovens se afastaram. O
advogado, por sua vez, foi acompanhado de sua esposa, também advogada. Os três chegaram
ao IMLAP depois das onze da manhã.

Após se dirigirem ao balcão do Serviço de Necrópsia a mãe de José foi direcionada à sala do
setor responsável pelo atendimento às famílias e entrega das declarações de óbito. Nele, foi
informada pelo policial João que o exame necroscópico estava sendo realizado, mas que, para
a identificação do cadáver, necessitava apresentar algum documento oficial do morto com a
impressão digital.

Quando a senhora entrou na sala, o filho de sua amiga quis entrar com ela, mas foi impedido
pelo policial Felipe, do mesmo setor de João. Na sala, João perguntou sobre os dados pessoais
de José e de sua mãe. Quando a mãe de José saiu da sala, o advogado quis entrar e pedir
explicação do que havia ocorrido e qual era o procedimento. O homem se apresentou como
“irmão de criação” do morto. João explicou, quase com as mesmas palavras que havia
utilizado com a mãe do homem suicidado, os procedimentos realizados e aqueles a serem
realizados.

O advogado, sua esposa e a mãe de José retornaram a Jacarepaguá em busca da


documentação. Mais ou menos, uma hora depois, a identidade do homem foi entregue pela
37
assistente social da recepção a João. Nas duas vezes que o policial teve oportunidade de abrir
a porta de sua sala, fora abordado pelo advogado, amigo da família.

João, com posse dos documentos do cadáver, iniciou o procedimento de preenchimento da


documentação. Depois desse primeiro preenchimento, a identidade foi levada a Fernando, o
papiloscopista legista que, após a coleta das impressões digitais do cadáver, realizou o
confronto entre as impressões digitais coletas e as da documentação apresentada. Após a
confirmação da identidade do morto, Fernando deixou no setor de João os documentos para
que preenchesse a DO e autorizasse a liberação do corpo.

Enquanto isso, João havia saído para o almoço. Eu ainda estava na sala quando Fernando
trouxera os documentos. Acompanhava Felipe, o outro policial do setor que cuidava de
preencher outras DO enquanto a declaração de óbito do cadáver de José não era realizada.
Fernando brincou comigo: “Aí, você que tem curiosidade sobre suicídio. Esse parece que é.”53
“Sim, estou acompanhando”, falei para Fernando. Olhei para Felipe: “Eu não sei de nada...”,
declarou. E seguiu preenchendo suas declarações de óbito.

Saí para almoçar. Na volta, fui até a sala do setor de João e Felipe, que estava vazia. Preferi
esperar do lado de fora da sala, na recepção. Aquela família era a única das seis famílias da
parte da manhã que ainda esperava pela liberação do cadáver. Assim que João retornou, me
cumprimentou e convidou o advogado, amigo da família, a entrar na sala. Eu já estava na sala
quando o homem entrou. Cogitei a possibilidade de sair, mas João pediu que eu ficasse.

Sentei-me numa cadeira em frente à mesa do livro de óbito, onde costumava acompanhar o
trabalho das atividades naquele setor. João convidou o homem, advogado a sentar, mas ele se
recusou. João, visivelmente nervoso fechou a porta e perguntou: “Eu queria saber do senhor,
em qual momento eu o tratei mal? O homem disse que João não o tratou mal em momento
algum. João perguntou por que o homem fez essa reclamação dele à direção do IML. O
advogado era amigo de uma funcionária do IML. Foi através dela que ele acessou Sandra,
uma das diretoras do IML e realizou uma reclamação.

O advogado afirmou que a reclamação foi feita porque, fazia quinze minutos, tinha entrado na
sala do setor e Felipe estava sentado na cadeira vendo televisão. Assim, a reclamação que fora
realizada não era referente ao trabalho de João, mas sim ao trabalho de Felipe e ao fato da

53
Uma vez, por curiosidade, perguntei a Fernando sobre a quantidade de suicídios que ocorriam.
38
televisão estar ligada num ambiente de trabalho. “No meu escritório, jamais eu ou qualquer
funcionário meu pode trabalhar com a televisão ligada”. E prosseguiu, “Isso aqui é uma
repartição pública! Que trabalha para o atendimento com um público muito específico, que
está passando por uma situação de dor, de sofrimento, de perda. É um absurdo um
funcionário estar aqui, durante o seu horário de trabalho vendo TV, enquanto as pessoas que
perderam um ente, como foi o nosso caso, de forma avassaladora, ficam aguardando”.

João balançava a cabeça positivamente. Após a explanação do homem, João voltou a dizer
que ele fora questionado pelo atendimento que havia realizado ao advogado. O advogado
dissera que de jeito nenhum. Enquanto eu estive, constrangidamente, sentada na cadeira, os
dois discutiram de pé, próximos à porta da sala por dez minutos.

O homem questionou por quanto tempo mais iria demorar para que eles pudessem sair do
IML. João respondeu que o tempo que fosse necessário para encerrar o procedimento. O
policial pediu que o advogado se retirasse da sala porque precisava trabalhar. O advogado saiu
dizendo ironicamente “Espero que não necessite de muito. Obrigado”. João ligou a televisão.

Quando o homem saía da sala, Felipe entrou. João foi até a sala de Sandra relatar a conversa
que havia tido com o advogado e argumentar que ele não tinha um objeto de reclamação
específico, “queria apenas reclamar”. Felipe, na sala, comentava comigo que estava puto pela
desconsideração da superior em relação ao trabalho dos dois, “ela conhece a gente, porra!”.

João voltou e começou a preencher a declaração de óbito. “Agora, ele não pode mais
reclamar. Enrolei porque tive que ficar resolvendo a confusão que ele arrumou com essa
reclamação”. Felipe, então falou: “Se liga! Eu tirei onda com ele... Ele tava ali sentado, eu
passei devagarzinho mexendo no celular. Mexi com as meninas... ele só me olhando. Quem
mandou arrumar merda? Advogado só arruma merda! Tirei onda!” João então comentou: “É
porque ele não sabe que você trabalha armado!” Felipe, enquanto aumentava o volume da
televisão que exibia um programa esportivo respondeu “É o que eu posso fazer, não posso ser
agressivo aqui.” E colocou os pés sobre a mesa, enquanto João se levantou para chamar a mãe
de José e entregar a Declaração de Óbito. Quando a senhora entrou, Felipe retirou os pés da
mesa e se voltou a digitar no computador. Depois que a senhora saiu da sala, João exclamou:
“Menos um!”. “Porra, hoje foi foda!” afirmou Felipe.

João me explicou o porquê quis que eu ficasse na sala: para que servisse de testemunha, caso
o advogado fizesse alguma acusação mais grave e, também, para intimidá-lo com a presença
39
de uma mulher e de uma terceira pessoa na sala. “Ele não sabia quem você era, só por isso
que eu te pedi.” Os policiais afirmavam que não era culpa do advogado, que eles entendem a
situação da família, mas que “só aconteceu porque na polícia técnica tem uma problema de
identidade, de se ver enquanto policial.” Afirmou João, que prosseguiu: “Isso é um problema!
Aqui a gente é polícia. Eu só não ando armado porque venho de ônibus”. Felipe então
comentou: “É, eu ando. E mais, a gente usa uniforme. Num fica usando jaleco... Tá aqui
pequeninho ô: (mostrando a inscrição na camiseta na altura do peito) Polícia Civil mas se tem
problema de visão, tem aqui atrás ô grandão (virando de costas e apontando com o dedo a
inscrição na camiseta na altura dos ombros)”. João então disse: “A verdade é essa, as pessoas
não sabem que o Instituto Médico-Legal é um órgão policial. Quero ver chegar no balcão da
delegacia e fazer isso que fez aqui... sai de lá preso. Ou melhor, não sai. Fica!”

A origem da burocracia judiciária no Brasil, descrita por Schwartz (1979), se deu


combinadamente com as características da sociedade estamental. A transição às instituições
modernas realizou-se através de práticas de corrupção das leis e de normas burocráticas que
se mesclavam na formação inicial do judiciário brasileiro. Assim, o controle exercido pelo
poder judiciário já no seu início se caracterizava tanto pela inércia dos funcionários da Coroa,
quanto, pela corrente possibilidade de culpabilizar os mesmos funcionários, diante dos erros e
omissões. (KANT de LIMA, 2004).

Em 1808, em reação à transferência da família real portuguesa às terras brasileiras, foi criada
a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil. Essa tinha entre seus objetivos
garantir a segurança pessoal e coletiva através da vigilância da população, da investigação de
crimes e da captura de criminosos. Dessa maneira, combinava funções judiciais com policiais
e, através da figura do intendente, representava o monarca absolutista e os três poderes:
legislativo, executivo e judiciário.

Em 1809, foi criada a Guarda Real da Polícia. Instituição militar organizada que tinha como
função principal “manter a ordem e perseguir criminosos” (HOLLOWAY, 1997, p. 47). A
Guarda Real se caracterizava pela violência e brutalidade. “Outro ponto de semelhança com
os padrões posteriores é que a polícia se organizou desde o início como instituição militar de
modo que sua força coercitiva podia ser controlada pela disciplina, canalizada pela hierarquia
e dirigida a alvos específicos” (ibid, p. 50).

40
A população, em sua maioria, escrava ou de pobres livres, ocupava o espaço público da
cidade do Rio de Janeiro, capital do império nessa época. E foi em função do controle sobre o
comportamento expresso através dos corpos desses indivíduos que fora criada a Guarda Real.
Essa compartilhava competência tanto quanto era subordinada à Intendência.

O surgimento da instituição policial no Brasil coincide com o reconhecimento de um espaço


público que deve ser controlado e vigiado, que não é de todos, mas que é do Estado. A polícia
como uma instituição estatal e jurídica responsável pelo controle social e pela manutenção da
ordem pública passa a assumir o poder que era utilizado privadamente e que antes estava
somente nas mãos dos proprietários de escravos. Em oposição à “ordem do rei”, é a
manutenção da “ordem pública” que passa a ser altamente prezada. (HOLLOWAY, 1997).

Além disso, as características de um sistema de governo altamente burocratizado e desigual


impuseram aos mecanismos de controle estatal, já de início, uma maneira de ser e agir
constituinte das culturas jurídica e policial. Dessa maneira, desde então,

as práticas da polícia, percebidas pela cultura jurídica e pela cultura policial como
características da polícia, resultantes de sua prática, são informadas por representações
hierarquizadas e holistas da sociedade, presentes na cultura jurídica e em nosso pensamento
social sob a forma de processos inquisitoriais de produção e reprodução de certezas e verdades
que levam à resolução de conflitos. (KANT de LIMA, 2009, p. 42)

Foi a partir de decorrentes processos de reforma e atualização das instituições policiais ao


longo da história54, que as instituições acima citadas deram origem às atuais Polícia Civil e
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

A Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro55 tem como característica o controle do espaço
público, esse domínio “apropriado particularizadamente, seja pelo Estado, seja por outros
membros da autoridade autorizados ou não por ele” (KANT de LIMA, 2000, p. 110). Sua
organização interna é militarizada e altamente hierárquica, e apropriando-se de forma
particularizada do espaço público, impõe regras e identifica conflitos com o intuito de

54
Ver Holloway, 1997 e Bretas, 1997.
55
Com mais de dezessete nomes no decorrer de sua história, a Polícia Militar, tal como conhecida no Rio de
Janeiro foi criada em 15 de março de 1975, através da Lei Complementar nº20, na qual o Governo Federal
determinava a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. Segundo essa lei, a nova unidade da
federação receberia o nome de Estado do Rio de Janeiro e, conseqüentemente, a fusão de suas Corporações
policiais-militares, que fez surgir a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
41
suprimi-los. Sendo que, nessa identificação, interpreta os conflitos e os indivíduos neles
envolvidos, assim “sua legitimidade estará associada a sua interpretação do que deseja o
Estado para a sociedade, não ao que a sociedade deseja para si mesma” (KANT de LIMA,
2009, p. 246).

É a legitimidade dessa função interpretativa dos conflitos sociais que posiciona a polícia,
assim como o Estado, como externa à sociedade. Dessa maneira, a Polícia Militar é um
mecanismo estatal e externo de controle social. Numa sociedade desigual, como a do Rio de
Janeiro, onde seus elementos, quero dizer, os indivíduos, estão posicionados inferior ou
superiormente uns em relação aos outros, é a polícia que deve manter essa coesão.

Considerando a imagem construída por Kant de Lima, a sociedade representada juridicamente


como uma pirâmide tem no espaço público um “espaço de superposição desordenada de
interesses competitivos e excludentes” (id, p. 245) e a polícia, considerando sua função
interpretativa de decifrar o lugar de cada indivíduo nesses espaços desordenados e
superpostos da estrutura social, busca “verificar, caso a caso, como a regra geral se
particulariza na aplicação no caso específico” (id, p. 246). O enfrentamento e uso da
violência56 têm sido os principais mecanismos de controle utilizados pela Polícia para a
manutenção da estrutura social.

Por sua vez, à Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro são atribuídas funções auxiliares e,
por isso, subalternas ao judiciário. A Polícia Civil é, teoricamente, responsável por apurar
preliminarmente os fatos em casos de crime e executar serviços públicos administrativos. Na
prática, realiza investigações sob seus próprios critérios e produz registros públicos de caráter
altamente burocratizado que auxiliarão os procedimentos judiciários policiais (KANT, 1995;
PAES, 2006). Assim, identifica-se um tipo de contaminação da investigação pelas técnicas de
vigilância que são simultaneamente atribuídas a essa polícia.

56
Tal violência tem figurado em filmes sobre as práticas policiais no Rio de Janeiro. O maior sucesso de público
da filmografia brasileira, é o filme “Tropa de Elite 2: o Inimigo agora é outro” (2010) cujo enredo dá seqüência
a história do Coronel Nascimento, que fora capitão no Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio
de Janeiro, e que passa a fazer parte do quadro de subsecretários da Secretária de Segurança Pública. De acordo
com o diretor, José Padilha, os filmes Tropa de Elite 1 (2007) e 2, junto com o documentário “Ônibus
174”(2002) compõe uma “Triologia da corrupção”. Os três filmes inspiram-se em histórias reais e, ao retratarem
momentos da vida dos policiais “Mathias” e “Nascimento”, destacam elementos como a violência social e
policial, a relação entre tráfico e polícia, as redes de corrupção no governo e as técnicas de preparo da polícia
militar.
42
Na realização dessas atividades, “aplicam-se critérios diferentes conforme a existência de
relações („malhas‟) entre a pessoa envolvida e as autoridades do Judiciário e policiais”. (KANT
DE LIMA, 1995, p. 2) As malhas representam a hierarquia existente nas práticas policiais que se
situam em um nível inferior, e extra-oficial, da hierarquia judicial. E as regras que, “embora
sejam as mesmas para todos, não se aplicam a todos da mesma maneira, mas de maneira
particular a cada um” (KANT de LIMA, 2003, p. 247). Desse modo, a polícia não estabelece
critérios explícitos e universais em relação as suas práticas, mas sim critérios secretos e
particulares, que reforçam as idiossincrasias construídas pela tradição inquisitorial.

Em nome da busca de uma “verdade real”, os argumentos de autoridade prevalecem sobre a


autoridade dos argumentos. As práticas institucionalizadas na polícia são produto de tensões
entre os princípios hierárquicos, presentes na legislação penal e nas representações da
sociedade; e igualitários, expressos na Constituição Federal e num ideário social. Esse
paradoxo revela a disputa e complementariedade da sociedade e da instituição.

A atividade policial reproduz a estrutura social brasileira e regula-se por meio do tratamento
desigual que concede às ocorrências. Um serviço público que se submete à manipulação
particular dos recursos de que dispõem seus agentes, o que também lhe permite a assim
continuar existindo (PAES, 2006, p.55).

A estrutura social piramidal corroborada pelo judiciário seja nas representações, seja no
próprio código de processo penal, é obrigada a se adequar à imagem do paralelepípedo, que se
refere à estrutura legal constitucional brasileira e corresponde às sociedades igualitárias, como
a estrutura social dos Estados Unidos da América. “Os modelos de controle social, no Brasil,
apresentam-se, assim, ambíguos, como se tivéssemos uma pirâmide encaixada em um
paralelepípedo” (KANT de LIMA, 2009, p.252).

Em relação às atividades executadas no âmbito desse paradoxo, encontra-se a Polícia Civil,


realizando funções tanto administrativas como judiciárias. Essa, através de critérios próprios
de vigilância e das técnicas de “reconhecimento” de tipos criminais acaba por contaminar a
sua atividade judiciária.

Por seus poderes discricionários na aplicação da lei, os policiais desempenham suas atividades
agindo conforme uma ética policial (KANT, 1995; PAES, 2006). Ética policial essa que se
define como um conjunto extra-oficial de regras que servem para o exercício de uma
interpretação própria da lei. “Essas práticas policiais discricionárias permitem ao sistema

43
judicial permanecer „inocente‟ de quaisquer práticas discriminatórias e injustas na aplicação
da legislação penal no Brasil” (KANT de LIMA, 1995, p. 141). E são as malhas, a lógica
corporativa da instituição policial, que permitem que essa ética própria seja posta em prática.

Além das atividades investigativas da polícia, estão diretamente relacionadas a ela as


atividades burocráticas. Tal como a forma de construção judiciária, a maneira como os
registros policiais são realizados revela a primazia do cartório. Onde os registros são
“reduzidos a termo” e feitos sob sigilo, sendo materializados em documentos que para que
tenham validade legal são autenticados via carimbos e assinaturas. Destarte, os cartórios
funcionam, especialmente, como instrumento de poder e “alteram o caráter impessoal das
regras públicas, introduzindo elementos personalistas e particularizantes ao funcionamento do
serviço” (MIRANDA, 2000, p.59-60). Quer dizer, o interesse do Estado e dos funcionários
púlbicos tem predomínio sobre o interesse público, e a função pública é privatizada, pois
atesta, testemunha, registra e cobra atos em nome do Estado (KANT de LIMA, 2003).

Como observado por Paes (2006) em relação aos procedimentos dos policiais de uma
delegacia no que concerne às suas investigações, o vínculo que os policiais estabelecem com
os registros e procedimentos é puramente formal. Como observei no IML, e destaquei no caso
citado, “a pouca vinculação do registro com a parte investigativa, faz com que as informações
sejam extremamente fragmentadas.” (p. 64.) Tal fragmentação faz com que a tramitação
pareça lenta, pois a lógica que estabelece essas práticas está orientada mais pelos
procedimentos característicos do ritual burocrático de que decorre a atuação policial do que
das práticas investigativas (KANT de LIMA, 1995).

Tendo em suas atividades, principalmente a produção de registros de caráter cartorial o IML,


coerentemente com as idiossincrasias da Polícia Civil como um todo, se caracteriza muito
mais enquanto uma polícia judiciária do que enquanto uma polícia científica. Sob essa
perspectiva, me pareceu relevante destacar o diálogo com os policiais João e Felipe e as
circunstâncias em que ele ocorreu. Para além do aspecto médico e científico de controle dos
mortos enquanto corpos, se faz presente o controle jurídico e policial exercido sobre os corpos
mortos enquanto corpos de indivíduos. A burocracia pública expande seus limites de ação e de
controle marcando os mortos através dos registros correntemente produzidos nas funções do
IML no exercício desse controle.

A reforma da Polícia Civil se iniciou no ano de 1998, com a implementação do Programa

44
Delegacia Legal - PDL, que visava impor nova forma de gestão de organização da polícia,
partindo da reestruturação dos edifícios das delegacias, passando pela informatização dos
registros, até a realização de um atendimento social ao público e a constante formação dos
policiais beneficiada com uma gratificação mensal nos salários. Essas modificações tinham
como objetivo melhorar as condições de trabalho dos policiais e, por conseqüência, as
condições de atendimento ao público, agilizando os atendimentos e as etapas investigativas
com informações disponibilizadas e a possibilidade de exercício de mecanismos de controle
da atividade policial.

O Instituto Médico-Legal, desde outubro de 2009, segue os moldes do PDL. Suas novas
instalações são padronizadas de acordo com o layout proposto pelo Programa; o balcão de
atendimento do Serviço de Necrópsia é composto por assistentes sociais, psicólogos e
pedagogos; todo o sistema de registros é informatizado e os policiais devem fazer os cursos de
formação disponibilizados virtualmente mesmo que na época da pesquisa, não recebessem a
gratificação.

Apesar da proposta interessante, e interessada, de interferência no caráter cartorial das


delegacias de polícia, por conseqüência da Polícia Civil enquanto corporação, rompendo com
as apropriações particularizadas das informações, diversos trabalhos etnográficos vem
demonstrando resistências onde a não internalização dos procedimentos impostos pelo PDL
revela um processo de ressignificação e adaptação por parte dos policiais da nova realidade de
trabalho. Mas, principalmente, de ressignificação e adaptação dessa nova realidade de
trabalho por parte dos policiais, orientados pelas características cartoriais aqui explicitadas e
discutidas.

A Polícia Técnico-científica é o conjunto de órgãos responsável por prestar apoio à


investigação policial e pela produção de provas técnicas, também chamadas de provas
periciais, que devem orientar as decisões judiciais. Em geral, está vinculada às Secretarias de
Segurança Pública Estaduais. No Rio de Janeiro, está submetida a Polícia Civil e é o conjunto
de órgãos da polícia civil que auxilia tecnicamente nas investigações. Além do IMLAP,
compõem esse setor: o Instituto de Criminalística Carlos Éboli57 – ICCE; o Instituto de

57
Carlos Éboli, italiano de Nápoles, viveu durante o século XIX, médico e importante figura política na região
Serrana do Estado do Rio de Janeiro. Dentre suas principais intervenções estão a fundação do Instituto
45
Identificação Félix Pacheco58 – IIFP; o Instituto de Perícias e Pesquisa em Genéticas Forense
– IPPGF; e os Postos Regionais de Polícia Técnico-Científica59.

O IML, ligado aos outros institutos da Polícia Técnico-Científica, através dos seus
procedimentos de identificação dos corpos construídos pela Medicina-Legal, e da técnica do
exame que impõe sua marca do exercício policial de poder (FOUCAULT, 2007; 2001), faz
parte do “conjunto de técnicas de controle por meio das quais o Estado se constitui,
identificando indivíduos, controlando a propriedade de bens e mapeando os espaços.”
(FERREIRA, 2007, p. 28).

Medicina-Legal

No momento em que a Medicina-Legal se instituía no Brasil, o poder do saber médico era


crescente, e esse passou a confrontar o Direito no que se refere à comprovação da existência
do crime e punição do criminoso (JACÓ-VILELA et al, 2005).

Estamos já em fins do século XIX e o Direito Positivo é reforçado pelos trabalhos de César
Lombroso (1835-1909), criador da Antropologia Criminal, de Henrique Ferri (1852-1934), da
Sociologia Criminal, e de Rafael Garófalo (1852-1934), este sendo o primeiro a usar a
denominação “Criminologia” para as Ciências Penais. Serão estas as principais influências no
pensamento que irá constituir a Medicina Legal no Brasil, especialmente as ideias introduzidas
por Lombroso (p. 19).

Com o surgimento desta “escola” de Direito Positivo, novas questões surgiam, “significa o
início de um período de disputa entre as instâncias jurídica e médica, pois parece haver uma
exclusão mútua, uma tentativa de substituir um modo de controle pelo outro” (id, p.15).

A Medicina-Legal, surgida entre os séculos XVIII e XIX, é considerada a ciência que se


formou a partir da junção de dois saberes: a Medicina e o Direito. Como desenvolvido por
Foucault (2007, 2005, 2004, 1999), está-se diante de uma nova forma de comprovação da

Hidroterápico e o incentivo a fundação do Colégio de Jesuítas, ambos em Nova Friburgo. Faleceu em 1885.
58
Fêlix Pacheco, jornalista e político, nasceu em 1879 e foi o fundador e primeiro diretor do Gabinete de
Identificação e Estatística da Polícia do Distrito Federal.
59
Os IML, exceto a sede que fica na cidade do Rio de Janeiro, funcionam em Postos Regionais de Polícia
Técnico-Científica - PRPTC. Tais postos concentram as atividades do Instituto Médico-Legal, do Instituto de
Identificação Civil e do Instituto de Criminalística. Em ordem alfabética, são esses: Angra dos Reis, Araruama,
Barra do Piraí, Cabo Frio, Campo Grande, Campos dos Goytacazes, Duque de Caxias, Itaboraí, Itaperuna,
Macaé, Nova Friburgo, Nova Iguaçu, Petrópolis, Resende, Rio de Janeiro, Santo Antônio de Pádua, São
Gonçalo, Teresópolis, Três Rios e Volta Redonda.
46
“verdade” onde a ciência surge enquanto critério para a investigação e construção de provas
para o inquérito. Tal deslocamento, fruto das transformações políticas e sociais desse período
produto de eventos como a Revolução Francesa; a Reforma Protestante; a Revolução
Industrial e as chamadas Revoluções Burguesas, possibilitou a emersão de uma nova
linguagem onde o modo do discurso médico se transformou.

Nesse período, o discurso médico deixou de lado as estratégias utilizadas no Antigo Regime e
no absolutismo monárquico e religioso, e passou a se referir à centralidade do corpo e à
articulação das patologias com a vida e os grupos sociais. Os médicos passam a adquirir
maior poder e a medicina a atuar de forma mais concreta nos doentes.

Nesse cenário de transformação, a Medicina-Legal se apresenta enquanto um subcampo da


Medicina, que não se reconhecia enquanto área de conhecimento científico até meados do
século XVIII. O médico legista aparece como um novo elemento, sujeito híbrido da Medicina
e do Direito, com poderes legais, de construção de verdade e de intervenção nos tribunais,
porém vinculado à área da saúde por sua formação médica e atividade direta relacionada aos
corpos humanos. Como me afirmou um perito médico-legista do IML, também professor
universitário da disciplina de Medicina-Legal: “Eu ensino Direito aos médicos e Medicina
aos advogados”. Desta forma, a Medicina-Legal se remete, ao mesmo tempo em que se
diferencia em função de suas especificidades, ora ao campo da Medicina, ora ao campo do
Direito (PESCAROLO, 2007).

A institucionalização desse campo se deu ao longo do século XIX. No Brasil, a primeira vez
que se instituiu a obrigatoriedade da avaliação médica através de perícias que produzissem
provas periciais para embasar os julgamentos dos juízes em delitos criminais, principalmente
em homicídios, foi no Código Penal brasileiro de 1830 (CUNHA, 2002). Em 1856 a Medicina
Legal tornou-se parte da polícia com a criação de uma assessoria médica na Polícia da Corte,
quando foi criado o necrotério do Rio de Janeiro.

Foi a partir da constituição dos Institutos Médico-Legais, após a criação da cadeira Medicina-
Legal nas universidades de Medicina, que os procedimentos médicos passaram a ocupar
espaço na investigação policial e nas decisões judiciais. Assim, a relação com o saber médico-
legal, sob o controle policial, passou a adquirir poder decisório no que concerne as
determinações sobre a morte e a vida de indivíduos

47
É através de Afrânio Peixoto60 que o Gabinete Médico-Legal, criado em 1900, foi
reformulado. Em 1907 foi transformado em Serviço Médico-Legal, tendo Afrânio Peixoto
como seu diretor. O Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, nos moldes existentes até hoje,
surgiu em 1922. Atualmente, cada Estado da República Federativa do Brasil tem o seu
Instituto Médico-Legal, todos subordinados à Polícia Técnico-Científica.

O estabelecimento dos métodos médico-legais para a construção de verdades jurídicas sobre


os corpos legitimou os Institutos Médico-Legais como as principais instituições de expressão
do saber constituído no campo da Medicina-Legal. Assim, além de realizarem tais
procedimentos, os IML são também locais de reprodução de conhecimento, onde são
lecionadas aulas práticas aos futuros médicos, alguns deles podendo vir a ser tornar peritos
médico-legais, ou técnicos que atuam nesse campo.

Portanto, pode-se afirmar que essa instituição, organizada por indivíduos que manipulam
cadáveres ou cujas práticas estão rodeadas pelo conhecimento produzido a partir dos mortos,
apresenta uma relação de poder com a sociedade ao mesmo tempo em que essa relação de
poder é expressa na sociedade. O IML é um dos laboratórios sociais (DOUGLAS, 2007;
LATOUR, 2000; LATOUR & WOOLGAR, 1997), uma instituição legitimada e estabilizada.
Nos termos da antropóloga Mary Douglas (2007) “as instituições conferem uniformidade” (p.
71) ao que expressam e são construídas continuamente por aqueles que a compõem, além de
reforçar as categorias naturalizadas e tornar visíveis situações particulares. (LENOIR, 1998).

Contudo, como apresenta Foucault, a tecnologia sobre o saber do corpo é difusa, formada por
discursos descontínuos e não sistematizados. Nas instituições o poder é exercido mais do que
possuído; “não é o 'privilégio' adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela
posição dos que são dominados” (2007, p. 26). Ou, como dito por um médico perito do IML,
“a Medicina-Legal brasileira é formada por vaidades. Aqui a gente tenta fazer a Medicina-
Legal, mas se você for em outro estado, em outro IML, eles vão dizer que é lá que fazem
Medicina-Legal. Hoje, a gente ainda não tem nenhuma unidade.”

Nos termos de Bourdieu (1968), o conhecimento Médico-Legal é um “consenso no disenso”


que se conforma por uma variedade de coisas que apresenta, em determinado momento, um

60
Afrânio Peixoto, brasileiro de Lençóis – BA, nasceu em 1876, foi médico, literato e criminologista, aluno de
Nina Rodrigues, faleceu em 1947. Hoje, a sede do IML do Rio de Janeiro tem seu nome.
48
ponto em comum. Variedades essas que foram normalizadas principalmente pela Medicina e
pelo Direito Positivo, que compartilham e discutem as problemáticas obrigatórias no que se
refere ao controle e à identificação de padrões físicos e orgânicos comuns nos indivíduos.

O Instituto Médico-Legal

[…] a sociedade expulsou a morte, excepto a dos homens de Estado. Nada avisa já a cidade que se
passou qualquer coisa: o antigo carro mortuário negro e prateado tornou-se uma banal limusina
cinzenta, imperceptível na vaga da circulação. A sociedade deixa de fazer pausas: o desaparecimento de
um indivíduo já não afecta a sua continuidade.
Tudo se passa na cidade como se já ninguém
morresse (Aires 1988 vol. II, p. 310).

O Instituto Médico-Legal é onde a morte


ocorre. Lá os corpos encontram a morte,
através da medicina, da polícia, da justiça
e da medicina-legal e se transformam em
mortos. O IML é a caixa preta das
Imagem 3: Fachada do IMLAP
vítimas fatais da cidade do Rio de Janeiro.
Nenhum morto ingressa no IML por acaso. É entre os corredores do IML que as
conseqüências do considerado “o maior problema da cidade do Rio de Janeiro”61 são
administradas pela polícia. “Tudo se passa na cidade como se já ninguém morresse”, afirmou
Aires. No IML tudo se passa como se na cidade, todo mundo estivesse morrendo.

O Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto (IMLAP/IML) é uma das quatro instituições da


Polícia Civil do Rio de Janeiro que ilustra o grupo denominado Polícia Técnico-Científica.
Nesse instituto, são realizadas perícias médico-legais em corpos humanos com e sem vida.
Tais perícias são exames médico-legais para a construção de documentos públicos que
permitam estabelecer uma verdade jurídica.

Em relação aos corpos humanos com vida, são realizados exames em indivíduos que sofreram
algum tipo de violência culposa ou dolosa, ou que são objeto da ação das polícias (militar ou

61
De acordo com pesquisas estatística divulgada pelo IPEA, no ano de 2011, a “segurança pública” lidera a lista
de problemas identificados pela população seguida por questões como saúde, educação, desemprego e
corrupção. Além disso, é recorrente ler e ouvir em entrevistas de políticos que a violência, ou a segurança
pública, é destacada como o principal problema da cidade do Rio de Janeiro.
49
civil) ou outras instituições de controle com legitimidade jurídica. Assim, vítimas de estupros
(NADAI, 2011), atropelamentos, agressão física, acidentes de trânsito e detidos policiais ou
“apreendidos”, no caso de menores de idade, são examinados no IMLAP. Em todos esses
casos, os indivíduos estão vinculados a um registro de ocorrência da Polícia Civil em relação
ao qual são vítimas ou acusados. Ao final do desenvolvimento do processo originado por esse
registro, que tem a descrição das perícias enquanto provas, receberiam algum tipo de
reparação ou sanção.

No que se refere aos corpos humanos sem vida, são executados exames em cadáveres de
indivíduos que morreram vítimas de algum tipo de violência, ou que não tiveram a causa da
morte diagnosticada quando identificada a morte. Nesse caso, vítimas fatais de acidentes de
trânsito; projéteis por arma de fogo - PAF; perfuração por arma branca - PAB; incêndios;
afogamentos; atropelamento; desabamentos; envenenamento; suicídios; acidentes em geral;
ossadas; partes de corpos humanos - denominados despojos; cadáveres encontrados em via
pública, residência ou estabelecimento comercial; fetos; ou indivíduos que morrem em
estabelecimentos de saúde sem diagnóstico médico conclusivo têm seus corpos encaminhados
ao IMLAP. Os cadáveres, para ingressarem no IMLAP, estão relacionados a um registro de
remoção da Polícia Civil, que por sua vez inicia um registro de ocorrência e um inquérito
policial ou uma verificação preliminar de inquérito - VPI. Em relação a esses, os cadáveres
são vítimas. A conclusão do processo originado por esses registros, que também têm a
descrição das perícias enquanto provas, indicaria a causa; em quais condições ocorreu a morte
do indivíduo; e indícios para encontrar um culpado.

Cabe destacar que a diferença entre a abertura de um inquérito policial ou a abertura de uma
Verificação Preliminar de Inquérito – VPI, se dá pela existência no IML do Serviço de
Verificação de Óbito – SVO. Esse serviço é responsabilidade das Secretarias Estaduais de
Saúde e tem como objetivo confirmar a partir do exame necroscópico uma morte ocorrida por
causas naturais que não tenham sido identificadas durante o atendimento médico, ou ainda,
confirmar o caso de uma morte natural quando não há indicações médicas suficientes da
mesma. Em muitos municípios, o SVO é realizado nos próprios hospitais. No IML do Rio de
Janeiro, esse serviço compõe quase metade das necropsias realizadas cotidianamente pelos
policiais.

Na ocorrência de uma morte caracterizada pelo SVO encaminhada ao IMLAP, há a abertura


de uma VPI. Caso se comprove que a morte fora natural e que, portanto, não se tipifica um
50
delito penal, como, por exemplo, em relação aos cadáveres putrefatos, o registro é arquivado,
não sendo transformado em inquérito. Em sua maioria, são idosos que moram sozinhos e
falecem naturalmente em suas residências. Após dois ou três dias de processo de putrefação, é
comum, vizinhos identificarem a morte. Seja pela ausência de movimentação, seja pelo odor
exalado por cadáveres em decomposição. Também são casos de SVO encaminhados ao
IMLAP, pessoas que passaram mal e faleceram antes do atendimento médico seja em suas
residências, seja em unidades hospitalares. Nesses casos, após a realização do exame
necroscópico e a cartorialização da morte, não é considerada a necessidade de produção de
uma investigação policial sobre a morte.

O olhar ao IML enquanto laboratório social permite vislumbrar a atividade lá realizada como
uma prática especialmente pertinente que tem como propósito gerar informações sobre os
processos sociais. Como afirmado por Latour e Woolgar (1997) o fato científico estável e
estabelecido como "natural" e, portanto, verdadeiro, é o resultado de um processo de
construção que tem a peculiaridade de só se concretizar enquanto tal na medida em que é
capaz de apagar qualquer traço de si próprio.

Dessa maneira, a produção da morte como fato a partir da construção de cadáveres como
mortos, bem como a produção de qualquer verdade científica, depende necessariamente de
estratégias e procedimentos extremamente eficazes e poderosos que logrem eliminar os
vestígios da trajetória na qual ele foi produzido. É a materialização dos fatos, característica da
construção de verdade médica e policial, através da “inscrição literária” (LATOUR &
WOOLGAR, 1997), que formaliza os fatos e produz aquela realidade. Tal inscrição, essa
forma especifica de registrar os fatos, produz enunciados que dizem a “verdade”.

Como demonstrei até aqui, dizer se alguém está morto, ou não, é uma atividade social. A
institucionalização dos processos de morrer e da morte constitui uma série de práticas
científicas e burocráticas institucionalizadas que definem se uma pessoa está morta, se é um
cadáver. Assim, no IML, dizer se alguém está morto tornou-se uma atividade institucional.
Atividade essa realizada no IML-RJ a partir da combinação de saberes e poderes legitimados.
Como essas atividades se dão cotidianamente, descrevo no capítulo seguinte.

51
Capítulo 2 - Carne e Sangue

Foram muitas as vezes que, através dos registros do Livro de Óbito, acompanhei como estava
a movimentação na parte interna do Serviço de Necrópsia do Instituto Médico-Legal. O
balcão localizado na entrada principal do Serviço de Necrópsia era onde estava o livro e era
também o primeiro lugar pelo qual eu passava no IML e no qual, algumas vezes, permanecia.
As informações registradas no Livro do Óbito eram, por mim, complementadas com a
observação da presença de pessoas no hall de entrada. Assim, considerei o balcão um lugar
estratégico, pois, a partir dali, observava o movimento das pessoas e de entrada e saída dos
papéis e, por conseqüência, dos cadáveres.

Dali também era possível observar o movimento dos policias, afinal do mesmo balcão eu via
o corredor que dava acesso ao setor interno do Serviço de Necrópsia, aos vestiários, à copa e à
cozinha. Observava também o acesso ao subsolo onde ficava a sala de descanso dos policiais
do Setor de Itinerância e a porta de saída aos fundos do IML, por onde passavam os
declarantes com os policiais do Setor de Permanência para a realização do reconhecimento
de cadáveres. No hall de entrada também estavam as salas do Setor de Identificação e
Liberação de Óbtio – SILO, da Divisão de Homicídios e do Protocolo, setor responsável pelas
correspondências internas e externas do IML. Entre todos esses setores, funcionários do IML,
portando papéis, ou não, circulavam e eu os observava.

Enquanto observava, também era observada. Muitas vezes os policiais que me viam
“esperando as coisas” por ali, me indicavam como estava o fluxo de trabalho e teciam
comentários sobre o mesmo: “Flavia, chegaram seis! Vou me lascar agora, tudo com tiro!”
foi um dos comentários que recordo ter feito Thiago, um dos técnicos de necrópsia do Setor
de Cortes, quando se dirigia à parte interna do Setor de Necrópsia após o jantar. E, assim,
enquanto faziam comentários sobre o trabalho que realizavam, teciam comentários sobre o
meu trabalho “Oh, ela está anotando tudo ali”!62

Do tudo que anotei, foram as práticas rotineiras observadas o que mais deu forma e corpo ao

62
Em sua tese, Eilbaum (2010) demonstra como seu caderno de campo era motivo de inquietação aos seus
interlocutores e, aos poucos, passou a ganhar utilidade no campo, quando eram solicitadas consultas referentes as
suas notas que se tornaram “uma espécie de memória sobre certos dados que eu poderia ter anotado” (p. 129-
132),. Assim mesmo, as consultas não eram sempre satisfatórias pois tudo anotado pela antropóloga dizia
respeito a informações que aos interlocutores se demonstravam “vagas, ou melhor, anônimas demais”. Para nós,
antropólogos, as anotações no caderno de campo se referem a “eventos significativos”, enquanto aos
interlocutores tudo o que descrevemos apenas faz parte da rotina.
52
meu diário de campo. A rotina que observei ser vivida pelos meus interlocutores foi o que me
permitiu empreender a análise das práticas e das “atitudes prescritas” (Radcliffe Brown, 1973;
Malinowski, 1978). Nesse capítulo, descrevo os setores do IML e explicito a circulação de
corpos e papéis que movimentam - e se movimentam - na burocracia. Dessa maneira, “a carne
e o sangue” do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro são explicitados e os caminhos por
eles percorridos “preenchem o esqueleto vazio das construções abstratas” (MALINOWSKI p.
29, 1978).

Caminhos que no IML realizam os atos de instituição (BOURDIEU, 2008) da morte enquanto
acontecimento nos registros públicos. Caminhos que levam cadáveres em mesas por
corredores ao mesmo tempo em que constroem um labirinto de papéis (TISCORNIA, 2009) e
de procedimentos médicos-legais e burocráticos. Caminhos que fazem parte da complexa
malha formada pelo sistema de justiça criminal brasileiro (KANT de LIMA, 1995) e
transformam o acontecimento morte em registro. Caminhos que, após cruzados por corpos
sem vida, constroem mortos.

Assim, a partir da descrição das trajetórias dos corpos e dos papéis dentro da instituição,
analiso as práticas dos interlocutores e como a institucionalização da morte através do
controle dos corpos mortos, discutida no capítulo anterior, possibilita a existência de uma
burocracia pública que determina e institui um corpo como morto.

Entre linhas

Os processos de institucionalização da morte, como explicitados anteriormente, possibilitam a


existência de uma burocracia estatal que define um corpo sem vida enquanto morto. O Serviço
de Necrópsia do IML se apresenta enquanto o espaço institucional, onde a liminaridade
(TURNER, 2005a) de um cadáver se faz presente tanto quanto é superada. Nesse sentido,
proponho que são os procedimentos de construção de significados para os cadáveres,
realizados nesse espaço institucional, que permitem afirmá-los enquanto tais. Logo, é nessa
burocracia pública estatal, o IML, que corpos sem vida atravessam, institucionalmente, a linha
de divisão entre os vivos e os mortos.

Arnold Van Gennep, etnógrafo alemão, ao olhar o rito como fenômeno social, desenvolveu
um interessante campo de análise, onde o ritual passa a ser tomado como um dos elementos
principais para a compreensão da vida social. Como destacado por Roberto DaMatta na
apresentação da versão traduzida ao português de “Les rites de Passage” (2011), Van Gennep
53
concebia a sociedade como uma estrutura internamente dividida, mas que se constituía pelo
dinamismo classificatório de deslocamentos dos indivíduos no tempo e no espaço. Tais
deslocamentos seriam como gradações do mundo social e, cada rito, um grau na escala ritual
mais ampla. Assim, os rituais apresentariam um mecanismo de funcionamento visando a
classificação. Olhar a sequência desse mecanismo de funcionamento é o que permite
compreender os denominados “ritos de passagem”.

Aqui, me interessa particularmente o que Van Gennep destacou em relação aos ritos de morte
enquanto ritos de passagem. Nesses, o luto é um “estado de margem para os sobreviventes”
(p. 129), que por vezes coincide com o período de margem dos mortos. Sobreviventes e
mortos se localizam na margem; indivíduos com vida em busca da reintegração no mundo
social; e indivíduos sem vida buscando a agregação no mundo dos mortos. Nesse sentido,
vivos e mortos compõem um mesmo grupo social que se situa entre dois mundos, o mundo
dos vivos e dos mortos.

Na estrutura social, esse grupo se localiza no que Victor Turner (2005a) denominou de
“situação interestrutural” (p. 137). Nos momentos em que o indivíduo ou os grupos sociais
não se localizam nem do lado de cá e nem do lado de lá, “betwixt and between”, a
liminaridade se caracteriza por ser o momento de passagem interestrural.

Ora, a linha que divide é a mesma que separa. Como argumentado por Pierre Bourdieu
(2008), o rito tem como efeito essencial “separar aqueles que já passaram por ele daqueles
que ainda não o fizeram.” (p. 97), e é o que institui a diferença entre os que foram e não foram
atingidos pelos efeitos da linha de separação. Bourdieu propõe que, nesse sentido, deve-se
pensar em “ritos de instituição”. Tais ritos consagram ou legitimam os limites. Mais do que
olhar à passagem, esse autor propõe que focalizemos a linha. E, vai além, não olhar apenas o
que está de um lado ou de outro da linha, os sobreviventes e os mortos, nos termos de Van
Gennep. Mas os que estão fora das possibilidades de estarem de um dos lados dessa linha, os
vivos.

Os ritos de instituição que consagram os cadáveres realizam uma definição legítima dessa
classificação63. No entanto, não podem ser tomadas como definições naturais. Se há alguns

63
Nos termos de Mary Douglas (2010), o rito de passagem cria uma ambigüidade e essa sempre é vista como
impura. Assim, mortos e sobreviventes em luto, enquanto fora das classificações estabelecidas no sistema
classificatório, aguardam a definição de suas novas classificações e se localizam num espaço invisível
socialmente, num espaço de impureza e perigo.
54
indivíduos, vivos ou mortos, aguardando a definição de suas novas classificações, há outros
indivíduos vivos que definem quais classificações são essas. Quero dizer, as linhas e as
classificações são construídas.

A construção dessa linha se dá por sujeitos determinados, nessa dissertação pelos funcionários
do IML, “porta-vozes autorizados” (BOURDIEU, 2008) desse rito de instituição que o
mesmo tempo em que determinam e instituem os cadáveres, também comunicam aos
sobreviventes e a outras instituições essa nova definição.

A partir da maneira como são realizadas as operações de nomeação, classificação e instituição


do IML, que foram por mim tomadas como objeto, observei que a liminaridade proposta por
Van Gennep e Turner nos estudos de ritos de morte, não se inscreve nas práticas cotidianas
dos meus interlocutores, os funcionários do IML. Eles constroem as linhas e as classificações
institucionalmente e são objeto de crença daqueles que se inscrevem na liminaridade, mas
nem sempre passíveis dessa.

Os profissionais que trabalham no IML, enquanto “porta-vozes autorizados”, conformam essa


instituição e é por meio dela que garantem e certificam sua legitimidade. Essa série de
procedimentos rotineiros e burocráticos que constrói e constitui as linhas entre vivos e mortos
e define os corpos sem vida enquanto mortos, reforça o IML enquanto uma instituição. Uma
instituição, que como proposto por Bourdieu (2008), “está fundada na crença coletiva,
garantida pela instituição e materializada pelo título ou pelos símbolos, como galões,
uniformes e outros atributos, e não em sua crença ou menos ainda em sua pretensão singular”.
(p. 103). Uma instituição cujos limites burocráticos e simbólicos extrapolam sua influência e
consolidam sua importância ao construir os mortos.

Tais profissionais, policiais civis em sua maioria, lidam cotidiana e rotineiramente na


construção de corpos sem vida enquanto mortos. São agentes que detêm o poder autorizado
sobre a morte. A eficácia ritual de seus atos é possível, não apenas pela “crença de todos”
como afirma Bourdieu (2008), mas também pelo poder exercido pela instituição da qual
fazem parte.

agindo em seu próprio nome ou em nome de um grupo mais ou menos importante numérica e
socialmente, quer transmitir a alguém o significado de que ele possui uma dada qualidade,
querendo ao mesmo tempo cobrar de seu interlocutor que se comporte em conformidade com
a essência social que lhe é assim atribuída. (id. p. 82).

55
Assim, nos termos desse autor, são detentores de uma autoridade simbólica, porta-vozes do
Estado e, por conseqüência, do que é publico. Em nome da instituição, e como vou explicitar
a partir daqui, definem a morte e matam os mortos.

A remoção

Como já explicitei, para que um cadáver chegue ao IML, a morte deve ter sido causada por
alguma motivação violenta; sem algum esclarecimento natural; ou sem uma explicação
médico-patológica. Vítimas fatais de acidentes de trânsito, projéteis por arma de fogo - PAF,
perfuração por arma branca - PAB, incêndios, afogamentos, atropelamentos, desabamentos,
envenenamentos e suicídios fazem parte do primeiro grupo. Ossadas; partes de corpos -
denominados despojos, cadáveres sem sinais de explícitos de violência encontrados em via
pública, residência ou estabelecimento comercial, e fetos compõe o segundo grupo.
Indivíduos que morrem em estabelecimentos de saúde sem diagnóstico médico conclusivo
também têm seus corpos encaminhados ao IML para que seja realizado o Serviço de
Verificação de Óbito (SVO), e fazem parte do terceiro grupo.

A partir do conhecimento da existência de um cadáver dentro das condições acima descritas, a


delegacia correspondente à área circunscrita onde esse foi encontrado produz a Guia de
Remoção de Cadáver – GRC, e informa para a Coordenação do Serviço de Remoção de
Cadáveres – CSRC. Esse é um
órgão da Secretaria de Defesa Civil
Estadual - SEDESC, submetido ao
Corpo de Bombeiros Militar do
Estado do Rio de Janeiro -
CBMERJ, que é responsável por
todas as remoções de cadáveres
solicitadas pela Polícia Civil
através de delegacias.

Dois bombeiros se dirigem, no


rabecão, à delegacia para buscar a Imagem 4: Rabecão
GRC. O rabecão é um veículo da Defesa Civil e o único transporte no Estado do Rio de
Janeiro autorizado para a remoção dos cadáveres que chegam ao IML. Esse é um carro
contém de quatro a seis gavetas para o transporte de cadáveres na porta-traseira, uma porta

56
lateral de correr onde estão: um tanque d‟água com capacidade para cinco litros com torneira,
enxada, pá e sacos pretos; três lugares na parte da frente; sirene e auto falante. Além de
enxada, pá e sacos pretos, são também materiais de trabalho da equipe do rabecão: luvas;
capa; máscara e óculos de proteção. Tais instrumentos são significativos na rotina de trabalho
dos bombeiros do rabecão pois referem-se à proteção individual de cada um, mas também à
identificação de qual tipo de trabalho é realizado por aqueles profissionais.

Muitas vezes identificados como urubus ou abutres64, os bombeiros do rabecão sempre se


dirigem ao que, no jargão jurídico-policial, se denomina local do fato. Os urubus e abutres são
aves que se alimentam, principalmente, de animais mortos e agonizantes. Considera-se que
eles são importantes colaboradores na limpeza do meio ambiente, pois, seus hábitos
alimentares necrógafos, isto é, de se alimentarem de carnes em decomposição, sanam o ar
desse tipo de material. Da mesma maneira, os bombeiros do rabecão, que coletam pela cidade
cadáveres e os encaminham ao IML, sanando a vida social de mortos. No entanto, se em
determinados momentos, esses bombeiros lidam de forma distante, objetiva e racional com a
morte, em outros, demonstram outro tipo de racionalização.

Enquanto realizava trabalho de campo nessa instituição, houve um incêndio em uma


residência que vitimou fatalmente duas criancas, um bebê de oito meses e seu irmão com sete
anos de idade65. Os bombeiros, ao chegarem na CSRC da remoção, contavam emocionados as
condições que definiram como “precárias” em que viviam as crianças. A residência, um
quitinete no município de Nilópolis, região metropolitana do Rio de Janeiro, teve o quarto e
parte da cozinha incendiados. Na remoção, o bebê de oito meses foi levado ao IML na parte
da frente do rabecão. Enrolado no saco preto, esse cadáver foi carregado no colo pelo
bombeiro.

64
Em 2010, foi lançado o filme argentino „Carancho‟, em português, Abutre. Cujo personagem principal é um
advogado especializado em indenizações por acidentes rodoviários. Sua principal atividade profissional é ir aos
locais de acidentes, hospitais e delegacias em busca de clientes e, posteriormente, intermediar as relações das
vítimas/clientes com a polícia, juízes e companhias de seguro.
65
Como noticiado no site UOL: “Um incêndio iniciado às 9h45 da manhã desta quarta-feira (25) no município
de Nilópolis, na Baixada Fluminense, causou a morte de duas crianças e feriu outras duas. Anderson Pereira de
Souza, de 7 anos, e Ana Clara Antunes de Souza, de 8 meses, não resistiram aos ferimentos. Eduarda Antunes
Brás Santos, de 8 anos, e Miguel Antunes de Souza, de 3 anos, foram encaminhados ao Hospital Souza Aguiar,
no centro da cidade do Rio de Janeiro, e estão internadas em estado grave no Centro de Tratamento de
Queimados Infantil (CTQI) do hospital. Em Nilópolis, o fogo atingiu uma quitinete à rua Antônio Félix, 840,
com dois pavimentos, queimando totalmente o quarto e parcialmente a cozinha. Fizeram o socorro no local três
carros com dez bombeiros do quartel de Nilópolis.” (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-
noticias/2010/08/25/rj-registra-tres-incendios-hoje-duas-criancas-morreram.htm)
57
Em outras situações, como quando houve a “tragédia do Bumba”66, que vitimou fatalmente
mais de duzentas pesssoas, “lugar de seis, virava doze!”, como um dos meus interlocutores
me relatou. Nessa situação, o objetivo principal era remover os cadáveres o mais rápido
possível. Quanto antes fossem removidos corpos a céu aberto, melhor, pois assim se evitava
que o processo de decomposição se iniciasse e que o cheiro expelido pelos cadáveres atraísse
urubus e abutres de verdade. Nessa ocasião, independente da sensibilidade dos bombeiros, a
racionalização que imperou foi a de realizar o trabalho de forma ágil. A visibilidade do caso
modificou a maneira como o trabalho desses profissionais foi desenvolvido.

A Guia de Remoção de Cadáveres

A GRC, emitida por delegacias, apresenta diferenças em sua apresentação se realizada em


delegacias do Programa Delegacia Legal - PDL, ou delegacias “tradicionais”. As poucas que
ainda são preenchidas no âmbito de delegacias tradicionais são feitas manualmente e contam
com papel carbono para a cópia em três vias, nas cores branca, amarela e azul. Uma para a
delegacia policial – DP, e duas para o IML, respectivamente. Já as preenchidas nas delegacias
do PDL, são digitadas e impressas em três vias num papel branco. Também nesse caso, uma
via é destinada à DP e outras duas ao IML.

Como apresentado no capítulo anterior, a polícia civil do Rio de Janeiro se caracteriza por sua
tradição inquisitorial e cartorial onde a produção de papéis apresenta centralidade nas práticas
cotidianas, já descrita por Kant de Lima (1995). E, como já mencionei, O PDL teve como
objetivo a implementação de um sistema informatizado que além de facilitar a circulação da
informação entre as delegacias e outras instituições da polícia civil, buscava diminuir a
quantidade de papéis produzidos no âmbito dessas burocracias. Todavia, ao longo deste
capítulo, demonstro como a permanência dessa tradição, apesar da implementação do PDL,
constrói o caminho burocrático institucional no IML. Assim, a GRC, através de suas três vias
e vinte e um itens, é o caminho de entrada para esse “labirinto institucionalizado”
(TISCORNIA, 2006) de papéis.

Dentre os vinte e um itens que compõem uma GRC, nem todos são preenchidos. Os campos
que são sempre preenchidos se vinculam muito mais ao trabalho dos profissionais em relação
aos cadáveres, do que às características dos cadáveres. Assim, os itens que indicam data; hora;
DP que solicitou a remoção; os números da GRC e do Registro de Ocorrência (RO); a quem

66
Sobre a “tragédia do Bumba”, ver nota 13.
58
se refere o cadáver (nome, caso identificado, e sexo); e a viatura do rabecão, o nome e o
número de matrícula do motorista são sempre preenchidos. Os itens que apresentam campos
de descrição das características do cadáver como cor da pele; cor e tipo de cabelo; se o
cadáver apresentava barba ou bigode; qual idade; e outras características externas, quase
sempre são deixados em branco, ou incompletos. E os itens que se referem ao fato da morte;
as consequências que esse fato provocou à morte; e em quais circunstâncias essa ocorreu são,
na maioria das vezes, completados com restrições como “a esclarecer” e “desconhecimento
da dinâmica dos fatos”.

Assim, a delegacia policial abre mão de determinar informações em relação à morte e ao


cadáver, se preocupando em cartorializar as atividades e os procedimentos dos bombeiros e
policiais em relação aos cadáveres. Muito mais do que os indicadores que possibilitam a
identificação do cadáver, o registro da GRC serve para a burocratização das atividades dos
profissionais. As respostas que se referem ao cadáver são deixadas para a o Instituto Médico-
Legal.

Após coletarem duas vias da GRC na delegacia, a dupla de bombeiros se encaminha ao local
onde está o cadáver. O corpo é disposto num saco preto e depositado numa das gavetas do
rabecão. O saco preto, “a veste do cadáver”, é um diacrítico67, um sinal que demonstra a
condição daquele corpo manipulado por esses bombeiros. O cadáver no saco preto é levado ao
IML. Nesse instituto, segue diretamente à entrada do Setor de Necrópsia, localizada, nos
fundos do prédio do IML. Lá, o bombeiro retira o corpo do rabecão e o deposita numa
bandeja na área externa do Setor de Necrópsia.

No IML, o policial do Setor de Permanência é o responsável por receber o corpo. Ele recolhe
a GRC com o bombeiro e leva o corpo à área interna do Setor de Necrópsia. Assim, o policial,
a partir da informação que fora trazida pelo bombeiro via GRC, inicia o procedimento de
registro do corpo e da institucionalização do morto no IMLAP.

67
Esse sinal explícito reforçou-se quando iniciei o trabalho de campo junto a equipe do rabecão e fui
presenteada com um saco preto. Dessa maneira, chamou minha atenção como os bombeiros demonstravam que a
partir dali, passaríamos a compartilhar de determinado universo de símbolos comuns.
59
Na Permanência

Vagner, policial do Setor de Permanência, com umas das vias da GRC na sala do seu setor,
preenchia o Livro de Entrada do Setor de Permanência.
Essa é uma pequena sala com duas portas de entrada, uma
através do corredor interno do Setor de Necrópsia, e outra
que dá acesso aos fundos do IML, posicionada junto à
entrada de cadáveres no mesmo setor. Além dessas portas,
a sala conta com um grande vidro do lado esquerdo, que se
assemelha a uma vitrine e permite visualizar o hall de
entrada dos cadáveres e uma televisão com acesso às
câmeras de controle interno situada nos fundos do IML,
que é como “outra janela, só que digital”, como me
Imagem 5: Corpos no saco preto
explicou Leonardo. Os policiais desse setor são como
porteiros do Serviço de Necrópsia.

Leonardo é o outro policial do setor. Estávamos no hall de entrada dos cadáveres, e ele, com a
outra via da GRC, buscava identificar qual correspondia a cada um dos quatro corpos que
entravam no IML. Três deles eram homens não identificados. “O mais queimadinho é a guia
XXXX (disse o número da guia)”, disse o motorista do rabecão. Leonardo, com a ajuda de Luis
Roberto, do Setor de Itinerância, virava os sacos pretos para que o zíper de abertura ficasse
para parte de cima. Leonardo sabia que o cadáver da mulher no saco branco era “o do Getúlio
Vargas68”. Abriu então, aos poucos, um dos sacos pretos. O homem havia sido baleado na
cabeça, mas não estava carbonizado.

O policial se encaminhou para a bandeja seguinte, novamente, abriu uma pequena parte do
zíper, o corpo estava carbonizado. Pela vitrine vejo que Vagner e o outro bombeiro deixam a
sala. Saindo pela porta que dá acesso aos fundos, e ainda subindo a rampa que dá acesso ao
hall de entrada dos cadáveres, o bombeiro gritou: “o com a cabeça estourada é o de
Marechal69”. Logo, o corpo visto no primeiro saco preto era “o de Marechal” e Leornado
concluiu que, o quarto cadáver era da GRC que restava. E assim, foram relacionados os quatro

68
Nos hospitais, às vezes, se utiliza o saco branco para a remoção de cadáveres. O “Getúlio Vargas” refere-se ao
hospital Estadual Getúlio Vargas que está localizado no bairro da Penha, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.
69
O bombeiro se referia ao bairro Marechal Hermes, bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.
60
cadáveres com os quatro registros.

Desse modo, mesmo não estando explícitas essas informações na GRC, os bombeiros
identificam e constroem narrativas sobre os cadáveres a partir das condições dos corpos, das
circunstâncias da morte desses, e do local de onde removeram os corpos.

Depois de saber quais são os corpos, o policial do Setor de Permanência amarra um pedaço
de papel onde constam: (1) nome – quando identificado nome próprio e sobrenome do
cadáver, caso contrário “não-identificado”; (2) número da GRC; (3) delegacia que solicitou a
remoção e o (4) Código de Permanência - CP (número atribuído ao corpo pelo IMLAP que
segue a lógica ordinal de entradas de cadáveres ao longo de um ano).

Esse papel está amarrado por um barbante numa pequena placa de metal onde consta o CP, e
ambas são amarradas no hálux70 do cadáver. O papel não apresenta nenhuma proteção
plástica, assim, logo após os primeiros movimentos realizados com o cadáver, o papel já
rasgou, manchou ou molhou. Logo, não é ele quem garante a identificação do cadáver, mas
apenas a pequena placa de metal com o número do registro interno do IML, o CP. O que
parece demonstrar que a identificação do cadáver e o controle desses se destina, apenas aos
policiais do IML que têm acesso ao CP.

O policial do Setor de Permanência é quem “abre” o registro do cadáver no IML via


SPTweb71 e Livro Entrada. Nesse constam, novamente o CP; se o cadáver foi Identificado
(preenchido com as opções sim ou não); o nome do cadáver, caso esse tenha sido identificado
previamente; sexo; GRC; DP; fato da morte; e ARC - número do rabecão e nome do
condutor, data e hora de entrada. Após esse preenchimento, o policial leva as duas vias da
GRC à recepção.

No balcão

Na recepção, um funcionário contratado via empresa terceirizada recebe as duas vias da GRC
do policial do Setor de Permanência. Esses recepcionistas são contratados pelo Programa
Delegacia Legal. Há tanto “técnicas”- assistentes sociais, psicólogas e pedagogas, todas
mulheres; quanto estagiários – estudantes dos cursos de psicologia, pedagogia e serviço

70
Conhecido como dedão do pé.
71
O SPTweb é o sistema em rede da Polícia Técnico-Científica para a realização dos registros de forma online.
Ele é vinculado ao Sistema de Controle Operacional (SCO) do Programa Delegacia Legal da Polícia Civil do
Estado do Rio de Janeiro.
61
social. Os estagiários, na maioria, também são do sexo feminino.

Para os policiais, os “rapazes que trabalham no balcão são meio afeminados. Mas pro
trabalho que fazem, tem que ser mesmo, mais
sensível...”. Se considera que o trabalho no balcão
“é mais coisa de mulher aquilo ali, do jeito que
eles [os idealizadores do Programa Delegacia
Legal] querem”72.

No balcão estão: um computador conectado a


impressora da sala do Setor de Identificação e
Liberação de Óbito – SILO; um aparelho
telefônico; dois livros de registro e muitos papéis
com informações diversas para as pessoas que se
dirigem ao IML. Entre elas, uma listagem com os
números telefônicos de delegacias, outro com
Imagem 6: Balcão da recepção do
Serviço de Necrópsia endereços e números telefônicos de cartórios,
outro com endereços de hospitais da cidade do Rio de Janeiro. Todos esses papeizinhos se
relacionam com a principal atividade dos que trabalham no balcão: o atendimento ao público
– familiares de pessoas mortas ou desaparecidas, encaminhamento de documentos e
atendimento telefônico do Serviço de Necrópsia. Além dessas, são responsáveis pelo registro
no Livro do Óbito. A partir das informações constantes na GRC, registram, nesse livro, todas
as entradas de cadáveres no IMLAP a partir de informações como nome, data e horário da
entrada e CP.

Após o preenchimento do Livro do Óbito, o recepcionista entrega as duas vias da GRC ao


policial do Setor de Identificação e Liberação de Óbito - SILO. O policial do SILO, a partir
dessas informações, preenche no SPTweb parte do Termo de Reconhecimento e Identificação
de Cadáveres – TRIC, o registro que estabelece a identificação civil do cadáver e é preenchido
em diferentes etapas. Esse policial, por sua vez, leva ao papiloscopista no Setor de

72
Essa mesma característica foi observada por Ferreira (2011 p. 51), em relação aos policiais do Setor de
Descoberta de Paradeiros da Polícia Civil. A autora também identificou que há um certo estigma em relação as
“funções ditas sociais”, para as quais é atribuído o caráter feminino. No IMLAP, essa representação era reforçada
pelo jeito “meio afeminado” dos rapazes que trabalhavam no balcão atendendo a famílias em contraponto aos
outros homens, policiais, que trabalhavam no IML ou na parte burocrática, ou lidando diretamente com os
cadáveres.
62
Identificação Necrodatiloscópica a GRC. O papiloscopista legista, ciente da entrada de um
cadáver, aguarda o fim do exame necroscópico para coletar as impressões digitais do cadáver.

Da Itinerância à Necrópsia

Enquanto isso, o cadáver, ainda


num saco preto, é levado pelo
policial do Setor de Itinerância
a uma das mesas das salas de
necrópsia. São três salas e, em
cada uma delas, há duas mesas,
posicionadas paralelamente. As
mesas são de metal inoxidável e
possuem uma série de pequenos
furos que permitem que fluídos

como sangue e água não fiquem Imagem 7: Sala de Necrópsia vista da porta
acumulados. A parte superior de cada mesa, onde é posicionada a cabeça do cadáver, fica
próxima à porta de entrada da sala. Na parte inferior da mesa, há um tanque com ducha de
água e uma balança analógica para pesagem das vísceras.

Do lado direito da entrada dessas salas, há uma mesa branca com duas cadeiras. Nela, os
médicos costumam deixar, máquina fotográfica digital; prancheta; canetas e papéis. Do lado
esquerdo, um grande tanque, aventais de plástico, galochas e alguns dos instrumentos
utilizados pelos técnicos de necrópsia. Em cada lateral da sala há um televisor de tela plana
pendurado na parede. Esses são ligados quando as salas de necrópsia são utilizadas para
cursos de medicina-legal, principalmente das universidades. Do lado oposto à porta, há as
janela horizontais tipo basculante. Sob essas, um balcão de mármore cinza com duas cubas e
torneira, uma série de instrumentos médicos como facas, bisturi, agulha, linha, gaze, luvas,
touca e máscara. Abaixo do mármore, gavetas onde outros materiais são armazenados. Todos
esses instrumentos e a forma como estão disponíveis remetem à sala de necrópsia uma
imagem de “limpeza”, proteção e higiene.

É nesse ambiente médico e com ares de sala de aula, mas também de laboratório científico
que o exame necroscópico é realizado. Nele, o policial do Setor de Itinerância posiciona a
bandeja onde está o corpo sempre do lado interno da mesa. Abre o saco onde está o corpo e
63
serve a mesa de necrópsia, impulsionando o corpo sobre um dos lados, fazendo com que esse
caia virado com a parte posterior, ou dorsal, para cima. Nesse momento, perito médico-
legista, policial do Setor de Cortes, policial do Setor de Evidências Criminais e alguns
funcionários de limpeza também começam a ocupar a sala e os corredores do Setor de
Necrópsia.

O cadáver, já posicionado na mesa, é fotografado pelo policial do Setor de Evidências


Criminais. Rosto, lesões e tatuagens, principalmente, para contribuir com possível
reconhecimento posterior. Tais fotos são inseridas no computador do Setor de Evidências
Criminais e disponibilizadas automaticamente no computador do Setor de Reconhecimento
sendo organizadas por número da GRC, DP, CP e nome ou possível nome do cadáver.

As vestes do corpo são cortadas e retiradas. Novas fotos são realizadas. Caso necessário,
quando há presença de muito sangue, o cadáver é lavado pelos policiais do Setor de Cortes e
do Setor de Itinerância. Em geral, é depois do cadáver limpo, que o perito médico-legista dá
início ao exame necroscópico. Assim, observa se há lesões na parte posterior do corpo, anota
as existentes nos Esquemas de Lesões (Posterior, Esquerdo ou Direito). O policial do Setor de
Itinerância vira o corpo deixando a parte anterior, ou ventral, para cima.

O corpo continua a ser lavado, o policial do Setor de Evidências Criminais faz mais
fotografias e o perito médico-legista novamente observa e anota, dessa vez, no Esquema de
Lesões da Face Anterior73. Esse é o primeiro exame, realizado externamente, via observação,
chamado de exame perinecroscópico.

O policial do Setor de Cortes, após a autorização do perito médico-legista de plantão, inicia o


procedimento de corte para o exame necroscópico. Como descrito em manuais de necrópsia e,
de acordo com o que observei durante o trabalho de campo, o corte consiste na abertura do
cadáver para que, via observação interna - o chamado “exame endonecroscópico”; possa ser
realizada a identificação da causa mortis. O corte realizado no cadáver pelo técnico é firme e
ágil. Em poucos segundos, o cadáver tem o corpo aberto e os seus órgãos internos expostos.

73
Ver Esquemas de Lesões na face posterior e esquerda, em anexo.
64
Nesse procedimento, duas partes do corpo são abertas: (1)
tronco - a partir de um corte por faca que se inicia no base
do pescoço e vai até o ventre, isto é um pouco depois do
umbigo. Após esse corte, as costelas do cadáver são
cortadas com alicate e retiradas, o que permite observar
órgãos internos como coração, pulmão, fígado e estômago;
e (2) cabeça – a partir de um corte transversal, na direção

Imagem 8: Equipamentos do Setor


de uma orelha a outra. A abertura do crânio é precedida do
de Cortes corte do couro cabeludo, onde esse é deslocado, o que
possibilita a observação do osso craniano. Então, o crânio é serrado, sendo a parte da frente, o
que corresponde ao topo da cabeça e testa, retirada e o encéfalo pode ser visto diretamente.
Em algumas situações, quando a região da cabeça se vincula a causa da morte se apresenta
necessário a extração do cérebro da caixa craniana por completo.

Na Necrópsia: “Seis baleados, tudo de Manguinhos”

Havia dois rabecões estacionados na entrada dos cadáveres. Eles traziam seis cadáveres
baleados, aos quais me referi que Thiago me avisara no início desse capítulo. Apenas um
deles estava identificado com nome próprio. Esse tinha colado no peito um esparadrapo que
indicava: “BAM – 195584”, onde BAM se referia a sigla para Boletim de Atendimento Médico.
“É o 81 da 21?”, perguntou Thiago. “Sim, 81 da 21!”, respondeu Anderson, do Setor de
Itinerância .

O número 21 indicava a DP que solicitou a remoção e 81, o número da solicitação da


remoção por essa delegacia no ano corrente. É essa combinação de números que conforma o
número da GRC. O homem, depois de sua morte, se tornou “81 da 21”. Assim, não era o seu
nome próprio que o identificava, mas os números de registro estabelecidos pelo hospital e
pela polícia. O homem se tornara um corpo já institucionalizado e o processo de passagem
para a linha dos mortos tinha começado.

Os seis cadáveres possuíam amarração por faixas de gaze nos punhos e nos pés, semelhante às
descritas por Sudnow (1967) nos necrotérios dos hospitais de Chicago. Essas amarrações
eram realizadas pelos enfermeiros dos hospitais para facilitar o transporte dos cadáveres, o
que, no IML indicava que haviam sido atendidos em uma unidade de saúde.

65
Uma fila de seis cadáveres se formou no corredor. As necrópsias eram rapidamente realizadas.
Os policiais optaram por utilizar apenas uma das salas de necrópsia. Em cada mesa se
realizava um exame, quase simultaneamente. O mesmo perito médico legista realizava as
duas necrópsias, enquanto dois policiais, técnicos de necrópsia, se dedicavam aos corpos. O
perito observava um cadáver, fazia perguntas ao técnico e buscava os esquemas de lesões para
fazer anotações. “Tatuagem de alguma coisa?”, perguntou o perito Rosário. “Tatuagem de
sangue!”, respondeu Renan.

Um dos cadáveres havia sido baleado na cabeça, o que necessitou a abertura do crânio do
cadáver. Eu estava sentada na mesa utilizada pelos médicos, localizada no lado direito da sala
de necropsia, de frente para a mesa onde realizavam esse exame. O cadáver era um homem
pardo, cabelos cacheados negros, de aproximadamente trinta anos que fora morto a tiros na
região de Manguinhos, assim como outros quatro não-identificados.

O técnico em necrópsia serrou o crânio e separou a parte posterior para retirar o cérebro do
corpo do cadáver e coletar o projétil da arma de fogo que ainda permanecia aí. Enquanto o
técnico lavava o projétil para entregá-lo ao policial do Setor de Evidências Criminais, a pele
do rosto do cadáver se manteve virada de modo que o que era a pele da testa tocava, nesse
momento, no que era o resto do rosto do homem pardo: olhos, nariz e boca. O perito,
provavelmente estimulado pela minha presença na sala, então, exclamou: “Que cena
dantesca! E, a gente acostuma”. E prosseguiu, “Desvira isso aí daí, Renan!”. O técnico
desvirou a pele, e a testa ocupou o espaço deixado vazio pela parte posterior do osso craniano.
Como uma máscara de borracha, o cadáver do homem pardo aguardava o fim do exame.

O perito já havia dirigido sua atenção ao outro cadáver. Antes, atravessou o corredor e passou
na sala de digitação de laudos. Um homem forte e negro, de aproximadamente trinta e cinco
anos que havia sido baleado no lado esquerdo do peito. No antebraço direito uma tatuagem
dizia: “Claudia, amor eterno”. “Deixou a Claudia viúva”, afirmou Rosário. “Essa moda de
fazer tatuagem, não sei de onde veio”, seguiu comentando74. O perito anotou a presença da
tatuagem no esquema de lesões, e observava o técnico buscar outras perfurações no cadáver
do homem negro. “Tem mais nada aí, fazer necrópsia é mole”, afirmou Rosário. “É, um tiro
só! A polícia que matou!”, especulou Thiago.

74
É comum que técnicos e peritos expressem opiniões e teçam comentários sobre características dos cadáveres.
A respeito dessas, discuto no capítulo 3 - Espírito.
66
A afirmação do técnico, mais do que uma manifestar opinião pessoal, pode ilustrar o quanto a
violência policial e as conseqüentes mortes dessa violência são “uma questão normalizada,
naturalizada” (TISCORNIA, 2009 p. 1) no âmbito dessa instituição. Diariamente, os
profissionais do IML lidam nessa “zona opaca”. Reafirmando que são policiais mas marcando
as diferenças entre a polícia que são – a Polícia Civil Técnico-Científica; e a polícia que não
são – a Polícia Militar, os policiais do IML naturalizam e identificam as práticas da polícia
que não são. Assim, ao expressarem esse tipo de opinião também demonstram a destreza no
identificar a causa da morte. Mais do que saber que a polícia mata – conhecimento do senso
comum, revela-se que os policiais que trabalham no IML sabem como a polícia mata: de “um
tiro só”.

Ao naturalizar essas mortes, corroboram com a violência institucionalizada e demonstram que


“A morte não é somente um fato natural – é também um fato social” (EVANS-PRITCHARD,
1978:64). A violência institucionalizada, como causa da morte, é um evento tão normal
quanto é a bruxaria entre os Azande. “A bruxaria é, para os Azande, um evento que, embora
talvez infrequente, é ordinário, não extraordinário. É um acontecimento normal – e não
anormal.” (id. p. 69).

Mas, diferentemente de outras tantas causas de morte, as causadas pela bruxaria ou pela
violência, e aqui não me refiro apenas à violência institucionalizada, apresentam algum tipo
de relevância para o comportamento social e, para poder explicar essas, há maneiras
específicas de lidar com os corpos.

Nós aceitamos explicações científicas das causas das doenças, e mesmo das causas da loucura,
mas negamos essas explicações nos casos de crime e pecado, porque aqui elas entram em
conflito com a lei e a moral, que são axiomáticas. O Zande aceita uma explicação mística das
causas dos infortúnios, doenças e mortes, mas recusa essa explicação se ela se choca com as
exigências sociais expressas na lei e na moral. (id. p. 66)

Thiago seguiu manipulando o cadáver e decidiu “rebater o couro cabeludo”, pois, às vezes, o
cabelo esconde possíveis lesões. “Vai fazer ciência agora?”, perguntou o médico. O perito
solicitou que Thiago observasse parte do conteúdo do estômago porque a partir do estágio de
digestão se poderia supor a hora da morte. Em casos de suspeita de envenenamento, o
conteúdo do estômago é recolhido para exames posteriores.

Assim, de diversas maneiras se apresentam ações e práticas aos fatos que causam uma morte e

67
a identificação dessa. “A resposta é a ação, não a análise” (id. p. 70). Afinal, são sistemas de
crenças e conhecimentos, dotados de coerência interna, que explicam aos que se relacionam
com esses sistemas os infortúnios e a morte.

Rosário, novamente, se dirigiu à sala de digitação de Laudos, enquanto Thiago seguiu


investigando o cadáver. Rosário informou a Fernanda, técnica do Setor de Digitação de
Laudos, os elementos principais sobre o exame e a técnica se ocupou de adequá-los no laudo.
“Pronto para outro?”, perguntou o médico a Renan. “Bora”, respondeu o técnico.

A realização de exames e autópsias é uma prática comum, que tem como objetivo a
identificação da causa da morte e, que se inscreve numa base física, o cadáver. (EVANS-
PRITCHARD, 1978; FOUCAULT, 1977) Nos exames necroscópicos que observei, a morte
representa materialidade não apenas jurídica, que se vincula à presença do morto, mas
também a materialidade médica que está vinculada aos órgãos do corpo.

Os exames são feitos na busca da explicitação dessa materialidade que, por sua vez, é
realizada com fins de comprovar ao público – familiares e sociedade no caso dos Azande; e a
polícia e Estado no caso do IML, qual foi a causa da morte. Afinal, policiais cariocas, tanto
quanto grupos de linhagem Zande, apresentam uma mentalidade “lógica e inquisitiva, dentro
das premissas de sua própria cultura, e insiste(m) na coerência de seu próprio idioma”
(EVANS-PRITCHARD, 1978:54). Mesmo já sabendo qual foi a causa da morte, como um
tiro na cabeça, ou tendo indícios de como essa foi provocada, os exames se realizam para
comprovar via a materialidade médico-legal como a morte se deu.

Quero dizer, mais do que a procura pelo conhecimento de uma verdade desconhecida
(FOUCAULT, 1995:79), os exames necroscópicos se caracterizam como um método de
conhecimento que busca confirmar aquilo que muitas vezes já é sabido para identificar a sua
materialidade e, através dessa, possibilitar a posterior transformação desse conhecimento oral
em escrito e, portanto, na linguagem burocrática e pública. (EILBAUM, 2008)

Na Necrópsia: “Hemoperitônio devido a ruptura de tumor hepático”

Como apresentei, entre os Azande é a bruxaria que explica a morte e é a substância-bruxaria


que afeta o corpo o que é buscado. No Instituto Médico-Legal, o que explica a morte se dá por
razões anatomofisiológicas, e é na anatomia e na fisiologia do corpo morto que ela deve ser
procurada e, através dela, explicada.

68
A morte que é instituída no IML, dessa maneira, é explicada a partir de um campo de
conhecimento específico, o da medicina-legal. Assim como no direito, que transforma os
acontecimentos que adentram o seu campo em fatos jurídicos, o acontecimento morte ao
adentrar o campo da medicina-legal é transformado em fato médico-legal.

Quando um acontecimento entra no campo do direito (na sua linguagem, nas suas instituições,
na suas práticas) é processado e editado conforme regras formais específicas de forma tal que
sofre uma série de transformações necessárias para se apresentar como um fenômeno jurídico.
Essas transformações operam a partir do momento em que certos acontecimentos tomam
contato com personagens que ocupam posições sociais especificas. (EILBAUM, 2005:136)

Depois de observados os órgãos e as lesões internas, o perito médico-legista, em diálogo com


o técnico em necrópsia do Cortes, propõe uma causa da morte. A causa da morte, ou a
corrente expressão em latim: causa mortis, é definida de acordo com as categorias médicas
em relação às razões anatomofisiológicas que motivaram a morte. O perito, dessa maneira,
transforma o que foi observado no corpo sem vida em lesões, traumas, perfurações,
rompimentos, fraturas, entre outros.

O perito médico-legista ao preencher o Esquema de Lesões e iniciar a Minuta da Declaração


de Óbito explicita a causa mortis e as possíveis circunstâncias do fato da morte. O perito
médico-legista também fotografa o corpo, suas tatuagens, roupas, lesões e os órgãos internos
durante a necrópsia.

A temporalidade do exame endonecroscópico é determinada pelo tempo que se leva para


“matar” um cadáver. O “matar” o morto, que já está morto, é o objetivo dos que estão
realizando o exame. Assim, identificar a “substância-bruxaria”, as lesões em determinados
órgãos que provocaram a morte de um indivíduo é a finalidade do exame. Como no diálogo
que apresento a seguir, é a definição da causa da morte através dos termos médicos que
demarca essa morte enquanto tal.

- E aí Thiago, posso botar lá que tá morto?, perguntou o perito médico-legista Josué.

- Pode, doutor. Respondeu o policial do Setor de Cortes, Thiago.

-Mas como que a gente vai matar esse cara?

- Bem, doutor. O fígado, através do processo cirrótico.

69
- Sim, tava bem fudido hein?! Mas esse foi o processo. O que a gente pode dizer que
foi a causa?

- A causa...

- Nesse caso, hemoperitônio devido à ruptura de tumor hepático. Nunca tinha visto
isso aqui!

- É, maneiro, doutor!

Matar o morto, nesse sentido, significa construir a morte a partir de categorias próprias;
transformar o corpo sem vida em um morto com causa mortis definida em termos médicos.

Apesar da responsabilidade de determinação da causa mortis ser do perito médico-legista, na


maioria das vezes essa é construída em diálogo com os outros policiais que manipulam o
cadáver durante o exame, pois os peritos médicos-legistas não tocam nos cadáveres. As
conclusões são, por muitas vezes, controladas pelos peritos como ensinamentos aos técnicos
que realizam o corte.

O tocar, ou não tocar os corpos, revela uma dimensão hierárquica entre os policiais do IML.
Enquanto há policiais que tocam, transportam e abrem os corpos, os peritos médicos-legistas
apenas observam e analisam. Da mesma forma, são esses policiais que não tocam nos corpos
aqueles que têm a capacidade de escutar o cadáver, ou de identificar nele elementos
específicos que definam a morte. A partir dessa habilidade de matar o morto, os peritos
também transmitem seus conhecimentos aos outros policiais, ensinando-os assim, a identificar
quando e o que o corpo fala.

Esses técnicos, embora sejam todos policiais civis, apresentam formação diversa. Para realizar
o concurso público de ingresso na polícia civil na função de técnico em necrópsia é necessária
a formação de Ensino Médio Completo. Após a aprovação nos exames teóricos e físicos, os
futuros policiais passam pela ACADEPOL – Academia de Polícia Civil. Na ACADEPOL, se
submetem a um curso de seis meses onde têm aulas teóricas e práticas. A especificidade da
futura atividade os leva a ter cursos de Medicina-Legal, cujas aulas são realizadas no IMLAP.
Desse modo, todos aprendem a manipular cadáveres, realizar exames necroscópicos, coletar
material para exames patológicos e preencher os registros no próprio IML. Para esses
policiais, o IML é “uma casa de ciência” onde o conhecimento sobre o corpo humano é
transmitido através da prática com os cadáveres.
70
Em 2009, houve o mais recente concurso para técnico policial de necrópsia, que renovou o
quadro de funcionários do IMLAP, e contava com cinqüenta vagas iniciais. Essa renovação do
quadro de funcionários, conjuntamente com a inauguração do prédio novo fortaleceram a
ideia de uma nova identidade ao IML. Foram quarenta e nove os formados, e como me
chamou a atenção João, do SILO, apenas três não eram do que se denomina “área da saúde”.
Em todo o grupo de técnicos de necrópsia, que, após o fim do curso de formação na
ACADEPOL, foram distribuídos em diversos setores do IMLAP, há odontólogos,
enfermeiros, médicos, psicólogos, fisioterapeutas, veterinários, e estudantes universitários em
cursos que compõem a “área da saúde”. E são esses os policiais, que junto com os peritos
médicos-legistas, constroem as conclusões sobre a causa mortis de um cadáver.

Algumas vezes, o exame é iniciado sem a presença do perito médico-legista que somente
adentra a sala de necrópsia quando o cadáver já foi aberto. Antes disso, o perito trabalha na
sala de digitação de laudos, preparando o laudo de uma necrópsia anterior ou inscrevendo no
Livro de Necropsias informações da GRC em relação à necrópsia que está por realizar. De
certa maneira, a atividade burocrática se sobrepõe à atividade médico-legal do perito médico-
legista.

A costura

Após a necrópsia, o policial do Setor de Cortes deposita os órgãos retirados ao longo do


exame no corpo, costura e lava o cadáver. Os órgãos retirados são reorganizados no corpo de
acordo com a região de onde foram extraídos. Assim, o cerébro é disposto na cabeça, dentro
do crânio; o coração e os pulmões na altura do peito; e estômago, intestinos e fígado no
abdômen.

Destaco esse ponto pois, ao observar os exames


necróscopicos na Morgue Judicial de Lomas de
Zamora, chamou-me atenção a maneira como os
evisceradores75 (re-)arrumavam o cadáver. Lá, em
geral, o cérebro não era depositado na cabeça – sua
região „natural‟, mas sim no abdômen, junto com
intestinos, estômago, pulmões e outros orgãos. E,
Imagem 9: Equipamentos para costura no IMLAP.

75
Era a maneira como se auto-referiam os técnicos que manipulavam os cadáveres nos exames necroscópicos.
71
algumas vezes, os evisceradores botavam o coração no crânio. Os evisceradores me
afirmaram que realizavam essa disposição, por ser mais fácil para a costura do que quando se
deposita o cérebro, um órgão grande e com consistência gelatinosa, na cabeça e tem-se que
encaixá-lo no crânio. Além disso, “qual diferença?” afinal, o corpo já estava morto mesmo.

Os evisceradores de Lomas compreendem o corpo como uma totalidade na realização dos


exames. É o corpo, e não suas partes, que vai dizer sobre a morte. O corpo é “apenas” prova
de um crime. Portanto, depois de morto, não importa em que posição serão despositados os
órgãos. Apenas importa que sejam dispostos dentro do corpo.

Esse contraste demonstrou-me que, mesmo tendo o corpo objetificado e, ao longo dos
exames, fragmentado, os policiais do IMLAP, ao finalizarem a necrópsia se orientam pela
classificação original dos órgãos no corpo. Assim, seguem o valor lógico do “estado de
natureza” do corpo, cuja ordem respeitam dentro de uma totalidade. “Qualquer que seja a
classificação, esta possui uma virtude própria em relação à ausência de classificação.”(LÉVI-
STRAUSS, 1989 p.25) De certa maneira, ao realizarem a costura e reconstruírem o corpo
estão construindo o morto.

Tal costura, tecnicamente denominada sutura, se refere a um tipo de costura conhecido como
pontos cirúrgicos que têm o objetivo de unir os tecidos do corpo humano que foram
seccionados. É feita com um barbante e uma agulha que mede aproximadamente quinze
centímetros e consiste de pontos largos, onde muitas vezes as camadas inferiores da derme
ficam em evidência. A característica da costura varia de acordo com o policial que a realiza,
com o cadáver que é costurado e com o tempo que eles têm para a realização do
procedimento.

Os policiais comentavam que a “qualidade da pele” varia de acordo com a idade do cadáver e
a cor. Assim, de acordo com esses policiais, a pele de um jovem negro é muito mais rígida e
difícil de costurar do que a de um idoso branco devido à maleabilidade e flexibilidade do
tecido. Não coincidentemente, a maioria dos cadáveres necropsiados no IML é de jovens
negros76, pois ao afirmarem sobre a “qualidade da pele”, os policiais remetem ao que lhes dá
mais trabalho de se fazer tanto quanto o tipo de sutura que eles mais realizam.

76
Enquanto realizei trabalho de campo, nunca presenciei uma necrópsia de um baleado cuja cor da pele fosse
branca. Como demonstrado por (SILVA, 1998), as vítimas da violência no Rio de Janeiro se inserem num padrão
entre pardos e negros.
72
A Minuta

Depois de concluir a causa mortis, o perito médico-legista preenche o registro denominado


Minuta de Declaração de Óbito. Nesse registro, explicita a causa mortis, e a vincula ao CP.
Algumas vezes, preenche o nome do cadáver. Mas, geralmente, apenas os dois campos citados
são completados. Como observado em relação à GRC, os campos preenchidos se referem às
atividades dos policiais, nesse caso ao que fora construído pelos profissionais no IML. Depois
de preenchida, a Minuta é entregue ao policial do SILO pelos policiais do Setor de Cortes ou
do Setor de Processamento de Laudos. É a causa mortis explicitada na Minuta de Declaração
de Óbito que vai constar nos registros oficiais de morte do cadáver que se estendem aos
limites da instituição policial. Isso é, a causa mortis registrada pelo médico na Minuta de
Declaração de Óbito é exatamente o que é registrado pelo policial do SILO na Declaração de
Óbito.

Nas Evidências Criminais

Um exame de necrópsia pode ser concludente, dando imediatamente a razão do óbito; ou


branca, quando é necessária a realização de exames complementares. Os exames
histopatológicos77 são feitos através do material recolhido no cadáver. Principalmente sangue
e vísceras são retiradas do corpo após o corte, e acautelados pelo policial do Setor de
Evidências Criminais. Tais exames são realizados nos laboratórios localizados no próprio
IMLAP.

Nesses laboratórios, os técnicos e peritos, também policiais, trabalham com os cadáveres.


Fígados, corações, pulmões, que após passarem por um processo químico que dura
aproximadamente vinte dias, se tornam “pedaços de gente” microscópicos, órgãos humanos
irreconhecíveis a olho nu. Tais exames têm, como principal finalidade, identificar a natureza
das lesões no cadáver. Esses são de caráter complementar e não apresentam caráter conclusivo
no que se relaciona aos seus resultados.

Os laudos que são produzidos no único laboratório policial de patologia do estado do Rio de
Janeiro são encaminhados aos mesmos médicos que realizaram a necrópsia para que sejam
incorporados ao Laudo Médico-Legal, e são esse médicos que, a partir da interpretação do
exposto nos laudos patológicos, matam o morto.

77
Histopatologia é a especialidade da medicina que estuda como doenças, ou alterações específicas afetam um
conjunto de células.
73
Os projéteis de arma de fogo, pertences do cadáver e qualquer outro material encontrado
junto ao corpo também são acautelados no Setor de Evidências Criminais. Esse setor
funciona como o armário dos cadáveres, onde pertences, substâncias e qualquer outro tipo de
material que é disposto enquanto evidência é guardado.

O Setor de Evidências Criminais também é responsável pela organização das fotos para
reconhecimento dos cadáveres. A sala do setor está localizada na parte interna do Serviço de
Necrópsia e conta com duas portas. Uma, ao lado da sala do Setor de Necropapiloscopia, em
frente à porta interna de acesso ao Setor
de Necrópsia; e outra que dá acesso a um
corredor interno do Setor de Necrópsia.
Ao lado da primeira porta, há um grande
vidro que permite visualizar parte do
interior da sala. Do vidro, a primeira
coisa que se vê é a mesa e o computador
de trabalho dos policiais do setor, onde
são incluídas as fotos para o
Imagem 10: Carrinho com equipamentos do Setor reconhecimento. Atrás da cadeira do
de Evidências Criminais
policial, está uma coluna que abriga um
pequeno elevador interno aos laboratórios localizados no terceiro piso do IML. Olhando à
sala, se vêm geladeiras que servem para o armazenamento dos materiais. Há ainda próxima a
essa primeira porta, um quadro de avisos e uma televisão. Próximo à outra porta, há uma
estante com objetos para a coleta de materiais e o carrinho do setor.

O Setor de Evidências Criminais se apresenta a partir de suas atribuições, enquanto um setor


que se conecta diretamente com os corpos; assim como cria conexões dos corpos com outros
setores. Ali, os corpos se apresentam como objetos transformados em evidências e
distribuídos em fragmentos por outros setores do IML.

No Processamento de Laudos

O médico Josué, perito legista há mais de quinze anos no Instituto Médico Legal do Rio de
Janeiro, fazia sua última necrópsia do plantão. Passava das dezenove horas. Ele e o médico
Luís, plantonistas do dia, aguardavam a chegada do médico Santos, que iria cobrir o plantão
das vinte horas da noite até as oito horas da manhã do dia seguinte, quando outra equipe de

74
policiais entraria no plantão. Os médicos, assim como os técnicos de necrópsia trabalham um
dia na semana. Enquanto os técnicos cumprem vinte e quatro horas semanais, com
possibilidade de a cada seis semanas trabalharem num domingo, os médicos têm doze horas
de jornada de trabalho semanal, e também a cada cinco ou seis semanas trabalham o mesmo
período num domingo.

Peritos médicos-legistas e técnicos organizam-se em escalas de jornada de trabalho e,


recorrentemente criam ajustes entre eles para compor a escala que nem sempre é fixa, mas
que depois que determinada é estritamente cumprida. É assim, por exemplo, a escala da
equipe formada por Josué, Luís e Santos. Josué e Luís que são médicos mais antigos
trabalham juntos de oito horas da manhã até as vinte horas. Já Santos cumpre sozinho o
plantão na parte da noite e madrugada, até a manhã seguinte.

Após “matar” o cadáver por “hemoperitônio devido a ruptura de tumor hepático”, Josué se
dirigiu à sala de Processamento de Laudos, localizada em frente à sala de necrópsia. O perito
médico-legista sentou-se no fundo da sala, numa cadeira próxima ao computador onde a
policial Fernanda, técnica de necrópsia do setor de Digitação, “encerrava” o laudo
necroscópico de exame realizado por outro perito alguns minutos antes.

- E aí, querida. Podemos?, perguntou Josué à Fernanda.

A cadeira giratória permitiu que Josué se posicionasse diagonalmente ao computador. O perito


se manteve de costas à tela do computador. Com olhar reflexivo, admirava a parede e o chão.
Enquanto isso, Fernanda aguardava que o perito iniciasse o ditado. O perito médico-legista
começou a ditar para a policial do Setor de Processamento de Laudos os campos que
deveriam ser preenchidos no Laudo Médico-Legal. Primeiro Josué descreveu as
características do cadáver:

- Homem, aproximadamente cinquenta anos, cabelos encarapinhados... Não, era


crespo. Cabelo crespo grisalho. Compleição física franzina. Cadáver vestia... me sinto
ridículo dizendo isso! Luís, qual era a veste mesmo?

Luís estava do outro lado da sala, sentado na cadeira encostada na parede do lado da porta de
entrada. Nessa posição, o perito ficava de frente para a sala que se caracteriza por ser um
grande corredor com aproximadamente dois metros de largura e dez metros de comprimento.
Do lado esquerdo, ficam seis mesas, as duas primeiras utilizadas pelos médicos peritos, as três

75
seguintes com computadores utilizadas, principalmente, pelos técnicos em necrópsia do Setor
de Cortes enquanto não realizam exames78. E a última, com outro computador, era usada por
Fernanda para a digitação dos Laudos. Ao lado do último computador ficam o telefone, a
máquina impressora/copiadora do setor, e um frigobar.

Do lado direito, há três armários que armazenam o material pessoal dos funcionários do setor
e guardam os materiais de uso comum do setor como folhas, carimbos, canetas, livros, luvas,
aventais, toucas, álcool, etc. Há ainda uma mesa onde os profissionais desse setor costumam
deixar café, água e biscoitos para lanche.

- Vestia camisa pólo de malha amarela e cueca de malha verde. Morreu de brasileiro!
Afirmou Luís.

- Pois é! Se bem que na SVO isso não é necessário. Obrigado, Luís.

Após, Josué seguiu descrevendo o periciado. Afirmou que “não foram observadas lesões
externas” e descreveu a “inspeção interna”. Nessa, indicou as alterações dos órgãos internos:

- O tumor era no lobo esquerdo do fígado... esquerdo? Peraí....

O médico saiu da sala de Digitação de Laudos, atravessou o corredor e ingressou novamente


na sala de necrópsia onde Thiago iniciara o procedimento de sutura para fechar o corpo.

- Thiago, o tumor era no lado esquerdo ou direto?

- Lobo direito do fígado.

Josué atravessou mais uma vez o corredor, voltou à sala de Digitação de Laudos, e entrou
dizendo alto a Fernanda:

- Que o tumor era no lobo direito do fígado. Que houve hemoperitônio. Que esse foi
ocasionado devido à ruptura de tumor hepático localizado no lobo direito do fígado
do cadáver.

Enquanto Fernanda digitava tais informações, Josué comenta:

78
Enquanto estavam nos computadores, os policiais passavam a maior parte do tempo na internet. Acessavam o
email pessoal; o email corporativo; sites de notícias, principalmente referentes a violência e atividade policial no
Rio de Janeiro; redes sociais como Facebook e Orkut; realizavam pesquisavas, inclusive de temas que estavam
sendo conversados na sala; e utilizavam também correios instantâneos de mensagens e jogos virtuais.
76
- Engraçado, fiz dois exames de câncer hoje.

Nessa construção do Laudo Médico, o perito Josué se deslocou entre dois espaços distintos.
Tais caracterizam o âmbito do controle médico-legal que é construído em relação aos corpos e
são complementares, o espaço médico e o policial. Esse movimento de “ida” e “volta” que
observei, caracteriza o contraste entre os dois ambientes de trabalho desses profissionais: o
laboratório médico-científico e o cartório burocrático-administrativo, que,
complementariamente, formam um só: o Instituto Médico-Legal.

O médico denota no seu ir e vir, o fundamento da sua atividade profissional que é transcrever
e registrar em certa linguagem médica o que está inscrito nos corpos humanos, e que, por sua
vez, deve ser interpretado pela linguagem policial e jurídica. Apesar da observação curiosa do
perito Josué, em nenhum momento, no Laudo
Médico preenchido por Fernanda, a palavra
“câncer”, uma doença conhecida até mesmo por
aqueles que não compartilham a linguagem
médica, foi digitada.

O Laudo Médico-Legal caracteriza-se por


apresentar a verdade do fato, construída de

Imagem 11: Corredor do serviço de forma monológica onde a autoridade médica e


Necropsia, ao fundo, a câmara frigorífica
policial, o perito médico-legista, relata o
conhecimento construído por ela e apresenta-o como versão pública do que aconteceu com
um corpo para que ocorresse a morte. Assim, através desse registro, o perito constrói a
verdade cartorial como autoridade policial, mas a realiza através da linguagem que não é a
policial, nem é a jurídica, como fazem os delegados de polícia (KANT de LIMA, 1995).
Tampouco, a construção desse registro se refere a linguagem médica corrente, dos médicos
em relação aos seus pacientes e os processos de tratamento. (GOOD, 2003). Ao construir o
Laudo Médico-Legal e cartorializar a morte, o perito médico-legista constrói a “verdade
policial” através dessa certa linguagem que apresenta a Medicina Legal.

O técnico-policial que digita é quem deve inserir o conteúdo construído oralmente pelo
médico na forma estabelecida pelo Laudo Médico-Legal. A “transformação” do oral ao escrito
se assemelha ao observado por Eilbaum (2010), em relação às declarações tomadas por
funcionários do judiciário de Buenos Aires. Assim como esses, o policial do setor de
77
processamento de laudos tem uma função intermediária, entre a fala e o papel.

Os policias do IML consideram que estão construindo a “verdade”. No entanto, tal


transformação do oral ao escrito registra nos papéis apenas uma versão dentre outras possíveis
dos fatos, mas ao mesmo tempo a legitima, registrando-a como a “verdade do Estado‟. Assim,
ao digitar a descrição do exame, um dos itens presente no Laudo Médico-Legal, o policial
está digitando o que o Estado afirma que ocorreu com o corpo de um indivíduo para que ele
morresse. A descrição do exame no Laudo Médico-Legal diz a “verdade dos fatos” e
estabelece a causa mortis.

O Laudo Médico-Legal

O Laudo Médico-Legal, como apresentei acima, é o registro onde o perito médico-legista


estabelece uma verdade sobre a morte de um indivíduo em termos médico-legais. Nesse
documento público, o campo onde são descritas as considerações médico-legais, isso é, onde
é detalhado o exame necroscópico, é compartido em dois campos: “inspeção externa” ou
“exame externo” e “inspeção interna” ou “exame interno” do cadáver.

No primeiro, são descritas as vestes que o cadáver tinha ao ingressar no IML, se era um
cadáver de um homem ou de uma mulher, a cor da pele, altura aproximada, compleição física
e idade aproximada. Também são apresentadas as características dos livores da pele, significa
dizer, das manchas no corpo causadas pelo sangue após a morte e que ajudam a indicar a
posição do cadáver no momento da morte e o tempo de ocorrência dessa; e o grau de rigidez
muscular em que o cadáver se encontrava, que também auxilia na determinação da hora da
morte.

Após a descrição inicial, o corpo passa a ser fragmentado. Para a construção da verdade
médico-legal, o cadáver é, considerando os termos utilizados nos registros, inspecionado a
partir de suas partes. Deixa de interessar o corpo enquanto unidade, e passam a interessar
membros, cabeça, tronco, tecidos e órgãos.

Dessa maneira, a inspeção externa segue detalhando a cabeça do cadáver. São descritas cor e
tipo do cabelo, condição das córneas e cor dos olhos, condição dos “orifícios naturais da
face”, e o estado dos dentes, considerando se são naturais, regulares, irregulares ou
inexistentes. Também são apresentados, quando presentes, bigode, barba e outros tipos de
pelos do rosto. Por fim, a possibilidade de movimentação do pescoço e se há nesse “sinais de

78
lesões violentas”.

Caso o cadáver apresente tatuagens ou lesões externas no corpo, essas também são descritas
sendo relacionadas ao segmento do corpo. Assim, uma perna quebrada é “fratura no terço
superior da coxa esquerda”, perfurações por arma de fogo são “três feridas ovaladas
invertidas e infiltradas por sangue, provido de orla de escoriação em crescente compatível
com as produzidas por entrada de projétil de arma de fogo”, e uma tatuagem com nome é
“tatuagem representada pelo nome „Nadia‟ na face interna do braço direito”.

Já na parte destinada à inspeção interna, “a face profunda do couro cabeludo” é caracterizada


de acordo com possíveis infiltrações hemorrágicas e a “abóbada craniana” quanto a sua
integridade. Esses dois, além das características da massa encefálica, compõem o exame
interno da cabeça.

Na inspeção interna do tronco, cavidades pleurais e pericárdicas, quer dizer, dos pulmões e
do coração; o estômago e algumas vezes os ossos, são também detalhados. Pelo que observei,
essa é a parte do Laudo Médico-Legal que mais apresenta variedades descritivas.

Esse corpo fragmentando, além de ser visto isoladamente no que se refere à situação em que
ocorreu sua morte, nem sempre é olhado como totalidade. Através de suas partes, “o corpo
fala”. Para a interpretação médica do corpo, que é quem o faz falar, não interessa a
corporalidade ou o conjunto.

Assim, a capacidade de identificar no corpo o que esse corpo quer dizer tem a ver com a
capacidade de compartimentar o corpo em partes que fazem sentido entre si e que, separadas
da totalidade, dizem algo per se. O corpo fragmentado é evidência, que produz prova
registrada no Laudo Médico-Legal. Dessa maneira, o corpo em sua totalidade, não diz sobre
sua morte. Essa é dita a partir de suas partes, através da fragmentação. Já o corpo em
totalidade se refere ao indivíduo e, no âmbito das relações do morto com outros vivos, refere-
se à pessoa79.

Os quesitos

A parte final do Laudo Médico é composta pelos quesitos obrigatórios em caso de morte.
Esses quesitos funcionam como respostas a serem dadas àqueles que iniciaram o caminho de

79
Desenvolvo essa argumentação no capítulo 3 – Espírito.
79
entrada no labirinto burocrático, a DP que realizou a solicitação da GRC. As respostas a esses
quesitos devem ser incluídas no inquérito policial, pois o Laudo Médico-Legal, depois de
preenchido é encaminhado à DP.

O inquérito policial se caracteriza pela ambivalência, pois é uma forma jurídica de


investigação policial. Nas delegacias, os inquéritos que se referem às mortes não-naturais
(como podem ser definidas a maior parte das mortes dos corpos que chegam ao IML), são
necessariamente iniciados. No caso de mortes naturais onde foi necessária a realização de
remoção do cadáver, como nos casos de cadáveres de idosos que são encontrados em suas
residências já em estado de putrefação, são instauradas Verificações Preliminares de Inquérito
- VPI (cf. KANT, 2009; MISSE, 2011). Assim, para a instauração de um inquérito policial
além de necessário haver materialidade - a presença do cadáver, é preciso investigar a autoria
– seja dolosa ou culposa.

Os quesitos respondidos ao final do Laudo Médico-Legal se vinculam com a produção do


inquérito policial e fazem parte dessa maneira específica da polícia civil do Rio de Janeiro
produzir verdades. Considerando que o quesito número um, que pergunta “houve a morte?”,
(quase) sempre deve ser preenchido positivamente80; os quesitos número dois e três são os
que constituem as primeiras respostas dadas no âmbito do IML. Dessa maneira, “qual a causa
da morte?” e “qual o instrumento ou meio que produziu a morte” são as principais respostas
construídas pelos peritos médicos-legistas ao inquérito policial. No caso dos exames acima
descritos, a um dos baleados de Manguinhos: “lesão da aorta torácica com hemorragia
subsecutiva”, e do homem com câncer no fígado: “hemoperitônio por ruptura de tumor
hepático”. No quesito três: “disparo de arma de fogo” e “processo patológico”,
respectivamente.

Em relação aos quesitos número quatro e cinco, em geral, são apresentadas respostas
genéricas. Assim, quando perguntados se “a morte foi produzida com emprego de veneno,
fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que poderia resultar
perigo comum?”, no Laudo Médico-Legal costuma aparecer que não há condições para
afirmar, através da expressão “sem condições”. E quando perguntados, no quesito cinco, se há
“outras considerações objetivas relacionadas aos vestígios produzidos pela morte, a critério

80
Durante a pesquisa de campo, houve vezes que “não houve morte” como um boneco de brinquedo que foi
removido enquanto feto. A partir desses, meus interlocutores relataram outras situações de erros na remoção
como no caso de um corpo de bebê que foi removido e, quando ingressou no IML, os médicos perceberam que a
criança ainda estava com vida.
80
do Senhor Perito Legista?”, respondem, em geral: “nada mais”.

Ora, mesmo que sejam os peritos quem mata os mortos e que definam a verdade policial em
relação a essas mortes, eles não são definitivos ao indicar a causa da morte ou, ao menos,
indícios a partir da evidência que é o cadáver. Assim, mesmo tendo como função atividades
técnico-científicas de investigação, o IML tem reforçada a característica burocrático-cartorial
inerente à polícia civil do Rio de Janeiro.

Todas as informações elaboradas pelo perito são preenchidas pelo digitador num editor de
texto, e depois copiadas e preenchidas no SPTweb através do login81 do médico que realizou a
perícia. É o policial do setor de Digitação de Laudos quem organiza todos os laudos por CP;
número do laudo – que é disponibilizado ordinalmente em relação a todas as perícias que são
realizadas pelo IMLAP, sejam elas em cadáveres ou em indivíduos vivos; por número da
delegacia; e por perito que realizou a necrópsia.

Todos esses arquivos estão dispostos em pastas virtuais organizadas por dia de plantão, logo
por técnico-policial e por perito. Fernanda, policial do setor de Digitação de Laudos, tem
pastas com laudos utilizados como modelos por perito e por causa da morte para “facilitar o
trabalho”, pois os peritos apresentam idiossincrasias no que se refere ao modo de ditar o
laudo e de organizar as informações. Os Laudos Médicos são, assim, inseridos pela digitadora
num sistema classificatório. Mesmo apresentando características técnicas e um modo comum,
através de sua linguagem, o Laudo Médico-Legal se caracteriza por apresentar estilos
particulares:

- Cada um tem seu jeito de falar, e também cada causa tem um jeito de dizer como foi.
Aí eu já separo tudo porque facilita meu trabalho. Eu trabalho assim, não sei como os
outros digitadores trabalham, afirmou Fernanda.

Depois que o perito Josué terminou de ditar o Laudo Médico-Legal do homem cuja causa da
morte foi hemoperitônio por ruptura de tumor hepático à Fernanda, assuntos como bebida,
cirrose e alcoolismo ocuparam lugar na sala de Processamento de Laudos. Enquanto Fernanda
preenchia o Laudo Médico-Legal no sistema, os peritos Josué e Luís, os técnicos de necrópsia
do Setor de Cortes, também chamado de Serviço Técnico de Necrópsia, Thiago e Paulo, e

81
Cadastro virtual realizado na Internet. No caso, esse é no sistema institucional da Polícia Civil do Estado do
Rio de Janeiro
81
outros dois técnicos de outro plantão que estavam “fazendo hora para o jogo do Vasco”82,
conversavam sobre conhecidos alcoólatras e sobre “fígado fudido”. Depois de
aproximadamente dez minutos de conversa, o perito Luís conclui:

- Depois desse fígado que o Josué pegou hoje, se eu já não fosse velho, eu parava de
beber.

Fernanda terminou de preencher os laudos, imprimiu duas vias de cada e entregou aos
médicos. Cada médico carimbou e assinou as vias do Laudo Médico e, depois, preencheu no
Livro dos Peritos as informações sobre a necrópsia que fora realizada. Os Laudos Médicos
impressos foram organizados numa pasta arquivo por Fernanda, uma das vias foi enviada pela
administração do IMLAP à delegacia, a outra foi armazenada no arquivo do IMLAP que fica
no segundo andar, no Setor de Almoxarifado.

Os peritos preencheram, carimbaram e assinaram também a Minuta da Declaração de Óbito


que, posteriormente, foi entregue ao técnico de necrópsia do Serviço de Identificação e
Liberação de Óbito – SILO. Na Minuta da Declaração de Óbito, os peritos preencheram
somente a causa da morte e o CP, pois o primeiro campos será reproduzido posteriormente
pelo técnico em necrópsia do SILO na Declaração de Óbito – DO, e o segundo o orienta em
relação a qual morto se refere aquela Minuta.

A assinatura do perito médico-legista é o que confere fé pública a esses registros. A técnica


Fernanda, por vezes, se dizia “a chefe do cartório”. O cartório é onde os papéis são
produzidos e validados enquanto registros públicos, e era a policial Fernanda quem tinha a
delegação de registrá-los. Assim, ela digitava o que lhe era ditado pelo médico e, mesmo não
sendo ela quem produzia as informações registradas,dizia ser, a chefe do cartório por produzir
e fixar o registro no papel. Destaca-se, aí o lugar do registro, que mais do que de produção de
um conhecimento vinculado ao exame em si, ou a manipulação dos corpos sem vida, é o que
estabelece a verdade.

Seguindo a tradição cartorial (cf. KANT, 2009; MIRANDA, 2000), no IML, é a assinatura do
perito quem valida oficialmente os papéis e torna essa instituição fonte de legitimidade legal
no que se refere aos corpos sem vida. O perito se apresenta como a “voz autorizada” a

82
É comum funcionários de outros plantões, que estão de passagem pela região da Leopoldina, irem até o
Serviço de Necrópsia e observarem o trabalho dos colegas. Enquanto estão lá, conversam, tomam café, acessam
a internet e assistem as necrópsias.
82
estabelecer os limites da linha entre vivos e mortos.

A presença dos cartórios é uma das principais características das burocracias de inspiração
ibérica e o IML, enquanto instituição policial brasileira, não escapa à regra. As práticas
cartoriais do Setor de Processamento de Laudos revelam a forma cartorial de matar os mortos
e consolidam institucionalmente a linha divisória entre vivos e mortos.

Na Identificação

Após os procedimentos de sutura e lavagem, o cadáver é encaminhando pelo policial do Setor


de Itinerância à camâra frigorífica. Antes de ser guardado em alguma das gavetas, é deixado
na parte externa dessa, onde aguarda ter suas digitais coletadas pelo papiloscopista legista do
Setor de Identificação Necrodatiloscópica.

A papiloscopia, inserida no campo da Medicina-


Legal, é o principal instrumento científico
utilizado para a identificação e classificação dos
indivíduos no Brasil. O método de Vucetich83
surgiu depois do fracasso do método de
Bertillon84. Esse último método utilizava
características faciais para identificar e

distinguir cada indivíduo como único a partir de


Imagem 12: Hall da câmara frigorífica
traços particulares. Quando surgiu, o método
Vucetich era considerado um inovador sistema datiloscópico que conferia legibilidade por ser
cientificamente comprovado o caráter original e individual das impressões digitais85.

Apesar de criado por um cidadão argentino, não há naquele país a obrigatoriedade de fichar

83
Juan Vucetich , croata naturalizado argentino, trabalhou no setor estatístico da polícia de Buenos Aires no fim
do século XIX, tendo desenvolvido o sistema de identificação através das digitais. Tal sistema ainda é utilizado,
sendo obrigatório nos documentos de identificação civil no Brasil e substutivo da assinatura pessoal em alguns
casos.
84
Alphonse Bertillon, francês, trabalhou no setor de arquivamento da polícia de Paris no fim do século XIX, e é
considerado, no campo da medicina legal, como o pai do retrato falado. Seu método „fracassou‟ quando foram
identificados indivíduos distintos que possuíam o mesmo conjunto de medidas.
85
Enquanto a papiloscopia é o estudo das papilas dérmicas, a datiloscopia é um dos ramos dessa e trata
exclusivamente das impressões digitais. Ambas são voltadas para a identificação humana, no entanto, apesar de
denominada papiloscopia, os procedimentos de identificação realizados no IMLAP se caracterizam como
datiloscopia. Ou mais precisamente, a necrodatiloscopia que se refere às impressões digitais de cadáveres
83
os cadáveres. Na Morgue de Lomas, apenas são coletadas as impressões digitais de mortos em
confronto com a polícia. A não coleta das impressões digitais em nada interfere na
identificação dos cadáveres que quase alcança a totalidade. Através da influência de Fêlix
Pacheco86, o Brasil foi o primeiro país a adotar esse sistema como o de identificação oficial,
em 1930, quando se instaurou a identificação civil obrigatória.

Nessa época, a Medicina-Legal, através dos seus métodos de identificação, se apresentava


como a idéia científica para o exercício de controle do estado sobre os indivíduos
(FOUCAULT, 2007). No caso brasileiro, esse exercício de poder jurídico se refere ao controle
sobre o corpo de apenas alguns indivíduos. Por outro lado, estava presente a produção de
documentos como fator preponderante para a ideia de cidadania, isso é, o direito dos
indivíduos de serem reconhecidos como cidadãos.

Persiste assim, tanto com o objetivo de conceder ao indivíduo morto o direito de ser
reconhecido como cidadão, quanto de
promover o controle do estado sobre os corpos
dos indivíduos, mesmo quando não há mais
vida, a coleta de impressões digitais do
cadáver pelo papiloscopista. As impressões
servem para posterior identificação através do
confronto das digitais do corpo com as que

estão no documento de identidade Imagem 13: Laboratório de Necropapiloscopia


apresentado pela família ou encontrado junto ao corpo e, ainda, com os registros de
identificação civil existentes no Instituto de Identificação Civil Félix Pacheco .

Durante a pesquisa, como destaquei na introdução dessa dissertação, os papiloscopistas foram


meus primeiros interlocutores e foi através da relação que estabeleci com eles que fui
identificando e conhecendo outros setores do IML. Os policiais desse setor, assim como os
médicos-legistas, trabalham em dois ambientes contrastantes e, também, complementares. Um
é o Laboratório de Necropapiloscopia e outro é a sala do Setor de Necropapiloscopia. Neste é
onde passam a maior parte do tempo, organizando e construindo os registros dos cadáveres;
aguardando que os exames necroscópicos se encerrem para realizar a coleta das impressões

86
Fêlix Pacheco, jornalista e político, foi o fundador e primeiro diretor do Gabinete de Identificação e Estatística
da Polícia do Distrito Federal, hoje Instituto de Identificação Félix Pacheco.
84
digitais; mexendo no computador; ou assistindo televisão. Naquele, deixam o material de uso
direto com os cadáveres e também realizam os experimentos com fins de recuperar as
impressões digitais de cadáveres carbonizados ou com alto grau de putrefação.

Enquanto permanecem na sala do seu setor, os papiloscopistas são informados do que


acontece em outros setores pelo movimento dos papéis que a eles chegam. Ou que eles, ao
irem entregar outros papéis, recebem, principalmente do SILO, como demonstrarei adiante. A
principal forma de serem informados sobre os cadáveres se relaciona com a presença dos
documentos do cadáver, o que indica que alguém se apresentou como declarante de um
corpo. O papel representa a pessoa, e o documento cria referências para o indivíduo
(PEIRANO, 2006; FERREIRA, 2011).

Os documentos do cadáver originais são entregues ao papiloscopista junto com uma cópia dos
documentos do declarante e com uma das vias da GRC, sempre através do Setor de
Identificação e Liberação de Óbito.

Com posse dessa documentação, o papiloscopista


incorpora as outras GRC que recebeu anteriormente e
constrói uma fila de espera de cadáveres através dos
papéis. Ciente da temporalidade entre a chegada dos
corpos e a realização dos exames necroscópicos e
orientado pela vinda ou não de declarantes, o
papiloscopista escolhe quando realizará a coleta das
impressões digitais. Essa escolha é feita de acordo
com as relações sociais acionadas pelo morto. Esse
policial organiza sua rotina de trabalho orientado pelo

Imagem 14: Maleta do papiloscopista fluxo de papéis e documentos, e a sistematiza via CP e


GRC num livro do setor e num arquivo do Word
atualizado diariamente. Os cadáveres ainda não tem identificação, mas os mortos já tem seu
registro.É também na sala do setor que o papiloscopista se prepara para a manipulação dos
cadáveres. Veste avental, touca, às vezes máscara e luvas sintéticas. Vestido com esses
equipamentos de proteção individual, se dirige ao Laboratório de Necropapiloscopia para
buscar a maleta onde está o seu material de trabalho e, em seguida, vai até os cadáveres a

85
serem identificados. No IMLAP, todos os cadáveres “com condições”87 têm sua impressão
digital coletada no mesmo dia da realização do exame. Inclusive aqueles aos quais não se
apresentou nenhum declarante, ou que, no momento do exame, não podia se comprovar sua
identificação. Menores de idade, mesmo sem a obrigatoriedade do registro civil também são
fichados. E de bebês, algumas vezes, são coletadas as impressões dos pés.

Após limpar as pontas dos dedos do cadáver com tiras de jornal, o papiloscopista legista
utiliza uma desempenadeira88 de aço onde, com um rolo, passa uma tinta específica para
impressão. Ao pressionar os dedos do cadáver na desempenadeira, os suja com essa tinta
preta. O papiloscopista imprime cada um dos dedos nas três vias da Ficha de Identificação
Necropapiloscópica89 do IIFP. Duas dessas são diariamente buscadas por um dos
papiloscopistas do IIFP, e a terceira fica arquivada no IMLAP. Geralmente, a versão preta
desse formulário é destinada a cadáveres do sexo masculino e a versão vermelha a cadáveres
do sexo feminino.

Mesmo nos casos de cadáveres que as digitais não se encontrem em condições de serem
confrontadas, os papiloscopistas tentam, através de processos químicos, recuperar as papilas
dérmicas para coletar as impressões digitais. Tais tentativas de recuperação são realizadas no
Laboratório de Necropapiloscopia, onde falanges e punhos são cerrados dos cadáveres e
depositados em vidros e potes de plástico onde são submetidos a processos de hidratação.
Quando consideram que o membro foi hidratado suficientemente, os papiloscopistas retiram a
epiderme90 e as colocam sobre seus próprios dedos, protegidos por luvas de látex. Nesse
procedimento, chamado desluvamento, os fragmentos dos mortos fazem com que seus corpos
sejam expressos pelas impressões digitais.

Em busca de uma identificação, uma pequena parte do maior órgão humano do cadáver é
utilizada como indícios de quem outrora fora o indivíduo. São partes do corpo e não sua
totalidade que orientam os policiais a definir quem é aquele que cruzou a linha que separa
vivos e mortos.

87
Os papiloscopistas denominam “sem condições”, principalmente, os cadáveres carbonizados e putrefatos que
mesmo após os procedimentos no Laboratório não foi possível realizar a impressão digital. Também se inclui
nesse grupo ossadas, despojos e cadáveres sem membros superiores.
88
Espécie de lámina presa por uma haste utilizada como ferramenta em construções.
89
Ver Ficha de Identificação Datislocópica em anexo.
90
Parte mais externa da pele humana.
86
Após a positivação das impressões digitais coletadas do
cadáver, o técnico papiloscopista acessa o sistema SPTweb
para preencher informações referentes à identificação do
cadáver no Termo de Reconhecimento e Identificação de
Cadáver - TRIC. E através desse registro, consolida
institucionalmente a identificação do morto.

Quando os exames papiloscópicos não são suficientes, é


realizado um procedimento de corte na arcada dentária do

cadáver que permite que essa seja analisada pelo perito Imagem 15: Vidros com
falanges em hidratação
odontólogo-legista e registrada pelo policial do Setor de
Evidências Criminais. Essa serviria para posterior identificação através do confronto de
radiografias dentárias, mas esse confronto é pouco utilizado para identificação de cadáveres
porque poucos são os indivíduos, no Brasil, que têm o registro de suas arcadas dentárias. No
entanto, mesmo que o cadáver não tenha realizado radiografia dentária em vida, o
procedimento é realizado, pois de acordo com os peritos ele permitiria identificar diversas
características como o sexo, idade e qualidade de vida do cadáver.

Há ainda uma terceira forma de identificação de um corpo, que é através do exame de DNA.
Além dos carbonizados e dos putrefatos, todos os corpos que se inserem no grupo de não
reclamados91, tem material recolhido pelo técnico do Setor de Evidências Criminais através
do SWAB92. Esse material serve para posterior
realização de exame de DNA, a partir de
solicitação de um declarante e através de
autorização judicial.

Apesar desses tipos complementares de exame,


a técnica inaugurada por Vucetich segue
hegemônica nos procedimentos de identificação
de cadáveres. Depois do recolhimento de
Imagem 16: Câmara Frigorífica

91
Conhecidos popularmente como Indigentes.
92
O SWAB é tanto um instrumento quanto uma técnica. Em relação ao instrumento é um tipo de “cotonete
grande”, uma haste de plástico com algodão em suas duas extremidades; em relação a técnica é a fricção desse
instrumento no cadáver com o intuito de coletar material genético para posterior exame de DNA.
87
material para identificação, o cadáver é encaminhado pelo policial do Setor de Itinerância
para a geladeira onde aguarda a liberação de óbito.

De volta ao balcão

Na recepção, na maioria das vezes, familiares ou conhecidos dos mortos chegam para realizar
a liberação do corpo. Poucos chegam antes mesmo da vinda do rabecão com o cadáver.
Alguns, acompanhados de agentes funerários, trazem os documentos de identificação. Muitos,
buscam informações sobre como proceder. Outros, já sabem os procedimentos pois não é a
primeira vez que vão ao IML. Desses todos, os atendentes solicitam um documento que
contenha a impressão digital do cadáver e outro do declarante que permite comprovar o
vínculo de parentesco deste com o cadáver.

O declarante é o “sobrevivente” (VAN GENNEP, 1978). No processo de construção de


cadáveres do IML, e de consolidação das linhas entre vivos e mortos, é aquele que não
transpôs a linha, mas fez parte do ritual. O declarante é quem declara ao Estado o cadáver
como corpo sem vida e dá-lhe substância na medida que declara que quem é esse corpo sem
vida que fora declarado pelo Estado. O declarante é quem assina, ao lado do perito médico-
legista, a Declaração de Óbito, testemunhando essa declaração. E, o declarante é quem
representa o vínculo social do cadáver com o mundo e as relações sociais que essa morte
alterou.

O atendente do balcão preenche as informações do declarante no Livro de Óbito, junto com


as que já preenchera no momento que recebeu a GRC, também um pequeno formulário onde
consta número da GRC, delegacia policial, CP, nome do falecido, o nome do declarante, o
grau de parentesco entre ambos e a data e hora que o declarante chegou ao IML.

O atendente vai ao SILO faz uma fotocópia dos documentos apresentados pelo declarante e
entrega junto com a documentação original, o pequeno formulário ao policial desse setor.
Dessa maneira, a atendente da recepção comunica ao policial do SILO as informações do
cadáver e do declarante e dá continuidade ao labirinto dos papéis no IML, aumentando a
quantidade de papéis.

Os documentos

Os documentos de identificação pessoal apresentam diferentes objetivos: servem para agregar


a população com fins de controle e identificação dos indivíduos, como também para a
88
demanda de direitos e expressão dos deveres. Inventariam e classificam as populações e os
indivíduos sendo constitutivos da cidadania. (DAMATTA, 2002 e PEIRANO, 2006) São,
portanto:

tanto elementos particulares/individuais quanto ao conhecimento sobre a coletividade – esses


dois componentes indissociáveis do „fato moderno‟ – se conciliam nos documentos, nos
„papéis‟ que, reconhecidos e regulados pelo Estado, identificam o indivíduo como único. O
documento legaliza e oficializa o cidadão e o torna visível, passível de controle, e legítimo
para o Estado. (PEIRANO, 2006:137)

Identificando cada indivíduo na coletividade, os documentos são utilizados para provar quem
é cada pessoa no espaço público. A partir dos dados nele inseridos se apresentam
características que constroem referências relativas ao indivíduo que possui aquele documento.
São dados, datas, nomes, números, fotos, registros que se combinam para construir a unidade
do cidadão no Estado Nacional. “Para identificar o indivíduo, é necessário um conjunto de
referências singulares que, sob uma redundância controlada, garanta que somente um
indivíduo corresponda à descrição aí contida” (id:147).

Como afirmado por Roberto DaMatta (2002), “o documento pacifica e resolve a questão da
identidade” (:46). Mesmo podendo dizer quem é, são os documentos que enunciam o portador
atestando a identificação do mesmo.

Funcionando como 'provas' do que é dito, nas interações cotidianas, o valor atribuído aos
'documentos' situa-se no mesmo registro simbólico que faz com que as relações sociais
legalmente constituídas sejam consideradas como mais importantes que aquelas não-
cristalizadas em 'documentos legais' (GUEDES, 1999 :87)

Quero dizer, os documentos são os instrumentos que identificam e classificam os indivíduos e


estão acompanhados de uma trajetória de controle do Estado que é reproduzida mesmo após a
morte do indivíduo. Assim, para um cadáver são os documentos que comprovam quem era o
cadáver. E, os declarantes são vinculados ao morto, passando a ser a prova da relação
declarada.

Na Liberação do Óbito

O policial do SILO preenche mais dados no TRIC através do SPTweb. O declarante aguarda
na sala de espera da recepção, a realização da entrevista. Na entrevista, o policial confirma
alguns dados já presentes na documentação do cadáver e do declarante como nome, idade,
89
naturalidade e inclui outros: nível de escolaridade, profissão, endereço e telefone. O policial
imprime duas cópias do TRIC, os apresenta ao declarante que lê e assina.

O policial então explica que, a partir daí, com a documentação do cadáver, o papiloscopista
legista realizará o confronto das impressões digitais que foram coletadas no corpo com as que
estão no documento apresentado.

O policial do SILO leva à sala do papiloscopista legista o documento original do cadáver, as


duas vias assinadas pelo declarante do TRIC, o pequeno formulário preenchido na recepção, a
Minuta da Declaração de Óbito e as fotocópias dos documentos. Esses são unidos a GRC e a
Ficha de Identificação Necropapiloscópica.

O papiloscopista legista realiza o confronto das digitais e após a positivação preenche o


Laudo de Identificação Cadavérica – LIC no SPTweb. Durante a pesquisa não foi visto
nenhum caso de confronto negativado93. Esse policial imprime duas vias do LIC, as assina e
une com os outros documentos e formulários entregues pelo policial do SILO. A assinatura do
papiloscopista certifica a identificação do cadáver. Nesse processo, é esse policial quem tem a
voz autorizada para determinar e consolidar os limites da linha.

A liberação de óbito do corpo identificado e reclamado pode, enfim, ser realizada pelo SILO.
A partir do TRIC94, da Minuta da Declaração de Óbito, que é preenchida pelo perito médico-
legista após a necrópsia, e da GRC, o policial do SILO preenche a Declaração de óbito95 que é
emitida em três vias de cores diferentes: branca, amarela e rosa. As duas primeiras são
entregues ao declarante. A terceira via fica no IMLAP para que posteriormente seja
encaminhada à Secretaria Municipal de Saúde.

A Declaração de Óbito é um documento público detentor de fé pública onde a morte de um


indivíduo é transformada em dado oficial. Apesar de esse ser um ato médico, é o policial do
SILO quem preenche todos os campos. Após o preenchimento manual da DO, o policial vai
ao perito médico-legista no Setor de Processamento de Laudos para que esse confira os dados
preenchidos e assine. Assim o morto pode ser oficialmente declarado como morto. O perito
médico-legista reproduz a hegemonia médica sobre a autoridade em matar os mortos e é a sua
assinatura o ato do Estado que dá legitimidade a essa morte.

93
Quando as impressões digitais coletadas não são coincidentes com as que estão no documento apresentado
pelo declarante.
94
Ver as duas páginas do TRIC - Termo de Reconhecimento e Identificação de Cadáver no anexo.
95
Ver modelo de Declaração de Óbito em anexo
90
O policial do SILO, com posse da DO assinada, preenche no Livro de Registro de Exame
Médico/Livro de Registro de Óbito o número da Declaração de óbito, o número da GRC, o
número do CP, a causa mortis apresentada na DO, o nome do cadáver, a hora da liberação do
óbito e a data da liberação do óbito. Ele chama o declarante na sala do SILO, o declarante lê
as informações e assina o Livro, testemunhando todas as informações construídas pelo IML
nesse processo de matar os mortos.

O policial entrega ao declarante os documentos do cadáver bem como as duas vias da DO e


seu documento. E o informa que os procedimentos naquele setor se encerraram e que ele pode
entrar em contato com a funerária para a liberação do corpo.

Oficialmente, uma morte só é considerada fato quando registrada através da Declaração de


Óbito, assim como uma Declaração de Óbito só pode ser registrada a partir da existência de
um cadáver. Tal documento é o registro público que mata os mortos e é emitido para qualquer
morte que ocorra no território brasileiro. É um registro implantado em 1976 e organizado pelo
Ministério da Saúde através das Secretarias Municipais de Saúde. Tem status de ato médico,
e, é o documento que baseia o Sistema de Informação de Mortalidade - SIM. De acordo com o
Ministério da Saúde, a Declaração de Óbito:

tem dois objetivos principais: o primeiro é o de ser o documento padrão para a coleta das
informações sobre mortalidade, que servem de base para o cálculo das estatísticas vitais e
epidemiológicas do Brasil; o segundo, de caráter jurídico, é o de ser o documento hábil,
conforme preceitua a Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015/73, para lavratura, pelos
Cartórios de Registro Civil, da Certidão de Óbito, indispensável para as formalidades legais do
sepultamento. (BRASIL, 2009:7).

A DO é o documento nacional, e com pretensões universalizantes, para consolidar a linha


entre mortos e vivos. Também pretende realizar o controle social, na medida que colabora
com a quantificação oficial da população. Em contraponto, a DO é o documento que permite
que se acionem os direitos dos sobreviventes ao mesmo tempo em que o preenche de
obrigações em relação o morto, estabelecendo para o declarante uma relação na qual os
direitos estão instrinsecamente vinculados com deveres, relação que pode ser denominada de
“cidadania à brasileira”. (AMORIM, 2003).

91
O declarante, com posse da DO, entra em contato com
o agente funerário que vai até o Setor de Permanência
levar o caixão escolhido pela família. O policial do
Setor de Itinerância retira o corpo da câmara
frigorífica, o veste com as roupas que foram levadas
pela família e estão dispostas dentro do caixão.
Algumas vezes, põe algodão no nariz, boca e orelhas
do corpo para que não haja hemorragias e arruma o
cadáver no caixão. O policial do Setor de Permanência
vai até a recepção, chama o declarante daquele cadáver
para que ele realize o reconhecimento do corpo no

Imagem 17: Caixão com roupas caixão. O reconhecimento é realizado no fundos do


prédio do IML, na parte externa. O cadáver já está no caixão e é exposto ao declarante no
caminho que o deixa no carro da funerária.

Após o reconhecimento, o caixão é fechado e guardado no carro da funerária. Enquanto isso,


o declarante se dirige até a sala do Setor de Permanência para assinar o Livro de Saída. Nele
constam informações, numa espécie de declaração de reconhecimento com nome do cadáver,
número da GRC e da delegacia policial, número do Laudo Médico, número do CP, nome do
perito legista, nome do declarante, grau de parentesco do declarante e informações da
remoção e do sepultamento. O declarante assina o livro, dessa vez declarando que a saída do
corpo realmente aconteceu, e se retira do IML.

É a partir da apresentação da Declaração de Óbito a um cartório de registro civil que é


emitida a Certidão de Óbito, o documento oficial que certifica a morte de um indivíduo. Ela
impõe a realização do sepultamento através da Guia de sepultamento, já que na Certidão há
um campo que deve ser preenchido com informações sobre o enterro, e dando direitos aos
possíveis herdeiros. Há a continuidade ao cadáver e a possibilidade de exercício de direitos e
de cumprimento de deveres posteriores a morte.

A figura do declarante96, que é o familiar ou aquele admitido pela lei e pelo IML para fazer o

96
O declarante assemelha-se ao “comunicante” apresentado por Ferreira (2011) nos casos de desaparecimento,
no que concerne ao vínculo social estabelecido entre o morto, ou o desaparecido, e a instituição policial. Ambos
são, portanto, aquele quem declara ou comunica e quem é responsável por acionar o estado através de suas
relações sociais.
92
reconhecimento do cadáver, estabelece a centralidade do cadáver, pois aquele é quem declara
ao Estado a identidade deste. Por sua vez, esta figura enfatiza a tradição cartorial desse
Instituto, pois o declarante é declarado pelo Estado através da Declaração de Óbito como um
familiar, ou pessoa do vínculo social do cadáver como habilitado. Assim, são os agentes do
IML quem decidem – declaram, nos casos concretos, quem pode e quem não pode declarar
morta uma pessoa.

E, após os procedimentos acima descritos o cadáver é levado do IML e encaminhado, pela


funerária, ao cemitério. Concluem assim, as rotinas, médico-legais e cartoriais, que dão vida
aos mortos no IML na medida em que os identificam e classificam suas mortes.

No IML, os procedimentos que os caminhos acima descritos são tidos como rotineiros mas
comportam “uma série de fenômenos de suma importância” (p.29), que foram por mim
observados. Essa observação cotidiana também possibilitou identificar os, como denominados
por Malinowski, “imponderáveis da vida real” (1978), essa classe de acontecimentos
particulares que se expressam no cotidiano, e conjuntamente com a rotina compõem a vida do
Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro.

Os vínculos mais cristalizados dos agrupamentos sociais tais como rituais específicos, deveres
legais e econômicos, obrigações mútuas, presentes cerimoniais, demonstrações formais de
respeito, embora igualmente importantes para o pesquisador, não são todavia sentidos tão
intensamente pelo indivíduo que os tem de por em prática. (id. p30)

Através da observação e, principalmente, da análise das práticas dos interlocutores que


registrei no caderno de campo é que o contato estabelecido com o universo do IML pode ser
explicitado e tanto os “aspectos dos imponderáveis da vida real “quanto os do
“comportamento típico” (p.31) compreendidos. E é a partir desses que passo, agora, a
descrever outra rotinas que também dão vida aos mortos bem como a forma como os mortos
são classificados, expressos e sentidos.

93
Capítulo III - Espírito

Até aqui, explicitei os elementos que considero estruturantes do Instituto Médico-Legal e


quais as práticas cotidianas nessa instituição para construção institucional dos cadáveres. Os
fatos falando por si que possibilitaram identificar as práticas recorrentes.

Além do esboço firme da constituição tribal e dos atos culturais cristalizados que formam o
esqueleto, além dos dados referentes à vida cotidiana e ao comportamento habitual que são,
por assim dizer, sua carne e seu sangue, há ainda a registrar-lhe o espírito – os pontos de vista,
as opiniões, as palavras dos nativos: pois em todo ato da vida tribal, existe, primeiro, a rotina
estabelecida pela tradição e pelos costumes, em seguida, a maneira como se desenvolve essa
rotina; e, finalmente, o comentário a respeito dela, contido na mente dos nativos
(MALINOSWKI, 1978:32).

Neste capítulo, apresento o que pude identificar como as ideias, os sentimentos e os impulsos
não explicitados nos dois capítulos anteriores. Algo próximo aos “imponderáveis da vida
real”, aqueles fenômenos que apenas pude notar por me fazer presente no cotidiano dessa
instituição e assim, observá-los em realidade.

Foi essa experiência de realização do trabalho de campo que me permitiu construir o Espírito.
Capítulo que se caracteriza pela descrição de situações onde os modos típicos e estereotipados
de pensar dos meus interlocutores, expressos através dos sentidos e sentimentos, se inserem
em ideias mais amplas e demonstram suas representações sobre a morte e os mortos.

O tato, o olfato, o paladar, a visão, a audição e o afeto correspondem às experiências marcadas


no próprio corpo. Seja pela presença mesma do corpo no mundo, seja pelo odor que marca o
tempo e o espaço no IML. Ou bem, pelo uso de metáforas que se remetem a um “banquete”,
ou ainda, quando o que é dito é produzido a partir do que se vê, ou quando as categorias
construídas são percebidas enquanto jocosas. E também quando a construção institucional do
cadáver se “preocupa” com o afeto e o representa através da unidade de “família”.

Identificar essas sensações fez parte de um processo que me permitiu obter “uma
experiência”, no sentido apresentado por Dilthey e discutido por Turner (2005b)97. Ao

97
Afirma Tuner, “ensaiei uma etimologia da palavra inglesa “experience”, derivando-a da base indoeuropéia
*per-, “tentar, aventurar-se, arriscar” – podemos ver como seu duplo, “drama”, do grego dran, “fazer”, espelha
culturalmente o “perigo” etimologicamente implicado na palavra “experiência”. O cognato germânico de per
relaciona experiência com “passagem”, “medo” e “transporte”, porque p torna-se f na Lei de Grimm. O grego
peraō relaciona experiência a “passar através”, com implicações em ritos de passagem. Em grego e latim,
94
recordar a origem da palavra experiência, Turner demonstra que ela se refere tanto a uma
passagem, no sentido de passar por algo, o que denota um rito; quanto a um experimento, um
perigo em relação a algo que põe o passante diante do risco do desconhecido. Nessa
perspectiva, ser antropóloga nesse espaço de construção da morte foi um experimento tanto
quanto uma passagem. Um risco juntos aos mortos. Um rito junto aos vivos.

o trabalho de campo, como rito de passagem, implica, pois na possibilidade de redescobrir


novas formas de relacionamento social, por meio de uma socialização controlada. Neste
sentido, o processo é uma busca do controle dos preconceitos, o que é facilitado pela viagem
para um outro universo social e pela distância das relações sociais mais reconfortantes.
(DaMATTA, 1981, p.52).

No IML, que consolida a linha de separação entre mortos e vivos, me apresentei para a
passagem descrita por DaMatta (ibid) e também explorei essa meia-dúzia de sentidos.
Busquei rever meus conceitos e apaziguar qualquer „pré‟. É através dessa experiência que
destaco as representações sobre a morte e os mortos e, de qual maneira os processos de
institucionalização e impurificação da morte, como demonstrei no capítulo 1 – Esqueleto, se
expressam na vida social desse instituto.

O corpus inscriptionum, essa série de assertivas, narrativas típicas, palavras e categorias é o


que também compõe o Espírito. Os discursos e comentários feitos e que dão vida ao IML e
permitem compreender os sentidos e os sentimentos daqueles que lidam cotidianamente com
corpos sem vida. Enfim, os discursos produzidos pelos sujeitos que institucionalmente
classificam e sistematizam os mortos, e identificam, reconhecem e constroem suas relações
sociais.

Estando aqui

Na Antropologia, a textualização dos fenônemos sócio-culturais observados a partir do “being


there” (GEERTZ, 2009), da “capacidade de nos convencer de que o que eles (os
antropólogos) dizem resulta de haver realmente penetrado numa outra forma de vida” (id,
p.15), se dá enquanto um processo de comunicação inter-pares e de conhecimento. É através
de uma linguagem específica, o idioma da disciplina, que as categorias e os conceitos básicos
constitutivos da disciplina se apresentam para a interpretação do que se viu e ouviu. Ou, como
apresentado por Marylin Strathern (2006), a etnografia é um exercício de construção que

experiência associa-se a perigo, pirata e experimento”. (TURNER, 2005, p. 178)


95
busca “transmitir a complexidade dos conceitos nativos com referência ao contexto particular
que são produzidos” (p. 33).

Assim, o escrever se dá enquanto o momento, ou ato cognitivo, nesse processo de construção


do conhecimento quando o olhar previamente orientado é refratado pela disciplina e o ouvir
atento e exercitado já foram realizados (CARDOSO de OLIVEIRA, 1998). A etnografia é
assim a expressão do pensamento e da memória do antropólogo no “being here” sobre o
“being there”. “Seja a etnografia o que mais for (…), ela é acima de tudo, uma apresentação
do real, uma verbalização da vitalidade.” (GEERTZ, 2009, p.186).

Logo, se até o momento, explorei a estrutura sociológica das categorizações acerca da morte
com fins de compreender os labirintos institucionalizados da burocracia estatal (TISCORNIA,
2009) que toma decisões acerca, e no lugar, dos indivíduos, como desenvolve Mary Douglas a
cerca das instituições (2007) agora, parto desse ato cognitivo – o escrever, para destacar o que
observei, ouvi e senti diante das práticas dos atores que operam nessa estrutura social em seu
espaço através de sua linguagem e práticas.

Escrever as interações que acompanhei em sua dinâmica e como eram registradas as


categorias nos processos institucionais me relembra os gestos, emoções, jocosidades e
afetividades que experimentei. Reconstruir essa experiência em forma de texto me faz
compreender a maneira como nascem burocraticamente os mortos e, como eu identifiquei os
elementos que definem, ou constroem, indivíduos sem vida enquanto cadáveres.

“Quem vê nem acredita que ela possa fazer um trabalho de campo desses!”

Na realização do meu trabalho de campo, três principais aspectos se apresentaram como


desafios que identifiquei com pontos de reflexão teórico-metodológica: primeiro, por ser um
local onde ainda não fora realizado nenhum investimento de trabalho de campo sistemático98;

98
Como destaquei no capítulo Esqueleto, a morte e os rituais funerários conformam um tema clássico da
Antropologia Social (cf. RODRIGUES, 2006). Mais recentemente, inclusive, tal vem se consolidando sob na
chamada Antropologia da Morte. Porém, através do levantamento bibliográfico que realizei, encontrei poucas
dissertações ou teses produzidas nos programas de pós-graduação em Antropologia brasileiros, nos últimos dez
anos, sobre os IML ou Medicina-Legal. Destaco as dissertações de Joyce Pescarolo (2007), Letícia Ferreira
(2007) e Lorenzo Aldé (2003). A primeira realizada em Curitiba, no estado do Paraná, sobre processos de
racionalização e institucionalização da morte considerando as perspectivas de contágio e contaminação dos
funcionários do IML-PR; a segunda se refere ao processo burocrático de identificação de corpos não-
identificados no IML-RJ entre os anos de 1942 a 1960, fruto de uma densa pesquisa arquivística; e a última
sobre o ponto de vista dos funcionários do IML-RJ em relação aos processos de trabalho e saúde.
96
segundo, por serem meus interlocutores agentes do poder do Estado99; e terceiro, pelo contato
direto com cadáveres ser algo “socialmente mal visto”100.

A relação entre “pureza” e “perigo” apresentada por Douglas (2010), onde a eliminação da
sujeira e do impuro se refere ao estabelecimento de determinada ordem, e o estabelecimento
das antinomias puro/impuro, limpo/sujo, entre outras, é necessário para a classificação dos
seres e coisas, contribui à minha reflexão a respeito do campo empírico onde realizei minha
pesquisa. Em particular, considerando a maneira como me conduzi no campo e como me
conduziram os interlocutores, nesse espaço.

Ao, inicialmente, escolher realizar o trabalho de campo no IML não considerei a possibilidade
de conviver com mortos enquanto um problema. Acredito que tenha pensado nessa
convivência mais enquanto uma consequência das questões que me intrigavam do que como
uma necessidade para a realização do trabalho de campo. Em momento algum excluí a
possibilidade de ver os mortos, apesar de desconhecer as implicações que esse tipo de
pesquisa poderia ter.

Já havia visto os mortos em ocasião de outra pesquisa, quando fiz trabalho de campo na
emergência de um hospital público.101 No entanto, quando o momento de iniciar o trabalho de
campo se aproximava e quanto mais eu conversava com as pessoas sobre minha pesquisa,
pensamentos novos vinham a minha cabeça.

A escolha desse tema de pesquisa se fez quase que ao acaso. Foi uma sucessão de fatores,
combinada com alguns interesses acadêmicos, que me levou a propor tal instituição como
campo empírico de minha pesquisa ao meu orientador. Ao contar a colegas e familiares qual
seria meu objeto de estudo no mestrado, sempre recebia reações de surpresa, nojo ou
preocupação. Não me recordo de alguém que tenha ficado apático. Alguns diziam: “você é
maluca!”, outros achavam “corajoso”, “maneiro”, “mórbido”, “sádico”, “interessante”.

99
Afinal, além de representarem por status social um lugar importante, médicos e policiais são vozes autorizadas
(BOURDIEU, 1998) não apenas naquele contexto empírico mas também para a sociedade e representam uma
instituição do Estado.
100
Pescarolo (2007) destaca que mais do que uma possibilidade de contaminação biológica, há em relação ao
espaço do IML a representação do contágio moral “Ou seja, estar em contato com a morte produz nas pessoas
uma sensação exacerbada de contágio que ultrapassa o perigo real.” (p. 55)
101
Pesquisa que resultou em minha monografia de conclusão de curso de bacharelado em Ciências Sociais, na
Universidade Federal Fluminense, sob orientação do Professor Dr. Roberto Kant de Lima. (cf. MEDEIROS,
2009, 2011)
97
Caso o espanto fosse muito insistente, por vezes exagerado, eu apresentava o seguinte
argumento: Se alunos de Medicina conseguem, por que eu não vou conseguir? Eu mesma me
punha ao desafio.

Em determinada aula no Programa de Pós-Graduação em Antropologia, a professora solicitou


que nós, os alunos, expuséssemos suas problemáticas de pesquisa. Fui uma das últimas a falar
e enquanto apresentava minha questão, observava os rostos e olhares de alguns colegas e da
professora surpresos, além dos comentários de “Uau”, “Nossa!” “Caramba” que alguns
faziam entre si. Ao final da minha exposição, a professora virou-se para a turma e disse:
“Nossa, tão bonitinha, tão novinha, tão limpinha. Quem vê, nem acredita que ela possa fazer
um trabalho desses!”. E diversas perguntas foram a mim direcionadas, tanto pelos colegas
quanto pela professora. Variadas são as situações que, quando comento sobre o trabalho, a
maioria das pessoas fica curiosa.

No geral, após explicitar as motivações e como construí a questão, as pessoas demonstravam


interesse. Além de fazerem muitas perguntas em relação ao trabalho, as pessoas lembravam-se
de histórias pessoais ou que ouviram contar a respeito do IML. Muitas pessoas também me
indicavam filmes e livros que remetem à morte e aos mortos102.

No entanto, a reação das pessoas colocava algumas questões a mim: Por que tantas pessoas,
apesar de curiosas e de terem algum tipo de conhecimento sobre a morte e os mortos,
repudiam o Instituto Médico-Legal? Porque uma antropóloga realizar trabalho de campo com
mortos era algo tão surpreendente? Para muitos escolhi pesquisar num “lugar sujo”,
“contaminado”, “fedido”, “carregado”.

Dente de alho

Diversas dicas e conselhos foram me dados, e em certa medida me preocupei com eles
também. Foi o caso de uma amiga, que não apenas se surpreendeu como também me fez uma
recomendação. Certo dia, passávamos de ônibus em frente à Leopoldina quando mostrei para
ela o prédio do IML: “Aqui que eu quero fazer trabalho de campo!” Ela, que é umbandista,
ficou muito impressionada e perguntou o porquê de eu querer pesquisar no IML. Disse que é
um lugar “muito pesado”, mas entendeu minhas motivações e considerou interessante o tema
da pesquisa. No entanto, demonstrou preocupação e disse que eu teria que me proteger de

102
Grande parte dessas indicações figura nas notas de rodapé dessa dissertação.
98
alguma forma. Perguntei a ela como, e ela disse que ia pesquisar.

Algum tempo depois, essa amiga me enviou uma mensagem. Nessa indicava que antes de ir
ao IML, eu deveria tomar um banho com sabão de coco, apenas do pescoço para baixo, isso é,
sem lavar a cabeça. Dizia também que ao sair de casa, eu deveria pôr junto ao peito um dente
de alho fresco e que ficasse com ele até sair do IML. Assim que eu me afastasse do prédio,
deveria jogar o dente de alho fora, não podendo voltar para casa com ele. Quando chegasse
em casa deveria lavar imediatamente as roupas e tomar um banho de sal grosso, também do
pescoço para baixo. Os banhos e o dente de alho funcionariam como uma proteção para as
energias ruins, pois “no IML as pessoas morreram com muito sofrimento, seus espíritos ainda
não estão tranquilos e ficam procurando alguém vulnerável para ocupar”.

Muitos poderiam achar esse procedimento de banhos e dente de alho uma bobagem; outros,
no entanto, creem nele e não deixariam de fazê-lo. Optei pela combinação das duas e, apesar
de achar que poderia ser uma bobagem, o fiz na primeira vez que fui ao IML, simplesmente
para não ter na consciência o peso de não fazê-lo.

Quanto à visão oposta – de que o ritual primitivo nada tem em comum com nossas ideias de limpeza –
lastimo por ser igualmente prejudicial ao entendimento do ritual. Nesta visão, nossos atos de lavar,
escovar, isolar e desinfetar, têm somente uma semelhança superficial com purificações rituais. Nossas
práticas são solidamente baseadas em higiene; as deles são simbólicas: nós matamos germes; eles
afastam espíritos. (DOUGLAS, 2010, p.47)

Como apresentado por Mary Douglas, não é que os primitivos apresentem aspectos
simbólicos ao que se refere à sujeira, enquanto nós – “ocidentais” e “modernos”- e “nossas
ideias de sujeira” se refiram apenas ao caráter higiênico (p. 49). Qualquer noção de impureza
se relaciona diretamente a determinado sistema de crenças que se propõe a organizar o mundo
a partir de um sistema de classificação ideal. Como apresentei no capítulo Esqueleto, o que é
“socialmente mal visto”, em nossa sociedade, não é apenas o IML, mas a ideia da morte,
onde os mortos são representantes da desordem nessa classificação sistemática.

Assim, o que se expressa através das reações e impressões acima descritas pode ser pensado
como repúdio e desejo de distanciamento de um sistema classificatório que não admite a
morte como parte da vida. “Resumindo, nosso comportamento de poluição é a reação que
condena qualquer objeto ou ideia capaz de confundir ou contradizer classificações ideais”
(ibid, p. 51).

99
Ao utilizar o dente de alho, indicado por minha amiga, eu expressei uma tentativa de me
purificar e proteger, afastando os “maus espiritos”. Associado ao meu “estar aí” com mortos,
colocando o dente de alho no peito e, me sentir suja, desejando logo tomar o banho, eu mesma
reafirmava esse sistema de crenças e reproduzia as representações de nojo e contaminação em
relação à morte e aos mortos.

Estando lá

No primeiro momento da pesquisa, durante o trabalho de campo no CSRC, não vi os mortos,


mas apenas conversei com os vivos. Cada vez mais que conversava com os bombeiros, mais
histórias de mortos e de estados do corpo conhecia. “Você vai ter coragem de encarar um
podrão? Oh que fede muito hein?!”, me disse um dos bombeiros que fazia bicos limpando
residências onde eram encontrados corpos em avançado estado de putrefação. Passei então a
imaginar o que viria a minha frente no trabalho de campo.

Diferentemente do hospital, onde os mortos eram frescos e porque não dizer, apresentáveis,
no IML há uma grande diversidade de estados do corpo. Não seriam apenas corpos de pessoas
inertes, mas também ossadas; carbonizados; despojos; putrefatos; baleados; corpos com
dimensões e formas alteradas; etc. Também é grande a diferença ao ser o hospital um local de
vida, ou de busca dessa103, enquanto o IML ser reconhecidamente o espaço dos mortos e da
morte.

Favret-Saada (2005), em sua construção teórica, se refere ao “afeto”. No trabalho de campo


da Antropologia, o “ser afetado” significa o antropólogo permitir-se expor à dimensão da
experiência do outro, ao afeto. Dessa maneira, permitir-me refletir acerca de como fora pelos
meus interlocutores construída a relação com os cadáveres, a partir da experiência cotidiana
com eles na relação com os cadáveres. De certa maneira, os policiais do IML buscavam me
ensinar como olhar os corpos e explicitavam sua compreensão acerca das relações de
distanciamento naturalmente tomadas diante dos mortos e da morte.

Aquele que considero meu primeiro contato direto com mortos no IML foi através do
papiloscopista legista, Fernando. Ele me apresentava a estrutura do prédio, e depois de me
perguntar algumas vezes se eu queria ver os mortos, entramos pelos fundos, onde está a porta
pela que os corpos chegam. Assim que subimos a rampa, havia o cadáver de uma senhora de

103
Apesar de um, um dos bombeiros do rabecão, ao comentar o número de remoções realizadas, afirmar que “o
hospital é o matadouro do Brasil!”
100
aproximadamente noventa anos num caixão. Não posso dizer que me assustei, embora
esperasse que isso acontecesse, talvez porque depois de tantos meses ouvindo histórias e
absorvendo representações, esperasse por algo pior. Contudo, a lembrança daquele corpo
franzino e encolhido com a pele já num tom esverdeado mal encaixado num caixão por muito
tempo fora facilmente acessada na minha mente.

Depois disso, seguimos pelo Setor de Necrópsia, passamos em frente às salas de necrópsia.
Em uma delas o corpo de uma mulher aguardava para ser aberto, e fomos até o Laboratório
Necropapiloscópico, que fica do lado oposto do corredor, pegar o E.P.I.104. Enquanto vestia as
luvas e observava os potes de vidro com punhos, falanges e mãos carbonizados que boiavam
nas soluções químicas, tinha a sensação de que era um caminho sem volta. Agora que estava
ali, não tinha como não ver os corpos de verdade e tudo o que haviam me dito nos meses
anteriores estava apenas começando. Não tinha medo, mas ansiedade. Ansiedade de ver outros
corpos logo e ter certeza de que eu não teria nojo ou qualquer problema com cadáveres, pois
disso dependia meu trabalho de campo. Ansiedade em tentar ver naturalmente os corpos.

Nos dirigimos à câmara frigorífica. Quando passamos novamente pela sala de necropsia, o
corpo da mulher estava sendo aberto. Olhei rapidamente, mas nada consegui ver. No hall
anterior à geladeira, no Setor de Vestes, o corpo de uma jovem, de aproximadamente vinte
anos, já necropsiado, era vestido pelos auxiliares de necrópsia. A família enviou uma camisola
cor de rosa e o caixão aberto a esperava. A jovem tinha falecido em decorrência de uma
infecção, após um aborto feito clandestinamente.

O papiloscopista, então, abriu a porta da câmara frigorífica. Junto com a saída do vapor
gelado, a ansiedade se resfriou enquanto eu olhava atentamente para aquela coleção de corpos
em gavetas dos quais eu só conseguia ver os pés. No IML há duas grandes geladeiras com
capacidade para mais de cem corpos cada. Nessa havia aproximadamente vintes corpos
aguardando pelo descanso eterno sob alguns palmos de terra.

Com a porta da geladeira aberta, o papiloscopista me explicava como é o procedimento de


organização de corpos na geladeira. Foi quando um dos técnicos de necropsia, responsável
pela remoção de corpos se aproximou, nos cumprimentou e entrou na geladeira. Lá olhou em
três gavetas, abriu a terceira, olhou o número do CP registrado na placa de metal presa no
hálux e preparou a maca de remoção. A funerária havia chegado para buscar o corpo. Saímos

104
Equipamento de Proteção Individual. Composto por luvas, touca, máscara e avental.
101
dali.

Voltávamos pelo mesmo corredor, e novamente passamos pela Sala de Necrópsia. O corpo da
mulher ainda era necropsiado enquanto o corpo de um homem aguardava por sua vez na outra
mesa. O corredor estava movimentado. Além do médico-legista e do técnico policial em
necropsia que cuidavam do corpo, havia uma médica conversando com um dos policiais do
SILO. Na sala imediatamente em frente à Sala de Necrópsia, do outro lado do corredor, na
Sala de Digitação de Laudos um policial preenchia formulários no computador.

Um pouco depois, quando as necrópsias já tinham sido realizadas, fui com o papiloscopista
até o Setor de Vestes para observá-lo coletar as digitais. Eram os corpos da mulher e do
homem que estavam na Sala de Necrópsia horas antes. Ela havia sofrido um infarto no
miocárdio, e ele fora baleado no abdômen. Ambos corpos estavam muito inchados. O
papiloscopista iniciou seu procedimento de coleta de digitais pelas mãos da mulher. Enquanto
isso, contava-me sobre como começou a trabalhar com mortos. Que tinha nojo; que quando
estava na Academia da Polícia Civil gastou todas as faltas que podia nas visitas do IML; que a
primeira vez que viu um morto “tão de perto na vida” foi quando começou a trabalhar nesse
Instituto; e que a dica que deram para ele, e que ele usa até hoje, é não olhar para o corpo, mas
apenas para as mãos. “Eu não preciso de mais nada, só de saber se a digital tá boa ou não.”

O papiloscopista compreendia a minha sensação, pois já havia passado por ela, ou além dela,
já que ele não só observava mas também tocava nos corpos. Tentei seguir essa dica e me
concentrar em olhar às mãos, mas a curiosidade de compreender a costura bizarra que
atravessava longitudinalmente o corpo, a cabeça jogada para o lado direito, a língua quase que
para fora da boca e as pernas inchadas daquele corpo atraiam meu olhar. Eu estava tentando
ver um cadáver naturalmente.

Quando a observação passou para a aflição, iniciei uma conversa com um auxiliar de
necrópsia que estava sentado numa cadeira próxima à porta. A coleta das impressões digitais
ainda era realizada quando o auxiliar teve que sair porque outra funerária chegava para buscar
um corpo. Voltei a minha atenção, novamente, para aqueles corpos. O papiloscopista
começava “quebrar a rigidez”105 da mão do homem enquanto conversávamos

A “comunicação involuntária” que estabelecia com meus interlocutores se dava nos

105
Consiste em fazer força nos dedos do cadáver para que eles amoleçam e possibilitem a realização de
movimentos por parte do papiloscopista.
102
momentos, onde nenhum discurso podia significar a sensação de estar junto aos mortos por
mais que se tentasse fazê-lo. Apesar de descrever minha experiência e as sensações que tive a
partir delas, considerando os termos de Favret-Saada (2005), minha descrição não é capaz de
transmitir tal afeto:

o próprio fato de que aceito ocupar esse lugar e ser afetada por ele abre uma comunicação
específica com os nativos: uma comunicação sempre involuntária e desprovida de
intencionalidade, e que pode ser verbal ou não. (id. 2005, p.159).

Nesse dia, depois que saí do IML e joguei o dente de alho que estava junto ao meu peito fora,
imagens vinham e iam à minha cabeça. Eram imagens dos corpos. E enquanto me dirigia ao
ponto de ônibus e passava por pessoas, rapidamente na minha mente vinha a imagem delas
enquanto corpos sem vida, deitadas nas macas de metal do IML aguardando pela necrópsia.
Quanto mais eu me esforçava para não pensar em cadáveres, mais eu pensava. Eram
cadáveres desconhecidos, de pessoas de quem não sei o nome ou a identificação. E então, na
tentativa de parar de ver imagens dos corpos me esforçava para pensar em outras imagens. Na
tentativa de naturalizar o ver cadáveres, naquele momento, eu simplesmente não queria pensar
ou me importar com eles.

Assim que cheguei em casa, o primeiro desejo era de tomar banho. Sabia que qualquer risco
de contaminação biológica ou sujeira é nulo, mas a sensação era de que aquelas roupas
pesavam mais do que de costume.

Impureza ou sujeira é aquilo que não pode ser incluído, se se quiser manter um padrão.
Reconhecê-lo é o primeiro passo para a compreensão da poluição. Não nos envolve numa
distinção clara entre o sagrado e o secular. O mesmo princípio se aplica do começo ao fim.
Outrossim, não envolve uma distinção especial entre primitivos e modernos: estamos todos
sujeitos às mesmas regras. (DOUGLAS, 2010, p.56).

Nesse dia foi difícil não retomar inconscientemente à imagem dos corpos. Fui deitar às onze
horas da noite. Ainda me esforçava para pensar em outra coisa que não os corpos. Tentei até
ficar cansada de tanto forçar o pensar, mas só consegui dormir poucas horas antes do
amanhecer.

quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista
nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser
afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer.

103
Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece
alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma
etnografia é possível. (FAVRET-SAADA, 2007, p.160)

Em algumas semanas de observação, o ver cadáveres não me impressionava tanto. Habituei-


me a ver corpos e assistir aos procedimentos nos exames de necrópsia. Aos poucos, no
decorrer de um pouco mais do que a metade dos nove meses de trabalho sistemático de
campo, eu me havia socializado com os corpos. Já me parecia estar naturalizado o ver
cadáveres. Fora, inclusive, com essa naturalidade que, durante o período de trabalho de
campo, apesar do sentimento de tristeza comum e único a quem perde um ente querido, vi e
fui declarante do cadáver do meu pai.

Tanto a imagem do corpo do meu pai morto quanto a de todos os outros cadáveres que vi no
IML já não estão mais evidentes em meu consciente. Ao rememorar os cadáveres para narrá-
los nesta etnografia, não fui capaz de construir mentalmente as imagens desses corpos. Se no
primeiro dia de trabalho de campo no IML eu não tinha controle sobre as visões de cadáveres
na minha mente, depois do trabalho de campo se finalizado continuei não o tendo, só que ao
contrário. Se a principio essas imagens eram exarcebadas, após se tornaram quase nulas. Eu
havia aprendido a ver corpos de pessoas mortas.

Contudo, quando, em Buenos Aires, realizei trabalho de campo na Morgue Judicial de Lomas
de Zamora esse acúmulo de experiência em ver e compartilhar o espaço e o tempo com
cadáveres foi reorientado por outros fatores que não apenas os mortos, mas também estar em
uma outra sociedade, num outro país, vinculada a outros códigos de sociabilidade e com o uso
de outras linguagens, sobretudo, um outro idioma.

Assim, ao me perguntarem lá se, para mim, seria tranquilo ver necróspias, respondi que sim,
pois já estava acostumada a fazê-lo no Rio de Janeiro. Porém, na primeira necrópsia que vi, e
durante muitas outras, uma sensação de incômodo e aflição me completava. O primeiro
cadáver argentino que vi sobre uma mesa de necrópsia era um bebê de nove meses que
morrera por traumatismo craniano. Não sei se pela forma como o exame era realizado, muito
mais detalhado e minucioso que os que eu estava acostumada a ver no Rio de Janeiro; não sei
se pelo ambiente, uma sala não tão limpa como as do IML-RJ; ou ainda, por ser o cadáver de
um bebê106.

106
No início do meu trabalho de campo era difícil e eu incluso, evitava ver cadáveres de bebês. Com o tempo,
104
O que sei é que ver as autópsias me impactava de outra maneira, que não a que experienciara
aqui. Uma das coisas que mais me chamava a atenção era a tonalidade dos orgãos internos.
Parecia-me que o vermelho dos músculos era mais intenso e que o amarelo da gordura era
mais alaranjada. Enquanto constatava essa diferenciação, pensava nas possibilidades de ela
existir e quais seriam os motivos107. Pensava se a iluminação da sala seria suficiente para
mudar tanto tais cores, ou passava a supor que o tipo de alimentação típica dos argentinos
conformava mudanças significativas na coloração de seus orgãos internos. Assim, voltava a
atenção para outros elementos que antes não me surgiam na pesquisa no Rio de Janeiro.

Toda a minha socialização com cadáveres no IML foi posta em jogo, diante da sensação de “o
que é que eu estou fazendo aqui?”. As pessoas falavam outra língua; eu estava distante de
casa; os corpos era percebidos por mim de maneira diferente. Eu tive que aprender, em outro
país, a maneira de observar os “outros mortos”.

Compartilhar do mesmo espaço com corpos sem vida por um período construiu uma
capacidade de imaginar cadáveres. E, por mais que eu não consiga ver exatamente os
cadáveres como os vi nos corredores e salas do IML, sou capaz de representar mentalmente o
cadáver de qualquer pessoa e inclusive saber que os corpos sem vida que figuram em filmes e
séries policiais muito pouco tem a ver com o possível108.

Cheiro

as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar
os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma.
Pois o aroma é um irmão da respiração - ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe
caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração,
distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem
dominasse os odores dominaria o coração das pessoas. (SUSKIND, 1985).

essa evitação foi amenizada. Era estranho ver cadáveres em corpos tão pequenos e, de certa maneira, sensíveis.
Assim como bonecos de brinquedo que de tão reais parecem que a qualquer momento vão se movimentar.
Também me afetava o fato de ao longo da minha pesquisa, ter acompanhado a gravidez e os primeiros meses de
vida de um bebê, a filha de minha co-orientadora. Em nossos encontros, onde eu narrava minhas idas ao campo,
ela sempre esteve presente e, além disso, tenho com ela uma relação de carinho.
107
Apesar da unidade comum da espécie, o corpo humano é percebido culturalmente de forma diferente
inclusive, quando observado o que de mais “biológico” e “comum” há nele.
108
O filme brasileiro „Corpo‟ se passa no âmbito do IML de São Paulo no decorrer do encontro de centenas de
ossadas de desaparecidos políticos. Entre esses restos, surge o cadáver de uma jovem completamente intacto.
Um dos peritos a cargo se envolve com a identificação daquele corpo, que até então estava não identificado. Na
busca pelo nome da jovem, descobre que ela havia sido morta na ditadura militar e que por motivações
inexplicáveis, seu cadáver se conservou por trinta anos.
105
O cheiro do IML é um dos principais motivos para o repúdio, mas também fator de
curiosidade aos que não conhecem o local. Muitas pessoas comentam que no antigo IML, na
Rua dos Inválidos, o cheiro era tão forte e tão ruim que não só o prédio, mas também o
entorno do mesmo fedia a corpos putrefatos. O sentir cheiro de carnes humanas em estado de
putrefação pode ser considerado muito desagradável. No IMLAP, esses corpos, em geral, não
circulam no interior do prédio tendo uma área anexa reservada e separada a eles.

Foi por isso que, quando o cadáver de Lucilene foi aberto na sala dois do setor de Necrópsia,
um grande incômodo se instalou. O fedor era muito forte. “Deixaram essa mulher no
hospital!” exclamou o perito Jair ao constatar que o cadáver que, constava ter morrido no
hospital municipal Salgado Filho às 18h da tarde, às 21h da noite, já estava em estado
intermediário de putrefação. No interior do cadáver, vísceras em putrefação e estômago em
estado intermediário de putrefação corroboravam com a hipótese do perito médico-legista:
“Sacanagem! Ela tá podre!”.

Quando saí da sala de necropsia e entrei na sala de digitação de laudos, Fernanda virou-se e
me disse: “Vixe, você tá fedendo!” Cheirei meu cabelo e minhas roupas em busca do fedor, e
não encontrei. “Sério!? Você acha?” E levei meu cabelo para próximo ao nariz dela. “Ih, não
é você não! Você não foi lá fora?” Fernanda se referia ao outro exame de necropsia que ia ser
realizado na sala de necrópsias destinada a putrefatos. “Não, tava aqui mesmo”, respondi.
“Não é possível! Esse cheiro é daqui, então!? Meu Deus! Neguinho perde a noção”,
espantou-se Fernanda.

O forte cheiro do cadáver putrefato de Lucilene ocupou os corredores. O perito Jair entrou na
sala de digitação de laudos. “Esse podrinho eu acho que vou indeterminar”, se referindo a
causa mortis que iria declarar no Laudo Médico-Legal de Lucilene: “morte indeterminada por
avançado estado de putrefação do cadáver”. Enquanto o médico-legista e a digitadora
construíam o Laudo, e o técnico de cortes suturava o cadáver, funcionários da equipe de
limpeza começavam a limpar o corredor para amenizar o cheiro. Os produtos de limpeza
utilizados eram tão densos, que dessa vez foi o cheiro da creolina que incomodou a digitadora
e o perito. “Cassete, isso aqui não tem janela! Cês querem me matar?”, exclamou Fernanda.
Uma série de espirros depois, a digitadora optou por se retirar da sala109.

109
Na semana seguinte, Fernanda solicitou licença médica, pois passou por uma crise alérgica nas vias
respiratórias. A policial já havia feito uma cirurgia por desvio de septo e, constantemente, tomava medicamentos
para auxiliar sua respiração.
106
Jair, por sua vez, seguia para outra necropsia. Essa seria “lá fora”, na sala de necrópsia
localizada na parte externa, onde outro cadáver putrefato o aguardava. Alguns minutos depois,
Fernanda, já recuperada e os cheiros de podre e creolina já amenizados, voltou à sala.
“Querida, vou ali fazer umas fotos sensuais e já volto”. Disse, ironicamente, Jair a Fernanda.
O perito voltou dez minutos depois. “Tá muito podre?” perguntou a técnica-policial. “Tá!”,
respondeu Jair. “Mas tá morto, né!?”. E Jair disse: “Mas parece que tá vivo de tanto bicho que
tá se mexendo”.

O cheiro, ou fedor, é tema de conversa entre os funcionários do IML. Os serventes da empresa


terceirizada de limpeza contam que muitas pessoas, principalmente mulheres, não conseguem
trabalhar no Setor de Necrópsia porque passam mal devido ao cheiro. “Ver morto a gente
acostuma, mas o cheiro mexe com a gente diferente... nem sempre tem como controlar”, me
explicou Alessandra, uma das serventes. O cheiro é um daqueles sentidos cuja percepção, para
ela, atinge os sentimentos.

Diferente do cadáver de Lucilene, durante a realização de necrópsias de corpos não-


putrefatos, o odor é outro. Ao tentar descrever esse cheiro, um dos policiais descreveu como
sendo “cheiro de sangue, muito sangue misturado”. Há também o odor dos órgãos do sistema
digestório110 e as substâncias presentes neles. Os cadáveres são frescos, mas os alimentos
ingeridos horas antes de morrer, nem tanto. Assim, quando aberto o abdômen dos cadáveres,
por vezes o odor se assemelha ao de dejetos fecais; outras vezes, quando coletado o material
do estômago, um forte cheiro de vômito era exalado. Cadáveres carbonizados também
apresentam seu cheiro característico. Como carnes que passaram do ponto, o odor de um
corpo humano queimado é percebido como um dos menos desagradáveis.

Já na câmara frigorífica, junto com o ar frio111 que sai desse congelador de corpos chega o
odor azedo de carne não tão fresca. O cheiro do setor de necrópsia, em geral, não é agradável,
mas, para mim, também não era insuportável. Quanto mais me aproximava do fim do

110
Uma vez, acompanhando as necropsias aprendi que não se utiliza mais a expressão “aparelho digestivo” tal
como eu aprendi na escola. Atualmente, a taxonomia médica tem utilizado sistema digestório, pois tal termo
indicaria de forma mais adequada o processo de circulação de alimentos que ocorre no corpo humano
anatomicamente. Já a noção de “aparelho digestivo” se refere ao conjunto de órgãos e, principalmente ao
substantivo ou adjetivo concernente a esse. A diferença de “nomenclatura” demonstram o quanto o saber médico
orienta-se em construir categorias cujos sentidos só se apresentam no interior desse próprio sistema,
caracterizando-se assim, enquanto o saber-poder que estabelece o sistema classificatório em relação ao corpo
humano. Sobre a linguagem médica ver: REZENDE, 2012.
111
A temperatura média da câmera frigorífica é mantida entre -5°C e 5°C.
107
corredor, onde está a câmara frigorífica menos agradável ficava o cheiro.

Diversos são os odores que habitam os corredores do IML. O olfato é a forma como são
percebidos os cheiros que ativam a memória dos que por aqueles corredores circulam. O
cheiro é uma das maneiras possíveis de partição no meio-ambiente e de expressão da
existência no mundo (INGOLD, 2000, p. 95). Metaforicamente, o faro é o “olfato dirigido”
(RENOLDI, 2007, p.156) que torna os policiais capazes de perceber e intuir o mundo.

No IML, o faro policial é ativado através dos odores que ocupam os corredores e são
indicadores das práticas e dos momentos da rotina de trabalho. O cheiro permite que se
visualizem coisas onde essas não estão evidentes e que se identifiquem características nas
pessoas, lugares e situações antecipadamente. Faz parte do “tirar” policial (KANT, 1995) e é
constituinte do saber dos policiais. (EILBAUM, 2005; FERREIRA, 2011, p. 147)

O cheiro é indicador do “ritmo social” do IML. Aos que tem a capacidade do faro, isto é, de
perceber e identificar os diferentes odores ao serem parte do ambiente, o cheiro é ponto de
referência nas relações de espaço e tempo (EVANS-PRITCHARD, 2005). O cheiro também
auxilia na leitura do corpo, que se expressa através do seu odor. O estado do corpo ou a
condição dele podem ser identificadas pelo cheiro exalado.

O cheiro de café entre as 15h e 16h horas é indicativo da volta do horário de almoço e do
retorno; após o café, da realização de exames. O cheiro de formol está nos laboratórios que
conservam órgãos e partes humanas. Na parte externa, o cheiro de madeira dos caixões da
Santa Casa é encoberto pelo odor de fumaça que sai dos canos de descarga dos rabecões, dos
carros funerários e dos veículos da Polícia Militar que entram e saem trazendo pessoas detidas
para exames médico-legais. O IML seria um paraíso olfativo a Grenouille112.

Banquete

Estávamos na copa do IML. Fernanda, Lúcio, João e eu havíamos pedido pizza para o jantar e
Felipe aquecia sua marmita – arroz, frango, quiabo e feijão - no microondas. Juan e Ricardo,
do Setor de Cortes, já haviam jantado. Assim como Felipe, traziam marmita de casa – Juan

112
Jean-Baptiste Grenouille, é o personagem principal do livro alemão „O perfume‟ de Patrick Süskind.
Grenouille é um jovem francês nascido no século XVIII que não exalava cheiro algum ao mesmo tempo que
apresentava olfato extremamente desenvolvido, capaz de identificar odores por mais longe que estivessem e
armazená–los todos em sua memória. Em busca do odor humano perfeito, Grenouille torna-se um assassino e um
grande perfumista com técnicas e acervo de odores únicos. Ao alcançar o perfume ideal e perfumar-se com ele,
torna-se o principal e único prato de um banquete canibal em praça pública.
108
comprara um congelado de medalhão com arroz a piamontese; Ricardo uma lasanha
congelada. “Agora que eu já jantei, vou inaugurar minha faca de verdade.”, falou Juan. “Que
história é essa?” perguntou Fernanda. “Comprei uma faca nova! Agora sim vou fazer corte
direito.”, respondeu Juan mostrando para Fernanda uma faca de aço inox da marca
Tramontina com cabo branco, medindo aproximadamente trinta centímetros de lamina.

A mesma faca também havia sido comprada por Ricardo. Os policiais comentavam que era
bem melhor usar faca nova, e que encontraram essa na promoção da Leader Magazine113.
“Essa é pra cortar carne, meeeesmo”, enfatizou Ricardo. “Me empresta aí então, enquanto
não está contaminada!”, pediu Felipe. As facas novas, compradas pelos policiais Ricardo e
Juan, não eram para ser utilizadas na copa durante o jantar. A carne que os policiais se
preocupavam em cortar direito era a carne humana.

Ao observar os exames necroscópicos sistematicamente, chamou-me atenção como os


policiais que realizam o corte do cadáver possuem uma técnica específica que se refere à
prática na função que exercem tanto quanto no uso de instrumentos determinados para
abertura e fechamento dos corpos. A faca para o corte do cadáver, além dos EPI, são os mais
particularizados desses instrumentos. Cada policial tem o seu avental, suas galochas, sua
máscara e sua faca. Agulhas, serra, seringas, alicates e outros instrumentos são de uso comum.

Voltei a perceber essa associação no corte da carne humana e daquela para alimentação na
Morgue de Lomas de Zamora através da indumentária dos técnicos evisceradores. Eles se
chamavam como “carniceros”, ou seja, aqueles que preparam a carne, através do corte, e a
vendem. Os carniceros são açougueiros.

Fora curioso notar que, tanto lá como aqui, o uso de todos esses instrumentos é precedido de
um serviço realizado pelos policiais do Setor de Itinerância que, como garçons, “servem” o
corpo da “bandeja” na mesa para a realização do corte. O corpo, essa “carne meeeesmo!”,
tem aí, em seu redor, uma série de categorias ou metáforas que remetem a outro universo: o
alimentar.

Nesse sentido, cabe marcar a distinção entre categorias e metáforas tal como desenvolvida por
Magnani (1992) que destaca que enquanto categoria é uma construção que delimita, descreve
e explica um fenômeno específico, a metáfora “é tomada de outro domínio, e empregada em

113
Loja de departamentos.
109
sua totalidade” (p. 48). Assim, o significado original da palavra, seu sentido denotativo, não
vem com a palavra, mas é aplicado a um novo campo, seu sentido conotativo.

A metáfora é a palavra sendo usada no lugar de algo, substituindo-o e dando-lhe um nome que
evoca o contexto original, mas não têm distinções claras e precisas no contexto presente.
Sendo uma maneira simples de decorrer do conhecido ao desconhecido, a metáfora funde dois
domínios distintos de experiência (TURNER, 2005b, p. 21): os exames necroscópicos e os
banquetes; e constrói uma imagem que os englobe.

As palavras e expressões utilizadas pelos policiais como um universo de metáforas remetem e


evocam o campo semântico de um banquete, dos alimentos, da comida. São os instrumentos
médicos com nome de utensílios para a alimentação, o ato de servir e até mesmo a roupa. É o
cadáver chamado como “presunto”. Tal sistema de significações, dos alimentos e das formas
de preparo das comidas já foi objeto da análise realizada por Claude Lévi-Strauss114.

Olhando essas categorias como metáforas, e pensando no domínio ao qual essas metáforas da
Sala de Necrópsia se referem, tal como Santiago Alvarez, (2012) ao comparar práticas de
comensalidade durante a ditadura militar Argentina e em uma comunidade campesina na
Colômbia, “interpreto a comensalidade como uma instância de construção de laços sociais por
meio de atos ritualizados do compartir. O termo vem do latim, comensa, que quer dizer mesa
compartilhada, e implica o consumo coletivo do alimento.” (p.12).

O serviço de necrópsia, pensando metaforicamente, expressa uma linguagem que se refere a


rituais de compartilhamento e interliga sistemas de oposições. Assim, a carne servida na mesa
para o corte através das bandejas é o corpo a ser aberto pelo policial do setor de Cortes na sala
de Necropsias que ao compartilhar a mesa de necrópsia na abertura de um corpo gera vínculos
de cumplicidades fortalecendo as relações estruturadas entre aqueles policiais.

114
Refiro-me à série Mitológicas, em especial ao primeiro livro da série: „Cru e Cozido‟ (2004), onde Lévi-
Strauss demonstra, através da análise dos mitos, o caráter elementar dos alimentos e dos processos de preparo
dos mesmos. A partir dessa análise, o antropólogo constrói o triângulo cru-cozido-podre. Nessa construção o
cozido se refere à transformação cultural do cru, e o podre se refere à transformação natural. Para o tripé, há
quatro pontos de oposição, a partir dos sabores: cru se opõe ao natural; o cozido em oposição ao doce; o tostado
se opondo ao amargo e o podre opondo-se ao azedo do fermentado. Para o autor, cozinhar é inserir os alimentos
em uma linha cujas escalas partem do cru e chegam ao cozido. O cozinheiro é quem mantém esse ponto de
equilíbrio para não tostar demais ou fermentar ao ponto de a comida não ser consumida. Por sua vez, o
cozinheiro está orientado pelos hábitos alimentares de sua sociedade que orienta o quanto admitir em relação as
variações dos pontos de cozimento.

110
Ao compartilhar a mesa de necropsia, os policiais reforçam as distinções entre o “nós” e “os
outros”. E essa é canalizada por atos determinados que se assemelham a atos ritualizados no
que concerne a sua organização em etapas complementares. Assim, a maneira como são
realizados os exames necroscópicos é também fruto de uma cumplicidade entre peritos,
técnicos e auxiliares que compartem os diversos mecanismos para a construção de um morto.

Na realização de exames, técnicos do Setor de Cortes e peritos médico-legistas iniciavam a


conversa. Comentários sobre tatuagens dos cadáveres, forma física, sobre o penteado e sobre
a maneira como havia sido a morte eram realizados. Dois cadáveres de jovens negros estavam
sendo necropsiados. Um deles havia sido morto a tiros, na Vila Kennedy e outro atropelado na
Avenida Brasil, na altura de Manguinhos. Outros três cadáveres, também de jovens negros
baleados, aguardavam para serem necropsiados. Nesse dia, os jornais anunciavam uma
„Guerra de Facção‟ em Vila Kennedy.

Ao começar o exame externo, o policial Juan observou a tatuagem no braço direito do jovem
baleado que dizia: „TE AMO PM‟. “Alguma tatuagem?” perguntou o perito Rosário. “Uhum,
maluco! Te amo PM! Vai ver era homossexual” respondeu Juan. O perito escreveu no
esquema de lesões a tatuagem e autorizou a abertura do cadáver. Se dirigiu à outra mesa de
necrópsias, onde estava o cadáver do jovem atropelado. Nesse, Renan comentara “Esse rapaz
aqui era do Nordeste!”, se referindo ao formato levemente achatado da cabeça do rapaz.

Ao decorrer das necrópsias, assim como em jantares e banquetes, peritos médico-legista e


técnicos conversavam. As conversações eram diversas. Tanto se referiam ao que estava sendo
compartilhado, o cadáver, e opiniões sobre a causa mortis, ou forma física, tatuagens; quanto
a experiências familiares e individuais, ou assuntos de interesse comum, como futebol,
televisão e polícia. Assim, sobre a mesa de necrópsia, perspectivas dos policiais
coordenavam-se ou, pelo menos comunicavam-se entre si (ALVAREZ, 2012). Compondo,
durante a construção institucional do morto, um espaço com vínculos de cumplicidade e
reciprocidade.

Piadas e Sacanagens

A metáfora da comensalidade e os vínculos construídos através dela não implicam dizer que
não possam se expressar diferenças e hostilidades. Ao contrário, elas mesmas são uma
expressão de diferença marcada entre os policiais - enquanto “nós”, e os “outros” – e a
sociedade ou, os que não são policiais. Além disso, aqueles que lidam diretamente com os
111
cadáveres estabelecem entre si um ambiente de “relações jocosas” (RADCLIFFE-BROWN,
1973) em contraponto às “relações de evitação” (ibid.) que a sociedade ocidental apresenta
diante da morte (AIRES 1989a, 1989b).

Assim se busca estabelecer uma forma que combina relações de associação e dissociação entre
aqueles que se relacionam com a morte e os que não se relacionam, respectivamente. Os
funcionários do IML, a partir dos mortos, mantêm relações entre si.

No IMLAP, o trabalho com os presuntos – termo metaforicamente utilizado para se referir a


alguns cadáveres, é o tempo todo orientado por piadas e comentários. Os profissionais costumam
chamar de presunto o grupo de cadáveres, ou aqueles que estão armazenados na câmara
frigorífica e nunca a um cadáver específico. André, que trabalhava no Setor de Itinerância,
responsável pelo deslocamento do cadáver entre os setores, sempre dizia “tem um monte de
presunto aí na geladeira”, mas nunca em relação ao cadáver que manipulava diretamente, ou
servia na mesa de necrópsia. A esses chamava pelo nome próprio; pelo número do Código de
Permanência; pela causa da morte - “esse homicídio aqui”, “o atropelado da Penha”; ou por
apelidos a partir de uma narrativa conhecida da história da morte desse corpo.

Na semana anterior ao Ano Novo, conversava com Fernando, papiloscopista legista, e Alberto,
técnico de necropsia na sala de digitação de laudos, localizada imediatamente em frente a uma
das salas de necropsia. Enquanto conversávamos, a médica Anita que estava realizando uma
necrópsia entrou na sala perguntando ao técnico sobre o “pernil do reveíllon!”. Alberto
respondeu, afirmando que era “só escolher ali na geladeira”. A câmara frigorífica do IMLAP
fica no final do corredor onde estão localizadas as salas de necrópsia e de digitação de laudos.
A risada foi geral e Dra. Anita comentou que estava satisfeita, pois ia trabalhar junto com os
mortos no plantão do dia trinta e um de dezembro. Fernando comentou que também havia
sido escalado, mas não estava tão contente quanto a médica. “Pode deixar meu filho, eu te
trago uma Coca-Cola”. “Sacanagem!”, respondeu Fernando. Novamente mais risadas. E a
médica regressou para a sala de necrópsia.

As interações dos vivos com os mortos são pautadas pela irreverência e pelo humor
constituinte das “relações jocosas”. O prazer e o repúdio de trabalhar com cadáveres podem
ser observados como análogos à amizade e a oposição descritas por Radcliffe-Brown nas
relações de parentesco e aliança. Assim, os policiais do IML se vinculam entre si e com a

112
morte de forma irreverente e demarcam sua oposição e distância com a sociedade, ou a
determinadas esferas dessa.

Em contextos sociais formais, tal jocosidade seria sentida como agressiva e geraria
hostilidade, mas quando ditas “de sacanagem” o que pode ser visto como desrespeito aos
cadáveres é consentido e compreendido, pois apresenta modulações diversas. Logo, o uso das
práticas "jocosas" é contextual e no sistema de classificação e interação se incorporam
classificações no discurso "nativo" e na reflexão sobre a experiência vivida.

As “piadas” e as “sacanagens” são um fato para os nativos, que identificam as práticas jocosas
nas suas atividades sociais e as justificam como uma maneira de se relacionar cotidianamente de
forma leve com a morte. Nesse sentido, o domínio das relações jocosas e suas modulações são
construídas como formas de lidar com os mortos e com outros vivos e, desta forma, desenvolver
sua rotina diária.

Impressões e comentários

As piadas e as sacanagens em relação aos cadáveres sempre eram orientadas por aquilo que os
policiais podiam ver no corpo morto. Além de uma forma de lidar com o trabalho, era também
uma forma de dar vida aos mortos. Os policiais do IML preenchiam suas relações sociais
conforme sistema de classificação do próprio IML, relacionando assim a rotina com narrativas e
opiniões sobre os mortos.

O papiloscopista André, que algumas vezes comentou não gostar muito do trabalho direto com
cadáveres, sempre que possível fazia comentários irônicos sobre a aparência física dos corpos
mortos. Assim, um homem obeso era “bolinha”, um rapaz com sobrancelhas modeladas era
“uhmm... estranho” e uma senhora que faleceu em casa devido a um infarto quando tinha rolos
de plástico no cabelo “morreu de bobes!”.

Fernando, que também já havia realizado sua aposta, coletava as impressões digitais do cadáver.
Eu o acompanhava e perguntei a André o que tinha acontecido com aquele homem. André me
perguntou: “Não está reconhecendo, não!?” Com a minha resposta negativa, André falou “Esse
aí é o Nelson Rodrigues!”115. “Nelson Rodrigues!?”, falei. “É, pô! Cê num viu no jornal? O ex-

115
Nelson Rodrigues, escritor brasileiro, falecido em 1980. Iniciou sua carreira como repórter policial e obteve
reconhecimento com romances policiais e crônicas futebolísticas. Seu estilo literário é denominado “tragédia
carioca”, uma releitura contemporânea das “tragédias gregas”, onde erotismo e violência são identificados como
atributo do realismo característico dos textos desse autor. Ao dizer que aquele morto era Nelson Rodrigues,
113
marido, lá na Barra, que deu um tiro no cara que era o amante da sua mulher... agora, já era
até namorado dela, sei lá. Filho dele no carro e tudo. Atirou, acertou, matou... Cê já leu Nelson
Rodrigues já, né!?”

Sempre conversava com André, policial do setor de Itinerância e Vestes. Por me considerar
“uma menina muito inteligente”, André me perguntava sobre cinema, literatura, viagens e
universidade. Era formado em Veterinária e se preparava para o concurso da Polícia Federal. Ao
contar-me a maneira como aquele homem havia sido morto, parecia deixar explícito porque
chamara aquele cadáver de Nelson Rodrigues, afinal eu, obviamente, já havia lido Nelson
Rodrigues. Demonstrava assim que, para ele, compartilhávamos um código comum no qual eu
era capaz de compreender os comentários e as piadas.

Os comentários sobre os cadáveres feitos por André, Fernando e os outros policiais eram uma
maneira de demonstrar outras habilidades ou tipos de conhecimento entre eles e para mim. Nesse
sentido, identifico uma forma de mediação onde os corpos eram instrumentos para a construção
de outros tipos de conhecimento, que não o médico-legal e policial, e verdades que se referem às
impressões e ideais construídas ao ver e apreciar aqueles indivíduos após a sua morte.

Esses comentários, expressos com força afirmativa, estabeleciam a relação do enunciador com o
cadáver. Isto é, explicitava o que aquele policial pensava sobre e lia naquele corpo. E, também,
criavam um campo de assunto para um diálogo com os outros policiais e comigo. Assim, seja
através de metáforas, seja por piadas ou sacanagens, ou, seja ainda por comentários sobre o que
era lido nos corpos, os mortos eram mediadores das conversas e das relações entre os vivos.

Necroshopping

“Esses caras andam sempre muito bem vestidos. Relógio, colar... essas coisas, ficam no local”,
contava-me o perito Rosário. Conversávamos sobre os pertences dos cadáveres, em especial
daqueles considerados envolvidos com o narcotráfico que, em geral, chegam descalços e sem
acessórios no IML. Nesse dia, quatro jovens haviam sido baleados fatalmente na Vila Kennedy,
e o cadáver de um deles chegara no IML calçando um par de chinelos modelo Havaianas azul.
De acordo com o médico, familiares ou pessoas que encontram os cadáveres ou, os policias
militares e os bombeiros que realizam a remoção, se apropriam de objetos encontrados com
cadáveres na rua e, por isso, é raro chegar no IML corpos com calçados.

André identificava nele características do estilo literário construído por esse autor.
114
Os pertences dos cadáveres que chegavam no IML e que não eram acautelados se inseriam num
mercado chamado “Necroshopping”. Lençol, chinelo, roupas... “Tinha uma menina da limpeza,
coitada, era muito pobrinha. Ela pedia pra gente não cortar a roupa não, até ajudava a gente a
tirar sem estragar para poder levar pra casa. A gente ajudava.” Relatou-me Renan, policial do
setor de cortes. “É, mais tem muita coisa daqui que vai lá pra Glória. Shopping chão é cheio de
pertence de cadáver116”, afirmou Lúcio.

O Necroshopping também era composto por itens e instrumentos de trabalho descartados no


IML. “Outro dia, uma caixa de luva vencida... o segurança levou pra repassar”, comentou
Paulo, técnico policial do Setor de Evidências Criminais. “É, mas isso é tranqüilo. Pior quando
levam formol vencido para fazer escova progressiva no cabelo. Deus me livre, ainda bem que
nasci com o cabelo liso!” exclamou Fernanda, explicando que algumas serventes da empresa
terceirizada já haviam levado formol fora da data de validade, que iriam ser descartados, aos
salões de cabeleireiro de seus bairros para a realização de procedimentos químicos nos cabelos.

Os pertences de cadáveres que chegam ao IML são “acautelados” – postos sob responsabilidade
policial, no setor de Evidências Criminais. A decisão se os pertences serão acautelados, ou não, é
feita na sala de Necrópsias pelo perito médico-legista, no momento de realização dos exames.
Alianças, dentaduras e medalhinhas de santo são os principais objetos acautelados.

Na liberação do cadáver, a família é informada dos pertences. Algumas vezes, esses são
entregues no momento do reconhecimento do cadáver no caixão; em outras, quando da
assinatura que confirma o recebimento da declaração de óbito. Mesmo assim, quando eu
realizava a pesquisa, havia mais de cem itens acautelados no Setor de Evidências Criminais. Tais
pertenciam a diferentes cadáveres e eram mantidos no IML. Alguns eram de não-reclamados.
Outros ficavam no setor porque a própria família não queria mais ou, porque, mesmo sendo
informada da existência dos pertences, esses não eram imediatamente entregues a ela.

Os mortos podem ser despojados de seus pertences, e tal representa um “esvaziamento” das
relações sociais que eram mantidas. A atenção para os objetos dos mortos fala sobre eles,
como no caso do Homem, explicitado no prólogo, onde fora dedicado tratamento diferenciado
com o corpo, mas também com os seus pertences. A relação de continuidade dos mortos,
quando expressa na relação com seus pertences, demonstra que há corpos que valem mais do

116
O shopping chão é formado por vendedores ambulantes, em sua maioria, moradores de rua, no bairro da
Glória. Esses expõem seus produtos sobre papelões, plásticos ou tecidos dispostos no chão. Os produtos são
variados desde roupas, acessórios e sapatos usados a produtos eletrônicos, livros e discos, todos usados.
115
que outros e que a relação cadáver e objeto é uma das formas possíveis de identificar o lugar
ocupado por esses cadáveres.

O corpo morto

No IML do Rio de Janeiro há diferentes formas de referir-se a um morto. São diversas as


categorias utilizadas pelos profissionais: cadáver, periciado, morto, vestígio, resto, presunto,
homem, baleado, entre outras. Mas de todas elas, a que mais me chamava atenção, por ser a
mais é utilizada, era a de corpo. “Traz esse corpo pra cá”, falava um policial ao bombeiro.
“Leva esse corpo pra lá”, dizia um perito médico-legista a um policial. “Chegaram mais
corpos” comentava um policial à assistente social. “Senhora, o corpo está sendo examinado”,
afirmava a assistente social à mãe de um jovem morto. Até o momento, demonstrei no texto
que o corpo morto é o produto da morte tanto quanto é objeto de trabalho dos profissionais
no IML. Mas, afinal, o que é esse corpo? Ou melhor, além de ser um cadáver, o que significa
esse corpo?

Desde Marcel Mauss (2003), a Antropologia tem direcionado seu olhar ao corpo e à
corporalidade demonstrando como os indivíduos de diversas sociedades utilizam e
representam o corpo. É o próprio Mauss quem afirma que

o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar
de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico,
do homem é o seu corpo. (p. 497).

Para Marcel Mauss, toda a expressão corporal é apreendida. E as “técnicas corporais”


demonstram a interdependência entre os domínios físico, psicossocial e social correspondendo
a mapeamentos socioculturais do tempo e do espaço nos indivíduos. São produto da razão
prática coletiva e individual, denominando de “habitus” aquilo que se permite visualizar dos
atos. Desta maneira, o corpo enquanto objeto antropológico corresponde a um fato social total
expressado pelos indivíduos e pela sociedade no “habitus”.

Perspectiva esta corroborada por Robert Hertz, em sua reflexão acerca da “Preeminência da
mão direita” (1980). Nela, Hertz explicita a relação entre o comportamento corporal e as
representações coletivas onde essas atuam sobre o corpo lhe dando habilidades e/ou
suprimindo-lhe competências. Tanto Mauss quanto Hertz demonstram como o corpo seria o
objeto mais natural às ciências, sendo moldado e construído via as representações sociais, pela
vida social. No momento que as representações sociais eram a maior preocupação da
116
produção antropológica, o corpo surge como objeto analítico para a reflexão, onde as práticas
sociais se inscrevem.

Posteriormente, orientada pelos estudos de Marcel Mauss, Mary Douglas demonstrou esse
“microcosmos da sociedade” como reflexo dos discursos sociais construídos e legitimados.
Dessa maneira, o corpo é símbolo daquilo que é construído e legitimado socialmente. Como
definido por Citro (2009), “Douglas sustenta que as formas de controle corporal constituem
uma expressão do controle social. Se inaugura então uma perspectiva simbólica sobre o corpo
e a sociedade que terá grande fôlego na área [antropológica]” (p. 30).

Contemporaneamente a Mary Douglas, Michael Foucault (1977, 1999, 2007) apresenta as


maneiras que determinadas representações do corpo são construídas e legitimadas. Assim, é
através do disciplinamento das práticas institucionais que são formados saberes e corpos
específicos. O corpo se insere no cerne da “microfísica do poder”, deixando de ser apenas um
símbolo da estrutura social e sendo um lugar de disputa.

Mais recentemente, os estudos antropológicos vêm deixando de lado a idéia de corpo quanto a
representação da cultura, e direcionando ao olhar o corpo como o meio que exterioriza a
experiência do individuo no e com o mundo. Assim, o corpo passa a ser tomado como o
próprio sujeito da cultura, deixando de ser visto como algo passivo diante da sociedade, da
cultura e de suas representações (CSORDAS, 2008, 1990). A partir dessa noção, Pierre
Bourdieu (2002), retoma o conceito de “habitus”, no qual

o corpo deixara de ser pensado exclusivamente como fonte de simbolismos ou meio de


expressão para passar a ser considerado lócus da prática social, tentando superar dessa forma
as oposições entre posturas subjetivistas e objetivistas. (CITRO, 2009, p.31)

A Antropologia do Corpo passou a se constituir como um campo de estudo específico. E as


noções de “embodiment” e “performance” do corpo desenvolvidas por Thomas Csordas
(2008, 1990) tornou-se o ponto de partida metodológico, antes ocupado pelos discursos
inscritos na plataforma fisiológica humana, passando a ser objeto de atenção específica de
antropólogos.

Ora, frente a essas perspectivas, o corpo é a ferramenta original dos indivíduos, onde esses
moldam sua experiência no mundo, transformando-o. Mas, o corpo é também, a substância
original a partir da qual o mundo humano é moldado nos indivíduos. Assim, o corpo é
simultaneamente objeto de técnica e meio técnico e nunca pode ser encontrado num qualquer
117
suposto "estado natural", como já fora afirmado por Mauss (2003). “Sem os homens
certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem
cultura não haveria homens” (GEERTZ, 1989, p.36).

São as formas particulares de cultura, e as formas particulares de se moldar no mundo e de


moldar o mundo em si, que constituem os indivíduos e seus corpos. Uma relação entre o
inato, coisas que são “inteiramente controladas instrisecamente” (ibid.) e outras que são
“quase que inteiramente culturais” (ibid.).

entre o que o nosso corpo diz e o que devemos saber a fim de funcionar, há um vácuo que nós
mesmos devemos preencher, e nós o preenchemos com a informação (ou desinformação)
fornecida pela nossa cultura (p. 36).

Mas, e o corpo sem vida? Enquanto com vida, a cultura se inscreve nos seres e é moldada por
esses. Depois da morte, o corpo segue. Como dito a mim, por um perito médico-legista:
“Pessoa acaba junto com o fim da vida.” Isso quer dizer, nesta representação que as pessoas
têm nome, família, ação, relações sociais, principalmente, que pessoas têm vida. O fim da
vida, pelo menos o biológico, a morte, retiraria dos corpos o atributo de pessoa e os
transformaria em “outros sociais” (GELL,1998), em mortos.

O corpo sem vida no IML seria assim, um “outro social” que funciona como ferramenta,
como meio técnico. Tal corpo se referiria, tanto à biografia da ferramenta, isso é a vida que
outrora tivera o próprio corpo; quanto às narrativas que o envolvem e são construídas após o
fim de sua vida, no âmbito do IML. Tais narrativas também se relacionariam com a biografia
pois, ainda que os corpos sejam vistos como ferramentas ou coisas, também estão inscritos
neles as histórias de sua vida. Assim, o corpo morto como ferramenta elucidaria quem foram
aquelas pessoas.

Um corpo sem vida não está mais sujeito ao habitus, essas técnicas do corpo apreendidas
socialmente. (MAUSS, 2003; BOURDIEU, 2001; ELIAS, 1994,1993). Mas,
simultaneamente, um corpo sem vida é o resultado de uma vida, de uma cultura. No IML é a
ferramenta para compreensão do próprio morto e, por conseqüência, da morte. O corpo morto
tampouco (re-) apresenta ao “estado natural” discutido por Mauss (2003). Os mortos não mais
se apresentam, mas são apresentados como seres passivos das relações sociais. Corpos sem
vida, nesse aspecto, podem ser considerados, coisas que apresentam forma, substância. Pode
um corpo sem vida apresentar agência?

118
A noção de agência, nos parâmetros apresentados por Gell (1998), diz respeito a pessoas e
coisas produzindo relações sociais ao seu redor. É a capacidade, potência ou poder de se
realizar algo. A agência apresenta duas perspectivas: a intencionalidade do agente, “agência
ativa” e a passividade, “agência passiva”.

No sentido desenvolvido por Ortner (2006), a noção de agência se caracteriza enquanto uma
ação motivada e intencional que tem como capacidade projetar, desejar e construir
intencionalidade atuando criativamente no mundo social. Não significa dizer que
intencionalidade é o mesmo que consciência, mas sim que há uma continuidade entre as
práticas rotineiras e os atos de agência.

De certa maneira, é essa característica não reflexiva e naturalizada das práticas cotidianas que
processa, mantendo e/ou modificando a estrutura social vista como essa relação entre tempo,
espaço e possibilidade de ação (BOURDIEU, 2002). Destarte, a agência não é uma coisa em
si que ocupa seu lugar na estrutura social, mas se localiza enquanto uma capacidade e uma
propensão que faz parte de um processo no qual são feitas e refeitas as formas sociais e
culturais na vida social.

Por esse motivo, a proposta de desenvolver um agenciamento do corpo morto se relaciona


com a projeção de uma intencionalidade nas ações dos cadáveres. Como afirmei acima, o
corpo morto deixa de ser a ferramenta original do indivíduo e passa a ser a ferramenta que
representa e justifica a morte desse próprio indivíduo.

Enquanto estão imóveis, os cadáveres agem em sua condição de corpos sem vida. São
removidos, fotografados e despidos, e não apresentam reação, ou a única reação que
apresentam é permanecerem parados117. Mas, ao mesmo tempo esses corpos inertes provocam
reações, criam relações, e uma diversidade de ações são realizadas em função desses. Quando
se tem, por exemplo, a intenção de ficar parado “Não se mover é uma ação nesse sentido”
(GELL, 1998, p. 125).

Poderia afirmar em relação à agência dos cadáveres, que “aparentemente não fazem nada.
Eles geralmente apenas ficam lá, permanecendo imóveis” (GELL, 1998, p.128). A agência
passiva dos seres imóveis, como em relação às estátuas descritas por Gell, se dá pela projeção

117
Quanto mais tempo os corpos ficam parados, mais rígidos ficam. Foi observando o manusear desses corpos
que notei essa rigidez. Tal rigidez faz com que a maneira de manipular os corpos seja muitas vezes vista como
agressiva e bruta e, é devido a ela que os corpos manipulados no IML devem ser puxados, empurrados e atirados.
119
de intencionalidade nelas. Intencionalidade projetada pelos policiais e peritos, que têm os
corpos como centrais no estabelecimento de relações sociais no âmbito do IML.

Ao mesmo tempo em que afirmam que o corpo não tem vida, os policiais projetam ações para
eles. Como me afirmou um perito médico-legista, “O corpo fala durante a necrópsia”118.
Esse falar se refere tanto à construção de verdade sobre a morte, quanto através dos
procedimentos de identificação onde é o próprio corpo que apresenta os indícios de quem fora
enquanto pessoa através dos registros de identidade civil. E através dos discursos outrora
inscritos no corpo e, a partir dele, que expressam a agência passiva que é projetada nos
corpos. Os mortos representam um status de corporeidade daquilo que já foi marcado pela
cultura enquanto ali não havia morte, e sim, a vida de uma pessoa.

No IML são os peritos médicos-legistas que têm a técnica e sabem ler, ou ouvir, as histórias
desses corpos. E, inclusive, são essas mesmas histórias que informam a eles como utilizar o
corpo do morto. São, portanto, os policiais que conhecem e identificam nos corpos a própria
morte e agem mantendo ou transformando a estrutura social de acordo com o diálogo que
estabelecem com os cadáveres. O corpo no IML é uma das ferramentas necessária entre
outras119, para a objetivação da morte na produção de registros e para a construção de mortos.

É a partir do corpo que se constrói uma narrativa daquele indivíduo sem vida. E é a partir do
que ele apresenta, do que ele produziu ou do que foi produzido nele que o corpo é objetivado
enquanto morto. Quero dizer, os profissionais do IML ouvem ou lêem o corpo, levando em
consideração a maneira como o corpo explicita a sua vida através de marcas, tatuagens,
cicatrizes. Mas, também, através da condição dos órgãos, da roupa que vestia, da apresentação
dos dentes, da roupa e do caixão que a família escolhe para o enterro.

Os cadáveres no IML são corpos de pessoas sem vida. É nessa instituição que a identidade e
vida social desses corpos são corroboradas através de suas famílias e relações. E é a atividade

118
Em sua biografia “Porque converso com os mortos?”, o médico-legista Badan Palhares (2007) apresenta de
forma polêmica e, de certa maneira, defensiva a sua trajetória como perito destacando casos onde foi convidado
a emitir laudos como a morte do político PC Farias, o assassinato do ativista Chico Mendes, e a identificação de
ossadas de desaparecidos políticos durante a ditadura militar no Brasil. De acordo com Palhares, “diferentemente
dos seres humanos vivos, eles [os mortos] não mentem, não trapaceiam, e relatam tudo o que um legista ou
perito precisa saber. (...) Um cadáver nos conta detalhadamente a história de um crime. Portanto, deve ser ouvido
com muita atenção. Só não conversa claramente conosco se tentamos mostrá-lo de maneira artificial, adulterando
a cena do crime. Ainda assim, se soubermos lhe fazer as perguntas corretas, conseguiremos descobrir as
alterações que tentaram nos enganar” (:320-321).
119
Além dos corpos, os registros em forma de papeis, as fotografias, as radiografias e uma série de outros
instrumentos são utilizados para a produção de documentos públicos que declaram a morte dos indivíduos.
120
de atribuir identidade aos corpos que os constitui enquanto mortos, inclusive estabelecendo
relações de desigualdade entre eles, como no caso explicitado do policial morto. Os corpos
sem vida são construídos institucionalmente como mortos. São transformados
burocraticamente em pessoas de outra natureza, pessoas sem vida.

A continuidade dos mortos

Como demonstrei até aqui, na rotina dos policiais que trabalham no IML faz parte o contínuo
classificar e identificar os mortos e, produzir “verdades” sobre desses. No entanto, apenas
algumas das classificações e identidades são consideradas legítimas e institucionais. Tantas
outras, em contraponto às produzidas no âmbito da burocracia de papéis e registros, surgem
através dos comentários e das piadas, das opiniões e das práticas, dos sentimentos e dos
sentidos percebidos que se inserem na rotina dessa instituição, mas não ficam fixadas nos
registros públicos.

Nos processos observados, verifiquei a mesma centralidade de uma narrativa formalizada e


imersa em uma linguagem e códigos médico-jurídicos sendo utilizada ao longo dos diversos
rituais identificatórios: a qualificação, a identificação e o exame de validez realizado em
vadios. Percebi que o evento narrado parecia ser antecedido por uma certa informalidade de
gestos, presente nas referências não só à suspeição que determinara a prisão como às pressões
e aos castigos físicos que tornaram tais „rituais‟ obrigatórios. (CUNHA, 2002, p. 74-75)

O que Cunha (2002) percebeu ao pesquisar nos registros policiais do Arquivo Público do Rio
de Janeiro referentes à vadiagem, eu vi e vivi nos corredores do IML. Não apenas a
informalidade de gestos, mas as maneiras de se referir aos corpos sem vida que constitui a
continuidade dos mortos.

Como demonstrei ao longo do capítulo 2 (dois), intitulado Carne e Sangue, a burocracia é


linguagem do estado que constrói o fim da existência. Mas essa é apenas uma das formas
possíveis de concretizar a vida dos mortos, não a única. Ao acionar uma série de relações ao
seu redor, o morto faz com que acontecimentos de distintas ordens ocorram no seu entorno.
Havia as relações subjacentes aos policiais e seu cotidiano de trabalho desses com os
cadáveres que se referem à rotina que os policiais estabeleciam com os próprios cadáveres.
Havia também as relações estabelecidas entre os policiais e eu, e como destaquei ao longo
deste capítulo e as relações que eu estabeleci com os mortos no processo de socialização pelo
qual passei.

121
Um último aspecto que desejo destacar nesse capítulo se refere às relações construídas pelos
policiais entre os mortos e os outros vivos. Desejo assim explicitar como a continuidade dos
mortos está relacionada ao caráter eventual do fato morte para os “sobreviventes” e como,
para alguns mortos, a morte expressa a continuação das relações sociais que ele teve ao longo
da vida.

O IML, enquanto uma instituição burocrática pública e policial, tem como obrigação construir
institucionalmente os cadáveres. O processo de estabelecimento de linhas entre mortos e vivos
é realizado a partir de diferentes percepções. Aquela que define institucionalmente esses
mundos é controlada pela burocracia. Refiro-me à continuidade institucional dos mortos e as
formas de classificação acionadas aos mortos. São as categorias utilizadas no IML que
definem as formas de identificação de cadáveres nos registros e, por conseqüência, “quem” é
o morto define “o que” ele é para o Estado.

Os cadáveres têm uma única maneira de entrar no IML, através do rabecão, mas, pelo menos
três categorias para a saída dele: como cadáver identificado reclamado, onde a família se
apresenta como o vínculo social do morto; como cadáver não identificado reclamado; ou
como cadáver não reclamado - sendo que os cadáveres não reclamados podem ser
identificados ou não.

Família

Eram aproximadamente vinte horas. Dois corpos chegaram no IML. Logo, os policiais do
SILO, João e Felipe, foram informados pela técnica em serviço social da recepção que os
familiares de um dos cadáveres aguardavam o atendimento. Os técnicos de necrópsia
receberam um senhor de aproximadamente sessenta anos que se apresentou como primo de
um cadáver. Disse que a esposa e os filhos do “falecido” 120 estavam muito abalados com o
falecimento e que ele se oferecera para resolver os procedimentos burocráticos.

Apresentou então os documentos do falecido (carteira de identidade, certidão de casamento e


comprovante de residência) e seus documentos (carteira de identidade e comprovante de
residência). João pediu então que o senhor aguardasse na recepção, pois só poderiam realizar
a liberação do óbito após a necrópsia e a identificação através das impressões digitais. Felipe
sugeriu ao senhor que voltasse na manhã do dia seguinte, pois, provavelmente, a liberação do

120
Essa era a maneira como o familiar do cadáver se referia ao mesmo.
122
corpo não seria feita antes das vinte duas horas, horário limite que as funerárias podem
remover um corpo do IML.

O primo do falecido, ciente dessa regra, perguntou se não tinha como agilizar esse
procedimento. Tendo uma resposta negativa, pediu então que guardassem o corpo na
geladeira. “Pode deixar! Como o senhor sabe, isso é procedimento padrão.”, disse João, e
entregou ao senhor os documentos. Após o senhor sair da sala João falou: “Esse aí a família
morre todo mês”. E Felipe comentou: “Sabe como é, parente de agente funerário morre
muito!”.

A presença de agentes funerários na


recepção do IML é proibida. Um
cartaz no mural dessa explicita tal
proibição. No entanto, como é sabido
pelos policiais, muitas vezes os
familiares optam por contratar um
desses profissionais para o
encaminhamento dos procedimentos
burocráticos de liberação do corpo.

Imagem 18: Mural na recepção do Serviço de Necrópsia Se, por um lado, no caso descrito, o
agente funerário forjou o vínculo familiar com o cadáver por ter conhecimento da regra que
organiza a liberação dos corpos – que nas primeiras setenta e duas horas da entrada do
cadáver, somente familiares diretos podem ser declarantes na liberação de óbitos; por outro,
os policiais consentiram que o agente funerário que se identificou como primo fosse o
declarante do óbito.

O procedimento de liberação de cadáveres é realizado por um setor específico do IML, como


apresentado acima, o SILO. Os policiais que trabalham nesse setor identificam seu trabalho
como o de relação direta com a família. Os cadáveres identificados reclamados só podem sair
do IML através de uma funerária. Isto é, a liberação de um corpo para as funerárias no IML só
pode ser feita através da solicitação de um cidadão, o declarante, que comprove vínculos
familiares com o morto através de documentos.

Os documentos que devem ser apresentados para a comprovação do vínculo familiar devem
conter foto do declarante e do falecido. Em caso de menores de idade, é aceita a certidão de

123
nascimento. Preferencialmente, os documentos devem indicar certo grau de parentesco entre
declarante e morto. O importante é a apresentação do documento com foto. “Se não tem
documento, eu bico121!” me informou Felipe, policial do SILO.

Assim, a “regra de parentesco” no IML apresenta diferentes interpretações. No entanto, em


geral, principalmente pais/mães, filhos/filhas, irmãos/irmãs ou esposos/esposas são os
considerados parentes diretos, e, portanto declarantes em caso de óbito. Assim, o modelo
tradicional de família é o principal círculo autorizado como declarante. No entanto, essa
unidade se baseia num termo polissêmico, pois família engloba diversas esferas de acordo
com cada lugar e época e com cada grupo social e suas circunstâncias. ( Zonabend, 1996). O
que é a família admite diferentes interpretações, logo a regra de parentesco no IML também.

Caso a relação do declarante com o cadáver seja apenas de afinidade ou não estabelecida por
lei, como o caso de casais por união estável ou amigos e conhecidos, há necessidade da
presença de duas testemunhas que afirmem o vínculo. Nesses casos, a liberação do corpo só
pode ser feita após setenta e duas horas da entrada desse no IML. Como explicado por um dos
policiais: “Sabe como é, às vezes chega aqui, diz que tem união estável, passa um tempo e a
gente descobre que é a amante. Aí a esposa vem reclamando que deixou a outra enterrar o
morto”.

O que orienta essa unidade social, considerada a primeira instituição social, são vínculos de
obrigação e afetividade. Apesar de visto como um sistema de relações pautadas na natureza, o
modelo de parentesco é esse “conjunto de relações de filiação, aliança e irmandade que une os
homens entre si, engloba em sua própria concepção o biológico e o social” (Zonabend, 1996,
p. 23). Por mais que se tenha os fatores biológicos e de reprodução na sua concepção, a
organização familiar é essencialmente “fato social, objeto de manipulações e eleições de
ordem simbólica”(IBID, p.24), manipulados e interpretados pelos policiais do SILO que
definem se aquele declarante é família ou não.

A antropóloga Maria Pita (2010), ao descrever como determinados grupos de pessoas


reivindicam a justiça perante morte de seus familiares pela polícia, demonstra que para esses
familiares a forma institucional de construção dos mortos que transforma cadáveres em
pessoas, não é suficiente à continuidade desses. Para os familiares “de sangue quente” que

121
O bico no IML é realizado não atendendo a família imediatamente e, muitas vezes, empurrando o
atendimento para os policiais do plantão seguinte.
124
fazem parte do ativismo contra a violência policial em Buenos Aires, há de se restituir a
humanidade dos mortos através de protestos, com rituais de humilhação e participação nos
juízos.

De maneira que não é só o sangue o que explica sua obrigação de reclamar e de protestar.
Porque o sangue pode apresentar distintas características que importam diferentes
significados. Assim como funciona como doador de valor e substância para aqueles que
denunciam e reclamam – e portanto é um valor apreciado-, também pode ser „frio‟, isto é, não
ter temperatura necessária. O sangue - diferente do sangue quente – implica tanto falta de
compromisso suficiente como de coragem, de valentia (PITA, 2010, p. 102-103)

No IMLAP, mais do que relações de definições biológicas, o que se apresenta como relevante
são as relações sociais entre os indivíduos. Aquilo que as constitui enquanto pessoas122. Pois,
“a perpetuidade das coisas e das almas só é garantida pela perpetuidade dos nomes dos
indivíduos, das pessoas.” (MAUSS, 2003, p.377) Assim, o que permanece de um indivíduo
após a sua morte é o seu nome registrado nos papéis públicos, preferencialmente via a ação de
sua parentela.

Nesse sentido, os familiares são os que expressam obrigatoriamente seus sentimentos


(MAUSS, 1999), são os que se relacionam com os mortos, a partir das obrigações morais, dos
direitos e dos deveres. Tal expressão atinge os sentimentos e dá destaque à perpetuação dessa
“substância racional indivisível, individual” (MAUSS, 2003, p.393) que é a família. Nesse
sentido, a noção de família também se apresenta enquanto uma consciência e uma categoria
que só é possível pela consciência dos outros em relação à pessoa. Quero dizer, enquanto
consciência da dimensão social, a sociedade, expressa nas práticas dos policiais do IML,
vislumbra e classifica o outro como uma pessoa quando inserido em relações sociais capazes
de atingir sentimentalmente outras pessoas.

Mais do que os vínculos “de sangue”, seja ele quente ou frio; ou vínculos “por lei”
comprovados através dos documentos de registro público que autorizam que uma pessoa seja
declarante de um óbito é o interesse, a preocupação e a procura pelo morto, a demonstração
que aquele morto estava inserido no âmbito de uma rede de relações sociais, que transformam
alguém em declarante de um cadáver e um morto em um reclamado.

122
Marcel Mauss (2003) demonstra como a ideia de pessoa é uma das categorias do espírito humano que fora
forjada ao longo da história da humanidade. Através de elaboração de um catálogo de categorias, o autor focaliza
no direito e na moral, a elaboração do conceito que permite ao homem emitir a noção de si. Assim, classifica em
diversos períodos históricos o que possibilitou o „Eu‟.
125
Não-identificado Reclamado

Fabiana tinha 15 anos, órfã de pai e mãe desde os seis anos de idade estava sob a guarda de
um tio paterno, porteiro de um prédio num bairro da Zona Norte de Niterói. Sem condições de
cuidar da menina, era ajudado por vizinhos e amigos. Cercada pelas dificuldades que
compartilhava com o tio, Fabiana vivia entre a casa de conhecidos e a rua onde várias de suas
noites eram passadas com amigos. E, apesar de matriculada em uma escola e ter um “lar”, era
considerada uma “menina de rua”. Por diversas vezes foi levada a abrigos da prefeitura do
Rio de Janeiro para menores.

Foi num desses abrigos que ocorreu a comemoração do seu aniversário de 15 anos,
organizada pelos funcionários do abrigo com colaboração financeira de duas famílias que
ajudavam Fabiana. Ela estava vestida com um traje típico de debutante. Além das amigas
internas como ela, foram alguns familiares, vizinhos do seu tio, o namorado, amigos da escola
e da rua, assistentes sociais, professores, entre outras pessoas conhecidas. Foi nesta festa,
convidada por um amigo, que eu conheci Fabiana.

Seguindo o roteiro das festas de debutantes, Fabiana dançou valsa, cantou parabéns, se
divertiu com os amigos, ganhou presentes, estava feliz. Ao fim da festa ela agradeceu a
presença de todos, mas avisou que tinha que terminar, pois já estava ficando tarde (se
aproximava da meia noite) e ela tinha que estudar.

Dias após sua festa, Fabiana passou a viver nas ruas com o namorado, Leandro, e alguns
amigos. Soube que eles costumavam dormir sob o viaduto dos Marinheiros, localizado na
Praça da Bandeira, Centro do Rio de Janeiro. Já fazia quase um ano que Fabiana não voltava
para casa ou para algum dos abrigos; ela vivia junto com o namorado e eles queriam casar,
suspeitavam que Fabiana estivesse grávida. A quantidade de jovens que dormiam sob o
viaduto variava entre 6 a 10 pessoas. Na madrugada do dia 11 de maio de 2008, estavam,
além de Fabiana, seu amigo William e outras quatro pessoas. Leandro tinha acabado de
conseguir emprego numa gráfica no bairro de São Cristovão; era o seu primeiro dia de
trabalho.

Aproximadamente, às 5 horas da madrugada iniciou-se um incêndio sob o viaduto, que


devido à grande quantidade de espumas e papelão no local logo se propagou. Foi quando um
dos amigos de Fabiana, Eduardo, acordou sentindo muito calor. “Quando abri os olhos vi que
o sofá estava pegando fogo. Comecei a acordar todos que dormiam. A Fabiana não
126
conseguiu sair. Ela estava desesperada, mas ficou longe da porta. Já o William saiu com o
corpo em chamas. Cheguei a tirar a roupa dele para ajudá-lo” contou Eduardo. 123

Fabiana fora totalmente carbonizada, tendo falecido na hora. “Ela ainda pediu para que eu
não a deixasse sozinha, mas era o meu primeiro dia no trabalho e não poderia faltar. Não
imaginava que tudo isso poderia acontecer” disse Leandro. Seu amigo William, que teve o
corpo totalmente queimado com lesões de 1° e 2° grau morreu dias depois no Hospital Souza
Aguiar.

O motivo do incêndio seria vingança de um outro morador de rua, Paulo, de


19 anos, o Dupira, que teria se desentendido com Eduardo e o jurado de morte.
A polícia acredita que esta seja a hipótese mais contundente para explicar o
crime.

O caso foi registrado na 20ª DP (Vila Isabel), onde Paulo foi preso em
flagrante. Com ele, foi apreendida uma bolsa térmica com espuma e palitos de
fósforo, objetos que, segundo o delegado-adjunto da distrital, Souza, foram
determinantes para indiciá-lo por homicídio duplamente qualificado e
tentativa de homicídio. (Notícia Publicada em 11/05/2008 às 19h16m em O
GloboOnline)

O corpo de Fabiana foi encaminhado ao Instituto Médico Legal para o início das
investigações policiais e dos procedimentos de reconhecimento e posterior sepultamento do
corpo. Foi devido a sua história que visitei o IML pela primeira vez, e por conta da maneira
que se desenrolaram os procedimentos burocráticos que me interessei academicamente pelo
tema.

Seu namorado, Leandro, comunicou ao tio de Fabiana sobre o acidente ocorrido. Logo
procuraram ajuda de amigos e conhecidos. Um deles foi o advogado, meu amigo, que me
convidou para a festa de 15 anos de Fabiana e que acompanhou o caso antes desse ser
encaminhado à defensoria pública. Num primeiro momento, a preocupação da família, e do
advogado, era a de provar que o corpo carbonizado era o de Fabiana.

Depois do infeliz incidente que resultou na morte da Fabiana, iniciamos os procedimentos para
o sepultamento. Entretanto, em razão da carbonização do seu corpo, o procedimento de
identificação do IML ficou prejudicado, dependendo de exames periciais e de DNA. O fato

123
Depoimento retirado de O Globo Online em notícia publicada no dia 11 de maio de 2008.
127
ainda foi agravado porque ela era irmã unilateral das outras, ou seja, de pais diferentes,
diminuindo a probabilidade de certeza do DNA com o sangue coletado dessas irmãs,
considerando que os pais eram falecidos. Feito o exame, passou-se, então, ao reconhecimento
do cadáver pela irmã, com a expedição da declaração de óbito, que foi remetida para o juiz, e
posteriormente ao cartório de registro civil. Após, ficamos na espera da expedição da guia de
sepultamento, da localização dos restos mortais dela e da autorização dos órgãos para
obtenção de gratuidade do serviço funeral realizado pela Santa Casa. Depois, expediram a
certidão de óbito, que ainda deixou de constar o nome do pai, mas essa questão a gente nem
criou mais caso, pois levaria uma eternidade pra ser resolvida.

O sepultamento dela, acho que depois de quase dois anos de peregrinação, foi feito. Talvez,
mais porque eles queriam se livrar logo do problema, que estava tomando contornos mais
graves, diante da notícia – não comprovada – de que o corpo tinha sido liberado para
sepultamento sem o conhecimento da família, mesmo sem identificação, ou seja, como
indigente. (Advogado da família em comunicação, a mim, por correio eletrônico. Grifos meus)

Os procedimentos de identificação de corpos, como destaquei no capítulo anterior, fazem


parte da rotina nos procedimentos de construção institucionalizada de cadáveres no âmbito do
IML-RJ. No entanto, essa mesma rotina que identifica é a que não permite a identificação e a
que constrói cadáveres “sem nome”, os não identificados. Os não-identificados são também
produto dos procedimentos de identificação de corpos no IML (FERREIRA,2007) na medida
que esse se caracteriza por confirmar cartorialmente, através dos documentos apresentados, a
identidade do cadáver.

Na maioria das vezes, os cadáveres não identificados são também classificados enquanto não-
reclamados, pois da ausência da identificação se gera a impossibilidade de algum reclamo
para aquele corpo. O morto que não tem documentação não pode ter sua identidade
confrontada e sua identificação burocraticamente definida

No caso de Fabiana fora diferente. Seus familiares ficaram cientes de sua morte e sabiam que
o cadáver era o da adolescente. Seu corpo se inseriu na classificação de “reclamados não
identificados”. Quer dizer, quando a família reclama pelo corpo, mas tem que aguardar os
procedimentos de identificação realizados pelo IM.

Nesses casos, a confirmação da identidade depende de exames de DNA e é imprescindível


que seja realizada. No entanto, o resultado demora meses para sair tanto pela burocracia
característica às instituições brasileiras quanto pela própria temporalidade dos exames de

128
DNA.

O caso de Fabiana fora agravado pelo fato de, provavelmente, seu corpo carbonizado ter sido
inumado antes da família retirá-lo no IML. O prazo institucional para enterro de cadáveres
não-identificados é de três dias. Seja pela demora na realização do exame de DNA, seja
porque seu cadáver possivelmente fora enterrado como não-reclamado. Mortos desse tipo não
são raros.

O caso do “menino Juan”

Enquanto realizava trabalho de campo no IML, o cadáver de uma criança, que inicialmente
fora dada como desaparecida, foi identificado após longo processo de busca e identificação
que envolveu punições a policiais civis e militares. O „menino Juan‟, tal como identificado
através da mídia, havia sido morto por policiais militares na favela onde morava, localizada
na Baixada Fluminense.

Juan de Moraes tinha onze anos de idade. No dia vinte de junho estava voltando para casa,
com seu irmão Wesley, de quatorze anos de idade e seu primo, Vanderson, de dezenove anos.
Todos os três foram baleados. Segundo a polícia militar, que realizava uma operação na
Favela Danon, o irmão de Juan foi confundido com um traficante. Wesley posteriormente, em
depoimento, afirmou que enquanto era baleado viu seu irmão sendo atingido e caindo no
chão. Poucos minutos depois, o menino Juan desapareceu.

A família de Juan iniciou a busca pelo garoto. Com a ajuda de veículos da mídia, políticos e
militantes de Direitos Humanos alcançaram visibilidade pública e midiática ao caso. Na
região metropolitana do Rio de Janeiro, nas ruas, nos jornais e nas redes sociais a pergunta
mais realizada era: “Onde está Juan?”. Na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, faixas e
cartazes foram dispostos. A repercussão do desaparecimento dava visibilidade pública ao
caso.

Dez dias após o desaparecimento, peritos da Polícia Civil encontraram uma ossada em um
córrego próximo ao local onde a criança foi vista pela última vez. Inicialmente, essa ossada
foi identificada por uma perita do Posto Regional de Polícia Técnico Científica de Nova
Iguaçu como sendo de uma menina. O exame realizado para tal identificação foi feito a partir
das técnicas de antropologia forense, que consiste no exame da ossada via observação e
medição.

129
Na ocasião, a Chefe de Polícia Civil do Rio de Janeiro, Martha Rocha, determinou que fosse
realizada uma série de exames como: DNA; papiloscopia; arcada dentária; e antropológico
para que fosse possível a identificação da menina morta encontrada pelos policiais. Além
disso, buscou-se realizar investigações de meninas desaparecidas que se encaixassem naquele
perfil na região metropolitana do estado.

Em seis de julho, os exames indicaram que aqueles ossos, que ainda continham vestígios de
pele e uma das mãos conservadas, não eram de uma menina, mas de um menino. E mais, que
na verdade aquela ossada era mesmo a do menino Juan. O erro inicial, somada à visibilidade
social e na mídia que o caso alcançou, provocou um problema interno na Polícia Civil.
Responsáveis iniciais pela investigação foram afastados e sindicâncias foram instauradas.

Além disso, a investigação médico-legal do caso passou ao IMLAP. No laboratório de


Necropapiloscopia, um vidro plástico continha uma falange com inscrição que indicava
„possível menino Juan‟. Nesse instituto, fora comprovada a identidade de Juan e que sua
morte foi provocada por um tiro no pescoço disparado pelos policiais militares. Quatro
policiais que participavam da operação foram presos e indiciados pelos crimes de homicídio
duplamente qualificado, e duas tentativas de homicídio duplamente qualificado.

O cadáver do menino Juan foi enterrado no dia sete de julho no Cemitério municipal de Nova
Iguaçu. A família de Juan entrou no programa de Proteção à Testemunha do estado do Rio de
Janeiro. Em caráter indenizatório, o governo do Estado do Rio de Janeiro ofereceu o valor de
R$200 mil à família de Juan.

Em dezessete de agosto, à pedido da Defensoria Pública, a ossada de Juan foi exumada. Essa
solicitação se deu para a realização de novos exames que comprovassem a identidade do
garoto, pelo defensor que representava um dos policiais indiciados. E baseou-se no precedente
aberto pelo primeiro laudo que afirmava que o cadáver era de uma menina.

Três amostras do fêmur da ossada foram enviadas a três laboratórios para novos exames de
DNA, sendo um em São Paulo, conveniado com a Defensoria Pública Estadual; outro na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ e o terceiro, o Instituto de Pesquisa e
Perícias em Genética Forense, do Departamento de Polícia Técnico-Científica da Secretaria
de Estado de Segurança do Rio de Janeiro. Os três laudos produzidos pelos laboratórios
comprovavam que o cadáver era do menino Juan.

130
Em vinte e oito de outubro, foi o segundo enterro do cadáver do menino Juan. Com seus
familiares acolhidos no Programa de Proteção à Testemunha, a ossada foi enterrada, sem a
presença de nenhum familiar. O sepultamento ocorreu no Cemitério de Nova Iguaçu, onde já
se encontravam a outra parte de seus restos mortais. Estavam presentes na inumação a chefe
de Polícia Civil, Marta Rocha, que segundo os jornais fez uma oração numa espécie de
velório realizado pouco antes do enterro; o chefe do Departamento de Polícia Técnica da
Polícia Civil do Rio, Sérgio Henriques; e cinco policiais da Coordenadoria de Recursos
Especiais - CORE.

As motivações que levaram o caso do menino Juan a um status de “caso de repercussão” não
são tão relevantes quando a maneira como o caso foi tratado se apresenta a partir do
tratamento diferenciado que esse teve em relação a outros casos, como o de Fabiana. O
interesse em encontrar o menino Juan, a série de exames realizados, quem eram os acusados,
a exumação do cadáver e o modo como a corporação policial participou escapam dos
procedimentos cotidianos e caracterizam essa morte como um “acontecimento”. Por
conseqüência, o lugar social do morto Juan e o momento como foi tratado enquanto morto
reforçam a construção institucional dos mortos, como um procedimento que, apesar de
apresentar aspectos rotineiros, se conforma a partir de fatores particulares que se referem a
quem é o morto e ao que ele produz.

Não-reclamados

Até na morte há os excluídos, os „não reclamados‟ que vão para uma cova
comum, sem nome, sem parentes, sem amigos, sem flores, sem orações, sem
um gesto de amor. (GODOY, 2003)

Os corpos não-reclamados, para os quais não houve apresentação de um declarante no


período de setenta e duas horas após a entrada no IML, não se submetem ao procedimento de
liberação e apresentam um fluxo de saída do IML à parte. Paralelamente ao SILO, há o Setor
de Não-reclamados, que organiza as DO desses corpos, a saída desses do IML e os
procedimentos funerários que podem ser realizados no cemitério de Santa Cruz ou no
cemitério de São Francisco Xavier, no Caju. Tais saídas ocorrem duas vezes na semana, de
acordo com a quantidade de corpos não-reclamados armazenados nas câmaras frigoríficas.

Entre os meses de janeiro a junho do ano de 2011 foram enterrados duzentos e quarenta e um

131
corpos pelo setor de Não-Reclamados do IML do Rio de Janeiro124. Desses, cento e dezoito
eram corpos identificados, sendo que centro e treze eram cadáveres de homens. Esses
números demonstram que a apresentação de um declarante não necessariamente tem a ver
com a identificação do cadáver, afinal quase metade dos não-reclamados nesse período eram
identificados125.

Os procedimentos que se referem aos cadáveres não-reclamados são centralizados por três
técnicos de necrópsia, que cuidam da documentação e emissão da DO e da certidão de óbito,
dos procedimentos burocráticos para o enterro do cadáver e do arquivo de registros desses; e
um auxiliar de necropsia, chamado entre os colegas do seu setor de Fantasma, que trabalha as
segundas e quartas-feiras de madrugada, os dias da semana quando ocorrem as saídas dos
mortos não-reclamados. Fantasma trabalha removendo os corpos da câmara frigorífica e os
organizando nos caixões gratuitos que são disponibilizados pela Santa Casa de
Misericórdia126. O apelido dado por seus colegas revela o quanto assustador pode ser
considerado o trabalho realizado por esse policial, e o quanto são invisíveis os não-
reclamados.

Como afirmei acima, os corpos classificados enquanto não-reclamados podem ser


identificados; no entanto, todos os não-identificados que ficam pelo menos setenta e duas
horas sem apresentação de algum declarante são tidos como não-reclamados. Enquanto que
os identificados não-reclamados aguardam por, pelo menos, quinze dias algum declarante.

Caso a família não se apresente, ou não deseje se responsabilizar pelo corpo apresentando-se
como declarante, o mesmo é tido como corpo “identificado não reclamado” ou
“abandonado”. Os casos mais comuns de abandonados que encontrei no IML se referem a
fetos ou bebês recém-nascidos. Em muitas dessas situações a família vai ao IML, se apresenta
como declarante e recolhe a Declaração de Óbito, mas nunca aparece com uma funerária para
inumar o cadáver.

124
Ver tabela do setor de não-reclamados em anexo.
125
Ver Certidão de Óbito de cadáver não-reclamado identificado em anexo.
126
Fundação Assistencial de caráter missionário que promove atendimento médico, funerário, a crianças e a
idosos. Atualmente, administra onze cemitérios municipais, dois cemitérios próprios e um crematório. Além
disso possui viaturas para a remoção de cadáveres e convênio com mais de quatrocentas funerárias. Por seu
caráter assistencial e missionário, vinculado aos preceitos da filantropia católica, a Santa Casa realiza serviços
gratuitamente, desde que comprovada a impossibilidade de pagamento por parte do requerente. Em relação aos
„não-reclamados‟ do IML, a Santa Casa possui acordo com a direção desse instituto, no auxílio a alguns serviços.

132
Os policiais vinculam esse abandono à falta de condições financeiras da família de arcar com
os gastos de um enterro, mas também “tem a falta de conhecimento, a ignorância mesmo das
pessoas, porque hoje em dia se enterra de graça. Às vezes, a pessoa até fica sabendo disso
mas é depois e aí tem medo de voltar, já esqueceu, já tocou a vida pra frente e não quer viver
o sofrimento de novo”, explicou-me Osvaldo, do Setor de Não-Reclamados. Nesses casos, o
cadáver fica na geladeira do IML e o próprio instituto, em nome do seu diretor, mas em ação
dos policiais do Setor de Não-Reclamados, aciona os órgãos judiciários competentes para que,
sob uma autorização judicial, se possa inumar o cadáver abandonado.

Um caso relatado por Godoy (2003) demonstra a possíveis motivações de uma mulher no
IML de Belo Horizonte, que ao ver o corpo do marido, não quis se responsabilizar pelo
enterro. Segue o diálogo:

Legista: Já que a senhora o reconheceu, vamos até a assistência social preparar a papelada para
liberar o corpo.

Mulher: Pra quê?

L: Para que a senhora possa enterrá-lo.

M: Eu não o quero de volta!

L: Mas por quê? Se a senhora o deixar aqui, ele será enterrado como indigente no Cemitério
da Paz.

M: Ele já deu muito trabalho quando estava vivo, para que dar mais? Ele chegou na minha
vida como indigente e é assim que vai sair! (p. 101).

Ou seja, outras motivações para que um cadáver se torne um “não-reclamado” que não tem
necessariamente a ver com os procedimentos de identificação no IML mas, que tem a ver com
as relações sociais dos vivos e as obrigações sociais que lhes correspondem.

Em sua etnografia, o antropólogo Maurice Leenhardt (1947) demonstra as concepções de


corpo e pessoa desse grupo e de como, para eles, os contornos da pessoa são dados não pelo
contorno do corpo, mas pela rede de relações sociais nas quais o indivíduo estava inserido.
Assim, fora dessa rede, o indivíduo não é nada, era um vazio no círculo das relações sociais
que nem nome tinha. Quando a própria rede expulsa o indivíduo ou quando o próprio abre
mão das relações sociais esse vazio se amplia. Os não-reclamados circulam nesse espaço.

133
Como observei, no processo de construção institucional de mortos diferentes elementos se
coadunam ativando os sentidos e os sentimentos daqueles que lidam cotidianamente com os
mortos. Nesse sentido, eu, como antropóloga, compartilhei com meus interlocutores
sentimentos e sensações e apreendi a lidar e conviver com cadáveres. Ver, cheirar,
compartilhar, tocar, ouvir e falar são processos que permitem que os mortos se expressem
através dos vivos e tenham assim, sua continuidade expressa.

Os procedimentos que vinculam os mortos aos vivos também fazem parte dessa continuidade.
Não apenas o corpo, ou o espírito do morto, mas são as suas relações sociais e a forma como
as pessoas se apresentam nessas, sendo declarantes, estabelecem como esse será classificado
e como sua vida, após a morte, será continuada.

Nesse sentido, os não-reclamados são parte desse cotidiano que se constitui em ativar e
classificar as relações sociais. Nesse caso, suas relações sociais são ativadas
institucionalmente e quando a esses não se apresentam ou não são considerados seus laços, as
redes sociais são classificadas enquanto insuficientes para ativar institucionalmente as
relações sociais. A construção institucional de mortos encaixa o morto no lugar dos mortos. O
ponto é que no lugar dos mortos, há muitos mortos.

134
Considerações Finais: Matar o Morto

No Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro observei as práticas institucionais que constroem


a linha de separação entre vivos e mortos, estabelecendo quem são os mortos. Olhar o
acontecimento morte, a partir de onde nascem institucionalmente os mortos permitiu-me
identificar como tais práticas rotineiras que visam a construção do morto se realizam.

Ao longo dessa dissertação apresentei os processos de identificação civil e de estabelecimento


da causa mortis de um cadáver. E como os cadáveres, corpos sem vida, são transformados em
mortos, pessoas sem vida. Demonstrei também como os mortos são representados seja através
dos sentidos e dos sentimentos, seja pelos mecanismos institucionalizados de classificação da
continuidade social dos mortos.

Os procedimentos realizados nessa instituição são feitos a partir de uma série de registros que,
a partir do corpo, inscritos em papéis definem quem é o morto e como fora a sua morte. Tais
registros combinam características policiais, de dimensão cartorial e burocrática; com
características médicas e seu domínio sobre o corpo humano; com características Médico-
Legais no que concerne aos procedimentos de identificação e ao vínculo do acontecimento
morte com algum fato excepcional que explique a causa mortis.

Nessa rotina de definição de um corpo sem vida enquanto morto, os policiais do IML matam
o morto. Assim, observando, abrindo, manipulando e interpretando o corpo, ao construírem os
registros públicos, constroem a morte do morto e o matam institucionalmente.

Como demonstrei se, por um lado está o perito médico-legal se relacionando com os
cadáveres e ouvindo o que os corpos falam; por outro lado, está o mesmo perito médico-legal,
se relacionando com os papéis e traduzindo o que os corpos falam. Tanto no ouvir os corpos
quanto no traduzi-los, os peritos contam com o auxílio de técnicos de cortes e de digitação de
laudos, respectivamente. Esses, como mediadores, fazem parte da relação que é estabelecida
entre corpos e papéis. E é a assinatura do perito médico-legal que dá fé pública aos papéis dos
corpos.

Para esse morto-morto, via os procedimentos identificatórios, principalmente o papiloscópico,


é que uma identidade civil vai ser definida. Ao estabelecer um morto-morto como
identificado, o IML estabelece também um indivíduo como morto. Assim, ao definir um
corpo sem vida como morto e definir quem é aquele corpo, o IML mata o morto ao mesmo

135
tempo em que, burocraticamente, mata um vivo.

No processo cotidiano de construção de mortos, os policiais que trabalham no IML


preenchem uma série de registros públicos através de seus diferentes setores. E, na medida em
que identificam e estabelecem a causa da morte de um cadáver, inscrevem verdades públicas
que dizem respeito aos cadáveres. Ao matar os mortos, o IML constrói e legitima significados
referentes aos mortos para a burocracia pública.

Diante do Estado, o corpo sem vida não tem significado em si. Os cadáveres só apresentam
significado quando na sua relação com corpos com vida, capazes de ouvi-lo e traduzi-lo,
ganham forma nos papéis. É a elaboração do Laudo Médico-Legal e da Declaração de Óbito,
documentos públicos que definem a causa mortis sob categorias médico-legais, e a
identificação civil do cadáver, que um cadáver passa a ser declarado como morto.

O lugar social que ocupa esse morto é interpretado a partir de quem foram os indivíduos que
se preocuparam e ocuparam com esse corpo com vida. Assim, perante a instituição, são as
relações sociais que vinculam e constroem significados para os mortos dando a esse sua
continuidade social. E, através dos seus registros públicos, o Estado dá aos papéis força de
verdade a essas relações e, por conseqüência, imprime o significado daquele cadáver.

Nesse sentido, destaquei a figura do declarante. Aquele que se declara perante o Estado,
como o vínculo social do morto-morto. O declarante realiza o reconhecimento, afirmando à
instituição, que o procedimento identificatório realizado condiz com quem era o morto. O
declarante também testemunha a causa mortis estabelecida nos exames necroscópicos ao
assinar a Declaração de Óbito. Ao reconhecer o morto e declarar a sua morte, o declarante
expressa e representa todas as relações sociais do morto, e se torna o responsável pelo morto-
morto. Na maioria das vezes, o declarante representa a família do morto expressando assim
os vínculos mais próximos e legítimos de um morto.

Mas, nem todos os mortos são capazes de acionar vínculos sociais. Alguns, já não podiam
acioná-las mesmo quando tinham vidas; outros após a sua morte, ou devido a maneira como
foi a sua vida, são expulsos das relações sociais. Quando um corpo sem vida não se relaciona
institucionalmente com corpos com vida, é o próprio Estado, através do IML, quem declara
esse morto, dando-lhe sua continuidade. A instituição criou formas de dar conta dos mortos-
mortos incapazes de acionar relações sociais. Esses corpos, quando transformados em mortos,
são classificados no IML enquanto não-reclamados.
136
Os não-reclamados conformam um grupo de mortos-mortos solitários. Desprovidos de
relações sociais, o único vínculo que são capazes de manter após a morte é com a instituição.
Ao mesmo tempo, é a instituição que nos procedimentos de identificação, estabelece esses
mortos enquanto não-reclamados e assim os classifica e desiguala.

Para encerrar essa dissertação, descrevo no epílogo, o caso do Atirador de Realengo, um


morto que fora expulso das suas relações sociais. Bem como o “caso do Homem”, que
apresentei no prólogo, acredito que esse caso revela que a maneira como se deu a morte do
morto orienta os procedimentos realizados para matar o morto no IML. No entanto, em
contraste com aquele, que se caracterizou pela presteza e cuidado nos procedimentos, esse se
caracteriza pela punição do morto. Dessa maneira, as formas de continuidade social dos
mortos permitem que a instituição produza diferentes mortos e estabeleça o lugar social
mesmo após a morte desses.

137
Epílogo - O atirador de Realengo

Dia sete de abril de 2011, oito horas da manhã. Um jovem de vinte e três anos entrou na
Escola Municipal Tasso de Silveira no bairro do Realengo, zona oeste da cidade do Rio de
Janeiro. Com posse de dois revólveres, um calibre 32 e outro calibre 38 e com o auxílio de um
carregador rápido, o jovem realizou mais de cinquenta disparos em direção aos alunos que
assistiam aulas no segundo pavimento da escola.

O jovem se chamava Wellington Menezes de Oliveira. Sua motivação era a “luta contra
pessoas cruéis, covardes, que se aproveitam da bondade, da inocência, da fraqueza de
pessoas incapazes de se defenderem”, tal como explicitou numa carta suicida. Naquela
manhã, seu principal alvo foram as alunas entre doze e quinze anos que cursavam séries do
sexto ao nono ano do Ensino Fundamental.

Os tiros disparados pelo jovem através de suas armas vitimaram fatalmente doze alunos,
sendo dez do sexo feminino. Wellington se suicidou após a polícia militar, que realizava a
patrulhamento da região, invadir o estabelecimento escolar. A polícia fora informada por
alunos feridos que fugiram da escola.

Além da carta suicida, Wellington deixou um vídeo-depoimento gravado dois dias antes de
realizar o “atentado”. Na carta explicitava como queria que seu corpo fosse manipulado após
a sua morte127. No vídeo ele se dizia fundamentalista islâmico, e o apoio a práticas de
terrorismo e o extremismo caracterizavam seu discurso.

O corpo de Wellington e de onze crianças que morreram na escola foram levados ao IML pelo
rabecão. E os feridos encaminhados a hospitais públicos da região da Zona Oeste da cidade
do Rio de Janeiro. Um dos alunos faleceu no atendimento hospitalar alguns dias depois,
quando seu corpo foi encaminhado ao IML.

Veículos de comunicação iniciaram uma grande cobertura do que chamaram de “Massacre de


Realengo”. As possíveis vinculações de Wellington com fundamentalistas islâmicos e as
células de grupos terroristas eram noticiadas tanto quanto a tristeza e a dor dos familiares e
amigos dos alunos que perderam suas vidas.

No IML, policiais já aguardavam a chegada dos cadáveres. Além da equipe do dia, naquela

127
Ver a “carta suicida” de Wellington em anexo.
138
quinta-feira, policiais de outros turnos foram convocados ao plantão para atender a demanda
excepcional de trabalho. Duas das três salas de necrópsia foram reservadas para a realização
dos exames das vítimas do Massacre de Realengo. Uma delas foi preparada assepticamente,
pois, pela primeira vez no IML, os órgãos de dois cadáveres iriam ser destinados à doação. O
ineditismo dessa prática na instituição demonstra o caráter eventual desses mortos.

Enquanto os corpos das crianças eram examinados rapidamente, o corpo de Wellington


aguardava no saco preto. Dos doze corpos que foram encaminhados ao IML naquela manhã, o
corpo de Wellington foi o último a ser necropsiado. Na sala do Serviço de Necrópsia, dois
peritos médico-legistas, técnicos de necrópsia, assistentes, alunos de Faculdade de Medicina e
policiais civis participaram e assistiram ao exame. “Ah, tinha mais de trinta pessoas aqui! A
sala tava lotada, nem dava pra ver nada...” comentou o papiloscopista Artur, dias depois. O
exame necroscópico do autor do Massacre foi um evento no IML.

Pelos corredores do instituto, comentava-se sobre o exame do autor do Massacre. Todos


queriam ver o que estava dentro do corpo daquele que inexplicavelmente invadira uma escola
e vitimara dezenas de inocentes. Pareciam acreditar que encontrariam no interior do corpo de
Wellington a substância que explicaria sua morte ou, o porquê de ter realizado o Massacre.
Ao mesmo tempo, gostariam de matar o morto.

Do lado de fora, dezenas de jornalistas e curiosos aguardavam. Diversos veículos da imprensa


local e nacional relataram passo a passo os procedimentos policiais realizados no caso.
Wellington se tornou o monstro daquele que fora considerado o maior massacre na história do
país. “Isso não é coisa de brasileiro, isso é coisa de americano” declarou um dos pais das
vítimas, estranhando esse tipo de evento ter acontecido no Brasil.

Os alunos eram chamados de crianças. Seus corpos já necropsiados foram depositados na


câmara frigorífca. Lá, não aguardaram muito tempo pois a liberação dos cadáveres das
crianças foi rápido e se realizou nos dois dias seguintes. Até o sábado após o Massacre todos
esses corpos já haviam sido enterrados. Para o enterro, os corpos foram vestidos com
uniformes das escolas municipais do Rio de Janeiro.

Conversando com um grupo de policiais no final de semana posterior ao Massacre, eles me


diziam que foi muito triste o que aconteceu e que, se eu quisesse, me mostrariam as fotos dos
corpos. Contudo, discordavam da representação que a mídia construía sobre os mortos.
“Crianças nada, as meninas já tinham até pentelho”, afirmou um dos policiais demonstrando
139
assim que além de dirvegir da representação construída pelos veículos de comunicação sobre
os mortos, tinha outra opinião do que seriam crianças e meninas.

Jornais, revistas e programas de televisão seguiam com coberturas e edições especiais do


Massacre. Wellington se tornou o Monstro de Realengo. A casa de sua família, onde ele vivia
sozinho, foi pichada com inscrições de „assassino‟ e „covarde‟. Como um “ritual de
humilhação” ao morto, promoveram um “escrache” para denunciar publicamente e manifestar
o repúdio (PITA, 2010:143) ao morto que também era monstro.

Durante esse período, ninguém se


apresentou enquanto declarante do morto
Wellington. Como esse cadáver se
caracterizou enquanto um cadáver
identificado não-reclamado, o IML deveria
aguardar o prazo de quinze dias para

Imagem 19: Fachada da casa de Wellington. Foto: inumá-lo. Apesar de seus familiares terem
Sabrina Lorenze/IG
sido convocados e se apresentado a depor
na Delegacia de Homicídios, que realizou as investigações referentes ao Massacre, nenhum
deles (cinco irmãos, uma prima, um primo, e uma tia) desejou se responsabilizar, enquanto
declarante pelo enterro do morto.

Quatro dias após, um homem se apresentou desejando liberar Wellington. De acordo com as
regras para liberação de cadáver, após setenta e duas horas, qualquer pessoa pode se
apresentar como declarante de um cadáver identificado desde que com a presença de duas
testemunhas para a liberação e a apresentação do comprovante de residência e de um
documento de identificação com foto.

Quando da apresentação desse homem, os policiais que estavam no plantão não autorizaram,
seguindo as orientações da direção do hospital, a liberação do cadáver. O homem, que se
apresentou como solidário à causa e à luta de Wellington, desejava realizar para aquele morto
os ritos tais como foram declarados na carta.

Indignado com a decisão do IML, o homem que portava uma mochila, ameaçou os policiais.
Afirmava que carregava consigo uma bomba e que, caso não pudesse levar o corpo de
Wellington, iria explodir a bomba. Os policiais assustados solicitaram reforços de segurança e

140
o homem foi detido. Em sua mochila não havia nenhuma bomba e o homem, após prestar
declarações para as policiais da Delegacia de Homicídios, foi liberado.

A forma como fora tratado o morto Wellington demonstra como o IML constrói e decide
acerca da vida dos mortos. O jovem, que realizou um ato de violência contra outros inocentes
e contra si, fora punido mesmo após a sua morte. Sua atitude foi uma ofensa a sua sociedade
equivalente “a pedir demissão não só da aldeia, mas da própria raça humana” (GEERTZ,
2006:264).

A maneira como Wellington morreu, provocando a morte de outras tantas pessoas, fez com
que ele perdesse seus direitos de morto e, mesmo que tenha deixado explícito seus anseios pós
morte, o abandono por parte de sua família e o enterro como um não-reclamado foram fruto
de um julgamento moral que resolveu puní-lo. Foi “decidido” no IML, com aprovação da
sociedade e de sua própria família que Wellington “não seria readmitido como parte da
comunidade humana” (id:268). Matar esse morto não foi suficiente, era preciso que ele
também fosse punido.

O corpo de Wellington permaneceu na


câmara frigorífica do IML por ainda mais
dez dias. Na madrugada do dia vinte e dois
de abril o corpo de Wellington foi retirado da
geladeira do IML pelo funcionário Fantasma
e depositado sem roupas num caixão. Dali,

foi levado ao Cemitério São Francisco Imagem 20: cova do Wellington. Foto: Sabrina
Xavier, onde foi enterrado numa cova Lorenze/IG

rasa como um morto identificado não-reclamado.

141
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ANEXOS

154
Anexo 1:

Esquema de lesões localizadas na face posterior do


corpo:

155
Anexo 2:

Esquema de lesões localizadas na face esquerda do corpo:

156
Anexo 3:

Ficha de Impressão Datiloscópica – Frente e Verso

157
Anexo 4:

Termo de Reconhecimento e Identificação de Cadáver - Página 1:

158
Anexo 5:

Termo de Reconhecimento e Identificação de Cadáver - Página 2:

159
Anexo 6:

Declaração de Óbito:

160
Anexo 7:

Tabela do Setor de Não-Reclamados:

161
Anexo 8:

Certidão de Óbito de Cadáver Identificado Não-Reclamado128

128
Algumas informações presentes nesse registro como nomes próprios e números de documentos foram
suprimidos por solicitação dos meus interlocutores.
162
Anexo 9:

Carta de Wellington

163

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