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Peis Ateoria socioistérica de Vygotsky 6 A educacdo: reflexes psicoldgicas trap: Dann Lay Pace uma discussao acerca das principais idéias da teoria socioistorica de Vygotsky, relacionando-a com outras teorias que tiveram destaque no cenario educacional do Brasil nas ultimas décadas. Propée, ainda, situar historicamente tais teorias, considerando o contexto sociopolitico e educacional que possibilitou a sua insercao no panorama da educacao em nosso Pais. Em relacao a teoria socicistérica, visa refletir, também, em que medida é possivel haver uma apropriacao dessa elaboracao tedrica em sua esséncia, uma vez que a base filosofica de tal teoria situa-se no materialismo historico-dialético de Marx e Engels. Isso sugere uma reestruturacao da concep¢ao e da politica educacional brasileira, pois entende que uma psicologia marxista, como propoe Vygotsky, pressupoe uma pedagogia tambem marxista, A Teoria de Vygotsky tem se constitue {do como uma das teorias mais debatidas em educacdo na uitima década, Falar des- se autor 8 ds suas contribuigoss arstiexac sobre o processo de ensino-aprendizagem requer que facamos uma anélise do con- texto em que foi produzida tal teoria, bem como em que circunstancias ela ganha vu tono Brasil. Esse argumento, por si s6, j& aponta para uma viso w/gotskiana: uma teria é produzida dentro de um contexto histérico, por um homem igualmente contextualizado e inserido em um tempo historico. Isso é valido para qualquer anali- se cientifica. Se tomarmos como exemplo 0 modelo geocéntrico, que propunha que a terra era o centro do Universo, compreen- demos que esse modelo foi valido durante um certo tempo ¢ contexto histéricos. A partirda sua andlise e da evolucao da Cién- cia, ele passa, entao, a nao mais ser ace 10, surgindo o modelo heliocéntrico, que o suplantae propée outra explicacao cientif- camais relevante Em relacao & Ciéncia Psicolégica po- demos dizer qus essa forma de analisar — onde noves modelos teéricos suplantam as ‘teorias anteriores — esta correta e incorreta, ‘a0 mesmo tempo. Ela é valida se conside- rarmos que em Psicologia novas teorias desenvolvem-se, e que estamos muito lon- ge de encontrarmos uma teoria ideal", até Porque sabemos que a Psicologia um corpo de conhecimentos extremamente complex, donde uma tinica concepgao ‘tprica nao pode ser suficiente para explicé- lo, Mas essa mesma andlise, acerca de no- vos modelos que superam o anterior, deixa de ser correta, quando refletimos que uma nova teoria nao ‘expulsa’, necessariamen- 18, do cenatio dessa Ciéncia, outras que Ihe antecederam Isto pode ser analisado quando consi- deramos as teorias de Psicologia que se interessaram em refletir sobre o ensinoe a aprendizagem. Nao ha como fazer referén- cia a teoria socioistérica, por exemplo, sem analisévla estabelecendo relacao com ou- tras teorias, sobretudo se considerarmos a insereao destas na educacao em nosso Pais, Do ponto de vista do cenério politico- educacional do Brasil, podemos, de forma um tanto quanto superficial, estabelecer 0 marco das teorias psicolégicas na educe- do da seguinte forma: na década de 70 ‘temos uma forte influéncia do behaviorismo, sobretudo em sua vers&o contemporanea, representada por Skinner ¢ outros psicélo- 99s americans. Contextualizando essa afi magao, a década de 70 6 fortemente marcada pelo regime e ditadura militar. A escola passa, entdo, a funcionar como um Pequeno quartel, onde os comportamentos deverao ser modelados, a partir das con- tingéncias de reforgo. Controlando a relacdo entre estimulo/resposta;reforco/pur nigao, podemos dar conta do proceso de Abra Et patan, Sein 9 6 9 21028 msn 200 Tonos amet ania po posta por Palo Frere (1870) Sowragaacoraaposes arae sovcagiecareda acare ‘onheemenog depose" ‘oatro.comcsecsiossrum Sarco) eaaapeo woos, aprendizagem., Nessa perspectiva, oconhe- cimento passa a ser compreendido como uma cépia do real ¢ o papel do professor sera o de transmitir 0 conhecimento, de- positando-o na mente do aluno.' Nesse momento histérico, disciplinas como Filo- sofia sao banidas do curriculo e essa nova, perspectiva promove mudangas radicais na educagao, consolidando 0 tao conhecido - e criticado pelos estudiosos do construtivismo — ‘modelo tradicional de educagao’. Esse modelo aparece naomais nos moldes ‘tradicionais' antigos, em que ‘oprofessor era percebido como um tutor € © proceso educativo centrava-se nele, mas @ partir de uma visao "tecnicista’. 0 Tecnicismo atsnde bem a essa nova pers pectiva, deslocando o centro do proceso de ensino-aprendizagem para as técnicas e recursos didéticos, que serao, desta for- ma, os instrumentos fundamentais para que ocorra a aprendizagem, que pode ser en- tendida como mocielagem do comporta- mento, © proceso cognitive mais impor tante, nessa visao tradicional, é a meméria eas matérias escolares, que deveriam pri- mar pelo desenvolvimento do raciocinio légico @ crticidade do aluno, visa ape- nas amemorizacao de fatos, datas, regras, formulas ¢ algoritmos de resolucao de pro- blemas. O discurso do professor, a partir dessa visdo tecnicista, 6 0 de que s6 possivel 'ensinar bem’ se ele tiver ao seu dispor recursos audiovisuais interessantes, laboratérios bem equipados, ete ‘Adécada de 80 é marcada pela aber- tura politica @ queda da ditadura miltar. Nesse momento (meados dos anos 70, mas consolidando-se no inicio dos anos €0), a teoria de Piaget comaca a ganhar espago no panorama educacional brasileiro. Em- bora o interesse de Piaget fosse epistemolégico (como se constrdi o conhe- cimento), & nao pedagogico, foi pela ver tente da educacao que esse teérico ganhou vulto no Brasil. Era bastante comum, no inicio dos anos 80, encontrarmos propa- gandas de escolas que diziam: 'usames 0 método Piagetiano’. Se, por um lado, foi principalmente pela via da educacao que Piaget chega ao Brasil, o construtivismo piagetiano foi grosseiramente interpretado, gerando equivocos em relacao a como se da a construgao do conhecimento nesse referencial teérico, No entanto, ¢ inegavel a contribuicdo que essa teoria trouxe, mes- mo que de forma tao equivocada inicial= mente, para @ analise critica do Modelo Tradicional nos moldes behavioristas @ para desenvolvero interesse pela compreensao do pensamento e das formas de raciocinio do aluno. Com Vygotsky © caminho nao foi diferente: embora esse tedrico fosse con- temporaneo de Piaget (ambos nasceram no mesmo ano: 1896), apenas no final da dé- cada de 60 € inicio dos anos 90 a sua teo- ria passou a ser discutida amplamente divulgada no Brasil. Analisemos essa ques- tao: Vygotsky nasceu na antiga Unido So- viética e comegou a elaborar sua teoria apés a Revolucao Russa de 1917, propon- do 0 desenvolvimento de uma Psicologia marxista, que tinha como objetivo transpor © marxismo do nivel floséfico para o nivel psicolégico. Mas, com a Revolucao Socia- lista, a Unido das Repuiblicas Socialistas Sovisticas (URSS) fecha as portas para 0 mundo, nae permitindo um maior intercam- bio entre este pals ¢ os demais. Vygotsky ainda tem acesso a obra de Piaget, mas este ultimo s6 conhece a obra vygotskiana apés sua morte, Dentro da prépria URSS as idéias de Vygotsky sao proibidas de se- rem difundidas durante algum tempo e so- frem oriticas severas, sobretudo por ques- t6es ideolégicas. Umdos aspectos em que a sua teoria foi mais severamente criticada diz respeito ao fato de Vygotsky, na visao dos seus crticos, ter dado uma énfase ma or &linguagem do que ao Trabalho na cons- tituigao do individuo. Isso iria radicalmente de encontro as idéias propostas por Marke Engels. Tomamos aliberdade, aqui, de nos re- ferirmos aos pressupostos de Vygotsky come teoria, Este ponto, por si s6, geraria uma longa polémica discussao, em que hd os que defendem que Vygotsky nao pro- pés uma teoria organizada a partir de pres- ‘supostos e postulados bem definidos. Isto nos parece questionavel. De fato, Vygotsky nao dispés de muito tempo para a sua ela- boracao tedrica, Morreu jovem, aos 97 anos, deixando toda uma obra por desen- volver. Outra questao relevante, que nao se pode aqui deixar de referir,é 0 fato de que ele produziu sua obra em um idioma que, entre outras peculiaridades, tem signos que © alfabeto ocidental nao possui. Isto se configurou como um elemento dificultador da tradugao dos escritos de Vygotsky para outros idiomas, como também a propria divulgacao de suas idéias. Os seus primei- ros livros no Brasil datam da metade da década de 80 foram traduzidos do inglés ou francés. Duarts (2000) discuts que, por exemplo, aobra Pensamento e linguagem teve sua primeira edigao brasileira publicada em 1987, a partir de uma verso resumida em inglés, da qual foi suprimida mais de 60% do texto original Mas. embora considerando todos es- ses argumentos, 0 legado teérico que Vygotsky nos deixa é extremamente rico denso, e nao pode ser compreendido de manera estética e seqliencial demais. A sua teoria 6, em esséncia, aialética? -no sent do que prope Marx e Engels —e talvez te- nha sido exatamente essa a sua intencao’ nao & possivel compreendé-la sem consi derar que 08 conceitos por ele propostos relacionam-se ¢ influenciam-se mutuamenr te, havendo uma interdependéncia entre eles. Oque surge, entéo, dessainteratuacao, 6 algo novo, diferente do que cada conoei- to significa isoladamente, namais auténtica idéia de sintese dialética, proposta inicial- mente por Hegel ¢ mais tarde por Mark e Engels. Uma andlise inicial, que talvez jé aponte para essa idéia de sintese dialética, dizres- peito @ posigao de Vygotsky sobre a ori gemdohomem contsmporaneo € ao quar toessa visdo influenciou a sua proposicao teérica. Como discutide por Van der Veer e Valsiner (1998), Vygotsky se apdia no pensamento marxista, que distingue duas etapas na filogenia humana’ a evolucao biolégica e a evolugao histérica. Do ponte de vista da evolugao histérica, o materiar lismo histérico-dialético aparece como uma importante referéncia para essa andlise. A Teoria da Evolugao de Charles Darwin, por sua vez, traz uma explicagao completa e detalhada para a evolugao biologica, O préprio Vygotsky indmeras vezes teceuielo- gios atal teoria em seus escritos. Essaiden- tificagao com Darwin também se constituiu como um slemento importante em relagao as crticas ideolégicas levantadas & sua teoria, as quais afirmavam que esta tinha uma visao biologizante do homem. Dessa forma, uma primeira idéia de sintese que podemos, aqui, nos refer, diz respeito 20 homem enquanto ser biolégico e histéri- co, numa analise darwiniana e manxista Essa reflexao histérica € contextualizada, feitainicialmente, teve por Objativo, como j& nos referimos, levantar argumentos slides para defender a pro- posta teérica vygotskiana. Se analisarmos uma teoria de forma descontextualizada, somos privados ds compreendé-la sm sua ‘otalidads, pois ela sera desprovida de um dos seus substrates mais importantes: ahis- t6ria ¢ 0 contexto. ‘Tomemos, entéo, alguns conceitos que explicam 0 desenvolvimento das Fungdes Mentais Superiores —tipicamente humanas —e suas implicagoes educacionais. Algu- mas das principais idéias de Vygotsky po- dem ser aqui resumides: 41) Arelagao entre individuo/sociedade 6 dialética, e a partir dela se desenvolvem as caracteristicas tipicamente humanas. 0 homem transforma o seu meio e, nessa re- lagao, € por ele transtormado. 2) A pattir da afirmativa anterior, enten- de-se que as funedes psicologicas superio- res, tipicaments humanas, originam-se nas relagées do individuo e seu contexte sociocultural. Em outras palavras, tais fun- (Ges tém uma origem cultural 3) O cérebro constitui-se como a base biolégica das funges mentais, mas nao é imutavel ou fixo; pelo contrério, pode-se ‘alar om plasticidade cerebral 4) A relagao individuo/mundo nao é direta, ela é mediada por “ferramentas’ crt- adas pelo préprio homem. '5) Os processes psicolégicos comple- xos se diferenciam dos mecanismos mais elementares @ nao podem, portanto, ser reduzidos & cadeia de retiexos (Rego, 1908, P. 43) Discutindo mais em detalhe esses t6- picos, uma concepeao fundamental que Vygotsky traz a reflexdo é a idéia de que o conhecimento nao se da a partir da interagao direta sujeito-objeto, Essa interacao é, em esséncia, mediada. Com isso, ele propée a idéia de mediagéo sin bolica, tendo como base a concepeao de Marx e Engels. Essa mediacao é realizada pelos instruments e signos. Por ‘instrumentos'ele entende os ob- jatos do mundo fisico, que medsiam aagao ~ e transformacao - do homem sobre a natureza. A possibilidade de transformacao desta pelo homem seria infinitamente me- nor se ele néo houvesse desenvolvido aprimorado 0s instrumentos que auxiliam ‘sua intervengao no mundo, Podemos to- mar como exemplo, para ilustrar essa re- fiexao, a questao da agricultura. Se um homem pretence cultivar a terra com suas proprias méios, sem fazer uso de ferramen- tas como a pa, a enxada, 0 arado, a pos- sibilidade de agao sobre a terra serd mini- ma. No momento em que ele introduz as ferramentas na agricultura, passa, sntao, a xara poptea acinar. ‘eateeee 2 susrogayao’s antitess. A parti dessa ‘eajao suigeashtess cue ‘Sessarameacapodgce eran ‘Suacome algo tuneareriat 9 (Rogerese ierespetoance ‘Serciumenioasespooe poder transformar a natureza de forma mais eficiente. Isso nos remete 20 concel- to de trabalho, conceito este de extrema relevancia na anélise marxista. Entretanto, medida que o homem transforma o mun- do, sofre a consequéncia direta dessa acéo, sendo também por ele transforma: do, Dessa forma, podemos afirmar que o homem se constrdi historicamente & me- dida que constréi o mundo, ¢ que o tra- balho é 0 motor dessa transformacao. A forma como os instrumentos sao desenvolvidos @ utlizados pelo homem nos remete a uma importante andlise, propos- ta por Vygotsky, sobre a compreensao das fungdes mentais superiores, que diferenci= amos homens des outras especies animais, mesmo as mais desenvolvides. Um exem- plo cléssico que ilustra essa discussao diz respeito a utilizagao de instrumentos por chimpanzés (ct, Oliveira,1993), Um chim= panzé pode fazer uso de uma vara para atingir um cacho de bananas que nao es- teja ao alcance de suas maos. Mas esse mesmo animal ¢ incepaz de quardar esse instrumento para utilizé-1o em uma situagao semelnante no amanha, ou de aprimoré- lo, com o objetivo de poder dele fazer uso de forma mais eficaz (por exemplo, afar uma das pontas da vara, transformando-a em uma espécie de 'seta’, para poder perfurar © cacho, 20 invés de atingilo © deixa-lo cai no chao). De fato, ‘os animais realmente apre- sentam os rudimentos da fabricagao ¢ uso de instrumentos, mas os instrumentos nao desempenham um papelimportante nasua adaptacao ao meio ambiente" (Van der Veer, Valsiner, 1996, p. 225), O desenvolvi- mento s sofisticagao dos instrumentos 520 atividades tipicamente humanas. Nessa dis- cusséo, entra um elementofundamental, que 6 acultura. Podemos, possivelmente, falar em sociedade quando nos referimos a al- guns animais que possuem uma organiza 10 € distribuicao de papéis e funcoes no interior do seu grupo. Porém, numa andlise psicol6gica, nao poderiamos falar em cu- tura, pois esta Ultima pode ser entendida como formas de organizacao do conheci- ‘mento historicamente construido.\sso & pré- prio das relagdes entre os homens, masnao entre outros animais. E a cultura, entao, a responsavel pelo desenvolvimento € apr moramento dos instrumentos ¢ artefatos socials. (O segundo elemento mediador, apon- tado inicialmente por Marx e Engels ¢ forte- mente enfatizado por Vygotsky, € 0 sign Os signos aparecem, nesse contexto, como 0s instrumentos psicolégicos, pois eles me- deiam o préprio pensamento. Alinguagem se constitu como o signo fundamental, pois ela tem o poder de representar simbolicar mente objetos ¢ eventos. Podemos dizer, assim, que o simbolo representa uma au- séncia, Na ausénciafisica de um objeto, ele pods ser representado pela linguagem, sem que haja nevessidade de té-1o concretamen- te ao alcance das maos, Alinguagem teria, entao, uma dupla fungao, como discutido em Oliveira (199): a de interc&mbio social e de pensamento generalizante. Desta for- ma, mais do que comunicar o pensamento, alinguagem o organiza e estrutura. Este é um dos aspectos essenciais da elaboragao vygotskiana e um dos que claramente apon- tam paraa divergéncia entre asua obra ea de Piaget: Vygotsky atribui um papel fun- damental a linguagem na constituigao das Funcoes Mentais Superiores, enquanto que para Piaget a inguagem pode ser entendi- da como uma das aquisiooes - importan- tes, sem duvida —fruto do desenvolvimento cognitivo. Dito de forma sintética: em Piaget, a linguagem 6 ‘filha’ do pensamento. Em Vygotsky, essa estruturagao dé-se de for- ma diferente. Pensamento e linguagem t8m ralzes distintas. Dessa forma, pode-se falar em pensamento sem linguagem (fase pré- verbal do pensamento) e de linguagem sem pensamento (fase pré-intelectual da lingua- gem). Num dado momento do desenvoivi- mento infantil (aproximadamente em torno dos dois anos de idade), ambos os pro- cessos encontram-se, passandoacaminhar de forma espiralada @ interdependents Retomando a discussao acerca das Fun- oes Mentais Superiores, podemos ousar dizer que os animais 'estacionam’ na fase anterior. Eles possuem uma forma de co- municagao toda propria e, por outro lado, sao também capazes de resolver proble- mas simples (como foi referido anteriormen- te). Todavia, possivelmente, néo se pode falar na confiuéncia desses processos em um determinado momento, como aconte- ce com o homem. Essa confluéncia, por sua vez, é que caracterizaria o desenvolvi- mento das Fungdes Mentais Superiores, que nao estao presentes nas outras espé- cies animais, Uma das mais importantes contribui- oes para a educagao, quando nos refer mos idéia de mediacao simbélica, dizres- peito a0 papel da escola. A escola — repre- sentada pelo professor @ pelos colegas, numasala de aula— aparece comoelemen- tomediador na apropriacao, pelo individuo, do saber historicamente acumulado a0 lone go do desenvolvimento da humanidade, A Palavra apropriagéo, comumente referida quando a teoria de Vygotsky est sm de- bate, pode ser compreendida no sentido exato da sua etimologia: apropriar-se, to- mar posse, tornar sua propriedade. Assim, 2 conhecimento, que 6 historicamente construido, é internalizado e torna-se pro- priedade do individuo. Nessa visao, a es- cola assume uma fungao primordial: “a de comunicar as novas geracées os saberes socialmente produzidos, aqueles que sao considerados, em um determinaclo momen- tohistérico, validos e relevantes' (Castorina et al, 1996, p. 95) Tal enfase, no contexto social € no co- nhecimento come historicamente construido, promoveu uma interpretagéo da teoria de Vygotsky, 8 de sua relacao com o construtivismo piagetiano, que merece des- taque nessa discussao. A idéia inicial—e ex- ‘tremamente ‘perigosa" - que se tinha era a de que Vygotsky vinha acrescentar & teoria piagetiana o 'social", uma vez que este outro tedrico nao hax via enfatizado muito tal questo em sua elaborago tedrica. Surgem, entéo, ter- mos como socioconstrutivismo, que culmi- nam por aventuar essa visao equivocada de que Vygotsky apenas acrescenta & andlise de Piaget algo que este teérico nao fizera Como foi anteriormente discutido, uma ten- déncia muito comum no panorama da edu- cagao em nosso Pais, ainda vigente hoje em dia, 6 a de banir uma teoria quando outra surge. Essa tentativa também foifeita em re- lagao a esses dois tedricos, como se, na \verdads, tivéssemos de optar por Piaget ou Vygotsky, e ambas as teorias, mesmo apre- sentando diveraéncias consideraveis, uclessem contribuir de forma valiosa paraa andlise dos processos educativos. Considerando a andlise desses proces- 08 educativos e tendo como enfogue aim- portancia dada por Vygotsky aos signos na mediacao do pensamento, alinguagem, en- quanto elemento estruturante do pensamen- 10, deve ser explorada, nesse contexto, como ‘forma de representacao e organizacao inter- na do mundo extemo. Entretanto, ela néo ode ser percebida apenas como expres- 80 verbal, Diversas formas de linguagem devem ser exploradas no contexto escolar verbal, escrita, gréfica, pictérica, numérica etc. Os Parémetros Curriculares Nacionais, elaborados pelo MEC (Brasil, 1997), apon- tam para essa reflexao, tanto no que diz res- peito & intervengao didética quanto ao pro- c8ss0 de avaliagao, Eles discutem que um ra it pda, in Bn 6p 1028 gs 20 nico instrumento e tnica forma de sxpres- séolingUisticanao pode dar conta do quanto © aluno aprendeu, do saber do qual ele se apropriou ao longo de um periode letivo. Esse saber cientfico nao pods pres cindir das experiéncias cotidianas do indi- viduo e do acervo de conhecimento que ele acumulou ao longo de suas vivéncias no cotidiano escolar e extra-escolar, Isso nos remete a outra andlise da teoria de Vygotsky, que diz respeito & relacao entre conceitos cotiaianos conceitos cientiicos. Em sua reflexao tedrica sobre 0 processo de formagao de conceitos, a discussae acerca dos conceitos cotidianos e cientii- cose das relagdes entre estes configura-se ‘como um dos aspectos mais produtivos na abordagem elaborada por Vygotsky. Am- bos fazem parte de um processo mais com= plexo e sofisticado e estdo intimamente relacionados no seu interior. Para adquirit determinades conceitos cientiicos, a cri- anca precisa ter consolidaco a compreen- a0 dos conceitos cotidianos que Ihes déem suporte. Essa anélise pode ser enfocada se considerarmos alguns conce!- tos envolvidos nas Ciéncias Sociais, sobre- tudo em Historia: para desenvolver ocon- ceito cientifico de tempo histérico' 0 aluno deve ter desenvolvido cotidianamente conceito de 'relagao temporal’ - pasado, presente ¢ futuro’ (Albuquerque, Araujo, Brito Lima, 2000) Nessa relacao, os conceitos cotidia- nos favorecem o desenvolvimento dos con- ceitos cientificos, relacionando-os com o diarardia, Os conceitos cientificos, por sua vez, dao abrangéncia e maior poder de generalizagao aos conceites cotidianos. Sendo assim, ambos sao imprescindiveis e complementares para o processo de de- senvolvimento dos conceitos, em primeira insténcia, e da prépriainteligéncia, em uma anélise mais aprofundada, Isto nos conduz a.uma importante reflexao: aescola é uma instituigéo imprescindivel, pois 0 contato como conhecimento cientifico e sua siste- matizagao desempenha um papel funda- mental no desenvolvimento das fungoes mentais superiores. Se considerarmos a relevancia deste debate para a educacao, percebemos que aescola feqientemente descontextualiza os conceites por ela trabalhados, nao levando ‘em consideragao qus 0 aluno tem um acer vo de experiéncias ¢ conhecimentos anteri- ores — desenvolvidos no cotidiano escolar © extra-escolar — que deveria servir como A tae Ex pen, Baia 6.9168» 219228 mann 00 suporte para a construgao de novos conhe- cimentos. Além do mais, os noves concel- tos elaborados precisam ser funcionais, de acordo com a reflexdo atual em Psicologia, Pedagogiae Didatica, sobre funcionalidacie do saber. Ou seja, 0 aluno necesita enten- der 0 porqué e para qué daquele conheci- mento: a eprendizagem é sempre no senti- dotansttivo- aprendizagem de alguma coisa (Vergnaud, 1980) Vygotsky propée uma andlise comple- xa e sofisticada acerca dos processos de desenvolvimento @ de aprendizado, Uma das reflexdes mais instigantes para o edu- cador, em sua teoria, 6 ade que 0 “nico bom ensino é o que se adianta ao desen- volvimento" (Vygotsky, Luria, Leontiev, 1908), reflexao esta, que abre caminho para outro conceite fundamental: 0 conceite de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) Esse conceito pode ser compreendido como a distancia entre 0 que o aluno éca- paz de realizar sozinho, ou seja, 0 que ja consolidouem seu desenvolvimento (nivel real de desenvolvimento) aquilo que ele nao pode fazer sozinho, mas consegue re- alizar na interagao com 0 outro mais experi- ente (nivel potencial). Isto nos leva & com- preensao de que ainteracéo na sala de aula éimprescindivel Tal analise implica questoes atuais: @ primeira é aidéia de que a escola deve var lorizar, sobretudo, as interagGes entre os di ferentes. Sendo assim, a concepcao de cue salas de aula heterogéneas sao preocupantes também se desfaz, pois interagées heterogéneas implicam indivicur 0s com diferentes zonas de desenvolvimen- to proximal, interatuando uns na ZDP cos outros. O aluno menos experiente benef- cia-se dessa interacao, pois o outro pode ajudé-lo em elaboracoes que ele nao con- ‘segue realizar individualmente; como tam- bbém 0 mais experiente beneficiarse, pois, no momento em que ele procura ajudar 0 outro a desenvolver noves conesites, isso implica uma organizacao e estruturagac de ‘suas préprias idéias, a fim de sistematizé- las € compartilhd-las com o outro, reestruturanco e consolidando, assim, suas antigas concepdes. Isso justifica, por exemplo, todo 0 de- bate etual acerca da Educacao Inclusiva e a insergao de criangas ‘especiais* interagindo com seus pares nas salas de aula, ao invés da manutencao de ‘salas es- peciais', que tém por objetivo homogeneizar 0s grupos. A idéia de turma homogénea, ppor sua vez, 6 uma idéia iluséria, pois mes- moque se homogeneize um grupo emdado momento, no momento seguinte esse mes- ‘mo grupo jé se tomou heterogéneo, em fur ao das diferencas individuais e rtmos de Cada aluno no processo de aprendizagem, ‘A segunda questao que aqui nos pro- poms refletir é a de que nao preciso esperar até que o aluno esteja pronto (do onto de vista desenvolvimental) para ad- Quitir um determinacto conhecimento. Isto desmistifica a ideia de pronticéo, ampla- ments difundida em um passadio nao mui to distante. As idéias de Piaget foram as que inicialmente colocaram em xeque a perspectiva da prontidao. Contudo, a Teo- ria dos Estagios, com sua proposta de eta- pas sequenciais e universais de desenvol- Vimento, foi interpretada erroneamente, a onto dos educadores adotarem um our {ro tipo de prontidao, tomando isoladamen- te um aspecto discutido por Piaget e inter- pretando-o de forma rigida: 0 aluno sé oderia aprender um conceito que estives- se compativel com aestrutura cognitiva de um determinado estagio. Nessa andlise, tarefas desenvolvidas a partir das discus- des propostas por Piaget, como, por exemplo, a tarefa que visava investigar se a crianca estava na fase do Realismo No- rminal,* foram utlizadas em algumas esco- las como testes de prontido para a alfa- betizagao. Essa questao foi amplamente debatida no contexto da educacao, ¢ hoje algumas distoredes foram superadas, mas ainda hd apropriagoes inadequadas daquilo que Piaget propés. Porém, quem vem, de fato, propor um argumento fortemente opositor a idéia de prontidgo & Vygotsky, com conceito de zona de desenvolvimen- to proximal e os desdobramentos educaci onais desse conceito Consideracoes fin: Ateoria socioistérica consolidou-se, a partir das teses acima postuladas, como ma teoria de extrema valia para a educa- a0. O debate sobre praticas pedagogi- Gas, na atualidade, nao pode estar desvinculado da proposigao tedrica de Vygotsky. Deveros refietir que ha ainda uma apropriagao inadequada desta pers- pectiva tedrica. Entramos novamente nos 'modismos' tao comuns em educaco, mas compreender a teoria dese autor ® poder fazer uma transposicao para a dimensao da sala de aula nao é algo simples, Duarte (2000) propos uma questao e um debate da maior relevancia: ¢ possivel de fato, implementar as idéias de Vygotsky, fem sua esséncia, no cenério educacional em nosso Pais? Introduazir, efetivamente, as idias des- se autor, implica néo apenas uma compre- ensao dos aspectos teéricos abordados, mas no redimensionamento de toda uma concepeao ideolégica, politica pedagé- gica. Se a proposicao de Vygotsky era a do desenvolvimento de uma Psicologia marxista, com certeza nao é possivel ade- quar os pressupostos vygotskianos numa base educacional nao-marxista. O que se percebe é a tentativa de apropriar-se de tal ‘tworia de forma acstala: enfocando o aspec- to psicolégico e intra-subjetivo sem fazer uma analise histérica e contextualizada, Duarte (2000) aponta esse fendmeno como revelador de uma apropriacao neoliberal de tal teoria, numa tentativa que, com certeza, incorrera em insucesso @ es- facelamento da proposigao teérica wygotskiana, Os pensadores neolberais vi- sam reproduzir, no plano ideolégico, a or dem capitalista contemporanea. O modelo de sociedads & de conhecimento, defendi- do nessa proposta, pode ser resumido, de forma bastante sucinta, na seguinte ida: © conhecimanto entancide como ex- ‘lusivamente individual, circunstancial do possival de ser intagrado a uma vi- ‘880 totalizadora do real. O conhecimento a realidade 6 sempre parcial e particu- lar (..) Trata-se, itidamente, de uma na- turalizagae do sosial, que é visto como resultante inoontrolavel e inoognoscivel das imprevisiveis agGes individuais (Duarte, 2000, p. 726 73) Observa-se, a pattir da citagao acima, que esse modelo, se aplicado @ concep- cdo vygotskiana, esvazia de significado sua anélise sobre o proceso de produgao do conhecimento. Essa visao neoliberal priv legia 08 processos individuais @ os analisa a pattir de uma ética da experiéncia imedF- ata e pontual, numa visao ahistérica. De- certo que Vygotsky nao negou a dimensao individual nes processos de desenvolvimen- toe de aprendizagem, porém, para esse te6rico 0 curso de tal desenvolvimento se daria do social para o individual, ou seja, do plano intersubjetive para o plano intra- subjetivo. Essa mesma idéia neoliberal, acimadis- cutida, pode ser enfocada quando pensamos Emig a elim om ‘al Pagel propee que rum ‘otamertpcomnine acing ‘omundeo agioado came ‘Sgmicaas ousep eacormay Seonamecomoctiee ease ‘taquo meds ganaeare presontado por ura pals ‘farce enquartoqusum ab. [iopesuevoserareprese Soporumepaavaguamerie ‘Siema.o ser se zpdiana ‘alse toa por Want (G08) sobre a toora uo Fredenckrayes consastaco tumdos mals mporartes rcs oo persarento Fostter sobre 0 construtivismo. Tal tsoria, que tem sua base em Piaget, mas que ha uma ten- déncia de aela associar também onome de Vygotsky (dentre outros teéricos como, por exemplo, Ausubel, Bruner e Wallon), € freqientemente referida como uma teoria psicolégica da aprendizagem e do desen- volvimento cognitivo, Contudo, ela nao & considerada uma teoria de educacao. Pen- ‘sar sobre o construtvismo num patamar ape- nas psicolégico e negar sua vertente peda- 6gica, principaimente quando ha a tentat= va de inserir Vygotsky no dominio das teor- as construtivistas, & negligenciar os aspec- tos mais relevantes desse modelo te6rico. Se Vygotsky propoe o desenvolvimento de uma Psicologia manista, como anteriormen= te foi referido, para que esta teoria possa ter uma repercussao no cenério educacional, & preciso que seja proposta, iqualmente, uma Pedagogia manvista. As idias aqui discutidas & as analises propostas nao pretendem esgotar o deba- te que envoive a teoria socioistérica e sua relevancia para a educacao. Elas se limi- tam, apenas, a ensejar algumas questdes a sserem refletidas por psicSlogos e educado- res. Ainda estamos muito distantes da pos- sibilidade de estabelecermos um modelo educacional que esteja em sintonia com tudo 0 que aqui foi proposto. Hé, de fato, um longo caminho a ser percorrido, uma distancia entre os aspectos tedricos discu- tidos a transposigao destes para uma pré- tica escolar cotidiana, Nao se pode fazer uma justaposicao; adaptacdes necessitam serrealizadas. Mas 6 preciso transformar, € toda transformagao, como bem propos ‘Wyootsky, produzira algo nove, que nao seré a soma das questoes tedricas as praticas, mas 0 produto dessa interatuacéo, numa verdadeira sintese dlalética, a Referéncias bibliograficas ALBUQUERQUE, Ener ARALJO, Claudia; BRITO LIMA, Anna Paula. Aprenclzagem de conceites: 0 proceso de formacao de conceites nas teorias de Piaget, Vygotsky & Vergnaud. Artigo submetido & publicagao na revista Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasilia, 2000. 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E-mail: annapabm@terra.com.br © abstract This paper proposes a discussion conceming the main ideas on the field of Vygotsky's, Soclo-Historical Theory, relating it with other prominent theories in Brazilian educational scene of the last decades. It also considers pointing out historically such theories, considering the social, political and educational context that ultimately mace possible its insertion into the ‘scenery of the Eclucation in our country in relation to Vygotsky's Socio-Historical Theory, we complementarily aim at to study: and also, in what measure it is possible to have an appropriation ofthis theoretical elaboration, in its deep essence, provided the philosophical base of such theory is supported by Marx and Engels's historical-dialectical materialism. This suggests a reorganization of the conception and restructuring, or rebuilding, of Brazilian educational politics, therefore we understand that a Marxist Psychology, as Vygotsky does consider, also presupposes a Marxist Pedagogy. Keywords: psychological structure: education; history and context. 2 tes Et pa, ana 8 9 21828 mags 20

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