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GRANTA i OS MELHORES JOVENS ESCRITORES BRASILEIROS ALFAGUARA ‘GRANTA 9, INVERNO 2012 LGRANTA em potent DIRETOR | Rater Fath EDITOR More Reon ASSISTENTE EDITORIAL Vins Met GERENTE DE PRODUGAO Morale Xavier COORDENADOR DF REVISAO nit Mariko REVISAO Rio Gndy «Raye! Cora CAPA Bho! Sata EDITORAGAD ELETROMICA Aba Sytem GGRANTA em ings DIRETORA-GERAL Sirid Rang EDITOR Jon Fronan SUnEDITORA Blhlficy EoLTOR ASSISTENTE. Poot Ron ASSISTENTE EDITORIAL Yaka lg “Ania © Michal Lave; Aquel vento a raga © Laura Etter, Antes do unde © Jato Pale ‘areas 0 gue ved st aco aut Lad Gane Tle © Rear Uist Apnea © Dani [Gales Vl ares, daanto Poise’ © Anton Prat, O jatar © Jalan Fak ter de ace [B'varesta Bartara tde © Chico Matis; Temporada © Ere Fray Fra Wells Annis Nerney A fobs a ato B sader Arata Conors Falscs © carl Benseen; Toast © Rania Aguiar, Voc tem dao ral? © Leandre Samats,Pragrento de um rome © aria Caaioory Vote © Miguel Gel Castile; Natures morta © Vilas Saabs 0 Wo sia © ‘atara Salem ey Ostalbardores agua ie moral de sre decades or a autores tae Cos das imagers: Acro gessal,ExeiZo dos pgvas 12, 78,248: © Renato Pra; 50: ‘2 arse Ana, 136° © Stephane. U Farnanen 272° ors Een eval, Todos os direitos desta edigdo reservados & Editora Objetiva Ltda. ua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro — Rd — Cep: 22243-090 Tels (21) 2199-7824 — Fax: (21) 2199-7825 rea cbjtva com br cise cataLocagio.na tonre Corns at menses ane toes aa loge amar Oe, 202 ba cotegto areescoman9 1. Antonia. 2 este Stale 3. Laban. Gata, Boise | | i ul 25 37 49 65 7 101 Te 125 Introdugio Animais Michel Laub Aquele vento na Praga Laura Erber Antes da queda JP Cuenca O que vocé esta fazendo aqui Laisa Geter Telia Ricardo Lisiae Apneia Daniel Galera Valdir Peres, Juanito e Poloskei Antonio Prats O jantar Flin Fuks Noites de alface Vanessa Barbara SUMARIO 133 143 155 169 183 197 2un 231 241 251 27 Mae Chico Mattoso ‘Temporada Emilio Praia F para Welles Anténio Nervenesky A febre do rato Javier Arancibia Contreras Faiscas Carol Bensimon Teresa Griethiano Aguiar Vocé tem dado noticias? Leandro Sarmatz Fragmento de um romance Carola Saavedra Violeta Miguel Del Castillo. Natureza-morta Vinicius Fatobs O Rio sua Tatiana Salem Levy GRANTA ANIMAIS Michel Laub Escritor e jornalista, Michel Laub publico cinco romances, todos pela Companhia das Letras. Entre eles, Longe da digua (2004), p blicado também na Argentina (EDUC segundo tempo (2006) & Didrio da queda (2011), que teve os direitos vendidos para 0 cinema, recebeu os prémios Brasilia ¢ Bravo) Bradesco ¢ sairé na Alemanha (Klett-Corta), Espanha (Mondadori), Franca (Buchet/ Chastel) © Inglarerra (Vintage). Nasceu em Porto Alegre, em 1973, vive atualmente em Sfio Paulo, 1 Quando eu tinha onze anos, em Porto Alegre, meu cachorro Champion foi morto pelo dobermann do vizinho. a Esse vizinho era um coreano dono de uma fabrica de biscoitos, e onde a familia dele morava agora hi um prédio. Onde nés mo- ravamos também ha, assim como em toda a vizinhanga, que era cheia de terrenos baldios e caleadas onde dava para andar de skate 3. ‘Quem passeava com Champion era a empregada. No dia da mor- te ele estava fugando num arbusto, e num momento de distracao dela puxou a coleira e conseguiu se soltar a tempo de correr e en- fiar o focinho entre as grades do coreano, Essa moga trabalhou em casa por mais um ou dois anos, eu nunca mais a vi, e dos onze até hoje nfo tive mais nenhum cachorro, Os animais que tive foram ‘um hamster, um pato, um gato € um segundo gato, 4. O hamster eu ganhei depois de Champion, Eu gostava de cortar cenoura, trocar os jornais e vé-lo correr na rodinha, ¢ s6 parei de brincar porque ele comecou a morder o dedo de quem chegasse pperto, ¢ havia o ritual de engolir os pedagos de cenoura e se enfiar embaixo do cobertorzinho e botar tudo para fora com a ajuda das ppatas, como se estivesse se cogando, Numa dessas vezes uma tripa velo junto com a comida, ¢ na manha seguinte fui limpar a gaiola eo hamster estava duro e frio. B MICHEL LaUB 5 ‘Quem me falou da morte de Champion foi meu pai. Ele entrou no ‘quarto, sentou na minha cama e depois de dar a noticia pediu que eu no contasse para a minha irma, que tinha apresentagio de balé A noite ¢ poderia ficar nervosa. Minha irma é dois anos mais moca © danga desde pequena. Todo ano faros a um espetaculo com trinta criangas em cima do palco. Eu aguentava uns dez. minutos © esperava na saida, uma vez, meu pai fez 0 mesmo, o teatro ficava na praca da Matriz e paramos na escada conversando e olhando a Catedral, a Assembleia Legislativa, 0 Tribunal de Justica, 6. Faz dois anos que meu pai morreu de fibrose, uma espécie de cicatrizacio progressiva que diminui a area til do pulmio. A so- brevida a partir dos primeiros sintomas é de cerca de cinco anos. ‘Meu pai comeou tendo dificuldade para subir escada, depois passou a andar de bengala, depois no conseguiti mais ficar de pé, depois tinha um tanque de oxigénio ao lado da cama. Nos tiltimos meses um enfermeito ajudava a cuidar dele, Eu acompanhava os dois nos passeios, empurrava a cadeira de rodas, iamos a uma sor- veteria ¢ ficévamos na mesa da calcada, uma rua cheia de arvores, meu pai com aparéncia saudével por causa dos corticoides. No enterto 0 rabino fez um discurso, ¢ cortou um pedaco de roupa de cada familiar, ¢ cantou a reza dos mortos antes do eaixéo descer, € cada um dos presentes pegou a pi e jogou um pouco de terra 2 ‘Meu pai veio da Alemanha por causa do nazismo, em 1937, aos seis anos, junto com a mie. Meu avé migrou com a filha mais velha para Israel. Meu pai s6 foi ver a irma em 1970, e meu avo ele nunca mais viu porque nessa viagem, e ele foi porque meu avo estava no hospital, com cancer no ultimo estigio, nessa viagem meu avé se recusou a recebé-lo. Meu avO considerava meu pai uma pagina virada. A razo é que meu pai, ainda crianga, nfo teria 4 ANIMALS respondido as cartas que meu avé mandou para o Brasil. Meu pai 56 me contow isso em 2007, eu ja morando em Sto Paulo, numa conversa de dois minutos enquanto esperévamos um taxi na Ala- meda Itu. 8. ‘Meu pai era engenheiro, Ele participou de varios projetos gran- des, a reforma do mercado de Porto Alegre, o metr6 do Recife, uum hospital em Serra Leoa. Em maio de 1992, mais ou menos como no dia da morte do cachorro, ele entrou no meu quarto para falar de um amigo meu. Esse amigo andava de skate ¢ fomos mui- to proximos até pelo menos o segundo grau. Quando eu tinha uns treze fui assaltado junto com ele, um menino de rua que tinha um canivete pediu nossas joetheiras ¢ luvas, ¢ eu fiquei parado € esse amigo saiu correndo da mesma forma como correria em 1992, a0 ser abordado por um bandido quando safa do carro, Ele tomou 1rés tiros pelas costas. Meu pai disse, aconteceu uma coisa muito séria, Eu fui a casa do meu amigo naquela noite, meu pai foi junto, © pai do meu amigo nos recebeu, ficamos la cerca de meia hora. Muita gente estava chegando, conhecidos, parentes. O pai do meu amigo estava de meia, Estava com a camisa para fora, a gravata frouxa, e ao me ver falou como que pedindo desculpas: 0 que eu posso dizer sobre isto? 9. Naquela noite eu fui com meu pai a uma lanchonete. Comemos bauru e tomei cerveja. Meu pai puxou assunto € lembrou 0 dia em que chegou em casa com 0 pato, talvez cinco anos antes, um brinde ganho numa feira agricola. O amigo que morreu estava na nossa casa, Nés demos Agua para o pato, milho, 0 bicho andou para lé e para cd no jardim e meu amigo ficou fascinado com aqui- lo, ea mae dele sempre me dava presentes € eu ndo tinha achado muita graca no pato e entio perguntei se meu amigo queria ficar com ele. 5 10. © nome do pato era Donald. © nome do amigo que morreu era Marcelo. O nome de outro amigo que morreu, ¢ isso foi em 1987, cle preso numa rede de pesca enquanto surfava, era Victor. No dia do acidente estivamos Victor, Marcelo e eu dentro da égua, a praia era Capo da Canoa, fazia uns cinco graus ¢ estavamos perto da sttida do esgoto. Nas praias do Rio Grande do Sul vocé quilometros tocos de capim, um pangaré que pasta e apanha porque segue mais puxar a carroga. Pela posigdo do cabo da rede, que depois localizamos na areia, ¢ a correnteza, que estava puxando para o sul, dé para dizer que a malha passou por baixo de mim € depois de Marcelo antes de se enroscar na cordinha de Victor, ou na quitha, ou na perna dele, eu nunca consegui saber. Ele foi levado inconsciente para um posto de saiide. Saia uma baba de sal da boca. No posto fizeram respiragio ¢ puseram eletrodos no peito, primeiro choque, segundo choque, um rapaz vestindo jale- minha ‘mesma paisagem, casinhas de salva-vidas, uns co que contava os segundos em voz alta. Depois disseram que 0 procedimento foi errado, que nem 0 puseram de brugos, que nem fizeram expelir a gua ou tiraram a roupa de neoprene para faci- litar a expansdo do peito, mas acho que ele jé estava morto quando foi tirado do mar. estava hospedado na casa de Victor. Nés tinhamos chegado nna véspera, comemos salsicha na janta e jogamos canastra antes de dormir. Fu voltei para Porto Alegre as duas da tarde do dia seguinte, meu pai ao volante, ele e minha mic foram a Capo da Canoa quando souberam do acidente. No dia da morte de Mar- celo eu pensei naquela viagem, a Lagoa dos Patos, 0 pedigio, uma hora e meia até Porto Alegre e eu sai da casa de Marcelo com a lembranga viva daquilo, e eu comentei com o meu pai na lancho- nete e ele disse que eu ndo tinha de pensar nessas coisas, Hii coi sas que apenas acontecem. As coisas ds vezes nfo fazem sentido, 16 ele disse, e hoje me dou conta de que nunca conversei com meu pai sobre a inffincia dele, os colegas da escola que talvez tenham ficado na Alemanha, alguns ou todos indo parar em campos de concentrago, ou sobre as lembrangas que ele tinha das ruas e da cidade e do pais que foi arrasado nos anos seguintes. 12. ‘Meu pai ndo frequentava a sinagoga. Nao participava de ativi- dades beneficentes ligadas 4 comunidade, Nao demonstrava in- teresse em temas religiosos, nunca citou uma passagem biblica, ‘nunca rezou oui disse que acreditava ou nao em deus, ¢ em quase quarenta anos eu nfo ouvi ele mencionar essa palavra, ¢ quando © rabino fez 0 discurso no enterro exaltando-o como homem que vivia seu judaismo todos os dias eu nao consegui lembrar de uma ‘inica passagem da vida dele que justificasse o rotulo. 13. Depois que meu pai morreu, minha mae ficou um pouco sozi- nha. O luto veio na esteira de um periodo igualmente ruim, em que ela perdeu a melhor amiga, Minha irma tem um filhote de labrador, a vida dele € babar e quebrar o apartament e roubar comida ¢ latir de noite, € a minha mae passou a gostar de cui- dar dele, ¢ de ir com ele a uma praga onde hi outros cachorros com donos e adestradores. Minha mie gosta de falar do meu pai, para ela ndo é algo mérbido, pelo contrario, ¢ eu gosto também porque as lembrangas dela volta ¢ meia incluem algo que eu nfo sabia ou tinha esquecido: a vez em que cle ganhou um prémio do Conselho de Engenharia, em que resolveu fazer churrasco e acendeu o fogo com um secador elétrico, em que montou um teatrinho de massa de modelar por causa dos meus sonhos com a ariranha. "7 MICHEL LaUB 14. Em 1977 um sargento salvou uma crianga no zoologico de Bra~ silia, Ela caiu na jaula das ariranhas, e 0 sargento pulou ¢ foi atacado, ¢ as mordidas causaram uma infecgio que acabou ma- tando-o no hospital. O caso foi comentado por dias na TV, € ‘uma noite meu pai me chamou e na cama dele tinha uma toalha imitando uma cortina e atrés dela varios bonecos. Ele tinha fei- to um por um, e a historia comecava com a ariranha, como ela tinha filhotes ¢ nadava de costas quando estava comendo peixe. ‘Meu pai fez aquilo por varias noites, ele explicava que a arira~ nha s6 era feroz quando se sentia ameacada, e era impossivel encontrar um bicho cesses em Porto Alegre, ¢ antes de dormir eu assistia a0 espeticulo e segundo minha mie eu nunca mais acordei gritando. 15. Meu pai me ensinow a dirigir, nadar, usar solda, montar uma caixa de luz que dava para quatro limpadas a trés metros de distancia, € com isso montamos um trem fantasma na garagem de casa. Foi ele que me levou para tomar vacina triplice. Foi com ele que andei de avido a primeira vez. Foi ele que abriu uma conta no banco para mim, € me ensinou as primeiras palavras de ingles, ¢ trouxe as revistinhas de faroeste que me ajudaram a pegar gosto pela Jeitura e mais tarde virar escritor. 16. Quando eu tinha trinta e um anos, meu pai ligou numa sexta- feira para informar que um colega meu de faculdade, recém- -empossado como promotor de justiga em Santa Rosa, interior do Rio Grande do Sul, tinha levado seis tiros de um policial bébado. ‘Durante muitos anos esse colega esteve entre meus dois ou tres ‘melhores amigos. Na temporada que passei em Londres, morei na pensio onde ele havia morado. Ele tinha feito exército como eu, pensou em ser diplomata como eu, lia os mesmos livros ¢ durante 8 ANIMALS todo 0 curso falamos sobre largar o direito e tentar outra profissao, Chegamos a ser sécios num escritério de advocacia antes que eu ‘me tornasse jornalista ¢ viesse para Sdo Paulo. O assassinato saiu nos jornais e teve repercuss4o por semanas. Uma rua de Porto Alegre ganhou o nome dete, que também era Marcelo. © enterro foi no fim da tarde de sexta, nfo fui porque tinha algo importante no trabalho, ou porque no daria tempo de pegar 0 avido, ou pelos dois motives ou por nenhum deles, mas meu pai se ofereceu € foi em meu lugar, 7. Um ano depois da morte do men pai, estive em Porto Alegre para a inaugurago do tamulo, Estavam lé primos que moram em Flo- riandpolis, em Vitoria, na Franca ¢ em Israel. A ceriménia foi num domingo de manha, estava frio, removeram um pano preto sobre a lipide e algumas pedras foram colocadas, ¢ depois fornos a uma churrascaria ¢ varios primos ja tém filhos e nao houve uma pessoa & mesa que nao perguntasse se vou ter também, Eu sempre fico reparando nesses encontros, 0 modo como as pessoas lidam com os filhos, minha prima dando comida na boca de uma crianga de oito meses, meu primo brincando de chutar pedrinha. © mais proximo que cheguei de ser pai foi na época em que fui casado. Mas o casamento acabou, € nunca mais pensei a respeito, ¢ hoje no consigo responder a perguntas como as da churrascaria a no set com um comentirio simpatica e vazio. 18. © primeiro gato que tive foi atropelado. © segundo foi levado na separaco, No dia em que minha ex-mulher saiu de casa fui a um bar da Roosevelt, depois a um bar da Augusta, depois atravessei a rua e entrei num clube onde estava acontecendo um show; de- pois num outro clube onde estava acontecendo um segundo show, depois num ultimo bar onde ha uma jukebox e se toma café da ‘manhi com Nescau e conhaque, ¢ nas noites dos trés anos seguin- 9 MICHEL, tes minha vida foi basicamente assim. Eu perdi um emprego por causa disso. Eu comecei varios relacionamentos e nenhum dew certo por causa disso, Eu nunca mais falei com minha ex-mulher, nem com nenhuma das namoradas que tive, nem com a maioria dos colegas de colégio, de faculdade, de trabalho, os amigos que fiz ao longo de quarenta anos e que eu no sei mais onde moram, ‘© que fazem, se esto vivos, 19. retrato no timulo do meu pai ¢ de quando ele tinha uns ses senta, 0 sorriso € bastante tipico dele, mas quando estou sozinho ¢ tento lembrar nfo é uma pose especifica que me vem a cabega, nem a voz dele, porque as pessoas mudam de voz com a idade nos tiltimos doze anos da vida dele tivemos muito mais conversas por telefone do que ao vivo. Nos romances que escrevi retratei ‘meu pai de varias formas: como judeu marcado pela meméria de guerra, como personagem secundario na histéria do acidente com a rede, como homem que da a pior noticia da vida do filho antes de um jogo de futebol. Tudo verdade e tudo mentira, como sempre na ficgdo, ¢ j pensei muito no porqué de ter sempre es crito sobre ele, € se quando ficar velho vou confundir a meméria dele com a meméria registrada nesses livros: os fatos que esco- Ihi contar ou nfo, os sentimentos que cu tinha ou nao, quem foi meu pai de verdade e 0 que eu me tornei ou no por causa disso, ou apesar disso, ou independentemente disso, a histéria que por varias razGes comega no espetaculo de balé depois da morte de Champion, ° 20. ‘Meu pai estava na poltrona ao lado da minha. A plateia estava ccheia, ¢ de repente ficou tudo escuro, e pouco depois acendeu um canhio de luz, apenas a minha irmi no palco e a coreografia era Chapeuzinho Vermelho. ANIMAIS a. ‘Minha irma ficou sabendo sobre Champion em casa. © dober- mann arrancou metade do focinho, e a empregada viu 0 corpo ‘como que pendurado, o oss0 do maxilar aparecendo. Os primei- ros socorros a um cachorro sao iguais aos aplicados a uma pessoa, vocé o segura na posicdo horizontal, cuida para nio haver obs- trugto da boca e pressiona a ferida para no formar um codgu- Jo, Champion estava quieto quando foi posto no carro, enrolado ‘numa toalha de sangue, e na clinica o veterinério mediu o pulso € ‘a temperatura das patas, ¢ olhow a cor das gengivas, e entio disse a0 meu pai que nio havia jeito e que o melhor era dar a injecdo etal 2, ‘Meu pai foi a casa do coreano quando voltou da clinica. Ninguém da nossa familia tinha ido li. A sala era grande, e nos fundos ha- via uma piscina ¢ uma quadra de basquete. O coreano ja sabia do acontecido ¢ disse ao meu pai que a culpa era da empregada. A empregada é que soltou a coleira. Ninguém mandou deixar 0 cachorro chegar perto da cerca, ninguém mandou voces no cui- darem dete, ¢ um dia meu pai estava ao telefone e eu parei atnis da porta € ele estava contando a historia toda, com todos os detalhes, antes, durante e depois do ataque do dobermann, ¢ entdo ele co- mecou a dizer merda, que merda que foi isto. Foi a tnica vez em que ouvi ele tremendo a voz. No final era quase um sussurro. E nunca ais ele comentou 0 epis6dio, e de Champion eu guardo apenas flashes, 0 prato onde ele comia rao, a cobra de plistico que ele passava 0 dia mordendo, o pelo escurecido depois do banho, uma noite de futebol em que ficamos junto a ele, eu € 0 meu pai, até parar o barulho dos rojées. 2. ‘Um cachorro morre de varias maneiras. Ele pode contrair raiva, cinomose, parvovirose. Pode ter hepatite e cancer. Pode tomar MICHEL LaUB uum tiro ou se intoxicar com uma planta, Ou entio voce pode pegar uma garrafa de vidro, enrolar no jornal, um dia amido na garagem, a casa toda em silencio, e pisar em cima do jornal varias vezes até os cacos ficarem bem pequenos. Alguns, quase invisi veis. Ai vocé pega um por um desses cacos, espeta num pedago de carne crua, dos trés lados e sobre toda a superficie, de forma que 0 pedago fique pesado e com a textura de areia. Ai voce sobe as escadas, atravessa a sala, abre a porta, atravessa o jardim, chega perto da cerca vizinha, o mais proximo que consegue por causa dos arbustos, 0 prato preferido de qualquer cachorro em qual- quer lugar ¢ qualquer época, ¢ joga a encomenda para 0 outro lado, 24. ‘Minha irma chorou a noite toda por causa de Champion. Meu pai foi ao quarto dela varias vezes, eu ouvia os passos dele como ‘que arrastando as pernas ¢ lembrava de nossa conversa a tarde, ele pedindo que eu fosse forte, nds tinhamos de poupar a minha irma, eu ja era grande ¢ era o irmao mais velho e € isso 0 que um irmfo mais velho faz. Nao adianta ficar com raiva, ele disse. A raiva 6 o pior sentimento que alguém pode guardar. Alguém com raiva nunca vai ser dono da propria vida, o meu pai falou, mas no teatro surgiu um lobo € a minha irma fez. 08 gestos que simulavam a8 perguntas sobre as orelhas, por que os olhos to grandes, © a boca enorme, e durante essa e as demais cenas do espeticulo 6 © que me vinha a cabeca era o coreano, A casa do coreano, As poucas vezes que vi o coreano na porta, saindo de terno para 0 trabalho, e o que eu faria da proxima vez. que o visse. E 0 que ele faria quando me visse. E se eu faria questo de olhar bem nos olhos dele sabendo que eu sabia que ele sabia. E nunca mais, nem na morte de Victor, nem na de Marcelo, nem na do outro Marce~ lo, nem mesmo na do meu pai e na ceriménia de inauguragio do ‘timulo, até porque eu no chorei em nenhum desses eventos, uma ligrima que fosse, uma vida inteira sem derramar uma lagrima, ANIMAIS ‘nunca mais foi como aquela noite no balé: quarts fila, meu pai na ‘meia-luz, ¢ eu olhei para ele e como que fixei a imagem do perfil dele, o nariz, 0 queixo, os olhos e a expresso, a imagem mais niti- da que guardo do meu pai, ew tio proximo de tomar uma decisio ‘enquanto ele esperava pela resposta do lobo. = 23

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