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PERIGOSAS

Arlene Diniz

ACHERON - NACIONAIS - APOLLYMI


PERIGOSAS

Copyright © Arlene Diniz, 2017

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida
por qualquer forma ou meio eletrônico sem a permissão da autora e/ou
editora.

Editora: Upbooks

Edição: Carla Montebeler

Capa: Michel Ramalho

Editoração Eletrônica: Denis Lenzi

Revisão: Thaís Santos e Angélica Pina

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Agradecimentos

Ao grande Autor, que é o motivo de tudo.


Aos meus pais, Adelson e Marli, pelo amor e apoio desde a infância.
Ao meu esposo Hugo, por sonhar até mais do que eu com esse projeto.
E a todos que direta ou indiretamente me inspiraram e incentivaram ao longo
da vida para que chegasse até aqui. Meu muito obrigada.

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Capítulo 1 — A Indesejada Viagem

O celular apitou, era uma mensagem do Cauê:

— Te amo, minha linda! Já estou com saudades.

— Ohhh, que lindo! Eu também te amo e estou morreeeendo de


saudades, fofo! — Respondi, com toda intensidade amorosa que uma menina
de quinze anos pode ter.

Ainda bem que o Cauê me mandou uma mensagem, pelo menos eu


pude ter um motivo para sorrir em meio a tanto desgosto naquela viagem.
Com o cenho franzido e a cara emburrada propositalmente desde quando
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saímos de casa, sinalizava aos meus pais que eu estava ali por livre e
espontânea pressão e não fazia questão nenhuma de esconder isso. Mas,
ignorando totalmente a minha presença, eles nem pareciam se importar com a
expressão de raiva estampada em meu rosto. Trocando entusiasmadas
palavras com mamãe, meu pai, um homem de mais ou menos um metro e
setenta de altura, cabelo castanho-escuro bem aparado e dono de um
expressivo par de olhos verdes, decidiu colocar um CD de músicas antigas —
daquelas que a voz do cantor é trêmula do início ao fim da canção — para
tocar na maior altura no som do carro.
Para piorar a situação sonora do ambiente, vários barulhos irritantes
saíam do tablet do Guto, meu irmão de cinco anos, que estava sentado no
banco de trás junto comigo. Coloquei o fone de ouvido com força e juntei as
sobrancelhas um pouco mais. Ninguém parecia estar se importando com a
minha opinião sobre aquela viagem e isso deixava o desgostoso trajeto até a
cidade de Gruta Alta ser ainda pior.
Ah! Eu tinha planos tão melhores para as minhas férias de janeiro. Há
meses eu programava junto com minhas duas melhores amigas, Beca e Luca,
passeios a shoppings, idas ao cinema, encontros com os “gatinhos”, festas do
pijama regadas a muito brigadeiro, presença registrada nas piscinas do clube
e, é claro, pegar um belo bronzeado nas praias cariocas. Mas meus planos
foram por água abaixo quando minha mãe veio não com a proposta, mas sim
com a informação de onde passaríamos nossas férias: na casa da prima
Zuleide, numa cidadezinha de interior que cheirava a esterco chamada Gruta
Alta. E todo adolescente sabe que quando a mãe vem com essas notícias de
última hora… Quem somos nós para retrucar! Mesmo assim eu não consegui
ficar calada e retruquei, contestei, chorei, esperneei... Mas nada foi suficiente
para fazê-la mudar de ideia, então, para que ela não achasse que me dei por
vencida, estava determinada a passar as férias inteiras trancada no quarto com
a cara fechada e semblante nem um pouco agradável.
Enquanto a viagem seguia, com o coração aborrecido eu observava
aqueles imensos campos, com uma árvore aqui, outra ali e algumas vaquinhas
pastando de vez em quando e não podia imaginar o que Deus estava
preparando para aquela nada sonhada viagem, mas que se tornariam as férias
que marcariam minha vida para sempre — até a eternidade.

***

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— Chegamos!!! — O grito estridente acompanhado das batidinhas de


palma da minha mãe despertou-me do sono e me trouxe de volta à realidade.
O cheiro de cidadezinha interiorana já invadia o carro e, ao olhar pela janela,
pude perceber que Gruta Alta já não era tão retrógrada como da última vez
em que estive na cidade. Avistei uma série de comércios de diferentes tipos,
dentre eles um supermercado de grande porte e até uma academia de
ginástica! Será que já havia internet?
Minha mãe saltou do carro numa alegria esfuziante e foi correndo
abraçar a prima Zuleide, que nos esperava em frente ao portão de madeira,
agora pintado de branco. As duas permaneceram um bom tempo abraçadas,
trocando palavras de carinho. Zuleide, além de ser prima de primeiro grau de
minha mãe, é sua melhor amiga desde a infância. Seu cabelo loiro
encaracolado descia-lhe até um pouco abaixo do colo e estava mais curto e
cheio de quando a vira pela última vez. Ela sempre tivera um sorriso largo e
sincero e seu corpo nunca parecia mudar: era daquele jeitinho — nem magra
nem gorda — desde que me entendo por gente. Não sabia bem sua idade, mas
era certo que já passara dos trinta e cinco. Zuleide fora dama no aniversário
de quinze anos de minha mãe e também madrinha de casamento, além de
estar presente quando eu e Guto nascemos. Quando mamãe se casou, deixou
seu estado original, o Espírito Santo, e mudou-se com meu pai para o Rio de
Janeiro, onde moramos até hoje. Alguns anos depois, Zuleide, ainda sem se
casar, deixou a capital capixaba e decidiu pela vida pacata do interior do
estado. Ao que parecia, até aquele momento Zuleide ainda não havia
encontrado o amor de sua vida.
Tentei retardar um pouco a minha saída do carro, mas mamãe virou-
se, fazendo seu curto cabelo marrom balançar e cravou os dois enormes olhos
castanhos em mim. Ela me deu uma olhada que se viesse com legenda,
certamente seria “Ai de você, se ficar aí só mais um minuto!”. Desci depressa
e um tanto desatenta...
Ploft!
— Argh! Que nojo! Pisei no cocô do cavalo! — E lá se foi o meu All
Star branco. E também a paciência da Dona Gláucia, minha mãe. Fui salva de
uma bronca pela prima Zuleide, que com toda atenção me levou até a área de
serviço para limpar aquela sujeirada toda. Só pela chegada triunfal já podia
imaginar que todas as minhas expectativas seriam atendidas: aqueles dias
seriam um desastre total. Depois de jogar uma boa dose de água com sabão
no tênis e esfregá-lo, deixei-o secando próximo ao tanque e entrei na casa,
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onde minha família já se encontrava instalada. Mamãe e Zuleide estavam na


cozinha papeando sem parar, mexendo as mãos freneticamente e fazendo
várias expressões exageradas cada vez que uma escutava alguma frase da
outra. Pareciam eu e minhas amigas quando nos encontrávamos e não duas
mulheres adultas. Achei graça daquela animação toda, apesar de ver a mesma
cena quase todas as vezes que as duas se encontravam. O que não acontecia
sempre, por conta da distância. Lembrei-me de que a última vez em que
estivera naquela casa fora quatro anos antes. Algumas coisas na decoração
mudaram, mas o jeitinho todo organizado e cheio de frufrus continuava
intacto. Perguntei a mim mesma se Zuleide não se sentia sozinha morando
naquela casa de cômodos grandes e três espaçosos quartos.
Mamãe desviou a atenção de sua best friend e fitou os olhos em mim.
Fechei a cara novamente e passei para a sala, onde encontrei meu pai e Guto
assistindo a um jogo de futebol — uma cena corriqueira, independente do
lugar onde estivéssemos. Observando os dois sentados um ao lado do outro,
não tinha como negar: Guto era uma verdadeira xerox mirim do papai.
Branquinho, cabelo escuro cortado baixinho e chamativos olhos verdes. Pelo
menos ele conseguiu nascer com olhos claros, algo que eu, muito
lamentavelmente, não tive a mesma sorte. Passei por eles rapidamente, antes
que meu pai tentasse ter mais alguma conversa para me convencer a curtir os
dias em Gruta Alta, aproveitar o que uma cidade do interior poderia me
oferecer e blábláblá.
Tranquei-me no amplo quarto de paredes brancas, mobiliado por uma
cama de solteiro encostada à parede, um estreito guarda-roupa, cômoda com
espelho suspenso sobre ela e uma televisão antiga presa por um suporte na
parede. Um espaço exclusivo para mim era tudo que eu precisava. Meus pais
e Guto ficaram hospedados no quarto ao lado. Liguei a televisão e tive uma
surpresa: a TV por assinatura chegara naquele fim de mundo! Yes! Agora já
tinha pelo menos uma coisa para fazer.
— Betina, vem lanchar!
— Tô sem fome. — Respondi.
— A Zuleide fez suco de groselha e bolo de milho, está uma delícia.
— Gritou minha mãe outra vez.
— Não gosto de suco de groselha.
A porta do quarto se abriu e mamãe, com uma cara nada amigável,
disse entredentes:
— Betina, não me faça brigar com você logo em nosso primeiro dia
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aqui em Gruta Alta. Vá para a cozinha agora!


Apertei os lábios, franzi a testa e fui pisando duro. Sentei-me à mesa
com os braços cruzados e meus pais se entreolharam, os olhos dele pareciam
dizer a ela que se acalmasse. A Zuleide agia como se nada demais estivesse
acontecendo e continuava tagarelando sem parar, o que colaborou para que o
clima suavizasse um pouco. Permaneci de braços cruzados por um bom
tempo e não comi nada. Em meio àqueles papos chatos de família, os quais
eu não estava nem um pouco interessada em escutar, deixei a mente vaguear
pensando em minhas amigas e no que elas estariam fazendo naquele
momento. De repente meu celular apitou, era uma mensagem da Beca:
— Amigaaaa, você não sabe da maior! A Luca perdeu a virgindade
com o Pedro! Queria te ligar pra contar isso, mas estou sem créditos para
interurbano. Ela deve te dizer em breve, e ó, qualquer coisa você não sabe de
nada!
Meus olhos continuaram indo e voltando em cada palavra da
mensagem de Beca. Minha boca ficou seca e os pensamentos um tanto
confusos. Luca, minha amiga, que cresceu comigo... Tinha ido pra cama com
um garoto? E esse garoto era o Pedro, que nem era namorado dela? Eu sei
que nenhuma de nós era santa e já havíamos aprontado poucas e boas, mas
ela não podia ter esperado pelo menos eles começarem a namorar? Ah, mas
que diferença faria, os dois já se tratavam como namorados mesmo e…
— Não é mesmo, Betina? — Perguntou minha mãe, fitando-me
diretamente nos olhos. Ainda havia vestígios de raiva em seu rosto. Durante
um rápido segundo consegui recobrar os pensamentos de onde eu estava
antes da mensagem da Beca.
— Ah... Sim... O que é mesmo, mãe?
— Estou falando com a Zuleide em como a nossa igreja está uma
bênção! As mensagens do pastor têm sido muito edificantes e tem entrado
muitos jovens na igreja… — O rosto de minha mãe deixou de lado toda
sombra de ira e iluminou-se ao falar sobre a igreja. Os fios lisos cor de
chocolate à altura do ombro emolduravam seu rosto magro e combinavam
com o castanho dos enormes olhos. Gláucia era uma mulher muito bonita,
apesar de bastante geniosa, especialmente comigo, a então filha-adolescente-
que-não-faz-nada-da-vida-a-não-ser-malcriação-e-não-desgrudar-as-fuças-da-
internet.
Meneei a cabeça concordando com tudo que ela dizia. Não tinha
muito o que falar, eu não sabia bulhufas das mensagens do pastor, sempre
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ficava no Facebook na hora do culto. Principalmente agora que tem como ter
a bíblia no celular, em forma de aplicativo. É uma boa desculpa para deixar o
celular ligado e fingir que está acompanhando os textos da pregação e, na
verdade, dar uma olhada nas redes sociais.
— Aqui em Gruta Alta os jovens da igreja também estão a todo
vapor! Eles têm buscado muito a Deus e com isso vários outros também estão
encontrando o Caminho do Senhor. A Clarissa e a Fernanda estão nesse
meio. Você se lembra delas, Betina? — Indagou Zuleide, olhando para mim.
Ah, como não lembrar?! Minhas duas primas roceiras e bregas até o
último fio de cabelo? Impossível esquecê-las.
— Lembro sim. — Respondi, forçando um meio sorriso.
— Elas devem vir aqui em casa por esses dias. Eu avisei que você
vinha e elas estão muito animadas pra te mostrar as novidades da cidade e
também a igreja. — Disse Zuleide, dando mais um de seus autênticos e largos
sorrisos. Não consegui reter a expressão de hostilidade que surgiu em meu
rosto. Fala sério, as duas primas caipiras queriam me levar para ver aquela
roça mais de perto? Conta outra! Olhar para o teto do quarto talvez fosse um
programa mais interessante.
Mais tarde, porém, pensando melhor no assunto, presumi que ir à
igreja delas talvez não fosse uma ideia tão ruim assim. Já que a Zuleide disse
que muitos jovens estavam começando a frequentá-la, podia ser que eu
encontrasse algum garoto bonitinho nesse meio. E garoto bonito é sempre
bom ver. Paquerar então… Uhhh!

***

Com o cabelo dividido ao meio, separei-o em duas partes e coloquei


uma de cada lado do colo. Passava a escova por entre os fios, observando o
quanto haviam crescido nos últimos meses. Não tinha muito tempo que havia
cortado abaixo do ombro e o comprimento já passava da altura do busto. Sua
tonalidade de castanho nem muito escuro e nem muito claro me
acompanhava desde criança. Cheguei bem próximo ao espelho e percebi que
um trio de espinhas começara a surgir em minha testa. “Que saco!”,
resmunguei sem me preocupar com a altura da voz. Dei uma analisada geral
no rosto a fim de encontrar outros possíveis focos de cravos e espinhas e
soltei um grunhido. Não gostei do que vi. Estava pálida como uma folha de
papel, olheiras arroxeadas e lábios sem cor. Passei a língua e os dentes pela
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boca para trazer um pouco de cor a ela e esbugalhei o par de olhos castanho-
escuros herdados da dona Gláucia. Passei a dar leves tapinhas nas bochechas,
mas de repente parei. Por que estava tentando melhorar minha imagem? Eu
não ia fazer nada além de ficar trancada no quarto mesmo, todos aqueles dias
— ou pelo menos na maioria deles.
Juntei meu cabelo em um coque e tentei conectar a internet do celular
pela centésima vez naquele dia. O relógio marcava vinte e uma horas e desde
que chegamos à cidade, no meio da tarde, as tentativas não pararam. Imaginar
que talvez Luca, para me contar a grande novidade, ou Cauê, para me falar
palavras bonitinhas, tivessem me enviado mensagem via Whatsapp e eu não
estava conseguindo visualizá-las, me dava nos nervos. Naquele mesmo
instante, o celular tocou e eu quase saltei da cama. Era Luca.
— Oiiiii, BFF! — Cumprimentou-me alegremente.
— Amiga! Que saudade! — Respondi como se eu não tivesse visto-a
no dia anterior.
— Também estou cheia de saudade. Te liguei porque preciso contar
uma coisa.
— Pode falar, Luca! — Disse, já imaginando o motivo da ligação.
Silêncio.
— Perdi minha virgindade. Com o Pedro. — Revelou, um pouco
cautelosa.
— Uau, amiga, e como foi? — Perguntei descontraidamente.
— Legal.
— Só legal?
— Aham. Amiga, sabe o que é...
Ihhh…
— É que eu não…
Ai, já imaginava o que ela ia falar…
— Nós não…
— Vocês não se protegeram, é isso? — Perguntei de supetão.
Outro silêncio.
— É.
— Luca, você é doida?! Como não se protegeram? Você só tem
quinze anos e se ficar gráv...
— Não fala isso, Betina! Eu já estou com a consciência pesada
demais! — Chiou ressentida.
— Está bem, está bem. Me desculpe.
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— Sem problemas. Acho que minha mãe está desconfiada, ela disse
que o líder de adolescentes lá da igreja vai vir aqui em casa amanhã, “tomar
um cafezinho”.
— Ih, amiga, qualquer coisa nega até à morte. — Soltei uma risada.
— Vou fazer isso. Mas... Preciso te contar outra coisa.
— Pois me diga.
— Eu não perdi minha virgindade agora. Foi mês passado.
— E por que só está me contando agora?! — Quase gritei. — Eu te
vejo praticamente todos os dias e você escolhe me contar quando estou a 500
quilômetros de distância?!
— Desculpe, amiga. — Falou baixinho. — Não tinha contado pra
ninguém por medo dos meus pais descobrirem, mas não aguentei mais
guardar segredo.
Respirei fundo.
— Apesar de estar me sentindo traída, tudo bem, eu te entendo. Mas
que isso não aconteça de novo, hein? Somos ou não somos Best Friends
Forever?!
— Com certeza somos, obrigada por entender. Amo você! Agora
preciso desligar. Tchau, te ligo de novo.
— Também te amo, beijos!
Deitada na cama, enquanto o sono não vinha, fiquei pensando na
Luca e em toda a situação com o Pedro. Será que, daquele momento em
diante, eles assumiriam o namoro? E se a mãe dela realmente tiver
descoberto? Ela estará em maus lençóis!
— Como eu queria estar junto dela nesse momento. Droga de
viagem! — Rosnei, ajeitando o travesseiro de forma grosseira e logo depois
adormeci, ainda bastante contrariada.

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Capítulo 2 — Clarissa e Fernanda: Uma Esquisita Diferença

A luz do sol, que penetrava o quarto onde eu dormia pelas frestas da


janela, anunciava que o dia já havia começado, trazendo consigo o calor
típico das manhãs de verão. Espalhei-me um pouco mais sobre a cama e
espreguicei, mas sem coragem para levantar. De qualquer forma, a hora que
eu levantasse não teria importância, não sairia de casa naquele dia mesmo.
Ou pelo menos acreditava que não ia sair. Virei-me de lado e agarrei o
travesseiro, numa tentativa de voltar ao sono, mas abri os olhos
instintivamente ao ouvir um alto e estridente som de vozes femininas.
— Primaaaa! Boooom dia!
Olhei de soslaio para as duas garotas, que se achavam de pé junto à
cama. Clarissa e Fernanda invadiram meu quarto! Eu, não sei se mais
assustada ou irritada, só consegui responder com um “Bom dia” seco e sem
sal.
— Desculpe-nos chegar com esse barulho todo logo cedo, mas é que
estávamos muito ansiosas para ver você! — Fernanda entrelaçou os dedos e
encostou-os no queixo. Um ar expectante preenchia seus olhos.
Oh, que fofas! Só que não. Eu não suporto ser acordada! Está certo
que eu não estava mais dormindo quando elas entraram, mas se tratando de
quem eram, a chateação veio da mesma forma.
— Como foi de viagem? — Clarissa perguntou.
— Entediante.
— Por quê?
— Porque sim, ué. — Respondi, tão singela como uma porta maciça
de dois metros de altura. Um silêncio bem chato se instaurou entre nós.
Fiquei um pouco constrangida de ter falado daquela maneira e tentei
consertar as coisas puxando outro assunto.
— A Zuleide disse que vocês me levariam para conhecer a igreja que
frequentam. Lá é legal, né?
— Lá é show de bola! Bênção pura! Hoje vamos ter um culto de
jovens, você quer ir? – Fernanda abriu um enorme sorriso, ainda com
expressão de expectativa, ignorando totalmente minha recepção mal-
humorada.
— Claro! — Respondi levantando um pouco os lábios em um sorriso
amarelo.
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Trocamos mais algumas palavras e, durante o curtíssimo papo,


percebi a notável diferença física das duas. Da última vez em que estivera em
Gruta Alta, estava perto de completar onze anos e, se não estava enganada,
Fernanda tinha doze e Clarissa treze. A diferença de idade entre nós era como
uma escadinha, tendo Clarissa no fim dela e eu no início. Fernanda, que à
época usava um cabelo loiro escuro mirrado e era tão magra que os ossos de
suas costelas chegavam a aparecer, tinha dado uma “encorpada” nos lugares
certos, apesar de continuar bem magrinha, e seu cabelo estava com uma
tonalidade bem escura — quase preto —, com os fios escorridos chegando a
um comprimento mediano. Clarissa continuava com o cabelo ondulado
passando pouco dos ombros, mas agora tinha uma franja de lado e estava
bem mais bonito do que quatro anos antes. A garota tinha traços delicados e
rosto fino, além dos braços roliços e grossas pernas.
Elas saíram do quarto e eu imediatamente comecei a pensar na roupa
que iria ao culto de jovens logo mais à noite. Tinha que me apresentar bem
bonita para os caipiras! Abri a imensa mala cor-de-rosa e passei a tirar
algumas peças lá de dentro. Logo avistei um cropped cor marfim e procurei
entre os jeans uma calça strech cintura alta. Coloquei as duas peças uma ao
lado da outra e passei a analisá-las. Formavam uma combinação perfeita.
Ocorreu-me que minha mãe detestava quando eu usava aquele tipo de roupa,
pois dizia que vestimentas marcando perfeitamente a silhueta do corpo me
deixavam muito sensual, e eu era “apenas uma menina”. Não conseguia
entender aquele pensamento. Eu já tinha 15 anos! O que é bonito não é para
se mostrar?!
Olhei mais uma vez para a combinação em cima da cama. Depois que
estivesse com ela no corpo, mamãe não poderia mandar tirá-la. Estava
decidido, aquele seria o look da minha primeira saída em Gruta Alta.

***

Toda a família estava em volta da mesa, almoçando feliz da vida.


Inclusive Clarissa e Fernanda. Só eu parecia não estar curtindo comer galinha
caipira ao som de tantos “causos” e gargalhadas. Minha mãe e Zuleide
estavam adorando contar histórias que viveram ao lado das mães de Clarissa
e Fernanda, que também eram suas primas de primeiro grau.
— Ah, seria ótimo se as três ficassem mais próximas. É tão bom ter
primas-amigas! — Mamãe falou, apontando para mim e as meninas. Minha
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vontade foi responder que elas por pouco não poderiam ser consideradas
primas, já que eram parentes de terceiro grau, e que mamãe podia esperar
sentada o dia que me tornaria amiga de duas jecas que sequer deviam saber o
que significava Youtube ou Twitter.
— Pode deixar, Gláucia! — Clarissa replicou e lançou um olhar
confidente para mim e Fernanda. Virei o rosto para o outro lado arqueando
levemente as sobrancelhas e formei um biquinho com os lábios, deixando
claro meu desgosto. Durante todo o almoço as duas procuravam puxar
assunto comigo, mas eu não dava muita atenção. As lembranças da última
vez em que estivemos juntas estavam frescas em minha memória. Sempre
doces, solícitas e engraçadas, ganhavam a atenção de todos os familiares,
enquanto eu acabava sendo apagada pelo “brilho” delas. Não entrava em
minha cabeça como duas garotas que falavam “galfo” e “bassoura”, em vez
de garfo e vassoura, podiam ser tão aclamadas.
“Só vou ao culto de jovens com elas pra ver se vejo alguém bonito
nessa cidade, mas amizade com essas bregas? Nunca!”, pensei, soltando um
suspiro abafado.
— Você está tão bonita, Betina! — Clarissa disse docemente,
pegando-me de surpresa.
“Hum, invejosa!”, pensei, mas respondi um obrigada, é claro.
— Betina, nós queremos te mostrar um lugar!
— Que lugar, Fernanda? — Perguntei desconfiada. Não estava muito
a fim de dar passeios com as duas rua afora, não.
— Você vai ver.
Elas me puxaram pelo braço e avisaram aos adultos que estávamos
indo passear. Minha mãe abriu um sorriso de orelha a orelha, o que ela mais
temia é que eu realmente ficasse trancada no quarto o dia inteiro, todos os
dias dessas férias. Esse era o meu desejo, mas…
Com os braços cruzados, andava pelas ruas de Gruta Alta ainda um
tanto contrariada. Além de praticamente ter sido raptada para aquele
“passeio”, nem tive tempo para escovar os dentes. Será que estava com
alguma casca de feijão?!
Enquanto caminhávamos pela rua, todos pareciam olhar para nós.
Fiquei encucada.
— Não leve a mal prima, mas aqui é assim mesmo, é só chegar
alguém diferente que chama a atenção de todos. — Clarissa comentou,
percebendo minha inquietação. Apenas assenti com a cabeça. Notei que elas
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cumprimentavam quase todos que passavam, e com um sorriso enorme,


especialmente com as pessoas mais velhas. Achei aquilo estranho, porque na
cidade que eu moro ninguém da nossa idade fala, e ainda mais tão
atenciosamente, com pessoas idosas. Elas também ficavam cantando músicas
cristãs a todo o momento. Algumas eu até conhecia, porque tocavam em
minha igreja.
— Que tipo de música você gosta? — Fernanda me perguntou,
pegando o celular do bolso e checando, ao que parecia, seu aplicativo de
músicas.
— Ah, escuto bastante coisa, mas do que eu realmente gosto é do
estilo folk. — Respondi com uma pitada de orgulho nas palavras.
— Então acho que você vai gostar de algumas músicas que eu tenho.
Posso te passar por Bluetooth? Os dados móveis de internet não estão
pegando sinal por aqui nos últimos dias.
Resmunguei um “percebi”, ainda surpresa por ela não ter me
perguntado “Fol... o quê?!”, que era normalmente a reação das pessoas
quando lhes falava sobre minha preferência musical. E o que me deixou mais
admirada ainda foi perceber que Fernanda ouvia aquele tipo de música.
Enquanto ela me passava as canções, nós três nos envolvemos em um
papo que começou frio, mas que depois se animou, à medida que
comentávamos sobre nossas músicas e cantores preferidos. Empolgada com a
conversa, acabei nem prestando muita atenção no caminho que estávamos
fazendo, mas ao que percebi, quanto mais andávamos, mais nos
distanciávamos das ruas movimentadas, o “centro da cidade”.
— Que lugar é esse que vocês estão me levando, hein? — Perguntei.
— Já estamos chegando!
Não demorou nem dois minutos e viramos uma esquina, dando de
cara com um portão de ferro, bem velho por sinal. Fernanda disse para
Clarissa ir primeiro, que depois me ajudava a entrar. Pela expressão em meu
rosto, era como se um ponto de interrogação tivesse se formado sobre a
minha cabeça. Nós íamos invadir uma propriedade, era isso? Que divertido!
Clarissa entrou por uma abertura ao lado do portão, logo depois
Fernanda também entrou, me puxando pela mão. Tivemos que nos abaixar,
pois havia um fio de arame um pouco acima do meio da abertura.
— Ai, minha cabeça! — Enquanto eu resmungava por ter encostado
minha cabeça no fio de arame e apertava a mão direita sobre a área dolorida,
levantei os olhos e fiquei embasbacada. Aquele portão era uma espécie de
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guarda-roupa semelhante ao das Crônicas de Nárnia, que me tirou de uma


realidade e me colocou num mundo totalmente diferente? A visão que eu
estava tendo naquele momento não tinha exatamente nada a ver com a cidade
em volta daqueles muros.
Enquanto descíamos o extenso declive gramado, que terminava em
um imenso lago de águas claras, cercado por muitas flores, de inúmeras cores
e tipos — compondo um cenário de fazer qualquer queixo cair —,
perguntava-me de onde havia saído aquela exuberância toda. Estávamos em
silêncio, mas a minha curiosidade quase mórbida não ia me deixar ficar
quieta:
— A gente invadiu um lugar?! Caraca, isso parece coisa de filme!
As duas se entreolharam e riram-se.
— Esse lugar é do meu avô, Betina. — Disse Clarissa rindo. — Mas
essa história de coisa de filme foi bem legal, viu?!
— Ah, vocês também não me contaram nada! — Emburrei. —
Primeiro, me arrastaram abruptamente da mesa do almoço sem dizer para
onde estavam me levando e, segundo, eu penso que quando vamos visitar
algo que pertence à nossa família entramos pelo portão e não por um buraco
ao lado dele! — Falei na defensiva. Clarissa e Fernanda pareceram
espantadas com a minha reação.
— Queríamos te fazer uma surpresa, não nos leve a mal. Acho que
pela paisagem, dá pra você nos perdoar, não é? — Clarissa perguntou,
erguendo o queixo em direção ao lago.
— Acho que sim. — Sorri e indaguei: — Isso aqui pertence ao tio
Marcus?
Marcus era pai da mãe de Clarissa e tio de minha mãe e da de
Fernanda. Portanto, avô de Clarissa e tio-avô para mim e Fernanda. De riso
fácil e barba grisalha perfeitamente alinhada, ele adorava contar piadas e
comprar doces para a criançada da família.
— Sim. Mas por muito tempo o Campo do Lago, como esse lugar é
chamado, ficou meio que abandonado. Depois que minha avó morreu, o vovô
deixou de cuidar daqui, porque era o lugar que mais o lembrava dela. Deve
ter uns três anos que ele voltou a cuidar e deixar aberto a visitas todos os fins
de semana. O pessoal adora vir pra cá fazer piqueniques.
— Por isso eu não conheci o Campo do Lago antes. Das vezes em
que estive em Gruta Alta o tio Marcus ainda não havia voltado a cuidar dele.
Por que ele decidiu voltar a zelar daqui? — Indaguei interessada na história e,
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enquanto Clarissa falava, nos sentamos em frente ao lindo lago de águas


claras.
— Vovô falou que Deus disse-lhe que assim como esse lugar fora
especial para ele e sua esposa, poderia ser também para os outros.
— Bom, eu já percebi como aqui é lindo e encantador, mas por que
marcou tanto assim a vida dos seus avós? — Questionei, colocando meus
braços para trás e apoiando-os na grama bem aparada.
— Porque foi aqui que eles se casaram. — Fernanda respondeu,
entrando na conversa. — Tem uma placa fincada exatamente onde foi a
cerimônia. Quer ir lá ver?
Acenei que sim e seguimos na direção leste do lago. No caminho,
observei atentamente os detalhes daquele imenso campo com o lago no meio.
Todo o espaço era circundado por altas árvores e havia algumas espalhadas
pelo gramado verde-vivo. As inúmeras flores que estavam em volta do lago
refletiam nele suas expressivas cores e formas, requerendo para si toda nossa
atenção. Chegamos a um cantinho atrás de algumas árvores, que era ladeado
por pinheiros simetricamente plantados em fila e tinha um coreto ao final. A
construção parecia ser bem antiga, mas estava bastante conservada. Em
formato circular, possuía seis colunas segurando o teto alto e marrom em
modelo de cúpula. O guarda-corpo era branquinho e gradeado em forma de
flores e para entrar era preciso subir uma pequena escada com mais ou menos
dez degraus. Ao pé da escada achava-se uma placa entalhada de madeira já
bem desgastada, com os seguintes dizeres:

“União Matrimonial de Marcus Felix e Rita de Cássia


Realizada na presença do Senhor Deus em 19/10/1970
‘O amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se
ufana,
não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura
os seus interesses,
não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a
injustiça, mas regozija-se
com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O
amor jamais acaba.’
1 Coríntios 13. 4- 8ª”

Um sopro de vento passou no momento em que terminava de ler os


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dizeres escritos na placa, bagunçando levemente meu cabelo solto e levando


consigo qualquer palavra que poderia vir a sair da minha boca. As meninas,
que estavam atrás de mim, também emudeceram. Não sei bem porque
aquelas palavras mexeram comigo, talvez porque fosse a descrição mais linda
do que é amor que eu já havia lido.
As duas subiram apressadamente os degraus e Fernanda apoiou-se no
parapeito graciosamente aramado em formato de flores. Subi também e vi
Clarissa dando um giro com os braços abertos dentro do coreto. Ela inspirou
profundamente e com calma soltou o ar.
— Vir aqui me inspira.
Olhei para ela com estranhamento. Parecia ter fumado um baseado.
Fernanda fez uma careta engraçada e deu de ombros, como se já estivesse
acostumada a assistir cenas como aquela.
— Ei, não me olhe assim. Pode ter certeza, não sou biruta, está bem?
— Clarissa disse, sentando-se em um pequeno banco de madeira próximo às
últimas vigas. — Sempre que venho a essa parte do campo fico imaginando o
dia do casamento dos meus avós e então me lembro das vagas memórias que
tenho dos dois juntos. As partes que eu não me lembro, o vovô faz questão de
contar. Os olhos dele brilham ao falar dela até hoje!
Lembrei-me das palavras descritas na placa. Será que tio Marcus e a
tia Rita conseguiram viver o amor da maneira que fora gravado no pedaço de
madeira? Ou foram mais algumas das promessas que muitos noivos fazem no
dia do casamento e não cumprem no decorrer da vida?
— Mas o melhor de tudo não é isso. É que eu sempre me recordo do
dia que meu avô decidiu voltar a cuidar desse lugar e me trouxe junto. A
altura do mato devia passar de um metro e ele foi abrindo caminho com sua
foice, até que chegamos aqui. Ele arrancou algumas raízes que envolviam a
placa e me mostrou. Seu rosto encheu-se de emoção ao dizer que ele e minha
avó haviam escolhido aqueles versículos não só como uma demonstração de
amor entre eles, mas, principalmente, porque era uma declaração do amor que
Deus sentia por eles. E que somente esse amor era capaz de tê-los feito
viverem tantos anos juntos e em alegria. — Clarissa parou por um breve
momento, como que afastando o choro que estava prestes a transbordar. —
Depois desse dia, nunca mais li o capítulo treze da primeira carta aos
Coríntios de forma igual, passei a imaginá-lo como uma declaração do amor
de Deus por mim.
Blemmm! A sirene tocou, tinha um extraterrestre perto de mim! A
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Clarissa lia a bíblia?!


— Sempre que leio esse capítulo também penso assim. E, mais do
que isso, procuro enxergar a bíblia por inteiro como uma declaração do amor
de Deus pela humanidade. — Peraí, a Fernanda disse sempre? — Ele não
precisava ter feito isso, mas sabia que precisávamos de um manual de
instruções para a vida, uma bússola que nos guiaria a entender Sua vontade.
Achei muito estranho observar duas adolescentes conversando com
tanta empolgação sobre a bíblia. Para mim, sempre fora um livro chato e
maçante para ler. Voltei para a escadinha discretamente e desci os degraus.
Dei mais uma olhada para a placa de madeira e fiquei a observar os pinheiros,
que pareciam formar duas paredes a demarcar o local onde estavam o coreto
e, de frente para ele, um espaço significativo de gramado vazio. Ali,
realmente, era um lindo lugar para um casamento ao ar livre. Imaginei como
seria me casar ali, vestida de branco com véu e grinalda, do jeito que eu via
nos programas de TV. Vislumbrei um tapete vermelho estendido no meio do
gramado e bancos enfileirados cheios de pessoas. Fantasiei um homem alto,
com cabelo escuro e o rosto de Ashton Kutcher me esperando na entrada do
coreto. De um lado dele estariam Luca e Pedro como padrinhos e do outro
Beca e algum namorado que tiver na época, já que era difícil ter noção de
quando ela estaria firme com um garoto. Trocava de namorado a todo
instante. Suspirei cheia de sonhos e fui arrancada do “mundo encantado da
mente da Betina” quando as meninas me chamaram.
— Esse lugar é muito lindo, deixa a gente até mais calma! —
Compartilhei quando já estávamos próximas do lago. “E também desperta
muitos sonhos e fantasias...”, omiti o restante do comentário, lembrando da
cena de casamento que havia criado em minha mente minutos atrás.
— É por isso que eu sempre venho pra cá para ler a bíblia!
“Lá vem elas com esse papo de bíblia de novo...”
— Lembra de quando a galera da igreja veio pra cá e a gente orou
junto, no mesmo lugar em que estamos agora? A presença de Deus foi tão
real! — Fernanda falou para Clarissa, com os olhos brilhando.
— E aquela outra vez em que fizemos uma roda de louvor aqui e
ficamos até de madrugada adorando? Foi o máximo! — Complementou
Clarissa, visivelmente animada.
Aquela conversa das duas me deixou desconfortável, mais uma vez.
Puxei outro assunto qualquer e passamos o resto da tarde papeando e rindo à
beça! No tempo em que passamos juntas, cheguei à conclusão de que elas
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não eram tão chatas assim como eu pensava. E que também não falavam
tantas palavras erradas como antes, na verdade, não ouvi nenhuma palavra de
gramática duvidosa. Talvez elas nunca tivessem sido tão desagradáveis e sim
eu, que não aceitava ninguém que fosse diferente de mim e por isso as
criticava. Ademais, lá no fundo eu ainda guardava certo ciúme de infância
por elas sempre serem as mais divertidas, extrovertidas, legais, bacanas,
brincalhonas, obedientes, fofinhas, amadas de todos e eu a sem graça de cara
fechada e bico calado, que não dava papo e sorrisos para ninguém.
Voltamos para casa à tardinha e combinamos delas passarem às sete
horas na casa da prima Zuleide para irmos ao culto de jovens. Enquanto me
arrumava, o celular tocou. Era Cauê me ligando. Atendi com o “oi” mais
entusiasmado e ao mesmo tempo meloso que pude fazer.
— Olá, minha linda, como você está? — Ele perguntou, galante
como sempre.
— Estaria melhor se você estivesse comigo…
— Não vejo a hora de você voltar dessa viagem! Saudade dos seus
beijos!
— Eu também, amor! — Suspirei. — Onde você está? Estou
escutando barulho de música alta.
— Eu... Ah, eu estou aqui na… No… Na casa do Pedro.
Cauê gaguejando? Hum…
— Do Pedro?! A Luca está aí? — Perguntei.
— Não! — Cauê respondeu alto, parecendo um pouco alarmado.
— Ahn… Quem mais está aí? — Questionei desconfiada.
— Só a molecada, a gente está bebendo, como sempre… — Nesse
momento escutei uns gritos estridentes demais para serem masculinos e
alguém pareceu arrancar o celular da mão dele e desligar. Aquela história
estava muito mal contada! Tentei retornar a ligação, mas foi para a caixa
postal. Continuei a me arrumar irritadíssima e por isso tive que tentar quatro
vezes até o delineado dos olhos sair perfeito. Os meninos bebendo na casa do
Pedro e gritos femininos no fundo da ligação?! Cauê estaria me traindo?! Está
certo que nós só éramos ficantes, mas, poxa vida, já havia uns bons meses em
que ele estava me enroland... Ops, ficando comigo. Eu merecia o mínimo de
respeito!
Terminei de me aprontar e fiquei esperando as duas primas, sentada
na cama e pensando. Já tinha enviado uns cinquenta torpedos para o Cauê e
de nenhum obtive resposta. De repente me veio à mente que eu estava indo à
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igreja para ver se conhecia algum menino bonito, então eu estava


praticamente na mesma situação que ele… Não! Não estava! Sacudi a cabeça
como que para afastar aqueles pensamentos. Ele já devia estar aos beijos com
outra menina e eu só queria ver algum gatinho e dar uma paquerada. Que mal
há nisso?
O que eu nem fazia ideia ainda é que Deus não olha só nossas
atitudes, Ele vê principalmente o coração. Se o nosso coração tem uma
intenção errada, não adianta a atitude ser correta aos olhos dos homens. E, se
tratando de mim naquela época, nem a intenção do coração nem meus atos
agradavam a Deus. Cauê nem sequer era meu namorado! Acho que eu sentia
ciúmes porque ficávamos há um bom tempo e ele sempre dizia que a gente
iria namorar, mas nunca oficializou o pedido. Eu já havia “avançado o sinal”
inúmeras vezes e, em alguns momentos, parecia que ele só queria me usar
para ter uns momentos bons, mas compromisso? Nada! De qualquer forma,
não podia reclamar. Cauê era o garoto mais lindo e popular da escola. O seu
rosto fino, olhos azuis e corte de cabelo moderno, com as laterais baixas e
franja caída de forma irregular e meio bagunçadinha chamavam a atenção de
qualquer garota. Todo o colégio sabia do nosso caso, e é óbvio que eu
adorava fazer as menininhas caírem babando quando estava ao lado dele e…
Dim-dom! A campainha tocou e fui interrompida em meus
pensamentos. Peguei minha bolsa e corri para a porta. Gritei um tchau para
minha família e vi mamãe se aproximar com um olhar fiscalizador analisando
minha produção de cima a baixo. Ela estava prestes a abrir a boca para falar
algo, mas eu abri a porta primeiro e demos de cara com Clarissa e Fernanda
em pé cheias de sorrisos. Uau! Elas estavam lindas! Mas... Estranho, as duas
não pareciam lindas só por causa das roupas e da maquiagem, tinha algo
diferente. Eu já havia notado isso durante a tarde, elas tinham um brilho
especial, algo estranhamente convidativo, que me fazia querer estar perto
delas e ter o que elas tinham. Toda aquela história de primas-bregas-e-chatas-
da-roça caiu por terra. Os olhos delas brilhavam e os sorrisos eram sinceros.
“Também quero ter essa beleza!”, pensei, mas peguei essa vontade e guardei
em algum cantinho discreto do meu coração.

***

Dona Gláucia não ralhou comigo por conta da roupa certamente por
causa da presença das meninas. Mas eu podia esperar a entrada dela no
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quarto enquanto estivesse me arrumando no dia seguinte. Porém, aquela não


era a hora de pensar nisso. O importante é que eu estava me sentindo
maravilhosa com o meu cropped, calça strech e salto agulha. — que já estava
começando a doer meu pé, devido a irregularidade das ruas de
paralelepípedo.
— Aqui, será que eu poderia criar um apelido para vocês? Ficar
falando Clarissa e Fernanda, Fernanda e Clarissa toda hora dá uma canseira!
— Perguntei olhando para o chão, tentando não tropeçar em alguma daquelas
pedras. Elas riram.
— Na verdade, nós já temos apelidos e praticamente a cidade toda
nos chama por eles. — Clarissa respondeu.
— Ah, que pena! Eu sou ótima em apelidar pessoas. Por exemplo,
uma de minhas melhores amigas teve seu codinome criado por euzinha aqui e
hoje todos a chamam por ele. Tem gente que até esquece que o nome dela de
verdade é Luciana e só a reconhecem como Luca. — Comentei orgulhosa e
as duas gargalharam.
— Bom, mesmo que os nossos não sejam tão originais como “Luca”,
pode nos chamar de Nanda e Sissa. — Fernanda respondeu estendendo
teatralmente a mão direita para mim, como que se apresentando.
— Certo. E vocês podem me chamar de “Bê” quando quiserem. Nem
um pouco criativo, mas é de infância. — Elas riram mais uma vez e
continuamos o trajeto conversando sem parar, e antes da metade do caminho
já tinha me arrependido de não ter pedido ao meu pai que nos levasse de
carro. Andar a pé de salto naquelas ruas estava me matando.
Chegamos ao culto. A igreja estava lotada de jovens e adolescentes, e
o mais legal de tudo: estava cheia de gatinhos! Percebi que muitos olhavam
para mim, e com alguns não perdi a oportunidade e troquei olhares.
Principalmente naquele momento, em que eu estava cheeeeia de raiva do
Cauê. Mesmo não querendo, acabei me sentindo sem jeito com a maneira que
estava vestida ao notar que não eram somente Nanda e Sissa que usavam
tênis e blusa de manga. Praticamente todas as meninas estavam vestidas com
roupas casuais, enquanto eu parecia estar indo para a balada. Certas garotas
me olhavam sem parar e cochichavam umas com as outras. Passei um bom
tempo com raiva delas e vontade de ir embora, até que o ministério de louvor
jovem foi chamado à frente e... Epa! O meu radar detector de GLM (Garotos
Lindos de Morrer) foi acionado. Um rapaz passou a correia do violão pela
cabeça e colocou-a em seu ombro esquerdo, se aproximando do microfone
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preso a um pedestal. Seus dedos começaram a dançar pelas cordas do


instrumento e ele abriu os lábios deixando sair uma voz bem firme e
levemente rouca.
Arregalei os olhos com cara de admiração. Ele não era muito alto
nem muito baixo, seu cabelo ondulado misturava tons de loiro claro e escuro,
caía de lado sobre a testa e seguia até abaixo da orelha, fazendo alguns
cachinhos nas pontas. O nariz era afilado e os lábios cheios. Dependendo da
frase que cantava, as covinhas apareciam uma em cada lado do rosto. Fixei os
olhos nele e esqueci todo o resto. Porém, saí do meu momento “babação”
num segundo, quando Nanda falou comigo:
— Aconteceu alguma coisa, Betina?
— Ahn… Não, por quê? — Perguntei, sem desviar o olhar da frente
da igreja.
— Sua boca está aberta e você com cara de quem parece ter visto um
anjo!
Um anjo? Bem, não deixa de ser...
— Não aconteceu nada não. — Respondi e logo depois fechei a boca.
Que king kong! É claro que ela ia sacar que eu fiquei assim por causa do
ministro-lindo-músico-anjo. Meus olhos estavam grudados nele. Nem
lembrava quais foram as músicas que o grupo tocou, só conseguia pensar na
linda voz de cantor de boyband da qual ele era dono. Fiquei suspirando o
resto do culto e também pensando em uma maneira de saber mais sobre ele.
Depois que o culto terminou, fomos para a parte de trás do templo, porque ia
acontecer um lanche pra galera. Arrá! Minha oportunidade!
Depois de alguns minutos — tensos minutos, diga-se de passagem —
consegui enxergá-lo. Sim, o anjo! Em meio a toda aquela gente, o vi e, mais
uma vez, me desliguei da realidade enquanto o observava. Dessa vez para
não perdê-lo de vista.
— Betina.
Ai, o que seria dessa vez?!
— Esse é o Matheus. — Sissa continuou. — Um grande amigo aqui
da igreja.
— Olá, Matheus, prazer em te conhecer! — Disse ao dito cujo,
forçando um sorriso educado.
— O prazê é todo meu, linda!
Tentei não fazer cara feia e olhei em direção a onde o anjo estava.
Droga! Ele não estava mais lá! Culpa desse tal de Matheus, que ficou me
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alugando por um bom tempo depois.


— Você veio da cidade então, uê?
— Aham, vim sim.
— E como é vivê num grande centro?
— Legal.
Sissa e Nanda já tinham percebido, desde quando entraram em meu
quarto na manhã daquele dia, que quando eu estou irritada minhas respostas
são bem curtas e secas. Mas elas, sem coração, nem para me salvar daquele
garoto chato! Muito pelo contrário, ficaram papeando animadíssimas com
alguns amigos, enquanto eu tentava fazer o Matheus perceber que eu não
estava muito a fim de continuar conversando com ele. Fiquei tão concentrada
nisso, que nem percebi que do outro lado um garoto de blusa jeans abotoada
até o pescoço e cabelo anelado estava se aproximando. Quando notei que ele
estava na rodinha conversando com as meninas, dei um jeito de me incluir no
assunto, até que não demorou muito e ele reparou em mim.
— Olá. Seja bem-vinda!
Que sorriso!
— Obrigada!
Meu sorriso devia ser maior ainda.
— Ela se chama Betina e é nossa prima, Noah. Veio passar as férias
aqui em Gruta Alta. — E, assim, Sissa fez as devidas apresentações.
— Que bacana! Prazer em conhecê-la, Betina, sinta-se bem em nosso
meio.
— Obrigada… Noah. — Me demorei ao pronunciar o nome dele,
saboreando cada letra. — O prazer é todo meu! — Completei, me sentindo
nas nuvens.
— Meninas, já falaram sobre o acampamento para ela? — Noah
perguntou às minhas primas.
— Ainda não…
— Que acampamento?! — Questionei curiosa.
— O acampamento anual dos adolescentes e jovens da nossa igreja.
Vai acontecer daqui a uma semana em um sítio da região. Se você quiser
participar vai ser muito bem-vinda.
— Eu quero participar sim! — Respondi prontamente, sem esconder
minha empolgação.
— Nanda, depois você me passa os dados dela direitinho. Galera,
agora preciso ir! Até mais! — E tchananan, para completar, ele me deu um a-
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bra-ço! Está certo que ele deu um em cada pessoa que estava na roda, mas
não me importava, no tal acampamento eu teria muitas oportunidades para
abraçá-lo novamente — assim eu esperava. Outra coisa que eu também
esperava era que ele tivesse me achado bonita. Durante o breve momento em
que estive perto dele, fiz questão de deixar os ombros bem aprumados, dar
uma arrumada boa no cabelo, jogando-o de lado e mostrar o meu melhor
sorriso. O cheiro suavemente amadeirado de seu perfume ainda passeava por
minhas narinas no caminho de volta para casa.
Cheguei em casa com a mente no acampamento. Seria a oportunidade
perfeita para me aproximar do Noah, e quem sabe ele não se interessasse por
mim?! Seria um sonho! Sissa e Nanda me disseram que ele era o líder do
ministério de jovens e muito envolvido com “as coisas do Senhor”. Bom,
envolvido ou não, o que de fato me importava naquele momento era ficar
repassando mentalmente o raio-x que fiz do rosto dele quando o vira de perto.
Pude observá-lo melhor, já que na hora do louvor eu estava um pouco
distante da frente da igreja e por isso não dava para analisar os detalhes.
Reparei então que seus olhos eram cor de mel e o sorriso amistoso que lhe
preenchia o rosto guardava entre os ordenados dentes brancos somente um
meio tortinho, que conferia certo charme ao “conjunto da obra”.
Meu celular soltou um bipe e rapidamente abri a mensagem que
chegara:
— Oi, meu amor. O celular acabou a bateria, por isso não te retornei
as mensagens. Desculpe! Tenha uma linda noite, te gosto muito! <3
Ai, que vontade de jogar o celular na parede! Como Cauê conseguia
ser tão dissimulado assim?! Pegaram o celular enquanto a gente conversava e
ele queria vir com aquele papinho de que a bateria acabou? Conta outra! Nem
respondi a mensagem, se não ia falar poucas e boas e eu estava muito alegre
para deixar isso acontecer. Naquele momento o melhor era dormir, e quem
sabe, em meus sonhos, algum anjo pudesse aparecer…

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Capítulo 3 – O que está acontecendo comigo?

Acordei assustada com o Guto pulando em cima de mim.


— Manhêêêê, tira esse menino daqui! — Gritei.
— Bê, a gente vai passear hoje! — Meu irmãozinho gritou mais alto
do que eu, com os olhos brilhando. Passear? Como assim?! Era domingo, ou
seja, tinha Escola Dominical, ou seja, o anjo, ops, o Noah iria com certeza pra
igreja. E eu também, é claro!
— Nós vamos a uma cidade próxima daqui, filha. A Leide disse que
de uns anos pra cá a cidade tem estado mais cuidada e tem até pontos
turísticos. Quero ver todos! — Às vezes minha mãe chamava a Zuleide por
seu apelido, que só os íntimos tinham liberdade para pronunciar. Ela parecia
bem feliz com a ideia de visitar outra cidade com pedras no lugar de asfalto e
cavalos andando pela rua. Mas eu não.
— Eu não vou, mãe. — Bradei decidida.
— Quem disse?
Eu, oras!
— Ah, mãe, eu quero ir à Escola Dominical hoje!
Ela parou tudo o que estava fazendo, virou-se para mim e com a cara
de quem tinha visto um elfo, indagou:
— Você querendo ir à EBD? — Levantou-se, veio até a mim e
colocou a mão em minha testa. — Está com febre?!
— Para de graça, mãe, é sério.
— Betina, lá em casa todo domingo de manhã eu chego quase a jogar
um balde de água gelada em você para que acorde e vá para a Escola Bíblica,
e agora você quer deixar de fazer um passeio para ir à igreja?! — Colocara as
mãos no quadril e remexia os cabelos, parecendo não acreditar no que eu
dissera.
— Você deveria estar feliz, Dona Gláucia! Quantas mães não
desejariam que suas filhas tivessem uma atitude como a que estou tendo?
Ui, mandei bem nessa, né? Depois disso, é óbvio que ela me deixaria
ir para a igreja.
— Mesmo assim, não. Agora iremos passear, à noite vamos ao culto.
Argh!
— Mas, mãe!
— Sem mas, nem meio mas, vamos passear juntos hoj…
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— Mas! — Supliquei, entrelaçando os dedos embaixo do queixo.


— Psiu! Fim de conversa! Vá se arrumar. E coloque uma roupinha
leve porque lá faz muito calor!
Nem preciso dizer que fui me arrumar bufando, né?

***

Apesar do nome engraçado, Jeriri até que era uma cidade bem bonita
mesmo. Dessas que têm cheirinho de café, cavalos andando com charrete
pela rua e construções históricas. Possuía um charme que Gruta Alta
definitivamente não tinha. Enquanto andávamos pelas ruazinhas de
paralelepípedo, apesar de meus pensamentos estarem lá na igreja e
principalmente no líder do ministério de louvor, consegui perceber algo
peculiar, praticamente todas as lojas, farmácias, supermercados e outros
comércios tinham o mesmo nome: Marquês. E, volta e meia, eu via algum
cartaz com a foto de uma linda senhora loira com o nome de Laura Marquês.
Ela devia estar se candidatando a algum cargo político e o engraçado é que eu
não consegui encontrar cartazes de outros candidatos. Perguntei a Zuleide
sobre ela.
— Ah, Betina, essa senhora é a viúva de um grande fazendeiro da
região. Ele era bastante famoso por aqui, pois ajudava muito as pessoas. A
maioria dos comércios foram instalados na cidade com o auxílio dele, por
isso seu sobrenome está em quase todo lugar. O povo vivia pedindo que ele
se candidatasse a prefeito, mas ele nunca quis. Porém, depois de sua morte,
sua esposa se envolveu na vida política e se candidatou à prefeitura. Mas
dizem por aí que ela não é muito flor que se cheire não.
— Por quê? — Perguntei curiosa.
— Dizem que ela maltrata muito os funcionários da fazenda, humilha
as pessoas, passa por cima de qualquer um para conseguir o que quer, exige
altos valores dos comerciantes que seu marido ajudou no passado. E ainda
tenta enganar o povo para conseguir votos!
“Nossa, a Zuleide é bem informada, hein!”, pensei.
— O neto dela é lá da igreja!
— É mesmo? Quem é?
— Leide, me dá uma dica de qual lembrancinha eu compro… —
Minha mãe chamou a Zuleide bem na hora que ela ia me dizer quem era o
neto da tal senhora. Será que eu o tinha visto no culto de jovens?! Depois não
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consegui continuar o papo/fofoca com ela. Mas também, não me importava


muito, a minha maior questão naquele momento era conseguir chegar a
tempo para ir ao culto à noite.
O tempo que um carro levava de Jeriri à Gruta Alta estava em torno
de uma hora e metade do trajeto era feito em estrada de chão. Entre um
sacolejo e outro no percurso de volta, estava com os olhos fechados,
escutando as músicas que Nanda havia me passado e tentando dormir. De
repente, ouvi meus pais conversando.
— Você acha que eu agi errado? — Minha mãe perguntou em voz
baixa.
— Sim, querida. A nossa maior luta com a Betina é que ela se
interesse mais pelas coisas de Deus, e quando ela resolve, por livre e
espontânea vontade, ir à igreja, você impede?!
— Poxa, Antônio, é que a família toda viria para cá, não queria
deixá-la sozinha em Gruta Alta.
— Ela podia ter ficado na casa de uma das primas. Nós, como pais,
temos que agir com sabedoria.
— É verdade. Mas eu achei muito estranho esse desejo súbito dela de
ir à EBD. Se fosse um culto jovem tudo bem, mas à Escola Dominical?!
— Nunca subestime o que Deus pode fazer na vida de alguém,
Gláucia. E, além do mais, depois da visita de ontem, ela deve ter gostado da
igreja.
Boa, papai! Agora eu tinha um aliado!

***

— Ir à igreja por conveniência não salva ninguém. Ser bonzinho


também não. Ter nascido e crescido frequentando a igreja muito menos.
Quantas vezes nos acostumamos a viver uma vida medíocre, que diz crer em
Jesus e ao mesmo tempo faz tudo que desagrada a Ele? O espaço que damos
a Ele são aquelas horas semanais no domingo e quando o culto acaba, O
colocamos de volta em algum canto isolado da nossa vida. Não queremos
papo com Ele, não queremos saber Sua opinião sobre nada e seguimos
fazendo aquilo que gostamos e achamos certo fazer. Mas acreditamos em
Jesus e isso basta, não é mesmo?! Fazemos a oração mecânica antes de comer
e dormir e está tudo certo. Durante a semana vivemos à maneira do mundo e
no domingo colocamos nossas máscaras e vamos para a igreja “fantasiados”
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de cristãos. Mas olha que interessante, no texto que estamos lendo de


Apocalipse 3:14-22, Jesus diz à igreja de Laodicéia no versículo 15: Conheço
as suas obras. — Aqui o homem moreno e calvo, de mais ou menos um
metro e oitenta de altura, vestido em um terno cor cinza, parou e passou os
olhos atentamente sobre os que estavam assentados. — Ele conhece cada
milímetro de nossas vidas. Sabe das promessas que soltamos durante os
louvores nos cultos e que esquecemos assim que cruzamos a porta para ir
embora. Não tem aquela história do crente Raimundo: um pé na igreja e o
outro no mundo? Tem sido uma realidade entre muitos dos que se dizem
cristãos.
Levantei-me do banco em que estava sentada e fui ao banheiro.
Sentia-me incomodada, as palavras do pastor me deixaram desconfortável.
Olhei-me no espelho e tive uma sensação horrorosa, como se tudo aquilo que
ele estava falando fosse de mim. Mas ele nem me conhecia! Do nada, senti
como se um nó se formasse em minha garganta e as lágrimas quase desceram
pelos meus olhos. Procurei pensar em outras coisas, como a roupa que minha
mãe me fez trocar antes de ir para o culto. “Nada de roupa marcando a
silhueta, garota!”. Bufei só de lembrar. Era melhor prestar atenção no que o
pastor dizia mesmo.
— Deus está nos chamando para um compromisso real com Ele! No
Reino de Deus não vale ficar em cima do muro. Ou é ou não é. Jesus
conhecia as obras da igreja de Laodicéia e sabia que eles não eram frios nem
quentes. Eram mornos! E isso causava náuseas em Jesus! Hoje, muitos
cristãos têm sido mornos, vivendo uma vida dividida entre Deus e o pecado.
Mas, se queremos agradar a Deus e servi-Lo de coração, nós precisamos
mudar nossas atitudes, e já! Se for pra seguir a Jesus, então que sigamos com
o nosso melhor, abandonando o pecado e buscando conhecer o Senhor cada
vez mais. Que nos dediquemos a uma vida que demonstra amor por Deus
para além das palavras. Se entregue sem reservas, se santifique, pois os que
assim fizerem é que verão a Deus.
Ainda ouvia ao longe as palavras do pastor. Estava com o quadril
encostado na bancada da pia e os olhos cravados em mim mesma através do
espelho. Procurava espantar dos pensamentos o que ouvi, antes que, não
sabia por qual motivo, permitisse que as lágrimas rolassem. Eu não podia
perder a pose. Sair com cara de choro do banheiro? Nunquinha! Imagina se o
Noah me visse com a maquiagem borrada? Eu perderia todas as chances de
que ele se interessasse por mim.
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“Minha vida é muito boa e acho que Deus não tem nada contra ela.
O que esse pastor está falando se chama fanatismo”, pensei, virando o
cabelo de lado e colocando um ponto final no assunto. Voltei para o meu
lugar e fiquei até o fim do culto com uma vontade imensa de sair correndo
dali, o que eu não entendia, porque torci o dia inteiro para conseguir chegar a
tempo de ir ao culto para ver o Noah e agora que ele estava ali, somente a
alguns bancos à minha frente, eu queria ir embora? E correndo ainda?!

“Aproximem-se de Deus, e ele se aproximará de vocês! Pecadores, limpem


as mãos, e vocês, que têm a mente dividida, purifiquem o coração.
Entristeçam-se, lamentem-se e chorem. Troquem o riso por lamento e a
alegria por tristeza. Humilhem-se diante do Senhor, e ele os exaltará.”
Tiago 4.8-10

A mensagem chegou ao final com o pregador citando esses


versículos. Percebi que Sissa olhou-me de lado umas duas vezes. Depois de
uns minutinhos, ela e Nanda saíram do templo e foram para a parte de trás da
igreja. Após um pouco voltaram, Nanda com os olhos avermelhados —
parecia ter chorado —, mas ao mesmo tempo, as duas tinham uma feição
firme, confiante e tão… tão… Não sei explicar. Pareciam ter visto um…
Anjo. Mas não era como quando eu vi Noah pela primeira vez, na noite
anterior. Parecia que elas tinham visto um anjo de verdade, seus olhos
brilhavam mais que o normal.
O pastor perguntou se alguém desejava fazer um compromisso com
Deus naquela noite. Falou para aqueles que queriam mudar e sabiam que
sozinhos não conseguiriam e para aqueles que quisessem pedir a Deus ajuda
para começar uma vida nova, uma vida que agradasse a Ele de verdade.

“Arrependam-se, pois, e voltem-se para Deus, para que seus pecados


sejam cancelados”
Atos 3.19

A sensação de antes voltou. Só que, naquele momento, mais forte. Eu


sentia algo dentro de mim querendo levantar e ir até a frente, mas também
sentia como se fortes cordas me prendessem junto ao banco, impedindo-me
qualquer movimento. Dentro de mim parecia existir duas Betinas: uma que
gostaria de saber mais sobre quem é Jesus e outra que negava qualquer
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necessidade de arrependimento. Abaixei a cabeça e afundei-me um pouco


mais no banco, como que dando força à voz que dizia que se eu levantasse
seria o maior mico da minha vida.
O que eu queria era ir embora o mais rápido possível. O que escutei
naquela noite parecia ser o reflexo da minha vida e outra voz bem fraquinha
se fazia ouvir em minha mente, dizendo que eu precisava de Jesus. Mas
procurei ignorá-la. Eu era uma pessoa boa sim e achava que, por ir à igreja
desde sempre, já estava com as passagens para o céu garantidas. Nunca havia
me questionado ou tinha sido questionada sobre a veracidade da minha fé.
O culto acabou e eu não esperei por ninguém. Saí rápido e quando
passava pelo portão da igreja, ouvi alguém me chamar. Não olhei para trás,
mas a pessoa foi bem rápida, já estava ao meu lado.
— Por que saiu tão depressa? Assim não vai dar pra bater um papo
com a galera…
Silêncio. Parei petrificada ao perceber de quem era aquela linda voz
levemente aveludada. Ele andou dois passos e parou à minha frente.
— Está tudo bem? — Colocou as mãos nos bolsos frontais da calça
jeans rasgada e analisou-me, transparecendo uma suave preocupação nos
olhos cor de mel.
— Por que não estaria? — Acabei falando num tom de voz um pouco
rude, mas não foi minha intenção. Eu só fui pega de surpresa por um garoto
que eu mal conhecia (mas estava doida para conhecer) perguntando com tanta
sinceridade como eu estava.
— Não sei. Você não saiu da igreja com uma cara muito boa, parecia
incomodada com algo. Resolvi perguntar se eu posso ajudar em alguma
coisa.
Ele era sempre sincero assim?! Arqueei as sobrancelhas sem acreditar
no que estava ouvindo. Temi, meia hora atrás, que ele perdesse o interesse
por mim se me visse com semblante de choro e agora o garoto me dizia que
eu “não estava com uma cara muito boa”. Qual botão eu apertava para voltar
no tempo e sair da igreja com uma expressão melhor no rosto?!
— Posso orar com você? — Perguntou depois do meu longo silêncio.
“Epa! Como assim, Noah? Orar? Era só o que me faltava!” Apesar
de minha cabeça estar processando freneticamente várias respostas, não
consegui balbuciar um “a” sequer.
— Deus, somente o Senhor conhece o coração das pessoas.
Ei, eu nem deixei que ele orasse!
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— E, por isso, só Tu sabes o que está no coração da Betina agora.


“Dentro do meu coração tem muita indignação com a sua pessoa
neste momento, sr. Noah!”, pensei irritada e fechei os olhos, apertando-os
com força, rendendo-me à oração.
— Eu nem a conheço direito, mas o Senhor já sabe quem ela é desde
muito antes do seu nascimento, porque foi Você quem planejou a vida dela.
Que nessa noite o Seu amor, que é mais forte que todas as coisas, encontre
cada espaço da vida da Betina.
Ao ouvir aquelas curtas frases, toda minha resistência caiu por um
momento e os pensamentos confusos misturaram-se às lagrimas, que enfim
puderam escorrer livremente por meu rosto.
— Em nome de Jesus, Amém.
Tentei desesperadamente limpar as lágrimas antes que a oração
acabasse, mas não teve jeito. Ele me viu chorando.
— Betina, não resista à voz do Espírito Santo. Hoje Ele falou com
você.
— Aham. — Foi a única coisa que consegui responder. Neste
momento, Sissa, Nanda e Matheus chegaram. As duas me abraçaram como se
fosse a coisa mais normal do mundo uma garota chorando na calçada da
igreja. Matheus já foi descontraindo o ambiente:
— Pô, galera, dispois de uma mensagem abençoada como essa, que
tal a gente dar uma saída?
Tirando a pronúncia errada que parecia ser comum ao Matheus, até
que a ideia não era ruim…
— Que tal um sorvetão no capricho?! — Noah perguntou animado.
Ele já tinha saído do meu lado e se encontrava entre Matheus e Sissa.
— Nós topamos! — Os outros responderam em coro.

***

Meu pai levou a mim e as meninas para a sorveteria e voltou para


igreja para buscar mamãe, Zuleide e Guto, pois iriam lanchar em outro lugar.
No caminho, a única coisa que fazia questão de lembrar era da conversa que
tive com Noah. Eu ainda me sentia meio esquisita com todos os
questionamentos que passaram por minha mente naquela noite, e as lágrimas
incontidas durante a oração dele ainda eram uma incógnita.
Descemos do carro e os meninos já nos esperavam em pé na entrada
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do estabelecimento. Senti uma ardência no estômago ao ver Noah sorrindo e


acenando para nós. Entramos e escolhemos uma mesa no canto direito da
sorveteria. Dei um jeito de sentar ao lado do Noah e o Matheus deu um jeito
de sentar ao meu. Resolvi dedicar todos os meus esforços em me aproximar
do gatinho de cabelo ondulado que sorria feito criança ao contar piadinhas
sem graça para nós. Eu caía na gargalhada ao ouvir todas, muito mais para
chamar atenção dele do que pela piada em si — já que a maioria era de dar
dó, de tão ruins.
— Você mora aqui há muito tempo? — Perguntei ao Noah assim que
tive uma oportunidade, mas não sem antes dar uma ajeitada no cabelo e
checar a maquiagem através da câmera frontal do celular.
— Desde que me entendo por gente. Cresci em um lugar entre Gruta
Alta e Jeriri, então acabei por ser criado nas duas cidades, praticamente.
— Eu moro em Gruta Alta desde que nasci, Betina. — Acrescentou
Matheus, sem ser convidado.
— Ah, tá. — Dei um sorrisinho amarelo para ele. Será que não se
mancava que o meu negócio era o Noah?
— A mensagem de hoje foi desafiadora, não é? — Sissa soltou,
enquanto devorava seu sorvete de flocos com bastante calda de chocolate.
— O que o pastor disse é algo que vem me incomodando há tempos.
Muitos têm vivido em cima do muro, escolhendo o pecado, se prendendo à
religiosidade e isso desagrada o coração de Deus! — Noah complementou.
— E quantas vezes, se pararmos pra pensar, não é a nossa vida que
está assim? Toda dividida entre Deus e o mundo?
— Pois é, Nanda. Por isso sempre insisto com os adolescentes e
jovens que temos que ler a bíblia, porque nela é Deus falando conosco. Só
então podemos descobrir como viver uma vida que faça Ele sorrir. Sem ler a
Palavra, impossível entender a vontade de Deus. — Noah falava mexendo as
mãos e gesticulando, parecia muito empolgado com o rumo da conversa.
— Por isso muito tempo vivi cega, fazia tudo errado e nem ligava,
porque eu não conhecia a Verdade. Estava sempre na igreja, mas com o meu
coração totalmente longe de Deus. Eu não conhecia a Verdade que liberta,
como está escrito lá em João oito… — Nanda disse.
— Mas glória a Deus, que hoje tem aberto nossos olhos! Não quero
ser achado por Ele como os crentes de Laodicéia, quero ter o colírio que me
faz enxergar as coisas da forma direita e correta, como diz no fim de
Apocalipse três.
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Que coisa estranha. Adolescentes comentando a mensagem do culto


na sorveteria?! Nós nem estávamos na igreja! Aquela galera era mesmo
diferente de todos que eu já havia conhecido. Mas, já que eu não estava a fim
e nem teria o que dizer sobre aquele assunto, fiquei mexendo no celular,
cultivando um pouquinho mais de ira no coração por não conseguir conectar
a internet. Apesar disso, algo que a Nanda falou ficou martelando em minha
cabeça. Ela disse que por muito tempo viveu cega, fazendo tudo da maneira
que achava correta e nem ligava para isso. Ela parecia estar falando de mim!
Mas não no passado, e sim naquele exato momento. Eu ia à igreja desde
criança, participei de todas as cantatas de páscoa e natal quando pequena,
estava em todos os eventos, não faltava uma Escola Bíblica Dominical! Sabia
decorado os livros da Bíblia por causa das gincanas que participava no
ministério infantil…
Mas agora, aos quinze anos, nada disso me chamava mais atenção.
Culto para mim servia para ficar no Facebook, ou com a mente lá no mundo
da lua, quando o pastor mandava desligar o celular. Pensava no Cauê, nos
nossos beijos, nas meninas invejosas da escola, na roupa que eu ia ao
shopping no dia seguinte… Em tudo, menos prestar atenção no que Deus
estava querendo me falar através do mensageiro. Eu amava ir à igreja nas
festas, passeios e em algumas reuniões dos adolescentes. Somente naquelas
em que o líder chato que só falava de Deus e santidade não fosse falar. Eu
preferia mil vezes estar com minhas amigas falando de garotos, passar horas
assistindo aos meus youtubers favoritos e ir à baladinhas do que frequentar
aquele lugar chato e cheio de regras.
— Betina, vamos ao banheiro comigo? — Sissa perguntou, já se
levantando da cadeira branca de plástico. Saí da minha análise de vida num
instante e voltei para a realidade. Seguimos para o banheiro trocando algumas
palavras e, após lavar as mãos depois de usar o sanitário, ela voltou a falar.
— Prima, percebi que você ficou quieta durante a conversa lá na
mesa. Está tudo bem?
Era comum entre eles comentar o comportamento das pessoas desse
jeito?!
— Está tudo certo. — Respondi, levantando um pouco os ombros. —
Só acho que... — Soltei um suspiro abafado e dei um tapa no ar. — Deixa pra
lá.
— Pode falar.
— Não é nada importante.
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— Para Deus até nossas mínimas questões têm importância.


— Tá vendo? Vocês falam de Deus o tempo todo! — Respondi como
se estivesse acusando-a de algo. Ela arregalou um pouco os olhos, mas sua
expressão logo se suavizou.
— Você acha isso ruim?
— Sim! Não! Ah, não sei. Só acho que esse tipo de coisa não se fala
o tempo todo, se não fica parecendo fanatismo.
Ela mirou-me com uma expressão tranquila.
— Não me importo de ser chamada de fanática. Sou apaixonada por
Jesus, falar dEle em qualquer hora ou lugar é normal para mim.
Agora foi a minha vez de esbugalhar os olhos. Não esperava aquela
resposta.
— Bê, você já teve um encontro com Jesus?
— Ah, bem... bom... hã... — Gaguejei olhando para o chão em busca
de uma resposta convincente, mas ela não veio.
— Betina, todos nós, independente da idade ou qualquer outra
condição, precisamos nos arrepender e crer em Jesus, para sermos salvos.
Você acredita no sacrifício de amor dEle por você?
— Talvez outro dia a gente converse mais sobre isso. Vamos voltar
para a mesa? — Respondi depois de um momento em silêncio. Ela sorriu
concordando e retornamos para onde os outros estavam.
Naquele dia, algo começou a se mover dentro de mim. Era como se
uma pequena fresta de uma estreita porta se abrisse diante de mim,
apresentando-me por um filete de luz, rápido vislumbre do que havia do outro
lado. Mas será que eu estava disposta a prosseguir e abrir a porta por
completo?
Na mesa, o papo da vez era o acampamento, que começaria no fim de
semana seguinte.
— Cara, eu tenho orado bastante por esses dias! Deus tem grandes
coisas para nós lá. E como eu li num livro dia desses[1], “A expectativa é
campo fértil para milagres”. — Disse Noah, falando como se o próximo final
de semana fosse ser o melhor de sua vida.
— Vai ser radical, mal posso esperar para mostrar os meus dotes de
Tarzan naquela tirolesa da piscina natural! — Nanda falou, levantando a
manga do braço direito e mostrando o “muque”. Todos riram.
— Você vai, não é, Betina? — Finalmente ganhei do anjo um olhar
só para mim.
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— Claro! — Respondi animada. “Perder a oportunidade de estar


mais perto de você, querido? Nunca! Vai ser nesse acampamento que eu te
beijo!” Pensei ao analisar de perto o desenho dos seus lábios carnudos.
Surpreendi-me com meu próprio pensamento, mas estava aí algo pelo qual
valia a pena criar expectativas sobre o acampamento: um beijo (ou vários) do
Noah! Não foi ele mesmo que disse que a expectativa é campo fértil para
milagres? Aprendi direitinho. — Oi, gente!
Olhei para trás para ver de onde vinha aquela voz melosamente
feminina.
— Oi, Thami! — Todos, menos eu, responderam.
— Nem me chamou para tomar sorvete, Noah? — Falou
charmosamente a tal de Thami.
— Ah, é que decidimos rápido vir pra cá. Foi de última hora.
— Hum. — Ela respondeu, já pegando uma cadeira e se ajuntando a
nós na mesa.
— Como você está? — Perguntou, olhando para o Noah.
— Estou bem. A galera também está muito bem. — Noah respondeu
mostrando os outros. Ela deu um sorrisinho meia boca e Sissa, Nanda e
Matheus se entreolharam.
— Essa é a nossa prima Betina, Thami. Ela está passando as férias
aqui. — Informou Sissa.
— Oi. — Falou secamente e eu, como não era fácil, respondi com um
“Oi” mais antipático ainda. Um silêncio instaurou-se na mesa.
— Você vai ao acampamento, Thami? — Perguntou Matheus,
claramente tentando melhorar o climão que se formara.
— É óbvio!
— A Betina também vai! Vamo nos divertir por demais!
Quando Matheus acabou de falar, Thami virou-se para mim com um
olhar que parecia menosprezar até minha última geração. Outro silêncio
desconfortante ocupou a mesa.
— Esse acampamento não era pra ser fechado só para os jovens da
nossa igreja, Noah?
Bem, eu já tinha idade e semancol suficiente para entender que
aquela indireta foi diretamente para mim. Meu rosto queimou e não foi de
vergonha, mas sim, de raiva. Aquela patricinha não tinha ido mesmo com a
minha cara! E agora nem eu com a dela! Pedi licença e levantei-me da mesa.
— Meninas, vocês já estão indo? Porque eu já vou! — Disse e saí
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andando. Sissa e Nanda vieram atrás de mim tentando consertar a situação.


— Não foi isso que ela quis dizer, Betina! — Disse Sissa descendo o
degrau entre a sorveteria e a calçada. — É porque de início seria só para os
nossos jovens, resolvemos mudar e ela não deve ter ficado sabendo!
— Aham, e eu nasci ontem, Sissa. — Respondi sem parar de andar.
As duas me alcançaram.
— Prima, deixe isso pra lá. Ela não disse por mal, libera perdão aí!
— Nanda me deu um cutucão no braço que só serviu para me deixar mais
irritada.
— Vocês viram como ela me olhou?! É claro que ela não foi nem um
pouco com a minha cara e não quer que eu vá ao acampamento!
— Mas fomos nós duas e o Noah que te convidamos. A opinião da
Thami vai ser mais importante que a nossa?! — Hum, Nanda apelou.
— Afinal, quem é essa garota? — Perguntei enfezada e as duas se
entreolharam.
— Ah, é uma menina lá da igreja.
— Nossa, que grande descoberta! — Debochei. — Ficou claro que
ela é uma tremenda metida e parece arrastar não uma asa, mas o avião inteiro
para o Noah.
— Não fale assim dela. A Thami precisa ser trabalhada por Deus, no
fundo ela é uma menina bacana.
— Beeeeem no fundo deve ser, né, Sissa! — Complementei e o
comentário rendeu boas gargalhadas.
— Mas, hein, ela pareceu ficar tão em cima do Noah… — Retomei o
assunto que eu realmente queria saber. Será que aquela chatonilda era
namorada do anjo?! Oh, não!
— Ah, Betina… É que ela gosta dele. — Informou Sissa.
— Na verdade, ela é perdidamente apaixonada por ele. — Completou
Nanda, levantando as mãos em um gesto dramático.
— E ele? — Perguntei, sem esconder a ansiedade.
— O Noah só tem olhos para Jesus, menina. Ele é loucamente
apaixonado por Cristo, um servo de Deus de verdade. Ele não gosta de
ninguém romanticamente e está esperando a mulher com quem vai casar
aparecer em sua vida.
Epa! Que papo doido era aquele?!
— Pode parecer loucura, mas o Noah leva tão a sério a vida dele com
Deus, que não quer sair por aí entregando o coração pra qualquer uma. Por
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isso já decidiu e ora para que a menina com quem namorar, seja também a
que vai casar. — Sissa comentou com uma voz toda orgulhosa, como se fosse
uma mãe contando que o filho passou em primeiro lugar para a universidade
federal.
Uau. Boca aberta. Precisei de uns minutinhos para processar a
informação. Foi bem nesse tempo que ele chegou. Sim, o Noah. Ele virou a
esquina correndo, a afobação em pessoa.
— Nossa, como vocês andam depressa, hein! Quase não consegui
alcançá-las!
Ainda estava processando a informação que tinha acabado de receber,
então não consegui formular nenhum comentário. Ele virou-se para mim,
ainda ofegante:
— Então, Betina, a sua ficha de inscrição do acampamento está aqui
dentro da minha bíbli…
— Eu não vou mais ao acampamento, Noah. — Arrá! Jogada de
mestre! É claro que eu ia, mas precisava aproveitar a oportunidade e jogar um
charme.
— Betina, com toda a sinceridade do meu coração, quero muito que
você vá. E peço perdão pela Thami, ela viajou no comentário que fez, mas
não deixa isso te impedir de aproveitar esses dias conosco.
Impossível permanecer com uma atitude dura (ainda que fosse
completo charme) diante daquele olhar carinhoso e tão… Puro. Olhei para as
meninas e depois olhei para ele. Demorei um instante e lancei:
— Tudo bem. Eu vou.
— Aêêê! — Os três vibraram e me abraçaram. Surpresa pela reação
deles, permaneci imóvel nos primeiros segundos, mas logo correspondi,
embora não tão espontânea como eles.
Sabe quando você se sente especial e amada só por uma atitude?
Ninguém precisou dizer que gostava de mim ou da minha companhia, eles só
me abraçaram com sinceridade e isso bastou. Os três mal me conheciam,
mas eu podia ver amor em seus olhos e aquilo me constrangeu.
Entrei em casa com os olhos cheios d’água, mas dessa vez me
controlei. Só não pude conter os pensamentos — que estavam a mil por hora
— quando encostei minha cabeça no travesseiro. Noah parecia ser muito
diferente de todo garoto que eu já havia conhecido. Não só pela beleza
exterior, mas porque tinha algo dentro dele, nas palavras que falava, que era
especial. Nos poucos momentos que estive próxima a ele, só consegui
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enxergar gentileza e respeito em seus atos. A mesma sensação de beleza que


tive em relação à Clarissa e Fernanda também tive em relação a ele. Por isso
não duvidava de que o Noah não se envolvia com nenhuma garota e esperava
a que ele casaria chegar. Mas aquilo era doido demais! Por mais que ele
amasse a Jesus, qual mal em dar uns beijinhos de vez em quando?! Era difícil
demais para eu entender.
Repassei mentalmente outra vez o momento em que ele orou comigo
após o culto e admirei-me de novo porque, fala sério, quem se preocupa com
alguém que sai rápido do culto e ainda mais com lágrimas no rosto?! Eu
percebi que ele não foi até mim com maldade e sim com o puro desejo de
orar por mim — porque era óbvio, algo estava errado comigo. E por tocar
nesse assunto… Que coisa no mínimo estranha havia acontecido com a
minha digníssima pessoa naquela igreja! Será que Deus havia falado comigo?
Mas Ele, quando fala, não é para brigar quando fazemos algo de errado?
Bem, em meu caso, eu fazia bastante coisa errada, mas… Ele não parecia ter
brigado. Aliás, as lágrimas daquela noite pareceram lavar minha alma, estava
me sentindo bem, muito bem, mas ao mesmo tempo confusa, muito confusa.
O pastor, na hora do apelo, falou sobre compromisso com Jesus e
convidou quem quisesse uma vida nova, que levasse Jesus a sério, a ir à
frente que ele oraria por essas pessoas. Foi tão convidativo e ao mesmo
tempo tão confrontador que eu não quis ir, por mais que tudo em mim
quisesse. Na verdade, eu não entendia nada do que tinha acontecido dentro do
meu coração naquela noite! Será que o Senhor queria me mostrar algo, como
Noah orou?
Acabei pegando no sono e nem percebi que em meu celular havia
chegado uma mensagem da Luca.

Capítulo 4 — Alguns micos e outros estresses

— Você não vai a acampamento nenhum! — Mamãe estrilou com o


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rosto vermelho e testa franzida. Virei-me para meu pai pedindo socorro
através do olhar. Ele apertou os lábios e suspirou demoradamente. Parecia
que teríamos uma longa discussão pela frente.
— Betina, você nos desapontou ontem. — Falou papai com voz calma,
mas decepcionada.
— Eu sei, mas é que...
— Mas é que o quê?! Qual a desculpa dessa vez? Você simplesmente
não ligou para seu pai te buscar e voltou sozinha com suas primas quase onze
horas da noite! Isso não se faz em nenhum lugar, imagina o que poderia ter
acontecido com vocês?! — O rosto de minha mãe ia ficando mais vermelho a
cada palavra que pronunciava.
— Mas o Noah nos encontrou no caminho! — Falei em minha defesa.
— Nós nem sabemos quem é Noah! — Mamãe estava com os braços
cruzados e movia-se de um lado a outro da sala. Zuleide brincava com Guto
na varanda, mas quando citei o nome do Noah ela olhou em nossa direção.
— A questão é: se você quer de fato aproveitar os dias em que
estaremos aqui ao lado de suas primas, tudo bem, isso é muito melhor que
ficar de cara feia trancada no quarto como você repetiu muitas vezes que
faria. — Os olhos verdes de papai cravados em mim deixavam-me ainda mais
desconcertada. — Mas você terá de fazer isso direito. Eu e Gláucia sabemos
que você não ficará em nossa cola como quando era pequena, mas isso não
quer dizer que não tenha de nos pedir permissão para o que pretende fazer e
nos deixar informados de tudo.
— E também não significa que vamos deixá-la passar quatro dias em
um sítio no meio do mato com pessoas que nem sabemos quem são!
— Poxa vida, mãe, é o pessoal da igreja da Zuleide! — Aumentei o tom
de voz.
— E daí?
Senti a raiva fervilhar dentro de mim e não consegui contê-la.
— Caraca! Será que não pode me apoiar pelo menos uma vez?! Você
parece ter necessidade de frustrar tudo que eu planejo! Era para eu estar no
Rio com minhas amigas agora, mas você quis me trazer pra cá! E agora que
eu quero pelo menos tentar me divertir e fazer amigos você não deixa! —
Explodi todas as palavras em cima de minha mãe, que me observava atônita.
Saí pisando duro e bati violentamente a porta do quarto. Abracei o travesseiro
e permiti que lágrimas quentes molhassem a fronha florida. Por que minha
mãe não podia pelo menos uma vez tentar entender meu lado?! Ela sempre
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impunha sua vontade como um general enraivecido e nunca demonstrava o


mínimo de interesse em me ouvir. Não é à toa que muitas vezes eu sentia
como se tivesse uma desconhecida em casa no lugar da minha mãe.

***
— Para onde a gente vai dessa vez? — Perguntei enquanto descíamos
a rua que a Zuleide morava.
— Pista de skate.
— O quê? Aqui tem pista de skate, Sissa?!
— Claro, Betina, só você acha que Gruta Alta ainda é uma roça! —
Eu, Sissa e Nanda caímos na gargalhada.
A segunda-feira acordou com aquela cara de sábado que só as férias
podem proporcionar e apesar de minhas primas-de-terceiro-grau-e-agora-
amigas não quererem perder um minuto daquele lindo dia, eu não estava tão
animada assim. Ter começado o dia levando bronca dos meus pais não me
dava vontade de sair distribuindo sorrisos por aí — por mais que eu não
tivesse vontade de fazer isso quase nunca mesmo. Meia hora depois de me
trancar no quarto, Sissa e Nanda apareceram na casa da Zuleide me
chamando para dar uma volta e papai trocou algumas palavras com as duas,
mas não consegui escutar o que era. Ele logo me falou que eu podia sair com
elas. Nem olhei para onde minha mãe estava e, ainda chateada, saí de casa
acompanhando Sissa e Nanda.
Com os eventos inesperados daquela manhã, acabei nem dando uma
olhada no celular. Tirei-o do bolso naquele momento e logo vi a mensagem
que Luca havia mandado na noite anterior. Meus olhos se arregalaram
enquanto os passava pelo texto. Não acreditava no que estava lendo! A mãe
da Luca havia descoberto tudo! Respondi a mensagem pedindo para ela me
ligar o mais rápido possível, precisava saber como aquilo aconteceu.
— Está tudo certo, Betina? — Sissa questionou ao perceber minha
inquietação com a mensagem.
— Tudo sim. — Respondi rapidamente. Não me sentia à vontade
para compartilhar um segredo tão íntimo de uma das minhas melhores amigas
para garotas que ela nem conhecia. Mandei um SMS para Beca perguntando
a ela se sabia de alguma coisa. Eu estava superpilhada com aquela história,
mas também não fazia a mínima ideia de como ajudar a Luca. O pior era
pensar no que a tia Judith poderia fazer por ter descoberto que a filha perdeu
a virgindade aos quinze anos. Se minha mãe parecia um general ao impor
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suas decisões, a mãe da Luca era três vezes mais intensa em suas ordens e
quatro vezes mais nos castigos que aplicava à filha. Não é à toa que Luca
vivia com medo da mãe.
— Chegamos! — Minhas lindas primas (sem zoação!) anunciaram
alegremente nossa chegada à pista de skate e enquanto eu já passava uma
olhada geral para tentar detectar algum gatinho, elas foram falar com alguns
conhecidos. Só que eu fiquei tão compenetrada na missão de encontrar um
menino bonito para trocar olhares — como em todo lugar que eu ia — que
nem olhei por onde eu andava e…
AI, MEU PÉ!!! — Foi o grito interno que dei, enquanto fazia uma
cara de que estava tudo bem depois de tropeçar/quase capotar numa pedra
enorme e intrometida! O que ela tinha de estar fazendo ali justamente naquele
momento?! Ai ai ai, agora t-o-d-o mundo estava me olhando e, pior, com os
lábios presos, segurando o riso! Que vergonha!
“Tá vendo, você não queria trocar olhares com os meninos? Agora
todos estão olhando pra você, é só escolher!”, pensei comigo mesma e não
consegui conter o riso. Isso pareceu fazer as pessoas se sentirem à vontade e
soltarem as risadas também. Então fiquei ali uns segundinhos curtindo meu
momento king kong com a galerinha skatista de Gruta Alta, até que fui me
assentar com as meninas ao lado da pista — dessa vez olhando muito bem
por onde passava.
Acabei percebendo em minha entrada triunfal na pista de skate que
não havia nenhum garoto interessante para dar uma olhada, e já que eu estava
boiando nos assuntos das minhas primas, fiquei observando a rua e as pessoas
que passavam por ela — programão para uma segunda ensolarada de férias,
hein?!
Passado algum tempo, um cachorrinho lindo de orelhas malhadas e
corpinho branco apareceu perto de onde estávamos e, como amo cãezinhos,
levantei-me para brincar com ele. O dono não parecia estar por perto.
Empolgada com a farra que o filhote estava fazendo, acabei seguindo a
direção para onde ele ia a largos saltos. Quando percebi, estava uma rua após
a pista de skate correndo atrás dele. Virei-me para voltar para onde as
meninas estavam, porém meus olhos conseguiram captar de relance por sobre
a cerca da casa da esquina algo bem conhecido na outra rua… Um certo
cabelo loiro com curtos e largos cachos nas pontas...
Não resisti e cheguei mais perto da cerca da casa, me abaixei um
pouco e fiquei observando-o andar de skate. Por que ele estava andando na
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rua e não na pista, que era tão próxima dali? Não demorou muito e Noah
começou a seguir em frete. Acompanhei-o com os olhos até onde pude, mas
logo ficou difícil continuar a espiá-lo de onde eu estava, então tive que
contornar a esquina e ir devagar pela rua, torcendo para ele não olhar para
trás e me ver. De repente ele virou. Para o lado, não para trás (Ufa!) e entrou
num lugar. Continuei andando a passinhos curtos até chegar aonde ele havia
entrado. Praticamente toda a extensão da lateral direita da rua era tomada por
uma cerca alambrada. Do lado de dentro, inúmeras árvores impediam a visão
do que tinha por trás daquela cerca.
— Por onde será que ele entrou? Deve ter alguma passagem por
aqui… — Pensei alto ao andar pela calçada procurando uma maneira de
descobrir que lugar era aquele.
— Achei! — Dei vários tapinhas em minha boca após falar com tanta
alegria (e volume) que tinha encontrado a entrada. Noah poderia ter me
ouvido e eu estragado tudo! Parei por um segundo, esperando os batimentos
cardíacos se acalmarem e me aproximei da abertura que ele entrou. Tinha
muitos galhos e bastante mato atrapalhando a vista, mas eu consegui enxergar
o lugar que, aliás, me pareceu bem familiar… Era o Campo do Lago, onde a
Sissa e Nanda haviam me levado dois dias antes! Pelo jeito, a entrada ao lado
do portão principal não era a única abertura clandestina daquele lugar.
O que o Noah estaria fazendo ali dentro? Ah, agora que eu estava
amando dar uma de espiã é que eu não ia embora sem saber! Passei pela
abertura, levantei alguns galhos que estavam em minha frente e finalmente o
vi. Ele estava sentado em cima do skate olhando para o lago, de costas para
onde eu estava. Senti uma agitação diferente crescer dentro de mim ao fitá-lo
e fiquei suspirando internamente, toda derretida. Até que algo bem pequeno e
levado me lembrou de que eu não estava sozinha ali. O cãozinho com quem
eu estava brincando na rua veio comigo e eu nem reparei! E naquele exato
momento, o danado pulou a abertura na cerca e começou a brincar com o
mato. Meu olhar de desespero tinha que fazê-lo parar ou eu teria um ataque
do coração a qualquer instante! O Noah poderia ouvir o barulho e olhar para
trás e então, ai de mim. Outro mico. Foram segundos muito tensos aqueles
em que o cachorro não queria parar de se mexer, então decidi sair dali antes
que algo pior acontecesse…
— BUM!
Aconteceu…
— Au!Au!Au!
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Não acredito. Aconteceu…


— Betina?!
Ai. Aconteceu mesmo.
— O que houve?! Quer uma ajuda?
O que a gente faz em um momento como esse? Aceita a ajuda para se
levantar ou permanece caída no chão e chora? Queria que aquele lago
estivesse do meu lado, que era só me arrastar para dentro dele e ficar
escondida lá. Se bem que como as águas são claras, não ia adiantar muita
coisa. Então ergui meu braço e o Noah me ajudou a levantar.
— O cachorrinho te deu uma rasteira?! — Disse, lançando um
sorrisinho torto que me deixou com mais vergonha ainda.
— É. — Respondi levantando-me e batendo a terra que ficou grudada
na bermuda. Coloquei o foco nisso, para não precisar olhar para ele. O que eu
ia falar agora? “Oi, estava aqui de boa te espionando por trás das árvores e
trouxe um cãozinho para me fazer companhia.”
— Não sabia que você conhecia esse lugar. — Noah falou e, apesar
de eu não estar olhando para ele, sentia seus olhos sobre mim.
— Eu conheço sim, minhas primas já me trouxeram aqui.
— Legal! Você também entra pela passagem secreta. Pensei que só
eu soubesse sobre ela.
— Pois é… — Acabei de me ajeitar e passei a mexer nas unhas para
não precisar encará-lo.
— Veio passear por aqui com o cãozinho?
— É… Hum… Hã… Sim. — Gaguejei e o vi abaixando levemente a
cabeça, dando a impressão de que queria ver meu rosto. Criei coragem e
ergui os meus olhos pela primeira vez. Ele estava com uma expressão
tranquila. — Vim passear com o danadinho e ele não parou de se mexer um
segundo, sabe como é cachorro e ainda mais filhote, né, bem estabanado. Que
coincidência te encontrar aqui, justamente na hora que eu vim! — Disse com
a cara mais lavada do mundo, mas com o coração quase saindo pela boca.
— É verdade! Muita coincidência. Mas está tudo bem com você? Se
quiser posso te acompanhar até em casa, para que você vá ao posto de saúde
ver se está tudo ok.
Hum, até que não seria má ideia…
— Não precisa, obrigada. Está tudo bem comigo, sim. Agora acho
que vou embora, desculpa ter te atrapalhado. — Minha voz tremulava em
algumas palavras, demonstrando todo meu embaraço. Ele permanecia de pé,
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imóvel como um soldado, fitando-me com olhar firme e sereno.


— Não tem problema. Eu estava aqui orando, conversando com o
Senhor, sempre venho pra cá fazer isso. Mas ninguém sabe, aliás, sabia. —
Ele soltou uma risada e eu o acompanhei. — Podemos ter esse segredo entre
nós?
“Com certeza, Noah! Quantos você quiser!”, pensei animadamente,
mas respondi, o equilíbrio em pessoa:
— É claro. Agora vou lá, pra não te atrapalhar mais. Tchau! — Disse
e fui em direção à cerca.
— Betina!
Voltei-me para trás e por um momento imaginei que Noah talvez
aproveitasse a oportunidade e fosse me chamar para passear em volta do lago,
eu e ele, ele e eu…
— Não vai levar seu companheiro?!
— Ah, é!
Sem graça, peguei o cachorrinho no colo e saí do campo, ainda
decepcionada com a falsa esperança de que ele demonstrasse interesse por
mim. Enquanto andava pela rua voltando para a pista de skate, eu não sabia
se ria ou chorava. Dois vexames num dia só era demais, não é mesmo?! O
Noah àquela altura devia me achar uma completa idiota. Eu caí enquanto o
espionava, c-a-í, levei um tombão, paguei um micão e ainda saí com a bunda
doendo, mas tive que falar que estava tudo bem para não piorar as coisas.
Agora com que cara eu ia olhar para ele no acampamento?! Quer dizer, que
acampamento? Depois da discussão feia com meus pais (ou melhor, minha
mãe) naquela manhã, certamente eu ficaria trancada no quarto no próximo
fim de semana, curtindo minha fossa, enquanto Sissa, Nanda e o Noah
estariam no meio da floreta se divertindo pra valer. Não que essa parte de
mato e bichos silvestres me agradasse muito, mas o que eu não fazia quando
estava interessada em um garoto?!
“Ai, que vergonha! Alguém me dá uma borracha para apagar o
último acontecimento, por favor?”, falei comigo mesma já me aproximando
da pista de skate. Sissa e Nanda vieram correndo ao meu encontro:
— Onde você estava? — A voz de Sissa estava um pouco tensa.
— Nós estávamos muito preocupadas! Onde você se enfiou?! A
gente ficou um tempão te procurando! Não faz isso de novo! — Nanda
despejou todas essas frases em cima de mim, ao mesmo tempo em que
passava as mãos em meu rosto, olhava minhas mãos e mexia em meu cabelo
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para ver se realmente estava tudo bem.


— Eu fui dar uma passeada com esse cãozinho!
— E avisar pra quê, não é?
— Oh, me perdoem. — Falei abraçando as duas. — Acabei virando a
rua de trás brincando com ele e pelo jeito demorei um pouco mais do que
devia.
— Um pouco mais?! Já estava quase chamando tia Gláucia!
— Nossa! Não! Chamar minha mãe seria pior que ligar pra polícia!
Demos risada e voltamos para casa, mas não sem antes entregar o
cãozinho ao seu dono. As meninas sabiam quem era, aliás, o que daquela
cidade minhas primas não sabiam?
O sol a pino deu à volta para casa um ritmo lento. O calor do meio-dia
deixou-me com sede e aumentou a minha fome. A matemática era simples:
Betina com sede + Betina faminta = Betina mal-humorada. Seguia os dez
minutos de percurso até a casa da Zuleide da forma ideal para quando estava
com os ânimos não muito bem-dispostos: de boca fechada.
— Olha, chegou novidade na loja da Lurdinha! — Nanda soltou um
gritinho alegre e correu para uma loja no outro lado da rua. Sissa foi atrás e
eu respirei fundo. Cheguei até a tal loja e chamei-as para irmos embora. Eu
adorava passar tempo em lojas de roupa, mas não quando estava ensopada de
suor e trêmula de fome.
— Chegou cada biquíni lindo, vem aqui ver, Betina!
Suspirei outra vez e passei a língua pelos lábios secos.
— Eu estou com fome e com sede, será que não poderíamos voltar aqui
depois? — Tentei parecer calma, mas por dentro sentia a irritação crescer a
cada cara de espanto que as duas faziam ao ver um biquíni novo.
— Você trouxe roupa de banho? Vai precisar para o acampamento. —
Nanda comentou erguendo uma tanga horrível cor laranja com babados dos
dois lados.
— Eu não vou ao acampamento. — Não pensava em revelar isso de
forma tão inesperada, mas acabou saindo. As duas pararam imediatamente
sua inspeção pela bancada de biquínis e me observaram como se eu tivesse
dito algo muito extraordinário.
— Betina, olha só, ontem o Noah conversou com você e a senhorita
confirmou que vai ao acamp’s! Não aceito que volte atrás agora. — Nanda
colocou uma mão na cintura e fez um bico tão engraçado com os lábios que
se meu humor estivesse um pouquinho melhor eu teria achado graça.
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— Aceitar eu também não queria, mas o que fazer quando se tem uma
mãe estressada com o poder coercitivo todo em suas mãos?
Acho que acabei desabafando além do que devia, porque até a dona da
loja parou o que estava fazendo e olhou-me com compaixão e curiosidade.
Minhas primas largaram os sutiãs e tangas de biquíni no mesmo instante e
vieram em minha direção, puxando-me para fora da loja e gerando em mim
vários “graças a Deus”. Por que não tinha dito aquilo antes? Assim já
teríamos ido embora há tempos.
— Sua mãe não deixou você ir? — Sissa perguntou cautelosa.
— É certo que não. — E assim contei toda a discussão do início do dia.
— Às vezes só queria que minha mãe fosse mais compreensiva comigo. Esse
jeito dela todo autoritário me dá nos nervos!
— Mas e você, é compreensiva com ela?
Olhei para Sissa pronta para me auto justificar, mas não tive o que
responder. Balbuciei um “Sei lá” e fiquei quieta.
— Sabe o que eu acho? Devíamos ir até a Gláucia e Antônio e pedir
perdão por ontem! Pisamos na bola por não termos ligado para ele nos buscar
e precisamos reconhecer isso. — Nanda falou para Sissa, que concordou
balançando a cabeça.
— Mas hoje de manhã vocês já não fizeram isso? Eu vi que
conversaram com meu pai.
— Na verdade, não. Ele até comentou conosco sobre termos voltado
sozinhas e esse ter sido o motivo da discussão de vocês hoje cedo, mas não
nos desculpamos nem nada.
— Ah, deixa disso, Nanda! Pedir desculpa pra quê? Se eu for pedir
perdão cada vez que dou uma mancada com meus pais, não vou fazer outra
coisa da vida. — Cruzei os braços e soltei uma risada. As duas permaneceram
sérias.
— O que você disse me faz lembrar de Jesus. — Comentou Sissa. —
Nós pecamos todos os dias, mas mesmo assim Ele quer que a gente se
arrependa e peça perdão por cada um de nossos erros. Mesmo não querendo,
às vezes acabamos falhando e isso porque somos imperfeitos, mas aceitar
viver errando ou buscar mudar é uma decisão que cada um tem que tomar. Os
nossos erros nos afastam de Deus, mas o perdão dEle nos aproxima.
Pensei em como o que Sissa falou tinha a ver com a situação com os
meus pais e ela pareceu ler o que se passava em minha mente:
— Viver pisando na bola com seus pais ou procurar obedecê-los é uma
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decisão sua. E ainda que escolha a segunda opção, vai acabar falhando vez ou
outra, e nesses momentos é superimportante que haja pedido de perdão. Não
se esqueça: nossos erros nos afastam de Deus e às vezes das pessoas, mas o
perdão sempre aproxima.
Sissa passou o braço roliço sobre meu ombro e emitiu um sorriso
aberto, daqueles que faziam seus olhos brilharem. Mais uma vez fiquei sem
resposta, porém não me preocupei muito, estávamos em frente ao portão
branco da casa da Zuleide e sentia como se tivesse um buraco negro no lugar
do meu estômago, precisava entrar para almoçar. Quando já estava dentro da
varanda, prestes a fechar o portão, Nanda segurou meu cotovelo esquerdo.
Girei o corpo para ela, um pouco incomodada com o toque inesperado.
— Bê, às vezes a gente quer muito que as pessoas mudem, mas talvez
quem precise mudar, em primeiro lugar, sejamos nós.
Em seguida, ela e Sissa se despediram e foram embora. Não sei por que
não quiseram almoçar na Zuleide aquele dia, apesar de terem sido
convidadas. De certa forma, eu gostei disso, assim pude tampar a cratera que
se formara em minha barriga e mastigar em paz, refletindo sobre o que elas
haviam acabado de dizer. Embora eu não tivesse solicitado nenhuma sessão
de conselhos grátis e o resultado disso ser um pouco de raiva pela intromissão
das duas, não conseguia parar de pensar no que ouvi. O que, é claro, me
deixou mais zangada ainda.

***
— Mas, amiga, por que você não negou, como te falei?! —
Esbravejei, achando lindamente sábio o que eu havia aconselhado Luca a
fazer.
— Ah, Betina, eu neguei, mas minha mãe me pressionou muito, disse
que ia me levar ao ginecologista e que ela saber pela boca do médico seria
pior pra mim... Foi um horror! — Luca estava muito assustada.
— Poxa, amiga... — Comentei, sem ter muito o que dizer.
— Ela me bateu, Bê. — A voz da Luca falhou e pude ouvir as
primeiras fungadas. — Estou com uma marca horrorosa no rosto de uma
cintada que ela me deu. E ainda me proibiu de entrar na internet por tempo
indeterminado e disse que vai me trocar de colégio, pra eu não ficar perto do
Pedro...
— O quê?! — Gritei. — Mas aí você vai ficar longe de mim e da Beca
também!
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O choro dela se intensificou. Meus olhos já se enchiam de lágrimas


pelo sofrimento da minha amiga de infância.
— Ah, como eu queria estar aí para te dar um abraço bem apertado! —
Falei solidariamente.
— Acho que um abraço bem apertado não seria boa ideia, por conta dos
hematomas. — Riu baixinho, parecendo enxugar as lágrimas.
— Mas ela te machucou tanto assim?! — Questionei num misto de
preocupação e indignação.
— Não tem nenhum ferimento grave, só as marcas do cinto em várias
partes do meu corpo. E está ardendo um bocado.
Ai! Por que a tia Judith fez aquilo?! Se eu a visse naquele momento, ia
falar poucas e boas, ah, se ia! E ela ainda queria tirar a Luca do colégio que
estudamos desde o maternal! Inadmissível!
— Se você quiser eu ligo pra sua mãe, amiga, tento conversar com el...
— Não, Betina. — Fui abruptamente interrompida. — Ela está
irredutível. Já chorou várias vezes e fica se perguntando onde errou comigo...
E, de quebra, por vezes dá uns surtos e começa a gritar e falar sem parar em
meu ouvido. Está um saco ficar em casa.
— Vai pra casa da Beca.
— Estou de castigo. Só saio de casa se for com ela ou com meu pai.
Continuei conversando com a Luca pelo telefone por quase uma hora e,
apesar de falar muito, não pareci acrescentar nada de bom naquele momento.
Só meu “ombro” amigo mesmo, que estava mais para “ouvido” amigo.
Luciana Carrara Santos, vulgo Luca, uma menina tão inteligente e
cativante, com o sorriso sempre aberto (principalmente antes de dar uma
gargalhada ao zoar alguém — o que ela fazia, relativamente, sempre). Seu
lindo cabelo escorrido e avermelhado montava um belo quadro com o rosto
branquinho cheio de sardas, diferenciando-a de qualquer garota da escola e
fazendo-a chamar muita atenção dos meninos. Sua beleza exótica atraía
vários garotos, mas o único que ela realmente gostava era o Pedro. Eu sabia
que ele vinha tentando transar com ela há bastante tempo, mas ela sempre
dava um jeito de fugir, assim como eu com o Cauê. Os dois eram amigos e
tinham dezesseis anos, adoravam contar vantagem de tudo que faziam um
para o outro, não duvidava nem um pouco de que tivessem feito alguma
espécie de aposta para ver quem conseguiria nos levar pra cama primeiro.
Pelo visto, Pedro ganhara o “desafio”. E por falar em Cauê, ele nem deu sinal
de vida naquela semana, o que de certa forma era bom, pois agora meus olhos
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estavam voltados para certo skatista de olhos cor de mel...

***
Cheguei em casa após um programa chatão de família: visitar
parentes até de oitavo grau em vários vilarejos de Gruta Alta. Me cansei de
ouvir tanto “Quer um café?”, “E broa de milho? Aceita?”, “Nossa, como está
uma moça!”, “Quando te vi ainda era uma pirralhinha”, “E os
namoradinhos?” e por aí vai... Minha mãe, durante nossa peregrinação, de
vez em quando me lançava uns olhares fuziladores para eu melhorar minha
cara, que não estava nem um pouco boa.
Me senti bastante aliviada quando entrei no quarto em que estava
hospedada. Para minha surpresa, havia um pacote pequeno, na cor lilás, em
cima da cama. Voei em cima do pacote, louca de curiosidade, como sempre.
Mas pensei um pouco e talvez não fosse para mim, embora estivesse
dormindo naquela cama aqueles dias. Decidi perguntar à dona da casa antes
de dar outro fora, já que estava ficando craque no quesito pagação de mico.
— Não sei o que é isso, Betina. Deve ser pra você. — Zuleide
respondeu, a indiferença em pessoa. Mediante o que entendi por aval da dona
da casa, com toda delicadeza — pra não dizer o contrário — rasguei o pacote
ao meio fazendo o maior barulho e deixando cair pedaços no chão. Logo
avistei um CD com o rosto de uma bela moça estampado na capa e um
bilhete, que dizia:

“Então, menina, não vá desanimar


Feche os olhos e você vai encontrar
A força que precisa para alcançar
O céu em você vai apostar
Se cair levante e caminha
Você é linda e tem Companhia
Você é forte, só não sabia.

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[...]
Quando elas decidem acreditar
Elas são fortes e sabem sonhar
Imperfeitas princesas feitas de realeza
Que em suas histórias escolheram lutar.”[2]

Beijos das primas que estão aprendendo a amar você, Nanda e Sissa.

Minha boca se abriu e eu sentei na cama, sem reação. Por que raios
Clarissa e Fernanda me dariam um presente?! Tudo bem que nos últimos dias
estávamos bem próximas, mas elas ainda não haviam subido o estágio de
primas-colegas-fofas para best-friends-forever. Notei que Nanda havia me
passado pelo celular diversas músicas daquele CD no primeiro dia que nos
encontramos. Aos poucos, várias imagens dos últimos dias começaram a
invadir minha mente e eu recordei frases, olhares e atitudes que Sissa e
Nanda tinham e que não eram nada comuns para adolescentes. Apesar de vez
ou outra me deixarem irritada com as suas perguntas e comentários “que
ninguém faz”, como no dia anterior quando citaram Jesus para comentar
sobre meu relacionamento com meus pais, mesmo assim elas eram diferentes,
especiais. Enquanto eu ria das pessoas, elas riam pras pessoas, enquanto eu
reclamava de tudo, elas agradeciam por tudo, enquanto eu paquerava os
meninos, elas... Ah, isso eu já não sabia, porque não comentaram em
momento algum sobre nenhum boy. O que de fato também era estranho.
“Hum. Duvide-o-dó que elas não dão uns pegas por aí. D-u-v-i-d-o”.
Mas, enfim, a despeito das minhas suspeitas sobre a vida amorosa das duas
primas-fofas-que-eram-bregas-mas-não-são-mais, o fato é que: será que era
por causa de Jesus que elas eram tão diferentes daquela maneira? O Noah
também era muito diferente e sempre vivia na igreja. Devia ser a igreja deles.
Passei o resto da tarde escutando o CD. Gostei bastante, as
músicas falavam de Deus como se Ele fosse nosso amigo, alguém que está
perto e não do jeito que eu costumava pensar, como um velho turrão que nos
castiga quando não o obedecemos. Entre uma música e outra, ponderava
sobre a mensagem de domingo à noite na igreja, na oração que recebi de
Noah, no papo na sorveteria e em tudo que eu havia sentido aquele dia.Ainda
resistia à ideia de que talvez Deus tivesse falado comigo, porque eu
simplesmente não acreditava que Ele pudesse falar com as pessoas, reles
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mortais, Ele sendo tão grande e poderoso, assentado em Seu trono no Céu.
Depois de escutar o CD umas três vezes seguidas, resolvi desligar o
aparelho de som. Guardei o disco com muito cuidado em minha mala e,
enquanto procurava um lugar para colocar o bilhete, meus olhos passaram
por minha bíblia, que estava jogada no chão, ao lado da mala. Olhei para o
outro lado, em busca da minha agenda, mas não a encontrava de jeito
nenhum. Sem outra opção, peguei a bíblia e abri aleatoriamente para guardar
o bilhete. Dois versículos grifados na cor verde-limão me chamaram atenção
nas páginas que se abriram e resolvi ler:

“Como o Pai me amou, assim eu os amei; permaneçam no meu amor. Se


vocês obedecerem aos meus mandamentos, permanecerão no meu amor,
assim como tenho obedecido aos mandamentos de meu Pai e em seu amor
permaneço.”
João 15.9-10
A primeira coisa que veio em minha mente após ler esse trecho foi:
Quem marcou esses versículos em minha Bíblia? Porque eu não fui! E logo
depois, li novamente. E outra vez. Algo naqueles versículos era-me familiar...
Sim! A obediência. Sissa falou que obedecer aos meus pais era uma escolha
que eu deveria fazer. Eu já tinha tempo de igreja suficiente para saber que
quem disse aquelas palavras em João foi Jesus e Ele estava falando que
obedecia aos mandamentos de Deus, Seu Pai, e dessa forma, permanecia no
amor dEle. Minha mente linkou essa verdade com uma frase de Sissa: nossos
erros nos afastam de Deus e às vezes das pessoas, mas o perdão sempre
aproxima. Eu não pedia perdão nem aos meus pais nem a Deus. Por nada. Eu
obedecia aos meus pais mais do que a Deus e isso sob pressão psicológica ou
ameaça iminente de castigo, não para “permanecer no amor” deles e muito
menos no dEle.
Será que seguir uma vida firme em Deus era isso? Permanecer no
amor dEle através da obediência? Peguei o bilhete escrito à mão e li outra
vez. Meus olhos pararam na frase “Quando elas decidem acreditar” e ali
ficaram por um tempo. Meu coração, sempre tão protegido por sua capa
autossuficiente, permitiu-se ser aberto um pouquinho, questionando-me se eu
estava disposta a acreditar no que ouvi nos últimos dias. Algo me dizia que se
a resposta fosse sim, eu nunca mais seria a mesma.

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Capítulo 5 — O Acampamento

— Oi. — Encostei o corpo no batente da porta do quarto ao lado do


meu e segurei a maçaneta da porta entreaberta. Minha mãe estava
obedecendo à sua mania excessiva por arrumação e organizando por tipo e
cores todas as roupas da mala que dividia com papai. Levantou olhos
enigmáticos e analisou-me.
— Posso falar com você? — Perguntei receosa. Não havíamos
trocado mais do que algumas míseras frases desde a briga do dia anterior.
— Sim. Sente-se aqui, também preciso te dizer umas coisas. — Ela
apontou para a cama de casal e eu sentei, como se a mulher que estivesse em
minha frente fosse uma completa estranha. Sempre experimentava essa
sensação incômoda quando era obrigada a conversar com mamãe após um
conflito. A única coisa diferente dessa vez é que não havia obrigação me
movendo a fazer nada. Resolvi escutar o conselho das minhas primas e em
vez de só querer que minha mãe mudasse seu jeito pavio curto de ser (o qual
eu havia puxado e muito!), decidi por tentar agir diferente. Tentar era um
bom começo, embora eu não pudesse garantir que me tornaria a super-filha-
exemplo-para-todos-os-filhos-da-face-da-Terra.
— Foi mal por ter gritado com você ontem. — Falei olhando para o
chão.
— Tudo bem, Betina. Você sempre faz isso mesmo.
Senti como se uma faca decepasse todo o resto de vontade de ser uma
filha melhor.
— Mas de todo jeito, também preciso me desculpar com você. Saí
gritando feito uma louca e nem deixei você falar direito.
Aí foi a minha vez de pensar “você sempre faz isso mesmo”. Minha
boca coçou para falar, mas pelo bem geral da paz na casa da Zuleide resolvi
ficar calada.
— Reconheço que às vezes exagero, mas é para o seu bem. Você
sabe que eu morreria caso algo de ruim acontecesse com você.
— É, eu sei. — Murmurei baixinho. Como nenhuma das duas falou
mais nada, levantei e fui saindo.
— Você vai.
Virei-me, já quase fora do quarto, interrogando-a com os olhos.
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— Ao acampamento. Você vai.


— Você está falando sério? — Perguntei incrédula. Ela balançou a
cabeça afirmando e tentou manter a atitude firme, mas eu percebi claramente
o sorriso preso por trás dos seus lábios fechados.
— Ai! Não acredito! — Dei um grito e com um salto cheguei até ela,
abraçando-a exageradamente. Todo desconforto de minutos atrás foi embora
de rompante.
— Zuleide me passou a ficha completa desse pessoal aí e acho que
vai ser bom pra você passar alguns dias com eles.
— Mãe, eu te amo! — Tasquei um beijão na bochecha dela, que
corou imediatamente.
— Você ama o meu “pode”, isso sim! — Ela deu um tapinha nas
minhas costas e eu saí do quarto cantarolando como se tivesse ganhado o
melhor presente da minha vida.
O resto da semana seguiu-se com bastante expectativa e preparativos
para o acampamento. Acabei me encontrando pouco com Nanda e Sissa
naqueles dias, porque elas estavam muito envolvidas ajudando os líderes com
a organização do acampamento, e para quem, quando havia chegado, não
suportava a ideia de ficar perto delas, até que eu estava sentindo muita falta.
Mas quem de fato não saía da minha mente era o anjo. A ociosidade na casa
da Zuleide colaborava para que eu pensasse em Noah o dia inteiro. Meus
olhos trabalharam para capturar cada detalhe de seu rosto enquanto estava
perto dele e isso me ajudou a repassar incansavelmente sua imagem em
minha cabeça naqueles dias em que vê-lo e estar perto dele tornara-se o maior
motivo para eu ansiar ir a um acampamento no meio do mato com alta
probabilidade de dar de cara com bichos amedrontadores.
Estava desesperada por saber mais sobre Noah, passei uma tarde
inteirinha tentando conectar a internet no celular para procurá-lo no
Facebook, mas nada fez aquele sinal funcionar! Eu até conseguia mandar e
receber mensagens de texto e ligações, mas internet que era o que eu mais
precisava? Nada! Por falar em celular, já estava quase no fim da semana e
fazia dias que Luca havia me ligado e não deu mais notícias. Talvez a tia
Judith tivesse confiscado o celular dela. Ou talvez não. Resolvi mandar um
SMS.

— Amiga, me dá um sinal de vida! Como você está? Saudades


imensas e vê se não some!
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Longas horas se passaram e eu continuei sem resposta. Enquanto


isso, resolvi separar as roupas que levaria para o acampamento. “Hum... vou
passar quatro dias lá, acho que umas oito blusas está bom, né? Ai, mas vou
levar dez por precaução!” E assim fui, conversando comigo mesma durante
um bom tempo. Em determinado momento, minha mãe entrou no quarto.
— Que bagunça é essa?! — Questionou esbugalhando os olhos
exageradamente. Até parece que ela já não estava acostumada com aquela
cena (o que, certamente, atingia em cheio o profundo do seu ser neurótico por
organização).
— Estou escolhendo as roupas que vou levar para o acampamento,
mãe.
— Hum... Você está bem animada, né?
— Com certeza! Acho que vai ser m-u-i-t-o legal! — Levantei os
braços e dei alguns pulinhos enfatizando minha empolgação. Mamãe pegou
duas calças que estavam no canto da cama e colocou-as em seu colo para
poder sentar-se.
— Você está gostando das novas amizades que fez aqui, não é mesmo?
— Sim, mãe, as minhas primas são bem legais.
— Mas eu não estou me referindo somente às suas primas.
Observei-a desconfiada ao perceber a tonalidade diferente na palavra
somente.
— Qual é mesmo o nome daquele menino, o... Noah? Isso, Noah.
Por que cargas d’água ela usou a tonalidade de voz diferente outra
vez, ao pronunciar o nome do anjo?!
— O que tem ele? — Respondi bruscamente. Ela respirou fundo,
resignada.
— Bê, minha linda. — Ih, quando ela me chamava assim... — Lembre-
se de que vamos embora daqui a alguns dias e que depois demoraremos
muito tempo para voltar. Guarde seu coração.
— Por que você está falando isso, mãe? — Retorqui muito cabreira.
— Porque eu já tive quinze anos e sei tudo que se passa nesse poço de
emoções chamado coração quando uma menina se interessa por um garoto.
Só peço que escute o que eu disse. Guarde seu coração. — Dito isso,
levantou-se e, antes dela sair, falei baixinho:
— Não se precisa guardar o coração quando não se tem a intenção de
envolvê-lo em nada.
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— Nossas intenções podem ser as melhores, mas nem sempre


prevalecem. Tome cuidado. — Dito isso, saiu do quarto e eu fiquei ali,
questionando-me o que tudo aquilo significara.
Mesmo sendo autoritária, geniosa e na maioria das vezes me
afastando mais que aproximando, precisava reconhecer, dona Gláucia não
deixava de lado seus “deveres de mãe”. É daquele tipo que faz de tudo pelos
filhos, acorda cedo para preparar aquele café da manhã caprichado, olha os
cadernos praticamente todos os dias para saber se tem dever de casa ou
bilhete da professora, comparece em todas as reuniões de pais, conta histórias
para o Guto antes de dormir... Mas também é bastante misteriosa, às vezes.
Quando quer me dar algum conselho, se não for à base do grito, geralmente
dá o recado entrelinhas, como o que tinha acabado de acontecer.
Ela deixou bem claro que ao falar sobre guardar o coração estava se
referindo ao Noah. Será que eu tinha deixado tão na cara assim que havia me
interessado por ele? Ela deve ter puxado a ficha inteira do garoto com a
Zuleide. E até que ela foi esperta, já que neste momento devia estar sabendo
mais sobre ele do que eu. Voltei a separar as peças de roupas e, como
normalmente eu fazia, não me interessei em atentar ao conselho da minha
mãe e desfiz a lembrança daquela conversa em minutos.

***

A calçada em frente à igreja estava fervilhando de adolescentes e


jovens. Eles conversavam animadamente uns com os outros, colocavam as
malas no bagageiro do ônibus, tiravam selfs, cantavam uma música que
haviam criado para a viagem... Um clima muito festivo e alegre enchia a rua
naquela fresca manhã de sábado. Eu ficava na ponta dos pés e esticava o
pescoço, tentando ver... Bem, vocês já sabem quem. Enquanto minha procura
seguia sem sucesso, fui surpreendida por minhas primas, que chegaram
jogando as malas no chão e me abraçando.
— Nem acredito que você vai para o acampamento com a gente, Bê! —
Nanda passou os braços por meu pescoço e apertou.
— Eu estou amando participar disso, Nanda. — Respondi tentando me
desvencilhar do abraço um pouco, digamos, sufocante.
— E aí, quais músicas têm escutado nos últimos dias?! — Sissa
sondou com um sorrisinho no canto dos lábios.
— Vocês são umas lindas! Adorei o CD! Passei as músicas para o meu
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celular e não consigo parar de ouvir!


— Ebaaa! — As duas gritaram e deram pulinhos de alegria.
De repente toda a bagunça foi diminuindo e pudemos ouvir a voz que
eu mais almejava escutar desde a última desastrosa vez em que estive com o
dono dela.
— Bom dia, galera! — Gritou Noah e todos responderam em coro. —
Hoje é um dia muito especial, porque finalmente chegou a hora de irmos para
o acampamento que tanto sonhamos e oramos nos últimos meses. Espero que
todos estejam bem animados!
Ouviu-se um frisson e todos vibraram com as palavras dele. Noah
orou e, aos poucos, a galera começou a entrar no ônibus. Enquanto os outros
subiam, meus pais me passaram um milhão de instruções para eu não ficar
sozinha, para qualquer coisa ligar, me deram uma lista cheia de contatos
telefônicos de parentes da cidade para o caso de não conseguir falar com eles
e por aí vai. Já na porta do ônibus, os dois me agarraram e me beijaram
insistentemente, até eu dizer para eles pararem porque todos estavam olhando
— inclusive Noah, que ria divertidamente da cena.
Assim que me soltaram, subi rapidamente no ônibus, doida para saber
qual era o lugar do Noah para eu sentar do lado, assim, por coincidência,
sabe. Mas não consegui nem olhar os bancos direito e sentei no primeiro que
vi, porque a fila atrás de mim estava grande. Sissa e Nanda estavam à minha
frente e eu fiquei um tempo sem que ninguém sentasse ao meu lado. Como
estava no assento da janela, vi que Noah estava do lado de fora resolvendo os
últimos detalhes da partida e eu quase orei pedindo a Deus para que ele se
sentasse ao meu lado.
Me arrependi profundamente de não ter orado. Matheus sentou ao meu
lado, colocou o cinto de segurança, espalhou as pernas e abriu um sorrisinho
maroto:
— Essa viagem inté o acampamento vai sê muito boa!
“Só se for pra você”, pensei e virei para a janela com cara de poucos
amigos. Vi quando Noah subiu para o ônibus e foi andando pelo corredor,
conferindo tudo. Quando me viu, abriu aquele sorriso capaz de fazer qualquer
uma perder o chão e falou:
— Que bom que você veio, Betina!
Me derreti com o comentário e nem consegui formular nada para
responder. Droga! O motorista ligou o ônibus e demos início à viagem.
Coloquei os fones de ouvido e apertei o play, não sem antes verificar a
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poltrona em que Noah estava, que era a mais próxima do motorista. O assento
ao lado dele estava vazio e quase me bati por não ter sentado ali. Meus
pensamentos de autopiedade foram repentinamente interrompidos quando o
ônibus parou e pôde-se ouvir um alto e longo “Ahhhh” dos passageiros. A
porta se abriu, e adivinha quem entrou toda desastrada e cheia de malas nas
mãos? A Thami.
Noah questionou:
— O que aconteceu? Você me mandou uma mensagem dizendo que
não iria mais!
— Resolvi ir de última hora. Olha, aqui tem um lugar vazio! — Disse
com a maior naturalidade do mundo e sentou-se ao lado de Noah, que ficou
um tempo olhando para ela, ao que parece, desacreditado com tamanha cara
de pau. O motorista teve que descer para guardar aquele monte de malas no
bagageiro e isso rendeu bons minutos de atraso na viagem.
Tirando os fatos de que de cinco em cinco minutos eu olhava para os
bancos em que Noah e Thami estavam sentados e a insistência de Matheus
em puxar assunto comigo a todo o momento, a viagem foi tranquila. Foram
quarenta e cinco minutos no balanço das estradas de terra da região de Gruta
Alta, repletos de músicas cantadas pela galera do fundão, que estavam
munidos de violão, cajón e pandeiro. Apesar de todo o barulho, tinha gente
que chegava até a babar de tanto dormir. Eu não era uma dessas, ainda bem!
Imagina se Noah olha pra trás e me vê dormind...
Meia hora depois:
— Oi, o que, onde estou?! — Acordei assustada.
— Chegamos ao sítio, Betina! — Matheus respondeu com bastante
entusiasmo e eu aterrissei bruscamente na realidade ao perceber que minha
cabeça não estava encostada na poltrona e sim em um lugar um pouco duro,
desconfortável... O ombro do Matheus! Tirei minha cabeça dali
imediatamente, fui tão rápida quanto o comentário dele:
— Gostô do travesseiro? Cê fica uma linda dormindo. — Soltou uma
risadinha. Estreitei os olhos ao me virar para ele e com uma expressão nada
amigável, rebati:
— Olha aqui, Matheus, me desculpe por ter dormido inconscientemente
em seu ombro, porque garanto que se eu tivesse percebido, não faria isso! E
outra coisa: espero que você não pense que isso te dá chances de ficar dando
em cima de mim, porque não dá! — Bufei, destravei meu cinto de segurança
e percebi olhos mirando-me de todos os lados. Acho que acabei falando alto
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demais.
— Então, pessoal, já podem descer. — Noah falou, após pigarrear.
Todos passaram a se movimentar rumo à saída e o foco saiu de mim e
Matheus. Noah estava de pé próximo à porta e ficou uns segundos olhando na
direção em que eu estava e depois desceu. Senti um frio percorrer-me por
dentro.
O sol das dez da manhã estava forte e pude constatar isso assim que
coloquei os pés para fora do ônibus. Enquanto aguardava a enorme fila para
pegar minha mala no bagageiro, fiquei bisbilhotando tudo que meus olhos
conseguiam alcançar — inclusive a Thami, que não desgrudava do Noah. “É,
pelo jeito vou ter concorrência nesse acampamento”, pensei e soltei uma
risadinha amarga.
Percebi em minha rápida análise que se o sítio fosse tão bonito
quanto a entrada dele, eu teria muitos locais bacanas para tirar altas fotos e
postar no Instagram. Depois que voltasse pra casa, é claro, já que internet era
artigo de luxo naquela roça. Enquanto notava os detalhes da linda e enorme
casa de dois andares de madeira que estava à minha frente, nem podia
imaginar o que me aguardava naqueles dias. Eu estava cheia de expectativa
com tudo aquilo e ao mesmo tempo indignada com a oferecida da Thami.
Mas, assim como eu amava ficar com o Cauê e mostrar para todas as meninas
da escola que eu era a mais bonita e popular, porque era comigo que ele
estava, naquele acampamento não seria diferente. Eu ia fazer a Thami morrer
de inveja quando me visse juntinha do anjo.
Eu, Nanda e Sissa pegamos nossas nada singelas malas e partimos à
procura do lugar em que dormiríamos nas próximas quatro noites. Ao
subirmos os degraus da larga e alta escada que nos levava a uma linda
varanda cheia de vasos de flores e banquinhos rústicos, já podíamos ouvir a
movimentação intensa vinda de dentro da enorme casa. Tão logo
atravessamos a ampla porta de madeira com detalhes em vidro, pudemos
notar adolescentes e jovens observando atentos as listas com os nomes na
porta de cada quarto. Alguns pulavam de alegria e se abraçavam por estarem
no mesmo quarto, outros saíam resmungando em busca da próxima lista.
Muitos já tinham se instalado em suas acomodações e agora estavam
descendo outra escadaria, que ficava ao fim do corredor, exatamente do lado
oposto da entrada.
— Onde eles estão indo? — Questionei curiosa.
— Provavelmente para o salão onde acontecerão os cultos. A abertura
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do acamps é daqui a dez minutos. — Sissa respondeu. Apertamos os passos


para encontrarmos logo nosso quarto que, pelo jeito, ficava no segundo
andar. Nanda foi à frente e gritou:
— Uhul! Estamos no mesmo quarto!
Eu e Sissa nos viramos uma para a outra e soltamos um “Yes” bem
vibrante. Mas todo meu entusiasmo se transformou em fúria quando percebi
que Thamires Lousada Arcanjo Moraes constava entre as integrantes.
Entramos no quarto, que não era muito grande e que comportava oito camas,
além de um armário. Escolhi a cama de baixo de um beliche próximo à
janela. Outras meninas foram chegando e se acomodando pelo quarto, qual
não foi minha surpresa que dentre uma delas estivesse uma magricela de
cabelo castanho claro até a cintura, olhos esverdeados e um nariz empinado
que faz bem jus à pessoa. E a danada era bonita. Por mais que minha
autoconfiança fosse até, de certa forma, exagerada, eu sentia uma pontinha
(está bem, sendo honesta, estava mais para a ponta de um iceberg) de
insegurança. Porém, não me deixava abater, afinal, meu plano de fazê-la se
morder de ciúme ao me ver com o Noah estava de pé.
— Não sobrou nenhuma cama embaixo?! Ai, que saco! — Thami
reclamou, ao notar que a única cama que sobrara era na parte de cima — e
em meu beliche, para completar. Ao lançar seu travesseiro na cama, olhou-
me com desdém. “Segunda vez que ela faz isso!”, rosnei mentalmente.
Minha fisionomia enfezada nem precisava de legenda, logo, Sissa percebeu e
me chamou para o salão de cultos.
— O que essa garota tem comigo?! É a segunda vez que a encontro e
ela me olha com cara de desprezo! — Desabafei, zangada. — Não sei por que
ela não queria minha presença aqui!
Sissa e Nanda se entreolharam. Elas pareciam se falar pelo olhar. Me
senti excluída.
— O que foi, meninas?! O que vocês sabem que eu não sei? —
Perguntei ao mesmo tempo em que pensava que no pouco que eu sabia sobre
a Thami, uma informação era importante: ela gostava do Noah.
— Bem... — Começou Nanda. — Nós já te falamos que ela é
apaixonada pelo Noah. Loucamente apaixonada.
— Sim, vocês já me disseram.
— E geralmente quando qualquer menina diferente se aproxima dele,
ela declara guerra.
— Mas eu não fiz nada! Nem demonstrei que estou a fim dele e... —
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Ixi! Tapei a boca imediatamente e esbugalhei os olhos. Burra! Se elas já


desconfiavam de algum interesse meu por ele, agora tinham certeza. As duas
riram-se à medida que eu enrubescia.
— Não precisa ficar com vergonha, prima. É normal as meninas se
interessarem por ele.
Claro! Lindo daquele jeito.
— Mas queremos te dar dois conselhos. — Prosseguiu Nanda. —
Primeiro: Guarde seu coração. — Oi, Dona Gláucia por aqui?! — Muitas
meninas já se apaixonaram por ele e sofreram por não terem chances. Veja
bem, o problema não é ele, porque o Noah é um homem de Deus. A questão é
que ele não vai dar condição a ninguém que não enxergue como uma esposa
em potencial. Ele não quer paixões passageiras e sim se relacionar com vistas
ao casamento. E, geralmente, as meninas mais novas são atraídas somente
por sua beleza e não estão dispostas a encarar o que ele quer para a vida dele.
Para tudo que eu quero descer!
— E em segundo lugar. — Acrescentou Sissa. — Cuidado com a
Thami. Ela sempre apronta alguma quando percebe uma menina interessada
nele. Coitado do rapaz!
“Vamos lá, Betina, conta até três. Respira fundo. Fecha e abre os
olhos.”. O primeiro conselho das meninas continha uma informação clara do
que elas achavam sobre a minha pessoa: que me interessei pelo Noah
somente por causa da beleza e de que eu não seria uma esposa em potencial.
Se elas partilhassem realmente dessa opinião, tinham completa razão. Sobre o
segundo conselho: já que não ia ouvir o primeiro mesmo, declarava guerra à
Thami também.

***
No salão de cultos, houve uma pequena palavra de boas-vindas pelo
Noah e outros líderes. Não demoraram a anunciar que o almoço já estava
liberado e todos seguiram em direção ao refeitório. Servi-me e sentei numa
enorme mesa junto com Sissa e Nanda, que conversavam com alguns amigos.
Fiquei por longos minutos colocando a comida para dentro e dividindo minha
atenção entre vasculhar o território com os olhos atrás do anjo e pensar no
papo que tivera com as meninas. Elas deviam realmente ter acreditado
quando falei que tomaria cuidado com a Thami. Isso incluía, teoricamente,
não investir no Noah, é óbvio. Mas também era óbvio que eu não estava nem
um pouco interessada em não investir nele. Em certo momento, percebi
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alguém passar por trás de mim e sentar-se ao meu lado.


— Posso?
Meus olhos brilharam.
— Claro! Fique à vontade. — Respondi ao Noah, sentindo o coração
saltitar.
— E aí, gente, hoje à tarde tem grupo de estudo bíblico, hein. Quero
ver todo mundo lá! — Disse esticando o pescoço, para que todos na mesa
pudessem vê-lo. Em meio às respostas positivas, virou-se para mim:
— Conto com sua presença?
— Com certeza! Vai ser no salão de cultos? — Perguntei
demonstrando o máximo de interesse que consegui.
— Não. Vai ser embaixo da árvore do lago.
— Olha! Aqui também tem um lago! — Ri.
— Tem sim. Só não é tão lindo quanto o do Campo. — Ele tomou
um gole no copo de refrigerante que estava em suas mãos. — E pra orar
nesse, não preciso de segredo. — Deu uma piscadela e rimos juntos.
— Ai, que vergonha! Até hoje não acredito que atrapalhei sua
oração! — Joguei um charme.
— Sem problemas. Depois que você foi embora eu continuei ali por
mais uma hora. Quando voltarmos do acampamento podemos fazer um
momento de louvor e oração lá, o que acha?
Minha mente voou para uma cena em que nós dois estávamos em
frente ao lago, Noah tocando violão e cantando olhando para mim, enquanto
eu sorria apaixonada para ele. Uma cena romanticamente exagerada, eu sei.
Mas segurei-me para não deixar escapar um suspiro.
— Acho que vai ser ótimo. — Respondi com meu melhor sorriso e
passei a mão no cabelo para tentar disfarçar algum frizz que porventura
estivesse de forma indesejada marcando presença por ali.
— E vocês, gente? Topam uma roda de louvor e oração no lago em
Gruta Alta quando voltarmos? — Noah perguntou, mais uma vez todos
confirmaram e eu fiquei ali, xoxa, pensando que o convite fora somente para
mim.
— O que achou do sítio? — Girou o rosto em minha direção e um feixe
de luz bateu direto em seus olhos, tornando-os mais claros e vivos.
— Lindo demais! — Falei devagar, sem desgrudar os olhos de seu
rosto, referindo-me tanto ao sítio, quanto a ele. — Foi uma ótima escolha. —
Finalizei.
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— “Lindo” você vai dizer quando olhar toda a região de Gruta Alta
por cima.
Uma expressão de dúvida surgiu em meu rosto.
— Você sabe por que a cidade se chama Gruta Alta? — Ele questionou.
— Ah... É porque tem uma gruta em cima de algum morro por aí, não
é?
— Isso. Mas não é uma gruta e um morro qualquer. Lá tem uma
cachoeira com uma queda d’água fantástica. A cachoeira corta a gruta em
cima do morro, passando por ela para despencar lá embaixo. É como se a
água jorrasse de dentro da gruta. Sem contar a visão completa de toda a
cidade que o lugar proporciona. Todos que visitam a gruta ficam surpresos
com tamanha beleza. E adivinha onde o morro fica? Pertinho aqui do sítio.
Depois de amanhã teremos uma trilha pra lá.
— E eu vou com certeza! — Acho que acabei transparecendo
empolgação demais. Ele sorriu e meu coração vibrou. Notei que Sissa nos
olhava de soslaio e de vez em quando parecia olhar para trás de onde
estávamos. Resolvi virar-me para ver o que tanto ela olhava e enxerguei
Thami sentada em nossa direção, a umas três mesas de distância, mirando-me
com olhar revolto. Certamente porque Noah estava sentado ao meu lado e
conversando comigo. Resolvi colocar em prática o que havia decidido e
lancei um sorrisinho com certo quê de superioridade e provocação. Ela
respondeu com frieza, permanecendo com o mesmo semblante.
— Então vejo vocês às quatro horas na árvore do lago. — Disse Noah,
levantando-se da mesa. “Oh, mas não se vá!”, pensei decepcionada. Após se
despedir, saiu do refeitório. Pouco tempo depois, Thami também se foi.

***

“É tão claro como a luz do sol que ele está interessado em mim”,
pensei convencida. “Ele sempre me procura de alguma forma. Como no
domingo depois do culto e hoje no almoço. Tudo bem, sempre é uma palavra
muito forte para descrever duas vezes. Mas, de todo jeito, o importante é que
em ambientes com tantas pessoas para ele cumprimentar e conversar, ele
escolheu falar c-o-m-i-go!”. Em meio às minhas exaltações de ego e histerias
interiores por conta dessas constatações, Sissa e Nanda entraram no quarto.
— E aí, topa um mergulho na piscina? — Nanda convidou-me.
— Claro. Aqui é bem quente, não é mesmo?! — Respondi, limpando
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uma gota de suor que escorria por minha testa. Escolhi meu melhor biquíni e
partimos para o outro lado do sítio. Chegando lá, percebi que era uma linda
piscina natural, com uma tirolesa que cortava toda extensão dela. Já tinha
muitas pessoas descendo pela tirolesa e espirrando água em todo mundo
quando chegavam a seu fim, que era na piscina. Outros tantos se divertiam
dentro d’água, que, sinceramente? Estava uma delícia! Dei um tibum e, ao
voltar à superfície, notei um olhar familiar me fitando. Era Matheus. Olhei
em outra direção, fingindo não tê-lo visto. Mas não tenho como negar: pude
perceber que carregava um pouco de chateação em seu rosto. Decerto, por
causa do fora que recebera mais cedo. Mas eu não estava nem aí, ele
procurou e encontrou.
— Esse lugar é incrível! — Exclamei, ao olhar para Sissa e Nanda, que
me responderam com largo sorriso.
— O Salmo 19 diz que os céus declaram a glória de Deus e o
firmamento anuncia a Obra de Suas mãos. Ao olhar para a natureza, podemos
notar a grandeza de Deus. Ele criou tudo tão detalhadamente lindo que é
difícil encontrar palavras que descrevam Sua sabedoria e criatividade! —
Sissa falou admirada e eu dei de ombros. Nunca olhei a natureza como algo
que descrevesse a sabedoria e a grandeza de Deus.
— Sissa, por que vocês veem Deus em tudo?! — Questionei girando os
braços e apontando em redor.
— Porque Ele é tudo! A bíblia diz que dEle, por Ele e para Ele são
todas as coisas. No primeiro capítulo de Romanos, Paulo fala que na criação
e por meio das coisas criadas podemos ver os atributos invisíveis de Deus,
seu eterno poder e sua natureza divina. Ou seja, se alguém precisa de uma
prova de que Deus existe, é só olhar para a natureza e terá a resposta. Depois
de conhecer um Deus tão grande como Ele, tão cheio de amor e graça, não
pude mais deixar de vê-Lo desde nas coisas pequenininhas até as grandiosas.
Não respondi nada e mergulhei novamente. O amor e admiração que
Sissa e Nanda demonstravam sempre que falavam de Deus me constrangia de
certa forma. Eu às vezes chegava a pensar que elas eram fanáticas, porque
sempre estavam falando de Jesus e de algo que aprenderam na bíblia. Acho
que elas deviam decorar versículos igual eu fazia quando era criança para
ganhar as gincanas da Escola Dominical. Um incômodo invadiu meu coração
e eu não consegui entender o motivo. Talvez fosse porque, lá no fundo, eu
pensasse que ser tão de Jesus assim era muito difícil e eu nunca conseguiria.

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Capítulo 6 — Coração Confuso

Depois de um bom tempo curtindo a piscina, fomos para o banheiro nos


ajeitar para o momento devocional na árvore do lago. Está aí algo de que eu
sempre fugia em retiros e acampamentos: aquela hora chata de oração e
estudo da Palavra em grupo. Se eu não conseguisse me esquivar e tivesse que
ir, geralmente ficava com cara de paisagem, contando os segundos para
terminar e sair correndo dali.
De longe já podíamos ver as pessoas formando uma roda e sentando-se
embaixo da árvore. Pela quantidade de pessoas que estavam lá, muito poucos
devem ter escolhido não participar daquele momento. Se não fosse o fato de
que o Noah estaria ali, eu também optaria por não participar. Havia tantas
coisas mais interessantes para fazer naquele sítio! Uma pena. Afinal, para
quem não tem intimidade com Deus, buscar a presença dEle é totalmente
enfadonho.
Ao nos aproximarmos da roda, vi que o Noah estava com um violão na
mão e dedilhava alguns acordes. Sentei-me ao lado das meninas e fitei os
olhos nele.
— Boa tarde, pessoal. Estou muito feliz que tenham escolhido a boa
parte, o momento de desfrutarmos um pouco mais da presença de Deus.
Minha oração é que todos vocês possam, independente dos momentos de
culto, sentir Deus nesse lugar, em cada detalhe.
Suas palavras lembraram-me as de Sissa. Engoli em seco. Ele começou
a cantar uma música que falava sobre amar a Deus e muitas pessoas fecharam
os olhos e ergueram as mãos, em sinal de adoração. Ao passar os olhos pela
roda, notei que Thami também estava lá. Provavelmente pelo mesmo motivo
que eu. Ela me encarou e eu retribuí com uma olhada provocadora, depois
voltei a prestar atenção em Noah. Ele passava os dedos pelas cordas do
violão de forma tão encantadora e, ah, como ficava ainda mais apaixonante
quando cantava! Depois de várias músicas, abriu a bíblia e começou a ler o
seguinte versículo:

“Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela


renovação da sua mente, para que sejam capazes de experimentar e
comprovar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.” Romanos 12.2
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— Não se amoldem, não se adequem à “fôrma” deste mundo. Mas,


poxa vida, como isso é difícil! O mundo é muito atraente, não é mesmo? E a
Igreja? Ah, a Igreja é cheia de regras chatas que servem para me impedir de
ser feliz. — Noah fez uma pausa e passou os olhos pela roda. — Quantos já
escutaram esse discurso? Quantos já pensaram ou falaram esse discurso? Eu
fico triste ao perceber que as pessoas costumam reduzir o Reino de Deus a ir
à igreja ou participar de uma. E reduzir a igreja a uma convivência maçante,
cheia de regras a serem seguidas. Quando o apóstolo Paulo fala para a gente
não se conformar com esse mundo, mas para nos transformarmos pela
renovação da nossa mente a fim de que possamos experimentar e comprovar
a boa, agradável e perfeita vontade de Deus, ele está dizendo que se a gente
seguir o que o mundo segue, nós nunca seremos capazes de viver a vontade
de Deus. E para conhecer a vontade dEle, precisamos renovar nossa mente, o
que só Jesus pode fazer através do Espírito Santo. Muitas vezes nos
amoldamos a viver no padrão do mundo e não precisamos abandonar a igreja
por causa disso. Vivemos uma vida dupla. Fofocamos, falamos mal dos
outros, mentimos, desonramos nossos pais, ficamos com várias pessoas sem
compromisso — ui, senti uma pontada no coração — e tudo isso participando
religiosamente de todo culto, reunião, programação, acampamento... Isso nos
prova, galera, que não é o fato de estar na igreja que nos faz santos. Mas o de
ser igreja sim. Ter o Senhor morando em nós, isso nos santifica. Sermos
guiados pelo Espírito Santo, termos um coração realmente rendido a Deus,
convertido, redimido, que busca conserto em Deus sempre, uma vida onde o
pecado é acidental e não proposital. Quando cremos no sacrifício de Cristo na
cruz por nós e nos arrependemos de nossos pecados, nascendo de novo,
podemos perceber a vida incrível para a qual Deus nos chamou. Não é uma
vida chata, cheia de regulamentações na igreja. Vivemos uma história que faz
sentido, pois vivemos para Aquele que a criou! A igreja então passa a ser um
lugar de comunhão, aprendizado, fortalecimento na fé, dividir as cargas e
servir ao Reino de Deus de formas mais diversificadas junto a pessoas que
também amam a Ele. Deus deseja se relacionar conosco, Ele quer
proximidade, nos ensinar como viver uma vida abundante e feliz ao Seu lado,
aqui e agora. Já o mundo, bem... Traz sensações gostosas e felicidade
momentânea, mas, depois, o que sobra é uma vida triste, sem sentido, com
vazio no coração e sem propósito.
Não se ouvia um barulho sequer entre os que estavam ali. Todos
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pareciam absortos pelas palavras de Noah.


— Não busque os beijos que te satisfazem por uma noite, ou os
prazeres do mundo que te alegram por um momento, ou aquela palavra mal
dita, aquele grito com quem você ama que te alivia por umas horas... Busque
o que pode te satisfazer pra sempre, o que é eterno, pois esse sim traz sentido
e preenche cada pedaço do seu ser.
Após terminar de falar, orou e encerrou a reunião. Eu fiquei parada
ali, olhando para ele. Mas dessa vez não foi porque eu estava admirando sua
beleza, e sim porque me perguntava de onde ele tinha tirado tudo aquilo, se
era de fato verdade o que o ouvi dizer. Fazia todo sentido. Para pensar um
pouco sobre o que acabara de escutar, avisei às minhas companheiras que ia
dar uma volta e segui andando pela margem do lago. Todos estavam se
dispersando e indo em direção à piscina ou sala de jogos, já que ainda faltava
tempo para o culto começar e estava um calor danado. Não fazia sol, mas o
mormaço abafava bastante o tempo. O vento movimentava as folhas das
árvores, que faziam um barulhinho gostoso, tornando aquela curta caminhada
mais agradável. Bem, agradável fisicamente falando, porque dentro de mim
havia uma intensa e constrangedora agitação. Vários pensamentos vinham ao
mesmo tempo e eu me perguntava se me enquadrava naquela “vida dupla” da
qual Noah falara.
“É óbvio que eu me enquadro!”, a resposta veio de supetão. Eu não
tinha interesse por Deus. Todo brilho que a casa dEle representava para mim
na infância, esvaiu-se. Continuava frequentando, é claro, pois meus pais
surtariam se eu me desviasse. Mas, se eu fosse pensar bem, já estava
desviada, né? Como o anjo dissera, somente ir à igreja não me faz santa e
muito menos serva de Deus. E de santa e serva, eu não tinha nada. Nada
mesmo!
Passei tanto tempo pensando que, quando me dei conta, já estava
quase na hora do culto. Voltei para o quarto, peguei minhas coisas e fui em
direção ao banheiro coletivo, no fim do corredor. No caminho, pude notar
uma silhueta conhecida desfilando pelo saguão. Olhei para frente e continuei
andando normalmente. A poucos centímetros de passarmos uma pela outra,
nos comunicamos da maneira como vínhamos fazendo ultimamente: pelo
olhar. O meu de menosprezo, o dela de provocação. Ao nos aproximarmos,
Thami esbarrou rudemente seu ombro no meu e eu bufei:
— O que que é, garota? Não olha por onde anda?!
Ela arqueou uma sobrancelha e soltou uma risadinha.
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— É o que acontece com todos que entram em meu caminho.


Nossa, que medo! Não perdi a ocasião favorável e, mesmo sabendo o
porquê, resolvi provocar:
— Vem cá, qual é o seu problema comigo?
Ela virou os olhos.
— Por acaso tem algo a ver com o Noah?
Seu rosto rapidamente enrijeceu e ela se aproximou, apontando o
dedo a um centímetro do meu nariz.
— Olha aqui, garota, presta bem atenção no que eu vou te dizer: o
Noah é meu! E não se atreva a chegar perto dele, porque você não sabe com
quem está se metendo. — Dito isso, girou o corpo e seguiu em direção à
escada. Eu permaneci ali, incrédula com tamanha petulância. Durante meu
banho, quase acabei com o sabonete de tanto apertá-lo. Estava com uma raiva
sem precedentes. “Por que eu não peguei aquele dedo dela e tirei do meu
rosto?!”, pensava chateada. Fiquei formulando um milhão de maneiras de tê-
la respondido, mas que não o fiz.
Nessas horas eu me sentia dentro de um filme da sessão da tarde, que
vira e mexe passava cenas de crianças de castigo no canto da sala de aula
com orelhas de burro. Mas, para não entrar em depressão-pós-humilhação-
pública, resolvi que se a Thami deu o recado dela, eu também daria o meu.
Depois do banho, com a cabeça mais fria, pensei que a melhor forma de dar o
meu recado seria agindo. Até porque meu objetivo de fazê-la morrer de
inveja ao me ver com o Noah continuava de pé. Isso! Eu não falaria nada,
mas ao me aproximar do Noah, ela entenderia minha resposta.
Minha mente trabalhava a mil por hora analisando os últimos
acontecimentos, enquanto minhas mãos aprontavam com rapidez a
maquiagem no rosto. De repente, parei e segurei o tubo do delineador no ar.
Algumas palavras ditas pelo anjo durante a tarde entraram sem pedir licença e
começaram a perturbar a ordem lógica dos meus pensamentos. Noah falou
sobre beijos sem compromisso como se fosse algo errado. Juntei isso ao que
minhas primas já haviam dito sobre as escolhas amorosas dele e desanimei
um pouco. Será que valeria a pena investir nele? O que eu queria, na verdade,
era um envolvimento rápido de férias, mas ele abriria mão desses tais valores
para me dar alguns beijos?
“Mas eu sou tão bonita e atraente... Aff, Thami também é. Talvez
seja por isso que eles não tenham nada. Porque o Noah não enxerga nela
uma ‘esposa em potencial’! ”. Ai, mas que papo mais brega! Onde já se viu
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um garoto de dezoito anos pensar em casamento?! Ele não queria curtir a


vida, não?
As palavras dele continuavam martelando feito um relógio velho em
minha cabeça. Noah dissera que os prazeres do mundo são passageiros, mas
quem faz a vontade de Deus está buscando o eterno. Realmente, de todos os
meninos que eu já beijei, nenhum me trouxe alguma coisa de bom, só um
prazer (e às vezes nem isso!) na hora e depois tchau. Até mesmo com o Cauê,
tudo que eu tinha com ele me satisfazia na hora, mas depois eu sentia como
se ele me usasse, porque nunca queria compromisso. “Agora deve estar lá, na
casa de alguma piriguete, e quando eu voltar? Vai vir falar comigo como se
nada tivesse acontecido, como sempre”.
Mas, enfim, pra que pensar no eterno? O que eu ganharia com uma
atitude como a do Noah? Ser zoada por ser crentinha e não pegar ninguém?
Eu não, cruzes!

***

“Eu olho para a Cruz/ E para a cruz eu vou/ Do Seu sofrer participar/Da
Sua obra vou cantar/Meu Salvador, na cruz mostrou/O amor do Pai, o Justo
Deus...”

Enquanto o ministério de louvor tocava, eu dividia a atenção entre


olhar/babar o anjo e reafirmar para mim mesma minha decisão — após
expulsar aqueles pensamentos de depois do banho — de dar em cima dele
mais assim, digamos, claramente. Sissa e Nanda estavam ao meu lado, de
olhos fechados e com as mãos levantadas cantando. O louvor acabou, Noah
parou de cantar e começou a falar:
— Desde quando oramos e decidimos nos programar para realizar
esse acampamento, meu coração tem ardido por uma coisa. Nos últimos dias,
minhas orações no meu quarto e em alguns lugares que gosto de ir pra falar
com o Pai — ele olhou pra mim e sorriu, lembrando do nosso encontro
“inusitado” no campo do lago. Quase desmaiei. — se intensificaram. E isso
porque eu sei que Deus está guardando grandes coisas pra nós nesse lugar.
Meses atrás Ele me falou que almas se encontrariam com Ele nesses dias, que
haveria arrependimento, mudança de vida e pessoas seriam libertas pelo
Amor que Salva! E, novamente, meu coração arde ao falar isso, porque eu
creio no poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê. — Nesse
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momento, ouviu-se um grito conjunto da galera que estava ali e os músicos,


que ainda estavam lá na frente, começaram a tocar uma música. Noah não
parou de falar:
— Por isso, você que veio passar esses dias aqui, não endureça seu
coração. Deus quer se revelar a você através do Espírito Santo. Ele te ama e
esse amor é provado pelo fato de Jesus ter morrido na cruz por você. Na
primeira carta de Pedro, capítulo dois e versículo vinte e quatro, diz que Ele
mesmo levou em Seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que
morrêssemos para os pecados e vivêssemos para a justiça. Pelas feridas dEle
nós fomos curados! Onde se encontrará amor assim?! Ele morreu pra nos
libertar e pra nos dar a oportunidade de viver uma outra vida, uma nova vida
totalmente dedicada a Ele!
Quando parou de falar, seus olhos estavam marejados e todos, em
coro, começaram a cantar um louvor. Lembrei-me da oração que Noah fez
por mim domingo após o culto, ele também usou as palavras “não endureça
seu coração”, e recordei da dúvida que me rondava se Deus realmente havia
falado comigo naquela noite. Não sei por que, mas, enquanto pensava isso,
uma lágrima quente escorreu sobre minha bochecha esquerda e segurei o
rosto com as mãos. As palavras que Noah acabara de falar pareciam latejar
dentro de mim. Eu ouvia desde criança que Jesus havia morrido por mim,
mas aquilo nunca fez muita diferença em minha vida. Por que naqueles dias
de férias essa realidade passou a me atrair tanto? Sentei-me na cadeira,
enxugando com as costas da mão a lágrima solitária. Sissa passou a mão em
minha cabeça e depois a beijou.
O culto prosseguiu e meu coração se encontrava angustiado. Outra vez
o tema da mensagem foi compromisso com Deus. O jovem ruivo de vinte e
três anos que levava a palavra naquela noite disse que é uma urgência
pregarmos o evangelho. Eu nunca preguei o evangelho. Ah, na verdade já
tinha entregado uns folhetos com os adolescentes da minha igreja no Rio de
Janeiro, nada mais que isso. Uma vez, enquanto eu oferecia um folheto, uma
moça quis saber mais sobre aquele Jesus que estava descrito ali, mas eu
gaguejei e falei para ela visitar a igreja que lá o pastor explicava. Nunca mais
vi a moça.
O rapaz de cabelo vermelho e calça rasgada colocou o microfone sobre
o púlpito em formato de latão pichado e finalizou a mensagem. Os momentos
seguintes foram de louvor e avisos, mas eu não prestei muita atenção. Já tinha
me convencido de que algo estava errado comigo, mas só constatar isso,
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como vinha acontecendo nos últimos dias, não era o suficiente. Então
continuei sentada na cadeira e, quase sem perceber, me peguei soltando umas
palavras.
— Deus.
Pausa.
— Então...
Outra pausa.
— Eu estou aqui e, bem... Eu não sei o que dizer.
Uns dois minutos se passaram.
— É... Se Você de fato tiver me mandado pra esse lugar pra conhecer
um pouco do Senhor, me mostre. E se tudo que eu estou aprendendo aqui for
real, faz com que eu entenda e fale comigo. Amém.
A oração terminou e junto com ela se foi a angústia que eu estava
sentindo, dando lugar a paz em meu coração. Eu nunca tinha falado com
Deus dessa maneira. Minha oração de antes de dormir já era praticamente
decorada e devia durar no máximo um minuto. Eu sei que essa durou mais
por conta da minha demora, mas as palavras foram diferentes, houve
sinceridade nelas.

***

O culto acabou e todos partiram para seus quartos se arrumar para a


festa à fantasia que aconteceria dali a uma hora. Eu estava empolgada, porque
minha fantasia era simplesmente l-i-n-d-a!
O quarto que estava hospedada parecia uma zona de guerra. Havia
fantasias em várias camas, maquiagens, chapinhas e secadores espalhados pra
todo lado e a gente não parava de falar! As meninas maquiavam umas as
outras, faziam penteados, lutavam para fechar os zíperes dos vestidos, enfim,
uma completa animação! Tirando a azeda da Thami, é claro, que entrou no
quarto sem falar com ninguém, pegou suas coisas e saiu fazendo cara de
nojenta. Provavelmente foi se arrumar em outro quarto. Melhor assim.
Depois de todas prontas, descemos em bando em direção ao salão que
aconteciam os cultos. Agora ele estava enfeitado com várias notas musicais
gigantes penduradas e diversas luzinhas espalhadas em cordões pelo teto,
além de mesas de doces e frutas tropicais. Uma música animada tocava ao
fundo.
Eu estava fantasiada de cisne negro, o cabelo preso em um coque e
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com uma singela coroa na cabeça. Meu vestido era preto, com brilhos
salpicados e a saia feita de tule. A make estava perfeita, com os olhos e boca
bem marcados. Sissa, Nanda e minhas mais novas amigas de dormitório
resolveram beliscar umas coisas e eu permaneci onde estava. Passados alguns
minutos, resolvi ir até elas para comentar de umas fantasias horrorosas que eu
tinha visto, mas, no meio do caminho, parei.
Foi mais forte que eu e minhas pernas não podiam se movimentar um
milímetro, caso contrário, poderia perdê-lo de vista e isso seria trágico.
“Uau!”, falei para mim mesma. Noah estava fantasiado de... anjo! Nada mais
propício! Ri internamente por conta da coincidência ao analisar sua roupa
branca, com duas asas penduradas nas costas. Ele não precisava de muito,
afinal, seu cabelo louro com ondulações carregadas de charme, junto a seus
traços leves e lábios carnudos emoldurando aquele cativante sorriso já
compunham bem a fantasia. Ele conversava com algumas pessoas e
gargalhava. Do nada, virou-se em minha direção e parou uma gargalhada no
meio. Seus olhos encontraram os meus e, por breves segundos, olhou-me de
cima a baixo. Por um momento, pareceu que todos a nossa volta tinham
sumido e restaram somente eu e ele ali, com os olhos fixos um no outro. Ele
finalmente abriu um sorriso tímido e eu respondi, sorrindo também.
Ouvi alguém me chamar e olhei para o lado tentando identificar de
onde vinha a voz. Não consegui ver ninguém e, ao voltar-me para frente,
Noah não estava mais lá. Resmunguei irritada por tê-lo perdido de vista e
segui pelo salão, procurando por ele. Logo reconheci duas asinhas brancas de
costas para mim. Soltei um suspiro e devagar fui me aproximando. Ainda não
tinha ideia do que falaria para ele, mas de uma coisa eu sabia: precisava que
ele me olhasse daquele jeito outra vez.
Após lentos e pausados passos, notei que Noah não estava sozinho.
Conversava com alguém. Parei em meio a toda aquela gente agitada e me
camuflei entre eles. Esperei tensos minutos, até que ele se movimentou para o
lado e pude enxergar a Thami. Senti meu rosto queimar de ciúmes. Pouco
depois, ela inclinou a cabeça e ele passou a mão em seu rosto. Parecia
enxugar uma lágrima. Resolvi sair dali antes que Thami me visse, isso seria
péssimo.
Cheguei bufando onde as meninas estavam. Ainda não tinha visto
Noah tão próximo assim de uma garota desde que o conheci e, para piorar a
situação, essa garota era a Thami! Precisava desabafar sobre minha paixonite
com alguém. Mas não podia ser com minhas primas. Lembrei da Luca e
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também de que ela não respondeu a mensagem que eu tinha mandado há dias.
Será que as coisas haviam piorado para o lado dela? Resolvi, então, mandar
uma mensagem pra Beca:
— BFF, sabe da Luca? Há dias que ela não me manda notícias! Sdds,
beijocas.
Dois minutos depois, Beca respondeu ao SMS:
— Está sem WhatsApp, né? Que fase! Te mandei mensagem por lá
ontem. A Luca está sem celular por enquanto, a tia Judith descobriu tudo.
Respondi imediatamente:
— Mas quando ela me ligou a tia já tinha descoberto tudo e ela estava
pelo menos com celular! Será que a Luca andou falando com o Pedro e por
isso a tia tomou o celular? =(
Um minuto mais tarde:
— Bê, acho que vc está atrasada nas informações. Luca está grávida.
“Para tudo que eu quero descer! A Luca está grávida?! Carregando
um feto no útero, é isso? Em breve a barriga dela, que chega a ser negativa
de tão magra, vai estar em formato de bolinha?! Isso significa que minha
amiga de quinze anos vai ser... mãe?”
Sentei numa cadeira que estava encostada na parede, para não correr
o risco de desmaiar e cair no chão. Minhas mãos tremiam.
— Vc tá falando sério?! Não consigo acreditar! Ela perdeu a
virgindade mês passado!
Beca respondeu imediatamente:
— Ela está arrasada. Se não me engano, eles transaram três vezes,
mas já tem tempo suficiente para os sintomas da gravidez aparecerem. A mãe
dela ameaçou levá-la ao ginecologista pra saber se ela ainda era virgem, Luca
teve medo e confessou. Mesmo assim, a tia Judith a levou e lá, com os
exames que o médico pediu, veio a bomba. Os resultados chegaram antes de
ontem. Ela conseguiu me ligar antes de ter o celular confiscado. É, amiga, a
Luca entrou numa bad sinistra e não faço ideia de quando tudo isso vai
melhorar.
Não conseguia acreditar no que estava lendo. A gente sempre ouvia na
escola sobre gravidez na adolescência, mas nunca pensamos que podia
acontecer conosco ou com alguém tão próximo. E esse alguém era Luca!
Minha amiga de infância! Aflição era meu sobrenome naquele momento.
Precisava falar com a Luca urgentemente! Mas como?! Se ela estava sem
celular, não adiantava ligar e nem mandar mensagem. Ai, se pelo menos
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naquele cafundó de Judas a internet tivesse sinal, eu podia tentar um contato


pelo Facebook. Mas acho que seria inútil também, tia Judith não ia deixá-la
sem celular e com internet. Meus pensamentos iam a cem por hora e acabei
nem percebendo que Noah se aproximou e conversava com as meninas.
— Você parece preocupada. — Comentou o menino do cabelo
ondulado ao se aproximar de mim. Olhei para ele desconcertada. — Quer
conversar?
“Caso isso for um sonho, por favor, não me acordem!”. Noah estava
me propondo uma conversa! Mal podia acreditar!
— Acho que seria bom. — Respondi, a personificação do equilíbrio.
Por fora, é claro, porque internamente meu coração soltava fogos de artifício.
Ele puxou uma cadeira e sentou-se ao meu lado.
— Como foi seu primeiro dia de acampamento? Curtiu bastante?
— Foi maravilhoso! Estou adorando tudo. — Ele só não sabia que era o
principal motivo disso.
— Que bom! Depois de amanhã é a trilha até a cachoeira da gruta.
Animada também? — Perguntou-me entusiasmado. Bem, eu não sou daquele
tipo de pessoa adepta a andar no meio do mato com mosquitos, barro,
bichinhos medonhos e tudo isso que envolve a natureza. Mas é óbvio que eu
não deixaria de ir nessa trilha por conta desses peq... não, pequenos não,
grandes empecilhos!
— Bastante animada! — Menti na cara dura. Ele assentiu,
permanecendo em silêncio por uns segundos e depois perguntou:
— O que te preocupa?
Fixei os olhos no chão por certo tempo e respondi:
— Uma das minhas melhores amigas está grávida. Ela só tem quinze
anos.
Noah olhou-me com tamanha compaixão, que até parecia que eu é que
seria mãe adolescente.
— Descobri agora há pouco e quero tanto falar com minha amiga, mas
a mãe dela confiscou seu celular. Não sei o que fazer, preciso que a Luca
saiba que eu estou com ela neste momento, mesmo distante.
— Já pensou em orar?
Balancei a cabeça em sinal negativo.
— Se você não pode estar pessoalmente com ela neste momento, que
tal pedir que o Consolador faça isso?
— Consolador? Você quer dizer o Espírito Santo? — Questionei,
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parecendo ter ouvido a coisa mais anormal do mundo. Bem, pra mim era...
— Isso! Deus é o único que sabe o que de fato passa no coração das
pessoas. Conhece suas reais necessidades e problemas, e isso porque Ele
pode ver por dentro, o que nenhum ser humano tem capacidade. Então,
ninguém melhor pra poder nos ajudar em tempos de crise e situações difíceis.
— Ok, mas o que eu faço pra Deus ajudar a Luca? Orar?
— Sim. A bíblia diz que a oração de um servo de Deus pode muito em
seus efeitos. Peça ao Espírito Santo que faça aquilo que você não pode:
consolá-la.
— É, parece uma boa ideia.
Ele sorriu e se levantou.
— Foi bom conversar com você, Betina. Mas agora preciso ir, até
amanhã.
Mandei um tchau e depois o chamei de volta. Ele se virou.
— Onde está escrito na bíblia que a oração de um servo de Deus pode
muito em seus efeitos? E, ah, obrigada pela conversa.
— Em Tiago 5. — Seu sorriso alargou-se e se virou, continuando a
andar. Observei-o enquanto se distanciava do salão e seguia rumo à casa em
que ficavam os quartos. De repente, como se uma lâmpada se acendesse
sobre minha cabeça, tive a brilhante ideia, mas não tão original, de segui-lo.
A festa mal tinha começado, não era possível que ele iria dormir àquela hora!
Levantei de fininho para que as meninas não percebessem e saí do salão,
tentando disfarçar que o seguia. Ele caminhou pelo lado da casa em direção à
entrada do sítio e eu fiz o mesmo caminho. Me escondi atrás de um arbusto
que ficava próximo à varanda e observava-o sentado na imensa escada de
entrada. “Estou ficando craque na espionagem”, ri baixinho. Noah olhava
para o céu e parecia balbuciar algumas palavras. Talvez estivesse orando.
Decidi voltar para a festa, antes que ele me visse ali. Naquele dia eu não teria
desculpas para arrumar se algo desastroso acontecesse.
Fiquei na festa por mais trinta minutos e já estava entediada. Resolvi ir
dormir. Ao passar pelo corredor, tentei espiar pelos vitrais da porta de
entrada, mas não havia ninguém na escada. Subi para o quarto e, depois de
tirar toda a minha produção de Cisne Negro, deitei-me relaxadamente na
cama. Meus pensamentos voavam a mil por hora e tentei conectar a internet
no celular. Sem sucesso. Outra vez. Olhei para o fundo da cama em cima da
minha e não conseguia ter sono. Virei para um lado. Virei para o outro. A luz
estava ligada porque não havia ninguém no quarto além de mim, decidi então
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desligá-la. Talvez a luminosidade estivesse me atrapalhando.


Ao atravessar o quarto até o interruptor, a voz de Noah ecoou em
minha mente: “Tiago 5”. Perguntei onde ficava na bíblia o tal versículo sobre
oração por simples curiosidade e também para chamar atenção dele em meu
suposto interesse por aprender mais a Palavra. Voltei pra cama e peguei
minha bíblia na bolsa. Abri em Tiago 5 e li o capítulo todo. Como o sono não
vinha, resolvi ler o capítulo 4, o 3, o 2 e finalmente, o 1. Apesar de ter lido de
trás pra frente, naquela quase uma hora que fiquei ali, no livro de Tiago, algo
me surpreendeu: as palavras dele pareciam ter sido escritas hoje, de tão
atuais! Ele fala de coisas do nosso dia a dia e vários assuntos me chamaram
atenção, dentre eles:

“Sejam praticantes da palavra, e não apenas ouvintes, enganando-se a si


mesmos. Aquele que ouve a palavra, mas não a põe em prática, é semelhante
a um homem que olha a sua face num espelho e, depois de olhar para si
mesmo, sai e logo esquece a sua aparência. Mas o homem que observa
atentamente a lei perfeita, que traz a liberdade, e persevera nessa lei, não
esquecendo o que ouviu mas praticando-o, será feliz naquilo que fizer.”
Tiago 1:22-25

Ao ler esses versículos, pude entender que ser cristão realmente não é
brincadeira. Tive também uma triste constatação: eu estava enganando a mim
mesma o tempo inteiro. Afinal, eu ouvia a Palavra desde que nasci, mas
praticá-la, bem, aí já era outra história. Pensei que talvez Deus estivesse
mesmo querendo falar comigo, até porque, desde que cheguei a Gruta Alta
algumas coisas estranhas começaram a acontecer dentro de mim, umas
reflexões que nunca tinham passado em minha mente resolveram se instalar
por aqui e a convivência com minhas primas me mostrava que existia outra
maneira de viver, mesmo sendo adolescente. E, ah, o que dizer do Noah? Eu
não o conhecia direito, mas ele era tão diferente dos outros meninos. Sua
maneira pura de falar, a maneira respeitadora com que se comportava com as
garotas (que estavam sempre perto dele), seu olhar não tinha maldade,
mesmo quando me olhou na festa, não era como se eu fosse um pedaço de
carne. Suas palavras tinham sabedoria, e como ele entendia sobre Deus!
Talvez fosse de alguém assim que eu precisasse para me aproximar de Jesus
de verdade...
Sem perceber, me peguei pensando em Noah como meu namorado e
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gelei: será que minha paixonite que se resumia à vontade de dar uns beijos
estava se transformando em gostar de verdade? Tipo, se apaixonar mesmo?!
Não, seria loucura, eu moro a 500 km de Gruta Alta! Como namorar à
distância? Eu nunca pensei algo desse tipo para mim, deve ser muito sofrido
e... “Betina, se enxerga garota. Vocês nem deram um beijo sequer e você já
está pensando nas dificuldades de um namoro à distância?! Volta pra
realidade, vai.”, chamei atenção a mim mesma e voltei para a bíblia. Lembrei
que não tinha orado por Luca como Noah me aconselhou. Resolvi orar:
— Senhor Deus poderoso. — Parei por uns instantes para formular a
próxima frase, minhas orações não costumavam dar muito certo quando
saíam do script. — Criador dos Céus e da Terra. Tu és o alfa e o ômega... —
Ai, não! Eu nem sabia o que significava alfa e ômega! Poxa vida, por que eu
não conseguia formular uma oração bonita?! — O Senhor é muito grande e
deve ser adorado. Eu sei que és Tu quem pode consolar todas as pessoas,
porque só o Senhor conhece o íntimo de cada um. Portanto, oh Pai Benigno e
Maravilhoso, sonda a minha amiga Luciana Carrara nesse momento e traz o
consolo que só Tu podes oferecer! Em nome de Jesus, amém.
Abri um olho. Abri o outro. Fiz uma careta. Não, não. Aquela oração
não expressava sinceridade como a que eu tinha feito mais cedo. Resolvi
começar de novo:
— Oi, Jesus. Então, minha oração de antes de dormir hoje vai ser um
pouco modificada. Pelo jeito, Você não está interessado em palavras bonitas,
então, vamos lá. É que eu gostaria de pedir pela Luca. O Senhor sabe o que
aconteceu e as coisas não estão correndo bem pra ela. Só queria que ela se
sentisse consolada pelo Espírito Santo agora, por mais que eu não saiba bem
o que isso significa e como funciona. O Senhor poderia falar pra ela as
mesmas coisas que eu tenho escutado aqui? É que eu acho que muita coisa
poderia mudar na vida da Luca se ela decidisse acreditar em Você de
verdade. Em nome de Jesus, amém.
Terminei a oração e não pude evitar pensar: E eu? Será que muita coisa
poderia mudar em minha vida se eu recebesse Jesus?

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Capítulo 7 – A noite em que tudo mudou


Barulhos de panela. Barulhos de corneta. Barulhos de panela de novo.
Intensificaram-se. Agora estavam juntos e estridentes: tinha gente batendo em
panelas e tocando corneta em plenas sete horas da manhã?! Estão de
brincadeira!
Levantei-me irritada e derrubei minha bíblia no chão. Nem havia
notado que dormi com ela em cima de mim. Guardei-a e segui em direção ao
banheiro para escovar os dentes e lavar o rosto. Mas que droga, ninguém
merece acordar sete horas da manhã nas férias! E ainda mais com aquele
barulhão todo. Arrumei-me e depois de pronta desci para o café da manhã. O
refeitório estava em festa e as mesmas pessoas que antes tocavam as cornetas
e batiam panelas agora estavam lá, chamando a atenção de todos para uma tal
gincana. Não me interessava nem um pouco participar de desafios bíblicos,
caças ao tesouro, tortadas na cara e essas coisas, então peguei meu fone de
ouvido e comecei a escutar música no último volume enquanto bebia
achocolatado e comia pão francês com queijo muçarela. Matheus passou
perto de mim segurando seu lanche e olhou-me discretamente. Olhei-o de
volta, sem nenhuma expressão. Mirou os lugares vazios que tinham na mesa
em que eu estava sentada sozinha e, por um breve momento, pensei que ele
fosse se sentar ali. Mas então seguiu e se sentou em outra mesa, em silêncio.
Ainda bem.
Encontrei com Sissa e Nanda na hora do culto matinal. Sentamos na
frente e, como sempre, eu não tirava os olhos de Noah, que estava sentado na
primeira fileira. A pregação da manhã foi sobre família e quando acabou,
pude ver várias pessoas conversando em seus celulares e muitos se
debulhavam em lágrimas ao falar com seus familiares. Lembrei-me da Luca e
meu coração apertou. A situação com a família dela não estava das melhores,
mas confortei a mim mesma lembrando que já tinha orado por ela no dia
anterior.
Tentei ligar para meus pais algumas vezes, mas não consegui, o sinal
do celular nem deu ideia pra mim. Numa dessas tentativas, enquanto corria os
olhos pela galera que ainda estava no local de cultos, pude observar Noah
ainda sentado na cadeira que estivera durante o culto. Seus ombros pendiam e
os cotovelos apoiavam-se um em cada perna, segurando as mãos dele que
estavam enterradas no rosto. Aquela cena era no mínimo estranha, porque o
Noah estava sempre animado, sorrindo, conversando com alguém,
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aconselhando. Cheguei a me virar para perguntar a Sissa se ela sabia de algo,


mas desisti, não queria dar na pinta que ainda estava na dele. Resisti
bravamente a uma vontade louca de ir até ele, apesar de meu coração insistir
que eu deveria ir, afinal, ontem ele tinha se aproximado quando me percebeu
triste. Já minha mente dizia que eu devia sossegar o facho porque ele poderia
me achar intrometida demais. Permaneci onde estava tensos minutos
conjecturando sobre ir versus não ir e finalmente decidi pela primeira opção e
dei o primeiro passo. Segui em sua direção com o coração batendo forte, mas,
faltando poucos passos para alcançá-lo, eis que o bonitão se levanta e sai,
sem olhar para trás. Pelo menos não olhou, senão me veria ali, plantada no
meio do corredor com aquela cara de criança que teve o doce roubado.
Dei meia volta e fui, o desânimo em pessoa, até as meninas que
estavam no maior papo com umas pessoas que eu nem fazia ideia de quem
eram. Enquanto elas papeavam alegremente, eu parecia estar em outra
dimensão. Desde aquele culto jovem em que conheci Noah, ele sequer pediu
licença e já foi ocupando quase todo o espaço em minha mente. O problema
agora é que estava começando a conquistar espaço em meu coração e eu não
estava sabendo lidar com isso. Estava se tornando vital para meu pobre
coração conhecê-lo mais de perto e, principalmente, beijar aquela boca
irresistível! Me perdi no tempo e no espaço imaginando como devia ser
delicioso um beijo del..
— BETINA!
Ai! Que Susto!
— Que foi?!
— Estava viajando no mundo da lua?
Todos riram. Eu bufei.
— É.
Fechei a cara. Todos se entreolharam.
— Hum... é... hãm... deu a hora do almoço, vamos? — Nanda
perguntou sem graça. Dei um sorrisinho amarelo e senti uma leve queimação
preencher meu rosto, ao perceber a cena totalmente desnecessária de garota
mimada que eu havia acabado de fazer.
No caminho para o refeitório, vi Noah sentado em um banquinho
perto do lago. Seu corpo estava um pouco largado, enquanto jogava
pedrinhas na água. Suspirei fundo e nem pensei em parar, até que percebi
Thami a alguns metros de distância, que apesar de estar num grupinho de
meninas, olhava-o descaradamente. Senti uma histeria interna subir-me pelo
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corpo e apossar-se do meu ego: seria aquele o momento da vingança!


Com passos rápidos e cheios de charme, cheguei até o garoto mais
lindo daquele acampamento (quiçá de toda cidade!).
— Oi.
Ele olhou para mim e num instante ajeitou o corpo no banco. Parecia
ter sido despertado de outra dimensão.
— Ah, oi, Betina.
— Atrapalho?
— De forma alguma!
— Posso me sentar?
Ele chegou para o lado, deixando mais espaço para eu me sentar. Sem
necessidade, é claro, porque àquela altura a minha maior vontade era ficar o
mais perto possível do meu anjo.
— Você está bem? — Perguntei-o e olhei para Thami, que entre
olhares insistentes em nossa direção, tentava disfarçar sua insatisfação
fingindo conversar com as garotas que estavam perto dela. Sorri por dentro.
— Acho que sim. — Respondeu ele, um pouco apático.
— Se quiser conversar sou toda ouvidos. Ontem você me ajudou
muito e sinto que te devo essa!
— Que isso, você não me deve nada. Assim como Deus me dá
consolo quando preciso, eu também procuro ser canal de consolo dEle a
outras pessoas.
Mas será possível que Noah não conseguia falar pelo menos duas
frases sem colocar Deus no meio?!
— Betina?
— Hãm?
— Está tudo bem? Você ficou quieta de repente.
— Ai, desculpa! Me perdi aqui pensando umas coisas. — Ai, idiota,
mil vezes idiota! Por que eu tinha sempre que parecer uma boba quando
estava perto dele?
Ficamos quietos por mais uns segundos e eu comecei a ficar aflita,
precisava que Thami visse algo além do que só conversa. Porque senão, não
seria a vingança do jeito que eu havia imaginado!
— Notei você um pouco cabisbaixo depois da mensagem de hoje...
— Tentei puxar um assunto.
— Pois é. Não é difícil nos entristecermos com algumas coisas, mas a
alegria em Deus deve ser maior. — Seu olhar caiu e fixou-se numa fila de
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formigas que se estendia pela borda do lago. Senti que essa poderia ser minha
oportunidade de ouro. Acheguei-me mais perto dele e, colocando uma das
mãos em seu ombro, disse baixinho:
— A fé que você tem me inspira.
Seu ombro se mexeu levemente ao meu toque, mas logo depois
relaxou. Aproveitei para chegar mais perto e sussurrar próximo a seu ouvido:
— Na verdade, você me inspira por completo.
Suas mãos, que estavam apoiadas nas pernas, logo foram parar em
seus cabelos. Seu rosto, sempre branquinho, se tornou rosado e um sorriso
tímido apareceu em seus lábios.
— Obrigado. Você é muito gentil.
Apesar de, disfarçadamente, ele ter distanciado seu corpo do meu, eu
precisei fazer um enorme esforço para esconder minha euforia diante
daqueles olhinhos desconcertados. Agora eu sabia que tinha mexido com ele.
— Aiii! Socorro, alguém me ajuda! — Gritos estridentes se fizeram
ouvir. Eu e Noah nos viramos imediatamente para o lado de que vinha o som
e meus olhos não puderam acreditar no que viram. Noah levantou-se
imediatamente e foi até onde Thami estava caída — melodramaticamente
caída — e eu fiquei ali, com ódio preenchendo meu coração por completo.
Ao me aproximar, vi a cena mais ridiculamente calculada da minha vida:
Thami estendendo as mãos para que Noah a ajudasse a levantar, enquanto
fazia uma cara de sofrimento como se tivesse despencado de uma ponte de 50
metros de altura. Pronto! Depois daquela encenação digna de novela
mexicana, ela já podia fazer um teste para a próxima versão de A
Usurpadora.
Já em pé, depois da ajuda do Noah para se levantar, abraçou-o forte e,
olhando-me de soslaio, disse:
— Obrigada por sempre estar presente nas horas que eu mais preciso!
“Um. Dois. Três. Respire pausadamente, Betina. Conte até dez,
Betina”, repetia para mim mesma, enquanto colocava as mãos nos bolsos de
trás da minha calça jeans. Precisava guardá-las em algum lugar, antes que
resolvessem dar uma passeada no rosto de alguém.
Noah desvencilhou-se do abraço apertado daquela magrela
dissimulada e pediu licença. Deu-me um tchauzinho mixuruca e se afastou,
indo em direção aos quartos. Com a alma irritada até o último fio, também
resolvi sair dali. Passei em frente a melhor atriz do dia e ouvi risadinhas.

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***

Engoli a comida e fui correndo para o quarto. Peguei minha agenda e


uma caneta e resolvi desabafar para as folhas tudo que eu estava vivendo. Era
óbvio que a Thami forjou o tal tombo só para acabar com o meu momento
com o Noah. Nunca havia chegado tão perto e permanecido tão longe. Mas
aquela vaca ia me pagar! Eu estava quase furando as páginas com a força
com que pressionava a caneta ao escrever. A agonia que sentia começou a
crescer de tal forma, que transbordou em lágrimas. Incontáveis lágrimas que
começavam a pintar o papel marcado pelas letras azuis-bebê.
Quanto mais eu chorava, menos eu entendia e mais me indignava por
deixar algo tão pequeno me abalar tanto. Lembrei-me do que o anjo disse
sobre Deus nos consolar em todas as situações e resolvi falar com Ele, não
tinha nada a perder mesmo.
Enquanto orava, sentia mais vontade de chorar e, sem nem perceber,
me vi pedindo perdão a Deus por estar odiando tanto a Thami. Percebi que
não era bem por causa dela que eu estava chorando. Era por causa de mim
mesma. Senti que precisava de uma resposta, um sinal — quem sabe de Deus
— para aquele turbilhão que estava sendo a minha viagem à Gruta Alta. E
nem podia imaginar que a noite me aguardava com bem mais que uma
resposta.

***

Quando o pregador pediu para que abríssemos a bíblia, eu estava


muito dispersa. Mas assim que ele começou a falar, toda minha atenção se
prendeu àquele homem de alta estatura, cabelos claros e olhos castanhos, que
aparentava ter uns 30 anos de idade.
— Quando alguém se dispõe a ser usado por Deus, não deve
questionar o que Ele manda, deve simplesmente obedecer. E hoje, mais uma
vez, eu provo como é maravilhoso e desafiador andar nos ritmos da
obediência ao Pai. Quando recebi o convite para ministrar a vocês nesse
acampamento, eu logo pensei em alguns versículos bacanas, de
encorajamento, de ânimo e parti para buscar no Senhor o que deveria falar
especificamente. Mas ontem, antes de sair do Rio de Janeiro, Deus mudou
todo o roteiro e me entregou o que vou falar hoje. Eu orei e tenho plena
convicção de que Deus fará com que muitos entendam seu forte amor nessa
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noite.
Aí está algo que eu não esperava: encontrar alguém do Rio de Janeiro
naquele fim de mundo. Patrick apresentou sua esposa, que estava sentada na
primeira fileira com um bebê muito fofo e rechonchudo no colo. Eles
formavam uma linda família. Patrick continuou sua fala:
— Quem que está aqui hoje foi criado num lar cristão?
Muitos levantaram as mãos em resposta afirmativa. Noah continuou
com os braços abaixados.
— Muitos de nós, que crescemos indo à igreja com nossa família,
acabamos por viver a fé dos pais ou de quem nos levou até a igreja quando
pequenos. Só que não ficamos crianças para sempre e umas coisas loucas
começam a acontecer dentro de nós. E, de repente, os rostinhos de bebês são
deixados para trás e nos tornamos pessoas cheias de opiniões, gostos, novos
jeitos de enxergar a vida e principalmente a pessoa do sexo oposto. E então
nos aventuramos em uma vida que, na maioria das vezes, não glorifica a
Deus. À medida que crescemos, queremos ser aceitos, amar e ser amados e
nos encontrar nesse muito doido. Mas dificilmente buscamos em Deus a
razão disso tudo e seguimos os parâmetros do mundo em tudo em nossas
vidas. Fulana mexeu comigo? Vou mexer com ela também! Fulano beijou na
boca? Quero beijar também! Aquela atriz mega linda usa essa roupa
mostrando os seios e metade do bumbum, vou usar também! E por aí vai.
Simplesmente não olhamos para o que Deus fez por nós, e o que é a única
coisa que pode preencher todo esse vazio e anseio por aceitação que existe
dentro da gente. Blaise Pascal disse que todos nós temos um vazio no coração
que tem o tamanho de Deus. E isso porque você foi criado por e para Ele! E
foi Ele quem morreu por você, para que tivesse vida. Nós pecamos desde o
início. Já nascemos sabendo pecar, e por isso toda a ira de Deus pelo pecado
estava destinada a nós. Mas então, Jesus, que não tinha nada a ver com
nossos erros e falhas, mesmo sem ter pecado uma única vez, morreu em
nosso lugar. Ele se fez pecado por nós e carregou a culpa de toda humanidade
nas costas. Ele foi humilhado, rechaçado, machucado... Por mim e por você.
Deus fez cair o erro de nós todos sobre Jesus. E, com isso, Ele se fez caminho
entre nós e Deus. Hoje, quando o Senhor olha pra humanidade, é como se ele
usasse a lente “Jesus” e ao invés de nos condenar por nossos pecados, oferece
o perdão. Aqueles que creem nesse sacrifício de Cristo e se rendem a Ele são
justificados por Seu sangue. Ainda que não mereçam, se tornam justos diante
de Deus ao se arrependerem. Bem... Eu não sei quem você é. Não sei se já
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tinha ouvido isso antes. Mas quero te dizer: essa é a boa notícia. Deus se fez
carne e, mesmo sem pecar, morreu por você. Tudo por amor. Esse amor não
te sufoca, não te prende, não te machuca. Até porque esses não são sinônimos
de amor. O amor de Deus te faz livre, te mostra seu valor, te oferece perdão e
te dá a certeza da eternidade.
Patrick continuou a falar por mais uma hora. Para mim, foi como se
tivessem passado cinco minutos. Cada palavra que ele dizia, parecia ser
dirigida a mim. A mensagem pareceu um mix de tudo o que eu ouvi desde
que cheguei à Gruta Alta. Meu coração já não estava endurecido, eu ansiava
por saber se aquela vida com Deus que tanto falavam era real. Eu parecia
conseguir enxergar e entender algo novo a cada palavra e tinha plena
convicção: não era o Patrick. Era Deus. Ele, o Rei dos Reis, Senhor dos
Senhores, Criador do Mundo, estava falando... Comigo?! Essa constatação
fez com que um sorriso grato escapasse de meus lábios.
Eu fiquei ali, absorvendo cada vírgula da mensagem e a cada minuto
que passava eu tinha mais certeza: fui respondida! Não sei como, porque não
ouvi nenhuma voz audível, mas olha que louco, meu coração ouviu! E não
parecia ser uma bronca de um Senhor turrão que estava pronto a mandar raios
nas cabeças das pessoas a cada pecado cometido — como eu costumava
imaginar que Deus era —, foi como uma brisa suave. Finalmente eu
conseguia enxergá-Lo como um Deus que não estava tão distante assim, na
verdade, Ele estava mais próximo do que eu imaginava.
Patrick terminou a palavra e, antes que concluísse o apelo, eu me vi
lá na frente, diante do altar. Ajoelhei-me no chão e permiti que as lágrimas
escorressem sulfurosamente sobre meu rosto e meus lábios só conseguiam
balbuciar: perdoe-me, Deus. Naquele momento, era como se eu e Deus
estivéssemos a sós e, ao me render a Ele, sentia seu abraço de Pai. Minhas
lágrimas pareciam levar embora todo meu vazio e uma paz inundava meu
coração, dizendo “você encontrou seu lugar”, e meu lugar era na presença do
meu Deus. O Deus que tanto neguei com meus atos, mas que não hesitou em
me revelar Seu amor.
Senti dois abraços, mas dessa vez foram físicos: Nanda e Sissa se
ajoelharam ao meu lado e começaram a orar comigo. Quando levantamos,
não há legenda capaz de descrever o sorriso de felicidade que estampava
nossos rostos.
Aquele tinha sido um momento tão incrível que eu nem pensei em
Noah e no que ele estaria achando daquilo tudo. Ainda fungando, fui até a
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cadeira em que estavam minha bíblia e bolsa para buscá-las. Enquanto


ajeitava meus pertences, uma mão tocou minhas costas. Virei-me e deparei
com uma linda mulher negra de cabelos encaracolados, segurando um bebê.
Era a esposa de Patrick.
— Desculpe te incomodar, mas é que eu gostaria de falar algo com
você.
— Oh, tudo bem. Pode falar. — Tentei não transparecer a inquietação
de ter alguém que eu nem conhecia querendo conversar comigo. O que ela
teria para me dizer?
— Meu nome é Sarah, e o dele — apontou para o neném — é Iago.
Estamos alegres em te conhecer, Betina.
Esbugalhei os olhos. Como ela sabia meu nome?!
— Oh... Me desculpe. Você deve estar se perguntando como sei o seu
nome.
Opa! Leu meus pensamentos?! Bem, acho que ela leu minha expressão.
— Não, que isso... Bem, é... Como você sabe meu nome?!
Ela sorriu e sentou-se na cadeira ao meu lado.
— Noah nos disse que havia uma menina do Rio de Janeiro no
acampamento e eu quis conhecer. Espero que não se importe.
— Oh, não... É claro que não me importo! — Noah falando de mim
para as pessoas? Aguenta coração! Tomara que meus olhos não tenham
brilhado demais quando ela citou o nome dele.
— Gostando de Gruta Alta?
Soltei uma risadinha.
— Bom, pra quem tinha planos de passar as férias na Cidade
Maravilhosa, até que estou curtindo bastante. Gostar é forte demais. —
Rimos juntas. — O que de fato estou gostando é das pessoas que conheci
aqui. — Tudo bem, nem todas, pensei, ao lembrar de Thami.
— Que bom, porque, no final, o que fica de mais importante dos
lugares por onde passamos são as amizades que construímos.
Assenti com a cabeça e, depois de uns dois segundos, ela foi
absolutamente direta:
— Eu vi como você se entregou a Deus nessa noite, Betina. E por
mais que pra você soe estranho, por nós não nos conhecermos, me alegrei
muito com sua atitude. E tenho certeza de que Deus também se alegrou.
Havia possibilidade de meu rosto ficar mais vermelho?
— Que Deus abençoe sua vida.
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— Amém, obrigada. — Respondi, sem ter muito mais o que falar. Eu


estava surpresa. Ela estendeu um pedaço de papel pra mim e disse:
— Este aqui é meu número de telefone. Quando voltar para o Rio, me
mande uma mensagem, vou adorar te ver de novo e ter mais tempo pra
conversar.
Guardei o papel no bolso e recebi um abraço de Sarah e Iago. Nos
despedimos e eu fiquei ali, olhando-a se afastar e sendo vigiada pelos olhos
atentos de Iago, que estava com a cabeça virada para trás.

***

Depois do culto, os líderes organizaram um campeonato de jogos,


várias equipes foram formadas para jogar Imagem e Ação, Totó, pingue-
pongue, queimada e por aí vai. Eu não curtia muito esse tipo de coisa, mas
estava tão feliz que aceitei participar da queimada. A primeira partida foi só
entre meninas, a segunda jogamos contra os meninos. Eu gostei mais da
segunda partida, porque o Noah também estava jogando. Eu sempre tentava
queimá-lo, e ele diversas vezes atirava em minha direção. Fui queimada
primeiro, afinal, reconheço que meus dotes esportivos não são lá essas coisas.
Saí da quadra suando mais do que um maratonista da corrida de São Silvestre
e apertei os passos em direção ao bebedouro. Já bebia meu segundo copo de
água, quando Noah se aproximou.
— Água pra que te quero! — Bebeu três copos d’água e jogou o
quarto no rosto. Suas bochechas estavam da cor de um pimentão.
— Deu pra cansar, né? — Ri.
— E como! Pronta pra mais uma partida? — Falou ainda um pouco
ofegante e caímos na gargalhada.
— Uma partida de Uno, quem sabe. Nada de mais esforços por hoje!
— Isso mesmo, menina, amanhã uma longa trilha te espera e você
precisa estar bem descansada.
A trilha! Tinha até me esquecido desse detalhe. Triste detalhe, por
assim dizer.
— Que olhar de desânimo foi esse? — Ele riu — Tudo bem, talvez
pra uma garota da cidade não seja tão empolgante andar no meio do mato.
Mas garanto que vai ser divertido!
— Espero que não seja uma experiência traumática!
Rimos mais uma vez e ele assegurou que eu não me arrependeria.
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— Betina, queria te pedir desculpas por hoje. — Noah estava parado,


com uma das mãos na cintura e a outra segurando o copo. Seus olhos cor de
mel cravados nos meus.
— Desculpas, pelo quê?
— Nós estávamos conversando, e depois que eu fui ver o que tinha
acontecido com a Thami, nem me despedi de você direito.
— Você me deu um tchau. — Disse, segurando o riso.
— Ah, aquilo não foi um fim de conversa decente.
— Não tem problema. Mas você parecia incomodado quando foi
embora.
Plim, plim! Adorava quando eu conseguia pensar em algum
comentário inteligente! Ele passou as mãos no cabelo e olhou em outra
direção.
— Eu?
— É. Depois que ajudou a Thami. — Cutuquei.
— Oh, não, não. Eu não estava incomodado. Eu só estava um pouco
pra baixo de manhã, lembra?
Ok que ele não me convenceu, mas tudo bem. Foi tão óbvio seu
desconforto com toda aquela situação forjada pela Thami. Aposto que ele
também sacou que se tratava de uma farsa.
— Mas, enfim, estou desculpado? — Finalizou.
Eu assenti que sim com a cabeça. Ele começou a andar em direção à
quadra e eu fui junto.
— Hoje foi uma noite especial pra você, não foi?
Surpreendida com a pergunta/afirmação, respondi que sim.
— Dá para ver em seus olhos. Há um brilho diferente neles.
— Sério?! — Me animei. Será que era o mesmo brilho que eu via nos
olhos dele e de minhas primas?!
— Sim. Estar na presença de Deus é maravilhoso, não é?
Abri um sorriso de orelha a orelha e respondi:
— Vou me esforçar pra nunca mais sair dela.
Ele se aproximou de mim e passou o braço por meus ombros, me
abraçando. Eu não tive nem tempo de processar a informação, mas quando
percebi que o anjo estava me abraçando, isso mesmo, soletra comigo, a-b-r-a-
ç-a-n-d-o, quase tive uma taquicardia. Torci para que ele não percebesse a
alteração dos meus batimentos e desejei que aquele abraço nunca acabasse.
Mas acabou logo depois.
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— E você ainda tinha pensado em não vir... Viu como valeu a pena?
— Fez uma breve pausa e falou sério, olhando pra mim. — Conte comigo
para o que precisar, entendeu?!
— Pode deixar! — Não retive o sorriso e senti uma leve queimação
preencher meu rosto ao perceber que fiquei parada por quase um minuto
olhando pra ele com uma cara de admiração que beirava quase a uma boba
apaixonada. Ele baixou os olhos, parecendo ficar um pouco sem graça.
— Então nos vemos amanhã. Não se esqueça de colocar tênis e roupa
para caminhada, ok?
— Fechado!
E, com um sorriso, lá se foi ele para uma partida de Totó. Fiquei ali
alguns segundos, sem saber muito para onde ir, ainda estava com borboletas
no estômago pelo fato de ter ficado tão pertinho dele. Está certo que eu já
havia recebido alguns abraços dele antes, mas foi sempre quando estávamos
em grupo. Portanto, não valeu. Mas o de hoje... Ai, ai, não sairia da minha
cabeça nem tão cedo.

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Capítulo 8 – Desventuras na Floresta

Olhei em volta para ver se encontrava Nanda, Sissa ou alguma


menina do nosso quarto. Percebi, ao longe, alguns braços esticados acenando
para mim. Logo notei que eram elas e parti para lá.
— Oi, Bê, vem cantar com a gente! — Nanda me convidou cheia de
alegria e gestos, como sempre fazia. Elas estavam numa rodinha com mais
cinco meninas tocando e cantando louvores. Sissa tocava violão lindamente.
Eu nem fazia ideia de que ela sabia tocar algum instrumento, e tão bem
daquela maneira. A música em questão fazia parte do CD que tinha ganhado
delas. E como eu já o havia decorado praticamente todo, pude acompanhá-
las. Enquanto cantava, sentia uma paz tão grande em meu coração, uma
alegria indescritível. Eu ainda não fazia ideia de como minha vida seria dali
pra frente, quais desafios teria de enfrentar e mudanças fazer, mas não me
importava. O mais importante eu já sabia: Deus me amava a ponto de
entregar Seu Filho para morrer na cruz por mim. Jesus sofreu todas as
consequências dos meus pecados naquela cruz, morrendo em meu lugar. E,
como Patrick disse, nenhum ser humano seria capaz de fazer isso por mim,
porque todos têm pecado. Só Jesus, perfeito e Santo, sem pecados, poderia
morrer em meu lugar e carregar a culpa de todas as minhas falhas. Dessa
forma, Ele me justificou e abriu um caminho entre mim e Deus. Jesus se fez
Caminho, para que eu tivesse acesso ao Pai!
Incrível como eu já havia escutado sobre isso milhões de vezes ao
longo de minha curta existência e nunca havia, de fato, entendido. Agora tudo
parecia tão mais claro. Orei baixinho agradecendo a Deus por ter me dado
mais uma chance de conhecê-Lo.
— Ai, eu estou tão feliz! — Quando dei por mim já tinha soltado essa
frase. Não aguentei! As meninas sorriram.
— E nós também! Hoje foi uma noite incrível! — Sissa respondeu
tranquila, mas com os olhos vibrando.
— Que mensagem, que pregação, que culto! Foi uma bênção! —
Complementou uma das meninas que estavam na roda. E aí outra garota,
chamada Luana, começou a contar o que Deus tinha feito na vida dela aquela
noite. Enquanto falava, até soltou umas lágrimas e eu tive de me segurar para
não chorar junto com ela. Depois da Luana, uma menina que todos
chamavam de Gio, também contou como aquele culto havia sido especial
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para ela. E assim foi, uma a uma contando o que haviam recebido e entregado
ao Senhor naquela noite. Até que chegou a minha vez. Eu sabia que não era
obrigatório falar, porque era tão espontânea a maneira como todas estavam se
abrindo. Fiquei receosa por uns segundos. O que minhas primas achariam de
mim, quando eu dissesse que me converti há poucas horas? Elas bem sabiam
que eu ia à igreja desde bebê praticamente. Enquanto conjecturava comigo
mesma, Sissa dedilhava alguns acordes e todas estavam bastante
emocionadas.
— E...Eu...
Enfim tomei coragem. Até porque, se elas eram realmente servas do
Senhor, iriam se alegrar comigo, não é verdade?
— Bem...
Mas isso não quer dizer que seria fácil. Ainda gaguejei um pouco
antes de começar a falar de verdade.
— Hoje a pregação foi uma resposta de Deus pra mim. — Algumas
me olhavam atentas, outras estavam com os olhos fechados. — Desde que
cheguei a Gruta Alta, algumas coisas estranhas começaram a acontecer
comigo. Eu nunca havia me importado com Deus e com Sua vontade, levava
a vida do meu jeito, apesar de ir à igreja todo domingo. — Nesse momento
olhei para Nanda e Sissa, que me transmitiram um olhar tão terno, que me
senti mais à vontade para continuar. — Eu cheguei à cidade totalmente
irritada, porque minha vontade era ter ficado no Rio com minhas amigas.
Meu propósito estava decidido: ficar trancada no quarto todos os dias que
minha família estivesse por aqui. Porém, vi meus planos irem por água a
baixo quando duas meninas animadíssimas resolveram me arrastar para fora.
— Lancei um olhar de cumplicidade para minhas primas, que soltaram boas
gargalhadas. — E essa foi a melhor coisa que puderam fazer! Passei a ir à
igreja com elas e, a partir disso, comecei a ser confrontada com várias coisas
dentro de mim. Brigava comigo mesma para não aceitar o que ouvia, mas,
sem nem perceber, fui me encantando pelo jeito maravilhoso que as duas
servem a Deus. Passei a pensar mais Nele, a me questionar sobre Ele... Até
que chegamos aqui, onde as coisas se intensificaram, é claro. Desde ontem,
minha mente estava a pouco de entrar em curto, pois a cada momento eu era
confrontada comigo mesma e meus erros. Cheguei até a ler o livro de Tiago
inteiro! Eu nunca tinha feito isso! Nunca lia a bíblia, só na igreja ou em
algum culto no lar. Com a cabeça e coração bastante confusos, orei a Deus
por duas vezes, uma ontem no fim do culto e outra hoje pela tarde, para que
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me respondesse se de fato era Ele que estava por trás disso tudo. E cá estou
eu agora, após ter sido respondida. Diante de um amor tão grande como o
Dele, eu não pude resistir e me rendi Àquele que deu tudo por mim. Acho
que entregar minha vida ainda é pouco, né?
Tive que deixar Noah de fora do meu relato para me poupar
constrangimentos, o que foi uma pena, afinal, ele tinha uma parcela
importante em tudo que estava acontecendo — mesmo eu olhando para ele
mais como um ficante em potencial, do que como um servo de Deus.
Ao terminar de falar, minhas primas logo trataram de fechar com
chave de ouro aquele dia tão especial:
— Bê, retiro o que disse. Eu não estou feliz, não. Eu estou exultante,
transbordando de felicidade! Desde que você chegou, nós notamos que não
era muito próxima a Deus, então eu e Nanda passamos a orar por você.
Orávamos todos os dias para que Deus se revelasse a você e que seu coração
estivesse aberto ao trabalhar dEle.
— Lembra-se da segunda vez em que você foi à igreja, no culto de
domingo? — Interrompeu Nanda.
— Lembro sim.
— Percebemos sua inquietação com a mensagem e começamos a
interceder. Até fomos para a parte de trás da igreja orar por sua vida.
— Ah, então foi por isso que vocês chegaram com aqueles rostinhos
inchados? Oraram a ponto de chorar por mim?!
— Sim, prima. Você é muito especial para Deus e para nós também.
Nosso maior desejo era que você pudesse ter um encontro com o Senhor, mas
entendemos que Ele tem o tempo próprio para trabalhar e então nos
colocamos à Sua disposição para sermos usadas no que fosse necessário. Na
hora do apelo também levantamos um clamor por sua vida, pois percebemos
como você estava dividida e inquieta. — Complementou Nanda.
— E você saiu tão rápido da igreja que nem tivemos tempo de orar
com você. Quando chegamos lá fora, vimos que Noah já estava fazendo isso.
Esperamos ele terminar muito felizes pelo que Deus estava começando em
sua vida.
A essa altura meus olhos já haviam aberto suas comportas e filetes de
água escorriam intensamente um após o outro. Até pensei que o reservatório
de lágrimas havia acabado dentro de mim, por ter sido tão usado nas últimas
24 horas. Levantei-me e sentei entre as duas, que me abraçaram forte.
Agradeci por tudo que fizeram por mim.
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— E obrigada também por viverem assim, tão pertinho de Jesus. Eu


amo vocês.
Ganhei dois beijos, um em cada bochecha e ouvi um grande
“Ownnn” por parte das meninas, que assistiam à cena fofa da noite. Voltamos
a cantar e após umas dez músicas, resolvemos ir dormir. O dia seguinte seria
longo e eu nem podia imaginar quais surpresas ele iria trazer.

***

Enrolei na cama até o último minuto que pude. Cheguei a pensar em


desistir, mas as meninas do quarto não deixaram. Faltaram pouco jogar um
balde de água em mim. Na noite anterior, além de já ter ido dormir tarde,
demorei a pegar no sono. Fiquei um bom tempo pensando em tudo que havia
acontecido e no compromisso que fora firmado diante de Deus. Esforcei-me
para não ficar com mau-humor, afinal, era meu primeiro dia convertida e eu
tinha muito para aprender.
Fui para o banheiro coletivo arrastada. Ainda nem tinha amanhecido
e as garotas eram só animação! O banheiro estava lotado e havia cremes,
protetores solares, pentes, roupas de ginástica, maquiagem... Pasmem,
maquiagem! Eu adorava mandar bem na make em qualquer lugar que fosse,
mas se maquiar para uma caminhada de manhã era demais, né? Limitei-me a
passar somente BB cream no rosto e gloss nos lábios. Fiz o que precisava e
saí o mais rápido possível daquela algazarra. Levei a mão até a maçaneta da
porta do quarto para abri-la, mas, antes que a alcançasse, outra menina abriu-
a por dentro. Mas não era qualquer menina. Era Thami. “Estava demorando a
aparecer...”, pensei, ao observá-la.
— Bom dia, Betina. — Cumprimentou-me, com uma sobrancelha
arqueada e um tom de deboche além do normal na pronúncia do meu nome.
Dei um sorrisinho e tentei não transparecer a raiva que estava sentindo dela.
Ainda não tinha esquecido o dramalhão mexicano — feito só para me
atrapalhar — do dia anterior.
— Bom dia, Thami. — Respondi com o mesmo tom sarcástico.
— Eu adoraria continuar aqui, conversando com você. Mas preciso
terminar de me arrumar e passar esse batom lindo — apontou para o tubo
rosa em suas mãos —, porque é o preferido do Noah. Adoro agradá-lo, e
principalmente hoje, que ele me convidou para irmos juntinhos na trilha.
Acho que você percebeu ontem como ele gosta de proteger e cuidar de mim,
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né? — Terminou de falar e saiu andando, quer dizer, desfilando pelo


corredor. Ela estava com uma calça de ginástica apertando até a alma na
altura da panturrilha, na cor cinza. Seu bumbum ficava bem arrebitado e à
mostra. Usava um top preto e por cima uma regata branca, com as laterais
abertas até a cintura, revelando sua silhueta em formato de violão. Ela estava
pronta para matar. Ou melhor, pegar. E eu sabia bem para quem ela havia se
vestido daquele jeito.
Entrei no quarto controlando a ira. Ela estava mesmo disposta a me
tirar do sério e também me deixar bem longe do caminho do Noah. Que
garota insuportável! Comecei a soltar uns xingamentos mentais, quando me
dei conta de que aquilo não devia agradar o coração de Deus. Uma voz
parecia me dizer que eu não precisava daquilo e tentei controlar meus
pensamentos.
Será que Noah havia convidado a Thami para ir junto com ele na
trilha mesmo?! E ela tinha um batom que era o preferido dele? Ai, não! Vou
ter um treco!

***

Eu estava com uma calça legging preta, regata azul, tênis de corrida,
mochila nas costas e chateação no olhar. O guia da trilha nos dividiu em dois
grupos e eu não fiquei no mesmo que o anjo. E, pior ainda, Thami ficou. Se o
olhar dela tivesse legenda seria “Morra de inveja, garota”. Comecei a pensar
que talvez o que ela disse na porta do quarto tivesse sentido. Entristeci-me
com a possibilidade deles terem algum caso.
— Partiu conhecer a cachoeira mais linda de Gruta Alta?! — Falou o
guia com as duas mão em volta da boca e todos responderam com gritos e
assovios. Seguimos juntos até a entrada da floresta, e então percebi que o
guia do outro grupo era o próprio Noah.
— Galera, a partir daqui nós vamos nos dividir. O Noah vai conduzir
o grupo dele em uma trilha e nós vamos em outra. Em certos pontos do
caminho, as duas trilhas se encontram e elas levam ao mesmo lugar. Serão
duas horas de caminhada. Todos prontos?!
“Ai, moço, estar pronta é algo muito forte. Ainda mais depois de
ficar sabendo que eu não vou fazer a trilha com o Noah. Eu só vim, repito, eu
só vim, por causa dele e vocês fazem isso comigo?! Mas tudo bem, já que
estou aqui mesmo... Pelo menos vou poder vê-lo na cachoeira.”
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Adentramos a floresta seguindo as instruções de ficarmos um atrás do


outro. Para completar o quadro azarado do dia, eu era a última da fila. Eu
olhava para cima, para os lados, para trás e para baixo sucessivamente,
mortificada com a ideia de poder ser atacada por algum bichinho estranho.
Bom, bichinho é uma maneira positiva de pensar, porque eu já havia feito um
exercício mental de afastar de minha cabeça toda imagem de cobras, onças e
animais, digamos assim, mais assustadores. Depois de meia hora, eu já estava
mais relaxada com o ambiente e até comecei a papear normalmente com
Sissa, que estava à minha frente.
— Então quer dizer que aquele que recebe Jesus é uma nova criatura?
— Perguntei.
— Sim. A bíblia diz que se alguém está em Cristo, é nova criatura.
As coisas velhas já passaram, eis que tudo se fez novo! — Sissa respondeu.
— Então eu sou uma nova criatura? Mas e os pecados que cometi?
Eu tenho tanto o que mudar ainda...
— Bê, a salvação não diz respeito ao que você fez ou tem que fazer e
sim ao que Jesus realizou por você na cruz. Sua parte é ter fé, já o resto, deixa
com a Graça de Deus. Desde quando você creu na obra redentora dEle por
você e reconheceu Jesus como Senhor e Salvador de sua vida, tudo se fez
novo! A Betina com quem estou conversando agora, não é mais aquela que
chegou a Gruta Alta semana retrasada. Todos os seus pecados foram
perdoados no momento em que você se arrependeu deles e se rendeu ao
Senhor. Jesus cancelou sua dívida. Não carregue mais seus pecados, eles já
foram jogados no mar do esquecimento. E quanto à sua vida daqui pra frente,
o Espírito Santo vai te ajudar a viver o novo de Deus pra você. Somente
busque-O e creia!
Depois daquele sermão da Sissa, fiquei calada longos minutos
digerindo suas palavras. Tudo aquilo era muito novo para mim, mas eu estava
amando viver aquela novidade de vida, como Sissa me disse no começo da
conversa.
Fizemos uma pausa de cinco minutos e eu agradeci por poder sentar
um pouquinho. Meus pés já estavam ardendo dentro daquele tênis apertado.
O guia disse que um pouco mais à frente tinha um curto caminho que ligava
as duas trilhas. Logo passamos perto desse caminho e vi que não era longo. A
distância entre uma trilha e outra devia ser de uns dez passos. Como se uma
lâmpada brilhasse sobre minha cabeça, olhei para o caminho, olhei para a
minha trilha e olhei para a outra. Ouvi o guia dizer que o outro grupo
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provavelmente já teria passado por ali, pois começaram a caminhar um pouco


antes de nós. Enquanto pensava, via os meus companheiros de caminhada se
afastar cada vez mais de mim. Eu estava parada e precisava agir logo. Com
certeza a equipe de Noah estava à nossa frente. Acho que ninguém se
estressaria se eu os alcançasse e terminasse a trilha com eles. Por via das
dúvidas, falava que me perdi e encontrei o grupo de Noah. De quebra ainda
podia fazer um charme e ganhar a preocupação e atenção dele. “Você não
está com a intenção esdrúxula de copiar a Thami não, né?”, falei para mim
mesma. “Bem, acho que não... Ah, mas e se estiver, qual problema?!”
Não pensei nem mais um minuto e mergulhei caminho adentro.
Rapidamente cheguei à outra trilha e vi marcas de pegadas. Eles não deviam
estar muito longe dali, pois as pisadas pareciam ser recentes. Comecei a andar
na trilha e ainda podia escutar o barulho do meu grupo do outro lado do
caminho. Alguns minutos se passaram e eu passei a ouvir ruídos estranhos.
Tentei não prestar atenção e seguir em frente. “Mas que demora, minha
gente, já deve ter uns dez minutos que estou andando por aqui e nada de
encontrá-los!”, comentei em voz alta, ficando levemente apavorada.
Lembrei a mim mesma que o guia disse que a floresta era tranquila,
que sempre tinha gente fazendo aquelas trilhas e... Epa! Sempre tinha gente?
Ai, meu Deus, e se eu encontrasse um psicopata ali? Eu estava sozinha! O
pavor só crescia dentro de mim e comecei a me arrepender profundamente de
ter desobedecido às expressas ordens da liderança de não nos afastarmos do
grupo. Bem, mas eu só lembrei disso àquela hora e acho que já era tarde
demais. Não ouvia nenhum barulho que tivesse semelhança com vozes
humanas e nem rastro do grupo do Noah.
Árvores me cercavam por todos os lados e aqueles sons esquisitos só
aumentavam. Eu simplesmente não conseguia mais ignorá-los. Inundada pelo
medo, decidi correr. Assim, eu os encontraria mais rápido. Depois de dois
minutos correndo, não podia acreditar no que estava à minha frente. Ai, não
podia ser! A trilha se dividia em duas! E agora, como saber se eles seguiram
o lado direito ou o esquerdo? Dei uma olhada mais de perto e havia pegadas
em ambos. Fiquei parada ali sem saber o que fazer. Meu corpo todo tremia e
meu coração estava quase saltando pela boca. Nunca sentira tanto medo em
toda minha vida.
Me arrependi amargamente de ter deixado o meu grupo. Que bonito,
uma nova criatura agindo como velho homem! Aquele tipo de atitude eu
tomaria antes de conhecer o Senhor, mas agora eu era convertida e assim
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mesmo desobedeci, agi por impulso com a motivação de impressionar o


Noah, maquinei uma mentira para contar quando encontrasse a todos... E o
pior de tudo: a ficha só estava caindo agora.
— Deus, eu sei que estou errada até o último fio de cabelo, mas o
Senhor poderia me tirar dessa?! Me ajuda, por favor! — Orei quase chorando
e ouvi outro barulho.
Ai, socorro! Que barulho é esse?! Olhei para trás e não vi nada.
Olhei para os dois caminhos e também não. Mas o barulho só aumentava.
Decidi me esconder, não podia arriscar a ser vista por algum desconhecido
ali, sozinha. Isso, se fosse uma pessoa. Corri para dentro da mata e procurei
uma árvore grossa que tampasse meu corpo. Encontrei uma e rapidamente me
agachei atrás dela. Foram os segundos mais pavorosos da minha vida. O
barulho estava cada vez mais alto e eu não via ninguém se aproximar. Depois
de um tempo, ouvi relinchos. Continuei à espreita e assisti a um grupo de
quatro homens montados a cavalos passarem a toda velocidade e seguir o
lado direito da trilha. Ufa!
Já ia levantando, quando tive que engolir o grito que quase me
escapou ao ver mais um homem montado num cavalo. Agachei novamente
atrás da árvore e o observei, com as pupilas dilatadas e tudo dentro de mim
sacudindo de pânico. Ele, ao contrário do grupo que havia passado, andava
bastante devagar e parecia observar bem o caminho, o que me acrescentou
uma dose a mais de desespero. Lentamente, o homem foi se afastando e
seguiu também o lado direito da trilha. “Será que é esse o caminho que leva à
cachoeira?”, pensei um pouco mais aliviada. Já de pé, decidi voltar para a
trilha. Eu teria que escolher qual caminho seguir, se não quisesse ficar o dia
inteiro parada ali. Chequei o celular e eram nove horas da manhã. Ia
completar uma hora que eu estava perdida, o que significava que eles já
deviam estar chegando à cachoeira. Torcia para que já tivessem notado a
minha falta e orava desesperadamente para que alguém viesse me socorrer.
Eu estava na beira da trilha e dei um passo para dentro da floresta ao
perceber que não estava sozinha, outra vez. Ressabiada, fui andando de
costas para dentro do mato, quando vi o mesmo homem que havia passado
lentamente em cima do cavalo, minutos atrás. Meus batimentos foram a cem
por hora e eu travei. O cara de aparência largada e que parecia ter
aproximadamente quarenta anos olhava-me fixamente. Eu não sabia o que
fazer. Correr? Pedir ajuda? Chorar?
— É um pouco perigoso meninas ficarem andando sozinhas pela
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floresta, você não acha?


Sua voz me dava medo e sua fisionomia mais ainda.
— Eu posso te...
Não consegui ouvir mais nada. Quando percebi que ele estava
descendo do cavalo e mexendo na fivela da calça, bati em disparada para
dentro da mata. Corri com todas as minhas forças. Comecei a sentir uma
dorzinha embaixo da costela direita, que minha professora de educação física
disse certa vez ser ocasionada por respirar de forma errada. Tentei soltar mais
o ar pela boca para ver se a dor passava, mas só aumentava. Não conseguindo
continuar a correr, parei. Olhei em volta e não vi ninguém. Enquanto corria,
também não tive a impressão de ser seguida. “Tomara que o homem não
tenha vindo atrás de mim”, soltei o ar, exausta. O suor escorrendo pelo rosto.
— Ok, mas onde eu estou agora?
Olhei para o alto e para os lados. Só conseguia enxergar mato, mato e
mais mato. “Parabéns, Betina. Se você não tivesse saído de trás daquela
árvore, ainda estaria perto da trilha! Como vão te encontrar aqui?!”
Esbravejava interiormente. Agora eu estava mais perdida que antes! Eu não
precisava ter levado tão a sério meu plano de me “perder” do meu grupo!
Sentei-me ao pé de uma árvore, coloquei as pernas junto ao meu tronco e
fiquei ali, com os olhinhos marejados e coração transbordando aflição. O
mínimo ruído me fazia pular de susto e eu tinha a impressão de que a
qualquer momento aquele homem apareceria novamente. Já eram quase dez
horas da manhã e meu celular estava com a bateria acabando. Apesar de ter
alguns biscoitos na mochila, minha fome era zero. Eu me sentia fraca e toda
aquela adrenalina me fez ficar exausta.
Tentava pensar em coisas boas, lembrar-me do meu encontro com
Jesus e da felicidade que encheu meu coração. Também não parava de pedir
perdão: “Prometo que nunca mais faço isso, Senhor!”, falava repetidas
vezes. Apoiei minha cabeça nos joelhos, que estavam junto ao meu tronco e
passei meus braços pelas pernas. Eu bem queria acreditar que tinha formado
um casulo e que, ali, estaria protegida. Depois de alguns minutos, ao som do
canto dos pássaros e das folhas das árvores movimentadas pelo vento, meus
olhos foram vencidos pelo sono e cansaço e acabei cochilando.

“Árvores... galhos... vento... folhas... Tudo aquilo parecia me engolir.


Eu corria de um lado para o outro e, apesar de gritar, ninguém parecia me
ouvir. Ninguém podia me ouvir. Eu estava numa imensa escuridão e coberta
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pelo terror. Chorava feito um bebê e não conseguia encontrar saída. O que
aconteceria comigo? Como num piscar de olhos, tudo ficou claro. Mas não
parecia a luz do sol. Era algo muito mais forte. A luz muito mais intensa.
Apertei os olhos e tentei escondê-los atrás de minhas mãos. A luz estava a
ponto de me cegar, quando percebi Quem era. As lágrimas multiplicaram-se
e eu caí no chão, prostrada.
— ‘Assim diz o Senhor: Eu mesmo buscarei as minhas ovelhas e
delas cuidarei. Assim como o pastor busca as ovelhas dispersas quando está
cuidando do rebanho, também tomarei conta de minhas ovelhas. Eu as
resgatarei de todos os lugares de onde se perderam num dia de escuridão.’
— E então o Deus da voz suave como uma brisa e forte como um trovão me
pegou pelas mãos e me conduziu ao rebanho, o qual, com grande festa,
aguardava minha chegada. Ele tinha vindo me salvar.”

Abri os olhos assustada e dei um pulo. Demorei lentos segundos para


me lembrar de onde estava e tive a irremediável constatação: ainda estava
perdida no meio de uma floresta. Busquei meu celular no bolso da frente da
mochila para checar a hora e percebi que, apesar de ter parecido que dormi
duas horas, só tinham se passado sete minutos. Nesse instante, umas imagens
meio turvas e escuras vieram à minha mente e recordei o sonho mais rápido
que tive na vida. E o mais intrigante.
— Eu sonhei com Deus, é isso?! — Questionei-me. Esforcei meus
neurônios a trazerem de volta o que tinha se passado no sonho e lembrei
muito pouco. Apesar disso, fiquei mais tranquila e repetia, com fé: “Deus
está cuidando de mim, Ele vai me resgatar daqui”. Não posso dizer que
fiquei cem por cento confiante ou confortável. Minha fé ainda estava
nascendo, mas esse episódio fez com que ela se fortalecesse e muito.
Decidi pegar a garrafinha d’agua que estava em minha mochila e
escutei sons de galhos e folhas sendo pisados. Voltei a mochila para as costas
e fiquei de pé. Estatelei os olhos e engoli em seco. Seria o homem do cavalo
vindo atrás de mim? Tentei manter a calma. Os passos velozes estavam cada
vez mais perto e eu resolvi não pagar para ver. Saí correndo como uma louca,
e mais rápido que antes. Até que ouvi meu nome. E bem alto. Olhei para trás
tentando ver alguém e, quando virei para frente, já era tarde demais, havia um
grande tronco de árvore estirado no chão.
— AAAI! — O meu grito fez inúmeros pássaros voarem, assustados.
“Como eu queria poder voar também”, pensei triste. Caí de bruços e bati
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com a cabeça numa pedra. Estava esparramada no chão com dor em cada
pedacinho do meu ser, a cabeça latejando. Tentei levantar, mas foi em vão.
Não consegui.
— Betina!
Olhei para trás e, com a visão um pouco embaçada, avistei um anjo,
que tinha vindo me salvar. Fechei os olhos e respirei bem fundo, aliviada. E
então, tudo escureceu.

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Capítulo 9 – Um (desastroso) momento a sós

Abri os olhos vagarosamente. As folhas das árvores mais altas


balançavam devagar e eu não sabia se estava dentro de um sonho. Levantei
um dos braços e levei-o à minha testa, que doía. Nesse instante ouvi uma voz:
— Você acordou! Glória a Deus!
O sorriso dele era tão sincero.
— Noah?! — Perguntei assustada e tentei levantar.
— Não, não! — Ele me impediu. — Você tem que ficar deitada por
um tempinho, se levantar rápido pode acabar desmaiando novamente.
Em um estalo de memória, lembrei-me de tudo. Da corrida, de
escutar meu nome, do tronco — que estava perto de nós — e da minha
cabeça batendo numa pedra.
— Nossa, eu acho que não estou bem. — Olhei de relance para o meu
corpo, que estava devidamente deitado no chão. Minha roupa suja de terra,
meus braços ralados. E eu nem tinha visto o rosto ainda. Noah estava sentado
ao meu lado.
— É normal se sentir assim quando acorda do desmaio, mas se a
sensação persistir, me avisa.
Assenti com a cabeça e só depois de uns dez segundos coloquei as
ideias no lugar para perguntar a ele sobre toda a situação, se é que me
entendem.
— Como me encontrou aqui? Todos estão bravos comigo? Você veio
sozinho? E minhas primas, estão muito preocupadas?
— Calma Betina, que metralhadora! — Ele sorriu e continuou: — O
Cássio estava comigo, mas quando você caiu e ficou desacordada, pedi para
que ele voltasse e pedisse ajuda. Não poderíamos te tirar daqui machucada de
qualquer jeito. Eu já fiz um curso de primeiros socorros e por isso fiquei para
tentar te despertar.
— Você que me colocou deitada aqui?
— Sim. Também estanquei o sangue que estava saindo do ferimento
da sua testa. Agora acho que está tudo sobre controle, é só esperar eles
chegarem.
— Eles quem? O resto do grupo?! — Perguntei, virando bruscamente
a cabeça para olhá-lo. Senti tudo em mim doer novamente.
— Não. Na verdade, não sei bem quem virá, só pedi ao Cássio que
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explicasse a situação e trouxesse ajuda. Não esperávamos te encontrar desse


jeito.
Soltei um sorrisinho amarelo.
— Quando notaram minha falta?
— Você não acha que já tem muitas informações? É melhor
descansar e depois te conto tudo. Beleza? — Ele propôs. Mas, infelizmente,
ainda não conhecia o poder da insistência da dona Betina.
— De jeito nenhum! Eu quero saber tudinho, porque se foi eu que
causei tudo isso, quero saber e...
— Não foi você quem causou nada. E trate de descansar. —
Ordenou.
— Ah, não, anj... Quer dizer, Noah. — Enrubesci. Que mancada,
minha filha! Ele me lançou um olhar divertido.
— Anjo?! Hum... — Soltou uma risadinha. Eu não sabia onde enfiar
a cara, por isso resolvi desviar a atenção dele e me sentar.
— Ei, tome muito cuidado, não sabemos se você fraturou alguma
coisa. — Ele me observava preocupado. Apoiei as mãos no chão com um
pouco de dificuldade, já que elas também haviam ralado com o impacto da
batida no chão. Fiz uma forcinha para tentar sentar e senti o calor das mãos
dele na parte superior dos meus braços. Meu coração acelerou. Eu não
precisei fazer mais nada, ele me colocou sentada e assentou-se ao meu lado.
Noah olhava para os pés e pegou um galho para mexer, parecia
desconcertado. Antes que ouvíssemos o cricri dos grilos por causa do
silêncio, resolvi falar:
— É por que você me salvou.
Ele virou-se para mim com olhar interrogativo.
— Por isso você é um anjo.
Noah sorriu, apertando os lábios.
— Fiz o que devia fazer. Não gosto nem de pensar o que poderia ter
acontecido se não tivéssemos encontrado você.
Aquele carinho dispensado em cada palavra que saía de sua boca
estava derretendo meu coração. Não conseguia pensar em outra coisa que não
fosse encostar meus lábios nos dele. Noah era tudo que eu já tinha sonhado e
mais um pouco. Não poderia perder a chance de concretizar aquilo que
desejava desde o momento que o vi pela primeira vez. Não tinha como negar,
a paixão havia fisgado meu coração! Aproximei-me dele, que continuava
olhando para o chão, e chamei-o baixinho. Ele virou-se para mim, parecia
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tenso. Aquele lugar no meio da floresta, aquela situação... Tudo tão perfeito!
Estava me sentindo na cena de um filme de romance.
— Obrigada por tudo que fez por mim. — Sussurrei e levei meu rosto
próximo ao dele. Seus lábios tremiam levemente e ele tentava desviar os
olhos de mim, mas sem sucesso. Aproximei-me a ponto de sentir sua
respiração e, numa fração de segundos, encostei minha boca nos lábios mais
carnudos e tentadores que tinha visto na vida. Com movimentos suaves, abri
a boca para partir do beijo superficial para um arrebatador. Mas ele se afastou
antes e, com os olhos desnorteados, pareceu despertar do transe.
— Que isso, Betina?! O que você fez? — Ele ficou de pé e, aflito,
passava as mãos no cabelo bagunçado. Eu também acordei do que para mim
era um sonho e senti o rosto queimar de vergonha. Sem saber o que fazer e
muito constrangida por sua reação, olhava para tudo, menos para ele.
— Tudo bem, deixa pra lá. Isso só não pode acontecer novamente! —
Noah falou colocando as mãos na cintura, com tom de chateação e
desapontamento.
— Me perdoa, por favor. Eu fiz tudo errado, não podia tê-lo beijado
assim, mas é que essa situação... Tudo aqui... Me perdoa! — Minha voz
tremulava ao passo que tentava engolir o choro. Que humilhação!
Noah olhou-me piedosamente e aproximou-se de mim. Mas não
muito.
— Não precisa ficar assim. Eu que tenho que me desculpar por ter
reagido desse jeito, é que, que... Isso não acontece há muito tempo. Essa
proximidade... Eu te peço perdão porque não consegui me afastar a tempo e
acabei me envolvendo. Não era pra ter acontecido.
Levantei-me do lugar em que estava sentada e senti uma fisgada
sinistra na perna direita. Já ia para o segundo tombo do dia, quando com um
rápido reflexo Noah me segurou. Minha cabeça encostou-se ao peito dele e
olhei para cima. Noah estava com a boca aberta e me olhando mais
embaraçado que antes. Voltou-se para o lado parecendo procurar um bom
lugar e me colocou sentada ao pé de uma árvore.
— É, acho que não está tudo cem por cento aí dentro. Não levante
mais até o socorro chegar, certo?
Noah estava tão confuso que chegou a dar dó. Enquanto ele andava
de um lado para o outro e observava por entre as árvores para ver se alguém
chegava, eu curtia minha fossa. Cara, que idiota! O vexame que passei ainda
estava preso na garganta. Com que cara olharia para ele agora? O pior é que
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não tinha mais ninguém ali e não poderíamos ficar em silêncio por muito
tempo. Apesar de estar me sentindo mal, uma coisa era certa: aquele beijo
deixou-o balançado. Talvez fosse por isso que ele estivesse tão
envergonhado.
Por suas palavras, parecia realmente que aquela história de que ele
não beijava ninguém era verdade. Eu devia ter acreditado nas meninas. Mas é
óbvio que ele nem sempre foi assim, porque o ouvi dizer que “isso”, no caso
o beijo, não acontecia há muito tempo. Cheguei atrasada. Me dei mal. Mas, já
que estávamos ali...
— Há quanto tempo você não beija ninguém? — Peguei-o de
surpresa.
— Há uns 10 minutos. — Agora foi ele quem me pegou de surpresa.
— Tirando esse, como podemos considerar? Acidente? Faz dois anos e meio.
— Hum... Entendo. Você é muito feio e canta pior ainda, as meninas
não devem querer nada com um garoto assim. — O que eu estava falando?!
Acho que minha boca resolveu funcionar sem o cérebro mandar. Depois de
ter levado aquele toco colossal, eu estava elogiando entrelinhas o garoto que
fez isso!
— Pois é. Pode ser isso também. — Ele respondeu sério. Me dei mal,
parte dois. — Mas, na verdade, está mais para uma escolha que fiz. Decidi
ser puro e levar a vida no estilo Jesus de ser.
— E você acha que beijar na boca não está dentro da forma “Jesus de
ser”? — Instiguei com certa ironia. Ele suspirou profundamente e parou com
os braços cruzados.
— Betina, o que fazemos com os objetos?
Cheguei a cabeça para trás e apertei os olhos, sem entender o que
aquela pergunta tinha a ver com a conversa. Ele estava de pé a uma boa
distância e fitava-me nos olhos.
— Sei lá. Usamos? — Levantei o canto da boca e fiz uma careta por
não saber ao certo se aquela era a resposta. Ele fez que sim com a cabeça.
— Objetos têm a única função de serem usados, suprir necessidades e
desejos. Pessoas, não. Essas devem ser cuidadas, amadas e respeitadas. Só
que esse mundo louco que a gente vive inverteu tudo e ensina a amar coisas e
usar pessoas. O ficar faz isso. Você tem um desejo, então busca a pessoa que
os satisfaça por algum tempo. Não são criados laços, não há amor e muitas
vezes nem o desejo de amar. É só um interesse físico mesmo e egoísta.
Depois que aquela pessoa te ofereceu o que queria, você a descarta, e ela
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descarta você também. Mas, olha, as pessoas são muito valiosas para serem
tratadas como descartáveis. — Noah falava com tanta vivacidade, como se
não houvesse assunto melhor que aquele. — E respondendo à sua pergunta
inicial: sim. Beijar na boca está dentro do Jesus life style, mas quando vem
acompanhado de compromisso. Os relacionamentos na Palavra de Deus são
norteados pelo compromisso e não em diversões passageiras.
Uau. Minha admiração por ele elevou-se a outro nível. Se eu já
achava difícil encontrar algum menino como o Noah, depois de ouvi-lo falar
isso então... Acho que ele é exemplar único da categoria.
— Tudo bem, você já percebeu que eu não sou muito adepta a essa
teoria. Mas me conta, foi difícil parar de ficar?
— Você está começando sua caminhada agora, Deus ministrará a
vontade dEle ao seu coração. E sobre a sua pergunta... Abandonar o pecado
nunca é fácil porque somos humanos. Sofri um bocado no início, mas quanto
mais entendia sobre o amor de Deus, mais ansiava pelo que Ele quer. Nunca
será fácil, mas com a ajuda do Espírito Santo, a gente consegue.
— Você já ficou com a Thami? — Ih, quando percebi já tinha saído...
Mas de qualquer forma, eu precisava saber sobre esse assunto e matar minha
curiosidade, principalmente agora, que estava “fora do jogo”. Ele levantou as
sobrancelhas e colocou as mãos nos bolsos da calça tactel. Ah, mas eu não ia
ficar sem minha resposta.
— Pretende namorá-la? Porque ela, pelo visto, é caidinha por você.
Disse hoje cedo que até tem um batom que é o seu preferido. — Eu acho que
o ego ferido faz as pessoas serem mais caras de pau. Comigo estava sendo
assim e eu tinha certeza de que mais tarde me arrependeria de ter feito esse
comentário.
— É uma longa história que não vejo necessidade de contar. E sobre
o batom, Thami deve ter se enganado, pois eu nunca disse nada relacionado a
isso para ela. — Ele foi em direção a sua mochila e desviou 200 km do
assunto: — Você deve estar com fome. Tenho uns sanduíches aqui, vou
pegar pra você.
— Eu não quero. — Respondi secamente, mas por dentro me dividia
entre saltitante de felicidade por saber que a história do batom era mentira e
uma profunda agonia por não fazer ideia do que podia significar aquele “é
uma longa história”.
— Mas você está fraca depois de tudo que aconteceu, precisa se
alimentar. — Me entregou um pacote enrolado em papel alumínio.
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— Será que eles vão demorar muito a chegar? — Perguntei.


— Não sei. — Ele evitava me olhar nos olhos. — Acho que devem
estar por perto. O Tonho e o Pietro já tinham ido para o sítio avisar sobre seu
desaparecimento antes de te encontrarmos. Isso tem um tempo.
— Pietro é um garoto da igreja, mas e Tonho, quem é?
— É um homem que trabalha na fazenda da minha vó. Gente
finíssima. Ele que nos avisou que você tinha entrado aqui na mata.
Arregalei os olhos, aturdida.
— O hom..m..men do c..cavalo? — Gaguejei.
— Bom, ele estava em um cavalo sim. Na verdade, quando Tonho
não está com o Brutus, seu cavalo de estimação?! Ele estava no caminho,
indo para a cachoeira, quando eu, Cássio e Pietro o encontramos. Estávamos
procurando por você e nem precisamos dizer nada, ele já foi contando que
tinha uma garota sozinha na trilha e que quando o viu, saiu correndo mata
adentro. Concluímos que só podia ser você. Ele voltou com a gente até o
ponto em que você entrou na floresta. Como eu conheço bastante essa região,
entrei com Cássio para te procurar e pedi que Tonho e Pietro buscassem
ajuda no sítio.
— É. Eu o vi. — Me senti mais envergonhada ainda. Se eu tivesse
pedido ajuda ao Tonho, talvez tudo aquilo não tivesse acontecido.
— E sentiu medo dele, né? — Noah tinha nas mãos uma semente em
formato de bolinha, que jogava pra cima e pra baixo, sequentemente.
Balancei minha cabeça em sinal afirmativo.
— Desculpe. Se eu não tivesse corrido para dentro da mata, teria nos
poupado de tudo isso. — Falei pesarosa.
— Eu te entendo. No mundo de hoje é difícil confiarmos em algum
desconhecido e ainda mais na situação em que você estava, perdida e cheia de
medo.
Ai, porque ele tinha que ser tão fofo?!
— E o resto do pessoal, onde está? Demoraram a perceber que eu
tinha desaparecido? — Questionei, querendo saber os detalhes.
— Ficaram na cachoeira. Meu grupo encontrou o seu em um
daqueles pontos que ligam as duas trilhas e eles estavam atordoados.
Gilberto, o seu guia, estava pálido de preocupação. Eles notaram sua falta e
voltaram um pouco o caminho, te procurando. Mas como não encontraram
nem sinal de você, seguiram até que pudessem nos encontrar. Nós oramos,
pedindo a Deus que te guardasse e acalmasse seu coração onde estivesse.
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Decidimos que eu e os meninos iríamos pelo lado que viemos da trilha te


procurando e o Gilberto também foi com mais dois garotos procurar por você
na outra trilha. Mas antes disso, conduzimos todos à cachoeira e deixamos o
Jarbas, que é um dos líderes de jovens, como responsável por eles. A essa
altura, Cássio já deve ter encontrado Gilberto e avisado a todos que
encontramos você. Eles não vão demorar muito a aparecer por aqui.
Nossa! Eu tinha causado um verdadeiro escarcéu. E o pior é que eu
havia provocado tudo isso. Não foi um acidente.
— Estraguei o passeio de todo mundo. Que droga.
— Não fale assim. Devemos ficar agradecidos por eu e Cássio termos
conseguido te encontrar.
Ficamos um bom tempo sem trocar uma palavra. Ele sentou-se longe
de mim e aquilo me deu um nó na garganta. Depois que saíssemos dali, com
certeza ele se afastaria de mim. Eu não queria que acontecesse, mas talvez
fosse melhor dessa forma, para eu me recuperar mais rapidamente do fora
descomunal que recebi.
— Como você se perdeu? — Noah indagou, quebrando o silêncio.
Estava demorando para essa pergunta chegar. Soltei um longo suspiro.
Mentiria ou contaria toda a verdade? Bom, contar a verdade renderia uma
dose de vexame extra em minha conta com Noah. Outra opção era
simplesmente não responder. E agora?! O que fazer? Interroguei-me por
intermináveis segundos. Ele me questionava com os olhos.
— Eu acabei me distraindo com uma borboleta e a segui através de
um dos caminhos que ligam as duas trilhas. Quando percebi, já estava longe
de todos. Pensei que se eu seguisse adiante encontraria seu grupo, mas isso
não aconteceu e eu fiquei desesperada! — Fiz voz de choro e ele balançou a
cabeça, como que se compadecendo de mim. Minha cara nem queimou, mas
eu senti uma pontada de culpa. Eu sabia que metade da história estava certa:
eu realmente me perdi e busquei encontrar o grupo de Noah
desesperadamente. Mas não houve borboleta nenhuma e fui eu quem quis ir
atrás do grupo dele. O pior é que eu havia planejado contar uma mentira se
alguém questionasse. Mas não esperava mesmo que teria de contá-la (e
incrementá-la) para o menino que eu queria chamar atenção. E naquelas
condições! Meu plano havia dado muito errado mesmo e olhar o Noah ali,
suado, com aparência cansada e preocupada, por minha causa, me pesou
ainda mais a consciência.
Já completava uma hora que estávamos ali e eu era um mar de culpa.
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Não conseguia parar de pensar que tinha estragado o passeio de todos. E o


pior era a mentira que eu ia ter que continuar contando sobre o motivo de ter
me perdido. Já estava até me conformando com a bronca da minha mãe
elevada a altos decibéis por ter sido tão irresponsável, distraída e...
— Betina! Noah!
Ouvimos gritos ao longe e o anjo prontamente se levantou vibrando:
— Eles chegaram! — Passou a gritar, sinalizando onde estávamos.
Em instantes chegaram Gilberto, Cássio, Pietro e Patrick! Ele ali realmente
era uma surpresa para mim. Todos cumprimentaram Noah e logo vieram até
mim, que ainda estava sentada, me abraçar.
— Menina, que susto você nos deu! — Comentou Gilberto ao
verificar meus sinais vitais e eu somente abaixei a cabeça, imersa em
vergonha. Após fazer um questionário ao Noah a respeito de meu estado de
saúde, Patrick começou a me fazer perguntas sobre como me sentia.
— Ah, desculpe-me, Betina. Eu sou o Patrick que pregou ontem no
culto, lembra? Prazer em conhecê-la, mesmo que seja nessas condições. —
“É claro que me lembro de você Patrick, foi através de sua pregação que me
entreguei a Cristo!”, pensei divertida — Eu sou enfermeiro e vou cuidar de
você até que chegue ao hospital. Você sente dor em algum lugar?
Enquanto eu ia respondendo suas perguntas e sendo submetida a
alguns procedimentos, como aferir a pressão, agradecia a Deus por ser tão
bom comigo. Até um enfermeiro estava ali para me ajudar! Levantei-me com
a ajuda do Patrick e minha perna direita continuava doendo, mas consegui
andar forçando somente a perna esquerda e escorando-me nele e em Gilberto.
Eles insistiram para que eu fosse levada no colo, mas não quis. Se fosse Noah
quem tivesse proposto, talvez eu aceitass... “Desce para a realidade, Betina,
esqueceu do fora que recebeu há pouco?!”, repreendia a mim mesma, não
sabendo lidar com minha mais recente decepção amorosa.
À medida que andávamos pela floresta, fui percebendo como seria
difícil chegar até o sítio mancando daquele jeito. Os meninos respeitaram
minha decisão de não ser carregada, mas eu percebi o quanto estava
atrasando ainda mais nossa volta. De vez em quando, mesmo amparada por
Gilberto e Patrick, precisava parar para descansar as pernas e a esquerda já
começava a doer, por eu estar colocando todo o peso do meu corpo sobre ela.
Um silêncio mortal pairava entre nós e os rostos deles não deixavam mentir:
andar devagar daquele jeito estava deixando todos agoniados.
— Meninos, eu acho que vou aceitar o convite de ser levada no colo.
ACHERON - NACIONAIS - APOLLYMI
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Minhas pernas já estão doendo muito e, se continuar assim, chegaremos ao


sítio amanhã.
Respirações soltaram-se naquele momento, revelando o alívio que
sentiram com minha notícia. Eles decidiram revezar e cada um me levaria um
pouco. É claro que isso me alegrou muito por que... Bem, vocês já sabem o
porquê. Nossa peregrinação trilha afora ganhou um ritmo totalmente diferente
agora que eu estava no colo do Gilberto. Todos andavam bem rápido e eu me
arrependi de ter dado uma de durona não aceitando ser levada logo de início.
Estava adorando não sentir mais dor nos pés, sem contar que quase dormi
encostada nos braços fortes do Gilberto. Ele andava tão tranquilamente
comigo no colo que eu tinha a impressão de ter o peso de uma pena.
— E o restante do pessoal, Gilberto? Onde está? — Noah perguntou.
— Já devem estar chegando ao sítio uma hora dessas. Antes de
virmos até vocês, avisamos ao Jarbas para conduzir todos de volta.
Que maravilha, para não dizer o contrário. Minha chegada ao sítio
seria triunfante, com todos observando a menina que se perdeu na floresta.
Ganharia meus 15 minutinhos de fama.
Fizemos uma breve parada e depois de já ter sido carregada um
pouco por Patrick, mudei de braços novamente: dessa vez o Pietro é quem me
levaria. Fiquei envergonhada porque eu mal tinha falado um “oi” com o
garoto no acampamento e agora estava no colo dele! Mas necessidade é
necessidade. Não demorou muito para que eu notasse que apesar de bastante
suado, ele tinha um cheiro muito bom. E também um rosto que ficava ainda
mais bonito com o cabelo negro e bagunçado, caído sobre a testa. Gente,
onde eu estava que nunca tinha notado a beleza desse garoto?! Com os olhos
em Noah, é claro.
Pietro abaixou a cabeça, soltou um sorriso acanhado e meu coração
bateu forte. Ai, caramba, acho que perdi a noção do tempo olhando para ele e
o garoto percebeu. Betina e sua sutileza entrando em cena novamente.
— Está tudo bem? — Ele perguntou, dessa vez com um sorriso mais
aberto e olhando em meus olhos.
— Tirando o fato de que estou no colo de um menino que até poucas
horas eu nunca havia trocado uma palavra, acho que sim. E com você, tudo
bem, segurando esse peso todo?
Ele sorriu e respondeu:
— Por enquanto sim.
Abri a boca e apertei os olhos, fingindo estar ofendida.
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— Ué, mas você perguntou... — Ele respondeu, baixando os olhos e


eu segurei uma gargalhada:
— Estou brincando. Por mais leve que alguém seja, uma hora os
músculos cansam. Ninguém aqui tem os braços do Homem de Ferro.
Rimos juntos e Noah olhou para trás. Não entendi porque ele
percebeu nossa risada, já que estávamos mais atrás enquanto os outros —
inclusive ele — conversavam mais à frente. Mas seja por qual motivo, gostei
da olhada que ele lançou sobre nós e fiz questão de continuar puxando
assunto com Pietro. Depois de um tempo erámos só papos e risadinhas, ele
estava me dando um tremendo mole e eu gostando muito daquilo. Fizemos
outra parada para descanso e enquanto bebíamos água e comíamos os
biscoitos que estavam em minha mochila, Gilberto perguntou quem me
levaria no próximo trecho. Noah mal o esperou terminar de falar e disse sério:
— Eu levo.
Não consegui segurar a onda de animação que correu todo o meu
corpo. Os outros pegaram suas mochilas e Cássio levou a de Noah, enquanto
Pietro levava a minha. Ele me pegou no colo e mais uma vez me senti segura
ao seu lado. Noah tinha vocação para ser anjo. Não trocamos uma palavra e
ele olhava para frente com olhos firmes e rosto fechado. Ficou daquele jeito
desde que comecei a conversar e soltar umas risadas com Pietro. Noah estaria
com ciúmes de mim? A reação dele (se é que foi esse o motivo) me daria
motivos para não desistir. Será que ele também estava gostando de mim?
O problema é que eu estava cercada por muitos “serás”. O melhor era
esperar e ver o que ia acontecer. Dar em cima dele de novo é que eu não
daria! Eu tinha o mínimo de amor próprio.
— Brother, já faz um tempão que você está carregando a Betina.
Deixa que eu a levo até o sítio. — Ouvi ao longe Cássio falar, pois eu estava
de olhos fechados, quase dormindo encostada no ombro do Noah.
— Não precisa, a gente está quase chegando. E, além do mais, ela
está dormindo. Pode deixá-la aqui mesmo, obrigado. — Ele respondeu e eu
controlei meus lábios para não formarem um sorriso. Nós já havíamos parado
uma vez para que ele descansasse os braços. Disse que logo mais Cássio
poderia me levar, mas escolheu continuar comigo no colo. De todos os
momentos que passamos naquela floresta, depois do beijo, aquele certamente
era o que mais estávamos próximos. Eu aninhei minha cabeça em seu ombro
direito e podia sentir seu cheirinho de perto. Sua pele estava quente e,
definitivamente, se eu gostei do mole que Pietro me deu, preferia mil vezes o
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rosto sério do Noah. Naquele estado entre dormir e estar acordada, abri os
olhos e tive a visão um pouco embaçada dos meninos que estavam me
levando de volta. Meu coração se alegrou e me senti muito especial por ser
tratada tão bem por todos eles. Agradeci a Deus por nada de pior ter
acontecido e acabei adormecendo.
— Betina. — Ouvi um sussurro e abri os olhos, que se encontraram
com os dele. Noah apertou os lábios em um sorriso tímido e disse que
estávamos chegando. Despertei-me rapidamente do sono que não deve ter
durado cinco minutos e percebi que estávamos na saída da trilha, que se
encontrava com uma porteira de madeira, dando acesso ao sítio. Olhei para
frente e percebi a plateia enorme que nos aguardava. Ao nos avistar, todos
começaram a bater palmas e soltar assovios altos e estridentes. Notei que
entre eles também estavam mamãe, papai, Guto e Zuleide, que vieram
correndo ao meu encontro.
Noah me colocou no chão cuidadosamente e eu rapidamente fui
agarrada por minha família. Nanda e Sissa também vieram participar do
abraço coletivo. Mamãe chorava horrores e fazia um zilhão de perguntas. Eu
fiquei um pouco zonza com tanta movimentação, mas também feliz, por estar
ali com eles, bem e em segurança. Depois que me deixaram respirar um
pouco, vários adolescentes e jovens se aproximaram, me abraçando e fazendo
mais perguntas, dentre elas a tão temida: “Como você se perdeu?”. E,
sequentemente, ia repetindo minha mentira. Alguns faziam cara de que não
engoliram a história, mas o que importa é que a maioria pareceu acreditar e se
compadecer de mim, dizendo inúmeros “Glória a Deus por estar tudo bem”,
“Deus é bom” e por aí vai.
Fui resgatada por meu pai daquele furdunço que estava me
sufocando. Nanda tinha guardado minhas coisas na mala, que já estava no
carro. Enquanto meus pais conversavam com o pastor (até o pastor da igreja
foi lá no sítio acompanhar o andamento do meu resgate!), depois de terem
agradecido fervorosamente cada um dos meninos que me buscou, foi a minha
vez de agradecê-los. Abracei cada um e tive de conter o choro. Eles
realmente foram heróis para mim naquele dia. O último a ser abraçado foi o
Noah, que pelo menos aquele dia eu podia chamar de meu anjo.
— Obrigada por tudo e me desculpe mais uma vez. — Baixei os
olhos, enrubescida.
— Desculpas pelo quê? — Ele perguntou, mas logo arregalou os
olhos e balançou a cabeça, sinalizando que havia se lembrado do que se
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tratavam as desculpas. — Não tem problema, Betina, é só a gente esquecer


aquilo e está tudo bem.
Sorri para ele e abracei-o mais uma vez. Quando o soltei, notei
olhares dos meninos e das minhas primas, que estavam ali pertinho, fitando-
nos. Noah logo tratou de se afastar de mim e puxar algum assunto com os
garotos.
Despedi-me de Nanda e Sissa, que ficaram muito abaladas com o
meu sumiço, e sem ter muito tempo para conversar, entrei no carro bastante
triste por ter que deixar o acampamento antes da hora. O encerramento seria
no outro dia, na hora do almoço e por isso eu perderia as mensagens daquele
dia à noite e do dia seguinte pela manhã. Mas nem adiantava pestanejar, eram
ordens expressas de Patrick que eu fosse levada a um hospital tirar raio-x e
fazer alguns exames. Meus pais também não me deixariam ficar lá depois do
acontecido, então o jeito foi sentar no banco de trás do carro do papai e seguir
viagem rumo ao “centro” de Gruta Alta.

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Capítulo 10 – Os primeiros passos de uma nova Betina

No caminho, tive que contar como tudo aconteceu, tintim por tintim.
Fui interrompida vinte vezes pelos comentários dramáticos da mamãe: “Ai,
você podia ter morrido!”, “Imagina se esse homem tivesse feito algo com
você? Eu nunca me perdoaria por tê-la deixado vir nesse acampamento” e
desse nível pra cima. Sem contar as broncas — como eu já esperava — por
ter sido tão desatenta, sem responsabilidade, descuidada, imprudente... E
nesse ritmo chegamos a Gruta Alta. Se todos já olhavam para o carro
enquanto passávamos pelas ruas da cidade indo em direção ao hospital,
quando descemos dele então, nem se fale. A cidade pareceu parar e olhar
somente para a direção em que estávamos. Enquanto meu pai estacionava o
carro, fui amparada por minha mãe e Zuleide, que me levaram à recepção.
Chegando lá, a recepcionista falou bem alto:
— Ela é a menina que se perdeu na floresta perto da cachoeira?! É só
me dar os documentos para fazer a ficha.
A Zuleide percebeu minha face desgostosa desde que desci do carro e
notei tantos olhares lançados em minha direção, então depois da fala da
recepcionista, se preocupou em me informar o óbvio:
— Aqui as notícias correm rápido.
“É, eu percebi”, pensei mal-humorada. Após alguns minutos
esperando, fui chamada para ser analisada por um médico e me submeter a
exames. Duas horas depois, deixamos o hospital tranquilos por tudo estar
aparentemente bem dentro de mim. As recomendações médicas foram
repouso por dois dias e alguns anti-inflamatórios. A dor na perna direita fora
causada pelo impacto com que bati no tronco na hora da queda e, além do
ferimento da cabeça e alguns arranhões pelos braços, estava tudo certo
externamente também. Eu estava suada e suja e ansiava desesperadamente
por um banho. Ao chegar à casa da Zuleide, fui direto para o chuveiro.
Depois de um dia tão cheio de adrenalina como aquele, eu precisa descansar.
E também comer. Minha mãe fez uma sopa de macarrão com legumes
excepcional. A carne de panela também não ficava trás, estava uma delícia.
Bati um verdadeiro prato de pedreiro e corri para o quarto. Deite-me na cama
e, pela primeira vez no dia, meu corpo relaxou. Meus pés latejavam e o efeito
dos remédios já podiam ser sentidos, as dores no corpo estavam quase
sumindo.
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Ajeitei minha cabeça no travesseiro e não demorou muito para que eu


fosse invadida por cenas entrecortadas de uma menina numa floresta escura,
uma forte luz, lágrimas, palavras... De repente, tudo veio. O sonho que tive
mais cedo na floresta passou-se por completo em minha mente e foi tão real,
como se eu estivesse vivendo-o novamente. Lembrei-me de tudo que Jesus
disse para mim e as lágrimas passaram a correr descontroladamente. Abafei
os soluços com o cobertor, para que ninguém me escutasse e passei a juntar
todas as informações. Deus avisou que me resgataria! Ele falou em sonho que
me tiraria daquela mata e pouco tempo depois Noah apareceu para me salvar.
Ele disse que buscaria suas ovelhas e que delas cuidaria. Eu era uma ovelha!
Não, era não. Eu sou uma ovelha.
Meu coração batia acelerado e eu orei a Deus, agradecendo por tudo.
Pelos livramentos, por ter colocado o Noah em minha vida e até pelo Tonho,
que avisou por onde eu tinha entrado na mata. E, mais que tudo, agradeci por
Ele ter falado comigo. Desde que me converti, na noite anterior, ainda não
tinha tido um tempo para refletir em meu encontro com Ele e nada melhor
que aquele momento para isso. Pedi ajuda para seguir na caminhada, pois eu
não fazia a mínima ideia do que faria dali em diante.

***

Acordei no dia seguinte às dez da matina com um lindo café da


manhã na cama. Minha mãe e Zuleide haviam preparado bolo de chocolate,
suco de laranja, rosquinhas de polvilho e iogurte natural com o maior carinho
do mundo.
— Nossa, acho que preciso me perder mais vezes para ser tão
paparicada assim! — Brinquei e recebi de volta um olhar de repreensão da
minha mãe.
— Vira essa boca pra lá, Betina! E não se acostuma não, hein.
Rimos juntas e eu recebi um abraço muito gostoso da dona Gláucia.
Era um abraço de alívio por parte dela e de segurança por minha parte.
Apesar de nossas diferenças e constantes brigas, como era bom me sentir
protegida em seus braços! O desagradável só foi perceber que algo ruim
precisou acontecer para que eu valorizasse um detalhe pequeno, mas tão
importante como um abraço apertado.
— Bom dia, filha! — Meu pai adentrou o quarto junto com Guto, que
me deu um beijo na bochecha. Zuleide deixou o quarto e eu comecei a achar
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aquilo um pouco estranho. Os olhares apreensivos entre papai e mamãe não


me deixavam dúvidas de que aquele momento estava mais para a preparação
para uma má notícia do que para um bom momento em família. Apesar de
chegar a essa conclusão, resolvi esperar eles falarem e continuei degustando
meu delicioso café da manhã e o dividindo com o Guto, que agora estava
sentado ao meu lado devorando o bolo de chocolate.
— Como está se sentindo, filha?
— Estou bem, pai. Um pouco esquisita, mas bem. Deve ser o efeito
dos remédios aliado ao cansaço de ontem.
Ele assentiu com a cabeça enquanto sentava-se na beirada da cama.
— Betina, eu e sua mãe conversamos muito ontem à noite e
chegamos a uma decisão.
Arregalei os olhos e senti minhas mãos suarem com o que estava
vindo por aí.
— Foi um susto muito grande o que vivemos ontem e estamos
preocupados com a sua saúde. Decidimos voltar para casa antes da data que
estipulamos de início, para te levar a um hospital especializado, passar por
outros médicos e refazer os exames. E também para que você possa descansar
melhor em nossa casa.
— M... Mas eu estou bem, pai. Já fui ao hospital e fiz exames ontem!
Os resultados foram bons, está tudo certo comigo. Além do que, eu estou me
sentindo bem, só um pouco cansada ainda, mas nada que amanhã já não tenha
passado! A cama é uma delícia e a casa da Zuleide muito confortável, eu
consigo descansar muito bem aqui e... — Desembestei a falar igual a uma
maritaca tentando convencê-los a não ir embora, mas as expressões dos meus
pais não eram as melhores.
— Filha... — Papai me interrompeu calmamente. — Nós iríamos
embora daqui a cinco dias. Ir hoje não vai fazer tanta diferença assim. Pensa
pelo lado positivo: você vai poder ver a Luca e a Beca mais cedo e aproveitar
o restante das férias com elas. Você sabe que elas podem dormir em nossa
casa quantos dias quiserem...
Enquanto ele contra-argumentava, eu pensava em Luca e em como
nunca passaria pela cabeça do meu pai que ela estava grávida. Acho que as
festas de pijama não poderiam acontecer com tanta frequência, já que dali a
mais ou menos oito meses ela estaria com um neném nos braços. Por um
lado, seria legal ter um bebezinho bem pertinho para paparicar, mas por
outro... Luca se tornaria uma mulher com responsabilidades de mãe e não
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mais uma adolescente que dorme dias na casa da amiga, comendo brigadeiro
e assistindo maratonas de séries da Netflix, sem nenhuma responsabilidade
além de tirar notas boas no colégio. Mas, se era assim que a vida dela seria
dali pra frente, eu estaria ao lado dela em tudo! Principalmente a partir
daquele momento, que eu estava com o Senhor, queria contar a ela que não
precisava ficar sem esperança, porque existe um Deus que a ama e cuida dela,
apesar de seus erros e pecados. Mal via a hora de encontrar minhas amigas e
compartilhar sobre o meu encontro com Deus! Mas, mesmo ansiosa por esse
momento, eu não tinha tanta pressa para que ele chegasse. Cada coisa tem seu
tempo, como diz no livro de Eclesiastes (o Noah citara esse texto em algum
lugar que não lembrava onde), e aquele momento, em minha humilde
opinião, era o tempo de continuar em Gruta Alta, me divertindo e aprendendo
mais sobre Deus com os amigos que fiz ali.
— Pai, eu quero muito ficar. Por favor, eu estou bem e prometo que
respeito os dois dias de repouso que o médico pediu direitinho! — Clamava.
Ele respirou profundamente e olhou para minha mãe, que pela cara não
demoraria a continuar segurando as palavras.
— Não dificulte as coisas, querida. Nós vamos embora hoje à tarde!
— Decretou meu pai e meus olhos molharam-se ao perceber que eles não
cederiam tão fácil.
— Mas... Mas... — As palavras fugiram da minha boca e eu fiquei
gaguejando, à medida que sentia meu rosto ser preenchido por desalentadas
lágrimas.
— Por acaso todo esse sofrimento tem a ver com aquele menino que
chegou com você no colo ontem, no sítio? Eu falei pra você “Guarda o
coração”, mas parece que não adiantou! Você nem queria passar as férias em
Gruta Alta e há uma semana seria a primeira a entrar no carro para ir embora
daqui! Por que esse show agora?!
Minha mãe falou isso na frente do meu pai, que vergonha! Está certo
que eu também queria curtir mais alguns dias perto do Noah — se é que isso
aconteceria — mas não era só por ele que eu insistia em ficar.
— Nada a ver, mãe. Eu quero ficar por causa dos amigos que fiz aqui
e...
— Ué, mas hoje tudo pra vocês adolescentes não é WhatsApp,
Facebook... Use as redes sociais pra algo melhor do que só ficar postando
foto de “look do dia” e conversa com os amigos daqui, ora!
Engoli a raiva que subitamente surgiu dentro de mim e contei até três
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para criar coragem e contar tudo a eles:


— Mãe, eu quero ficar porque me converti antes de ontem à noite.
Sei que eu vou aprender muita coisa e também receber bastante apoio e força
dos meus amigos da igreja daqui, principalmente Nanda e Sissa. — Falei e
observei as expressões dos meus pais transformando-se rapidamente em
estranhamento. — Patrick, o enfermeiro que estava junto com os meninos
que foram me resgatar na floresta, foi quem pregou naquela noite. E diante de
tudo que ouvi só restou me entregar ao Deus de quem eu ouvia falar desde
que nasci, mas que ainda não conhecia. Foi confrontador, mas foi incrível
também! — E assim continuei contando sobre o que foi a pregação daquela
noite e tudo que vinha aprendendo desde que chegamos a Gruta Alta.
Terminei de falar e esperei alguns segundos até que eles pronunciassem
alguma palavra.
— Nossa... Por essa eu realmente não esperava. Você vai à igreja
conosco desde a barriga da sua mãe e me diz que você se converteu antes de
ontem! — Papai me olhava confuso.
— Pai, uma hora os filhos têm que ter seu próprio encontro com
Deus. Eu vivia a vida de vocês na igreja e não a minha. Quando era criança,
adorava tudo aquilo, mas depois que me tornei adolescente passei a achar um
tédio. Minha vida era dupla até dois dias atrás, porque eu ia à igreja só para
não decepcionar vocês, mas não tinha nada a ver com Jesus. Vocês com
certeza notaram isso. Ainda é muito recente, mas eu entreguei meu coração a
Deus. Eu tenho fé em Jesus e em Seu sacrifício por mim. Eu ainda não sei
como é viver um relacionamento com Deus, mas quero ter a oportunidade de
aprender com pessoas que têm a minha idade e vivem isso intensamente,
como minhas primas.
Acho que mandei bem na resposta, porque dona Gláucia e senhor
Antônio pediram licença para conversarem um pouco fora do quarto.
Enquanto eu esperava a decisão final dos dois, orava a Deus para que Ele
permitisse que eu ficasse pelo menos mais aqueles dias ali. A porta abriu-se e
senti um frio na barriga. Aquela era a hora decisiva: saber se eu continuaria
por mais um tempo naquela cidadezinha que eu tanto odiei, mas que agora
tinha um lugar especial em meu coração. Eles entreolharam-se e minha mãe
começou a falar:
— Betina, queremos que saiba que, embora surpresos, estamos
contentes com tudo que você disse. Não é fácil como pais reconhecer que
falhamos em alguma parte, afinal, você está debaixo do mesmo teto que nós e
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a gente nunca conversou com você sobre um encontro pessoal que deveria ter
com Deus. Pedimos perdão a Deus por não termos nos atentado que suas
atitudes não eram somente de “adolescente rebelde” e sim de uma
adolescente que não conhecia a Jesus de verdade. Queremos ser mais
presentes em sua vida, espiritualmente falando, e também que conte conosco
em sua caminhada com Cristo. Isso não significa que devemos permanecer
em Gruta Alta. — “Ai mãe, sua fala estava tão emocionante”, suspirei. Pelo
jeito, nada estava feito. — Mas significa que mesmo um pouco contrariados,
ficaremos aqui por mais esses dias.
Yes! Tudo estava feito! Uhul!
— Ai, eu amo vocês! — Gritei e pulei no pescoço dos dois, que me
abraçaram apertado.
— Ei, cuidado com essa perna dolorida aí, mocinha! Não quer
estender os dias de repouso, né? — Falou meu pai, enquanto eu tentava
disfarçar a dor que senti ao forçar a perna direita para pular em cima deles.
— Obrigada mesmo, vocês são os melhores pais do mundo! —
Continuei expressando minha alegria enquanto eles sorriam.
— Que tal uma oração pra brindar esse momento?! Só Jesus mesmo
pra fazer Betina até chorar para ficar em Gruta Alta! — Brincou meu pai,
antes de iniciar a oração. Palavras não podem descrever o que eu senti
naquele momento. Era um misto de gratidão, felicidade, sensação de que
muitas coisas boas estavam por vir e, principalmente, o amor de Jesus sobre
nós! Depois que oramos, saíram do quarto deixando-me a sós. Logo tratei de
pegar meu celular e mandar um SMS para Nanda e Sissa. Queria vê-las e
compartilhar as novidades urgentemente!

***

— Caraca, Bê, que desespero! Imagino o que você deve ter sentido
perdida dentro daquela mata. — Sissa falou cheia de empatia, após eu contar
tudo que aconteceu nos momentos em que fiquei perdida. Só omiti o beijo
que roubei de Noah.
— Pois é, não foi nada legal. Graças a Deus ficou tudo bem! Mas me
contem, o que aconteceu no acamps depois que eu fui embora? Queria tanto
ter ficado até o encerramento!
Elas me contaram tudo que aconteceu após eu ter voltado para Gruta
Alta. Nanda e Sissa passaram o finzinho da tarde e início da noite comigo.
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Elas mal chegaram do acampamento e correram para casa da Zuleide me


encontrar.
— Ficamos muito preocupados quando notamos sua falta na trilha.
Muitos nem chegaram a entrar na cachoeira tamanha apreensão com seu
desaparecimento. Eu e Nanda só sabíamos orar a Deus pedindo que você
fosse encontrada. Foi um alívio geral quando ficamos sabendo que Noah e
Cássio haviam te achado.
Ao escutar Sissa falar sobre os detalhes do que aconteceu quando eu
estava na floresta, meu coração mais uma vez pesou pela mentira que estava
contando sobre o real motivo de ter me perdido. Aos moldes Betina de ser, a
maneira como contava que me perdi poderia ser enquadrada em “mentirinha
do bem” e, portanto, eu deveria estar tranquila. Afinal, era para salvar a
minha pele de uma humilhação pública que eu tinha inventado aquela
estorinha inofensiva da borboleta. Mas acontece que eu estava ficando com o
coração inquieto ao reproduzir a mentira. Apesar disso, tratei logo de abafar
aquele sentimento e prossegui com nossa tarde/noite maravilhosa.
Nós oramos algumas vezes e lemos a bíblia juntas. Eu estava com
bastante vontade de conhecer mais sobre Deus e elas me ajudavam nisso.
Acho que só naquelas horas que ficamos juntas aprendi mais do que em toda
minha vida indo à igreja. Entristeci-me ao pensar no tempo que joguei fora
não prestando atenção nos cultos.
Depois que elas foram embora, eu peguei a bíblia para ler sozinha.
Nanda me aconselhou a começar pelos evangelhos (primeiros livros do Novo
Testamento), pois lá contava sobre o nascimento, vida, morte e ressureição
do meu Salvador Jesus. Abri no livro de Mateus toda animada e lembrei-me
imediatamente da grosseria que havia feito com o Matheus no ônibus. Tudo
bem que ele mereceu, por ter sido tão abusado, mas acho que fui dura demais.
Resolvi orar mais uma vez e pedir a Deus que me ajudasse a ter mais
tolerância, porque ser pavio curto era uma das minhas especialidades.
Lendo as primeiras páginas do evangelho segundo Mateus, o capítulo
cinco não pode passar despercebido. Era o tão famoso Sermão do Monte.
Mais uma vez fiquei abismada, como no dia em que li a carta de Tiago, com
a atualidade das palavras de Jesus! Consegui rapidamente refletir em muitas
coisas em minha vida que precisavam ser mudadas. No momento em que
minhas primas estavam comigo mais cedo, elas falaram que, como cristã, eu
devo ser luz e sal onde estiver. Ou seja, eu preciso ser diferente e revelar
Jesus com minhas atitudes e ações, assim a minha luz brilhará diante dos
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homens “para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês,
que está nos céus.”(Mt 5.16b). Fiz uma descoberta incrível naquela tarde: é
meu dever mostrar Jesus através de mim! E conseguirei tal façanha agindo
como Ele, seguindo o que Ele fez. Por isso Noah sempre dizia que nós
devemos ler muito a bíblia, porque é por ela que podemos descobrir a
maneira de viver que agrada a Deus.
Li quase todo o livro de Mateus naquela noite e fiquei surpresa
comigo mesma. Afinal, ler a bíblia sempre esteve entre as atividades mais
chatas da minha vida e de repente eu estava ali, diante dela, amando absorver
tudo que tinha para me oferecer. Algo lindo estava acontecendo dentro de
mim, como se a minha vida tivesse começado de verdade no momento em
que fui encontrada por Ele.
Deixei a bíblia ainda aberta em cima do criado mudo e fui jantar. Na
mesa, muitos sorrisos e histórias, conversas jogadas fora e uma surpresa:
prima Zuleide me presenteou com um livro de devocional para garotas. O
livro era lindo e dividido entre reflexões bíblicas, dicas de moda, espaços
para anotações, um calendário anual de leitura bíblica e diversas outras
coisas. Fiquei muito agradecida e comecei a explorá-lo ali mesmo, na
pequena mesa de jantar da cozinha. Minha mãe adorou o livro mais que eu e
perguntou onde a Zuleide havia comprado.
— Foi numa livraria cristã que tem aqui na cidade. Lá tem livros
ótimos!
— Tem mais livros cristãos para adolescentes? — Perguntei cheia de
entusiasmo, porque a leitura é uma de minhas paixões.
— Tem vários! Se você quiser, posso te levar lá.
— Eu quero com certeza. — Falei, abrindo um sorrisão.
Depois disso, voltei para o quarto e coloquei meu pijama, disposta a
dormir. Mas fui impedida porque certo beijo invadiu meus pensamentos.
Desde que cheguei da floresta, tantas coisas aconteceram que ainda não tinha
parado para pensar no fatídico beijo que dei no garoto mais lindo e
encantador daquele lugar. Pus-me então a pensar e repensar os momentos em
que passamos a sós na mata e meu coração ficou apertadinho. Uma porque,
apesar de tê-lo beijado (e ter sido mágico!), recebi o pior toco da minha vida;
e outra porque eu achava que estava realmente gostando dele. Mas Noah era
uma incógnita! Ao mesmo tempo em que deu a entender que ficou
incomodado com a minha aproximação de Pietro na trilha, parecia querer me
mostrar que eu não tinha mínimas chances. Mas mesmo que ele agisse
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daquela maneira, não conseguia segurar o sorriso que se formava em meu


rosto ao lembrar de seu olhar desconcertado após nosso beijo. Devo ter ficado
quarenta minutos pensando nele, depois fui vencida pelo sono e dormi.
O dia seguinte amanheceu com o céu pintado de azul turquesa,
iluminado por um sol que resolveu mostrar seu poder de queimar logo cedo.
Estava um calor danado e ainda eram oito horas da manhã. Vez ou outra
passava as mãos em minha testa para limpar o suor, enquanto lia o livro que
ganhei da Zuleide. Levantei cedo naquele dia, sem precisar ser acordada por
ninguém. E já que meu pai não ia me deixar sair de casa, resolvi nem pedir,
até porque eu só tinha mais aquele dia para repouso mesmo. E, para falar a
real, não me arrependo nem um pouco. Mandei mensagens de texto para
Beca e Luca, pois desde os torpedos que troquei com Beca no acampamento,
ainda não tinha notícias de nenhuma das duas. Naquele momento, quem eu
mais ansiava saber como estava era Luca. A curiosidade para saber como
estava acontecendo toda essa história de se descobrir mãe de uma hora para
outra (e com 15 anos!) me consumia por dentro. A Luca devia estar pirando.
Era muito louco pensar onde nossas escolhas podem nos levar. E, sem querer,
acabei passando o dia todo praticamente pensando em escolhas. Terminei de
ler o livro de Mateus e consegui entender um pouco, com os olhos vibrando,
o que foi a morte e ressureição de Cristo.
Nunca tinha lido sobre a crucificação com tanta vontade. Jesus
escolheu ser humilhado, zombado, chicoteado e crucificado para livrar-me da
condenação eterna. Ele podia ter chamado um exército de anjos para que O
defendesse na hora em que foi preso, mas Ele foi como uma ovelha muda
perante os seus tosquiadores e nada disse. Nem se defendeu. Cristo decidiu
morrer por nós e suas escolhas abriram caminho entre nós e Deus. Amor
igual a esse? Nunca vi igual!
Logo depois de Mateus, li Marcos e entre um capítulo e outro
pensava nas escolhas que havia feito em minha vida. Claro que não pude
deixar de pensar na melhor delas: a de receber Jesus em meu coração. Mas
acredito que escolha talvez não seja a palavra mais correta nesse caso, porque
o que senti foi um chamado irresistível vindo de Deus. Aquilo que mais tarde
eu descobriria como sendo “Graça Irresistível”. Não tem como resistir à voz
de Deus, quando Ele nos chama à salvação nós vamos e pronto!
Em meio às minhas leituras e reflexões, uma música que eu escutava
bastante quando era criança começou a povoar meus pensamentos: “Vou
entrar em meu quarto, fechar minha porta, vamos ficar juntinhos, só eu e o
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Senhor...”. Passei a cantarolá-la enquanto imergia no conhecimento de Jesus.


A Zuleide recebeu algumas visitas durante a tarde e uma delas foi da
esposa do pastor da igreja. Eu não queria deixar o quarto, mas minha mãe fez
aquela pressãozinha psicológica para que eu fosse cumprimentar a dona
Mariana. Sentadas no sofá e tomando um cafezinho, papo vai, papo vem e a
esposa do pastor começa a falar em como o coração dela ficou aflito com
meu desaparecimento e como todos que ficaram sabendo na igreja oraram
para que eu ficasse bem. Pronto, aí a tortura emocional começou. A culpa me
corroía por eu pensar em como preocupei tanta gente e por um desejo
egoísta! Eu não pensei nem um pouquinho nas consequências da minha
atitude e mais uma vez pensei nas escolhas que tinha feito e que me levaram
a passar e causar toda aquela situação.
Dona Mariana falava e eu só conseguia dar um sorrisinho meia boca,
totalmente sem graça. “Pelo jeito os próximos dias serão assim, recheados
com eterno remorso”, refletia. À noite recebi a visita das minhas primas
novamente e elas me trouxeram uma proposta bem legal, a de fazer estudos
bíblicos comigo com os temas mais importantes para meu início de
caminhada na fé, até eu ir embora. Não pensando muito que eu só tinha mais
quatro dias para ficar ali, resolvi aceitar e começamos naquele dia mesmo. O
primeiro assunto abordado por elas foi sobre nossa condição de pecador e o
perdão de Jesus.
— Em Romanos três, Paulo diz que todos pecaram e estão afastados
da glória de Deus. Nós já nascemos pecadores, herdamos isso de Adão, o
primeiro homem a pecar. Mas na mesma carta aos Romanos também é dito
que apesar de pela desobediência de um só homem (Adão) muitos terem sido
feitos pecadores e receberem condenação, assim também um só ato de justiça
resultou no perdão que traz vida a todos os homens. Isso quer dizer que
através da morte de Jesus nós podemos ser perdoados e considerados justos,
mesmo tendo pecado. E esse perdão de Jesus nos traz vida. A bíblia chama
aqueles que não creem em Cristo como pessoas mortas espiritualmente.
Quando nos arrependemos de nossos pecados e acreditamos no sacrifício de
Cristo por nossas vidas, o sangue de Jesus que foi derramado naquela cruz
nos perdoa e nos torna novas criaturas. O Espírito Santo passa a habitar em
nós e, como diz lá em João, rios de água viva fluem do nosso interior.
Passamos a ser vivos espiritualmente, porque o próprio Deus está em nós
através do Espírito Santo!
Peguei minha agenda e anotei algumas coisas que Sissa estava
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falando. Eu precisava ler aqueles textos bíblicos que ela citava depois para
fixar o que aprendi. Aquilo era muito valioso para ser esquecido!
Terminamos nosso estudo e partimos para uma sessão cinema. Assistimos a
um filme que a Zuleide tinha em casa mesmo e comemos muita pipoca.
Como sentiria saudades das duas quando voltasse para o Rio de Janeiro...

***

Os três dias que se seguiram foram bem tranquilos. Eu já não sentia


dor na perna e o ferimento da cabeça estava quase curado. Aproveitei para
passear bastante com Sissa e Nanda, dar continuidade aos nossos estudos e
ansiar por ver Noah em algum dos lugares que nós íamos. Infelizmente, ele
parecia ter tomado um chá de sumiço.
Resolvi ignorar que eu estava prestes a ir embora e nem tocava no
assunto. Sábado estava chegando, seria o culto de jovens pós-acampamento e
eu estava superansiosa para ir. Meus pais já tinham avisado que partiríamos
domingo pela manhã e a tristeza começava a querer tomar conta do meu
coração. No entanto, outra coisa estava me tirando o sono. Eu andava
aprendendo com minhas primas naqueles dias sobre o Espírito Santo e elas
me contaram que é Ele quem nos convence do pecado, nos incomoda quando
estamos agindo errado e gera arrependimento em nós. Era por isso que eu não
estava tão tranquila com a mentira que vinha contando. Fiquei muito feliz por
reconhecer que o Espírito habitava em mim, mas ao mesmo tempo fiquei
numa aflição só, ao perceber o que Ele estava me pedindo.
Logo de início pude ter noção de que servir a Deus não é tão fácil
como eu pensava. Requer renúncia, obediência e muitas vezes termos de nos
colocar em situações desconfortáveis para cumprir a Sua vontade. Mas se
agora eu era uma Filha dEle, então tinha que agir como tal. Não queria passar
um dia sequer a mais vivendo em cima do muro. Por isso tomei a decisão
mais ousada da minha vida: confessar minha mentira e pedir perdão perante
todos no culto jovem. Eu já me sentia perdoada por Deus, mas agora
precisava consertar esse erro com todos aqueles a quem preocupei e estraguei
o passeio.
Por volta das cinco horas da tarde do sábado, eu tremia tanto que
tinha a sensação de que a qualquer momento meu coração pudesse pular para
fora de mim. Eu pedia constantemente coragem a Deus, porque se
dependesse de mim, já teria desistido há tempos daquela ideia maluca.
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Naquele dia, meus pais também resolveram ir à igreja, o que agregou uma
porção a mais de tensão em meu coração. Não aguentando tanta ansiedade,
acabei confessando a verdade para Nanda e Sissa antes do culto. Elas oraram
comigo e disseram que se Deus estava me mandando tomar tal atitude, era
para eu obedecer e que Ele me honraria pela obediência. Sissa citou um
versículo bem propício: “Humilhem-se diante do Senhor, e ele os exaltará”
(Tiago 4.10). Depois da conversa com elas, fiquei mais tranquila.

***

Desci do carro do meu pai e corri para a entrada da igreja. Nanda


ficou de falar com o dirigente do culto sobre a minha “participação”.
Adentrei ao corredor central e meu coração acelerou. Lá estava Noah, no
altar, com o violão nas mãos. Era a primeira vez que o via depois do
acampamento. Sentei-me em um dos primeiros bancos ao lado das meninas e
abafei a vontade de ir até ele.
Tentei me concentrar nas músicas de adoração, mas era bem difícil
com a voz rouca de vocalista de boyband do Noah ao fundo. Passei todo o
momento do louvor dividida entre pensar nele e pedir perdão ao Senhor por
não estar adorando-O de todo coração, foi uma verdadeira guerra de
pensamentos! As músicas acabaram e toda a igreja assentou-se. Quando o
dirigente anunciou meu nome, senti tudo em mim estremecer. Dei lentos e
coordenados passos até a frente da igreja e peguei o microfone, que passou a
tremer levemente envolto em minhas mãos. Hesitante, abri a boca, antes que
eu resolvesse sair correndo dali.
— Boa noite, gente. — Tentei firmar a voz, para que meu nervosismo
não ficasse tão aparente. — Antes de tudo, eu gostaria de agradecer a cada
um que se preocupou comigo quando me perdi. Agradeço cada oração e
cuidado que demonstraram ter sobre a minha vida. — A partir desse
momento, passei a focar o olhar no relógio que estava pendurado em cima da
porta de entrada da igreja. Não conseguiria terminar assistindo as mais
variadas expressões que as pessoas estavam fazendo, principalmente a da
Thami, que me lançava um olhar desdenhoso — nada muito incomum, vindo
dela, né?! Ao vê-la, quase me arrependi de estar fazendo aquilo. Reconhecer
o meu pecado na frente dela realmente era difícil, mas imediatamente ouvi
uma voz me dizer que eu não tinha que pensar na aprovação das pessoas e
sim na de Deus.
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— Entretanto, preciso confessar algo. Eu tive um encontro verdadeiro


com Jesus nesse acampamento. — Ouvi alguns “glórias” e “aleluias”
espalhados pela igreja. — Tornei-me uma cristã de verdade e é por isso que
estou aqui. Preciso pedir perdão a vocês. Eu menti para todos quando disse
que me perdi do grupo porque me distraí com uma borboleta e acabei indo
parar na outra trilha. — Um burburinho começou e alguém fez “Shhhh” bem
alto e todos se calaram. — Na verdade, eu quis sair da trilha. Eu escolhi
desobedecer às expressas ordens de não nos desviarmos do grupo. Queria
impressionar uma pessoa da outra equipe — Noah já devia imaginar que era
dele que eu estava falando —, acabei arquitetando o plano de me juntar a eles
e simular que tinha me perdido. Só que o plano deu errado e eu me perdi de
verdade, porque não achei o outro grupo e aí aconteceu tudo que vocês já
sabem. Galera, perdoem-me por ter estragado o passeio de vocês. E a todos
que se preocuparam e oraram por mim, desculpe ter causado tanto
desassossego à toa.
Terminei de falar com os olhos cheios de lágrimas e o rosto ardendo
como brasa. Sentia como se o peso do mundo inteiro estivesse sobre mim,
tamanha vergonha. O pastor foi à frente, me abraçou e, pegando o microfone
de minhas mãos, falou:
— Acabamos de provar que sua conversão foi real, Betina. Oramos
os últimos meses para que o acampamento gerasse frutos assim. Pessoas
imperfeitas, que erram e falham, mas que encontraram um Deus cheio de
misericórdia e perdão. E assim como fomos perdoados por Cristo, a igreja
perdoa você, querida. Amém, igreja?! — O pastor perguntou e ouviu-se um
alto e trovejante “Amém”. — O Reino de Deus precisa de mais corações
assim. — Concluiu.
O culto prosseguiu cheio da presença de Jesus e aos poucos fui me
acalmando. Sissa segurava minhas mãos e meu coração estava leve, sem
pesos e culpas. No final foi apresentado um vídeo com fotos do
acampamento, a maioria engraçadas, e eu dei boas risadas com as lembranças
daqueles dias memoráveis. Deixei escapar umas lágrimas ao pensar que
aquela era minha última noite em Gruta Alta. Nanda e Sissa já sabiam que eu
iria embora no dia seguinte pela manhã e me abraçaram forte. O culto teve
seu fim com todos os adolescentes e jovens cantando e dançando na frente da
igreja, e apesar daquele clima festivo e alegre, eu ainda sentia uma absurda
vergonha de todos. Alguns vinham falar comigo, felizes com a minha
conversão, outros me olhavam atravessado. “Consequências, Betina.
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Consequências do pecado”, pensava com meus botões.

Capítulo 11 – Quando Algo Inesperado Acontece

O culto já havia acabado e eu, assim como a maioria das pessoas,


permaneci no templo. Conversava com Luana, uma das meninas que ficou
em meu quarto no acampamento, quando notei uma figura peculiar se
aproximar. Thami estava com salto bico fino cor de rosa, calça jeans e uma
bata branca rendada. Sua maquiagem estava perfeita. Por que ela tinha que
ser tão bonita?! “Aposto que tudo isso é pra chamar atenção do Noah”,
pensava, enquanto percebia que o perigo se aproximava. Ela parou em minha
frente, atrapalhando abruptamente meu papo com Luana, que olhou-a com
cara de quem não estava entendendo nada.
— Não ache você que um pedido de desculpas ridículo em público
como esse vai anular o estrago que você fez com nosso passeio, ouviu? Você
é patética! Queria impressionar o Noah, é? E o que mais você fez para que ele
carregasse você no colo? Ah, é! Simulou uma perna machucada. Qual vai ser
o próximo plano pra tentar o que você nunca vai conseguir: ter o Noah?!
Seus olhos carregavam tanta raiva que eu tive medo dela partir para
uma briga ali mesmo, na igreja. Eu fiquei estática, não sabia o que fazer.
Thami falou baixo, mas caprichou na provocação. Saiu pisando duro, nos
deixando ali, de boca aberta. Eu e Luana nos entreolhamos.
— O que foi isso? — Ela perguntou chocada. Eu só balancei a
cabeça, continuando sem saber o que dizer. Logo tratei de me despedir dela e
segui para fora da igreja. Desde que ouvi as palavras de Thami, meu coração
acelerou e não havia diminuído o ritmo frenético. Minhas mãos tremiam de
nervosismo. Cheguei ao pequeno jardim que havia em frente à igreja e senti a
leve brisa da noite beijar minha pele com suavidade e frescor. Respirei fundo
para tentar, mais uma vez, me acalmar.
— Bem que minhas primas falaram... Essa Thami não é nem um
pouco fácil. — Lamentava-me em voz baixa. Pouco depois que cheguei ali,
ouvi alguém me chamar. Virei-me para trás e tive uma surpresa: era o
Matheus.
— Oi. — Respondi. Ele se aproximou de mim, visivelmente
embaraçado.
— Tudo certo, Betina?
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— Tudo certo e com você?


— Tudo bem.
Ele baixou os olhos e nós ficamos em silêncio, somente ouvindo o
barulho dos jovens à nossa volta. Fiquei me perguntando o motivo dele ter
falado comigo. Matheus tinha motivos suficientes para não me achar uma
garota legal.
— Bom, eu vim até você porque agora é minha vez de pedir perdão.
Eu sei que agi de forma inconveniente com você e peço desculpas por isso.
Eu também me converti de verdade no acampamento, Betina. Deus falou
comigo de uma forma muito especial e reconheci os meus pecados. Decidi
que quero sê alguém diferente e gostaria de sê seu amigo. Quero que a gente
volte a se falar normalmente. Você me perdoa? — O sotaque forte do interior
soava honesto. Ainda com os olhos esbugalhados de surpresa, respondi:
— Mas é claro, Matheus! Eu também preciso me desculpar mais uma
vez. Fui muito grossa com você aquele dia no ônibus. Eu sei que não
precisava daquilo, me perdoe mesmo.
— Perdoada! Então, estamos bem?! — Suas bochechas estavam
coradas.
— Com certeza! — Respondi e ele me abraçou carinhosamente.
Logo depois se despediu e, antes de ir embora, falou:
— Você vai fazer muita falta aqui. E, ah, isso não foi uma cantada!
Soltamos belas risadas e ele foi embora, com uma mão segurando sua
bíblia e a outra dentro do bolso. Até dele eu sentiria saudades.
Minhas primas, como sempre, eram as últimas a ir embora da igreja,
então decidi sentar no banquinho do jardim para esperá-las. Já não havia
quase mais ninguém ali e eu aproveitei o silêncio oportuno para ler um pouco
a bíblia. Abri em Primeira Carta aos Coríntios para terminar o capítulo que
havia começado mais cedo. Lá pelo quarto versículo, ouvi alguns passos
sobre a grama. Dentro de segundos, a pessoa sentou-se ao meu lado no
charmoso banquinho de madeira e pelo cheiro, já sabia quem era.
Vagarosamente olhei para o lado e observei olhos serenos fitando-me.
— Atrapalho? — Ele perguntou, olhando para a bíblia aberta em
minhas mãos.
— Não, de forma alguma. Só estava lendo enquanto espero minhas
primas acabarem as oitenta e oito conversas que elas têm a cada fim de culto.
Noah soltou uma risada divertida.
— Melhor do que conversar no fim do culto, só conversar no fim do
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culto comendo pizza!


Soltei um riso frouxo, que só o crush de alto nível consegue causar.
— Falar em pizza a essa hora é maldade, meu estômago já está
roncando de fome! — Comentei sem charme, mas cheia de esperança de que
ele entendesse o recado e me chamasse para alguma pizzaria.
— Que tal uma portuguesa com bastante tomate e palmito?! —
Comentou animado. Eu me empolguei ainda mais por ele ter entendido
direitinho o recado.
— Você é fitness? Nunca vi ninguém se entusiasmar com a
quantidade de tomate e palmito que teria na pizza. — Ri. — Eu voto em
quatro queijos!
— Marguerita? — Ele propôs.
— Hum... E frango com catupiry?!
— Vou ficar com mais fome ainda depois de tantas opções! Acho
válido pedirmos meio a meio.
— Combinado! — Respondi sorrindo de orelha a orelha.
— Agora é só esperar as duas donzelas acabarem de conversar para
irmos. — O celular dele apitou e enquanto lia a mensagem que acabara de
receber, fixei os olhos nas flores pequenas e coloridas do jardim. Lembrei-me
de que ele estava lá quando confessei minha atitude errada diante de todos. A
vergonha voltou a me dominar, pois talvez ele fosse a pessoa a quem eu mais
devesse um pedido de perdão. Noah voltou com seu celular para o bolso e
disse:
— Você foi bastante corajosa hoje.
Permaneci quieta.
— Como está sua perna? E o ferimento da cabeça, está melhor?
— Me perdoe.
Ele me olhou surpreso e ao mesmo tempo compassivo.
— Já te perdoei no momento em que você pediu a toda igreja.
— Sinto-me tão culpada... — Comentei com tristeza, sem drama e
nem desejo de me fazer de coitadinha. Às vezes, mesmo sabendo que fui
perdoada, não conseguia parar de me condenar. Ele pegou a bíblia de minhas
mãos e abriu na primeira carta de João, capítulo dois.
— “Meus filhinhos, escrevo-lhes estas coisas para que vocês não
pequem. Se, porém, alguém pecar, temos um intercessor junto ao Pai, Jesus
Cristo, o Justo. Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente
pelos nossos, mas também pelos pecados de todo o mundo. Sabemos que o
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conhecemos, se obedecemos aos seus mandamentos.” — Ele fechou a bíblia


e, levantando o queixo, me encarou. — Betina, você se arrependeu de
verdade?
— Sim. — Respondi convicta.
— Então você foi perdoada. O sacrifício de Jesus desviou a ira de
Deus de você e te dá possibilidade de ser perdoada, assim como li nesses
versículos. O seu dever agora é seguir buscando e obedecendo a Deus, pois a
sua obediência será a prova de que conhece a Ele. O pecado deve ser um
acidente e não mais proposital em sua vida.
— Obrigada, Noah. Eu quero conhecer muito mais a Deus e sei que
Ele me ajudará nisso. Quem sabe um dia eu não seja como você.
Ele abriu a boca para responder, mas foi interrompido por Nanda, que
chegou toda falante nos chamando para comer pizza. Eu e Noah nos
entreolhamos e sorrimos, diante da coincidência.

***

— Nem consigo acreditar que você vai embora amanhã. — Comentou


Nanda, cabisbaixa. Abracei-a enquanto caminhávamos rumo à casa da
Zuleide. Aquela noite foi a melhor despedida que eu poderia ter: eu, minhas
primas e o Noah comendo pizza e tomando um belo e gelado açaí de
sobremesa. Eu me diverti bastante e ri muito com as histórias de outros
acampamentos da igreja deles. Noah também aproveitou e compartilhou
algumas situações engraçadas que já passou na fazenda de sua avó. E assim
eles me acompanharam até em casa. — Dessa vez com o aval da dona
Gláucia.
Depois do comentário da Nanda, só consegui ouvir o barulho dos
nossos passos sobre as ruazinhas de paralelepípedo. Seguimos em silêncio até
o portão da casa da Zuleide.
— Você promete que vai voltar em breve? — Sissa perguntou-me
emocionada.
— Não tenha dúvidas!
— Amei conhecer você melhor e o mais incrível de tudo foi ver de
perto a sua conversão e os frutos que já tem dado. — Nanda comentou com
os olhos brilhando.
— E com certeza Deus usou vocês três nisso.
As duas me abraçaram e choraram de soluçar. Eu descobri naquele
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momento como pode ser puro um relacionamento gerado em Deus, como a


amizade verdadeira. Quando elas se afastaram, vi Noah com os braços
cruzados e olhos baixos. Aproximei-me dele e, pela milésima vez, agradeci
por tudo que fez por mim. Ele me deu um abraço rápido e beijou-me o alto da
cabeça.
— Deus tem grandes planos pra sua vida, persevere nEle. — Com olhar
terno, deu alguns passos de costas e acenou despedindo-se. Abri o portão
segurando a emoção que queria escapar pelos olhos e os vi se afastarem.
Noah acompanharia as meninas até em casa, pois já era tarde. Entrei na casa,
que estava com as luzes apagadas e silêncio absoluto. Segui rapidamente para
o quarto e fui arrumar minha mala sem ânimo algum, para partir no dia
seguinte pela manhã.

***
Despertei de um sono profundo com a minha mãe me chamando.
Abri os olhos e pude observá-la próxima a cama. De imediato ocorreu-me
que eu ainda não tinha visto meus pais depois do culto do dia anterior. Isso
significava que não demoraria para a bronca sobre a minha mentira chegar.
— Bom dia, filha.
— Bom dia, mãe. Que horas são? — Perguntei, espreguiçando-me.
— Dez pras seis. Se ajeite e venha para a cozinha, eu e seu pai
queremos conversar com você. — Disse e saiu do quarto. Troquei de roupa
preparando-me psicologicamente para o sermão que estava por vir. Cheguei à
cozinha pronta para a viagem de volta pra casa com meu cabelo preso em um
rabo de cavalo, camiseta rosa, calça jeans e o bom e velho All Star branco
nos pés. Sentei-me à mesa e, depois de cumprimentar a todos, preparei meu
Nescau. Papai me observava com os olhos verdes semicerrados e eu resolvi
fixar os meus no copo com achocolatado.
— Betina. — Chamou-me logo após pigarrear. Levantei os olhos em
direção a ele. — Está com a mala arrumada?
Balancei a cabeça em sinal afirmativo.
— Que bom, porque fiquei sabendo que a Zuleide detesta bagunça.
— Depois de todos esses dias por aqui, acho que essa informação
chegou tarde demais. — Respondi.
— Mas acredito que vai ser de grande serventia para as próximas
semanas. — Falou colocando uma colher de cereal na boca. Eu não entendi o
que ele quis dizer. Meus pais trocaram olhares confidentes com a Zuleide.
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— O que está acontecendo aqui, gente? — Perguntei começando a


ficar aflita. Será que...
— Filha, eu vou te perguntar só pra confirmar, apesar de já saber sua
resposta. — Ele parou um segundo e lançou: — Você quer continuar em
Gruta Alta até o final das férias?
Engoli em seco com os olhos arregalados. Observei as expressões de
expectativa com que mamãe, papai e Zuleide me fitavam.
— V..vo-cê está f..fa-lan-do sério? — Gaguejei, com o coração
pulando dentro do peito.
— É claro, filha! — Papai respondeu sorridente.
— Mas e o que aprontei para me perder na trilha? E a vontade de
vocês de me levar em outro hospital? — Desandei a fazer várias perguntas,
ainda não acreditando naquela proposta.
— Betina, é claro que foi um baque pra nós te ver lá na frente da
igreja confessando seu erro. No começo me senti um pouco traída, porque
você deveria ter nos contado antes de falar a todos. Mas depois, conversando
com seu pai e com a Zuleide, percebi o quanto foi valioso o que você fez e
como demonstra seu amadurecimento. E em relação aos seus ferimentos,
observamos nesses dias que você não apresentou nenhuma piora, muito pelo
contrário, parece estar cem por cento novamente. — Falou minha mãe, com
uma paz que não era de costume naquele tipo de conversa.
— Nós te conhecemos bem e pra você ter tomado aquela atitude
frente a toda igreja, temos certeza de que seu coração realmente está sendo
transformado por Deus. A bíblia diz que nós devemos dar frutos de
arrependimento e os seus já estão sendo gerados. Nos últimos dias já
pudemos notar uma melhora significativa em seu comportamento. Oramos a
Deus e sentimos paz em propor a você que fique mais esses dias por aqui.
Acho que vai ser muito bom pra você.
A essa altura eu já tinha agarrado os três em um forte abraço. Não
conseguia conter o sorriso e meu coração explodia de gratidão.
— E, ah, agradeça a Zuleide, pois a ideia foi dela!
— Obrigada! Obrigada! Obrigada! — Dei um longo beijo no rosto
dela, que ficou com as bochechas coradas.
— Bom, agora que a novidade já foi dada, precisamos ir, Gláucia. —
Disse meu pai, levantando-se da mesa.
— Por que vocês também não ficam aqui? — Choraminguei.
— Porque alguém tem que trabalhar nessa família. — Respondeu
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mamãe sacudindo o pequeno cabelo marrom.


— E como eu vou embora?
— Eu venho te buscar. Você pode ficar até o fim das férias ou voltar
antes, é só nos ligar avisando. — Papai respondeu e foi guardar as malas no
carro. Enquanto ajeitavam os últimos detalhes da partida deles, fiquei
pensando no que tinha acabado de acontecer. Eu ficaria mais algumas
semanas com meus amigos do coração! Fui envolvida por um sentimento
misto de gratidão e alegria que nunca tinha sentido antes e logo percebi que
aquilo fora arquitetado por Jesus. Só pode.
Minha mãe acordou o Guto e, depois de todos prontos, as malas
começaram a ser colocadas no carro. As despedidas iniciaram-se e meu
irmãozinho me abraçou forte.
— Por que você não vai embora com a gente, mana? — Perguntou-
me formando um biquinho de chateação nos lábios.
— Porque papai e mamãe me deram a oportunidade de aproveitar um
pouco mais as amizades que fiz aqui, irmão. — Disse, segurando suas
pequenas mãos.
— Eu também quero ficar! — Respondeu chateado.
— Nem pensar! A Zuleide não está formando uma colônia de férias!
— Disse minha mãe, enquanto tratava de colocar o Guto na cadeirinha, antes
que ele começasse a fazer pirraça.
— Filha, nós te demos um voto de confiança e esperamos que ele seja
honrado por você. — Meu pai encarou-me sério.
— Pode deixar comigo, pai! — Retorqui confiante.
Depois dos últimos abraços e das dezenas de recomendações, mamãe
iniciou a viagem segurando o choro. Eu e Zuleide ficamos na calçada
observando o carro se afastar até virar a esquina que os levava para fora da
cidade.
***

— Você está falando sério?! — Sissa quase gritava.


— É claro, menina! Vem pra cá o mais rápido possível! — Ordenei.
— Ok, em trinta minutos estou aí!
Consegui segurar minha vontade de ligar para Nanda e Sissa por vinte
minutos. Depois que meus pais foram embora, impossível voltar a dormir.
Sei que eram oito horas da manhã, mas eu precisava contar a elas que eu
ainda estava em Gruta Alta e o melhor: que passaria o resto das férias ali!
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A Zuleide foi mais cedo para a igreja naquele dia participar de um


momento de oração antes da Escola Dominical. Eu fiquei esperando as
meninas sentada no sofá da sala e aproveitei para conversar um pouco com
Deus. Li no livro que ganhara da Zuleide que não preciso orar somente na
igreja ou na devocional diária. Orar é conversar com meu melhor amigo,
então posso fazer isso a qualquer momento e enquanto estiver fazendo
qualquer coisa! Depois que soube disso, passei a me esforçar para orar em
variados momentos do dia. Tomando banho, lavando louça, me maquiando,
quando estou fazendo nada...
— Betina!
Ouvi a dupla dinâmica me chamar e fui correndo abrir a porta.
— Eu não estou tendo uma visão, né?! — Nanda indagou antes de me
abraçar.
— Como isso aconteceu? Conta tudo pra gente! — Falou Sissa, muito
animada. Sentamos no sofá e contei tudo a elas, que não se continham de
tanta felicidade.
— Precisamos ir à igreja agora falar pra todo mundo que você vai ficar
até o fim das férias aqui! — Nanda levantou-se e foi me puxando pela mão,
mas eu permaneci parada.
— Eu não vou à igreja hoje.
As duas viraram-se espantadas para mim.
— Por quê?!
Demorei um pouco para responder, procurando as melhores palavras,
mas não as encontrei.
— Porque... Eu estou com vergonha. Depois do que aconteceu ontem
todo mundo vai ficar me olhando, assim como foi no final do culto.
As duas hesitaram por um momento. Nanda foi a primeira a falar:
— Você faz assim: sorri pra quem te tratar bem e ignora quem te olhar
atravessado!
— Não é tão simples assim. — Respondi entristecida.
— Então a gente vai fazer ser! — Disseram puxando-me em direção à
porta de saída. Tentei contestar, mas elas nem me deram ouvidos.
— Ai, só vocês mesmo! — Reclamei fazendo pose de durona, mas por
dentro estava sorrindo.
— Pode parar de fingir, prima, porque eu bem sei que você está doida
para ir à igreja mostrar a certo alguém que continua por aqui. — Nanda falou
gesticulando com as mãos, em um ar descontraído. Abri a boca e cerrei os
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olhos:
— De onde você tirou isso?!
Ela lançou-me um olhar zombeteiro. Sissa não esboçou nenhuma
reação.
— Clarissa, me defende! Você sabe que isso não é verdade! — Forcei o
drama com a mentira e me arrependi segundos depois. Claro que era verdade,
eu só não queria que elas soubessem disso. Sissa olhou-me como se dissesse
que não podia fazer nada. Nanda passou o braço direito por sobre meus
ombros.
— Betina, a gente sabe do seu interesse pelo Noah desde a primeira vez
em que o viu. Não é errado se interessar por alguém, mas esconder isso das
primas-e-agora-amigas foi um crime! — Nanda repreendeu-me e Sissa
resolveu falar.
— Depois do que te falamos sobre ele, era de se esperar que você não
contasse nada sobre seu interesse a nós. Quero deixar claro que nós só
quisemos te alertar sobre as escolhas dele, para que você não sofresse caso
decidisse seguir em frente com o que estava sentindo.
— E também para que eu não visse de perto a fúria da Thami sobre
uma garota interessada em Noah, né?
— Também. E pelo jeito, você já viu. — Nanda mirou o chão com
olhar pesaroso.
— Como você sabe?! — Questionei surpresa.
— A gente sempre acaba sabendo, não é mesmo, Sissa?
Sissa deu de ombros. Nós continuamos o caminho em silêncio, mas
antes de virarmos a esquina da rua da igreja, resolvi soltar o que estava preso
em minha garganta há dias. Eu precisava contar para alguém e já que a Luca
não devia ter nenhum sinal de comunicação há menos de cinquenta metros de
distância e Beca parecia ter esquecido que eu existia, contei àquelas que
estavam se mostrando mais que simplesmente amigas para mim. Elas eram
irmãs em Cristo de verdade e isso contava muito. Resolvi dar mais um voto
de confiança e subir do patamar primas-amigas-irmãs-em-Cristo para primas-
amigas-irmãs-em-Cristo-que-falam-sobre-garotos.
— Eu dei um beijo em Noah.
As duas pararam bruscamente.
— Como assim?! — Nanda questionou absorta.
— Beijo na... boca? — Sissa me olhava desconfiada.
— É, gente. Sabe quando dois lábios se encostam?! — Debochei. As
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duas não acharam graça. Comecei a pensar que talvez alguma delas gostasse
dele. Ai, minha nossa, será? Um arrepio de desespero passou pelo meu corpo.
— Como foi isso? Quando? Onde? — Nanda me interrogava.
— Noah não deve beijar ninguém há uns três anos. — Sissa comentou
pensativa.
— Dois anos e meio. — Respondi e elas me encararam juntas.
— Foi na trilha, né? Vocês ficaram um bom tempo sozinhos esperando
socorro... Nunca imaginei que Noah pudesse fazer o que ensina a todos para
que não façam. — O tom de voz da Nanda era de decepção.
— Não, meninas, não aconteceu como vocês estão pensando. Eu disse
que eu o beijei, e foi o tempo suficiente para que ele caísse em si e se
afastasse atordoado. Foi praticamente um selinho, nada de troca de saliva e
essas coisas.
Elas me olhavam atônitas.
— Muitas meninas da igreja teriam uma inveja mortal de você se
ficassem sabendo. — Nanda falou, ao que foi interrompida por Sissa:
— Mas elas não ficarão sabendo. Aliás, ninguém mais ficará sabendo,
porque pelo que percebi vocês já se acertaram por lá mesmo, certo?
— Sim, Sissa. Nunca tive tanta vergonha em toda minha vida, levei um
fora colossal, mas aprendi a lição.
Caímos na gargalhada e eu contei em detalhes o que aconteceu.
— Eu entendi o que vocês queriam dizer sobre o compromisso de
pureza que ele fez. Nunca tinha visto algo parecido, por isso não acreditei que
um garoto de 18 anos em pleno século XXI esperasse para trocar beijos
somente em um relacionamento sério. Mas depois desse episódio, entendi
que nem todos são iguais a mim.
— Ou ao que você era. — Sissa comentou e eu não respondi nada.
Chegamos à igreja atrasadas e adentramos ao templo na hora que o ministério
de louvor guardava os instrumentos. Noah estava agachado colocando a
guitarra em seu suporte, ao se levantar olhou para a igreja e sua expressão foi
de surpresa. Eu estava no corredor, esperando as meninas entrarem e se
sentarem em uma fileira de bancos. Seus lábios abriram-se em um sorriso
iluminado e eu respondi ao sorriso, um pouco mais contida que ele. Sentei-
me tentando controlar as batidas desritmadas do coração.
A Escola Bíblica terminou e nós ficamos do lado de fora conversando
com algumas pessoas. Pietro, o gatinho que me carregara na floresta, se
aproximou da rodinha e olhou-me admirado.
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— Que bom saber que você continua por aqui.


Ele me abraçou e beijou minha bochecha. Eu tentei não ficar corada.
Ainda que eu estivesse gostando do Noah, a beleza do Pietro também me
deixava de certa forma desconcertada. Os outros conversavam entusiasmados
sobre um show que aconteceria na cidade no fim do mês e Pietro aproveitou a
oportunidade para me fazer um convite.
— Você gostaria de tomar um sorvete qualquer dia desses? — Seus
dentes eram perfeitamente ordenados e brilhantes.
— Claro! Está bem quente por aqui, né? — Me arrependi assim que
soltei essas palavras. Pietro entenderia como duplo sentido? O sorriso dele
abriu-se mais. Acho que entendeu. Seu olhar tinha um brilho perspicaz.
— Que tal hoj... — Antes que Pietro concluísse, Noah surgiu ao lado
dele e olhou para nós dois. Eu sorri constrangida.
— Nunca vi uma partida tão rápida. Já de volta?! — Ele brincou.
— Espero não sair daqui até meu último dia de férias!
— E eu espero que você curta bastante esses dias.
Agradeci sorridente e não tirei os olhos dele. Noah desviou o olhar e
falou com as outras pessoas da roda, enquanto Pietro olhava para o chão,
levemente embaraçado.
— Então, como eu dizi...
— Galera, o que vocês acham de fazermos algo hoje à tarde? —
Noah fez a proposta, e Nanda, Sissa, Matheus, Luana e Cássio começaram a
falar descontroladamente. Pietro passou a mão pela cabeça, parando na nuca
e soltou um sopro impaciente. Ele não gostou de ser interrompido pela
segunda vez.
— Eu voto em um piquenique no campo do lago! — Nanda sugeriu
dando pulinhos e batendo levemente uma mão na outra.
— Por mim está ótimo. — Concordou Noah, junto com todos os
outros. — E você, Pietro? — Ele encarou Noah com olhos
impacientes.
— Eu vou. — Respondeu friamente. Noah não parecia ter se
importado com o tom de voz utilizado por ele, e os outros nem chegaram a
perceber o clima que Pietro criou.
— Então vamos logo para dar tempo de preparar um lanchinho para o
piquenique! — Ordenou Nanda, enganchando seus braços nos meus e nos de
Sissa e nos puxando para distante dos outros. Da calçada acenei para Pietro,
que tinha a cabeça virada para trás, observando-me afastar.
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***

A toalha quadriculada em branco e vermelho sobre a grama, com


duas cestas de palha por cima, causava a impressão de que estávamos em
algum filme da sessão da tarde. A responsável pela decoração à la Estados
Unidos foi a Luana, que além desses apetrechos também levou vasinhos
transparentes que enfeitou com margaridas arrancadas na hora. Eu e Sissa
preparamos um bolo de chocolate delicioso — com massa pronta,
obviamente — e Nanda levou sanduíches com patê. Os meninos ficaram
responsáveis pelas bebidas, mas mesmo assim Matheus levou uma travessa
cheia de pães de queijo feitos divinamente por sua mãe.
O ar fresco daquela tarde de domingo combinava com a nossa
alegria. Sentados no gramado em volta da toalha xadrez, de frente para o lago
de águas claras e conversando sobre tudo e sobre nada, meu coração
suspirava paz. Percebi que Matheus era um piadista nato — e sem graça, às
vezes. Sissa quase se transformava na versão humana de um tomate, tão
vermelha ficava à medida que as risadas aumentavam. Luana de vez em
quando compartilhava alguma história e Nanda sempre tinha algo a
acrescentar com seu jeitinho alegre e espontâneo. Pietro quase não falou nada
a tarde inteira, mas quando abria a boca era para se gabar de alguma coisa,
sempre com os olhos pequenos atentos em mim. Noah também adorava
contar causos e eu lutava em meu coração para dar um fim às esperanças
falsas que nutria por ele. Cássio levou o violão e propôs que cantássemos
alguma música.
— Que tal aquela “Deus é mais forte que a morte, Ele vive pra
sempre e com Ele eu vou reinar...” — Cantarolei o trecho e Noah pegou o
violão, tocando a música em seguida. Sempre escutava — e até cantava —
aquele louvor em minha igreja, mas após ouvi-lo no acampamento é que
consegui realmente adorar a Deus com todo meu coração ao entoá-lo. Desde
aquele dia, passei a prestar mais atenção nas letras dos louvores, porque,
afinal, se eu canto aquelas palavras para Deus e nem me dou ao trabalho de
prestar atenção para entender o que estou declarando a Ele, não passo de uma
falsa religiosa.
Cantamos mais quatro músicas em um clima muito agradável. Jesus
parecia estar sentado ali na roda conosco. Tinha certeza de que aquela paz
não era sem motivo.
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Enquanto eu e Sissa organizávamos a pequena bagunça gerada pelo


piquenique, os outros tagarelavam e riam sem parar. Ela guardou tudo que
sobrou nas cestas de palha e colocou-as em cima da grama, ao mesmo tempo
em que eu guardava o lixo em uma sacola plástica. Abaixei-me para pegar
com mais facilidade os guardanapos do chão e de repente a claridade sumiu e
só o que vi em minha frente foram quadradinhos brancos e vermelhos.
Desequilibrei e caí de bunda no chão, enquanto todos gargalhavam à minha
volta. Levantei-me devagar, puxei com toda força a toalha de cima de mim e
me deparei com dedos apontando para certo menino de cabelos ondulados e
sorriso travesso. Noah levantou as mãos e sorriu com uma expressão
brincalhona.
— Você corre bem? — Perguntei a ele, tentando fazer soar como
ameaça.
— Mais rápido que você com certeza.
Segurei mais forte a toalha que ainda estava em minhas mãos e
disparei em direção a ele, que começou a correr feito louco. As meninas
gritavam meu nome, enquanto os garotos torciam para ele — exceto Pietro,
que só observava. A torcida estava ferrenha, mas minhas pernas não tinham a
mesma animação. Ele corria em volta do lago a uma distância considerável,
seria quase impossível alcançá-lo. Resolvi diminuir o ritmo, já com dores
embaixo da costela direita.
— Ué, já cansou? — Ele gritou do outro lado do lago.
— Tudo bem, eu me rendo! — Falei alto, jogando-me na grama. Meu
peito se mexia a cada batimento cardíaco. A galera foi em minha direção e
ele também correu para onde estávamos.
— Ah, esqueci. Você é da cidade, não está acostumada com essas
coisas. Talvez em alguma partida de videogame você consiga correr mais que
isso. — Ele sorria ao me desafiar. Olhei de relance para Matheus e Cássio
que estavam atrás dele. Eles entenderam o recado sem que Noah percebesse.
Levantei num pulo e disparei atrás dele, que ao virar-se para correr, foi
impedido pelos meninos.
— Posso ser mais lenta na corrida, mas em tática sou com certeza
melhor! — Disse e joguei a toalha em cima dele. — Estamos quites agora.
— Uoooow! — As meninas gritaram e voltaram a repetir meu nome.
Noah tirou a toalha de cima dele e não se continha de tanto rir. Seu rosto
estava vermelho e os cachinhos molhados de suor nas pontas.
— Faz tempo que eu não corro assim. — Ele comentou enquanto
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bebíamos água.
— Eu acho que nunca corri tanto em toda minha vida! — Dramatizei.
— Você correu bem.
— Não é o que disse minutos atrás. — Encarei-o com olhar divertido.
— Você não levou a sério minhas provocações, né? — Alarmou-se.
Eu fiz um biquinho com os lábios e coloquei o dedo indicador na cabeça, em
sinal de pensamento.
— É claro que não! — Disse por fim e Noah soltou um “ufa!” bem
alto.
— Acho que a última vez que corri tanto assim foi quando encontrei
um boi “meio irritado” solto pela fazenda.
— Falando em fazenda... Acho que vou me aposentar e não vou ter
conhecido a terra das aventuras do Tarzan aqui! — Zombou Cássio. Noah
coçou a cabeça.
— É verdade, Noah. Você nunca levou ninguém lá! — Incitou
Nanda.
— Que isso, galera, é que...
— Qual a desculpa dessa vez? — Provocou Pietro, em um tom não
tão de brincadeira assim. Noah prendeu o ar e foi soltando aos poucos.
— Tudo bem. Pode ser amanhã?
Todos se entreolharam espantados.
— Tá falando sério?! — Questionou Matheus com a altura da voz
elevada pela euforia.
— Sim, gente! Podemos nos encontrar às duas horas na praça?
O entusiasmo da galera era visível, mas Noah mantinha no rosto um
sorriso amarelo.

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Capítulo 12 – Nem Tudo é Como a Gente Pensa

— E aí, galera, partiu fazenda?!


A conversa parou e alguns precisaram tomar cuidado para que a baba
não escorresse pelo canto da boca. Estávamos na praça à espera de Noah, mas
não fazíamos ideia de que ele nos buscaria com uma Hilux prata de última
geração. Todos observavam atônitos Noah no volante do carrão. Ele buzinou
e pareceu nos acordar do momento “babação”.
— Cara... O que é isso?! Desde quando você tem uma dessas? —
Cássio indagou abismado, dando tapinhas na lataria do automóvel.
— E porque raios você só anda a pé ou de skate tendo um possante
desses na garagem? — Matheus deslumbrava-se ao entrar no carro.
— Simples. Esse carro não é meu. Só peguei emprestado para vir
buscar vocês. Acho que seria bem desconfortável viajarmos na mimosa
caindo aos pedaços.
— Mimosa? — Perguntei e, pelo nome sugestivo, me imaginei indo
conhecer as terras da família do Noah em cima de uma vaca bem grande e
malhada.
— É a caminhonete que os funcionários da fazenda da avó dele
geralmente usam. — Cássio me informou.
— E que eu às vezes pego emprestado. — Noah complementou e eu
abafei uma risada, pensando na vaca sarapintada que minha cabeça tinha
imaginado.
— Cara... Quem te emprestou esse carro?
Noah fitou Matheus — que estava no banco do carona — por breves
segundos. Ele parecia desconfortável com o rumo que a conversa tinha
tomado.
— A minha avó.
— Ah, fala sério, então é seu, cara! — Matheus comentou. Todos
riram e Noah apertou o volante com mais força. Percebi o incômodo que
pairava sobre ele e resolvi trocar de assunto.
— A fazenda é muito longe daqui?
— Uns vinte e cinco minutos e chegamos lá. — Noah respondeu e eu
fiz algumas outras perguntas, o suficiente para que a galera esquecesse o
assunto do carro. O trajeto foi regado a muita conversa e risadas, porém o
Noah conversava pouco e continuava sério. Sentimos falta da Luana, que
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apesar de mais quietinha, era um doce de menina. Por causa de um


compromisso não pôde ir com a gente.
Depois de algumas estradas esburacadas e bastante poeira, passamos
por um grande portão de ferro que tinha em seu topo uma enorme placa
circundada de flores anunciando a chegada ao nosso destino: Fazenda
Marquês.
“Estranho... acho que já vi esse nome em algum lugar...”, pensei,
mas não consegui recordar onde. O portão deu-nos acesso a um caminho de
pedras com árvores dos dois lados. Não demorou muito para que
avistássemos uma enorme casa branca com janelas na cor azul escuro. A
porta de entrada da casa parecia ter uns dois metros de altura e recebia em sua
base uma linda escadaria. O peculiar (e muito belo) estilo histórico daquela
construção fez os queixos caírem mais uma vez.
Noah estacionou e permaneceu em silêncio, mesmo com as
expressões maravilhadas dos amigos. Deixamos o carro e o anfitrião nos
direcionou para um amplo jardim ao lado da casa, de onde podíamos avistar
um espaço com baias para cavalos e uma enorme área verde de pastagem
logo atrás. Aos poucos, Noah parecia ficar mais tranquilo e falante. Quando
chegamos a um pequeno cercado cheio de bezerros, ele desembestou a falar
com muita animação sobre os pequenos animais e como eram cuidados. Senti
um alívio no coração, aquele era o Noah que eu conhecia. Mas mesmo
tranquila por ele ter voltado ao normal, fiquei encucada com seu visível
desconforto diante dos comentários dos meninos no dia anterior sobre a
fazenda e naquele dia sobre o carro. Cheguei até a pensar que ele nos levou
ali por educação e não hospitalidade.
— Quem aqui está bem disposto? — O anfitrião nos perguntou
sorridente.
— Depende para o quê. — Nanda prontamente respondeu.
— Estão vendo aquelas palmeiras? — Noah apontou na direção leste.
— As que estão a vinte quilômetros de distância? — Pietro replicou
com um sorriso torto e exagero na fala. Noah apertou os lábios em um leve
sorriso e propôs:
— Lá tem uma linda cachoeira. Podemos ir a pé, aproveito para
mostrar algumas coisas da fazenda pelo caminho e ainda chegamos lá com
mais calor para enfrentar a água gelada. Na volta podemos vir em um trator
que sempre fica lá perto.
Todos se entusiasmaram com a ideia.
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— Cuidado para não se distrair com alguma borboleta pelo caminho,


Betina. — Cássio comentou com risadinhas e Pietro completou malicioso:
— Caso você se perca, não vou ter problema nenhum em te procurar
e carregar no colo novamente.
— Muito obrigada pela preocupação, meninos, mas podem ter
certeza que isso não vai acontecer. — Fechei a cara.
— Preciso falar que esse tipo de comentário não deve acontecer
novamente? — Noah firmou a voz, olhando para os dois, que murcharam
num instante. Sissa aproximou-se e sussurrou em meu ouvido:
— Não liga pra eles.
Segurei forte a sua mão e tentei não deixar transparecer no rosto o
sorriso que se formava em meu coração após ter ouvido Noah me defender.
Caminhamos por trinta minutos e chegamos à cachoeira. Era um poço
cercado por árvores, pedras e uma pequena cascata. Os meninos foram os
primeiros a tirar os sapatos e camisas e pular na água.
Em outros tempos eu teria feito questão de tirar minha roupa de
forma bem lenta para que os meninos vissem (e admirassem) meu corpo. Mas
agora isso não era mais necessário. Vinha aprendendo com minhas primas
sobre ser uma filha do Rei cujo corpo é templo do Espírito Santo. Meu corpo,
em todos os sentidos, deve revelar Jesus e não provocar desejos impróprios
ou levar outros a pecar. Eu não estava à venda para ficar exposta como em
uma vitrine para os olhos alheios.
Entrei na água sentindo uma satisfação crescente em meu coração e
ouvi um leve sussurrar “Você está Me agradando, filha”. Dentro do poço,
afastei-me um pouco dos outros e deixei meu corpo leve ao ponto de
conseguir boiar sem afundar. Meus ouvidos estavam dentro d’agua e meus
olhos fitavam o céu azul pincelado com rastros de nuvens espalhadas pelo
vento, como em uma aquarela. Eu transbordava gratidão ao Senhor por tudo
que estava acontecendo dentro de mim nos últimos tempos. Que reviravolta
nos sentimentos, certezas, valores, pensamentos... Tudo virou do avesso. E eu
descobri que o avesso é exatamente onde devo estar. Caminhando na
contramão do mundo, renovando minha mente dia após dia pelo
conhecimento de Deus, abnegando aquilo que para o mundo é bom,
renunciando a uma vida normal para viver o extraordinário em Deus.
Fechei os olhos, inspirei o ar puro e depois soltei, gradativamente,
agradecendo ao Senhor por nunca desistir dos seus filhos.
— Pensando na vida?
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Virei os olhos para o lado, sem mexer meu corpo. Era Pietro.
— No Autor dela.
Ele sorriu, deixando os olhos pequenininhos e as covinhas à mostra.
— Você é uma menina especial.
— Obrigada.
— Desculpe pela brincadeira de mais cedo, acho que fui
inconveniente. — Seu rosto branquinho ganhava novos tons de vermelho a
cada palavra que proferia.
— Acha? Eu tenho certeza. — Respondi com uma expressão serena,
mas por dentro adorando espetá-lo.
— Pelo jeito o inteligente aqui acabou de perder a chance de sair com
uma garota sensacional.
Arqueei as sobrancelhas e voltei a ficar em pé na água — que
chegava quase até ao meu colo.
— Quer dizer que o convite para tomar sorvete era sério?
— Ainda é. — Ele cravou os olhos em mim e eu fiquei sem saber o
que responder. Apenas mergulhei e fui nadando até os outros. Ele veio atrás
de mim.
Sissa e Nanda disputavam uma partida de briga de galo contra Cássio
e Matheus. Noah estava em cima de uma pedra rindo e dando pitacos na
disputa. Fiquei dentro d’água a uma distância segura do quarteto, pensando
que poderia ser o Noah me dando um mole daqueles e não Pietro. Não me
senti a mais exemplar das pessoas por pensar isso.
— Que fome bateu agora! Alguém trouxe algo para comer? —
Matheus perguntou. Ninguém havia levado nada.
— Bom, então eu acho que é hora de voltarmos e comermos aquele
lanche caprichado! — Noah provocou alguns suspiros de alívio em nós, que
compartilhávamos da mesma fome que o Matheus. Nos empoleiramos no
velho trator e fizemos um percurso cheio de adrenalina na volta. O anjo
estacionou perto da baia dos cavalos e nos direcionou pela escadaria até a
entrada do que podemos chamar de mansão. Ninguém abriu a boca ao
cruzarmos a imensa e sofisticada sala de estar e passarmos pelo corredor
cheio de portas fechadas, até chegarmos à cozinha, que parecia ter vindo
diretamente de uma revista de decoração. Era enorme — como tudo naquela
casa — e tinha os eletrodomésticos, louças e enfeites esbanjando
modernidade.
— Caramba, que cozinha irada! Na verdade, que casa irada! —
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Cássio foi o primeiro a comentar, boquiaberto. Os outros concordaram e


Noah não alterou sua expressão. Pelo menos não fechou a cara. Lanchamos
rapidamente e fomos para uma sala de jogos ao lado da cozinha onde tinha
totó, pingue-pongue, várias caixas de jogos como Banco Imobiliário e
Imagem e Ação, e uma televisão de sessenta polegadas para as partidas de
videogame. Os meninos foram os que mais gostaram da sala. Eu estava
apertada com vontade de fazer xixi desde que voltamos da cachoeira e depois
de um tempo sem conseguir mais segurar, pedi ao dono da casa que me
mostrasse onde era o banheiro. Fui às pressas e, ao sair aliviada, dei de cara
com Noah do outro lado do corredor.
— Foi o número um, juro! — Juntei as mãos em baixo do queixo e
fiz expressão de clemência. Ele gargalhou. Senti-me da forma como
geralmente me sinto quando falo algo sem pensar: uma idiota.
— Tá bom, esquece o que eu disse. — Dei um tapa no ar e fiz careta.
Rimos juntos.
— Eu queria te falar uma coisa.
— Aham. Pode falar. — Respondi calmamente, como se não tivesse
sentido um ar gelado subir pelo estômago.
— Podemos ir até a varanda?
— E o restante da galera? — Rebati, olhando em direção à sala de
jogos.
— Eles não vão se importar se nos ausentarmos um pouco. Bom,
talvez alguém se importe. — Ele brincou e eu juntei as sobrancelhas e o
encarei sem acreditar no que estava acontecendo.
— Que foi? — Noah perguntou da forma mais natural possível.
Resolvi ficar quieta e curtir minha perplexidade sozinha antes que ele
desistisse do “nosso momento” particular. Passamos pela cozinha e chegamos
à varanda. Permanecemos breves segundos em silêncio.
— Você se referiu ao Pietro lá dentro? — Perguntei um pouco
tímida.
— Sobre a única pessoa que poderia se importar com a gente a sós?
Não, que isso... — Zombou.
— Você também deveria se importar.
— Eu? Por quê? — Seu cabelo se movia, agitado pelo vento daquele
fim de tarde.
— Da última vez em que ficamos sozinhos, eu te agarrei. E se eu
fizesse isso hoje de novo?
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Ele colocou as mãos nos bolsos da bermuda e levantou os ombros.


— Isso não vai acontecer.
— Como pode ter certeza?
— Primeiro porque você não me agarrou e sim me deu um beijo, logo
não poderia repetir o que não fez. Segundo porque vejo como cada dia que
passa você está diferente.
Um misto de alegria e orgulho invadiu meu coração.
— Tenho me esforçado. Além do que, Deus tem me ajudado muito
tirando as escamas dos meus olhos, me fazendo enxergar a vida pela ótica
dEle e estou amando tudo isso. “Sem mim nada podeis fazer”, Jesus disse,
não é mesmo? Ainda mais quando o assunto é conhecê-Lo e aprender a viver
uma vida que O agrade.
Noah fez cara de surpresa e bateu palminhas.
— Viu, até citei versículo na conversa... Estou aprendendo direitinho
com você! — Brinquei. Ele fitou-me por alguns segundos e sorriu logo
depois, encostando-se ao guarda-corpo da varanda.
— Os céus proclamam a glória de Deus! — Ele piscou, indicando
que citara o verso de Salmos em resposta ao meu comentário anterior e
apontou para os montes, de onde emanava a doce e aconchegante luz do pôr-
do-sol ornamentada em tons de laranja e amarelo. Um lindo exemplar da
exuberante criatividade divina.
— Uau! Que vista incrível! — Tirei meu celular do bolso e registrei a
cena. Mais uma foto para a pastinha das que eu teria que postar ao voltar para
minha cidade e para minha internet.
— Betina... — Noah chamou minha atenção para ele. — Apesar de
ser lindo, não te chamei aqui para mostrar o sol se pôr. Na verdade, queria
dizer que fico muito contente em ver o trabalho que Deus tem feito em sua
vida. Você não é a mesma Betina que chegou a Gruta Alta e sei que isso é
obra do Espírito Santo. Porém, você não estará ilesa e enfrentará dificuldades
e a maior delas vai ser você mesma. Nunca deixe que seus desejos e vontades
falem mais alto que a voz de Deus. E não se esqueça: conte comigo no que
precisar em sua caminhada com o Senhor.
Agradeci, sentindo uma sinceridade pura fluir de suas palavras.
— Depois não vá se arrepender quando eu ficar enchendo o saco ao
fazer muitas perguntas difíceis sobre a bíblia, está bem? — Fiz graça.
— Pode deixar que se você ficar chata eu aviso.
— Combinado! — Estendi a mão a ele, que apertou-a firmando nosso
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“trato”. Apoiei-me no guarda-corpo ao lado dele e permanecemos


observando o pôr-do-sol por algum tempo. Durante esse rápido instante
fiquei matutando se deveria ou não me intrometer na vida dele, mas já que
estava ali e não tinha nada a perder mesmo...
— Noah. — Ele virou o rosto para mim. — Por que você não gosta
de trazer pessoas aqui?
— Nunca disse que não gostava.
— Alguém já te falou que nossas reações às vezes falam melhor que
palavras?
— Nossa, que sábia. Leu no Google? — Ele riu e eu cutuquei seu
braço com o cotovelo. — Ou, isso doeu! — Ele esfregou exageradamente
onde eu tinha cutucado e olhou-me de soslaio. — Percebi mais cedo que você
é bem observadora.
— Por quê? — Perguntei curiosa.
— Você notou meu incômodo com os comentários sobre o carro e
mudou de assunto. Eu percebi que foi intencional. E, a propósito, obrigada
por ter feito aquilo, viu?
— Não há de quê. — Respondi e continuei encarando-o, à espera de
uma resposta.
— Você não vai desistir, né? — Perguntou-me rendido, eu balancei a
cabeça confirmando. — Tudo bem. Vamos lá. Quando você olha pra mim, o
que vê?
“Um pedaço de mau caminh...”, cala a boca, Betina, foco na
santidade!
— Eu vejo um grande servo de Deus, ministro de louvor abençoado,
alguém que busca se parecer com Jesus todos os dias... — Ele me olhava
como que dissesse “e o que mais?”, tive que me segurar para não falar que
ele era um gato. — Alguém que busca ajudar as pessoas, que é muito difícil
ver triste ou chateado...
— Que parece não ter problemas... — Ele continuou.
— E aparenta ter uma vida perfeita, que não enfrenta nenhuma
dificuldade...
— Pois é. A maioria das pessoas acha isso que você falou por último.
O que não passa perto de ser verdade.
Fiquei pensando como a vida de um garoto de 18 anos que dirigia
uma Hilux e era herdeiro daquela baita fazenda podia ter dificuldades.
— Eu sou filho único e neto único também.
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— Caraca, que sorte! Seus pais e avós devem mimar muito você!
— Eu só tenho minha avó. Meus pais morreram em um acidente de
carro há cinco anos e meu avô de câncer há dois.
Meu sorriso aberto de antes fechou-se imediatamente. Tem como
rebobinar essa cena e apagar o meu último comentário, produção?
— Oh, Noah, me desculpe...
— Que isso, como você ia imaginar?! — Ele tinha um sorriso triste
no rosto. — Eu ia fazer treze anos, estava tudo certo para uma festinha estilo
“arraial” aqui na fazenda. Tinha convidado meus amigos mais chegados e
pela primeira vez consegui que nenhum convidado pomposo da minha avó
viesse. Eu estava cheio de alegria com os preparativos, mas meus pais
precisaram fazer uma viagem de última hora. Eles ficariam dois dias fora e
retornariam no dia do aniversário. Fiquei um pouco triste, mas pelo menos
eles chegariam a tempo da festa. O que não aconteceu... — Noah suspirou. —
Foram terríveis os dias que se seguiram. Não teve festa e muito menos
alegria. Eu morava com eles em Gruta Alta, mas depois do acidente vim
morar com meus avós aqui na fazenda. Eu sofri absurdamente.
— Não precisa contar mais nada se não quiser... — Coloquei uma
mão sobre seu ombro em sinal de compadecimento. Ele continuou.
— Meus avós tentaram me ajudar de todas as formas, fiz terapia
alguns anos, mas a única maneira que encontrei de extravasar toda a minha
tristeza e decepção foi aprontando tudo que eu podia. Ia a todas as festas e
chopadas da região, entrei em coma alcóolico umas seis, sete vezes... Não
queria estudar, repeti de série, armava todas na escola, ficava com muitas
meninas e não assumia compromisso com nenhuma, fora os muitos corações
machucados que deixei pelo caminho. Experimentei alguns tipos de drogas,
mas graças a Deus não me apeguei a nenhuma. Eu causava uma tremenda dor
de cabeça em meus avós e quem mais sofria era o senhor Carlos, meu amado
vovô. Ele não dormia enquanto eu não chegasse da rua, e quantas vezes eu o
xinguei e levantei a voz pra ele... — Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Mas você era tão novinho... Como conseguiu fazer tudo isso? —
Perguntei.
— O que não se pode fazer em uma cidade pequena quando seus
avós são os maiores e mais influentes fazendeiros da região? Mesmo com
meus 14, 15 anos, eu tinha passe livre em qualquer festa. — Ele parou uns
instantes, observando o céu manchado de laranja cintilante. — A revolta em
meu coração era muito grande. Eu só era um garoto e não sabia onde afogar
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minha dor. — De repente, a opacidade dos seus olhos deu lugar a um brilho
sem igual. — Mas aí eu conheci Jesus. E tudo mudou.
— Como isso aconteceu?! — Questionei maravilhada.
— Levei uma suspensão na escola porque tinha aprontado, pra variar.
Mas naquele dia eu fiquei muito mal, porque meu avô tinha acabado de
descobrir o câncer e eu não queria chateá-lo com a notícia. Sentei-me em um
canto afastado lá no colégio mesmo e fiquei pensando em tudo que estava
vivendo e remoendo a minha tristeza. A ideia de perder mais alguém que
amava me dava calafrios. Sem que eu percebesse, um garoto da minha sala se
aproximou e sentou ao meu lado. Eu achei aquilo no mínimo estranho,
porque eu nem falava com ele direito. O Davi perguntou se estava tudo bem
comigo e eu não respondi. Mas mesmo assim ele começou a falar várias
coisas sobre um Deus que me amava muito e que podia me dar alívio, porque
Ele já havia carregado todos os meus fardos. Ele citou o versículo onze de
Mateus 28: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados e
eu vos aliviarei. Pois o meu jugo é suave e meu fardo é leve”. Meu coração
aqueceu-se ao ouvir aquelas palavras, mas pensar em Deus era a última coisa
que eu queria. Ele já tinha tirado meus pais e estava querendo tirar meu avô
também. Então falei rispidamente para o Davi me deixar em paz porque eu
queria ficar sozinho. Alguns dias depois ele voltou a falar comigo, me falou
para dar uma chance para que ele me contasse um plano. Fiquei sem
entender, mas permiti. Foi aí que ele me falou sobre o Plano da Salvação e eu
comecei a fazer várias perguntas, fiquei até com pena porque algumas ele não
sabia responder. Naquele mesmo mês, fui para Gruta Alta andar de skate para
esquecer um pouco meus problemas, mas tudo que consegui fazer foi chorar
ao me lembrar do meu avô e como estava definhando rápido. Quando dei por
mim, estava com o skate em mãos entrando numa igreja. Por Jesuiscidência,
era a mesma igreja que Davi frequentava.
A voz de Noah agora estava animada e cheia de vida.
— Recebi Jesus naquela noite e nunca mais o deixei. Davi me
discipulou e eu mudei radicalmente de vida. Foi a alegria do meu avô. Ele
ficou tão feliz com minha conversão e mudança de vida que seu quadro
clínico até melhorou.
Eu ouvia o testemunho dele com muita curiosidade e expectativa.
Como Deus é lindo, não importa a circunstância, nada é páreo para o Seu
amor.
— Meses depois o vovô faleceu, mas meu coração foi consolado pelo
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Espírito Santo, afinal ele estava indo morar com Jesus!


— Seu avô também se converteu? — Perguntei surpresa.
— Sim. Ele foi meu primeiro fruto. Minha mudança de vida
impressionou-o de tal forma que ele também quis Jesus! Seus últimos meses
de vida foram regados a orações, leituras da Palavra e louvores. Eu adorava
vir rápido da escola para passar a tarde com ele buscando a Deus. — Noah
tinha olhar saudoso e um tom cheio de amor ao referir-se ao avô. — Agora
voltemos ao início: o que essa história toda tem a ver com sua pergunta?
Estava tão vidrada na história dele que àquela altura já até havia me
esquecido o porquê entramos naquele assunto.
— Como nem tudo são flores... Arranjei quase uma arqui-inimiga
para mim e meu avô quando me converti.
— Sua avó? — Perguntei.
— Isso. Ela odeia crente desde sempre, quando me tornei um ela quis
me expulsar de casa. — Ele riu. — Brigou com meu avô e tudo, mesmo ele
doente. Mas depois ela acabou aceitando, porque não queria que a saúde do
meu avô se agravasse. Depois que ele faleceu, ela fez de tudo para que eu me
afastasse da igreja, como se eu mesmo já não fosse a igreja. Me propôs
estudar fora do país e tudo. Mas eu não quis, sabia que o propósito de Deus
para mim era aqui. Faz um ano que, para diminuir as implicâncias dela
comigo, eu resolvi passar um tempo em Gruta Alta, na casa que era dos meus
pais. Eu tinha um dinheiro guardado e reformei algumas coisas na casa e
acabo ficando mais lá do que aqui.
— Então você não traz ninguém aqui porque ela não deixa?
— Mais ou menos isso. Ela tem pavor de todos meus amigos cristãos,
porque acha que foram eles que me fizeram ficar “alienado”. Eu sempre tive
vontade de trazer a galera da igreja aqui. Imagina um acampamento nessa
fazenda?! Ia ser irado! Mas ela nunca aprovaria. Eu fico triste por causa
disso, porque sei o quanto a bíblia fala sobre a hospitalidade que os servos de
Deus devem ter. Lá na casa em Gruta Alta já marquei alguns cultos e o
pessoal está sempre indo lá. Fico tão feliz.
— Ela não está em casa hoje, né? — Indaguei, já imaginando uma
senhora irada nos enxotando a vassouradas dali. Ele soltou uma risada.
— Eu não seria louco de trazê-los aqui se ela estivesse. Dona Laura
viajou ontem.
Laura... Fazenda Marquês... Isso! A avó dele era a senhora que se
candidataria à prefeitura da cidade que visitei com minha família bem no
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início da viagem! Aquela que a Zuleide identificara como “não é flor que se
cheire”. Bem que ela disse que o neto da Laura Marquês era da igreja.
— O que foi? Você viajou nos pensamentos de repente.
— Não foi nada. — Parei por um instante, lembrando-me de outra
situação. — É por causa disso tudo que acabou de falar, que no dia da
mensagem sobre família no acampamento você ficou um pouco pra baixo?
Noah, que estava com os braços apoiados no parapeito da varanda e o
corpo levemente inclinado para frente, virou-se para mim. A serena luz do sol
caía sobre ele como um manto, deixando seu rosto ainda mais iluminado.
— Sim. Às vezes a saudade me pega de jeito, fico imaginando como
seria se os três ainda estivessem por aqui... Mas depois passa. — Ele mordeu
o lábio inferior e olhou saudoso para os imensos pastos que estavam em
nossa frente. Eu pensei em como a luz de Deus que estava nele nunca deixava
de brilhar, mesmo nos momentos de tristeza.
— Sobre hoje mais cedo... Qual o problema com os comentários dos
meninos sobre o carro? Sua Hilux é realmente maneira! — Resolvi acabar
com o rápido silêncio mudando quilometricamente de assunto e tirar a outra
dúvida que me deixou encucada aquela tarde.
— Betina, o carro é da minha avó, não meu. — Ele direcionou-me
olhos firmes. — Eu não curto muito a exaltação das coisas, sabe? Meus pais
sempre me ensinaram que eu não precisava ter para ser e mesmo que eles
tivessem condição de me dar o que quisessem, isso raramente acontecia. Sei
que não há nenhum problema em ter coisas maneiras e desfrutar delas com
nossos amigos, mas eu não me sinto à vontade ouvindo muitos elogios.
Quando preciso, prefiro andar com a mimosa mesmo velhinha, até conseguir
comprar um carro pra mim.
— Um discurso um pouco diferente do que costumamos ouvir por aí.
— Comentei admirada com a sua forma de ver a vida.
— Andar com Jesus é ser diferente. — Ele piscou para mim, que
respondi com um sorriso alegre.
— Betina? Noah? Está tudo bem por aí? — Nos viramos para trás e
vimos Sissa se aproximando.
— Acho que acabamos demorando demais em nosso papo. — Noah
falou baixinho e eu concordei balançando a cabeça.
— Nós ficamos preocupados, vocês sumiram do nada.
— Está tudo certo, só estávamos conversando. — Noah respondeu a
Sissa. Aproximei-me dela, puxei-a rumo à sala de jogos e sussurrei em seu
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ouvido:
— Depois te conto tudo.
Ela olhou-me espantada.
— Calma, não aconteceu nada demais. — Expliquei-me e percebi,
pela expressão de Sissa, o que o resto da galera não devia estar imaginando
sobre nosso “rápido” desaparecimento. Nós três seguimos para a sala de
jogos e quando eu e Noah entramos, Pietro desviou a atenção do videogame e
metralhou-nos com os olhos. Os outros não pareceram se importar e logo
chamaram Noah para uma partida no Xbox. Nanda puxou-me para um canto
e disse aos sussurros:
— O que vocês estavam fazendo para demorarem tanto?
— Conversando, ora bolas, o que mais poderíamos fazer?!
Ela deu uma piscadinha e finalizou: — Depois quero saber tudinho.
Uma hora mais tarde estávamos dentro do carro voltando para Gruta
Alta. Foi um retorno muito agradável, cheio de conversa jogada fora e
bastante risada, que fechou com chave de ouro uma das tardes mais divertidas
daquelas férias.
Noah levou cada um em sua casa e deixou eu e as meninas por último
na casa da Zuleide, pois naquele dia planejamos uma festa de pijama para
nosso trio. Sissa e Nanda desceram do carro primeiro e, antes de sair, eu
agradeci ao Noah pela conversa que tivemos naquela tarde.
— Pelo monólogo você quer dizer, né? Mais falei do que ouvi. —
Seus lábios abriram-se em um sorriso divertido.
— Foi legal saber um pouco da sua história. — Falei com sinceridade
e ele meneou a cabeça, contente. Coloquei os pés para fora do carro e, antes
que descesse, ouvi-o me chamar.
— Betina, posso te pedir uma coisa?
“Quantas quiser”, pensei, mas só respondi com “uhum”.
— Não comenta com ninguém o que te falei a respeito da minha avó?
— Pode deixar. — Passei um zíper imaginário pela boca. Ele sorriu e
eu desci do carro em um pulo.
Aproximei-me das meninas, que me observavam estarrecidas. Passei
por elas tranquilamente e abri o portão.

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Capítulo 13 – Um Convite Inesperado

— Quem é esse Davi? Ele foi ao acampamento? — Perguntei,


enquanto pegava um punhado de pipoca e levava à boca.
— Ele foi embora poucos dias antes de você chegar. Passou no
vestibular pra uma faculdade em Belo Horizonte e se mudou bem antes das
aulas começarem pra poder ajeitar a nova vida na cidade grande. — Havia
um brilho triste no olhar de Sissa. Nanda olhou pra ela e meneou a cabeça:
— Posso contar? — Sissa assentiu e Nanda ajeitou o corpo em minha
direção, com a cara de quem ia contar o maior segredo do mundo. — Davi e
Sissa namoraram.
— Nós não namoramos, Nanda! — Sissa retrucou igual a uma
criança mimada. — A gente orou por um tempo.
— E bota tempo nisso! Betina, foram oito meses, OITO meses
orando! Pra mim aquilo já era um namoro. — Nanda revirou os olhos.
— Agora eu fiquei curiosa! Podem ir me contando tudo. — Endireitei
o corpo e fixei toda atenção nelas. Sissa, com um sorriso fraco no rosto,
começou a falar:
— Eu e Davi gostamos, ou gostávamos, um do outro desde pequenos,
mas não admitíamos isso. Crescemos cultivando uma amizade muito bonita
e, num belo dia, ele resolveu que era hora de reconhecer os sentimentos e se
declarou pra mim.
— Nos dias que se seguiram, Sissa foi a garota mais chata desse
Brasil. Só sabia falar do Davi. — Nanda interrompeu e levou em troca uma
travesseirada na cabeça. Sissa segurou o travesseiro antes que Nanda
decidisse revidar e virou-se para mim.
— Ela é uma exagerada! — Eu achei graça na irritação repentina da
Sissa. — Enfim, como nós dois somos novos, decidimos não ter nenhum
relacionamento romântico e buscar em Deus se realmente era da vontade
Dele que ficássemos juntos algum dia. — Ela suspirou mirando o chão. — E
pelo jeito não era...
— Para com a deprê, Sissa! Já te disse que o “não” de Deus hoje
pode significar o “sim” de amanhã. Lembra que existe um tempo certo para
cada coisa. — Nanda falou, cheia de sabedoria.
— Mas como você soube que não era da vontade de Deus que
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ficassem juntos? Pelo menos por agora? — Indaguei a Sissa.


— Ah... Nossas vidas começaram a tomar rumos muito diferentes.
Quanto mais eu orava, menos paz eu sentia sobre nós dois juntos, sabe? Ele
sentia o mesmo. Até que mais uma vez ele tomou coragem e, antes de partir,
disse que achava que esse não era o tempo do Senhor pra nós. Foi um pouco
dolorido para mim, mesmo sabendo que isso foi o certo a fazer, porque eu
ainda gosto dele. — Sissa falava olhando para as mãos, numa tentativa vã de
não mostrar os olhos marejados.
— E só pra deixar claro: ele ainda gosta dela também. — Nanda
completou.
— Gente, tem algo muito errado nessa história! Eu não conheço o
Davi, mas pelo jeito é um Noah da vida, ou seja, um príncipe, e você Sissa é
uma serva do Senhor. Se vocês gostam um do outro, por que simplesmente
não ficam juntos? — Ver aquela expressão triste nos olhos de Sissa fez meu
tom de voz sair transbordando indignação.
— Porque tanto eu quanto ele acreditamos que Deus não une pessoas,
Ele une propósitos. Quando nos propomos a orar para buscar a vontade do
Senhor, não era para ouvir um “Sim” grande e estrondoso lá do alto. Nós
sabíamos que Deus usaria pequenas coisas para nos trazer a certeza se
estávamos no caminho certo – ou não. Gostar um do outro é importante, mas
um relacionamento não vive “só de amor”. Se nossos caminhos não forem os
mesmos, teremos problemas e não agradaremos a Deus. Eu e Davi
reconhecemos que o que ele busca para vida dele agora não tem nada a ver
com o que eu busco para a minha, então...
— E eu acredito piamente em um Deus Soberano, que tem todos
nossos dias escritos como diz lá no Salmo 139. Se estiver no caderninho de
Deus que Sissa e Davi ficam juntinhos e felizes para sempre... Uma hora o
caminho dos dois se cruzará. A palavra para isso é: confiança. Acreditar que
Deus tem nosso futuro em Suas mãos e que o que estiver dentro dos Seus
planos, não importa como, vai acontecer. — Nanda falou, envolvendo a
prima-amiga em um gostoso abraço.
— Cara... Esse realmente é um papo muito doido! Como vocês,
sendo adolescentes, conseguem pensar e ver a vida dessa forma?! Se fosse a
Zuleide ou minha mãe falando, eu até entenderia... Mas olha pra vocês!
Enquanto a maioria das garotas da nossa idade só pensa em ficar com vários
garotos e beijar muuuuito, vocês oram para ver se é da vontade de Deus
namorar com um! Como conseguem ser assim aos 16 e 17 anos? — Eu
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estava impressionada.
— Espírito Santo, tudo culpa dele. — Nanda soltou uma risada. —
Deus escolheu as coisas loucas desse mundo para confundir as sábias. É
louco passar a adolescência inteira sem beijar ninguém? Para os padrões do
mundo é! Mas para os padrões de Deus, não. Ele quer que a gente seja a
diferença nessa terra. Lembra quando falamos com você sobre ser sal e luz?
Nós estamos nesse mundo para fazer a vontade do Pai, viver em integridade o
que Ele planejou pra nós e isso significa andar na direção contrária do
mundo. Requer renúncia do nosso ego e vontades a maioria das vezes, mas
em troca ganhamos uma carne mortificada e um espírito dependente de Deus!
— Mas como se consegue isso, Nanda?! — Meus olhos vibravam.
— Buscar a Deus é fundamental. Como saber o que Ele quer se não
passar tempo com Ele? Na Palavra tem tudo que nós precisamos saber para
viver verdadeiramente como servos do Senhor e na oração nós construímos
intimidade e entrega a Ele. À medida que nos aproximamos de Deus, mais
nos afastamos do pecado, enfraquecendo a carne e fortalecendo o Espírito. E
lembre-se: “Quem é dominado pela carne não pode agradar a Deus”, isso está
escrito lá em Romanos oito.
Naquela noite, dentre as diversas coisas que aprendi, uma em especial
marcou meu coração: andar com Jesus é não ter hora e nem lugar para
aprender, pois cada momento da vida pode se tornar uma escola. Quando eu
ia imaginar que depois dessa conversa eu e minhas primas nos ajoelharíamos
em cima dos colchões espalhados no chão do quarto para a noite do pijama e
oraríamos? Foram minutos regados com confissões de medos, angústias e
pecados, muita entrega a Deus e agradecimentos. Eu nunca tinha vivido algo
tão espontâneo na presença de Deus! Quando a Palavra fala que nós podemos
bater que a porta será aberta, está falando sério!

“Um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás.”


Salmos 51.17b

Aquela certamente foi a festa do pijama mais inusitada que eu já


participei. Mal via a hora de fazer uma daquele jeitinho com a Luca e a Beca.
Depois de orarmos, seguimos noite adentro falando pelos cotovelos, comendo
muito brigadeiro e curtindo a companhia uma da outra.

***
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No dia seguinte acordamos tarde — o que é bem óbvio depois de


termos ido dormir às três horas da manhã — e, após almoçar, as meninas
foram embora. Eu e Zuleide estávamos em uma tarde preguiçosa, quando ela
me fez uma proposta indecente: irmos à livraria cristã da cidade!
Em um pulo, já estava no quarto trocando de roupa para sairmos.
Fomos a pé e depois de uns quinze minutos chegamos à pequena loja.
Zuleide sorria a cada cara de surpresa que eu fazia vendo tantos livros
cristãos para garotas. Se pudesse teria levado todos, mas como papai colocou
limites em meus gastos no tempo em que ficasse ali, só pude comprar dois
livros. Um romance e outro sobre vida cristã. Como ainda estava cedo,
resolvemos fazer o que a maioria das mulheres adoram: entrar em lojas.
Experimentamos roupas, compramos doces, olhamos sapatos e rimos à beça.
Apesar do comércio em Gruta Alta ser restrito a poucas lojas e variedades,
isso não nos impediu de bater bastante perna aquela tarde.
— Que tal um milk-shake?! — Zuleide perguntou levantando as
sobrancelhas. Eu topei na hora. Entramos em uma lanchonete simples e nos
sentamos numa mesa de plástico afastada.
— Zuleide, Laura Marquês é a avó do Noah, não é? — Perguntei. Ela
parou o que estava fazendo e me observou por alguns segundos.
— Você a conheceu ontem na fazenda?
— Não, não. Noah disse que ela está viajando.
— Hum... Por isso que ele levou vocês lá então.
Fiquei quieta, não queria dizer nada que comprometesse o meu trato
com o Noah.
— Lembrei que você me disse no dia que visitamos Jeriri que o neto
da senhora que se candidataria à prefeitura era da sua igreja. Ontem juntei as
informações e imaginei que o Noah fosse o neto dela.
— É ele sim. Coitadinho daquele menino, tão consagrado a Deus,
mas tão sozinho... Ele sofre nas mãos dessa avó. Dizem que ela não gosta
muito de crente, agora você imagina a fera que ela não deve ficar sabendo
que o único neto dela é cristão?!
Meneei a cabeça e não falei nada. Pelo jeito mais pessoas sabiam
sobre o gênio um pouco difícil da dona Laura Marquês em relação ao neto.
— Por que ele é sozinho? Sempre o vejo rodeado de amigos. —
Comentei.
— Ah, querida, ele perdeu quase toda a família de sangue e a única
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que sobrou não cultiva um bom relacionamento com ele. O menino


praticamente mora só, na casa que foi dos pais. — Ela mexeu o milk-shake
de chocolate antes de continuar. — Mas graças a Deus os irmãos da igreja
são como família para ele. O pastor, por exemplo, já até quis que Noah fosse
morar na casa dele. Mas, olha, sobre tudo que conversamos, não comenta
com ninguém, ok? Poucas pessoas sabem dessa implicância da Laura com o
Noah. Aproveita e inclui esse assunto em suas orações, pois espero em Deus
para ver se cumprir na vida daquele doce menino a promessa de que ele e sua
casa servirão ao Senhor.
Concordei mentalmente, pensando em como a vida do Noah
realmente não era o mar de rosas que eu tinha imaginado. Pagamos a conta e
fomos embora.
— Zuleide. — Interrompi o barulho solitário dos nossos passos sobre
os paralelepípedos na volta para casa. — O Noah é um servo do Senhor
muito dedicado, não é?
Ela assentiu.
— Então por que Deus permitiu que ele passasse por isso tudo?
Digo... Todo esse sofrimento, por quê?
Zuleide analisou brevemente minha expressão de frustração e pareceu
escolher bem quais palavras usar.
— Betina, Jesus nunca nos disse que a vida seria fácil ou que não
passaríamos por problemas e dificuldades. Muito pelo contrário. Em João
16.33, Jesus diz que no mundo teríamos aflições, mas que deveríamos ter
bom ânimo porque Ele venceu o mundo! — Ela colou um sorriso cheio de
esperança no rosto. — Andar com Deus não é ter a ausência de problemas, e
sim a certeza de que Ele estará ao nosso lado em todas as situações, inclusive
quando as tempestades chegarem.
Senti um leve conforto crescer dentro de mim e meu coração
aquecer-se com suas palavras.
— E, além do mais, as dificuldades pelas quais passamos podem ser
uma pista das áreas em que Deus quer nos usar no futuro. Pergunte ao Noah
quantos adolescentes e jovens em conflitos familiares ele já não ajudou?!
Somos sarados para sarar, somos curados para curar. Deus não dá ponto sem
nó, querida.
Apertei os lábios em um sorriso discreto e guardei aquelas palavras
em um cantinho muito especial no meu coração.

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***

Eu dividia minha atenção entre verificar as horas no relógio do


celular e observar atentamente por onde pisava. Estava dez minutos atrasada
e conseguir andar rápido sem tropeçar em alguma pedra de paralelepípedo
das largas ruas de Gruta Alta era o meu maior desafio. Os ponteiros
marcavam três da tarde, mas o sol queimava como se fosse meio-dia. Suada e
(um pouco) descabelada, adentrei a porta principal da igreja e fui logo me
desculpando pelo atraso. Sissa, Nanda, Luana, Cássio, Matheus, Pietro e
Noah estavam lá.
— Perdi muita coisa? — Perguntei a Sissa, logo depois de
cumprimentá-la.
— A gente acabou de chegar, pode ficar tranquila.
Abracei um a um e por último fui até o Noah, que estava próximo aos
instrumentos afinando um violão.
— Ei! Como você está? — Aproximei-me dele e fiz que ia abraçá-lo,
mas ele me deteve, ao passar a mão rapidamente por meu braço esquerdo e
soltar um sorriso inexpressivo.
— Tudo certo e com você? — Respondeu olhando rápido nos meus
olhos.
— Tudo bem... — Falei devagar. Tinha algo estranho com a forma
meia boca que ele havia me cumprimentado. Tentei ignorar e continuei o
papo. — Estou curiosa para saber por que você nos chamou aqui.
— Você já vai saber. — Disse, agora com o sorriso mais solto.
Resolvi voltar para perto dos outros e esperar a novidade que vinha por aí.
Sissa me avisou pela manhã que o anjo chamara alguns amigos para uma
reunião na igreja aquela tarde. A minha curiosidade para saber o motivo
dessa reunião só não foi maior que a minha alegria em ser considerada por
ele como uma integrante do seu círculo de amizades.
— Galera, eu chamei vocês aqui porque eu tenho duas notícias: uma
boa e outra que podemos considerar não tão boa assim. Qual vocês querem
saber primeiro?
A escolha unânime foi pela notícia “não tão boa assim”.
— Nós temos uma semana e meia para criar uma música e ensaiá-la a
ponto de estar perfeita para apresentá-la em público.
Nos entreolhamos desconfiados e confusos.
— Acho melhor eu falar a parte boa, né? — Propôs e concordamos
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na hora. — Vai acontecer um concurso para bandas cristãs da região e quem


ganhar abrirá a expo cristã de Jeriri! Não é irado?! — Noah esbanjava
animação através das palavras. Permanecemos em silêncio por alguns
segundos, enquanto ele aguardava alguma reação, cheio de expectativa.
— E você está propondo que participemos desse concurso que, no
caso, acontecerá daqui a uma semana e meia?! — Luana questionou.
— Yes!
— Mas nós nem somos uma banda! — Nanda argumentou.
— Podemos ser a partir de agora. O concurso não é para bandas
profissionais. O intuito da organizadora é justamente mostrar o talento da
galera jovem das igrejas da região.
— E por que não ficamos sabendo disso antes?
— Isso eu não sei. Mas o importante é que o folder informativo
chegou aqui na igreja ontem e eu liguei para o telefone de contato, onde
fiquei sabendo todas as informações.
A empolgação do Noah contrastava com o nosso visível receio.
— E por que não o ministério de louvor dos jovens?
— Porque eu acho que nós podemos fazer isso muito bem, Cássio.
Vocês não acham?!
Ele encarou-nos esperando uma resposta. Pietro, com os braços
cruzados, mirava Noah com olhos frios.
— Será que você nos escolheu porque quase ninguém do ministério
de louvor está aqui? Até onde sei, muitos integrantes viajaram.
Noah prendeu brevemente o ar e soltou aos poucos, colocando as
mãos nos bolsos da bermuda. Seu olhar alegre desmontou.
— Ok, galera. Se vocês não querem, tudo bem. Meus motivos para
pensar em vocês como banda vão além da habilidade com a música, tem
muito a ver com quem vocês são e o que temos vivido juntos. Sinto em meu
coração um desejo de passar essa experiência com vocês. Isso é sério. E
respondendo à sua pergunta, Pietro, grande parte dos integrantes do louvor
viajaram após o acampamento, sim. O que não me impede de montar uma
banda enxuta com os que ficaram, caso vocês recusem.
— Eu topo! — Sissa foi a primeira a se pronunciar positivamente.
Logo depois Nanda, Cássio e Matheus. Luana ficou relutante, por causa da
sua timidez, mas acabou aceitando também. Pietro resmungou um “sim” e
então todos me encararam.
— É... hum... anh... Sabem o que é... Bem, todos vocês cantam ou
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tocam e eu... Eu não faço nada disso. Nunca cantei e não sei tocar nenhum
instrumento. — Baixei os olhos e mirei o chão, corando de imediato.
— Você canta! — Nanda afirmou veementemente. Levantei a cabeça
sem entender o que ela estava falando. — Você pensa que nunca percebi o
timbre bonito que sua voz tem todas as vezes que te ouvi cantar no momento
de louvor dos cultos? Sem contar suas cantaroladas por aí, que não deixam
dúvida quanto à sua afinação.
— Nanda, nada a ver! — Bufei, desdenhando do comentário dela. Eu
cantando bem? Conta outra! — Por que vocês estão olhando pra mim? Não,
gente, eu não vou cantar.
— Se você não sabe cantar... Então prova. — Disse Nanda, vindo
com um microfone em minha direção.
— Isso é brincadeira, né? Passar vergonha cantando em um
microfone? Nunquinha!
Eles formaram um paredão em minha frente e me observavam, como
se eu fosse um réu na hora da pronúncia de sua defesa.
— Só sairemos daqui depois que você cantar pelo menos três frases
de alguma música. — Decretou Nanda, recebendo apoio dos outros.
Vermelha como um tomate e já sentindo o estômago formigar de tanta
vergonha, peguei o microfone. Isso não é o tipo de coisa que se faz com uma
amiga — principalmente em frente ao garoto que ela gosta! Nanda ia se ver
comigo depois!
Olhei para o Noah em expressão de clemência, mas ele não parava de
vibrar e me dar forças. Sissa também me incentivava e, por fim, dei uma
tossida de leve e, fechando os olhos, comecei a cantar. Já tinha pagado tantos
micos em frente ao Noah, mais um não faria muita diferença. Tive que fazer
uma escolha rápida, então decidi pela música Partir, da cantora Marcela Taís.
Como aquela era uma das canções que eu mais escutava nos últimos dias,
poderia cantar pelo menos sem errar a letra — o que não podia garantir em
relação à afinação.
— É certo que venha partir/Tudo que não me faz andar, crescer ou
sorrir/É certo que venha partir/Tudo o que não me traz a paz pra ser
feliz/Veja como o céu é bom/De notas tristes, vem, insiste até eu mudar o
tom/Veja como o céu é bom/Do meu silêncio fez dele um lindo som.
Abri os lábios e as primeiras palavras saíram baixinho, trêmulas e
sem segurança. Depois da terceira frase, comecei a ganhar mais confiança e
esqueci a vergonha que me inundava segundos atrás. Comecei a cantar como
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se contasse a eles o que eu estava vivendo por dentro. O deixar “partir” que a
música tanto falava se refletia em minha vida nas renúncias que vinha
fazendo e nas abnegações de todas as coisas que me afastavam dEle. Eu tinha
plena consciência de que ainda havia muito a ser mudado, mas sabia,
também, que minha intimidade com Deus e fortalecimento na vontade do Pai
cresciam cada vez mais.
Quando chegou ao ponto mais alto da música, percebi um som
diferente acompanhar minha voz. Era o violão do Noah. Não arrisquei abrir
os olhos, pois não queria ser desmotivada antes de a música terminar, caso
enxergasse alguma expressão desgostosa entre eles.
— Então é certo que venha partir/Pois perto de Deus aprendi/Que é
certo quando deixo ir/Pra ganhar o que o céu guardou pra mim. — Antes
que terminasse as últimas palavras da música, ouvi altos gritos e muitas
palmas, acompanhados de assovios. Abri os olhos lentamente, corando outra
vez. Minhas primas vieram me abraçar dando pulinhos — especialidade
delas.
— Depois a nojenta vem dizer que não sabe cantar. Se isso não é
cantar, não sei mais o que pode ser! — Nanda falou dando-me tapinhas nas
costas. Todos teceram algum tipo de elogio à minha voz que, até então, eu
nem sabia que podia fazer o que fez.
— Acho que fui bem além das três frases que você ped... Pediu não,
ordenou, não é mesmo, Nanda?!
— E fez isso lindamente! — Ela concordou, dando-me beijinhos nas
bochechas.
— Então, todos confirmados, precisamos agir! — Noah disse,
puxando uma cadeira para se sentar. Nos acomodamos nos bancos da igreja e
passamos a ouvir as instruções dele. De acordo com o que ficou resolvido,
precisaríamos nos encontrar todos os dias até o concurso. Era letra, melodia,
arranjos, ensaio... Muito trabalho nos aguardava e eu ainda não acreditava
que aquilo estava acontecendo mesmo. Nunca tinha cantado na frente de
ninguém em toda minha vida e, de repente, vejo-me preparando para me
apresentar a centenas de pessoas. Uma verdadeira loucura.
A reunião acabou por volta das dezoito horas. Enquanto todos
conversavam em frente ao portão da igreja, Noah fechava a porta principal.
Corri até ele a fim de chamá-lo para comer pastel comigo e minhas primas.
— Desculpa, Betina, mas não vai dar. — Disse, girando a chave pela
última vez. — Eu preciso fazer umas coisas agora.
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— Mas nós não vamos demorar... Se quiser podemos ir à barraquinha


de cachorro-quente, porque lá é servido mais rápido. — Tentei convencê-lo,
mas ele evitava me olhar nos olhos e deu outra desculpa qualquer. Despediu-
se da galera e mal me deu um tchau. Engoli em seco, profundamente
incomodada com o jeito com que ele me ignorou aquela tarde. No dia
anterior estava todo sorrisos e amizades comigo e no dia seguinte me trata
daquela forma indiferente?
Tentei não demonstrar minha chateação para Nanda e Sissa, que
devoravam os pastéis e os caldos-de-cana sem nenhuma classe. Não entendia
como alguém conseguia escolher caldo-de-cana tendo refrigerante para beber.
Mas, de qualquer maneira, saímos da pastelaria de barriga cheia.
Aquela noite foi um pouco agitada para mim. Recebi ligação dos
meus pais e fiquei quase meia hora ouvindo recomendações da minha mãe,
mas também pude contar um pouco do que estava acontecendo por Gruta
Alta, inclusive a descoberta do meu mais novo (e único até o momento) dom.
Dona Gláucia e senhor Antônio ficaram muito contentes com as novidades.
Depois da longa conversa com eles, fui para o quarto ler a bíblia e orar um
pouco. Antes de dormir, agradeci mais uma vez a Deus pela vida que Ele
estava me proporcionando viver e pedi que meu coração fosse sempre
obediente à Sua voz.

***

A semana passou voando e rapidamente chegamos ao domingo. Meus


dias giravam em torno da preparação para o concurso, que aconteceria na
próxima sexta. Já tínhamos conseguido criar a letra e melodia da música, cujo
título era “Vou Permanecer”. Inclusive o nome da banda já estava definido:
Luz do Mundo. A inspiração veio do capítulo cinco do livro de Mateus.
A próxima etapa era os ensaios. Apesar dos instrumentistas já
estarem pré-definidos (Pietro na bateria, Cássio na guitarra, Matheus no
contrabaixo, Luana no teclado e Sissa e Noah nos violões), ainda não
havíamos conversado sobre o vocal. Eu estava tranquila, pois certamente
faria parte do backing vocal. Depois da Escola Bíblica Dominical, a igreja
ofereceu um almoço de comunhão para os irmãos e resolvemos ensaiar logo
depois do almoço. Eu estava um pouco tensa, pois seria nosso primeiro
ensaio oficial. Os meninos passavam o som e eu falava com Deus, pedindo
que a presença dEle nos guiasse em todas as coisas.
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— Gente, antes de orarmos, gostaria de conversar algo com vocês.


Nós precisamos decidir juntos sobre o vocal. — As palavras de Noah
iniciaram um rebuliço dentro de mim. Ainda não me sentia cem por cento
confortável com um microfone nas mãos. — Eu pensei em termos duas vozes
principais e mais duas no back. O que acham?
— Acredito que dividindo assim vai ter tudo a ver com a forma como
organizamos a música. — Sissa opinou.
— Betina e Nanda, que tal as duas serem as vozes principais? Eu e
Sissa podemos fazer o backing. — Sugeriu Noah.
— Eu na voz principal?! Neneca de pitibiribas! E, convenhamos,
duas vozes agudas juntas não vai ficar legal. — Nanda já foi descartando a
possibilidade.
— Brother, eu acho que uma voz masculina vai fazer toda a diferença
e como o único garoto que canta aqui é você... — Cássio fez uma breve pausa
e correu os olhos sobre todos. — Que tal Noah e Betina como vozes
principais? Quem vota sim?
— Mas por que eu?! — Desesperei.
— Porque você é quem vai fazer isso melhor.
— Nanda, que cara de pau! Você só está falando isso porque não
quer se expor e sendo backing vai ficar escondidinha. Eu deveria te obrigar a
cantar com o Noah. Lembra o que você fez comigo na primeira reunião? —
Desabafei entredentes.
— E por causa disso você descobriu um talento que nem sabia que
tinha. Portanto, agradeça e pare de ser respondona. Betina e Noah, quem
vota?
Estreitei os olhos e abri a boca. Não estava acreditando no
atrevimento daquela branquela!
— Eu acho que a Sissa também é uma ótima opção. — Pietro
argumentou, coçando o protótipo de barba que tinha no rosto.
— Não sou não. Deixo essa função para a Betina. — Disse Sissa,
pondo fim à discussão. Eu me sentia até fraca com a possibilidade de me
apresentar com os holofotes todos sobre mim, para centenas de pessoas e,
ainda por cima, cantando em dupla com o Noah. Na verdade, era para eu
estar exultante em ter essa oportunidade, mas não conseguia pensar em nada
além do que a minha voz falhando, tremendo, desafinando... E a voz perfeita
do anjo ao meu lado, me deixando no chinelo.
— Então estamos decididos. Sissa e Nanda no backing e eu e Betina
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nas vozes principais. — Noah falou com um leve corar nas bochechas. Seu
embaraço durante a decisão das duplas foi perceptível.
— Se a Betina está tão insegura, eu posso cantar com você, Noah,
sem nenhum problema.
Todos viraram juntos para trás, procurando de onde vinha aquela voz
familiar. Thami apareceu pela porta lateral e se aproximou de nós. Noah
parecia não saber o que falar, então Pietro resolveu abrir sua brilhante boca
outra vez:
— Ótima ideia, Thami! Você canta muito bem!
Metralhei-o com o olhar. O que Pietro estava querendo dizer com
isso? Era para ele me apoiar e não àquela... Àquela... Ai, Jesus, me perdoa
pelo adjetivo que pensei!
— Pode até ser ótima, mas não é uma ideia viável, já que a Thami
não faz parte da banda. — Disse Nanda encarando-a. Vibrei internamente.
— Posso fazer a partir de agora. E fica tranquilo, Noah, que eu te
perdoo por não ter me convidado desde o início, tá?! — Provocou, juntando-
se a nós na roda.
Com o maxilar pressionado e lábios apertados, Noah soltou o ar pelo
nariz e olhou para Thami.
— Obrigada pela disposição, mas você não pode entrar na banda
agora.
Tive que conter um “wow” que minha língua estava se coçando para
soltar.
— Mas por quê?! — Ela fez uma voz de criança que me irritou até o
último fio de cabelo.
— Nós já temos o número suficiente de pessoas. — Noah estava
visivelmente incomodado com o clima chato que se formara. Thami engoliu
em seco e direcionou-nos um olhar carregado de afronta. Ajeitou a bolsa no
braço e, antes de ir embora, virou a cabeça para trás e soltou:
— Vejo vocês no sábado.
Olhamos uns para os outros em um silêncio mortal. Matheus resolveu
quebrar o climão:
— Devíamos ter orado antes de decidir. — Disse e iniciou uma
oração bem sincera, pedindo a direção de Deus em todas as decisões e
ensaios dali em diante. Depois disso, as coisas ocorreram da melhor forma
possível.
Nas primeiras vezes em que passamos a música, era quase impossível
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não tremer a voz. Aos poucos, Noah e as meninas foram me deixando mais
confiante. Ele, em especial, dava várias dicas e me ajudava a encontrar o tom
certo cheio de paciência. Finalizamos o ensaio com outra oração, dessa vez
feita por Luana. E, novamente, como acontecia desde a primeira reunião,
Noah saiu às pressas da igreja sem nem conversar conosco direito. Desde
aquele dia ele vinha me evitando e a cada encontro do grupo isso ficou mais
perceptível. Durante os ensaios, ele me cumprimentava de longe, procurava
não conversar e olhar para mim e até quando eu puxava um papo, ele
arrumava uma maneira de esquivar-se. Na hora de cantar a música, me
ajudava no que fosse preciso, mas depois se afastava gélido.
Tanta indiferença estava me aborrecendo. Desde a minha quase-ida,
Noah havia se aproximado de mim de forma considerável e mesmo que não
tenha me dado o mínimo mole, eu sabia que de certa forma mexia com ele.
Ok, talvez eu não mexesse tanto como pensava, mas, poxa, nada justificava
aquelas atitudes dele comigo. Frustração era meu sobrenome naquele
momento.
— Oi, Bê. Está tudo bem? — Como se fosse despertada de outra
dimensão, olhei para Pietro. Bê? Que intimidade era aquela?
— Tô indo. E você?
— Estou bem. Foi mal por mais cedo, eu não preferia a Thami a
você, tá? Só estava pensando nas opções, já que te achei bem insegura para
cantar na voz principal.
— Sem problemas, eu não achei que você tenha preferido a Thami ao
invés de mim. — Depois que falei, a ficha caiu de que eu menti. Pedi perdão
a Deus mentalmente na mesma hora.
— Bom, não foi o que seu olhar furioso disse a mim. — Ele riu.
— Está bem, está bem. Eu realmente achei isso. Mas deixa pra lá,
aceito suas desculpas.
Ele sorriu balançando a cabeça. Ficamos em silêncio por rápidos
segundos, mas que foram o suficiente para eu abrir a boca e falar o que não
devia:
— Pietro, aquele convite para ir à sorveteria ainda está de pé?

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Capítulo 14 – Sobre Todas as Coisas... Guarde o Teu Coração

Faltavam dez minutos para as quatro da tarde. Eu passava batom nos


lábios e dava os últimos retoques no rímel, pensando no que significaria
aquela ida à sorveteria. Não era um encontro. Ou era? Ah, não sei. Não tinha
a intenção de ficar com Pietro, até porque ele era amigo do Noah. Não queria
que o anjo achasse que eu já estava explorando outros terrenos. E não estava?
Na verdade, foi uma frase mal pensada em um momento de desapontamento
que me levou àquela situação.
Talvez, lá no fundo, eu só tenha aceitado (ou proposto, seja como
for) esse “encontro” para confrontar o Noah. Ele não estava me ignorando?
Queria mostrar a ele que eu não estava aos seus pés. Depois da minha
confissão frente à igreja, ele deve ter inflado o ego ao perceber que era por
sua causa que eu havia causado toda a situação na floresta.
Parei por um instante. Encarei meu reflexo no espelho do banheiro e
tive uma sensação ruim. Eu não estava pensando e nem agindo como uma
serva de Deus. Pela manhã havia lido em Provérbios o versículo que minha
mãe citou mais de uma vez para mim: “Sobre todas as coisas que se deve
guardar, guarda o teu coração, pois dele procedem as fontes da vida”. Será
que eu estava guardando meu coração ao sair com Pietro? E ao nutrir
sentimentos por Noah? E, pior ainda, ao sair com Pietro tentando causar
ciúmes em Noah?!
Desabei sentada sobre o vaso sanitário. “Ah, Deus, por que ele foi tão
legal comigo mesmo depois de ter me dado aquele fora? E por que do nada
simplesmente resolveu me ignorar? Se ele não quer nada comigo, por que
não me exclui do seu círculo de amigos de uma vez?!” Orei, com a voz
desanimada e os ombros encurvados. Ouvi o som da campainha e me
assustei, deixando o tubo de rímel cair no chão e fazer uma bela sujeira pelo
revestimento branco do banheiro. Enrolei uma boa quantidade de papel
higiênico nas mãos, molhei um pouco e passei pelo piso. Pelo menos ficou
limpinho. Uma pena que não pudesse dizer o mesmo em relação aos meus
sentimentos.
Corri para a porta e, quando abri, o cheiro do perfume de Pietro
chegou às minhas narinas antes que eu pudesse vê-lo. Ele estava vestido com
uma blusa branca, bermuda jeans e tênis no estilo skatista. Sua franja,
bagunçada charmosamente, caía sobre a testa. Seus lábios curvaram-se em
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um sorriso de orelha a orelha.


— Como você está bonita!
Senti meu rosto esquentar. Abri um sorriso tímido e fechei a porta.
Passamos pelo portão em silêncio.
— Vamos à qual sorveteria? Na primeira vez em que fui à igreja, me
levaram a uma irada depois do culto. — Comentei.
— Vocês devem ter ido à SorveCrente. Mas hoje não vou te levar lá.
— SorveCrente? — Gargalhei.
— Você não reparou nesse nome supercomum no dia em que foi?! O
dono abriu o negócio especialmente para a galera das igrejas irem após o
culto. — Quando Pietro sorria, seus olhos quase se fechavam. — Nós vamos
ao Gelatto Mania hoje. É um espaço mais gourmet.
— Hum...
— Mas me conte: por que você decidiu passar o restante das férias
nesse fim de mundo? O Rio de Janeiro deve ter coisas muito mais
interessantes para fazer nas férias.
— E não só nas férias. O ano todo é badalado para quem mora por lá.
— Comecei a falar sobre a Cidade Maravilhosa, que ultimamente não estava
tão maravilhosa assim devido a tanta violência e falta de estrutura. Mas essa
parte eu deixei de lado, pois estava curtindo ver a cara de deslumbramento
que ele fazia a cada curiosidade que eu falava sobre a cidade.
— Não vou negar. Eu odiei a ideia de passar as férias em Gruta Alta,
mas depois do acampamento eu quis muito permanecer. Já que me converti
aqui, nada melhor que passar mais algum tempo aprendendo sobre Deus com
os amigos daqui. — Contei como meus pais me propuseram continuar na
cidade e foi o tempo de chegarmos à tal sorveteria gourmet.
O espaço era lindo e moderno. Lembrava-me algumas cafeterias
charmosas dos shoppings cariocas. Não sabia que existia aquele tipo de
comércio em Gruta Alta. Escolhemos nossos sorvetes e batemos papo até
umas cinco e meia da tarde. Entrava e saía gente e continuávamos lá. Pietro
era um garoto bonito e divertido, mas eu não percebi nada de muito especial
nele. Cometi a péssima atitude de compará-lo ao Noah o tempo todo em
minha mente. No fim da conversa, percebi que Pietro não era tão firme em
Deus como eu pensava. De vez em quando me mandava sorrisos de canto de
boca e olhares sedutores. As intenções dele com aquele passeio ficaram claras
para mim. Ele queria ficar comigo.
Na volta para casa, percebi que ele nos levou por um caminho
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diferente. Não comentei nada, até que chegamos em frente à praça e ele
parou.
— Por que você parou aqui? — Indaguei. Ele se aproximou de mim.
— Pensei que talvez pudéssemos sentar um pouco aqui na praça.
Eu continuei parada olhando para ele. Pietro ergueu as sobrancelhas,
pedindo uma resposta. Eu já tinha ficado com uma quantidade considerável
de garotos para entender os motivos dele para nos sentarmos ali. Olhei em
volta e a praça estava sem uma viva alma.
— Tudo bem. — Falei por fim, e ele colou um sorriso vitorioso no
rosto e me puxou pela mão. Nos sentamos em um banquinho atrás da pista de
skate. Continuamos a conversar assuntos diversos, mas eu estava tensa,
olhando seguidamente para os lados. Se alguém nos visse ali, o que iria
pensar? Não queria que Zuleide ligasse para minha mãe falando que a filha
dela estava de namorico pelas ruas de Gruta Alta.
— Você tem namorado?
A pergunta dele me pegou de surpresa. É claro que Pietro estava
dando uma de João sem braço, porque qual menina topa um passeio com
outro garoto quando é comprometida?!
— Não.
— Gosta de alguém?
Olhei para baixo, o rosto corando involuntariamente. Se dissesse que
não, estaria mentindo. Meneei a cabeça. Ele esticou os lábios, mas sem abrir
o sorriso.
— É do Noah, não é?
Arregalei os olhos, abri a boca como se fosse falar algo, mas logo
depois desviei o olhar para o chão, juntando os lábios novamente. Ele soltou
uma risadinha.
— Sabia.
Seu braço apoiava-se no encosto do banco, atrás de mim. Pietro se
aproximou um pouco mais e pegou uma mecha do meu cabelo, colocando-a
atrás da orelha.
— Noah parece não se interessar por menina alguma. Desde que ele
entrou para a igreja, nunca o vi dando mole para ninguém. Nem para a
Thami, que vive aos pés dele.
Virei e analisei o rosto do Pietro. Feliz pela informação em relação à
Thami, mas desconfiada de onde ele queria chegar com aquele papo.
— Ele é um pouco neurótico com essa parada de santidade.
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— É, eu sei. — Balbuciei baixinho.


— Pretende fazer com que Noah saiba que gosta dele?
Que sondagem mais descarada era aquela? Endireitei meu corpo no
banco.
— Acho que não.
Ele chegou mais perto.
— Sabe, Betina, você é uma menina muito bonita. Desde que te vi
pela primeira vez, entrando pelo corredor da igreja, fiquei encantado. — Sua
fala era doce e calma. Senti um calor percorrer-me de repente. — Quando te
carreguei na trilha, tive uma vontade quase incontrolável de... — Ele parou de
falar e baixou os olhos. Estava suficientemente perto para que eu sentisse
melhor o cheiro do seu perfume. Ai, eu preciso sair daqui agora antes que
faça uma besteira!
Já ia me levantando, quando ele cravou os olhos em mim e terminou
a frase:
—... Beijar você. — Seus olhos saíram da direção dos meus e
passearam por minha boca. Aproximou seu rosto do meu. Eu me dividia entre
olhar para seus olhos e seus lábios, com a respiração entrecortada e uma
visível tensão no corpo. Estávamos a uma distância ínfima, que acabou
completamente quando sua boca colou-se na minha. Aos poucos fui me
rendendo ao seu beijo com gostinho de hortelã e, quando dei por mim, já
tinham se passado alguns minutos. Sua mão esquerda estava em meu pescoço
enquanto a direita segurava minha cintura. No momento em que, por fim, nos
desgrudamos, me veio à mente que os olhos do Senhor estão sobre toda a
Terra. Nada que eu faça, por mais escondida que esteja, estará oculto aos
olhos dEle. Senti meu rosto queimar de vergonha e coloquei-me de pé num
pulo. Pietro olhou-me confuso.
— O que aconteceu? Estava tão bom...
— Acho que já podemos ir embora. — Disse, afastando-me do
banco. Ele chegou a abrir a boca para falar algo, mas desistiu. Fomos embora
cercados por um embaraçoso silêncio.
— A gente pode sair de novo qualquer dia? — Ele perguntou, já em
frente à casa da Zuleide.
— Talvez, Pietro. Talvez. — Respondi e me despedi com um aceno
antes de entrar em casa.
Uma sensação estranha pairava sobre meu coração. Era como se a
garota que beijou o Pietro minutos atrás não fosse a Betina — a nova Betina,
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melhor dizendo. Normalmente, eu estaria louca de felicidade e doida para


contar à Beca e a Luca sobre o gatinho que tinha pegado, mas não... Eu não
queria falar para ninguém. E não era porque estava gostando do Noah, na
verdade não tinha muito a ver com ele e sim comigo... E com Deus. Tomei
banho, comi alguma coisa e me ajeitei para ir ao segundo ensaio da banda.
Algo dentro de mim dizia para eu tirar um tempinho com Deus, orar, ler
alguns versículos... Mas eu não tive vontade, apenas não parava de pensar no
que tinha acontecido no final da tarde.
Sissa me ligou perguntando se eu gostaria que ela passasse na casa da
Zuleide para irmos juntas ao ensaio, mas eu preferi ir sozinha. O vento fresco
das noites de verão talvez me ajudasse a refrescar a cabeça. Entrei na igreja e
Pietro, que já estava lá, abriu um sorriso de comercial de pasta de
dente. Respondi com um sorrisinho mais xoxo, mas ele nem pareceu
perceber. Andei em direção às minhas primas antes que ele resolvesse ir até a
mim, mas infelizmente, não consegui essa proeza.
— Oi, Bê! — Como se não bastasse a forma exageradamente alegre
com que me cumprimentou, Pietro passou a mão por minha cintura me
aproximando de seu corpo além que o necessário e beijou demorada e
melosamente a minha bochecha. Nanda e Sissa olharam-se intrigadas. Dei
um jeito de rapidamente me afastar dele e meus olhos encontraram os de
Noah. Ele observava-nos descaradamente.
Qual era a possibilidade de um buraco abrir sob meus pés e me
engolir naquele exato momento? Pois é, nenhuma, por isso tive que abafar a
vergonha e cumprimentar a galera como se nada tivesse acontecido.
— Bom, mais cedo tive o desejo de preparar uma palavra para
compartilhar com vocês antes de ensaiarmos. O versículo sobre o qual vamos
meditar está em Hebreus 12:14 e diz assim “Esforcem-se para viver em paz
com todos e para serem santos; sem santidade ninguém verá o Senhor.” —
Noah continuou com os olhos sobre a bíblia mesmo depois de ter lido o
versículo. Levantou a cabeça lentamente e observei que além da pureza e
amor que normalmente preenchiam seus olhos, havia uma pitada de tristeza.
— Eu estou amando fazer isso com vocês. Está sendo uma experiência
fantástica o processo de compor letra e arranjos e agora ver a música pronta...
Há bastante tempo eu não fazia isso. Mas pensando sobre nossa apresentação
na sexta-feira, me causa repulsa imaginar que só estamos indo lá para tentar
vencer o concurso. Porque, na verdade, não é só isso. Nós criamos uma
música antes de tudo para glorificar a Deus e não participaremos do concurso
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com ela, nós adoraremos a Deus e ministraremos através dela. E para que
Deus nos use naquele lugar e vidas sejam tocadas por Ele por intermédio de
nós, é necessário que estejamos totalmente ligados a Jesus e a santidade é
primordial nesse negócio. Se nossas vidas não estiverem totalmente nEle,
pode ser que a gente não alcance esse objetivo.
Noah falou por mais quinze minutos e a cada frase eu me enterrava
um pouco mais no banco. “Só pode ser para mim e para o Pietro essa
palavra!”, pensava, sentindo o peso da culpa nas costas. Depois que o
“sermão” terminou, passamos ao ensaio. Exteriormente, tudo parecia bem,
mas por dentro estava me sentindo pesada. Isso se refletiu na minha voz, que
demorou até alcançar o tom certo.
Tão logo o ensaio terminou, já fui pegando minhas coisas e saindo de
fininho da igreja. Não queria ser metralhada pelas perguntas — que
certamente viriam — das minhas primas. Como já estava tarde, apertei os
passos. Cheguei em casa e nem troquei de roupa, da maneira em que estava
caí na cama e dormi profundamente até o dia seguinte.
***

— Algo estranho está acontecendo e você não quer nos contar. Não
que você tenha obrigação de fazer isso, mas...
Continuei quieta mesmo depois da terceira tentativa da Nanda em
tirar algo de mim.
— Tem a ver com o Pietro, não é? O que foi aquela intimidade dele
ontem com você?! Parecia um cãozinho querendo marcar território.
Olhei para ela com uma cara de “Como assim?!”.
— Ué, Betina, vai me dizer que você não percebeu o olhar dele para
os meninos quando te “cumprimentou”? — Nanda bufou. — Para os meninos
não, para o Noah, na verdade.
Sentei-me na cama e endireitei o corpo. Aquela parte eu não sabia.
— Na real, eu já venho percebendo um comportamento mega
esquisito do Pietro em relação ao Noah há algum tempo. Ele responde
asperamente, provoca e afronta em público... Dá pra perceber que não são
comentários inocentes. O que não dá para entender, já que os dois são amigos
próximos há tanto tempo... E uma coisa que isso não parece é implicância
boba entre amigos. — Sissa compartilhou. Será que aquela situação
desagradável tinha algo a ver comigo? Fiquei calada, pensando nisso por
algum tempo.
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— Você não vai falar o que está acontecendo mesmo, não é?! —
Nanda respirou um pouco mais forte que o normal. Baixei os olhos.
— Tudo bem, prima. Se algo está te incomodando de verdade, pode
contar com a gente no momento em que quiser ou precisar. — Sissa, fofa
como sempre, me deu um beijinho na bochecha antes de ir embora e Nanda
me deu tchau com um pouco de ressentimento.
Elas partiram e eu aproveitei o tempo a sós para tentar algum contato
com minhas amigas do Rio. Sua chamada está sendo encaminhada para a
caixa de mensagem... Quando finalmente consegui sinal, o celular da Beca
deu desligado. Tentei não reclamar e liguei mais quatro vezes, todas sem
sucesso. Pensei em ligar para a casa da Luca, já que ela estava sem celular.
Mas, para isso, eu teria que usar o telefone fixo da Zuleide, que era o único
meio onde eu conseguia falar bastante tempo com meus pais sem que a
chamada caísse.
— Zuleide? — Entrei na cozinha e fui invadida pelo cheirinho de
café feito na hora. Não gosto de café, mas não tenho como negar: o aroma é
uma verdadeira delícia!
— Oi, querida, vamos fazer um lanchinho?
Peguei um pedaço de bolo de abacaxi e resolvi ir direto ao assunto,
pedindo para usar o telefone.
— Com certeza você pode usá-lo, mas não sem antes me deixar te
falar uma coisa.
— Pode falar. — Respondi, sem fazer a mínima ideia do que viria
pela frente.
— Espero que não se importe, mas vou ser bem direta, ok? —
Inspirou suavemente o ar. — Talvez agora você possa até duvidar, mas vale
muito a pena esperar em Deus. Um dia, você verá que beijos passageiros não
trouxeram nada de bom ou valioso para sua vida, porque na verdade
relacionamentos rápidos e sem propósito só nos atrasam. Cada minuto com a
pessoa errada é menos um com a pessoa certa e hoje, na sua idade, a pessoa
certa, sem dúvidas, é Jesus. Seu relacionamento com Ele é o mais importante
da sua vida e enquanto não chega o tempo em que, com maturidade, você
poderá viver em plenitude aquilo que Deus planejou para um casal, você é
responsável por não permitir que nada atrapalhe seu relacionamento com
Deus. Fique tranquila, Ele cuidará de tudo pra você, inclusive a pessoa com
quem vai se relacionar amorosamente no futuro.
Isso que eu chamo de pessoa direta. Agradeci suas palavras e soltei
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um sorriso amarelo. Depois desse papo, ficou claro para mim que Zuleide
sabia que fiquei com Pietro. Ai, será que ela tinha contado pra minha mãe?!
E, pior, será que ela me mandaria embora pra casa?!
— Zuleide me perdoa por favor eu não quis fazer aquilo eu pensei
que fosse uma simples ida à sorveteria e a gente acabou se beijando mas eu
prometo que eu não vou mais fazer isso a verdade é que o Pietro é um
gatinho e também muito cheiroso e isso pesou na hora de não fugir do beijo
dele mas eu quero que saiba que estou arrependida e disposta a mudar meu
comportamento em relação aos meninos e... — Só nesse momento percebi
que estava falando muito rápido, quase sem vírgulas, pontos e respiração.
— Querida, você está realmente disposta? — Zuleide falou com voz
firme e olhos cheios de amor, impedindo-me de continuar o falatório
afobado. Pensei por uns segundos e balancei a cabeça positivamente. Não
tinha como fugir, hora ou outra Deus me pediria uma atitude como essa
mesmo.
— Então, seja firme. Saiba dizer não, não negocie valores e
princípios de uma vida que agrada a Deus. Não busque suprir suas vontades
em coisas que nunca serão capazes de te preencher por completo. Garotos
devem ser vistos com olhos de amor em Cristo e não como ficantes em
potencial e, da mesma forma, você não deve aceitar se relacionar com um
rapaz que não te olhe e trate com o respeito que uma filha de Deus merece. E
se ele quer te dar uns beijinhos só porque você é bonita e atraente, algo está
errado. Gosto muito de uma frase de C.S. Lewis que diz mais ou menos
assim: “O coração de uma mulher deve estar tão bem guardado em Deus, que
um homem para achá-lo, precisará buscar a Deus primeiro”.
Lembrei imediatamente de Provérbios 4.23: “Sobre todas as coisas
que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procede as fontes da
vida”. Agora já sabia onde devia guardar meu coração: em Deus. O único
que resguardaria as fontes da minha vida sem machucados ou feridas. Porém,
apesar de ter gostado do que ouvi, mesmo tendo sido tão confrontador, não
conseguia parar de pensar em minha mãe e no que ela faria se aquela
informação chegasse aos seus ouvidos.
— Minha mãe já sabe? — Minha expressão de sofrimento devia estar
dando dó.
— A menos que você tenha contado, acredito que não.
Sorri aliviada.
— Obrigada, Zuleide. De verdade. — Respondi e logo depois fui
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para o quarto falar com o Pai. Acabei nem ligando para as meninas, tinha
algo mais importante a tratar. E ao som de “Oh You Bring”, da banda
Hillsong United, assumi um compromisso com Deus de que meu coração
estaria sob Seu comando e que um garoto só conseguiria conquistá-lo se Ele
permitisse. Abri mão do pecado que eu mais gostava de praticar e que
defraudava constantemente meu coração e corpo e senti um alívio percorrer-
me por completo. Como era bom saber que Deus estava me ouvindo e
aprovando minha atitude.

***

O ensaio naquela terça-feira estava marcado para as quatro da tarde.


Saí de casa bem antes da hora para não precisar correr e fui conversando com
Deus pelo caminho. Não passei pela rua de costume, se não chegaria muito
cedo à igreja e encontraria a porta fechada. Fui por um caminho mais longo e
aproveitei para conhecer outras ruazinhas da cidade. Numa delas, enquanto
observava atenta a quantidade de árvores com flores coloridas no quintal de
uma casa, ouvi o barulho de um portão se abrindo. Olhei para trás e vi Pietro
vindo em minha direção.
— Veio me buscar para o ensaio? — Ele estava com aquele sorriso
de canto de boca carregado de malícia que adorava fazer.
— Você mora aqui? — Ignorei seu comentário.
— Sim. Não sabia que conhecia minha rua.
— É a primeira vez que passo por ela.
— Então não vou deixar você ir embora sem conhecer minha casa. —
Ele puxou minha mão, levando-me até o portão de madeira. Eu parei antes de
entrar, aquilo não me parecia certo.
— Que foi? — Ele perguntou.
— Obrigada, mas não quero conhecer sua casa agora.
— Por quê? — Ele sorriu. — Ah, você deve estar tímida por causa da
minha família. Não se preocupe, não tem ninguém aqui, estou sozinho.
Pior ainda! Se eu entrasse ali, já sabia o que ele tentaria fazer e eu
não estava disposta a quebrar meu compromisso com Deus e muito menos no
dia em que me comprometi.
— Pietro, acho melhor irmos para a igreja, o ensaio é daqui a dez
minutos.
— Em dez minutos dá para fazer várias coisas, inclusive... — Ele me
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agarrou pela cintura e procurou minha boca. Eu levei a cabeça para trás. —
Qual foi, Betina, nosso beijo foi tão incrível ontem... — Eu empurrei-o com
as duas mãos e consegui me soltar.
— Eu não quero beijar você! — Esbravejei. — É ridículo você tentar
me beijar a força!
Seus olhos baixaram-se e ele pareceu cair em si.
— Está bem, me desculpa.
— Você já percebeu que está sempre me pedindo desculpas? — Mal
comecei um rolo com o garoto e já estava tendo a primeira DR. Ele não
esboçou nenhuma reação e eu decidi ir para a igreja, antes que ele fizesse
outra gracinha.
— Espera, eu vou com você! — Pietro falou alto e eu, que já estava
andando, parei por um instante.
— Eu não quero que você vá comigo. — Respondi, sem olhar para
trás. Ele correu até mim e segurou meu braço.
— Betina, eu fui um idiota, mas espero que isso não altere o que está
acontecendo entre nós. — Com o cenho levemente franzido e olhar de
cãozinho sem dono, a única coisa que Pietro conseguiu foi intensificar a raiva
que eu estava sentindo dele.
— Não existe “nós”, Pietro. E nem vai existir.
— Você está dizendo que não quer mais ficar comigo? — Ele olhou-
me confuso. Apertei os lábios, assenti com a cabeça e continuei andando.
Cheguei à igreja e mal cumprimentei os que já estavam lá. Sentei em um
canto e comecei a mexer no celular, numa tentativa vã de esquecer o
aborrecimento que a atitude de Pietro me causou. Não demorou muito e ele
também entrou pelo corredor da igreja visivelmente contrariado e sentou-se
no banquinho atrás da bateria. Após a oração inicial, ensaiamos por
aproximadamente duas horas. Não olhei para a direção em que ele estava
uma só vez nesse tempo. Após o término, despedi-me da galera e saí do
templo em direção ao portão. Pietro veio atrás de mim e colocou-se em minha
frente, impedindo-me de continuar a andar. Revirei os olhos.
— Quer lanchar comigo? — Ele perguntou e eu respirei fundo.
— Não. — Respondi séria e seu olhar desmontou.
— Eu prometo não tentar te beijar outra vez. — Ele juntou as mãos
embaixo do queixo. — Por favor...
— Pietro, não precisa gastar seu tempo. Não dá mais para ficar com
você, aliás, com mais ninguém. Eu assumi um compromisso de santidade
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com Deus, é algo maior do que a sua vontade ou a minha, entende?


Soltou uma risada de deboche.
— Foi para o time do Noah?! — Ele colocou as mãos no quadril. —
Ou será que a culpa disso não é dele?
— Já deu, Pietro. Me dá licença, por favor. — Respondi olhando
firmemente em seus olhos e pedindo uma dose extra de paciência a Deus. Ele
levantou as mãos em sinal de rendição e ao invés de abrir espaço para eu
passar, ele mesmo afastou-se, cruzou o portão e foi embora. Passei as mãos
pelo rosto e, expirando lentamente, pensei que se eu não tivesse cedido
àquele beijo, não teria acabado de perder um amigo.
— Está tudo bem entre vocês?
Olhei para o lado, tentando disfarçar o susto que levei ao ouvir a voz
do Noah.
— Sim. Quer dizer, não. Ah, sei lá, acho que mais ou menos. Você
escutou a conversa? — Perguntei, com um olhar quase horrorizado. Ele riu.
— Não. Na verdade, só percebi a intensidade das expressões.
Eu ergui as sobrancelhas e balancei a cabeça. Não tinha muito que
falar.
— Desde ontem você está estranha, distante...
— Então estou no lucro, porque você está esquisitão desde a semana
passada. — Falei na lata.
— Me desculpe. Não foi por mal. — Ele olhava para tudo, menos
para mim.
— Desde que você não mude repentinamente de novo, tudo bem.
Ele abriu a boca como se fosse dizer algo, mas não falou. Apenas
balançou a cabeça positivamente e ficou quieto, com os olhos fixos no chão.
Aproveitei para comunicar algo que eu estava na dúvida desde o fatídico
beijo do dia anterior e que depois das últimas situações com Pietro, resolvi
me decidir:
— Eu não posso mais cantar na banda.
Ele franziu a testa e arregalou os olhos.
— Por quê?
— É... Bem... — Eu procurava as palavras certas. — Eu acho que não
vai ser legal da minha parte subir naquele palco para ministrar às pessoas,
sem ter autoridade pra isso.
— E porque você não teria? — Seus braços estavam cruzados e os
olhos atentos em mim. Gaguejei um bocado antes de conseguir falar, não
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tinha me programado para explicar os reais motivos.


— Eu fiquei com o Pietro. — Baixei o rosto. — E ontem você falou
sobre estarmos limpos para poder ser usados por Deus... Bom, acho que eu
não estou tão limpa assim.
Corando notoriamente, ele apertou os lábios e engoliu em seco. Mas
rapidamente o visível incômodo deu lugar a um olhar terno.
— Sua consciência te fez refletir, mas e o coração, tomou alguma
atitude?
— A que eu acabei de te falar, ué. Não vou mais cantar.
— Não é disso que eu estou falando. — Ele olhou dentro dos meus
olhos. — Você se arrependeu?
— Sim. E hoje mais cedo assumi um compromisso com Deus de
somente entregar meu coração para o garoto certo, na hora certa. E a hora
certa, Ele é quem irá dizer. Meu pai me disse antes de ir embora que devemos
dar frutos de arrependimento, então não bastava só me incomodar com o fato
de ter ficado, eu precisava me posicionar para não fazer isso outra vez.
Ele juntou os lábios em um sorriso doce, cheio de empatia.
— Foi por isso que Pietro foi embora daquele jeito? Porque você
disse não?
— Aham.
— Ok. Vou conversar com ele depois.
— Obrigada. — Agradeci, sem ter coragem de contar que ele o
culpava pela minha decisão. Como o Noah era ingênuo, a implicância que
Pietro tinha com sua seriedade em Deus era tão notável.
— Lembra-se dos versículos que eu li pra você aqui, em frente à
igreja, no dia em que você pediu perdão no culto?
— Claro. Estavam na primeira carta de João, né?
— Isso. As palavras que te falei aquele dia continuam valendo pra
hoje. E valerão por toda sua vida. Você se arrependeu verdadeiramente e
mudou suas atitudes? Não há por que abrir mão de servir a Deus. O perdão
dEle é instantâneo. O pecado deve ser um acidente e...
— Não mais proposital. — Completei a frase, sorrindo. Ele colocou
as mãos nos bolsos da calça e se afastou, voltando para dentro da igreja.
— Então, te vejo amanhã às quatro.
— Pra quê?
— Nosso penúltimo ensaio. Ainda temos coisas para ajustar, mas
acredito que depois de amanhã, a música estará perfeita.
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— Mas...
— Beijos, até amanhã. — Entrou no templo com um sorriso
brincalhão no rosto e eu me senti uma bobinha. Como pude achar que ele me
permitiria desistir tão fácil?

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Capítulo 15 – As Surpresas de um Grande Dia

A partir do dia seguinte não tivemos mais trégua. Todas as ações e


pensamentos giravam em torno da apresentação, que aconteceria na sexta-
feira. Nesse tempo não ignorei o Pietro, mas fazia questão de que ele
percebesse que não tinha mínimas chances. Parece ter dado certo, pois ele
não tocou mais no assunto.
Dois dias antes do concurso, algo curioso aconteceu. Era nosso
penúltimo ensaio e todos estavam cheios de expectativa. Caso ganhássemos o
concurso, abriríamos a Expo no sábado à noite. Noah pediu que nos
juntássemos nos primeiros bancos da igreja e começou a falar:
— Eu estou muito animado para sexta-feira, mas não posso continuar
nossos preparativos sem antes fazer algo. Preciso pedir perdão ao meu irmão
do coração. — Ele olhou na direção em que Pietro estava sentado. — Cara,
eu agi muito mal me exaltando com você, mas não quero de forma alguma
perder sua amizade, que vale tanto pra mim. Estou fazendo isso diante de
toda a banda porque você sabe que não é fácil confessar erros perante outras
pessoas, mas mesmo não sendo fácil, sua amizade vale esse sacrifício.
“Eu sei bem o que é isso elevado ao cubo, Noah”, falei comigo
mesma, lembrando-me do culto pós-acampamento. Pietro, que estava quieto
mirando o chão, levantou a cabeça lentamente e com o rosto enrubescido e
voz baixa, respondeu:
— Tudo bem, brother. Eu fui um idiota. Foi mal por te julgar tantas
vezes, talvez fosse porque eu tivesse vontade de ser como você. É claro que
essa é uma forma mais moderada de dizer que o que eu sentia era inveja, mas
espero que você me perdoe por isso também.
Noah puxou-o para um abraço apertado e todos bateram palmas. Eles
trocaram juras de amizade eterna enquanto se abraçavam e há quem diga que
os olhos dos expectadores encheram-se de lágrimas — inclusive os meus.
No fim, antes de irmos embora, Nanda aproveitou que os garotos
estavam ocupados guardando os instrumentos e sussurrou para mim, Sissa e
Luana:
— Gente, que babado essa reconciliação do Noah com o Pietro!
Sabia que algo não estava muito bem entre eles, mas brigar... Nunca
imaginaria! — Ela falava com uma mão ao lado da boca tentando abafar a
voz sussurrada.
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— Nanda, fofoca é coisa do inimigo! — Sissa repreendeu-a.


— Ai, não é fofoca, é só curiosidade!
— Não sabia que você andava renomeando pecados por aí.
— Tudo bem, não está mais aqui quem falou! — Nanda murchou em
um instante e eu e Luana caímos na gargalhada. Não expressei nenhum
comentário, mas lá no fundo eu bem que gostaria de saber o que causou
aquela situação. Mas, já que ficar especulando não era legal e eu não ia
perguntar a eles o que aconteceu, era melhor abafar a vontade e me apressar
em ir logo para casa — eu precisava tentar pela milésima vez ligar para
minhas amigas do Rio. Não conseguia mais aguentar a vontade de contar a
elas as aventuras que estava vivendo em Gruta Alta.

***

Tu... tu... tu...


— Alô?
— Beca?!
Até que enfim consegui falar com você! Nossa, estou há dias ligando para
sua casa e ninguém atende! Como você está? Que saudades!
— Oi, miga. Estou bem e você?
— Estou superbem! Ai, tenho tantas novidades pra contar! — Meu
tom de voz carregava empolgação.
— Imagino. As coisas na roça devem estar realmente muito boas, já
que você até decidiu permanecer aí por mais tempo.
— Como você sabe disso?
— Encontrei seus pais no shopping semana passada.
Depois da tonalidade dessa frase é que percebi que a Beca não estava
tão animada quanto eu com aquela conversa.
— É, eu resolvi ficar por aqui até o fim das férias para aproveitar
mais...
— Os amigos que você fez aí e tal. Eu já sei a história, Betina. Mas o
que de fato me deixou boquiaberta foi você ter descumprido nosso trato e
nem ter se preocupado em lembrar-se disso.
“Trato? Que trato?”, pensei desesperada.
— Já que nem comigo falando você lembrou, vou refrescar sua
memória. Você prometeu que seu pai nos levaria ao campeonato de skate na
Tijuca sábado passado. Além de ter dito que as últimas semanas das suas
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férias seriam dedicadas a mim e a Luca.


O-ou... A Beca estava chateada comigo e com razão, o garoto por
quem ela era perdidamente apaixonada participaria desse campeonato e eles
estavam planejando se encontrar lá há mais de um mês. Eu e Luca iríamos
como um apoio moral, coisa que amigas fazem. Como os pais dela não
poderiam nos levar, eu pedi ao meu pai, que não trabalha aos fins de semana.
Sem contar que eu fiquei tão animada em continuar em Gruta Alta, que nem
sequer passou pela minha cabeça que elas pudessem levar tão a serio a ideia
de passar o final das férias juntas, nós já ficamos grudadas o ano inteiro!
— Ai, Beca! Pisei na bola feio, né?! Me perdoa, amiga! Eu entendo
se você ficar chateada comigo...
— Se eu ficar?! Eu já estou! — Ela bufou. — E ainda mais agora
que a Luca está precisando tanto de nós duas.
Eu amo a Beca, mas que ela sabe ser bastante exigente e tocar (e
remexer) na ferida, ah, isso ela sabe!
— Como ela está? — Perguntei depois de alguns instantes de
silêncio.
— Bem mal. Castigo por tempo indeterminado, sem acesso a internet
e celular... As únicas pessoas que a mãe dela permite que a visitem sou eu e a
galera da igreja de vocês. Toda vez que apareço por lá, ela pergunta sobre
você.
— Queria tanto falar com ela...
— Se quisesse não teria ficado aí.
Contei até dez e segurei algumas palavras indelicadas que chegaram à
ponta da língua. Beca estava implacável!
— Tudo bem, Beca. Se você mudar de ideia e quiser saber sobre
minhas férias, te conto tudo quando eu voltar para o Rio. E, por favor, se não
for incômodo, dá um abraço apertado na Luca por mim e diz que em breve
estou aí com vocês.
— Ok. Preciso desligar, o Beto está me ligando para tentarmos
marcar outro encontro. Beijos. — Ela falou de forma seca, mal esperou que
me despedisse e desligou o telefone.
Desmoronei no sofá, ainda com o telefone em mãos. Pelo jeito minha
volta para casa não seria tão incrível como eu estava imaginando.

***

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Eram onze horas da manhã e o último ensaio da banda chegara ao


fim. Apesar de ter levantado da cama um pouco desanimada naquela quinta-
feira — por causa da desagradável conversa do dia anterior com a minha
super-hiper-mega-ultra-compreensiva amiga Beca —, no momento em que
coloquei os pés na igreja, uma empolgação vinda do céu encheu meu
coração. Cantei para Ele com todas as minhas forças e os outros pareceram
tocar e cantar com igual paixão.
Não entendi porque a banda resolveu marcar o último ensaio tão
cedo, mas pelo menos teríamos a tarde livre para descansar daquela rotina
intensa de ensaios — e acontecimentos — que foram os últimos dias.
— Galera, acho que podemos parar por aqui. A música ficou ótima!
Glória a Deus por isso. — Os olhos de Noah brilhavam. Ele nos chamou para
a oração final e depois todos foram convidados para almoçar na casa da
Sissa.
— A gente podia fazer algo para espairecer hoje à tarde, o que
acham? — Perguntei enquanto esperávamos em volta da enorme mesa da
varanda, o almoço ficar pronto. Todos se olharam com cumplicidade e Nanda
começou a falar:
— Nós achamos que você não precisa se preocupar com isso, pois o
destino de hoje à tarde já está definido.
— Eu posso saber que destino é esse?
— Não.
— Por quê? — Arregalei os olhos.
— Surpresa. — Nanda respondeu e jogou um amendoim para dentro
da boca, sem se importar nem um pouco com a curiosidade quase mórbida
que começava a me consumir.
— Gente, vocês não vão fazer isso comigo! Me contem agora, por
favor! — Implorei e nada. — Vocês fizeram algum tipo de pacto de
silêncio?!
— Tipo isso. Agora vamos aproveitar que o almoço ficou pronto e
nos adiantarmos, pois a tarde vai ser longa!
Não tive outra escolha a não ser esperar o tal passeio surpresa e
conjecturar comigo mesma durante o almoço inteiro sobre todos os destinos
possíveis e imagináveis que eles pudessem ter escolhido. Após todos estarem
de barriga cheia, começaram a procurar banheiros para trocar de roupa,
passar protetor solar e essas coisas que a gente faz antes de ficar muito tempo
exposto ao sol.
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— Nós vamos a alguma cachoeira ou piscina?! Eu nem trouxe roupa


de banho! — Choraminguei e Nanda jogou uma bolsa em meu colo. Dentro
dela tinha meu biquíni e uma muda de roupa.
— Zuleide é minha parceira! — Disse, piscando para mim. Corri para
o banheiro e troquei de roupa em um instante.
A mãe da Sissa observava atenta e um tanto preocupada nossa subida
na caçamba da velha e castigada caminhonete — a mimosa — que seria o
meio de transporte naquele dia. Pietro se acomodou no banco do carona ao
lado do Noah, nosso motorista oficial, e o restante foi atrás, batendo papo e
curtindo o vento forte gerado pela velocidade do carro, que balançava os
cabelos e aliviava o calor do sol a pino.
Durante o caminho, tentei mais uma vez descobrir para onde iríamos,
mas nada feito.
— Você vai descobrir assim que chegarmos lá! — Sissa finalizou o
assunto e eu, por fim, abafei a curiosidade. Depois de quase quarenta minutos
em uma estradinha cheia de buracos e muita poeira vermelha, Noah parou o
carro. Assim que desci, pude ouvir um alto e tranquilo som de queda d’água,
acompanhado ao canto de inúmeros pássaros. Caminhamos por dez minutos
em trilha fechada, até que pudemos ser presenteados com uma das paisagens
mais lindas que já vi em toda minha vida. Meu queixo caiu mediante tanta
beleza.
— Essa é a Cachoeira da Gruta?! — Perguntei abobalhada. Eles
concordaram em uníssono.
— E aí, valeu a surpresa?! — Sissa me perguntou sorridente.
— Com certeza! Pensei que a única forma de chegar aqui fosse pelas
trilhas próximas ao sítio do acampamento. — Comentei, abaixando-me para
mergulhar os dedos na água gelada e refrescante da cachoeira.
— Nós temos um amigo muito do aventureiro que conhece cada
pedaço dessa região, esqueceu?! — Disse Matheus, dando tapinhas nas costas
do Noah.
A cachoeira, que mais parecia cenário de filme, possuía como peça
chave de sua beleza a imensa gruta em cima de um morro — lugar que deu
origem ao nome da cidade —, de onde despencava uma queda d’água
magnífica que se encontrava com as águas do enorme poço logo embaixo. O
dia estava ardendo em calor e a brisa que emanava da cascata nos incitava a
mergulhar o quanto antes naquelas águas tão convidativas, o que não nos
demoramos em fazer. Aproveitei para tirar muitas fotos e registrar tudo que
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fizemos em mais um dia de aventuras pela região de Gruta Alta.


— Quem topa ir à gruta? — Cássio apontou para cima e todos
imediatamente concordaram. Deixamos nossas coisas em cima de algumas
pedras na beira da água e subimos por um caminho estreito e íngreme.
Acabei ficando para trás por andar muito devagar, o sol quente não estava
ajudando na disposição. Noah parou no meio do caminho e, quando o
alcancei, começou a caminhar ao meu lado.
— Já te falei como sua voz melhorou desde o primeiro ensaio? Você
arrasou hoje!
Acho que não deu para notar meu rosto ficando vermelho, pois o sol
já estava fazendo esse papel desde que cheguei à cachoeira.
— Agradeço pelo elogio, mas ainda estou longe de ter uma voz
arrasadora. — Sorri.
— Você tem o dom para cantar e isso que importa. Agora só precisa
treinar mais, fazer aulas de canto para aprender técnicas e não deixar seu
talento abandonado, criando teias de aranha quando voltar para sua cidade.
Que tal começar a cantar em sua igreja?
— Não sei. Acho que não. — Rejeitei a ideia com uma careta
exagerada. Ele fitou-me com olhos cerrados e expressão rígida, como que me
repreendendo. Eu sorri.
— Tudo bem, tudo bem. Talvez, quem sabe.
Noah soltou um sorriso de canto de boca e continuamos subindo em
silêncio. Nos últimos dias ele cumprira sua palavra e agira normalmente,
como antes. Não parecia mais fugir de mim. Eu estava contente por isso, mas
não por que meu coração nutria interesses românticos por ele, e sim porque é
uma perda não ser amigo de pessoas amigas de Deus. E, para falar a verdade,
eu andava muito mais interessada no quanto poderia aprender sobre Jesus ao
lado dele do que em tentar impressioná-lo para conseguir uma “chance”.
Àquela altura eu já tinha sido capaz de entender o propósito de pureza que ele
assumiu em sua vida e o quanto aquele compromisso não poderia me incluir
dentro dele. Além do mais, agora era eu quem tinha decidido esperar em
Deus o momento certo para me relacionar e acho que, teoricamente, essa
decisão não envolvia continuar flertando por aí.
Chegamos ao alto do morro e fiquei impressionada com a beleza e
força da cachoeira que cortava a gruta com suas águas furiosas e despencava
lá embaixo, onde estávamos minutos atrás. Mas o que de fato me deixou
deslumbrada foi a vista que o “alto da gruta” — como o local era chamado —
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proporcionava. Aquele lugar podia ser onde Judas perdeu as botas, mas que
era lindo, disso eu não tinha dúvidas! Encontramos um cantinho ao lado da
gruta e nos sentamos para descansar e também admirar juntos aquela
paisagem incrível.
— Por que vocês decidiram me trazer aqui? — Perguntei.
— Você não podia ir embora sem antes conhecer o lugar mais lindo
da cidade. E já que todos nós precisávamos relaxar depois de quase duas
semanas intensas de ensaios, unimos o útil ao agradável. — Sissa respondeu
jogando a água de sua garrafinha no rosto avermelhado pelo sol.
— Eu teria conhecido a cachoeira durante o acampamento se não
tivesse aprontado tudo aquilo... — A lembrança daquele dia ainda me
entristecia às vezes.
— Ih, qual foi a desse papo torto, aí? Já te falei que passado perdoado
não tem que ser lembrado! — Nanda, que poderia ter intensidade como
segundo nome, me abraçou forte, mesmo com todo o suor e calor que nos
envolvia e ainda me tascou um beijo demorado e melado (eca!) na bochecha.
Voltamos para o poço da cachoeira e aproveitamos o restante do dia com
bastante mergulhos, fotos e risadas.
— Gente, vocês sabem o que é rede social? — Perguntei, já dentro da
caminhonete, na volta para cidade.
— Você está falando de Facebook, Twitter e essas coisas? — Luana
respondeu com outra pergunta e eu concordei. Eles riram.
— A Betina realmente acha que só porque moramos no interior não
há vida além do Globo-Rural!
— Que maldade, Cássio! Eu não penso assim... Ah, talvez só um
pouquinho. — Meu comentário gerou várias gargalhadas e algumas
polêmicas, mas, por fim, Luana respondeu à pergunta inicial:
— Nós não só sabemos o que é, como também participamos de redes
sociais, viu, mocinha?! A questão é que Gruta Alta ainda não tem nenhum
sinal de internet banda larga e acabamos dependendo de algumas operadoras
para acessar, o que nem sempre conseguimos.
— Na casa da avó do Noah tem wi-fi! — Pietro gritou lá da frente.
— Sério?! Não acredito que estive lá e nem pedi a senha para usar!
— Soltei meu comentário inconformado e todos riram. — Assim que eu
conseguir acesso aos meus dados móveis e responder às 27358912
mensagens que chegarão depois de todos esses dias sem internet, eu adiciono
vocês no Facebook, tá bem?
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— Claro, querida, temos que ter uma maneira de pegar as milhares de


fotos que você vem tirando de todos nós nas últimas semanas! — Nanda fez
um cafuné exagerado em minha cabeça e nesse ritmo chegamos à cidade com
cheiro de esterco que eu mais amava nesse mundo.

***

No dia seguinte, o céu amanheceu coberto por uma fina camada de


algodão que anunciava uma sexta-feira bem mais fresca que o dia anterior.
Chegara o tão esperado dia. Acordei com friozinho na barriga e resolvi
conversar com Jesus para pedir calma, tanto para o decorrer do dia quanto
para o momento em que estivesse no palco. Passei a música sozinha algumas
vezes e fui interrompida por Zuleide durante meu ensaio particular.
— Querida, seu pai está no telefone.
Corri para a sala.
— Oi, pai! Saudades!
— Olá, meu bem. Nós também estamos cheios de saudades. Aliás, é
por isso mesmo que te liguei. Domingo estou chegando a Gruta Alta por
volta das nove da manhã para te buscar.
— Hã? Buscar? Já?
— Acho que alguém esqueceu que as aulas voltam na próxima
segunda, não é mesmo?! Eu ia te buscar hoje, mas sua mãe me lembrou que
você vai cantar no concurso e, caso ganhem, amanhã abrirão a Expo Cristã.
Então, mais uma vez, resolvemos te dar uma colher de chá e te buscar
literalmente no final das férias! Não sei o que está acontecendo comigo...
Estou muito bonzinho ultimamente. — Ele soltou uma risadinha, cheio de
tranquilidade. Meus olhos estatelados denunciavam o quanto eu não estava
pronta para ouvir aquela informação.
— Eu pensei que tivesse mais uma semana de férias... — Falei
baixinho.
— Não, filha, já está na hora de voltar para a realidade.
Conversamos mais um pouco e voltei para o quarto. Falar no telefone
ultimamente não estava sendo tão legal assim.

***

Amarrei o cadarço do tênis cano alto, corri para o espelho e gostei do


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que vi. O estilo dos sapatos combinava com o vestido soltinho salpicado de
flores que havia escolhido. Penteei o cabelo, dei os últimos retoques na
maquiagem e finalizei o look jogando um colete jeans por cima do vestido.
Agradeci a mim mesma por ter levado quase o guarda-roupa inteiro para
Gruta Alta, isso certamente ajudou na penosa tarefa de escolher uma roupa
para participar do concurso.
O evento estava marcado para as dezoito horas, mas às duas da tarde já
estávamos na estrada rumo a Jeriri. Eu e as meninas pegamos carona com o
Noah, enquanto os garotos foram no carro que o Cássio pegou emprestado
com o pai. Todos os instrumentos e apetrechos necessários para a
apresentação estavam devidamente guardados no porta-malas e toda
ansiedade boa em nossos corações. Não sabia o que aquela noite nos
guardava, mas sorria ao ter certeza de que o Convidado mais importante
estaria lá, sendo exaltado por nós e fazendo tudo correr nos trilhos da vontade
dEle.
Uma hora mais tarde desembarcamos em frente ao Ginásio Municipal
da cidade. Não havia muitas pessoas, mas algumas bandas já começavam a
passar o som. Fomos recebidos por uma mulher muito simpática e sorridente,
que mostrou todo o lugar e nos direcionou para uma espécie de camarim atrás
do palco, comum a todas as bandas participantes.
— Você é o Noah Marquês?! — Um garoto perguntou à maior altura e
chamou atenção de todos no ambiente.
— É, sou eu... Tudo bem? — Noah sorriu tímido e apertou a mão do
menino, que lhe ocupou os ouvidos por bons minutos. Depois disso, a cada
hora vinha alguém cumprimentá-lo com olhares que beiravam à admiração.
Quando enfim conseguiu uma folga dos quase-fãs, correu para perto da
banda.
— Nem cantou ainda e já tem admiradores! — Brinquei. Ele soltou o ar
de forma rápida e levantou os olhos.
— Não gosto quando isso acontece.
— Ah, então é algo comum! — Ri e recordei que naquela cidade a
dona Laura era como celebridade e o neto dela, consequentemente.
Deixamos tudo pronto para a apresentação e nos ocupamos entre
papos furados e piadas. É claro que, entre uma conversa e outra, não paravam
de chegar garotinhas animadinhas se apresentando para o Noah. Coitadinhas,
assim como para mim, a chance era zero para elas.
— Pessoal, preciso que me passem os vídeos de vocês! — A
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organizadora gritou ao entrar no camarim, se referindo a um vídeo curto que


todas as bandas deveriam reproduzir antes de sua participação. O objetivo era
mostrar os integrantes da equipe, de qual igreja eram e porque decidiram
participar do concurso. Acabou sobrando para mim produzir o da minha
banda, que apesar de não manjar quase nada de edição, era a que mais sabia
dentre todos. Vasculhei minha bolsa à procura do pen drive onde coloquei o
vídeo, mas não encontrei. Olhei nos bolsos do colete e, também, nada. Luana
procurou em minha bolsa mais uma vez, abri até a carteira e nada do pen
drive aparecer. Todos me observavam preocupados.
— Devo ter esquecido em casa. — Eu estava tensa. — E agora?!
— A gente apresenta sem vídeo! — Matheus simplificou a situação.
— Mas é uma das condicionantes para participação no concurso. Não
tem como apresentar sem o vídeo. — Cássio sentenciou. Noah correu até a
responsável e demorou uns cinco minutos gesticulando com a moça. Mas
pela cara com que ele se aproximou de nós, seus argumentos não pareciam
ter resultado em muita coisa.
— Nada feito. — Disse, formando um biquinho com os lábios.
— Quando a gente precisa de alguém que babe ovo em você... —
Comentou Pietro, levemente irritado. Noah olhou no relógio seguidas vezes.
— Vou buscar. — Ele decidiu.
— O quê?! — Arregalamos os olhos em conjunto.
— Tem outra maneira?!
— Mas são quatro horas! Até ir a Gruta Alta e voltar, já vai estar na
hora de início do evento e não vai ter como passar o som! — Argumentou
Matheus.
— Não temos outra escolha. Ou eu busco o pen drive ou não
apresentamos. O que vocês decidem? — Noah cruzou os braços, esperando
as respostas.
— Eu vou com você. — Anunciei, levantando-me da cadeira. Todos
mudaram o olhar para mim. — O pen drive é meu e está na casa em que eu
estou hospedada. — Argumentei e recebemos o aval de todos. Não tínhamos
opções. Cruzamos o ginásio a passos rápidos e, após entrarmos no carro,
Noah arrancou à toda velocidade em direção a Gruta Alta.
— Acho que vai chover. — Comentei ao olhar para fora da janela, não
porque essa é a frase clichê de quando não temos o que falar, e sim porque a
cada minuto que passava densas e escuras nuvens preenchiam o céu.
— E não parece que vai ser pouco. — Ele concordou, com as mãos no
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volante e olhos vidrados na estrada. Depois desse extenso diálogo, fomos


acompanhamos pelo barulho do vento que entrava pelas frestas das janelas e
pela voz da banda Resgate, que tocava no som do carro, por mais da metade
da viagem. Eu olhava para as árvores que margeavam a estrada e mil
pensamentos voavam em minha mente.
— Betina.
— Noah.
Falamos ao mesmo tempo. Sorrimos.
— Depois de tanto tempo em silêncio resolvemos falar na mesma
hora?! — Ele achou graça. — Primeiro as damas.
— E se eu quiser falar depois que você? — Brinquei.
— Você não vai querer. As mulheres adoooram falar. — Ele gargalhou
e eu fitei-o com olhos apertados.
— Fiquei mais de trinta minutos calada. Essa sua informação não
procede. — Cruzei os braços. — Mas de qualquer forma, vou falar primeiro.
Ele olhou-me com uma cara de “não falei?!” e eu finalizei o momento
zoação juntando os lábios em um sorriso estreito:
— Vou embora domingo.
Ele tirou os olhos da estrada e observou-me por rápidos segundos.
— Mas já? — Falou com decepção.
— Meu pai me ligou hoje avisando. Estava tão entretida no fantástico
mundo de Gruta Alta que acabei esquecendo que as aulas voltam na próxima
segunda. — Eu falava olhando para as mãos.
— As meninas já sabem?
— Não. Você, depois da Zuleide, é a primeira pessoa pra quem eu
conto.
— Devo me sentir especial por isso? — Perguntou, enquanto
tamborilava os dedos sob o volante.
— Talvez. — Sorri.
Dessa vez o vento e as músicas não precisaram fazer sala para nós, pois
o assunto fluiu. Conversamos sobre escola, faculdade e expectativas para o
futuro. Apesar de já ter completado dezoito anos, Noah terminaria o Ensino
Médio naquele ano. Sua época rebelde lhe deu de presente 365 dias a mais no
colégio.
A rapidez do Noah ao volante nos permitiu chegar a Gruta Alta quinze
minutos antes que o horário previsto. Abri a porta do carro e voei para dentro
de casa. Entrei esbaforida e nem percebi que havia sapatos em frente à porta.
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Trombei o pé direito num par que estava jogado por cima dos outros, me
desequilibrei e cheguei aterrissando no chão da sala de estar. Ergui a cabeça
devagar e me deparei com vários olhinhos concentrados em mim. Era a
reunião de discipulado semanal das senhoras da igreja.
— Betina?! — Zuleide virou-se espantada. — O que foi isso?! Você
não deveria estar no concurso?
— Esqueci uma coisa! — Levantei rapidamente e corri para o quarto.
— Isso. — Disse, apontando para o pen drive, após tê-lo pego jogado em
cima da cama. As irmãs permaneciam paradas, me olhando como se eu fosse
um ET. Zuleide abriu a boca para falar algo, mas antes que ela me prendesse
ali por um tempo que eu não tinha, dei um tchauzinho e fechei a porta. Entrei
no carro rindo.
— O que foi? — Noah perguntou, enquanto manobrava o carro.
— Acabei de pagar um mico. Estava demorando pra isso acontecer de
novo... — Caçoei de mim mesma e contei sobre a cena anterior.
— Pode ficar despreocupada que elas não vão te achar sem educação.
As irmãs da igreja são tranquilas.
— Não posso dizer o mesmo sobre o temporal que está para cair a
qualquer momento... — Comentei ao observar a escuridão que já havia
preenchido o céu. Não demorou muito e os primeiros pingos invadiram o
vidro do carro, fazendo os para-brisas trabalharem ininterruptamente. Por
causa da intensidade da chuva, Noah precisou diminuir a velocidade, mas a
hora avançava sem piedade, o que nos deixou um pouco mais preocupados.
De cinco em cinco minutos ele olhava o relógio de pulso.
— Ai, porque eu fui esquecer esse pen drive?! — Esbravejei.
— Betina, não adianta ficarmos aflitos agora. Não há nada que
possamos fazer para chegar lá mais rápido. — Ele tentou apaziguar a
situação, mas o barulho cada vez mais alto do aguaceiro do lado de fora só
aumentava a tensão. Depois de uns vinte minutos na agilidade de uma
tartaruga, a chuvarada minimizou e pudemos andar mais rápido. A estrada era
asfaltada somente após determinado ponto e àquela altura faltava pouco para
chegarmos lá. Até aquele momento não tivemos problemas com o trajeto de
chão batido, mesmo estando bastante escorregadio. Até aquele momento...
— O que aconteceu?! — Gritei alarmada. Noah fechou os olhos e
respirou fundo.
— Atolamos. — Colocou a mão na maçaneta para abrir a porta do
carro.
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— Não! Se você sair vai ficar encharcado! — Impedi-o. Ele girou a


chave e o carro fez um “Vroooom! Bruuuum” bem alto. O veículo chegou a
se mover, mas voltou para onde havia atolado. Ele repetiu isso três vezes e
nada.
— Vou ter que sair para ver como está a situação. — Tentando
manter a calma, Noah desceu do automóvel, fechou a porta e deu a volta para
analisar o teor do problema. A chuva intensificou-se e ele rapidamente voltou
para o carro, bem molhado. Pegou uma toalhinha no porta-luvas e secou o
que pôde do rosto e braços.
— Vamos conseguir sair daqui a tempo? — Perguntei, notando pelo
relógio do carro que faltavam trinta minutos para o início do concurso e ainda
não tínhamos chegado nem na metade do caminho.
— Vamos orar. — Noah começou uma oração pedindo provisão de
Deus para aquele momento. Quando terminou, seu rosto estava com uma
expressão mais leve. Procurou o celular no bolso e tentou ligar para alguém,
mas estava sem sinal. Pra variar.
— Nessas horas não passa ninguém na estrada! — Comentei,
olhando pelo retrovisor. Ele sorriu nervoso, à medida em que encostava a
cabeça no banco e tampava os olhos com as mãos. Cinco minutos se
passaram e o temporal não dava trégua.
— Já te falei o quanto foi legal ter conhecido você? — Noah me
pegou de surpresa.
— Acho que não. — Soltei um sorriso pequeno, que descrevia a
timidez que me queimou o rosto naquele momento.
— Então vamos reparar isso agora. — Seus lábios se fecharam, mas
seus olhos sorriram. Ele endireitou o corpo e virou-se para mim como se
fosse dizer algo bem sério: — Foi muito legal conhecer você, Betina.
— Que pena eu não poder dizer o mesmo sobre você...
Ele olhou-me diretamente, as sobrancelhas expressando uma ligeira
inquietude.
— Não foi legal te conhecer, Noah, foi incrível!
— Ufa! — Ele soltou o ar. — Quase me enganou, hein.
Rimos até chegar no “ai, ai” e não ter mais o que dizer.
— Foi incrível conhecer cada um de vocês. — Retomei o assunto
endireitando a frase, para que não parecesse uma cantada. — Aqui eu aprendi
como viver uma vida longe do mundo, literalmente (porque ôh lugar
distante!) e espiritualmente falando. Mas, especialmente, não tem como
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descrever o que você e minhas primas significaram pra mim nessas férias.
Posso garantir que achava a vida livre em Deus que vocês levam como uma
prisão, no início. Porque eu de fato achava que tudo era fruto de regras e “não
podes” da igreja. Porém Jesus, que é lindo demais, usou a vida de vocês para
que eu percebesse que ser cristão não é ser careta. Ser cristão é andar na
liberdade dada por Jesus na cruz e viver uma vida ao lado do Dono do
Universo! — Senti meu coração arder. — Por isso foi tão maravilhoso
conhecer vocês. E é por isso que vai ser tão trágico ter que me despedir
depois de amanhã. — Passei as mãos pelo rosto, desalentada.
— Na verdade, Betina, as melhores coisas vão começar a acontecer
depois de domingo. Porque assim que você colocar os pés em solo carioca,
toda uma antiga vida estará te esperando e será a hora de colocar em prática
tudo que aprendeu aqui.
— Não vai ser fácil. — Disse, lembrando-me da conversa que tive
com a Beca.
— Mas Jesus vai estar ao seu lado.
Assenti balançando suavemente a cabeça, sendo analisada por seus
afáveis olhos cor de mel.
Tic-tac-tic-tac-tic-tac... O relógio não descansava. Cinco e quarenta.
Cinco e quarenta e dois. Cinco e quarenta e cinco...
— Precisamos fazer alguma coisa! — Decretei, saindo do carro.
— Betina, você vai se sujar nessa lama! — Noah gritou e logo desceu
também. — Como você vai cantar toda molhada e suja? Volta para o carro.
— Disse ele, aproximando-se de mim.
— Você realmente acha que ainda dá pra participar do concurso? —
Cruzei os braços. — Mas, se existe alguma esperança, ela está em nossas
mãos.
— Você não está pensando...
— Isso mesmo! — Apontei o dedo indicador pra ele e me coloquei
atrás do carro. Flexionei uma perna, enquanto esticava a outra para dar
impulso e coloquei as duas mãos na traseira do veículo. — Está esperando o
quê? Vem me ajudar!
Ele soltou uma gargalhada.
— Olha o tamanho desse carro! Nós dois juntos não vamos ter força
o suficiente para empurrá-lo daqui. — Noah colocou as mãos na cintura e
olhou-me incrédulo.
— Pois eu li na bíblia essa semana que se tivéssemos fé do tamanho
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de uma semente de mostarda, seríamos capazes de mover montanhas... Que


dirá um carro atolado!
Ele mordeu os lábios segurando outra risada. Olhou para o céu como
se pedisse um socorro e então veio para perto de mim, com os ombros caídos,
e colocou-se atrás do carro. Depositou as mãos na retaguarda da picape e deu
um meio sorriso, deixando claro que estava fazendo aquilo por mim e não
porque acreditava que pudesse dar certo.
— Um, dois, três e... Já! — Apertei os olhos e demos o impulso mais
forte que conseguimos.
— E aí? — Perguntei, abrindo um dos olhos. Ele balançou
negativamente a cabeça. — Nada?
— Não fez nem cócegas.
— Acho que temos pouca fé.
Apoiei-me no carro e murchei. Ele recostou-se ao meu lado e
analisou-me de soslaio. A chuva caía fraca. Meu cabelo desalinhado por
causa das gotas, o vestido úmido quase partindo para encharcado e os tênis
cheios de lama deviam estar lhe chamando a atenção.
— Não vai dizer a frase? — Indaguei, olhando pra frente.
— Que frase?
— “Eu te avisei”. — Apontei para mim mesma, referindo-me ao meu
estado lastimável. Ele riu.
— Até que foi divertido.
— Pelo menos história pra contar é que não vai faltar quando eu
voltar pra casa. — Falei, já sentindo aquela pontada nostálgica no coração.
Ele apenas manteve um sorriso sereno no rosto.
— Por que ficou tão estranho comigo semana passada? — Perguntei
de rompante.
— Às vezes você faz umas perguntas difíceis.
— Eu só fiquei curiosa, porque quando estávamos na fazenda você
foi todo simpático e amigo e, de repente, um dia depois, você me ignorou
como se eu fosse uma desconhecida. — Havia um pingo (tudo bem, estava
mais para um balde) de chateação em minhas palavras. Ele passou as mãos
no cabelo molhado, inquieto.
— Prometi a Pietro. — Seus olhos miravam o chão.
— O quê?
— Que me afastaria de você. — Soltou um sorriso fraco.
— Mas porq... — Tentei contestar, mas Noah me interrompeu.
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— Eu errei. Sabia que ele estava interessado em você e mesmo assim


te convidei para uma conversa em particular. Pietro ficou muito chateado
comigo e não tinha como ser diferente.
— Foi uma conversa normal, não vejo nada demais em dois amigos
conversarem. Ainda mais sobre o assunto que falamos: Jesus! — Falei
indignada.
— Não se trata do assunto e sim da atitude em si. Ficar de papo com
a garota que o amigo gosta é uma violação grave no pacto de conduta das
amizades entre garotos, Betina.
Eu ri. Pacto de conduta? Conta outra!
— Mas o Pietro não gosta de mim. Nem gostava.
— É, percebi isso depois. — Arqueou as sobrancelhas. — Mas,
enfim, estou desculpado?
— Já te falei que sim. — Uni os lábios em um sorriso curto e por um
bom tempo só se ouviu a delicada melodia da garoa tocando as folhas das
árvores ao lado da enlameada estrada.
— Pietro conversou com você depois daquele dia? — Noah quebrou
o silêncio.
— Não. Ele se distanciou bastante, na verdade. — Respondi, surpresa
pela pergunta. — Você chegou a falar com ele?
— Sim.
— Foi por isso que vocês brigaram, não foi? — Fitei-o. Noah desviou
o olhar.
— Ele disse que queria conhecer você melhor, não te beijar no
primeiro encontro. Fiquei incomodad...
— Por quê? — Olhei em seus olhos. — Por que isso te perturbou
tanto?
Ele retribuiu o olhar, parecendo querer falar através dos olhos o que
não tinha coragem para dizer pelos lábios.
— Acho melhor entrarmos antes que alguém pegue um resfriado.
Não era bem isso que eu esperava que ele dissesse. Noah virou-se em
direção à porta do carro e eu fiz o mesmo. Puxei a maçaneta ao lado do banco
do carona e ouvi um barulho ao longe. Noah correu para o meio da estrada e
soltou todo o ar que parecia estar prendendo desde que o carro encalhou.
— Tem alguém vindo por aí! — Levantou as mãos para o céu e
agradeceu a Deus. Não demorou muito e um carro vermelho se aproximou de
nós. Noah acenou e o motorista rechonchudo e grisalho veio ao nosso
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encontro. Chico, como era chamado, foi o mais solícito possível. Teve uma
breve conversa com Noah sobre questões técnicas — as quais eu não
entendia bulhufas —, pediu licença e entrou no carro. Eu e Noah nos
entreolhamos, cheios de esperança.
Chico, com a maior tranquilidade do mundo, deu um arranque na
picape e, quase com um pulo, tirou o carro de dentro da lama. O queixo de
Noah caiu.
— Tenho menos de um ano com carteira de motorista. Dá pra relevar,
né? — Ele sussurrou envergonhado.
— Prontinho, garoto. Pode seguir viagem despreocupado agora. —
Seu Chico deu um aperto de mão em Noah que quase desconjuntou seu pulso
e sorriu para mim. Agradecemos um milhão de vezes e antes dele seguir
viagem, piscou para nós e disse:
— Vocês formam um belo casal.
Olhamos de esguelha um para o outro e, com o rosto levemente
corado, seguimos para o carro em silêncio.
— Quando eu digo que Deus coloca anjos em nossas vidas, não estou
brincando! — Noah vibrou, já com as mãos no volante. “Eu que o diga...”,
pensei, olhando para ele.

Capítulo 16 – As Surpresas Desagradáveis de um Grande Dia

Em trinta minutos adentramos a pista principal de Jeriri e Noah


precisou reduzir a velocidade. Eu já estava com o cabelo penteado — não que
estivesse bonito, mas fiz o que pude — e com o tênis menos sujo, a roupa
molhada não dava para disfarçar. Ainda tínhamos uma ponta de esperança em
relação à apresentação.
Noah teve dificuldade em encontrar uma vaga para estacionar
próximo ao ginásio. O lugar estava lotado. Deixamos o carro algumas ruas
atrás do local e corremos para lá, com os olhos brilhando e corações
trepidantes. Entramos pela porta dos fundos e encontramos um segurança,
com mais ou menos 1,90 de altura e cara de poucos amigos.
— Oi. Nós precisamos entrar. — Informei ao homem.
— A entrada por aqui é restrita às bandas.
— Nós fazemos parte de uma das bandas participantes do concurso.
— Noah explicou.
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— Recebi ordens de que ninguém mais poderia entrar por aqui.


Todas as bandas já estão lá dentro. — A voz do cara era tão grave e rouca
que me fez tremer as pernas.
— Amigo, nós estávamos aí dentro há algumas horas atrás.
Precisamos ir até Gruta Alta buscar um pen drive, pegamos uma chuva
horrorosa pelo caminho e o carro atolou. Por favor, nossa banda deve estar
desesperada! Deixe-nos entrar! — Noah implorou.
— Esperem um minuto. — O segurança afastou-se para falar no
rádio. Noah, com os punhos cerrados, andava de um lado a outro.
— Ei! — Sussurrei. — O segurança não está olhando, dá pra gente
entrar!
— Você está doida, Betina?! — Perguntou-me incrédulo.
— GOSTARÍAMOS DE CHAMAR PARA A PRÓXIMA
APRESENTAÇÃO UMA GALERA QUE VEIO LÁ DE GRUTA ALTA
PARA NOS ABENÇOAR COM A MÚSICA “VOU PERMANECER”!
VEM AÍ: BANDA LUZ DO MUNDO! — Ouvimos o apresentador anunciar
nossa entrada e os corações palpitaram. Noah engoliu em seco, olhou para os
lados e agarrou minha mão, puxando-me bruscamente. Voamos para o
camarim e não olhamos para trás, mesmo ao ouvir os berros do homem com
cara de mau.
Noah foi abrindo caminho entre as quinhentas pessoas que deviam
estar naquele lugar, até avistarmos nossos amigos. A expressão de desespero
que preenchia os rostos deles me partiu o coração. Sissa e Matheus foram os
primeiros a nos avistar.
— Glória a Deus! — Gritaram, vindo em nossa direção. Os outros
logo também correram para próximo de nós. O alívio foi geral.
— Misericórdia, o que aconteceu com vocês?! — Nanda perguntou,
analisando-nos de cima a baixo.
— É uma longa história que garanto contar depois da nossa
apresentação. — Noah disse rapidamente, entregando o pen drive nas mãos
de Luana, que correu até o garoto que coordenava as mídias.
— GENTE, SÓ UM MINUTINHO. ACHO QUE HOUVE ALGUM
PROBLEMA COM O VÍDEO DE ABERTURA DA BANDA. — O
apresentador enrolava, enquanto a organizadora, ao lado do palco, pedia
tempo a ele.
— Estão prontos?! Vou dar o sinal para lançarem o vídeo, ok? — A
mulher nos perguntou. Respondemos positivamente e nos juntamos próximo
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a ela para assistirmos ao vídeo, no corredor que havia ao lado do palco. De lá


podíamos ouvir o barulho da plateia e ter a noção de que realmente tinha
muita gente do outro lado. Uma onda de nervosismo me envolveu e comecei
a orar baixinho, pedindo coragem ao Senhor. Porém, minha oração foi
interrompida quando um burburinho vindo do público foi ficando cada vez
maior. Abri meus olhos devagar e observei que na tela gigante não passavam
as fotos da banda. Era um vídeo meu.
Meus olhos esbugalharam-se de terror ao perceber que nas imagens
que se passavam eu estava praticamente bêbada, não falando coisa com coisa,
com copo de cerveja nas mãos, vestida em um micro short e agarrando o
Cauê pelo pescoço, enquanto ele me puxava contra seu corpo. Aquela
filmagem aconteceu em um dos churrascos na casa do Pedro e, na época, um
garoto sem noção postou no Facebook. O vídeo deu o que falar entre a galera
da escola há seis meses — quando foi filmado. Eu pedi para o bendito garoto
apagar, mas pelo visto, ele não o fez.
Àquela altura eu não conseguia ouvir mais nada. A voz do
apresentador se desculpando pelo engano ecoava longinquamente em minha
cabeça e era como se tudo estivesse ficando meio turvo...
— Bê, você está branca igual a uma folha de papel! — Sissa passava
a mão por minha testa. — Prima, não desmaia, por favor...
As vozes multiplicaram-se perto de mim. Pessoas iam e vinham, a
organizadora foi furiosa em direção ao setor de mídias e muitas perguntas.
Muitas. Ouvi o som remoto dos garotos solicitando aos membros das outras
bandas que deixassem o corredor. Luana chegou correndo com um copo
d’água e Nanda me deu um pedaço de maçã. Despertei do meu quase-
desmaio quando ouvi a trilha sonora do vídeo certo tocando. Abri os olhos e
encontrei os de Noah.
— Eu não posso... — Balbuciei, com os olhos úmidos.
— Você pode! — Falou firme, com o rosto bem próximo ao meu. As
lágrimas começaram a jorrar e ele me abraçou.
— Vamos lá naquele palco glorificar ao Senhor que mudou sua
realidade de vida, menina. — Disse baixinho, beijando minha cabeça.
Solucei. Ele se desvencilhou do abraço, segurou firmemente meus braços e,
determinado, falou olhando nos meus olhos:
— O amor verdadeiro lança fora todo medo. E você, certamente, é a
garota mais corajosa que eu conheço. — Enxugou uma lágrima que escorria
sobre meu rosto. O vídeo oficial terminou e o apresentador nos chamou.
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Soltei um sorriso parco e balancei suavemente a cabeça, indicando que


mesmo com muita vergonha, eu iria cantar.
A banda aplaudiu e me deu um grande e fofo abraço coletivo.
Matheus fez uma oração rápida e corremos para o palco. O ginásio estava
abarrotado de gente e todos nos observavam atentos. Pietro marcou o tempo
com as baquetas e no terceiro toque todos os instrumentos entraram juntos.
Um frisson tomou conta da plateia, que aos gritos e assovios mostrava que o
estilo meio rock’n roll da música agradara a maioria. Uma incrível sensação
de vergonha misturada com medo e alegria invadiu meu coração. Nunca
havia sentido algo assim antes.
Começamos a cantar e eu fechei os olhos, tentando abafar o barulho
da multidão e focar em Jesus. Em poucos minutos, era como se Ele estivesse
ali, em minha frente. E, na verdade, estava. Eu só não conseguia ver, mas
sentir eu podia. Cantei com todo meu coração ao Filho de Deus, que a si
mesmo se entregou por mim e que naquele momento me dizia que não
importava as situações nebulosas que eu me deparasse vida afora, Ele sempre
estaria lá. Porque eu sou dEle.
Abri os olhos e cantei a última parte da música com muita felicidade,
falando para Jesus que sim, eu ia permanecer firme. Noah cantava e tocava
com bastante euforia e era possível ver a alegria de sua alma transbordar
através do brilho de seus olhos. Virou-se para mim e cantamos de frente um
para o outro, finalizando com muita gratidão aquela música, que se
transformou em uma oração para nós. Deixamos o palco exultantes.
— Cara, isso foi demais! — Pietro vibrava, já fora do tablado.
— Só Deus mesmo pra fazer dar tudo certo mesmo após esse
turbilhão de emoções pré-apresentação! — Cássio compartilhou, sorrindo.
— Obrigada por todo apoio, galera. Vocês realmente são grandes
amigos. — Declarei meu carinho por eles, que apesar de suados não
hesitaram em me envolver em outro big abraço comunitário. Nanda e Sissa
continuaram abraçadas a mim, mesmo depois dos outros se afastarem.
— Eu amo vocês. — Sussurrei.
— A gente te ama mais ainda! — Responderam, soltando-me.
Enquanto isso os meninos pegavam alguns instrumentos e cabos particulares
usados na apresentação e a próxima banda a tocar já se amontoava pelo
corredor com caixas de som e violões. O intervalo das trocas de
equipamentos entre bandas era de cinco minutos, geralmente. Resolvemos
sair dali e esperar os garotos atrás do palco. Desci o degrau que dava para o
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camarim e fiquei horrorosamente constrangida. Todos olhavam para mim.


“Já devia estar acostumada a passar vergonha...”, pensei
conformada e um calafrio passou pelo meu corpo ao lembrar da exposição da
minha imagem para toda aquela gente. Como aquilo pode ter acontecido?!
Não havia possibilidade de o vídeo errado ter sido selecionado, porque
simplesmente não havia vídeo de Betina-bêbada-agarrando-o-Cauê-de-micro-
short no meu pen drive! Eu nem sequer salvei na memória do celular quando
foi postado no Facebook. Algo de muito errado havia acontecido e eu não ia
conseguir descansar até descobrir o que foi!
— Tem certeza de que não estava no seu pen drive, Betina? — Sissa
perguntou-me.
— Absoluta. Por que eu guardaria um vídeo ridículo daqueles?!
— Então a resposta mais óbvia que me vem à cabeça é que alguém
armou tudo isso. — Nanda colocou uma pulga atrás da orelha de cada um e o
silêncio tomou conta de nós por alguns segundos, naquela sala onde o
barulho parecia vencer o do público do outro lado do palco.
— Mas quem faria algo tão chulo assim com a Betina?! — Luana
quebrou o “silêncio”.
Nanda arregalou os olhos e quase pude ver uma lâmpada brilhando
sobre sua cabeça:
— Alguém que gostaria de estar no lugar dela!
Todos se entreolharam.
— Oi, gente! Bela apresentação!
Trocamos olhares novamente. Seria uma cômica ou trágica
coincidência?
— Vocês não vão me responder?! — Thami chiou.
— Obrigada, Thami. — Sissa replicou, se esforçando para
demonstrar o mínimo de simpatia.
— Bem que você disse que nos veríamos hoje... Como conseguiu
entrar aqui? O acesso é exclusivo para as bandas. — Nanda não demonstrou
nem o mínimo. Thami soltou uma risadinha sarcástica.
— O que eu não consigo nesse lugar, querida? — Lançou uma
piscadinha exagerada para mim e saiu rebolando. Meu queixo caiu. O maxilar
de Noah contraiu-se, e ele, que estava quieto até agora, levantou-se e foi atrás
dela.
— Ihh... Essa noite não para de trazer emoções, minha gente. Está
parecendo até novela! — Cássio riu, esfregando uma mão na outra como se
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estivesse pronto para o “próximo capítulo”.


— Essa garota não tem limites?! — Nanda irritou-se.
— Ei, não é legal culpar a Thami sem saber de fato o que aconteceu.
— Pietro defendeu a magrela de nariz empinado e gerou ainda mais
indignação em Nanda.
— Você não viu a piscadinha debochada que ela mandou pra
Betina?! A Thami só veio aqui para provocar e deixar claro o que a gente
estava começando a duvidar. Foi ela! É claro que foi!
— Nanda, me desculpe, mas eu vou ter que concordar com o Pietro.
Ainda que pareça que sim, não podemos julgá-la. A gente não pode perder o
foco de quem somos e porque estamos aqui. Nada de xiliques! — Sissa
repreendeu-a.
Eu olhei para trás, tentando encontrar um cabelo loiro que se
destacasse em meio à pequena multidão que ocupava o camarim. Como não
encontrei, decidi procurá-lo. Se havia alguém que deveria resolver isso, era
eu e não o Noah.
— Betina. — Sissa me chamou com olhar de preocupação assim que
comecei a andar.
— Pode ficar tranquila, não vou brigar com ela. — Respondi com
sinceridade e sumi no meio da galera. Depois de alguns “com licença” e
outras tantas pisadas no pé, avistei os dois conversando.
— Eu não entendo porque você faz essas coisas, Thamires. O que
você ganha humilhando alguém?! — Noah mantinha o tom de voz baixo, mas
direcionava olhos firmes a ela.
— Nada. Eu sei que nada. — Thami estava com os braços cruzados e
batia os pés igual a uma criança mimada. — Mas você sabe por que eu fiz
isso e tudo o mais nos últimos anos. Será que não é o bastante pra você
entender que eu te amo mais do que qualquer outra pessoa?
— Você quer provar que me ama prejudicando e expondo as
pessoas?! Você não entendeu nada sobre mim, mesmo. E nem sobre o que é o
amor. — Seu tom de voz agora misturava desapontamento e indignação. —
Thami, nos últimos dois anos eu tenho suportado o que você apronta na
esperança de que pudesse mudar e perceber que eu não sou mais aquele cara
que namorou você.
Uau! Por essa eu não esperava. Os dois são ex-namorados! Ai meu
coração, não sabia se sentia inveja dela ou aumentava a vontade de pular em
seu pescoço.
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— Mas a partir de agora, chega. Você foi longe demais. Eu não posso
suportar omisso o que você aprontou com a Betina.
— O que você vai fazer? Namorá-la para fazer raiva em mim?
Noah riu nervoso.
— Eu vou ter uma conversa séria com seus pais. — Ele cruzou os
braços, mirando-a com olhos frios. — E vou pedir a gentileza de que você
nunca mais se intrometa e atrapalhe a vida de alguém que eu gosto. Se isso
não acontecer, vou ser obrigado a me afastar de você.
Thami abaixou a cabeça e Noah olhou em volta. Nesse momento,
nossos olhos se encontraram. Ele enrugou a testa, como se perguntasse o que
eu estava fazendo ali. Como a Thami estava de costas para mim, não notou
minha presença e perguntou, com uma risada afetada:
— Você está apaixonado por ela, não é?
Ele desviou o olhar de mim. Respirando fundo, replicou:
— Com toda gentileza do mundo, mas vou precisar falar quantas
vezes que o que envolve a minha vida não te diz respeito? Espero que hoje
você finalmente caia na real de que não importa o que faça, nós nunca vamos
namorar novamente. Eu não falo isso para te magoar, porque meu maior
desejo é que você se apaixone primeiro por Jesus e depois de estar completa
nEle, o próprio Deus te apresente o amor da sua vida.
Ui, essa doeu! Ela começou a passar as mãos nos olhos, indicando
que não tinha nem esperado um lugar reservado e já estava chorando ali
mesmo. Procurou o corpo do Noah para um abraço, mas ele deu um passo
para trás. Thami limpou as lágrimas com força e saiu rapidamente pela porta
dos fundos.
Permaneci onde estava observando-a ir embora e não consegui mais
sentir raiva, um sentimento de compaixão começou a ganhar-me aos poucos.
Amar não é viver aprisionado a um sentimento, como Thami vivia, porque o
amor, na verdade, liberta. E somente depois de conhecer Jesus é que fui
capaz de entender isso. O amor verdadeiro não sufoca, não precisa ser
mendigado, não faz a gente perder o domínio próprio e nem “se conduz
inconvenientemente”.
Noah puxou o ar e soltou aos poucos, vindo em minha direção.
— Me desculpe por isso, Betina. — Baixou o rosto, envergonhado.
— A culpa não foi sua.
Ele fitou-me com carinho, mas ainda havia tristeza em seus olhos.
— Eu demorei muito pra falar com ela abertamente e impor limites.
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Já tinha passado da hora.


— Você acha que ela vai te deixar em paz agora?
— Vou orar ainda mais para que sim. A Thami é uma garota legal,
sabe. Mas eu não posso permitir que ela me coloque como centro de sua vida.
Assenti, pensando em quantos garotos fariam de tudo para ter uma
menina como a Thami aos seus pés.
— Como você está? — Sondou-me apreensivo.
— Depois de ter um vídeo nada cristão expondo minha pessoa para
quase toda a população cristã de Jeriri? Bom... Acho que até estou bem! —
Tirei sarro da minha própria situação e os olhos de Noah quase se encheram
de lágrimas. — É sério! Estou tranquila. Óbvio que não foi fácil encarar
aquele monte de gente me observando durante a apresentação e pensar que a
qualquer momento eles poderiam me reconhecer como a garota do vídeo.
Mas aí eu decidi fechar os olhos e então foi como se somente eu e Jesus
estivéssemos ali. E foi irado!
— Já te falei que você é incrível? — Noah abriu um sorriso amistoso.
Eu apertei os lábios, sem graça.
— AS APRESENTAÇÕES DAS BANDAS ESTÃO
ENCERRADAS E DENTRO DE POUCOS MINUTOS ANUNCIAREMOS
O GRANDE RESULTADO FINAL!
Grande gritaria encheu tanto a plateia quanto o camarim e meus
tímpanos quase estouraram. Uma banda formada somente por garotas, que
estava bem próxima a nós, soltava gritos tão agudos e estridentes que precisei
tapar meus ouvidos. Se a comemoração já chegava àqueles decibéis, imagina
quando o resultado final fosse anunciado. Noah enrugou a testa e se
aproximou do meu ouvido, falando alto:
— Vamos encontrar nosso grupo para estarmos juntos na hora do
resultado!
Seguimos até eles e fomos recebidos com expressões expectantes.
— Foi ela mesmo?! — Nanda perguntou de pronto. Eu confirmei.
— Ai! — Nanda rosnou e depois respirou fundo, parecendo se
esforçar para recobrar o domínio próprio.
— Como ela conseguiu essa proeza? — Luana questionou abismada.
— Não sabemos. Certamente deve conhecer o garoto que está
gerenciando o Data Show... Mas enfim, eu já conversei com ela e avisei que
vou contar sobre isso aos seus pais. — Noah respondeu, sentando-se em uma
cadeira. Nanda já ia abrindo a boca para falar algo desaforado, quando
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intervim:
— Galera, eu agradeço muito o apoio de vocês. E, Nanda, eu entendo
a sua reação e agradeço por tomar as minhas dores como se fossem suas, mas
eu não quero que essa situação ganhe mais atenção do que merece. Eu não
desejo reservar em meu coração ódio pela Thami ou qualquer coisa parecida.
Eu fiquei brava sim, mas rejeito esse sentimento dentro de mim, porque onde
o Espírito Santo está só deve haver paz!
Nanda baixou a cabeça e concordou silenciosamente. Dei um abraço
nela e Sissa orou, pedindo a Deus que nossas reações fossem cada vez mais
como as de Jesus. Pediu também pela vida da Thami e pelo resultado do
concurso, que já estava para sair. Após o amém, Nanda falou baixinho:
— Obrigada por me fazer lembrar como devo agir. Amo você!
Um sorriso bobo nasceu em algum lugar do meu coração e foi
subindo até chegar aos lábios. Era a primeira vez que ouvia alguém dizer que
eu tinha influenciado a fazer o que é correto.
Permanecemos abraçadinhas até o apresentador voltar a falar. Com
muito ânimo nas palavras, o rapaz fez um discurso sobre as bandas em geral e
logo depois passou o microfone para a organizadora do evento, que falou
mais meia hora de agradecimentos. E então, o momento mais aguardado da
noite chegou. Eu quase já não tinha unha para roer e a expectativa sobre o
resultado enchia o ambiente.
— A ESCOLHA FOI ACIRRADÍSSIMA E DUAS BANDAS
FICARAM ENTRE AS FAVORITAS. MAS ESTE ANO, QUEM VAI
ABRIR A EXPO CRISTÃ DE JERIRI É...
Estávamos de mãos dadas e em silêncio. Todas as outras bandas
também estavam mais ou menos assim.
— A BANDA SAL DA TERRA!
Eles pularam. Eles gritaram. Eles dançaram. Eles foram para o palco
se apresentar novamente e nós ficamos ali, um pouco xoxos, um pouco
tristes, um pouco sei lá...
— Por pouco não conseguimos! Estávamos tão pertinho deles, no
mesmo versículo...
Luana olhou para Matheus sem acreditar no que acabara de ouvir. Ele
fez um gesto, mexendo seguidamente o polegar e o indicador da mão direita.
— Não entendeu a referência a Mateus 5?
Todos riram e em poucos segundos aquela decepçãozinha básica por
não termos sido escolhidos esvaiu-se e passamos para o ginásio, pulando e
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cantando a música da banda ganhadora junto com todo o público. Os caras


realmente mandaram muito bem e tanto a letra quanto a melodia eram lindas.
Saímos de lá por volta das onze da noite, com os pés doloridos e corações
edificados. Conhecemos várias pessoas, fizemos amizades com muitas outras
e inclusive a banda vencedora convidou-nos para ministrar em sua igreja em
um culto de jovens no próximo sábado. Esse convite me fez sentir
terrivelmente triste. Eu não estaria mais lá para ir com eles.
— Você ficou quieta de repente. — Sissa observou, dentro do carro,
na volta para Gruta Alta. Dei um meio sorriso.
— Vou embora domingo.
Ninguém falou nada. Nanda foi a primeira a se pronunciar:
— Essa é realmente uma notícia ruim. Você não ficaria até o fim das
férias?
— Já é fim das férias pra mim. As aulas retornam segunda. — E
assim contei os detalhes da minha volta. Aquele papo estava embrulhando
um nó desconfortável em minha garganta. Resolvi mudar de assunto e fomos
até a cidade relembrando as emoções daquela sexta-feira surpreendente.
Entrei em casa e arrastei-me até a cama sem conseguir explicar muita
coisa à Zuleide, que acordou com minha chegada. Imersa em cansaço, puxei
o cobertor e caí em um profundo sono. Por volta das duas da manhã, acordei
com o coração saltitante e encharcada de suor. Abri a janela que dava para a
varanda a fim de ser refrescada pela brisa suave da madrugada de verão e fui
novamente assombrada pelas imagens do pesadelo de minutos atrás. Nele,
Beca, Luca e todos os meus amigos da escola riam com desprezo para mim,
enquanto eu andava pelo corredor do colégio com uma bíblia nas mãos.
Lembrei-me da sensação de ser ridicularizada perante todos e senti um sopro
gélido passar em meu peito. Seria esse tipo de coisa que me esperava na volta
para casa?
Fechei a janela e ajoelhei-me aos pés da cama. Pedi a Deus que me
desse coragem para ser aquilo que Ele me criou para ser em todos os
ambientes que eu colocasse meus pés, inclusive — e principalmente — na
escola. Depois da oração, deitei na cama e como se uma cortina preta se
fechasse sobre os meus olhos, dormi até o dia seguinte.

Capítulo 17 – Uma Noite Para Ficar nos Sonhos

— Nossa, isso aqui tá muito maneiro! — Exclamei, reparando em


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cada detalhe das barraquinhas de comes e bebes da expo cristã de Jeriri. Tudo
parecia ter sido preparado com muito zelo e havia mil e uma opções de
lanches. A noite começava a dar o ar da graça, trazendo consigo inúmeros
pontinhos luminosos que, junto à lua cheia, teciam um céu deslumbrante.
Ainda faltava algum tempo para os nossos mais novos amigos da
banda Sal da Terra iniciarem a primeira noite (e única, para mim) de shows
da expo, então aproveitamos para lanchar e visitar alguns stands de lojas. Em
nossa peregrinação, acabamos chegando ao outro lado do enorme espaço a
céu aberto onde o evento acontecia. Não contive minha surpresa ao ver que
havia ali um parque de diversões!
— Gente, isso é fantástico! Quanto tempo eu não vou a um parque
assim! — Meus olhos brilharam e todos riram.
— Se soubéssemos disso tínhamos te trazido aqui antes, esse parque
está em Jeriri desde o início do verão.
Mal esperei Sissa completar a frase e enlacei meus braços no dela e
no de Nanda e puxei-as para a cabine de compra de bilhetes. Noah, Pietro,
Cássio, Matheus e Luana vieram atrás.
— Ai, eu quero ir em todos! — Parecia ter virado criança de novo.
Eles achavam graça da minha animação. Andamos nos dois brinquedos mais
“radicais” do parque: o primeiro chamava-se Chacoalha Samba, que rodava
em velocidade nem tão alta assim, de um lado a outro sem parar, por dois
minutos. O segundo era uma espécie de barca, que nos levava para frente e
para trás sem grandes emoções. Apesar de não ser nenhum Hopi Hari da vida
e não ter brinquedos transbordando adrenalina, eu estava adorando passar o
tempo ali. O que não posso dizer em relação aos meus amigos, que se
esforçavam para me fazer companhia. Descemos do segundo brinquedo e eles
logo me chamaram para voltar à expo.
— Temos que guardar lugar perto do palco, se não na hora do show
ficaremos lá atrás! — Matheus cortou todas as minhas esperanças.
— Ah, mas eu queria tanto andar mais pelo parque... — Fiz biquinho.
— Podem ir, eu fico mais um tempo aqui com a Betina. Guardem um
espaço para nós. — Noah sentenciou e eles concordaram. Nanda mandou
uma piscadela para mim e saiu sorrindo. Meu coração aqueceu-se.
— Obrigada. — Soltei um sorriso tímido.
— Não há de quê. Esse parque passa os verões em Jeriri há muitos
anos, todos nós já viemos tanto que perdeu um pouco a graça... Por isso a
galera meio que “foge” dele. — Noah explicou.
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— Puxa vida, onde eu moro não vejo parques desse tipo desde
quando eu tinha uns seis, sete anos... Tenho muitas lembranças boas de
lugares assim, porque minha avó materna sempre me levava. Ela era a melhor
vovó do mundo! Nós passávamos a tarde toda andando em brinquedos,
comendo algodão doce e maçã do amor, além de jogar bastante na pescaria.
Mas que fique registrado: nunca ganhamos nada! — Gargalhamos.
— Imaginei mesmo que houvesse algum sentido emocional por trás
da sua paixão inesperada pelo parque. Quando o viu, parecia ser uma
criancinha novamente. — Noah sorriu cheio de inocência, mas eu tive
vontade de cavar um buraco para me esconder. Nada pior nessa vida para
uma adolescente do que ser comparada a uma criança e ainda mais quando
essa comparação vem de um garoto que a gente admira e controla o coração
para não gostar além do normal.
— Você quer ir à roda gigante? — Perguntou, nem parecendo notar
meu constrangimento com seu comentário.
— É meio sem graça, né?
— Bom, se você me disser alguma coisa que tenha mais graça por
aqui eu vou na hora! — Debochou e eu dei um soquinho em seu braço.
— Vamos lá. — Apontei com a cabeça para a entrada da roda
gigante. Sentamos em uma das cabines e o operador fechou a porta gradeada
na cor verde-limão. A roda começou a girar vagarosamente, mas o vento
fazia com que o compartimento balançasse. Senti um frio na barriga. Não
trocamos uma palavra até estarmos no topo da roda gigante.
— Essa vista é que faz valer a pena! — Noah exclamou, observando
a cidade escura, cheia de pontos de luz espalhados por sua extensão. Lá de
cima conseguimos ver o palco da expo e a quantidade de pessoas que se
aglomeravam próximas a ele.
— Eles já devem estar lá! — Apontei e senti um solavanco que fez a
cabine balançar. Soltei um grito e segurei o braço do Noah com força.
— Calma. — Ele riu. — Não é nada.
— Então por que paramos de nos mover? — Perguntei assustada,
olhando para os lados.
— De vez em quando tem uma parada rápida. É normal. Daqui a
pouco voltamos a rodar novamente. — Noah olhou de relance para mim e foi
aí que percebi que estava grudada nele e ainda agarrada ao seu braço. Afastei-
me sem graça.
— Sua avó não está mais entre nós, né? — Questionou-me com
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empatia, após mudos segundos. Confirmei. — Percebi em seus olhos quanto


a amava.
A roda voltou a girar lentamente e eu contei histórias da doce vovó
Iolanda até estarmos em terra firme.
— Duvido você ganhar de mim no tiro ao alvo! — Ele me provocou,
ao sair da roda.
— Ei, eu ainda estou meio tonta, não posso jogar. — Retruquei.
— Que bom, assim vai ser mais fácil ganhar de você! — Soltou uma
risada e correu para a barraca, pegando uma espingarda de mentirinha. Eu
peguei outra e não teve jeito, ele acertou três vezes e eu nem uma sequer!
— Suas vivências na floresta te deixam com uma margem gorda de
vantagem sobre mim! — Refutei.
— Eu não costumo atirar em nada em minhas “vivências na floresta”,
ok?
Soltei o ar exageradamente forte e virei os olhos, em implicância com
ele. Andamos no carrinho bate-bate e eu ri horrores. Ele deixava os pais das
criancinhas que pilotavam os outros carros no chinelo, fazendo várias
manobras ousadas.
— Suponho que alguns pais não tenham ido com a sua cara.
— Por que acha que saímos antes do tempo acabar? — Sua expressão
era de um menino arteiro.
Corri até o carrossel e pedi a ele que tirasse uma foto minha em
frente. Abri a galeria do celular para ver se a imagem tinha ficado legal e
encontrei o rostinho dele ali, registrado ao lado da minha foto.
— Pensei que você não se importaria se eu usasse a câmera frontal do
celular antes de tirar sua foto. — Sorriu travesso. — É para lembrar de mim
quando voltar para o Rio.
Examinei seu rosto carinhosamente. Como sentiria falta dele em
meus dias.
— Espere um instante, eu já volto. — Noah falou e correu para longe.
Eu permaneci ao lado do carrossel. Não demorou muito para que eu fitasse a
beleza do céu naquela noite e me demorasse em contemplar as estrelas que o
enfeitavam como se fossem diversos diamantes espalhados por uma colcha
de veludo. Suspirei feliz. Ao lado dEle sentia-me infinita.
— Surpresa! — Noah colocou-se em minha frente dois minutos mais
tarde, com uma maçã do amor em uma mão e um algodão doce cor-de-rosa
em outra. Abri a boca, surpresa.
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— Já que estamos relembrando os passeios de infância com a sua


avó... — Seu sorriso ia de orelha a orelha e meus olhos estavam apertadinhos.
“Não chora, Betina! Não chora!”, gritava internamente. Não sabia se meu
coração batia de emoção mais por aqueles dois doces lembrarem a minha vó
instantaneamente, ou por Noah ter se importado com esse mínimo detalhe
dito no início do passeio.
Passei os braços por seu tronco instintivamente. Ele parecia não estar
esperando aquele tipo de obrigado e por breves segundos não correspondeu
ao abraço. Aos poucos abaixou os braços e retribuiu como pôde, pois
segurava os doces com as duas mãos. Soltei-o e peguei a maçã-do-amor,
minha preferida. Caminhamos pelo parque degustando as guloseimas e, antes
que meus dedos ficassem cheios de melado, saquei o celular do bolso e abri a
câmera.
— Se tenho foto minha e sua do passeio de hoje, nada mais justo que
ter uma foto dos dois juntos!
Paramos no meio do caminho e tiramos várias fotos. Algumas
fazendo caretas e todas mostrando o algodão doce e a maçã-do-amor.
Continuamos a andar olhando as imagens e rindo muito de algumas
expressões fotografadas. Aproveitei o momento descontraído para remexer
em um assunto que não deixou minha mente desde a noite anterior.
— Então quer dizer que já namorou a Thami... Essa parte você
ocultou quando contou seu testemunho. — Falei na maior cara de pau. Ele
espreitou os olhos, analisando-me.
— Foram mais ou menos sete meses. — Noah estava notadamente
embaraçado com o rumo da conversa. — Sendo que nos dois últimos eu já
era convertido. Percebi que não era legal ficar com alguém só para passar o
tempo. Aí eu terminei.
— E pelo visto ela nunca se conformou...
Ele balançou a cabeça, confirmando.
— Após minha conversão, Thami começou a ir comigo à igreja e
mesmo depois que terminei o namoro, não parou de frequentar. Eu sabia que
a motivação dela estava muito mais em mim do que no Senhor, mas eu fiquei
feliz com a presença dela mesmo assim. Eram oportunidades de conhecer a
Deus ganhas a cada culto. E como o pai dela tem ojeriza a cristãos, tal como
minha avó, não gostou muito da ideia. No início implicou pouco porque
Thami ia sempre acompanhada por mim, mas depois que eu rompi o
relacionamento e o senhor Norberto, que é colega de negócios da minha avó,
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soube que a dona Laura também repudia os “crentes”, proibiu a Thami de ir à


igreja. — Balançou a cabeça seguidas vezes, em sinal de reprovação. — Ela
sempre me ligava aos prantos por causa disso, então decidi conversar com ele
tentando persuadi-lo. O homem permitiu que ela voltasse a participar dos
cultos, mas com uma condição: eu deveria cuidar da Thami todo o tempo em
que estivesse na igreja ou em algo relacionado, porque qualquer coisa que
acontecesse a ela, ele culparia a mim. — Baixou os olhos e colocou as mãos
nos bolsos. — Desde então eu meio que me sentia responsável por ela, não
achava justo a menina ter que deixar de estar na igreja por minha causa,
então...
— Mas a culpa era do pai dela ser tão cabeça dura e não sua! — Falei
um pouco alto demais. — E a Thami não deixou de aproveitar esse seu bom
coração para aprontar, não é mesmo?! Lembro da nossa conversa no
acampamento. Ela forjou um tombo descarado para chamar sua atenção e
você foi socorrê-la imediatamente!
— Nem me recordava disso. — Ele riu. — E por que a senhorita
ficou tão irritadinha ao citar essa, hum... desagradável situação?
— Porque aquela cena deu de dez a zero em alguns dramalhões
mexicanos! — Está certo que não era só por isso, mas...
Ele soltou uma gargalhada.
— Conversei com os pais dela hoje no início da tarde. Espero que
isso funcione.
— Eles vão proibi-la de ir à igreja?
— Acredito que não. Fiquei um pouco receoso de que isso
acontecesse, mas eu não tinha mais ninguém a recorrer. Os pais são a
autoridade máxima, afinal. — Vi um rastro de tristeza passar rapidamente em
seus olhos, mas logo se dissipar. — Eu precisava, além de deixar as coisas
bem claras para a Thami, conversar com o pai dela sobre o tal “trato” que não
tinha lá muito fundamento e as coisas que ela vinha aprontando,
principalmente em relação ao que armou ontem. No fim das contas deu tudo
certo, o Norberto disse que eu não precisava mais me preocupar, pois ele
tomaria as medidas necessárias para a repreensão da filha.
— Ela estava durante a conversa? — Indaguei cheia de curiosidade.
— Numa parte. Chorou um pouco, mas não trocou nenhuma palavra
comigo. — Ele parou, arrastando o pé no chão de terra. — Tenho pedido ao
Senhor para que o coração da Thami amoleça e se abra para Jesus.
— Vou te ajudar nisso. — Juntei as duas mãos próximas ao queixo,
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fazendo alusão à oração. Ele sorriu afetuosamente.


Peguei um guardanapo em uma barraquinha para limpar o resto de
melado dos doces que ficaram em nossas mãos. Estávamos de frente um para
o outro e eu, concentrada na tarefa de tirar o açúcar derretido grudado em
meus dedos, não percebi que ele me examinava.
— Queria te falar uma coisa.
Levantei os olhos e a maneira terna com que ele me olhava fez meu
coração acelerar.
— Eu...
— Ah! Vocês estão aí! — Cássio gritou. — A Sal da Terra já vai
tocar, começaram até a contagem regressiva, vocês não estão ouvindo?! —
Ele estava esbaforido e suado, pelo jeito viera correndo nos procurar. Eu e
Noah estávamos numa atmosfera tão divertida e particular, que parecíamos
isolados do resto do parque. Nem sequer demos atenção aos sons que vinham
do palco.
— Obrigada, brother, nós já vamos. — Noah respondeu
educadamente, ainda de frente para mim.
— Beleza. — Cássio permaneceu parado, secando o suor que escorria
pela testa. Noah olhou para ele, para mim e para ele de novo. Soltou um
quase imperceptível suspiro e deu de ombros, parecendo um pouco
decepcionado. Começou a andar para o local do show e eu e Cássio fomos
atrás.
— E aí, curtiram bastante o momento a sós? — Cássio soltou um riso
abafado. Noah mordeu os lábios e virou-se para ele:
— Foi muito bom. — Em seguida deu um passo atrás e pegou minha
mão. “O que está acontecendo aqui, minha gente?” Entrei em pânico por
dentro, mas por fora tentava manter a expressão tranquila, como se o Noah
pegar em minha mão fosse a coisa mais natural desse mundo.
Ele foi à minha frente, abrindo espaço entre a multidão e o Cássio
vinha em seguida, sem mencionar uma palavra até encontrarmos nossos
amigos. Como eles estavam colados junto à grade de contenção e havia muita
gente se apertando por ali, nossas mãos acabaram soltando-se antes de nos
aproximarmos deles. Vibraram animados com a nossa chegada, mas nem nos
deram muita atenção porque a banda que vencera o concurso acabava de
entrar no palco. A não ser Pietro, que olhou-nos de soslaio por alguns
instantes.
Uma gritaria imensa emanava da plateia, principalmente da parte
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feminina, já que a banda era composta somente por garotos bonitos e cheios
de estilo. Nanda era uma das mais descontroladas, pois desde que conhecera
o vocalista no concurso, não parava de falar dele. “Como o fulano canta
bem!”, “Como o fulano é bonito”, “Você viu o que ele falou? Fulano é muito
consagrado!” e por aí vai.
Eu e Noah conseguimos um espacinho próximo à grade, ao lado
deles. Ele assoviava de vez em quando e cantarolava algumas partes da
música que aprendera ontem. Eu não conseguia fazer nada disso, minha
mente não parava de pensar na tal coisa que ele queria falar comigo. Todos à
minha volta pulavam, cantavam, levantavam as mãos, alguns fechavam os
olhos para louvar a Deus e eu estava parada, feito uma estátua, perdida em
meus pensamentos. A banda Sal da Terra deixou o palco e eu nem percebi.
— Tudo bem? — Noah perguntou, olhando para mim com certa
estranheza.
— Por que não estaria? — Repliquei, tentando disfarçar minha
viagem ao mundo da lua dos últimos minutos.
— Estou há um tempão te olhando e você nem percebeu. Parecia
estar com a mente em outro lugar.
— M... Me olhando? — Gaguejei.
— Uma pessoa parada no meio de uma multidão movimentada
chama um pouco de atenção, não acha? — Ele riu e eu baixei os ombros,
ligeiramente decepcionada.
— Só estava pensando em umas coisas. — Disfarcei. Noah prendeu a
visão em mim por alguns instantes. Seu olhar parecia querer falar-me algo.
Não demorou muito para que a segunda banda da noite fosse anunciada e ele
desviasse os olhos para o palco. Não conhecia o grupo, mas todos à minha
volta cantavam os louvores com bastante propriedade. Tentei prestar atenção
às letras e desviar aqueles pensamentos para longe dali. Não queria criar
falsas esperanças e, além do mais, eu já tinha dado a minha palavra a Deus de
que guardaria meu coração, não fazia sentido enchê-lo de fantasias e ainda
mais com um garoto como o Noah. Eu nunca teria chances com ele, um rapaz
tão espiritual, e eu ainda tão nova na fé.
Depois de quatro músicas, a vocalista da banda, uma moça baixinha e
gordinha, segurou a bíblia e começou a discorrer sobre o capítulo quatro da
primeira carta de Paulo aos Tessalonicenses. Leu lenta e pausadamente os
versículos que diziam:

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“A vontade de Deus é que vocês sejam santificados: abstenham-se da


imoralidade sexual. Cada um saiba controlar o seu próprio corpo de
maneira santa e honrosa, não dominado pela paixão de desejos
desenfreados, como os pagãos que desconhecem a Deus. Neste assunto,
ninguém prejudique seu irmão nem dele se aproveite. O Senhor castigará
todas essas práticas, como já lhe dissemos e asseguramos. Porque Deus não
nos chamou para a impureza, mas para a santidade. Portanto, aquele que
rejeita essas coisas não está rejeitando o homem, mas a Deus, que lhes dá o
seu Espírito Santo.”

Terminou de ler e passou a falar sobre o desejo de Deus de que


vivamos uma vida pura. Falou sobre relacionamentos que não agradam ao
Senhor, e além de dizer tudo que eu já tinha ouvido mil vezes naquelas férias,
aprofundou-se mais no assunto, dizendo que todas as vezes que despertamos
em outra pessoa desejos que não podemos satisfazer de forma honrosa diante
de Deus, estamos defraudando-a. Ceder aos caprichos de alguém que não seja
o cônjuge, permitindo que tenha acesso ao nosso corpo e intimidade, viola
nossa santidade diante de Deus. Uma passada de mão aqui, um beijo mais
profundo acolá e logo um coração facilmente entregue a qualquer um. A
moça fitou o público com olhos flamejantes e disse com firmeza na voz:
— Coração não foi feito para estar sempre sendo servido em
bandejas. Ele deve ficar guardado como uma joia preciosa, o que de fato é.
Muitas vezes o desejo de nos sentirmos desejados e amados faz com que a
gente se entregue de corpo e alma a relacionamentos e pessoas e depois de
um tempo o que sobra são caquinhos do coração pra catar pelo chão e um
poço de memórias doloridas.
A época do namoro, segundo ela, é para conhecimento do caráter,
personalidade, objetivos de vida e de todo o ser da pessoa com quem
pretendemos nos casar, e não para sabermos o tamanho da língua ou de
outras partes do corpo do namorado ou namorada.
De repente Cauê me veio à memória e uma grande tristeza ancorou
em meu coração. Quantas vezes havia me defraudado e defraudado a ele!
Achava aquilo tudo um grande barato e nem imaginava o que Deus pensava
das minhas atitudes. E olha que o Cauê sequer era meu namorado! Imagina se
fosse... Pela primeira vez em muitos dias recordei-me dele e um frio subiu-
me até a garganta. Como seria quando o visse segunda-feira na escola? Ele
certamente viria falar comigo e me chamar para o “esconderijo” na hora do
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recreio. O que eu ia responder?!


“Esconderijo” era um espaço vazio debaixo de algumas árvores
grandes e baixas em um lugar afastado do colégio. Geralmente Cauê e sua
turminha reuniam-se lá para bater papo e levar garotas na hora dos intervalos.
Eu, Luca e Beca sempre estávamos por lá.
Parei de pensar em Cauê e voltei a prestar atenção ao que a vocalista
dizia. Ela falava sobre esperar em Deus como um presente valioso, porque
somente um Deus tão lindo como o nosso para nos ensinar a viver todas as
coisas boas da vida no tempo certo e da maneira correta. Começou a cantar
uma música que falava sobre Deus escrever nossa história de amor e eu fiquei
ali, quietinha, absorvendo cada frase da música como se fosse o próprio Deus
quem estivesse cantando para mim. Agradeci a Jesus por me ensinar que o
primeiro amor que eu preciso buscar é o dEle, pois somente assim me sentiria
verdadeiramente amada. Do jeito como me sentia naquele momento.
Não demorou muito e outra banda subiu ao palco. Como já estava
ficando tarde, resolvemos sair dali a fim de comer alguma coisa antes de
irmos embora. Nos amontoamos em frente a uma barraquinha de hambúrguer
e fizemos os pedidos.
— E aí? — Nanda cochichou com as sobrancelhas perfeitamente
desenhadas erguendo-se dramaticamente. Fiz como se não tivesse entendido.
— Para de graça e conta logo o que aconteceu no parque!
— Nanda, o que poderia ter acontecido?! Eu estava com o Noah,
esqueceu? — Repliquei um pouco mais azeda do que deveria.
— Depois que você conseguiu dar um beijo nele, nunca se sabe o que
pode acontecer.
Olhei-a sem acreditar no que acabara de ouvir.
— Eu já te contei a história e você sabe o fiasco a que se resumiu
aquele momento. Não gosto nem de lembrar!
— Pode até ser, mas vai me dizer que não tem percebido como ele
passou a te olhar de uns dias pra cá?
— Não. Quer dizer, deve ser porque estamos mais próximos e, além
do mais, o Noah olha com carinho para praticamente todas as pessoas que
estão perto dele!
— Não parece um simples olhar carinhoso. Desde que somos amigos,
isto é, desde que ele se tornou cristão, nunca o vi tão próximo a uma garota
como está de você.
— Nem muito menos ficar bastante tempo a sós com uma! — Sissa
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entrou na conversa. — Noah leva muito a sério aquele versículo sobre fugir
da aparência do mal.
— Mas por que uma garota seria aparência do mal? — Estava
confusa.
— Você já não percebeu que onde ele está sempre tem meninas por
perto?! A maioria dá em cima sem dó nem piedade. Então ele vive fugindo de
oportunidades que possam deixá-lo tentado a pecar.
— E olha que não são poucas, hein! — Luana, que até então comia
seu cheeseburguer sem falar nada, completou enfaticamente a fala de Sissa.
Pensei que semanas atrás eu era uma dessas meninas que queria chamar a
atenção de Noah a qualquer custo. Pelo menos na maioria das vezes eu não
havia sido tão descarada. Menos uma coisa para me envergonhar agora.
— E vocês três nem para me contar que ele já namorou a Thami! —
Mudei de assunto, ainda falando baixo.
— Ah! — Exclamou Sissa. — Faz tanto tempo que às vezes a gente
até esquece. E também, qual a necessidade de você saber disso?
Olhei ofendida para Sissa, que agiu como se tivesse falado a coisa
mais gentil do mundo. Não consegui respondê-la, porque logo os meninos se
aproximaram de nós cheios de risadinhas e dando soquinhos nos braços uns
dos outros.
— Quero só ver quem consegue mandar pra dentro um sundae de
morango com nutella! — Pietro desafiou, apontando para a enorme e
convidativa foto do sorvete nos fundos da barraquinha.
— Em minha barriga sempre há espaço para um sundae, meu
querido! — Nanda respondeu, engolindo o último pedaço do seu lanche.
Sissa e os outros também toparam. Eu ainda estava na metade do meu
sanduíche e nem sabia se conseguiria terminá-lo. Voltaram para a fila do
caixa e eu continuei onde estava.
— Não gostou? — Noah perguntou, apontando para o eggburguer.
Não tinha notado que ele permanecera perto de mim.
— Acho que pedi um grande demais. — Respondi, observando o
quanto ainda faltava para comer. — Mas e você? Não o vi comprando lanche.
— É que estou com vontade de comer pastel e não hambúrguer.
Meneei a cabeça, sem saber o que dizer. Odiava quando aconteciam
esses vácuos de assunto entre nós.
— Quer ir comigo comprar um? — Noah propôs e olhei para ele um
tanto surpresa. Lembrei-me do que minhas primas disseram, será que era
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verdade? Ele estava me tratando de forma diferente das outras meninas?


— Sim, é claro.
Pusemo-nos a andar após Noah avisar os outros de que iríamos à
barraca de pastel. Nanda deu um sorriso como que dissesse “não falei?!” e
nos afastamos sendo vigiados por um atento e curioso grupo de olhos.
Ele pegou seu pastel de frango e catupiry e andou para o lado oposto
de onde nossos amigos estavam. Observei-o com dúvida.
— Venha. Quero te mostrar algo.
Andei ao lado dele em silêncio, coração indo a mil por hora. Em
outros tempos, eu teria certeza de que ele estava me levando para um local
mais reservado a fim de me beijar. Já tinha passado por situações parecidas
variadas vezes. Mas se tratando do Noah, esse não parecia ser o objetivo.
— Pronto. Daqui dá pra ver bem. — Parou perto de umas árvores a
uma distância considerável do movimento da expo e apontou ao longe. Abri a
boca e estalei os olhos.
— Que... Espetacular! — Olhei para ele, que tinha um sorriso
brilhante afixado no rosto, e rapidamente voltei os olhos para a cascata
perdida no meio dos montes, como se fosse um véu estendido, com a luz da
lua reluzindo em suas águas. Parecia um espetáculo onde a lua e a queda
d’água cultivavam o papel principal, tendo as árvores e estrelas como plateia.
— Gosto de olhar para esses montes porque além de lembrar que o
meu socorro vem do Senhor, ainda reafirmo a minha confiança de que o Seu
amor nunca deixará de jorrar por mim. — Noah falava olhando diretamente
para o cenário exuberante. Havia uma expressão de deslumbramento em sua
face. — Elevo os olhos para os montes; de onde me virá o socorro? O meu
socorro vem do Senhor, criador dos céus e da Terra. Salmo 121.
Um silêncio harmonioso passou entre nós. Não era preciso mais
palavras, a presença de Deus era notável ali. O fundo musical que vinha do
palco nos falava sobre como era doce estar perto de Deus e aquele momento
não deixava dúvidas disso. Um vento refrescante fazia nossos cabelos
dançarem e eu pensava na grandeza do Criador, se revelando de forma tão
bonita à criatura. Noah passou o braço por sobre meus ombros e, com olhos
radiantes, sorriu ao dizer:
— Não hesite em procurar algum monte pra chamar de seu lá no Rio,
está bem?
— Não vai ser difícil. Tem um na direção da janela do meu quarto.
— Melhor impossível.
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Ainda com o braço em meus ombros, virou-me lentamente e


seguimos de volta para a ala de alimentação. Antes da metade do caminho
retirou o braço e guardou as mãos nos bolsos — como sempre fazia.
De felicidade queimava o meu coração. Não por causa dele e sim
dEle. Naquele momento, qualquer romance que eu pudesse aspirar em
relação ao Noah não se comparava ao impetuoso amor com que Deus me
amava. Tudo se tornava pequeno diante de Sua grandeza.

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Capítulo 18 – A partida

— Já falei, meninas. Ele me levou lá para ver a luz da lua sobre a


cascata do monte. E foi lindo! — Contei pela décima vez o que eu e Noah
fizemos em nosso segundo momento a sós na noite anterior. Ajeitava as
últimas coisas na mala, recebendo ajuda de Sissa e Nanda.
— Ai, que romântico! — Nanda suspirava.
— Prima, pode ser que não para agora, mas acredito que Noah possa
estar vendo-a como uma possível pretendente para o segundo lugar mais
importante da vida de um homem! — Sissa falava agitando as mãos, os olhos
vivos. — É engraçado lembrar que era justamente por isso que não queríamos
que você se apaixonasse por ele.
— Segundo lugar?
— É, o de esposa. O primeiro lugar pertence a Deus, é claro. — Sissa
mantinha um sorriso no rosto, enquanto colocava minhas maquiagens no
compartimento de frente da mala.
— Esse papo de esposa em potencial é meio esquisito. Eu só tenho 15
anos!
— Por isso mesmo que se for da vontade de Deus que vocês fiquem
juntos, tudo vai acontecer na hora certa. Não precisa de correria ou atropelos,
tudo a seu tempo. Mas independente de corte, namoro ou noivado... Qualquer
fase de relacionamento de um casal cristão deve ter como objetivo final o
casamento, mesmo que este não venha a acontecer de fato. Eu, por exemplo,
nem tenho rastros de quem possa ser meu futuro namorado, mas já penso e
oro por meu casamento! — Nanda gesticulava animada.
— Por justamente o namoro do cristão ser intencional é que namorar
muito novo não vale a pena. Os desejos queimam, mas a maturidade para
encarar um relacionamento sério ainda não se desenvolveu. Dessa forma, as
facilidades para não se cumprir a vontade de Deus e cair em pecado são
muitas! — Sissa falou com o queixo levemente erguido e tonalidade de quem
era muito experiente no assunto. — E pelo que conheço do Noah, talvez ele
tenha se interessado por você e queira construir uma amizade para te
conhecer melhor e quem sabe daqui a alguns anos, quando você estiver mais
velha...
— Isso significa que eu posso tirar meu cavalinho da chuva e parar
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de sonhar com um pedido de namoro, né?


As duas balançaram a cabeça ao mesmo tempo, concordando.
— Tudo bem. O que eu preciso agora é descobrir mais sobre quem
sou em Cristo, o que Ele quer para minha vida e viver minha adolescência
todinha pra Deus! — Terminei de falar e fechei o zíper da mala ao mesmo
tempo. Me surpreendi com minha resposta. Quando abri a mala cor de rosa
pela primeira vez naquele quarto, não poderia imaginar que ao fechá-la para
ir embora eu estivesse tão mudada. A expressão das meninas parecia dizer a
mesma coisa.
— Sabia que você foi a melhor coisa que me aconteceu nessas férias?
— Sissa deu um sorriso aberto.
— Sabia também que tudo isso aqui vai ficar muito sem graça sem
você por perto?! — Nanda acrescentou, cruzando os braços e fazendo voz de
choro.
— Ai, o que seria de mim sem vocês?! — Declarei agarrando as duas
pelo pescoço e envolvendo-as em um abraço de urso.
— Por que você não vem morar aqui, pertinho da gente? — Nanda
choramingou.
— Deve ser porque tem um casal sentado ali na sala que cortaria meu
pescoço fora só de ouvir a possibilidade. — Soltamos uma risada longa e
aconchegante, que tudo tinha a ver com nosso abraço, que ainda não havia se
desfeito.
***

— Tudo pronto?! — Perguntou meu pai, levantando-se do sofá. Eu


tinha acabado de chegar à sala de estar, carregando a grande mala cor-de-rosa
e outras bolsas — muitas, por sinal.
— Acho que sim. — Respondi com o sorriso um pouco forçado. Meu
estômago parecia querer transformar-se em um nó, mas por fora eu procurei
manter a compostura para não transparecer minha tensão com a volta para
casa.
— Bom, então acho que já vamos indo. Tchau, prima, você vai fazer
muita falta. — Sissa aproximou-se e me deu um abraço apertado. Nanda fez o
mesmo e antes que eu deixasse as lágrimas rolarem, as duas já tinham saído
porta afora. Olhei para meus pais com interrogação. Que despedida meia-
boca fora aquela?
— Talvez elas não queiram sofrer tanto com a despedida. — Falou
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minha mãe, levantando os ombros. — Bom, chegou a hora. Se despeça da


Zuleide e vamos para o carro porque a viagem é longa!
Abraçava a Zuleide me esforçando para não deixar cair o rio que se
formara na beira dos meus olhos. Nenhum dos meus amigos viera me dar
tchau. Eles sabiam o horário que meus pais me buscariam, por que não havia
nenhum deles ali? E o Noah, ele me deixaria partir sem ao menos me dar um
abraço? Agradeci à Zuleide por tudo que havia feito por mim naquele tempo
que passei em sua casa e ainda mais pelo que me ensinou. Todas as palavras
de edificação que saíram de sua boca ficaram guardadinhas em um lugar
muito especial do meu coração. Tentei falar isso para ela, mas as comportas
dos meus olhos não conseguiram segurar a enxurrada de emoção que meu
coração lançava. Chorei muito. Ela sorriu, passando a mão carinhosamente
sobre minha cabeça.
Eu sabia que no fundo meus soluços não tinham muito a ver com a
Zuleide e sim com a profunda tristeza e sentimento de que fora esquecida
pelas pessoas que mais passaram tempo comigo nas últimas semanas. Eles
eram meus amigos ou não? Entrei no carro e sentei no banco de trás. Passava
as costas das mãos nos olhos para limpá-los e, ainda fungando, dei o último
tchau para Zuleide, que nos observava paradinha em frente ao velho portão
branco. Peguei um espelhinho que costumava carregar na bolsa para olhar o
estado do meu rosto. Estava bastante vermelho e inchado. Pelo menos eu
teria boas horas de sono até chegar em casa para desfazer aquela cara
desagradável. Fiquei a imaginar os possíveis motivos pelos quais ninguém
fora se despedir e, ainda olhando para o espelho, o carro parou. Olhei para
cima e logo reconheci onde estava.
— Por que você parou aqui? Ainda são oito horas da manhã, não tem
ninguém na igreja. — Falei para meu pai, que levantou o canto dos lábios em
um sorriso esperto. Ele inclinou a cabeça em direção à entrada da igreja e
voltei meus olhos para lá. Em dois segundos, a grande porta amadeirada de
folha dupla se abriu e inúmeros balões coloridos saltaram para fora. Vários
rostinhos conhecidos e sorridentes apareceram. Eles tinham em suas mãos um
enorme cartaz, onde estava escrito: “Betina, vamos sentir saudades!”. Com
um grito, saltei do carro e fui correndo até eles, que me espremeram em um
intenso abraço coletivo cheio de entusiasmo.
— Vocês me enganaram direitinho! Pensei que ninguém se
despediria de mim! — Falei, limpando as novas lágrimas que desceram no
momento em que fui abraçada.
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— Você realmente acha que seríamos capazes disso?! — Matheus


disse sorrindo. Seu sotaque engraçado suavizava qualquer situação.
— Já estava tudo combinado, não é? — Virei-me para meus pais, que
tinham estampado em seus rostos um orgulho bobo de quem conseguiu
enganar a filha direitinho.
— Achamos que você gostaria de ter uma lembrança física das
amizades que fez aqui. — Luana estendeu os braços, entregando-me um
pacote. Todos me olhavam com expectativa. Senti um afago no coração ao
reparar cada pessoa que estava ali. Entre eles, eu me sentia especial. Abri o
embrulho vermelho e dentro dele havia um porta-retratos com uma foto da
nossa apresentação no concurso. A imagem fora feita da lateral do palco e
parecia ter sido registrada no momento mais alto do refrão. Eu e Noah
olhávamos um para o outro com o microfone em mãos, Nanda e Sissa, logo
mais atrás, tinham a boca aberta e olhos fechados. Os outros tocavam seus
instrumentos transparecendo bastante emoção. Um registro incrível. Uma
lágrima solitária saltou do meu olho direito e eu prendi os lábios para que
outras não descessem logo atrás.
— Muito obrigada, gente. Vou deixá-lo em um lugar bem especial do
meu quarto, para lembrar todos os dias o quanto essas férias mudaram para
sempre a minha vida.
Entre outros abraços, beijos e risadas, finalmente pude prestar
atenção em Noah. Ele estava perto de Pietro e Cássio e não se aproximou
muito de mim, parecia observar tudo meio de longe. Decidi ir até ele, antes
que meus pais resolvessem que era hora de partir.
— Uma despedida sem comida não é despedida! — Zuleide gritou,
passando pelo portão aramado da igreja. Todos gritaram um grande “eba!” e
eu tive que postergar minha ida até o Noah. Ela segurava uma enorme
bandeja com diversos pãezinhos recheados e pequenos pedaços de bolo. Meu
pai tirou do carro duas garrafas de suco e seguimos para uma pequena sala ao
lado do templo.
— Não podíamos deixar passar em branco sua partida, querida. —
Zuleide sussurrou, beijando o alto da minha cabeça. Pouco tempo depois, o
pastor e sua esposa chegaram e também me abraçaram. Fiquei surpresa com
toda aquela celebração. Ao esticar o pescoço à procura de Noah, avistei a
última pessoa que eu esperaria encontrar naquela despedida. Ela estava
sentada no canto do último banco da igreja e olhava para as mãos. Quando
percebeu que eu a observava, surpreendeu-se e levantou, passou pela porta
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lateral e saiu do templo. Senti algo remexer dentro de mim e engoli em seco.
Era a mesma sensação de quando entendi que precisava pedir perdão frente à
igreja pelo que aprontei no acampamento.
“Eu não preciso fazer isso. Ela é quem errou comigo o tempo todo!”,
pensei angustiada, tentando argumentar com a voz que soprava em meu
coração. Conserte, dizia a voz. Conserte. “Mas consertar o que, Senhor?!
Não há nada para consertar! Bem, na verdade, talvez haja sim...”. Soltei o
ar, resignada. Reconheci, embora muito a contragosto, que a atitude que
estava pensando em ter poderia ser humilhante, mas era necessária. Passei
pelos bancos e saí pela porta lateral. Olhei de um lado a outro e não a vi.
Procurei pelo pequeno jardim da entrada e ali só havia algumas senhoras que
chegavam para a Escola Dominical. Já estava desistindo, quando pensei em
dar uma última olhada no pátio da parte posterior do templo. Chegando lá,
deparei-me com ela sentada em um pequeno banco de cimento onde havia
espaço para duas pessoas.
— Posso? — Perguntei. Ela virou o rosto, mas concordou em
silêncio. Sentei-me ao seu lado com o coração batendo forte. Thami mantinha
uma expressão fria. Os dois minutos mais longos da minha vida se passaram
e resolvi tomar coragem e iniciar a conversa.
— Bom, eu gostaria de... Bem, falar algo para você. — Pigarreei. —
Ontem eu li um versículo que dizia que assim como Deus nos perdoou, nós
devemos perdoar aqueles que nos fizeram mal. — Parei um instante. — Não
que eu esteja dizendo que você seja uma vilã e eu a mocinha, longe disso. E
nem que você tenha me feito um mal enorme, é só que... Bom, acho que não
estou sabendo falar direito o que estou sentindo, então só quero que saiba que
eu não tenho raiva de você. Tive muita, mas ao ler esse versículo percebi que
Deus te ama da mesma forma que ama a mim, então...
— Você não precisa fazer isso, Betina. — Ela continuava mirando o
outro lado, querendo manter uma posição firme.
— Como assim?
— Talvez eu não queira saber se você me perdoa ou não.
Prendi o ar e pisquei os olhos seguidas vezes. Foi como levar um
soco no estômago.
— Meu pai me forçou a vir aqui hoje para te pedir perdão. Ele achou
muito feio o que fiz com você no concurso. — Aqui ela finalmente virou-se
para mim. — Você sabia que eu vasculhei cada rede social sua em busca de
algo que pudesse usar contra você? Olhei cada canto daquele Facebook,
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quando finalmente encontrei o vídeo. Não foi difícil baixá-lo em meu


computador e fazer um charme para que o garoto responsável pelo Data
Show do concurso reproduzisse antes da apresentação de vocês. Afinal, tudo
se trataria de um grande engano, caso alguém perguntasse.
Fiquei sem palavras. Ela olhava dentro dos meus olhos e falava com
amargura.
— Mas se você espera que eu vá te pedir perdão por isso, está
enganada. — Ergueu o queixo, olhando para frente. Eu baixei os olhos para o
chão e me perguntei o que estava fazendo ali. Ela nunca fora cordial comigo,
como eu poderia esperar que fosse agora? Dei uma última espiada nela antes
de levantar para sair, quando vi um brilho transparente descer-lhe a bochecha
esquerda. Ela prendia os lábios, como que a fazer força para que nenhuma
lágrima a mais descesse. Hesitei por um instante, na dúvida sobre o que fazer.
Deveria levantar e ir embora? Seria o mais sensato, já que ela me tratara tão
mal. Mas, ao mesmo tempo, senti uma empatia tão grande entrar em meu
coração pensando em tudo que Noah me contara sobre ela. Thami sempre
tivera tudo que queria, menos o elemento mais importante para a vida de
qualquer pessoa: o amor. Talvez essa fosse a justificativa por seu jeito de
lidar com as pessoas. Reconheci também que as reflexões que tive naquele
espaço de minutos só podia ser obra do Espírito Santo. Eu, Betina, nunca
tentaria encontrar razões para ter compaixão de alguém, mas o Espírito que
vive em mim me ensina sempre como ter um coração do jeitinho que Ele
planejou.
— Thami, eu não sei o que se passa em seu coração. Mas espero que
um dia entenda como Deus te ama e o quanto isso pode mudar sua vida. —
Apesar de ter aparentado firmeza na voz, meu coração tremulava com a
possibilidade de levar outro fora. Temia não conseguir manter a calma como
vinha fazendo.
Mais algumas gotas escorregaram-lhe a face e ela fungou baixinho.
— Acho que Ele não me ama, não.
Antes que eu pudesse responder, ela continuou:
— Olha o que fiz com você só pra te humilhar. E as tantas mentiras
que já contei, o quanto aprontei para ter atenção do Noah... Já briguei tantas
vezes, e isso geralmente acontece porque eu falo o que quero e como quero
para qualquer pessoa. Eu não sou digna desse amor aí, não.
— Bem, ser digna você não é mesmo. Aliás, nenhum de nós é.
Talvez eu não seja a melhor pessoa para te falar isso, afinal ainda estou
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engatinhando quando o assunto é vida com Deus, mas de uma coisa eu sei:
nada que eu ou você façamos de ruim pode fazê-Lo nos amar menos, e nada
que façamos de bom pode fazê-Lo nos amar mais. Ele simplesmente ama, e é
isso. Um amor incondicional, ou seja, que não impõe condições, como Sissa
costuma dizer.
Ela ergueu os olhos marejados para mim e soltou uma palavrinha
rouca e falha:
— Como?
— Acreditando. Você crê que Jesus morreu por você e te ama?
— Agora acho que sim. — Ela deu um sorriso torto.
— Além de crer, você precisa se arrepender dos seus pecados. E
assim, você será salva para sempre. — Repeti as palavras que ouvi de Patrick
no dia em que me entreguei ao Senhor. Ela ficou em silêncio e meu coração
não parou de se remexer dentro de mim. Não tinha ideia do que fazer a partir
daquele momento. Resolvi que o melhor era esperá-la falar alguma coisa.
— Obrigada, Betina. Acho que preciso pensar mais sobre isso.
— Tudo bem. — Respondi satisfeita. Aquele era um bom começo. —
Eu já vou indo porque meus pais devem estar querendo partir. Tchau! —
Levantei-me e fiquei em um impasse se deveria abraçá-la ou só ficar por isso
mesmo. Preferi a segunda opção e me afastei devagar, cruzando o pátio para
entrar na igreja. Ao me distanciar, fiquei admirada comigo mesma. Thami
havia contado como fez para me expor e humilhar no concurso e eu não tive
vontade de dar um tapa sequer nela! Agradeci a Deus no íntimo do meu ser.
Ter aquele sentimento constante de paz no coração era o que minha alma
buscava há tanto tempo e não sabia.
— Onde você estava?! — Nanda gritou e todos na pequena sala
olharam para mim. Balbuciei qualquer desculpa e ela me puxou para uma
foto.
— Sabia que o sinal de internet voltou ontem à noite? Vou postar
essa foto agora no Facebook!
— Ah, que ótimo! Passei um tempão em Gruta Alta e não tive
internet, nas vésperas da minha partida o sinal volta. Que sorte. —
Resmunguei.
— Pare de reclamar, menina. Veja o lado bom, pelo menos todo
mundo aproveitou as férias intensamente sem ficar com a cara enterrada no
celular!
Sorri, concordando com a Nanda e ouvi meu pai anunciar que era
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hora de partir. Espreitei os olhos à procura de Noah pela pequena saleta, mas
não o encontrei. Logo uma fila se formou para os últimos abraços e notei que
faltavam apenas dez minutos para o início da Escola Bíblica Dominical.
Talvez ele estivesse ajeitando os instrumentos para o momento de louvor.
Abracei a todos e o clima descontraído dispensava choros e lamentações.
Saímos da sala e olhei diretamente para frente do templo. Não havia
ninguém lá. Analisei cada banco e ele não estava dentre as pessoas que já se
acomodavam para o início do culto. Meus pais deram o último adeus e
entraram no carro. Eu ainda olhava de um lado a outro e quando, enfim,
estava prestes a passar pelo portão aramado e ir para o carro, notei um garoto
de cabelo loiro com suas ondas remexidas pelo vento, dono de um olhar
harmonioso e sorriso iluminado, parado em frente a uma árvore ao lado do
portão. Não consegui conter meus lábios, que se abriram em um sorriso
maravilhado. Ele deu uns passos à frente, aproximando-se de mim.
— Oi.
— Olá! — Respondi. Nossos olhos se encontraram e a minha
impressão era de que os meus transmitiam sentimentos além do que
deveriam.
— Queria entregar-lhe isto. — Ele estendeu um pequeno envelope
para mim. Cuidadosamente, levantei a aba e tirei um pedaço de papel
dobrado que havia dentro dele. Com letras pequenas e um pouco irregulares,
lia-se:

“Oro para que, com as suas gloriosas riquezas, ele os fortaleça no


íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito, para que Cristo
habite no coração de vocês mediante a fé; e oro para que, estando
arraigados e alicerçados em amor, vocês possam juntamente com todos os
santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e
conhecer o amor de Cristo que excede todo entendimento, para que vocês
sejam cheios de toda a plenitude de Deus.”
Efésios 3. 16-19

— Queria que soubesse que é isso que vou fazer por você a partir de
agora. Orar.
Levantei o rosto e fitei-o. Em seus olhos havia um brilho encantador
que parecia mandar uma mensagem invisível do seu coração para o mundo
exterior. E a mensagem era linda.
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Ainda existem homens puros no mundo. Ainda existem servos de


Deus de verdade. E se era para esperar por alguém, seria por um garoto assim
que eu esperaria.
Noah pegou minha mão direita e, levando-a até sua boca, encostou
delicadamente os lábios na articulação dos dedos com o dorso, demorando
alguns segundos para soltá-la.
— Que o Senhor te abençoe nos novos desafios que virão. Espero vê-
la em breve.
Com tudo dentro de mim tamborilando de emoção, envolvi seu
tronco com meus braços e encostei a cabeça em seu ombro. Ele beijou-me o
alto da cabeça.
— Obrigada por tudo. Eu nunca vou esquecer você. — Falei baixinho
e ouvi meu pai pigarrear de forma um pouco exagerada. Noah pareceu
entender o recado e se afastou de mim com um sorriso amistoso. Com uma
das mãos eu segurava o bilhete que ele me dera e com a outra acenei, dando-
lhe o último adeus. Ao me virar para ir ao carro, notei que todos os nossos
amigos nos observavam da pequena escadinha em frente à porta da igreja.
Eles sorriam satisfeitos, principalmente Nanda e Sissa, que me mandavam
acenos exagerados. Sentindo o rosto enrubescer, levantei o braço bem alto e
balancei, despedindo-me definitivamente. Entrei no carro e meu pai deu
início à viagem de volta, deixando para trás as pessoas cuja lembrança o
coração nunca me deixaria esquecer.
Percorrendo as imensas estradas sem fim, observava os grandes
campos verdes que se estendiam de um lado a outro da rodovia. No fone de
ouvido tocava Kari Jobe e nas mãos eu segurava um livro. Aberto na página
noventa e dois há quarenta minutos, ele estava ali mais por enfeite do que por
leitura. Em minha mente, só havia lugar para uma coisa: as memórias das
férias de verão. Repassava cada momento, esforçando-me para guardar o
máximo de detalhes possível. Entre uma lembrança e outra, algumas imagens
conhecidas piscaram em minha mente. O sonho que tivera semanas atrás no
meio da floresta estava ali, inteiro em meus pensamentos. Eu corria de um
lado a outro entre as folhagens escuras e gritava por socorro, mas ninguém
me ouvia. Chorava como uma criança que se perde dos pais e não conseguia
encontrar saída para o medo que me atormentava. De repente, tudo ficou
claro e eu O vi. Ele me chamou, me pegou no colo e disse que cuidaria de
mim. “Assim como o pastor busca as ovelhas dispersas quando está
cuidando do rebanho, também tomarei conta de minhas ovelhas. Eu as
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resgatarei de todos os lugares para onde foram dispersas num dia de nuvens
e de trevas”.
Sissa me mostrou, pouco depois do acampamento, o capítulo de
Ezequiel 34 e disse que Deus havia me falado em sonho o que estava escrito
em uma parte daquele capítulo. Lembro-me de ter ficado perplexa e muito
grata a Deus. Agora aquela mesma sensação voltava e, olhando para o céu
através do vidro da janela do carro, entendia que aquele sonho tratara-se da
ilustração da minha própria vida. Até aquela noite no acampamento, eu
andava perdida, longe de Deus, na escuridão dos meus pecados, enganando-
me o tempo todo. E então Jesus chegou. Sua intensa luz logo denunciou as
sujeiras que havia em mim, mas em vez de me expulsar de Sua presença, Ele
tomou-me em seus braços. Jesus procurava suas ovelhas perdidas e me
encontrou.
Com o coração ardendo de alegria, sussurrei para o céu as palavras
que guiariam meus dias e mudariam tudo em mim dali em diante:

Minha vida é Sua, Senhor. Faze-a dela o que Tu quiseres.

[1]
Frase escrita no livro “Adoração Extravagante” – Autora Darlene Zschech,
Editora Atos.
[2]
Música “Menina Não Vá Desanimar”, da Cantora Marcela Taís. CD Cabelo
Solto, 2011.

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