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Arlene Diniz
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por qualquer forma ou meio eletrônico sem a permissão da autora e/ou
editora.
Editora: Upbooks
Agradecimentos
saímos de casa, sinalizava aos meus pais que eu estava ali por livre e
espontânea pressão e não fazia questão nenhuma de esconder isso. Mas,
ignorando totalmente a minha presença, eles nem pareciam se importar com a
expressão de raiva estampada em meu rosto. Trocando entusiasmadas
palavras com mamãe, meu pai, um homem de mais ou menos um metro e
setenta de altura, cabelo castanho-escuro bem aparado e dono de um
expressivo par de olhos verdes, decidiu colocar um CD de músicas antigas —
daquelas que a voz do cantor é trêmula do início ao fim da canção — para
tocar na maior altura no som do carro.
Para piorar a situação sonora do ambiente, vários barulhos irritantes
saíam do tablet do Guto, meu irmão de cinco anos, que estava sentado no
banco de trás junto comigo. Coloquei o fone de ouvido com força e juntei as
sobrancelhas um pouco mais. Ninguém parecia estar se importando com a
minha opinião sobre aquela viagem e isso deixava o desgostoso trajeto até a
cidade de Gruta Alta ser ainda pior.
Ah! Eu tinha planos tão melhores para as minhas férias de janeiro. Há
meses eu programava junto com minhas duas melhores amigas, Beca e Luca,
passeios a shoppings, idas ao cinema, encontros com os “gatinhos”, festas do
pijama regadas a muito brigadeiro, presença registrada nas piscinas do clube
e, é claro, pegar um belo bronzeado nas praias cariocas. Mas meus planos
foram por água abaixo quando minha mãe veio não com a proposta, mas sim
com a informação de onde passaríamos nossas férias: na casa da prima
Zuleide, numa cidadezinha de interior que cheirava a esterco chamada Gruta
Alta. E todo adolescente sabe que quando a mãe vem com essas notícias de
última hora… Quem somos nós para retrucar! Mesmo assim eu não consegui
ficar calada e retruquei, contestei, chorei, esperneei... Mas nada foi suficiente
para fazê-la mudar de ideia, então, para que ela não achasse que me dei por
vencida, estava determinada a passar as férias inteiras trancada no quarto com
a cara fechada e semblante nem um pouco agradável.
Enquanto a viagem seguia, com o coração aborrecido eu observava
aqueles imensos campos, com uma árvore aqui, outra ali e algumas vaquinhas
pastando de vez em quando e não podia imaginar o que Deus estava
preparando para aquela nada sonhada viagem, mas que se tornariam as férias
que marcariam minha vida para sempre — até a eternidade.
***
ficava no Facebook na hora do culto. Principalmente agora que tem como ter
a bíblia no celular, em forma de aplicativo. É uma boa desculpa para deixar o
celular ligado e fingir que está acompanhando os textos da pregação e, na
verdade, dar uma olhada nas redes sociais.
— Aqui em Gruta Alta os jovens da igreja também estão a todo
vapor! Eles têm buscado muito a Deus e com isso vários outros também estão
encontrando o Caminho do Senhor. A Clarissa e a Fernanda estão nesse
meio. Você se lembra delas, Betina? — Indagou Zuleide, olhando para mim.
Ah, como não lembrar?! Minhas duas primas roceiras e bregas até o
último fio de cabelo? Impossível esquecê-las.
— Lembro sim. — Respondi, forçando um meio sorriso.
— Elas devem vir aqui em casa por esses dias. Eu avisei que você
vinha e elas estão muito animadas pra te mostrar as novidades da cidade e
também a igreja. — Disse Zuleide, dando mais um de seus autênticos e largos
sorrisos. Não consegui reter a expressão de hostilidade que surgiu em meu
rosto. Fala sério, as duas primas caipiras queriam me levar para ver aquela
roça mais de perto? Conta outra! Olhar para o teto do quarto talvez fosse um
programa mais interessante.
Mais tarde, porém, pensando melhor no assunto, presumi que ir à
igreja delas talvez não fosse uma ideia tão ruim assim. Já que a Zuleide disse
que muitos jovens estavam começando a frequentá-la, podia ser que eu
encontrasse algum garoto bonitinho nesse meio. E garoto bonito é sempre
bom ver. Paquerar então… Uhhh!
***
boca para trazer um pouco de cor a ela e esbugalhei o par de olhos castanho-
escuros herdados da dona Gláucia. Passei a dar leves tapinhas nas bochechas,
mas de repente parei. Por que estava tentando melhorar minha imagem? Eu
não ia fazer nada além de ficar trancada no quarto mesmo, todos aqueles dias
— ou pelo menos na maioria deles.
Juntei meu cabelo em um coque e tentei conectar a internet do celular
pela centésima vez naquele dia. O relógio marcava vinte e uma horas e desde
que chegamos à cidade, no meio da tarde, as tentativas não pararam. Imaginar
que talvez Luca, para me contar a grande novidade, ou Cauê, para me falar
palavras bonitinhas, tivessem me enviado mensagem via Whatsapp e eu não
estava conseguindo visualizá-las, me dava nos nervos. Naquele mesmo
instante, o celular tocou e eu quase saltei da cama. Era Luca.
— Oiiiii, BFF! — Cumprimentou-me alegremente.
— Amiga! Que saudade! — Respondi como se eu não tivesse visto-a
no dia anterior.
— Também estou cheia de saudade. Te liguei porque preciso contar
uma coisa.
— Pode falar, Luca! — Disse, já imaginando o motivo da ligação.
Silêncio.
— Perdi minha virgindade. Com o Pedro. — Revelou, um pouco
cautelosa.
— Uau, amiga, e como foi? — Perguntei descontraidamente.
— Legal.
— Só legal?
— Aham. Amiga, sabe o que é...
Ihhh…
— É que eu não…
Ai, já imaginava o que ela ia falar…
— Nós não…
— Vocês não se protegeram, é isso? — Perguntei de supetão.
Outro silêncio.
— É.
— Luca, você é doida?! Como não se protegeram? Você só tem
quinze anos e se ficar gráv...
— Não fala isso, Betina! Eu já estou com a consciência pesada
demais! — Chiou ressentida.
— Está bem, está bem. Me desculpe.
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— Sem problemas. Acho que minha mãe está desconfiada, ela disse
que o líder de adolescentes lá da igreja vai vir aqui em casa amanhã, “tomar
um cafezinho”.
— Ih, amiga, qualquer coisa nega até à morte. — Soltei uma risada.
— Vou fazer isso. Mas... Preciso te contar outra coisa.
— Pois me diga.
— Eu não perdi minha virgindade agora. Foi mês passado.
— E por que só está me contando agora?! — Quase gritei. — Eu te
vejo praticamente todos os dias e você escolhe me contar quando estou a 500
quilômetros de distância?!
— Desculpe, amiga. — Falou baixinho. — Não tinha contado pra
ninguém por medo dos meus pais descobrirem, mas não aguentei mais
guardar segredo.
Respirei fundo.
— Apesar de estar me sentindo traída, tudo bem, eu te entendo. Mas
que isso não aconteça de novo, hein? Somos ou não somos Best Friends
Forever?!
— Com certeza somos, obrigada por entender. Amo você! Agora
preciso desligar. Tchau, te ligo de novo.
— Também te amo, beijos!
Deitada na cama, enquanto o sono não vinha, fiquei pensando na
Luca e em toda a situação com o Pedro. Será que, daquele momento em
diante, eles assumiriam o namoro? E se a mãe dela realmente tiver
descoberto? Ela estará em maus lençóis!
— Como eu queria estar junto dela nesse momento. Droga de
viagem! — Rosnei, ajeitando o travesseiro de forma grosseira e logo depois
adormeci, ainda bastante contrariada.
***
vontade foi responder que elas por pouco não poderiam ser consideradas
primas, já que eram parentes de terceiro grau, e que mamãe podia esperar
sentada o dia que me tornaria amiga de duas jecas que sequer deviam saber o
que significava Youtube ou Twitter.
— Pode deixar, Gláucia! — Clarissa replicou e lançou um olhar
confidente para mim e Fernanda. Virei o rosto para o outro lado arqueando
levemente as sobrancelhas e formei um biquinho com os lábios, deixando
claro meu desgosto. Durante todo o almoço as duas procuravam puxar
assunto comigo, mas eu não dava muita atenção. As lembranças da última
vez em que estivemos juntas estavam frescas em minha memória. Sempre
doces, solícitas e engraçadas, ganhavam a atenção de todos os familiares,
enquanto eu acabava sendo apagada pelo “brilho” delas. Não entrava em
minha cabeça como duas garotas que falavam “galfo” e “bassoura”, em vez
de garfo e vassoura, podiam ser tão aclamadas.
“Só vou ao culto de jovens com elas pra ver se vejo alguém bonito
nessa cidade, mas amizade com essas bregas? Nunca!”, pensei, soltando um
suspiro abafado.
— Você está tão bonita, Betina! — Clarissa disse docemente,
pegando-me de surpresa.
“Hum, invejosa!”, pensei, mas respondi um obrigada, é claro.
— Betina, nós queremos te mostrar um lugar!
— Que lugar, Fernanda? — Perguntei desconfiada. Não estava muito
a fim de dar passeios com as duas rua afora, não.
— Você vai ver.
Elas me puxaram pelo braço e avisaram aos adultos que estávamos
indo passear. Minha mãe abriu um sorriso de orelha a orelha, o que ela mais
temia é que eu realmente ficasse trancada no quarto o dia inteiro, todos os
dias dessas férias. Esse era o meu desejo, mas…
Com os braços cruzados, andava pelas ruas de Gruta Alta ainda um
tanto contrariada. Além de praticamente ter sido raptada para aquele
“passeio”, nem tive tempo para escovar os dentes. Será que estava com
alguma casca de feijão?!
Enquanto caminhávamos pela rua, todos pareciam olhar para nós.
Fiquei encucada.
— Não leve a mal prima, mas aqui é assim mesmo, é só chegar
alguém diferente que chama a atenção de todos. — Clarissa comentou,
percebendo minha inquietação. Apenas assenti com a cabeça. Notei que elas
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não eram tão chatas assim como eu pensava. E que também não falavam
tantas palavras erradas como antes, na verdade, não ouvi nenhuma palavra de
gramática duvidosa. Talvez elas nunca tivessem sido tão desagradáveis e sim
eu, que não aceitava ninguém que fosse diferente de mim e por isso as
criticava. Ademais, lá no fundo eu ainda guardava certo ciúme de infância
por elas sempre serem as mais divertidas, extrovertidas, legais, bacanas,
brincalhonas, obedientes, fofinhas, amadas de todos e eu a sem graça de cara
fechada e bico calado, que não dava papo e sorrisos para ninguém.
Voltamos para casa à tardinha e combinamos delas passarem às sete
horas na casa da prima Zuleide para irmos ao culto de jovens. Enquanto me
arrumava, o celular tocou. Era Cauê me ligando. Atendi com o “oi” mais
entusiasmado e ao mesmo tempo meloso que pude fazer.
— Olá, minha linda, como você está? — Ele perguntou, galante
como sempre.
— Estaria melhor se você estivesse comigo…
— Não vejo a hora de você voltar dessa viagem! Saudade dos seus
beijos!
— Eu também, amor! — Suspirei. — Onde você está? Estou
escutando barulho de música alta.
— Eu... Ah, eu estou aqui na… No… Na casa do Pedro.
Cauê gaguejando? Hum…
— Do Pedro?! A Luca está aí? — Perguntei.
— Não! — Cauê respondeu alto, parecendo um pouco alarmado.
— Ahn… Quem mais está aí? — Questionei desconfiada.
— Só a molecada, a gente está bebendo, como sempre… — Nesse
momento escutei uns gritos estridentes demais para serem masculinos e
alguém pareceu arrancar o celular da mão dele e desligar. Aquela história
estava muito mal contada! Tentei retornar a ligação, mas foi para a caixa
postal. Continuei a me arrumar irritadíssima e por isso tive que tentar quatro
vezes até o delineado dos olhos sair perfeito. Os meninos bebendo na casa do
Pedro e gritos femininos no fundo da ligação?! Cauê estaria me traindo?! Está
certo que nós só éramos ficantes, mas, poxa vida, já havia uns bons meses em
que ele estava me enroland... Ops, ficando comigo. Eu merecia o mínimo de
respeito!
Terminei de me aprontar e fiquei esperando as duas primas, sentada
na cama e pensando. Já tinha enviado uns cinquenta torpedos para o Cauê e
de nenhum obtive resposta. De repente me veio à mente que eu estava indo à
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Dona Gláucia não ralhou comigo por conta da roupa certamente por
causa da presença das meninas. Mas eu podia esperar a entrada dela no
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bra-ço! Está certo que ele deu um em cada pessoa que estava na roda, mas
não me importava, no tal acampamento eu teria muitas oportunidades para
abraçá-lo novamente — assim eu esperava. Outra coisa que eu também
esperava era que ele tivesse me achado bonita. Durante o breve momento em
que estive perto dele, fiz questão de deixar os ombros bem aprumados, dar
uma arrumada boa no cabelo, jogando-o de lado e mostrar o meu melhor
sorriso. O cheiro suavemente amadeirado de seu perfume ainda passeava por
minhas narinas no caminho de volta para casa.
Cheguei em casa com a mente no acampamento. Seria a oportunidade
perfeita para me aproximar do Noah, e quem sabe ele não se interessasse por
mim?! Seria um sonho! Sissa e Nanda me disseram que ele era o líder do
ministério de jovens e muito envolvido com “as coisas do Senhor”. Bom,
envolvido ou não, o que de fato me importava naquele momento era ficar
repassando mentalmente o raio-x que fiz do rosto dele quando o vira de perto.
Pude observá-lo melhor, já que na hora do louvor eu estava um pouco
distante da frente da igreja e por isso não dava para analisar os detalhes.
Reparei então que seus olhos eram cor de mel e o sorriso amistoso que lhe
preenchia o rosto guardava entre os ordenados dentes brancos somente um
meio tortinho, que conferia certo charme ao “conjunto da obra”.
Meu celular soltou um bipe e rapidamente abri a mensagem que
chegara:
— Oi, meu amor. O celular acabou a bateria, por isso não te retornei
as mensagens. Desculpe! Tenha uma linda noite, te gosto muito! <3
Ai, que vontade de jogar o celular na parede! Como Cauê conseguia
ser tão dissimulado assim?! Pegaram o celular enquanto a gente conversava e
ele queria vir com aquele papinho de que a bateria acabou? Conta outra! Nem
respondi a mensagem, se não ia falar poucas e boas e eu estava muito alegre
para deixar isso acontecer. Naquele momento o melhor era dormir, e quem
sabe, em meus sonhos, algum anjo pudesse aparecer…
***
Apesar do nome engraçado, Jeriri até que era uma cidade bem bonita
mesmo. Dessas que têm cheirinho de café, cavalos andando com charrete
pela rua e construções históricas. Possuía um charme que Gruta Alta
definitivamente não tinha. Enquanto andávamos pelas ruazinhas de
paralelepípedo, apesar de meus pensamentos estarem lá na igreja e
principalmente no líder do ministério de louvor, consegui perceber algo
peculiar, praticamente todas as lojas, farmácias, supermercados e outros
comércios tinham o mesmo nome: Marquês. E, volta e meia, eu via algum
cartaz com a foto de uma linda senhora loira com o nome de Laura Marquês.
Ela devia estar se candidatando a algum cargo político e o engraçado é que eu
não consegui encontrar cartazes de outros candidatos. Perguntei a Zuleide
sobre ela.
— Ah, Betina, essa senhora é a viúva de um grande fazendeiro da
região. Ele era bastante famoso por aqui, pois ajudava muito as pessoas. A
maioria dos comércios foram instalados na cidade com o auxílio dele, por
isso seu sobrenome está em quase todo lugar. O povo vivia pedindo que ele
se candidatasse a prefeito, mas ele nunca quis. Porém, depois de sua morte,
sua esposa se envolveu na vida política e se candidatou à prefeitura. Mas
dizem por aí que ela não é muito flor que se cheire não.
— Por quê? — Perguntei curiosa.
— Dizem que ela maltrata muito os funcionários da fazenda, humilha
as pessoas, passa por cima de qualquer um para conseguir o que quer, exige
altos valores dos comerciantes que seu marido ajudou no passado. E ainda
tenta enganar o povo para conseguir votos!
“Nossa, a Zuleide é bem informada, hein!”, pensei.
— O neto dela é lá da igreja!
— É mesmo? Quem é?
— Leide, me dá uma dica de qual lembrancinha eu compro… —
Minha mãe chamou a Zuleide bem na hora que ela ia me dizer quem era o
neto da tal senhora. Será que eu o tinha visto no culto de jovens?! Depois não
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“Minha vida é muito boa e acho que Deus não tem nada contra ela.
O que esse pastor está falando se chama fanatismo”, pensei, virando o
cabelo de lado e colocando um ponto final no assunto. Voltei para o meu
lugar e fiquei até o fim do culto com uma vontade imensa de sair correndo
dali, o que eu não entendia, porque torci o dia inteiro para conseguir chegar a
tempo de ir ao culto para ver o Noah e agora que ele estava ali, somente a
alguns bancos à minha frente, eu queria ir embora? E correndo ainda?!
***
isso já decidiu e ora para que a menina com quem namorar, seja também a
que vai casar. — Sissa comentou com uma voz toda orgulhosa, como se fosse
uma mãe contando que o filho passou em primeiro lugar para a universidade
federal.
Uau. Boca aberta. Precisei de uns minutinhos para processar a
informação. Foi bem nesse tempo que ele chegou. Sim, o Noah. Ele virou a
esquina correndo, a afobação em pessoa.
— Nossa, como vocês andam depressa, hein! Quase não consegui
alcançá-las!
Ainda estava processando a informação que tinha acabado de receber,
então não consegui formular nenhum comentário. Ele virou-se para mim,
ainda ofegante:
— Então, Betina, a sua ficha de inscrição do acampamento está aqui
dentro da minha bíbli…
— Eu não vou mais ao acampamento, Noah. — Arrá! Jogada de
mestre! É claro que eu ia, mas precisava aproveitar a oportunidade e jogar um
charme.
— Betina, com toda a sinceridade do meu coração, quero muito que
você vá. E peço perdão pela Thami, ela viajou no comentário que fez, mas
não deixa isso te impedir de aproveitar esses dias conosco.
Impossível permanecer com uma atitude dura (ainda que fosse
completo charme) diante daquele olhar carinhoso e tão… Puro. Olhei para as
meninas e depois olhei para ele. Demorei um instante e lancei:
— Tudo bem. Eu vou.
— Aêêê! — Os três vibraram e me abraçaram. Surpresa pela reação
deles, permaneci imóvel nos primeiros segundos, mas logo correspondi,
embora não tão espontânea como eles.
Sabe quando você se sente especial e amada só por uma atitude?
Ninguém precisou dizer que gostava de mim ou da minha companhia, eles só
me abraçaram com sinceridade e isso bastou. Os três mal me conheciam,
mas eu podia ver amor em seus olhos e aquilo me constrangeu.
Entrei em casa com os olhos cheios d’água, mas dessa vez me
controlei. Só não pude conter os pensamentos — que estavam a mil por hora
— quando encostei minha cabeça no travesseiro. Noah parecia ser muito
diferente de todo garoto que eu já havia conhecido. Não só pela beleza
exterior, mas porque tinha algo dentro dele, nas palavras que falava, que era
especial. Nos poucos momentos que estive próxima a ele, só consegui
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rosto vermelho e testa franzida. Virei-me para meu pai pedindo socorro
através do olhar. Ele apertou os lábios e suspirou demoradamente. Parecia
que teríamos uma longa discussão pela frente.
— Betina, você nos desapontou ontem. — Falou papai com voz calma,
mas decepcionada.
— Eu sei, mas é que...
— Mas é que o quê?! Qual a desculpa dessa vez? Você simplesmente
não ligou para seu pai te buscar e voltou sozinha com suas primas quase onze
horas da noite! Isso não se faz em nenhum lugar, imagina o que poderia ter
acontecido com vocês?! — O rosto de minha mãe ia ficando mais vermelho a
cada palavra que pronunciava.
— Mas o Noah nos encontrou no caminho! — Falei em minha defesa.
— Nós nem sabemos quem é Noah! — Mamãe estava com os braços
cruzados e movia-se de um lado a outro da sala. Zuleide brincava com Guto
na varanda, mas quando citei o nome do Noah ela olhou em nossa direção.
— A questão é: se você quer de fato aproveitar os dias em que
estaremos aqui ao lado de suas primas, tudo bem, isso é muito melhor que
ficar de cara feia trancada no quarto como você repetiu muitas vezes que
faria. — Os olhos verdes de papai cravados em mim deixavam-me ainda mais
desconcertada. — Mas você terá de fazer isso direito. Eu e Gláucia sabemos
que você não ficará em nossa cola como quando era pequena, mas isso não
quer dizer que não tenha de nos pedir permissão para o que pretende fazer e
nos deixar informados de tudo.
— E também não significa que vamos deixá-la passar quatro dias em
um sítio no meio do mato com pessoas que nem sabemos quem são!
— Poxa vida, mãe, é o pessoal da igreja da Zuleide! — Aumentei o tom
de voz.
— E daí?
Senti a raiva fervilhar dentro de mim e não consegui contê-la.
— Caraca! Será que não pode me apoiar pelo menos uma vez?! Você
parece ter necessidade de frustrar tudo que eu planejo! Era para eu estar no
Rio com minhas amigas agora, mas você quis me trazer pra cá! E agora que
eu quero pelo menos tentar me divertir e fazer amigos você não deixa! —
Explodi todas as palavras em cima de minha mãe, que me observava atônita.
Saí pisando duro e bati violentamente a porta do quarto. Abracei o travesseiro
e permiti que lágrimas quentes molhassem a fronha florida. Por que minha
mãe não podia pelo menos uma vez tentar entender meu lado?! Ela sempre
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— Para onde a gente vai dessa vez? — Perguntei enquanto descíamos
a rua que a Zuleide morava.
— Pista de skate.
— O quê? Aqui tem pista de skate, Sissa?!
— Claro, Betina, só você acha que Gruta Alta ainda é uma roça! —
Eu, Sissa e Nanda caímos na gargalhada.
A segunda-feira acordou com aquela cara de sábado que só as férias
podem proporcionar e apesar de minhas primas-de-terceiro-grau-e-agora-
amigas não quererem perder um minuto daquele lindo dia, eu não estava tão
animada assim. Ter começado o dia levando bronca dos meus pais não me
dava vontade de sair distribuindo sorrisos por aí — por mais que eu não
tivesse vontade de fazer isso quase nunca mesmo. Meia hora depois de me
trancar no quarto, Sissa e Nanda apareceram na casa da Zuleide me
chamando para dar uma volta e papai trocou algumas palavras com as duas,
mas não consegui escutar o que era. Ele logo me falou que eu podia sair com
elas. Nem olhei para onde minha mãe estava e, ainda chateada, saí de casa
acompanhando Sissa e Nanda.
Com os eventos inesperados daquela manhã, acabei nem dando uma
olhada no celular. Tirei-o do bolso naquele momento e logo vi a mensagem
que Luca havia mandado na noite anterior. Meus olhos se arregalaram
enquanto os passava pelo texto. Não acreditava no que estava lendo! A mãe
da Luca havia descoberto tudo! Respondi a mensagem pedindo para ela me
ligar o mais rápido possível, precisava saber como aquilo aconteceu.
— Está tudo certo, Betina? — Sissa questionou ao perceber minha
inquietação com a mensagem.
— Tudo sim. — Respondi rapidamente. Não me sentia à vontade
para compartilhar um segredo tão íntimo de uma das minhas melhores amigas
para garotas que ela nem conhecia. Mandei um SMS para Beca perguntando
a ela se sabia de alguma coisa. Eu estava superpilhada com aquela história,
mas também não fazia a mínima ideia de como ajudar a Luca. O pior era
pensar no que a tia Judith poderia fazer por ter descoberto que a filha perdeu
a virgindade aos quinze anos. Se minha mãe parecia um general ao impor
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suas decisões, a mãe da Luca era três vezes mais intensa em suas ordens e
quatro vezes mais nos castigos que aplicava à filha. Não é à toa que Luca
vivia com medo da mãe.
— Chegamos! — Minhas lindas primas (sem zoação!) anunciaram
alegremente nossa chegada à pista de skate e enquanto eu já passava uma
olhada geral para tentar detectar algum gatinho, elas foram falar com alguns
conhecidos. Só que eu fiquei tão compenetrada na missão de encontrar um
menino bonito para trocar olhares — como em todo lugar que eu ia — que
nem olhei por onde eu andava e…
AI, MEU PÉ!!! — Foi o grito interno que dei, enquanto fazia uma
cara de que estava tudo bem depois de tropeçar/quase capotar numa pedra
enorme e intrometida! O que ela tinha de estar fazendo ali justamente naquele
momento?! Ai ai ai, agora t-o-d-o mundo estava me olhando e, pior, com os
lábios presos, segurando o riso! Que vergonha!
“Tá vendo, você não queria trocar olhares com os meninos? Agora
todos estão olhando pra você, é só escolher!”, pensei comigo mesma e não
consegui conter o riso. Isso pareceu fazer as pessoas se sentirem à vontade e
soltarem as risadas também. Então fiquei ali uns segundinhos curtindo meu
momento king kong com a galerinha skatista de Gruta Alta, até que fui me
assentar com as meninas ao lado da pista — dessa vez olhando muito bem
por onde passava.
Acabei percebendo em minha entrada triunfal na pista de skate que
não havia nenhum garoto interessante para dar uma olhada, e já que eu estava
boiando nos assuntos das minhas primas, fiquei observando a rua e as pessoas
que passavam por ela — programão para uma segunda ensolarada de férias,
hein?!
Passado algum tempo, um cachorrinho lindo de orelhas malhadas e
corpinho branco apareceu perto de onde estávamos e, como amo cãezinhos,
levantei-me para brincar com ele. O dono não parecia estar por perto.
Empolgada com a farra que o filhote estava fazendo, acabei seguindo a
direção para onde ele ia a largos saltos. Quando percebi, estava uma rua após
a pista de skate correndo atrás dele. Virei-me para voltar para onde as
meninas estavam, porém meus olhos conseguiram captar de relance por sobre
a cerca da casa da esquina algo bem conhecido na outra rua… Um certo
cabelo loiro com curtos e largos cachos nas pontas...
Não resisti e cheguei mais perto da cerca da casa, me abaixei um
pouco e fiquei observando-o andar de skate. Por que ele estava andando na
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rua e não na pista, que era tão próxima dali? Não demorou muito e Noah
começou a seguir em frete. Acompanhei-o com os olhos até onde pude, mas
logo ficou difícil continuar a espiá-lo de onde eu estava, então tive que
contornar a esquina e ir devagar pela rua, torcendo para ele não olhar para
trás e me ver. De repente ele virou. Para o lado, não para trás (Ufa!) e entrou
num lugar. Continuei andando a passinhos curtos até chegar aonde ele havia
entrado. Praticamente toda a extensão da lateral direita da rua era tomada por
uma cerca alambrada. Do lado de dentro, inúmeras árvores impediam a visão
do que tinha por trás daquela cerca.
— Por onde será que ele entrou? Deve ter alguma passagem por
aqui… — Pensei alto ao andar pela calçada procurando uma maneira de
descobrir que lugar era aquele.
— Achei! — Dei vários tapinhas em minha boca após falar com tanta
alegria (e volume) que tinha encontrado a entrada. Noah poderia ter me
ouvido e eu estragado tudo! Parei por um segundo, esperando os batimentos
cardíacos se acalmarem e me aproximei da abertura que ele entrou. Tinha
muitos galhos e bastante mato atrapalhando a vista, mas eu consegui enxergar
o lugar que, aliás, me pareceu bem familiar… Era o Campo do Lago, onde a
Sissa e Nanda haviam me levado dois dias antes! Pelo jeito, a entrada ao lado
do portão principal não era a única abertura clandestina daquele lugar.
O que o Noah estaria fazendo ali dentro? Ah, agora que eu estava
amando dar uma de espiã é que eu não ia embora sem saber! Passei pela
abertura, levantei alguns galhos que estavam em minha frente e finalmente o
vi. Ele estava sentado em cima do skate olhando para o lago, de costas para
onde eu estava. Senti uma agitação diferente crescer dentro de mim ao fitá-lo
e fiquei suspirando internamente, toda derretida. Até que algo bem pequeno e
levado me lembrou de que eu não estava sozinha ali. O cãozinho com quem
eu estava brincando na rua veio comigo e eu nem reparei! E naquele exato
momento, o danado pulou a abertura na cerca e começou a brincar com o
mato. Meu olhar de desespero tinha que fazê-lo parar ou eu teria um ataque
do coração a qualquer instante! O Noah poderia ouvir o barulho e olhar para
trás e então, ai de mim. Outro mico. Foram segundos muito tensos aqueles
em que o cachorro não queria parar de se mexer, então decidi sair dali antes
que algo pior acontecesse…
— BUM!
Aconteceu…
— Au!Au!Au!
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— Aceitar eu também não queria, mas o que fazer quando se tem uma
mãe estressada com o poder coercitivo todo em suas mãos?
Acho que acabei desabafando além do que devia, porque até a dona da
loja parou o que estava fazendo e olhou-me com compaixão e curiosidade.
Minhas primas largaram os sutiãs e tangas de biquíni no mesmo instante e
vieram em minha direção, puxando-me para fora da loja e gerando em mim
vários “graças a Deus”. Por que não tinha dito aquilo antes? Assim já
teríamos ido embora há tempos.
— Sua mãe não deixou você ir? — Sissa perguntou cautelosa.
— É certo que não. — E assim contei toda a discussão do início do dia.
— Às vezes só queria que minha mãe fosse mais compreensiva comigo. Esse
jeito dela todo autoritário me dá nos nervos!
— Mas e você, é compreensiva com ela?
Olhei para Sissa pronta para me auto justificar, mas não tive o que
responder. Balbuciei um “Sei lá” e fiquei quieta.
— Sabe o que eu acho? Devíamos ir até a Gláucia e Antônio e pedir
perdão por ontem! Pisamos na bola por não termos ligado para ele nos buscar
e precisamos reconhecer isso. — Nanda falou para Sissa, que concordou
balançando a cabeça.
— Mas hoje de manhã vocês já não fizeram isso? Eu vi que
conversaram com meu pai.
— Na verdade, não. Ele até comentou conosco sobre termos voltado
sozinhas e esse ter sido o motivo da discussão de vocês hoje cedo, mas não
nos desculpamos nem nada.
— Ah, deixa disso, Nanda! Pedir desculpa pra quê? Se eu for pedir
perdão cada vez que dou uma mancada com meus pais, não vou fazer outra
coisa da vida. — Cruzei os braços e soltei uma risada. As duas permaneceram
sérias.
— O que você disse me faz lembrar de Jesus. — Comentou Sissa. —
Nós pecamos todos os dias, mas mesmo assim Ele quer que a gente se
arrependa e peça perdão por cada um de nossos erros. Mesmo não querendo,
às vezes acabamos falhando e isso porque somos imperfeitos, mas aceitar
viver errando ou buscar mudar é uma decisão que cada um tem que tomar. Os
nossos erros nos afastam de Deus, mas o perdão dEle nos aproxima.
Pensei em como o que Sissa falou tinha a ver com a situação com os
meus pais e ela pareceu ler o que se passava em minha mente:
— Viver pisando na bola com seus pais ou procurar obedecê-los é uma
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decisão sua. E ainda que escolha a segunda opção, vai acabar falhando vez ou
outra, e nesses momentos é superimportante que haja pedido de perdão. Não
se esqueça: nossos erros nos afastam de Deus e às vezes das pessoas, mas o
perdão sempre aproxima.
Sissa passou o braço roliço sobre meu ombro e emitiu um sorriso
aberto, daqueles que faziam seus olhos brilharem. Mais uma vez fiquei sem
resposta, porém não me preocupei muito, estávamos em frente ao portão
branco da casa da Zuleide e sentia como se tivesse um buraco negro no lugar
do meu estômago, precisava entrar para almoçar. Quando já estava dentro da
varanda, prestes a fechar o portão, Nanda segurou meu cotovelo esquerdo.
Girei o corpo para ela, um pouco incomodada com o toque inesperado.
— Bê, às vezes a gente quer muito que as pessoas mudem, mas talvez
quem precise mudar, em primeiro lugar, sejamos nós.
Em seguida, ela e Sissa se despediram e foram embora. Não sei por que
não quiseram almoçar na Zuleide aquele dia, apesar de terem sido
convidadas. De certa forma, eu gostei disso, assim pude tampar a cratera que
se formara em minha barriga e mastigar em paz, refletindo sobre o que elas
haviam acabado de dizer. Embora eu não tivesse solicitado nenhuma sessão
de conselhos grátis e o resultado disso ser um pouco de raiva pela intromissão
das duas, não conseguia parar de pensar no que ouvi. O que, é claro, me
deixou mais zangada ainda.
***
— Mas, amiga, por que você não negou, como te falei?! —
Esbravejei, achando lindamente sábio o que eu havia aconselhado Luca a
fazer.
— Ah, Betina, eu neguei, mas minha mãe me pressionou muito, disse
que ia me levar ao ginecologista e que ela saber pela boca do médico seria
pior pra mim... Foi um horror! — Luca estava muito assustada.
— Poxa, amiga... — Comentei, sem ter muito o que dizer.
— Ela me bateu, Bê. — A voz da Luca falhou e pude ouvir as
primeiras fungadas. — Estou com uma marca horrorosa no rosto de uma
cintada que ela me deu. E ainda me proibiu de entrar na internet por tempo
indeterminado e disse que vai me trocar de colégio, pra eu não ficar perto do
Pedro...
— O quê?! — Gritei. — Mas aí você vai ficar longe de mim e da Beca
também!
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***
Cheguei em casa após um programa chatão de família: visitar
parentes até de oitavo grau em vários vilarejos de Gruta Alta. Me cansei de
ouvir tanto “Quer um café?”, “E broa de milho? Aceita?”, “Nossa, como está
uma moça!”, “Quando te vi ainda era uma pirralhinha”, “E os
namoradinhos?” e por aí vai... Minha mãe, durante nossa peregrinação, de
vez em quando me lançava uns olhares fuziladores para eu melhorar minha
cara, que não estava nem um pouco boa.
Me senti bastante aliviada quando entrei no quarto em que estava
hospedada. Para minha surpresa, havia um pacote pequeno, na cor lilás, em
cima da cama. Voei em cima do pacote, louca de curiosidade, como sempre.
Mas pensei um pouco e talvez não fosse para mim, embora estivesse
dormindo naquela cama aqueles dias. Decidi perguntar à dona da casa antes
de dar outro fora, já que estava ficando craque no quesito pagação de mico.
— Não sei o que é isso, Betina. Deve ser pra você. — Zuleide
respondeu, a indiferença em pessoa. Mediante o que entendi por aval da dona
da casa, com toda delicadeza — pra não dizer o contrário — rasguei o pacote
ao meio fazendo o maior barulho e deixando cair pedaços no chão. Logo
avistei um CD com o rosto de uma bela moça estampado na capa e um
bilhete, que dizia:
[...]
Quando elas decidem acreditar
Elas são fortes e sabem sonhar
Imperfeitas princesas feitas de realeza
Que em suas histórias escolheram lutar.”[2]
Beijos das primas que estão aprendendo a amar você, Nanda e Sissa.
Minha boca se abriu e eu sentei na cama, sem reação. Por que raios
Clarissa e Fernanda me dariam um presente?! Tudo bem que nos últimos dias
estávamos bem próximas, mas elas ainda não haviam subido o estágio de
primas-colegas-fofas para best-friends-forever. Notei que Nanda havia me
passado pelo celular diversas músicas daquele CD no primeiro dia que nos
encontramos. Aos poucos, várias imagens dos últimos dias começaram a
invadir minha mente e eu recordei frases, olhares e atitudes que Sissa e
Nanda tinham e que não eram nada comuns para adolescentes. Apesar de vez
ou outra me deixarem irritada com as suas perguntas e comentários “que
ninguém faz”, como no dia anterior quando citaram Jesus para comentar
sobre meu relacionamento com meus pais, mesmo assim elas eram diferentes,
especiais. Enquanto eu ria das pessoas, elas riam pras pessoas, enquanto eu
reclamava de tudo, elas agradeciam por tudo, enquanto eu paquerava os
meninos, elas... Ah, isso eu já não sabia, porque não comentaram em
momento algum sobre nenhum boy. O que de fato também era estranho.
“Hum. Duvide-o-dó que elas não dão uns pegas por aí. D-u-v-i-d-o”.
Mas, enfim, a despeito das minhas suspeitas sobre a vida amorosa das duas
primas-fofas-que-eram-bregas-mas-não-são-mais, o fato é que: será que era
por causa de Jesus que elas eram tão diferentes daquela maneira? O Noah
também era muito diferente e sempre vivia na igreja. Devia ser a igreja deles.
Passei o resto da tarde escutando o CD. Gostei bastante, as
músicas falavam de Deus como se Ele fosse nosso amigo, alguém que está
perto e não do jeito que eu costumava pensar, como um velho turrão que nos
castiga quando não o obedecemos. Entre uma música e outra, ponderava
sobre a mensagem de domingo à noite na igreja, na oração que recebi de
Noah, no papo na sorveteria e em tudo que eu havia sentido aquele dia.Ainda
resistia à ideia de que talvez Deus tivesse falado comigo, porque eu
simplesmente não acreditava que Ele pudesse falar com as pessoas, reles
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mortais, Ele sendo tão grande e poderoso, assentado em Seu trono no Céu.
Depois de escutar o CD umas três vezes seguidas, resolvi desligar o
aparelho de som. Guardei o disco com muito cuidado em minha mala e,
enquanto procurava um lugar para colocar o bilhete, meus olhos passaram
por minha bíblia, que estava jogada no chão, ao lado da mala. Olhei para o
outro lado, em busca da minha agenda, mas não a encontrava de jeito
nenhum. Sem outra opção, peguei a bíblia e abri aleatoriamente para guardar
o bilhete. Dois versículos grifados na cor verde-limão me chamaram atenção
nas páginas que se abriram e resolvi ler:
Capítulo 5 — O Acampamento
***
poltrona em que Noah estava, que era a mais próxima do motorista. O assento
ao lado dele estava vazio e quase me bati por não ter sentado ali. Meus
pensamentos de autopiedade foram repentinamente interrompidos quando o
ônibus parou e pôde-se ouvir um alto e longo “Ahhhh” dos passageiros. A
porta se abriu, e adivinha quem entrou toda desastrada e cheia de malas nas
mãos? A Thami.
Noah questionou:
— O que aconteceu? Você me mandou uma mensagem dizendo que
não iria mais!
— Resolvi ir de última hora. Olha, aqui tem um lugar vazio! — Disse
com a maior naturalidade do mundo e sentou-se ao lado de Noah, que ficou
um tempo olhando para ela, ao que parece, desacreditado com tamanha cara
de pau. O motorista teve que descer para guardar aquele monte de malas no
bagageiro e isso rendeu bons minutos de atraso na viagem.
Tirando os fatos de que de cinco em cinco minutos eu olhava para os
bancos em que Noah e Thami estavam sentados e a insistência de Matheus
em puxar assunto comigo a todo o momento, a viagem foi tranquila. Foram
quarenta e cinco minutos no balanço das estradas de terra da região de Gruta
Alta, repletos de músicas cantadas pela galera do fundão, que estavam
munidos de violão, cajón e pandeiro. Apesar de todo o barulho, tinha gente
que chegava até a babar de tanto dormir. Eu não era uma dessas, ainda bem!
Imagina se Noah olha pra trás e me vê dormind...
Meia hora depois:
— Oi, o que, onde estou?! — Acordei assustada.
— Chegamos ao sítio, Betina! — Matheus respondeu com bastante
entusiasmo e eu aterrissei bruscamente na realidade ao perceber que minha
cabeça não estava encostada na poltrona e sim em um lugar um pouco duro,
desconfortável... O ombro do Matheus! Tirei minha cabeça dali
imediatamente, fui tão rápida quanto o comentário dele:
— Gostô do travesseiro? Cê fica uma linda dormindo. — Soltou uma
risadinha. Estreitei os olhos ao me virar para ele e com uma expressão nada
amigável, rebati:
— Olha aqui, Matheus, me desculpe por ter dormido inconscientemente
em seu ombro, porque garanto que se eu tivesse percebido, não faria isso! E
outra coisa: espero que você não pense que isso te dá chances de ficar dando
em cima de mim, porque não dá! — Bufei, destravei meu cinto de segurança
e percebi olhos mirando-me de todos os lados. Acho que acabei falando alto
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demais.
— Então, pessoal, já podem descer. — Noah falou, após pigarrear.
Todos passaram a se movimentar rumo à saída e o foco saiu de mim e
Matheus. Noah estava de pé próximo à porta e ficou uns segundos olhando na
direção em que eu estava e depois desceu. Senti um frio percorrer-me por
dentro.
O sol das dez da manhã estava forte e pude constatar isso assim que
coloquei os pés para fora do ônibus. Enquanto aguardava a enorme fila para
pegar minha mala no bagageiro, fiquei bisbilhotando tudo que meus olhos
conseguiam alcançar — inclusive a Thami, que não desgrudava do Noah. “É,
pelo jeito vou ter concorrência nesse acampamento”, pensei e soltei uma
risadinha amarga.
Percebi em minha rápida análise que se o sítio fosse tão bonito
quanto a entrada dele, eu teria muitos locais bacanas para tirar altas fotos e
postar no Instagram. Depois que voltasse pra casa, é claro, já que internet era
artigo de luxo naquela roça. Enquanto notava os detalhes da linda e enorme
casa de dois andares de madeira que estava à minha frente, nem podia
imaginar o que me aguardava naqueles dias. Eu estava cheia de expectativa
com tudo aquilo e ao mesmo tempo indignada com a oferecida da Thami.
Mas, assim como eu amava ficar com o Cauê e mostrar para todas as meninas
da escola que eu era a mais bonita e popular, porque era comigo que ele
estava, naquele acampamento não seria diferente. Eu ia fazer a Thami morrer
de inveja quando me visse juntinha do anjo.
Eu, Nanda e Sissa pegamos nossas nada singelas malas e partimos à
procura do lugar em que dormiríamos nas próximas quatro noites. Ao
subirmos os degraus da larga e alta escada que nos levava a uma linda
varanda cheia de vasos de flores e banquinhos rústicos, já podíamos ouvir a
movimentação intensa vinda de dentro da enorme casa. Tão logo
atravessamos a ampla porta de madeira com detalhes em vidro, pudemos
notar adolescentes e jovens observando atentos as listas com os nomes na
porta de cada quarto. Alguns pulavam de alegria e se abraçavam por estarem
no mesmo quarto, outros saíam resmungando em busca da próxima lista.
Muitos já tinham se instalado em suas acomodações e agora estavam
descendo outra escadaria, que ficava ao fim do corredor, exatamente do lado
oposto da entrada.
— Onde eles estão indo? — Questionei curiosa.
— Provavelmente para o salão onde acontecerão os cultos. A abertura
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***
No salão de cultos, houve uma pequena palavra de boas-vindas pelo
Noah e outros líderes. Não demoraram a anunciar que o almoço já estava
liberado e todos seguiram em direção ao refeitório. Servi-me e sentei numa
enorme mesa junto com Sissa e Nanda, que conversavam com alguns amigos.
Fiquei por longos minutos colocando a comida para dentro e dividindo minha
atenção entre vasculhar o território com os olhos atrás do anjo e pensar no
papo que tivera com as meninas. Elas deviam realmente ter acreditado
quando falei que tomaria cuidado com a Thami. Isso incluía, teoricamente,
não investir no Noah, é óbvio. Mas também era óbvio que eu não estava nem
um pouco interessada em não investir nele. Em certo momento, percebi
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— “Lindo” você vai dizer quando olhar toda a região de Gruta Alta
por cima.
Uma expressão de dúvida surgiu em meu rosto.
— Você sabe por que a cidade se chama Gruta Alta? — Ele questionou.
— Ah... É porque tem uma gruta em cima de algum morro por aí, não
é?
— Isso. Mas não é uma gruta e um morro qualquer. Lá tem uma
cachoeira com uma queda d’água fantástica. A cachoeira corta a gruta em
cima do morro, passando por ela para despencar lá embaixo. É como se a
água jorrasse de dentro da gruta. Sem contar a visão completa de toda a
cidade que o lugar proporciona. Todos que visitam a gruta ficam surpresos
com tamanha beleza. E adivinha onde o morro fica? Pertinho aqui do sítio.
Depois de amanhã teremos uma trilha pra lá.
— E eu vou com certeza! — Acho que acabei transparecendo
empolgação demais. Ele sorriu e meu coração vibrou. Notei que Sissa nos
olhava de soslaio e de vez em quando parecia olhar para trás de onde
estávamos. Resolvi virar-me para ver o que tanto ela olhava e enxerguei
Thami sentada em nossa direção, a umas três mesas de distância, mirando-me
com olhar revolto. Certamente porque Noah estava sentado ao meu lado e
conversando comigo. Resolvi colocar em prática o que havia decidido e
lancei um sorrisinho com certo quê de superioridade e provocação. Ela
respondeu com frieza, permanecendo com o mesmo semblante.
— Então vejo vocês às quatro horas na árvore do lago. — Disse Noah,
levantando-se da mesa. “Oh, mas não se vá!”, pensei decepcionada. Após se
despedir, saiu do refeitório. Pouco tempo depois, Thami também se foi.
***
“É tão claro como a luz do sol que ele está interessado em mim”,
pensei convencida. “Ele sempre me procura de alguma forma. Como no
domingo depois do culto e hoje no almoço. Tudo bem, sempre é uma palavra
muito forte para descrever duas vezes. Mas, de todo jeito, o importante é que
em ambientes com tantas pessoas para ele cumprimentar e conversar, ele
escolheu falar c-o-m-i-go!”. Em meio às minhas exaltações de ego e histerias
interiores por conta dessas constatações, Sissa e Nanda entraram no quarto.
— E aí, topa um mergulho na piscina? — Nanda convidou-me.
— Claro. Aqui é bem quente, não é mesmo?! — Respondi, limpando
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uma gota de suor que escorria por minha testa. Escolhi meu melhor biquíni e
partimos para o outro lado do sítio. Chegando lá, percebi que era uma linda
piscina natural, com uma tirolesa que cortava toda extensão dela. Já tinha
muitas pessoas descendo pela tirolesa e espirrando água em todo mundo
quando chegavam a seu fim, que era na piscina. Outros tantos se divertiam
dentro d’água, que, sinceramente? Estava uma delícia! Dei um tibum e, ao
voltar à superfície, notei um olhar familiar me fitando. Era Matheus. Olhei
em outra direção, fingindo não tê-lo visto. Mas não tenho como negar: pude
perceber que carregava um pouco de chateação em seu rosto. Decerto, por
causa do fora que recebera mais cedo. Mas eu não estava nem aí, ele
procurou e encontrou.
— Esse lugar é incrível! — Exclamei, ao olhar para Sissa e Nanda, que
me responderam com largo sorriso.
— O Salmo 19 diz que os céus declaram a glória de Deus e o
firmamento anuncia a Obra de Suas mãos. Ao olhar para a natureza, podemos
notar a grandeza de Deus. Ele criou tudo tão detalhadamente lindo que é
difícil encontrar palavras que descrevam Sua sabedoria e criatividade! —
Sissa falou admirada e eu dei de ombros. Nunca olhei a natureza como algo
que descrevesse a sabedoria e a grandeza de Deus.
— Sissa, por que vocês veem Deus em tudo?! — Questionei girando os
braços e apontando em redor.
— Porque Ele é tudo! A bíblia diz que dEle, por Ele e para Ele são
todas as coisas. No primeiro capítulo de Romanos, Paulo fala que na criação
e por meio das coisas criadas podemos ver os atributos invisíveis de Deus,
seu eterno poder e sua natureza divina. Ou seja, se alguém precisa de uma
prova de que Deus existe, é só olhar para a natureza e terá a resposta. Depois
de conhecer um Deus tão grande como Ele, tão cheio de amor e graça, não
pude mais deixar de vê-Lo desde nas coisas pequenininhas até as grandiosas.
Não respondi nada e mergulhei novamente. O amor e admiração que
Sissa e Nanda demonstravam sempre que falavam de Deus me constrangia de
certa forma. Eu às vezes chegava a pensar que elas eram fanáticas, porque
sempre estavam falando de Jesus e de algo que aprenderam na bíblia. Acho
que elas deviam decorar versículos igual eu fazia quando era criança para
ganhar as gincanas da Escola Dominical. Um incômodo invadiu meu coração
e eu não consegui entender o motivo. Talvez fosse porque, lá no fundo, eu
pensasse que ser tão de Jesus assim era muito difícil e eu nunca conseguiria.
***
“Eu olho para a Cruz/ E para a cruz eu vou/ Do Seu sofrer participar/Da
Sua obra vou cantar/Meu Salvador, na cruz mostrou/O amor do Pai, o Justo
Deus...”
como vinha acontecendo nos últimos dias, não era o suficiente. Então
continuei sentada na cadeira e, quase sem perceber, me peguei soltando umas
palavras.
— Deus.
Pausa.
— Então...
Outra pausa.
— Eu estou aqui e, bem... Eu não sei o que dizer.
Uns dois minutos se passaram.
— É... Se Você de fato tiver me mandado pra esse lugar pra conhecer
um pouco do Senhor, me mostre. E se tudo que eu estou aprendendo aqui for
real, faz com que eu entenda e fale comigo. Amém.
A oração terminou e junto com ela se foi a angústia que eu estava
sentindo, dando lugar a paz em meu coração. Eu nunca tinha falado com
Deus dessa maneira. Minha oração de antes de dormir já era praticamente
decorada e devia durar no máximo um minuto. Eu sei que essa durou mais
por conta da minha demora, mas as palavras foram diferentes, houve
sinceridade nelas.
***
com uma singela coroa na cabeça. Meu vestido era preto, com brilhos
salpicados e a saia feita de tule. A make estava perfeita, com os olhos e boca
bem marcados. Sissa, Nanda e minhas mais novas amigas de dormitório
resolveram beliscar umas coisas e eu permaneci onde estava. Passados alguns
minutos, resolvi ir até elas para comentar de umas fantasias horrorosas que eu
tinha visto, mas, no meio do caminho, parei.
Foi mais forte que eu e minhas pernas não podiam se movimentar um
milímetro, caso contrário, poderia perdê-lo de vista e isso seria trágico.
“Uau!”, falei para mim mesma. Noah estava fantasiado de... anjo! Nada mais
propício! Ri internamente por conta da coincidência ao analisar sua roupa
branca, com duas asas penduradas nas costas. Ele não precisava de muito,
afinal, seu cabelo louro com ondulações carregadas de charme, junto a seus
traços leves e lábios carnudos emoldurando aquele cativante sorriso já
compunham bem a fantasia. Ele conversava com algumas pessoas e
gargalhava. Do nada, virou-se em minha direção e parou uma gargalhada no
meio. Seus olhos encontraram os meus e, por breves segundos, olhou-me de
cima a baixo. Por um momento, pareceu que todos a nossa volta tinham
sumido e restaram somente eu e ele ali, com os olhos fixos um no outro. Ele
finalmente abriu um sorriso tímido e eu respondi, sorrindo também.
Ouvi alguém me chamar e olhei para o lado tentando identificar de
onde vinha a voz. Não consegui ver ninguém e, ao voltar-me para frente,
Noah não estava mais lá. Resmunguei irritada por tê-lo perdido de vista e
segui pelo salão, procurando por ele. Logo reconheci duas asinhas brancas de
costas para mim. Soltei um suspiro e devagar fui me aproximando. Ainda não
tinha ideia do que falaria para ele, mas de uma coisa eu sabia: precisava que
ele me olhasse daquele jeito outra vez.
Após lentos e pausados passos, notei que Noah não estava sozinho.
Conversava com alguém. Parei em meio a toda aquela gente agitada e me
camuflei entre eles. Esperei tensos minutos, até que ele se movimentou para o
lado e pude enxergar a Thami. Senti meu rosto queimar de ciúmes. Pouco
depois, ela inclinou a cabeça e ele passou a mão em seu rosto. Parecia
enxugar uma lágrima. Resolvi sair dali antes que Thami me visse, isso seria
péssimo.
Cheguei bufando onde as meninas estavam. Ainda não tinha visto
Noah tão próximo assim de uma garota desde que o conheci e, para piorar a
situação, essa garota era a Thami! Precisava desabafar sobre minha paixonite
com alguém. Mas não podia ser com minhas primas. Lembrei da Luca e
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também de que ela não respondeu a mensagem que eu tinha mandado há dias.
Será que as coisas haviam piorado para o lado dela? Resolvi, então, mandar
uma mensagem pra Beca:
— BFF, sabe da Luca? Há dias que ela não me manda notícias! Sdds,
beijocas.
Dois minutos depois, Beca respondeu ao SMS:
— Está sem WhatsApp, né? Que fase! Te mandei mensagem por lá
ontem. A Luca está sem celular por enquanto, a tia Judith descobriu tudo.
Respondi imediatamente:
— Mas quando ela me ligou a tia já tinha descoberto tudo e ela estava
pelo menos com celular! Será que a Luca andou falando com o Pedro e por
isso a tia tomou o celular? =(
Um minuto mais tarde:
— Bê, acho que vc está atrasada nas informações. Luca está grávida.
“Para tudo que eu quero descer! A Luca está grávida?! Carregando
um feto no útero, é isso? Em breve a barriga dela, que chega a ser negativa
de tão magra, vai estar em formato de bolinha?! Isso significa que minha
amiga de quinze anos vai ser... mãe?”
Sentei numa cadeira que estava encostada na parede, para não correr
o risco de desmaiar e cair no chão. Minhas mãos tremiam.
— Vc tá falando sério?! Não consigo acreditar! Ela perdeu a
virgindade mês passado!
Beca respondeu imediatamente:
— Ela está arrasada. Se não me engano, eles transaram três vezes,
mas já tem tempo suficiente para os sintomas da gravidez aparecerem. A mãe
dela ameaçou levá-la ao ginecologista pra saber se ela ainda era virgem, Luca
teve medo e confessou. Mesmo assim, a tia Judith a levou e lá, com os
exames que o médico pediu, veio a bomba. Os resultados chegaram antes de
ontem. Ela conseguiu me ligar antes de ter o celular confiscado. É, amiga, a
Luca entrou numa bad sinistra e não faço ideia de quando tudo isso vai
melhorar.
Não conseguia acreditar no que estava lendo. A gente sempre ouvia na
escola sobre gravidez na adolescência, mas nunca pensamos que podia
acontecer conosco ou com alguém tão próximo. E esse alguém era Luca!
Minha amiga de infância! Aflição era meu sobrenome naquele momento.
Precisava falar com a Luca urgentemente! Mas como?! Se ela estava sem
celular, não adiantava ligar e nem mandar mensagem. Ai, se pelo menos
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parecendo ter ouvido a coisa mais anormal do mundo. Bem, pra mim era...
— Isso! Deus é o único que sabe o que de fato passa no coração das
pessoas. Conhece suas reais necessidades e problemas, e isso porque Ele
pode ver por dentro, o que nenhum ser humano tem capacidade. Então,
ninguém melhor pra poder nos ajudar em tempos de crise e situações difíceis.
— Ok, mas o que eu faço pra Deus ajudar a Luca? Orar?
— Sim. A bíblia diz que a oração de um servo de Deus pode muito em
seus efeitos. Peça ao Espírito Santo que faça aquilo que você não pode:
consolá-la.
— É, parece uma boa ideia.
Ele sorriu e se levantou.
— Foi bom conversar com você, Betina. Mas agora preciso ir, até
amanhã.
Mandei um tchau e depois o chamei de volta. Ele se virou.
— Onde está escrito na bíblia que a oração de um servo de Deus pode
muito em seus efeitos? E, ah, obrigada pela conversa.
— Em Tiago 5. — Seu sorriso alargou-se e se virou, continuando a
andar. Observei-o enquanto se distanciava do salão e seguia rumo à casa em
que ficavam os quartos. De repente, como se uma lâmpada se acendesse
sobre minha cabeça, tive a brilhante ideia, mas não tão original, de segui-lo.
A festa mal tinha começado, não era possível que ele iria dormir àquela hora!
Levantei de fininho para que as meninas não percebessem e saí do salão,
tentando disfarçar que o seguia. Ele caminhou pelo lado da casa em direção à
entrada do sítio e eu fiz o mesmo caminho. Me escondi atrás de um arbusto
que ficava próximo à varanda e observava-o sentado na imensa escada de
entrada. “Estou ficando craque na espionagem”, ri baixinho. Noah olhava
para o céu e parecia balbuciar algumas palavras. Talvez estivesse orando.
Decidi voltar para a festa, antes que ele me visse ali. Naquele dia eu não teria
desculpas para arrumar se algo desastroso acontecesse.
Fiquei na festa por mais trinta minutos e já estava entediada. Resolvi ir
dormir. Ao passar pelo corredor, tentei espiar pelos vitrais da porta de
entrada, mas não havia ninguém na escada. Subi para o quarto e, depois de
tirar toda a minha produção de Cisne Negro, deitei-me relaxadamente na
cama. Meus pensamentos voavam a mil por hora e tentei conectar a internet
no celular. Sem sucesso. Outra vez. Olhei para o fundo da cama em cima da
minha e não conseguia ter sono. Virei para um lado. Virei para o outro. A luz
estava ligada porque não havia ninguém no quarto além de mim, decidi então
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Ao ler esses versículos, pude entender que ser cristão realmente não é
brincadeira. Tive também uma triste constatação: eu estava enganando a mim
mesma o tempo inteiro. Afinal, eu ouvia a Palavra desde que nasci, mas
praticá-la, bem, aí já era outra história. Pensei que talvez Deus estivesse
mesmo querendo falar comigo, até porque, desde que cheguei a Gruta Alta
algumas coisas estranhas começaram a acontecer dentro de mim, umas
reflexões que nunca tinham passado em minha mente resolveram se instalar
por aqui e a convivência com minhas primas me mostrava que existia outra
maneira de viver, mesmo sendo adolescente. E, ah, o que dizer do Noah? Eu
não o conhecia direito, mas ele era tão diferente dos outros meninos. Sua
maneira pura de falar, a maneira respeitadora com que se comportava com as
garotas (que estavam sempre perto dele), seu olhar não tinha maldade,
mesmo quando me olhou na festa, não era como se eu fosse um pedaço de
carne. Suas palavras tinham sabedoria, e como ele entendia sobre Deus!
Talvez fosse de alguém assim que eu precisasse para me aproximar de Jesus
de verdade...
Sem perceber, me peguei pensando em Noah como meu namorado e
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gelei: será que minha paixonite que se resumia à vontade de dar uns beijos
estava se transformando em gostar de verdade? Tipo, se apaixonar mesmo?!
Não, seria loucura, eu moro a 500 km de Gruta Alta! Como namorar à
distância? Eu nunca pensei algo desse tipo para mim, deve ser muito sofrido
e... “Betina, se enxerga garota. Vocês nem deram um beijo sequer e você já
está pensando nas dificuldades de um namoro à distância?! Volta pra
realidade, vai.”, chamei atenção a mim mesma e voltei para a bíblia. Lembrei
que não tinha orado por Luca como Noah me aconselhou. Resolvi orar:
— Senhor Deus poderoso. — Parei por uns instantes para formular a
próxima frase, minhas orações não costumavam dar muito certo quando
saíam do script. — Criador dos Céus e da Terra. Tu és o alfa e o ômega... —
Ai, não! Eu nem sabia o que significava alfa e ômega! Poxa vida, por que eu
não conseguia formular uma oração bonita?! — O Senhor é muito grande e
deve ser adorado. Eu sei que és Tu quem pode consolar todas as pessoas,
porque só o Senhor conhece o íntimo de cada um. Portanto, oh Pai Benigno e
Maravilhoso, sonda a minha amiga Luciana Carrara nesse momento e traz o
consolo que só Tu podes oferecer! Em nome de Jesus, amém.
Abri um olho. Abri o outro. Fiz uma careta. Não, não. Aquela oração
não expressava sinceridade como a que eu tinha feito mais cedo. Resolvi
começar de novo:
— Oi, Jesus. Então, minha oração de antes de dormir hoje vai ser um
pouco modificada. Pelo jeito, Você não está interessado em palavras bonitas,
então, vamos lá. É que eu gostaria de pedir pela Luca. O Senhor sabe o que
aconteceu e as coisas não estão correndo bem pra ela. Só queria que ela se
sentisse consolada pelo Espírito Santo agora, por mais que eu não saiba bem
o que isso significa e como funciona. O Senhor poderia falar pra ela as
mesmas coisas que eu tenho escutado aqui? É que eu acho que muita coisa
poderia mudar na vida da Luca se ela decidisse acreditar em Você de
verdade. Em nome de Jesus, amém.
Terminei a oração e não pude evitar pensar: E eu? Será que muita coisa
poderia mudar em minha vida se eu recebesse Jesus?
formigas que se estendia pela borda do lago. Senti que essa poderia ser minha
oportunidade de ouro. Acheguei-me mais perto dele e, colocando uma das
mãos em seu ombro, disse baixinho:
— A fé que você tem me inspira.
Seu ombro se mexeu levemente ao meu toque, mas logo depois
relaxou. Aproveitei para chegar mais perto e sussurrar próximo a seu ouvido:
— Na verdade, você me inspira por completo.
Suas mãos, que estavam apoiadas nas pernas, logo foram parar em
seus cabelos. Seu rosto, sempre branquinho, se tornou rosado e um sorriso
tímido apareceu em seus lábios.
— Obrigado. Você é muito gentil.
Apesar de, disfarçadamente, ele ter distanciado seu corpo do meu, eu
precisei fazer um enorme esforço para esconder minha euforia diante
daqueles olhinhos desconcertados. Agora eu sabia que tinha mexido com ele.
— Aiii! Socorro, alguém me ajuda! — Gritos estridentes se fizeram
ouvir. Eu e Noah nos viramos imediatamente para o lado de que vinha o som
e meus olhos não puderam acreditar no que viram. Noah levantou-se
imediatamente e foi até onde Thami estava caída — melodramaticamente
caída — e eu fiquei ali, com ódio preenchendo meu coração por completo.
Ao me aproximar, vi a cena mais ridiculamente calculada da minha vida:
Thami estendendo as mãos para que Noah a ajudasse a levantar, enquanto
fazia uma cara de sofrimento como se tivesse despencado de uma ponte de 50
metros de altura. Pronto! Depois daquela encenação digna de novela
mexicana, ela já podia fazer um teste para a próxima versão de A
Usurpadora.
Já em pé, depois da ajuda do Noah para se levantar, abraçou-o forte e,
olhando-me de soslaio, disse:
— Obrigada por sempre estar presente nas horas que eu mais preciso!
“Um. Dois. Três. Respire pausadamente, Betina. Conte até dez,
Betina”, repetia para mim mesma, enquanto colocava as mãos nos bolsos de
trás da minha calça jeans. Precisava guardá-las em algum lugar, antes que
resolvessem dar uma passeada no rosto de alguém.
Noah desvencilhou-se do abraço apertado daquela magrela
dissimulada e pediu licença. Deu-me um tchauzinho mixuruca e se afastou,
indo em direção aos quartos. Com a alma irritada até o último fio, também
resolvi sair dali. Passei em frente a melhor atriz do dia e ouvi risadinhas.
***
***
noite.
Aí está algo que eu não esperava: encontrar alguém do Rio de Janeiro
naquele fim de mundo. Patrick apresentou sua esposa, que estava sentada na
primeira fileira com um bebê muito fofo e rechonchudo no colo. Eles
formavam uma linda família. Patrick continuou sua fala:
— Quem que está aqui hoje foi criado num lar cristão?
Muitos levantaram as mãos em resposta afirmativa. Noah continuou
com os braços abaixados.
— Muitos de nós, que crescemos indo à igreja com nossa família,
acabamos por viver a fé dos pais ou de quem nos levou até a igreja quando
pequenos. Só que não ficamos crianças para sempre e umas coisas loucas
começam a acontecer dentro de nós. E, de repente, os rostinhos de bebês são
deixados para trás e nos tornamos pessoas cheias de opiniões, gostos, novos
jeitos de enxergar a vida e principalmente a pessoa do sexo oposto. E então
nos aventuramos em uma vida que, na maioria das vezes, não glorifica a
Deus. À medida que crescemos, queremos ser aceitos, amar e ser amados e
nos encontrar nesse muito doido. Mas dificilmente buscamos em Deus a
razão disso tudo e seguimos os parâmetros do mundo em tudo em nossas
vidas. Fulana mexeu comigo? Vou mexer com ela também! Fulano beijou na
boca? Quero beijar também! Aquela atriz mega linda usa essa roupa
mostrando os seios e metade do bumbum, vou usar também! E por aí vai.
Simplesmente não olhamos para o que Deus fez por nós, e o que é a única
coisa que pode preencher todo esse vazio e anseio por aceitação que existe
dentro da gente. Blaise Pascal disse que todos nós temos um vazio no coração
que tem o tamanho de Deus. E isso porque você foi criado por e para Ele! E
foi Ele quem morreu por você, para que tivesse vida. Nós pecamos desde o
início. Já nascemos sabendo pecar, e por isso toda a ira de Deus pelo pecado
estava destinada a nós. Mas então, Jesus, que não tinha nada a ver com
nossos erros e falhas, mesmo sem ter pecado uma única vez, morreu em
nosso lugar. Ele se fez pecado por nós e carregou a culpa de toda humanidade
nas costas. Ele foi humilhado, rechaçado, machucado... Por mim e por você.
Deus fez cair o erro de nós todos sobre Jesus. E, com isso, Ele se fez caminho
entre nós e Deus. Hoje, quando o Senhor olha pra humanidade, é como se ele
usasse a lente “Jesus” e ao invés de nos condenar por nossos pecados, oferece
o perdão. Aqueles que creem nesse sacrifício de Cristo e se rendem a Ele são
justificados por Seu sangue. Ainda que não mereçam, se tornam justos diante
de Deus ao se arrependerem. Bem... Eu não sei quem você é. Não sei se já
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tinha ouvido isso antes. Mas quero te dizer: essa é a boa notícia. Deus se fez
carne e, mesmo sem pecar, morreu por você. Tudo por amor. Esse amor não
te sufoca, não te prende, não te machuca. Até porque esses não são sinônimos
de amor. O amor de Deus te faz livre, te mostra seu valor, te oferece perdão e
te dá a certeza da eternidade.
Patrick continuou a falar por mais uma hora. Para mim, foi como se
tivessem passado cinco minutos. Cada palavra que ele dizia, parecia ser
dirigida a mim. A mensagem pareceu um mix de tudo o que eu ouvi desde
que cheguei à Gruta Alta. Meu coração já não estava endurecido, eu ansiava
por saber se aquela vida com Deus que tanto falavam era real. Eu parecia
conseguir enxergar e entender algo novo a cada palavra e tinha plena
convicção: não era o Patrick. Era Deus. Ele, o Rei dos Reis, Senhor dos
Senhores, Criador do Mundo, estava falando... Comigo?! Essa constatação
fez com que um sorriso grato escapasse de meus lábios.
Eu fiquei ali, absorvendo cada vírgula da mensagem e a cada minuto
que passava eu tinha mais certeza: fui respondida! Não sei como, porque não
ouvi nenhuma voz audível, mas olha que louco, meu coração ouviu! E não
parecia ser uma bronca de um Senhor turrão que estava pronto a mandar raios
nas cabeças das pessoas a cada pecado cometido — como eu costumava
imaginar que Deus era —, foi como uma brisa suave. Finalmente eu
conseguia enxergá-Lo como um Deus que não estava tão distante assim, na
verdade, Ele estava mais próximo do que eu imaginava.
Patrick terminou a palavra e, antes que concluísse o apelo, eu me vi
lá na frente, diante do altar. Ajoelhei-me no chão e permiti que as lágrimas
escorressem sulfurosamente sobre meu rosto e meus lábios só conseguiam
balbuciar: perdoe-me, Deus. Naquele momento, era como se eu e Deus
estivéssemos a sós e, ao me render a Ele, sentia seu abraço de Pai. Minhas
lágrimas pareciam levar embora todo meu vazio e uma paz inundava meu
coração, dizendo “você encontrou seu lugar”, e meu lugar era na presença do
meu Deus. O Deus que tanto neguei com meus atos, mas que não hesitou em
me revelar Seu amor.
Senti dois abraços, mas dessa vez foram físicos: Nanda e Sissa se
ajoelharam ao meu lado e começaram a orar comigo. Quando levantamos,
não há legenda capaz de descrever o sorriso de felicidade que estampava
nossos rostos.
Aquele tinha sido um momento tão incrível que eu nem pensei em
Noah e no que ele estaria achando daquilo tudo. Ainda fungando, fui até a
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— E você ainda tinha pensado em não vir... Viu como valeu a pena?
— Fez uma breve pausa e falou sério, olhando pra mim. — Conte comigo
para o que precisar, entendeu?!
— Pode deixar! — Não retive o sorriso e senti uma leve queimação
preencher meu rosto ao perceber que fiquei parada por quase um minuto
olhando pra ele com uma cara de admiração que beirava quase a uma boba
apaixonada. Ele baixou os olhos, parecendo ficar um pouco sem graça.
— Então nos vemos amanhã. Não se esqueça de colocar tênis e roupa
para caminhada, ok?
— Fechado!
E, com um sorriso, lá se foi ele para uma partida de Totó. Fiquei ali
alguns segundos, sem saber muito para onde ir, ainda estava com borboletas
no estômago pelo fato de ter ficado tão pertinho dele. Está certo que eu já
havia recebido alguns abraços dele antes, mas foi sempre quando estávamos
em grupo. Portanto, não valeu. Mas o de hoje... Ai, ai, não sairia da minha
cabeça nem tão cedo.
para ela. E assim foi, uma a uma contando o que haviam recebido e entregado
ao Senhor naquela noite. Até que chegou a minha vez. Eu sabia que não era
obrigatório falar, porque era tão espontânea a maneira como todas estavam se
abrindo. Fiquei receosa por uns segundos. O que minhas primas achariam de
mim, quando eu dissesse que me converti há poucas horas? Elas bem sabiam
que eu ia à igreja desde bebê praticamente. Enquanto conjecturava comigo
mesma, Sissa dedilhava alguns acordes e todas estavam bastante
emocionadas.
— E...Eu...
Enfim tomei coragem. Até porque, se elas eram realmente servas do
Senhor, iriam se alegrar comigo, não é verdade?
— Bem...
Mas isso não quer dizer que seria fácil. Ainda gaguejei um pouco
antes de começar a falar de verdade.
— Hoje a pregação foi uma resposta de Deus pra mim. — Algumas
me olhavam atentas, outras estavam com os olhos fechados. — Desde que
cheguei a Gruta Alta, algumas coisas estranhas começaram a acontecer
comigo. Eu nunca havia me importado com Deus e com Sua vontade, levava
a vida do meu jeito, apesar de ir à igreja todo domingo. — Nesse momento
olhei para Nanda e Sissa, que me transmitiram um olhar tão terno, que me
senti mais à vontade para continuar. — Eu cheguei à cidade totalmente
irritada, porque minha vontade era ter ficado no Rio com minhas amigas.
Meu propósito estava decidido: ficar trancada no quarto todos os dias que
minha família estivesse por aqui. Porém, vi meus planos irem por água a
baixo quando duas meninas animadíssimas resolveram me arrastar para fora.
— Lancei um olhar de cumplicidade para minhas primas, que soltaram boas
gargalhadas. — E essa foi a melhor coisa que puderam fazer! Passei a ir à
igreja com elas e, a partir disso, comecei a ser confrontada com várias coisas
dentro de mim. Brigava comigo mesma para não aceitar o que ouvia, mas,
sem nem perceber, fui me encantando pelo jeito maravilhoso que as duas
servem a Deus. Passei a pensar mais Nele, a me questionar sobre Ele... Até
que chegamos aqui, onde as coisas se intensificaram, é claro. Desde ontem,
minha mente estava a pouco de entrar em curto, pois a cada momento eu era
confrontada comigo mesma e meus erros. Cheguei até a ler o livro de Tiago
inteiro! Eu nunca tinha feito isso! Nunca lia a bíblia, só na igreja ou em
algum culto no lar. Com a cabeça e coração bastante confusos, orei a Deus
por duas vezes, uma ontem no fim do culto e outra hoje pela tarde, para que
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me respondesse se de fato era Ele que estava por trás disso tudo. E cá estou
eu agora, após ter sido respondida. Diante de um amor tão grande como o
Dele, eu não pude resistir e me rendi Àquele que deu tudo por mim. Acho
que entregar minha vida ainda é pouco, né?
Tive que deixar Noah de fora do meu relato para me poupar
constrangimentos, o que foi uma pena, afinal, ele tinha uma parcela
importante em tudo que estava acontecendo — mesmo eu olhando para ele
mais como um ficante em potencial, do que como um servo de Deus.
Ao terminar de falar, minhas primas logo trataram de fechar com
chave de ouro aquele dia tão especial:
— Bê, retiro o que disse. Eu não estou feliz, não. Eu estou exultante,
transbordando de felicidade! Desde que você chegou, nós notamos que não
era muito próxima a Deus, então eu e Nanda passamos a orar por você.
Orávamos todos os dias para que Deus se revelasse a você e que seu coração
estivesse aberto ao trabalhar dEle.
— Lembra-se da segunda vez em que você foi à igreja, no culto de
domingo? — Interrompeu Nanda.
— Lembro sim.
— Percebemos sua inquietação com a mensagem e começamos a
interceder. Até fomos para a parte de trás da igreja orar por sua vida.
— Ah, então foi por isso que vocês chegaram com aqueles rostinhos
inchados? Oraram a ponto de chorar por mim?!
— Sim, prima. Você é muito especial para Deus e para nós também.
Nosso maior desejo era que você pudesse ter um encontro com o Senhor, mas
entendemos que Ele tem o tempo próprio para trabalhar e então nos
colocamos à Sua disposição para sermos usadas no que fosse necessário. Na
hora do apelo também levantamos um clamor por sua vida, pois percebemos
como você estava dividida e inquieta. — Complementou Nanda.
— E você saiu tão rápido da igreja que nem tivemos tempo de orar
com você. Quando chegamos lá fora, vimos que Noah já estava fazendo isso.
Esperamos ele terminar muito felizes pelo que Deus estava começando em
sua vida.
A essa altura meus olhos já haviam aberto suas comportas e filetes de
água escorriam intensamente um após o outro. Até pensei que o reservatório
de lágrimas havia acabado dentro de mim, por ter sido tão usado nas últimas
24 horas. Levantei-me e sentei entre as duas, que me abraçaram forte.
Agradeci por tudo que fizeram por mim.
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Eu estava com uma calça legging preta, regata azul, tênis de corrida,
mochila nas costas e chateação no olhar. O guia da trilha nos dividiu em dois
grupos e eu não fiquei no mesmo que o anjo. E, pior ainda, Thami ficou. Se o
olhar dela tivesse legenda seria “Morra de inveja, garota”. Comecei a pensar
que talvez o que ela disse na porta do quarto tivesse sentido. Entristeci-me
com a possibilidade deles terem algum caso.
— Partiu conhecer a cachoeira mais linda de Gruta Alta?! — Falou o
guia com as duas mão em volta da boca e todos responderam com gritos e
assovios. Seguimos juntos até a entrada da floresta, e então percebi que o
guia do outro grupo era o próprio Noah.
— Galera, a partir daqui nós vamos nos dividir. O Noah vai conduzir
o grupo dele em uma trilha e nós vamos em outra. Em certos pontos do
caminho, as duas trilhas se encontram e elas levam ao mesmo lugar. Serão
duas horas de caminhada. Todos prontos?!
“Ai, moço, estar pronta é algo muito forte. Ainda mais depois de
ficar sabendo que eu não vou fazer a trilha com o Noah. Eu só vim, repito, eu
só vim, por causa dele e vocês fazem isso comigo?! Mas tudo bem, já que
estou aqui mesmo... Pelo menos vou poder vê-lo na cachoeira.”
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pelo terror. Chorava feito um bebê e não conseguia encontrar saída. O que
aconteceria comigo? Como num piscar de olhos, tudo ficou claro. Mas não
parecia a luz do sol. Era algo muito mais forte. A luz muito mais intensa.
Apertei os olhos e tentei escondê-los atrás de minhas mãos. A luz estava a
ponto de me cegar, quando percebi Quem era. As lágrimas multiplicaram-se
e eu caí no chão, prostrada.
— ‘Assim diz o Senhor: Eu mesmo buscarei as minhas ovelhas e
delas cuidarei. Assim como o pastor busca as ovelhas dispersas quando está
cuidando do rebanho, também tomarei conta de minhas ovelhas. Eu as
resgatarei de todos os lugares de onde se perderam num dia de escuridão.’
— E então o Deus da voz suave como uma brisa e forte como um trovão me
pegou pelas mãos e me conduziu ao rebanho, o qual, com grande festa,
aguardava minha chegada. Ele tinha vindo me salvar.”
com a cabeça numa pedra. Estava esparramada no chão com dor em cada
pedacinho do meu ser, a cabeça latejando. Tentei levantar, mas foi em vão.
Não consegui.
— Betina!
Olhei para trás e, com a visão um pouco embaçada, avistei um anjo,
que tinha vindo me salvar. Fechei os olhos e respirei bem fundo, aliviada. E
então, tudo escureceu.
tenso. Aquele lugar no meio da floresta, aquela situação... Tudo tão perfeito!
Estava me sentindo na cena de um filme de romance.
— Obrigada por tudo que fez por mim. — Sussurrei e levei meu rosto
próximo ao dele. Seus lábios tremiam levemente e ele tentava desviar os
olhos de mim, mas sem sucesso. Aproximei-me a ponto de sentir sua
respiração e, numa fração de segundos, encostei minha boca nos lábios mais
carnudos e tentadores que tinha visto na vida. Com movimentos suaves, abri
a boca para partir do beijo superficial para um arrebatador. Mas ele se afastou
antes e, com os olhos desnorteados, pareceu despertar do transe.
— Que isso, Betina?! O que você fez? — Ele ficou de pé e, aflito,
passava as mãos no cabelo bagunçado. Eu também acordei do que para mim
era um sonho e senti o rosto queimar de vergonha. Sem saber o que fazer e
muito constrangida por sua reação, olhava para tudo, menos para ele.
— Tudo bem, deixa pra lá. Isso só não pode acontecer novamente! —
Noah falou colocando as mãos na cintura, com tom de chateação e
desapontamento.
— Me perdoa, por favor. Eu fiz tudo errado, não podia tê-lo beijado
assim, mas é que essa situação... Tudo aqui... Me perdoa! — Minha voz
tremulava ao passo que tentava engolir o choro. Que humilhação!
Noah olhou-me piedosamente e aproximou-se de mim. Mas não
muito.
— Não precisa ficar assim. Eu que tenho que me desculpar por ter
reagido desse jeito, é que, que... Isso não acontece há muito tempo. Essa
proximidade... Eu te peço perdão porque não consegui me afastar a tempo e
acabei me envolvendo. Não era pra ter acontecido.
Levantei-me do lugar em que estava sentada e senti uma fisgada
sinistra na perna direita. Já ia para o segundo tombo do dia, quando com um
rápido reflexo Noah me segurou. Minha cabeça encostou-se ao peito dele e
olhei para cima. Noah estava com a boca aberta e me olhando mais
embaraçado que antes. Voltou-se para o lado parecendo procurar um bom
lugar e me colocou sentada ao pé de uma árvore.
— É, acho que não está tudo cem por cento aí dentro. Não levante
mais até o socorro chegar, certo?
Noah estava tão confuso que chegou a dar dó. Enquanto ele andava
de um lado para o outro e observava por entre as árvores para ver se alguém
chegava, eu curtia minha fossa. Cara, que idiota! O vexame que passei ainda
estava preso na garganta. Com que cara olharia para ele agora? O pior é que
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não tinha mais ninguém ali e não poderíamos ficar em silêncio por muito
tempo. Apesar de estar me sentindo mal, uma coisa era certa: aquele beijo
deixou-o balançado. Talvez fosse por isso que ele estivesse tão
envergonhado.
Por suas palavras, parecia realmente que aquela história de que ele
não beijava ninguém era verdade. Eu devia ter acreditado nas meninas. Mas é
óbvio que ele nem sempre foi assim, porque o ouvi dizer que “isso”, no caso
o beijo, não acontecia há muito tempo. Cheguei atrasada. Me dei mal. Mas, já
que estávamos ali...
— Há quanto tempo você não beija ninguém? — Peguei-o de
surpresa.
— Há uns 10 minutos. — Agora foi ele quem me pegou de surpresa.
— Tirando esse, como podemos considerar? Acidente? Faz dois anos e meio.
— Hum... Entendo. Você é muito feio e canta pior ainda, as meninas
não devem querer nada com um garoto assim. — O que eu estava falando?!
Acho que minha boca resolveu funcionar sem o cérebro mandar. Depois de
ter levado aquele toco colossal, eu estava elogiando entrelinhas o garoto que
fez isso!
— Pois é. Pode ser isso também. — Ele respondeu sério. Me dei mal,
parte dois. — Mas, na verdade, está mais para uma escolha que fiz. Decidi
ser puro e levar a vida no estilo Jesus de ser.
— E você acha que beijar na boca não está dentro da forma “Jesus de
ser”? — Instiguei com certa ironia. Ele suspirou profundamente e parou com
os braços cruzados.
— Betina, o que fazemos com os objetos?
Cheguei a cabeça para trás e apertei os olhos, sem entender o que
aquela pergunta tinha a ver com a conversa. Ele estava de pé a uma boa
distância e fitava-me nos olhos.
— Sei lá. Usamos? — Levantei o canto da boca e fiz uma careta por
não saber ao certo se aquela era a resposta. Ele fez que sim com a cabeça.
— Objetos têm a única função de serem usados, suprir necessidades e
desejos. Pessoas, não. Essas devem ser cuidadas, amadas e respeitadas. Só
que esse mundo louco que a gente vive inverteu tudo e ensina a amar coisas e
usar pessoas. O ficar faz isso. Você tem um desejo, então busca a pessoa que
os satisfaça por algum tempo. Não são criados laços, não há amor e muitas
vezes nem o desejo de amar. É só um interesse físico mesmo e egoísta.
Depois que aquela pessoa te ofereceu o que queria, você a descarta, e ela
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descarta você também. Mas, olha, as pessoas são muito valiosas para serem
tratadas como descartáveis. — Noah falava com tanta vivacidade, como se
não houvesse assunto melhor que aquele. — E respondendo à sua pergunta
inicial: sim. Beijar na boca está dentro do Jesus life style, mas quando vem
acompanhado de compromisso. Os relacionamentos na Palavra de Deus são
norteados pelo compromisso e não em diversões passageiras.
Uau. Minha admiração por ele elevou-se a outro nível. Se eu já
achava difícil encontrar algum menino como o Noah, depois de ouvi-lo falar
isso então... Acho que ele é exemplar único da categoria.
— Tudo bem, você já percebeu que eu não sou muito adepta a essa
teoria. Mas me conta, foi difícil parar de ficar?
— Você está começando sua caminhada agora, Deus ministrará a
vontade dEle ao seu coração. E sobre a sua pergunta... Abandonar o pecado
nunca é fácil porque somos humanos. Sofri um bocado no início, mas quanto
mais entendia sobre o amor de Deus, mais ansiava pelo que Ele quer. Nunca
será fácil, mas com a ajuda do Espírito Santo, a gente consegue.
— Você já ficou com a Thami? — Ih, quando percebi já tinha saído...
Mas de qualquer forma, eu precisava saber sobre esse assunto e matar minha
curiosidade, principalmente agora, que estava “fora do jogo”. Ele levantou as
sobrancelhas e colocou as mãos nos bolsos da calça tactel. Ah, mas eu não ia
ficar sem minha resposta.
— Pretende namorá-la? Porque ela, pelo visto, é caidinha por você.
Disse hoje cedo que até tem um batom que é o seu preferido. — Eu acho que
o ego ferido faz as pessoas serem mais caras de pau. Comigo estava sendo
assim e eu tinha certeza de que mais tarde me arrependeria de ter feito esse
comentário.
— É uma longa história que não vejo necessidade de contar. E sobre
o batom, Thami deve ter se enganado, pois eu nunca disse nada relacionado a
isso para ela. — Ele foi em direção a sua mochila e desviou 200 km do
assunto: — Você deve estar com fome. Tenho uns sanduíches aqui, vou
pegar pra você.
— Eu não quero. — Respondi secamente, mas por dentro me dividia
entre saltitante de felicidade por saber que a história do batom era mentira e
uma profunda agonia por não fazer ideia do que podia significar aquele “é
uma longa história”.
— Mas você está fraca depois de tudo que aconteceu, precisa se
alimentar. — Me entregou um pacote enrolado em papel alumínio.
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rosto sério do Noah. Naquele estado entre dormir e estar acordada, abri os
olhos e tive a visão um pouco embaçada dos meninos que estavam me
levando de volta. Meu coração se alegrou e me senti muito especial por ser
tratada tão bem por todos eles. Agradeci a Deus por nada de pior ter
acontecido e acabei adormecendo.
— Betina. — Ouvi um sussurro e abri os olhos, que se encontraram
com os dele. Noah apertou os lábios em um sorriso tímido e disse que
estávamos chegando. Despertei-me rapidamente do sono que não deve ter
durado cinco minutos e percebi que estávamos na saída da trilha, que se
encontrava com uma porteira de madeira, dando acesso ao sítio. Olhei para
frente e percebi a plateia enorme que nos aguardava. Ao nos avistar, todos
começaram a bater palmas e soltar assovios altos e estridentes. Notei que
entre eles também estavam mamãe, papai, Guto e Zuleide, que vieram
correndo ao meu encontro.
Noah me colocou no chão cuidadosamente e eu rapidamente fui
agarrada por minha família. Nanda e Sissa também vieram participar do
abraço coletivo. Mamãe chorava horrores e fazia um zilhão de perguntas. Eu
fiquei um pouco zonza com tanta movimentação, mas também feliz, por estar
ali com eles, bem e em segurança. Depois que me deixaram respirar um
pouco, vários adolescentes e jovens se aproximaram, me abraçando e fazendo
mais perguntas, dentre elas a tão temida: “Como você se perdeu?”. E,
sequentemente, ia repetindo minha mentira. Alguns faziam cara de que não
engoliram a história, mas o que importa é que a maioria pareceu acreditar e se
compadecer de mim, dizendo inúmeros “Glória a Deus por estar tudo bem”,
“Deus é bom” e por aí vai.
Fui resgatada por meu pai daquele furdunço que estava me
sufocando. Nanda tinha guardado minhas coisas na mala, que já estava no
carro. Enquanto meus pais conversavam com o pastor (até o pastor da igreja
foi lá no sítio acompanhar o andamento do meu resgate!), depois de terem
agradecido fervorosamente cada um dos meninos que me buscou, foi a minha
vez de agradecê-los. Abracei cada um e tive de conter o choro. Eles
realmente foram heróis para mim naquele dia. O último a ser abraçado foi o
Noah, que pelo menos aquele dia eu podia chamar de meu anjo.
— Obrigada por tudo e me desculpe mais uma vez. — Baixei os
olhos, enrubescida.
— Desculpas pelo quê? — Ele perguntou, mas logo arregalou os
olhos e balançou a cabeça, sinalizando que havia se lembrado do que se
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No caminho, tive que contar como tudo aconteceu, tintim por tintim.
Fui interrompida vinte vezes pelos comentários dramáticos da mamãe: “Ai,
você podia ter morrido!”, “Imagina se esse homem tivesse feito algo com
você? Eu nunca me perdoaria por tê-la deixado vir nesse acampamento” e
desse nível pra cima. Sem contar as broncas — como eu já esperava — por
ter sido tão desatenta, sem responsabilidade, descuidada, imprudente... E
nesse ritmo chegamos a Gruta Alta. Se todos já olhavam para o carro
enquanto passávamos pelas ruas da cidade indo em direção ao hospital,
quando descemos dele então, nem se fale. A cidade pareceu parar e olhar
somente para a direção em que estávamos. Enquanto meu pai estacionava o
carro, fui amparada por minha mãe e Zuleide, que me levaram à recepção.
Chegando lá, a recepcionista falou bem alto:
— Ela é a menina que se perdeu na floresta perto da cachoeira?! É só
me dar os documentos para fazer a ficha.
A Zuleide percebeu minha face desgostosa desde que desci do carro e
notei tantos olhares lançados em minha direção, então depois da fala da
recepcionista, se preocupou em me informar o óbvio:
— Aqui as notícias correm rápido.
“É, eu percebi”, pensei mal-humorada. Após alguns minutos
esperando, fui chamada para ser analisada por um médico e me submeter a
exames. Duas horas depois, deixamos o hospital tranquilos por tudo estar
aparentemente bem dentro de mim. As recomendações médicas foram
repouso por dois dias e alguns anti-inflamatórios. A dor na perna direita fora
causada pelo impacto com que bati no tronco na hora da queda e, além do
ferimento da cabeça e alguns arranhões pelos braços, estava tudo certo
externamente também. Eu estava suada e suja e ansiava desesperadamente
por um banho. Ao chegar à casa da Zuleide, fui direto para o chuveiro.
Depois de um dia tão cheio de adrenalina como aquele, eu precisa descansar.
E também comer. Minha mãe fez uma sopa de macarrão com legumes
excepcional. A carne de panela também não ficava trás, estava uma delícia.
Bati um verdadeiro prato de pedreiro e corri para o quarto. Deite-me na cama
e, pela primeira vez no dia, meu corpo relaxou. Meus pés latejavam e o efeito
dos remédios já podiam ser sentidos, as dores no corpo estavam quase
sumindo.
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***
mais uma adolescente que dorme dias na casa da amiga, comendo brigadeiro
e assistindo maratonas de séries da Netflix, sem nenhuma responsabilidade
além de tirar notas boas no colégio. Mas, se era assim que a vida dela seria
dali pra frente, eu estaria ao lado dela em tudo! Principalmente a partir
daquele momento, que eu estava com o Senhor, queria contar a ela que não
precisava ficar sem esperança, porque existe um Deus que a ama e cuida dela,
apesar de seus erros e pecados. Mal via a hora de encontrar minhas amigas e
compartilhar sobre o meu encontro com Deus! Mas, mesmo ansiosa por esse
momento, eu não tinha tanta pressa para que ele chegasse. Cada coisa tem seu
tempo, como diz no livro de Eclesiastes (o Noah citara esse texto em algum
lugar que não lembrava onde), e aquele momento, em minha humilde
opinião, era o tempo de continuar em Gruta Alta, me divertindo e aprendendo
mais sobre Deus com os amigos que fiz ali.
— Pai, eu quero muito ficar. Por favor, eu estou bem e prometo que
respeito os dois dias de repouso que o médico pediu direitinho! — Clamava.
Ele respirou profundamente e olhou para minha mãe, que pela cara não
demoraria a continuar segurando as palavras.
— Não dificulte as coisas, querida. Nós vamos embora hoje à tarde!
— Decretou meu pai e meus olhos molharam-se ao perceber que eles não
cederiam tão fácil.
— Mas... Mas... — As palavras fugiram da minha boca e eu fiquei
gaguejando, à medida que sentia meu rosto ser preenchido por desalentadas
lágrimas.
— Por acaso todo esse sofrimento tem a ver com aquele menino que
chegou com você no colo ontem, no sítio? Eu falei pra você “Guarda o
coração”, mas parece que não adiantou! Você nem queria passar as férias em
Gruta Alta e há uma semana seria a primeira a entrar no carro para ir embora
daqui! Por que esse show agora?!
Minha mãe falou isso na frente do meu pai, que vergonha! Está certo
que eu também queria curtir mais alguns dias perto do Noah — se é que isso
aconteceria — mas não era só por ele que eu insistia em ficar.
— Nada a ver, mãe. Eu quero ficar por causa dos amigos que fiz aqui
e...
— Ué, mas hoje tudo pra vocês adolescentes não é WhatsApp,
Facebook... Use as redes sociais pra algo melhor do que só ficar postando
foto de “look do dia” e conversa com os amigos daqui, ora!
Engoli a raiva que subitamente surgiu dentro de mim e contei até três
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a gente nunca conversou com você sobre um encontro pessoal que deveria ter
com Deus. Pedimos perdão a Deus por não termos nos atentado que suas
atitudes não eram somente de “adolescente rebelde” e sim de uma
adolescente que não conhecia a Jesus de verdade. Queremos ser mais
presentes em sua vida, espiritualmente falando, e também que conte conosco
em sua caminhada com Cristo. Isso não significa que devemos permanecer
em Gruta Alta. — “Ai mãe, sua fala estava tão emocionante”, suspirei. Pelo
jeito, nada estava feito. — Mas significa que mesmo um pouco contrariados,
ficaremos aqui por mais esses dias.
Yes! Tudo estava feito! Uhul!
— Ai, eu amo vocês! — Gritei e pulei no pescoço dos dois, que me
abraçaram apertado.
— Ei, cuidado com essa perna dolorida aí, mocinha! Não quer
estender os dias de repouso, né? — Falou meu pai, enquanto eu tentava
disfarçar a dor que senti ao forçar a perna direita para pular em cima deles.
— Obrigada mesmo, vocês são os melhores pais do mundo! —
Continuei expressando minha alegria enquanto eles sorriam.
— Que tal uma oração pra brindar esse momento?! Só Jesus mesmo
pra fazer Betina até chorar para ficar em Gruta Alta! — Brincou meu pai,
antes de iniciar a oração. Palavras não podem descrever o que eu senti
naquele momento. Era um misto de gratidão, felicidade, sensação de que
muitas coisas boas estavam por vir e, principalmente, o amor de Jesus sobre
nós! Depois que oramos, saíram do quarto deixando-me a sós. Logo tratei de
pegar meu celular e mandar um SMS para Nanda e Sissa. Queria vê-las e
compartilhar as novidades urgentemente!
***
— Caraca, Bê, que desespero! Imagino o que você deve ter sentido
perdida dentro daquela mata. — Sissa falou cheia de empatia, após eu contar
tudo que aconteceu nos momentos em que fiquei perdida. Só omiti o beijo
que roubei de Noah.
— Pois é, não foi nada legal. Graças a Deus ficou tudo bem! Mas me
contem, o que aconteceu no acamps depois que eu fui embora? Queria tanto
ter ficado até o encerramento!
Elas me contaram tudo que aconteceu após eu ter voltado para Gruta
Alta. Nanda e Sissa passaram o finzinho da tarde e início da noite comigo.
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homens “para que vejam as suas boas obras e glorifiquem ao Pai de vocês,
que está nos céus.”(Mt 5.16b). Fiz uma descoberta incrível naquela tarde: é
meu dever mostrar Jesus através de mim! E conseguirei tal façanha agindo
como Ele, seguindo o que Ele fez. Por isso Noah sempre dizia que nós
devemos ler muito a bíblia, porque é por ela que podemos descobrir a
maneira de viver que agrada a Deus.
Li quase todo o livro de Mateus naquela noite e fiquei surpresa
comigo mesma. Afinal, ler a bíblia sempre esteve entre as atividades mais
chatas da minha vida e de repente eu estava ali, diante dela, amando absorver
tudo que tinha para me oferecer. Algo lindo estava acontecendo dentro de
mim, como se a minha vida tivesse começado de verdade no momento em
que fui encontrada por Ele.
Deixei a bíblia ainda aberta em cima do criado mudo e fui jantar. Na
mesa, muitos sorrisos e histórias, conversas jogadas fora e uma surpresa:
prima Zuleide me presenteou com um livro de devocional para garotas. O
livro era lindo e dividido entre reflexões bíblicas, dicas de moda, espaços
para anotações, um calendário anual de leitura bíblica e diversas outras
coisas. Fiquei muito agradecida e comecei a explorá-lo ali mesmo, na
pequena mesa de jantar da cozinha. Minha mãe adorou o livro mais que eu e
perguntou onde a Zuleide havia comprado.
— Foi numa livraria cristã que tem aqui na cidade. Lá tem livros
ótimos!
— Tem mais livros cristãos para adolescentes? — Perguntei cheia de
entusiasmo, porque a leitura é uma de minhas paixões.
— Tem vários! Se você quiser, posso te levar lá.
— Eu quero com certeza. — Falei, abrindo um sorrisão.
Depois disso, voltei para o quarto e coloquei meu pijama, disposta a
dormir. Mas fui impedida porque certo beijo invadiu meus pensamentos.
Desde que cheguei da floresta, tantas coisas aconteceram que ainda não tinha
parado para pensar no fatídico beijo que dei no garoto mais lindo e
encantador daquele lugar. Pus-me então a pensar e repensar os momentos em
que passamos a sós na mata e meu coração ficou apertadinho. Uma porque,
apesar de tê-lo beijado (e ter sido mágico!), recebi o pior toco da minha vida;
e outra porque eu achava que estava realmente gostando dele. Mas Noah era
uma incógnita! Ao mesmo tempo em que deu a entender que ficou
incomodado com a minha aproximação de Pietro na trilha, parecia querer me
mostrar que eu não tinha mínimas chances. Mas mesmo que ele agisse
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falando. Eu precisava ler aqueles textos bíblicos que ela citava depois para
fixar o que aprendi. Aquilo era muito valioso para ser esquecido!
Terminamos nosso estudo e partimos para uma sessão cinema. Assistimos a
um filme que a Zuleide tinha em casa mesmo e comemos muita pipoca.
Como sentiria saudades das duas quando voltasse para o Rio de Janeiro...
***
Naquele dia, meus pais também resolveram ir à igreja, o que agregou uma
porção a mais de tensão em meu coração. Não aguentando tanta ansiedade,
acabei confessando a verdade para Nanda e Sissa antes do culto. Elas oraram
comigo e disseram que se Deus estava me mandando tomar tal atitude, era
para eu obedecer e que Ele me honraria pela obediência. Sissa citou um
versículo bem propício: “Humilhem-se diante do Senhor, e ele os exaltará”
(Tiago 4.10). Depois da conversa com elas, fiquei mais tranquila.
***
***
***
Despertei de um sono profundo com a minha mãe me chamando.
Abri os olhos e pude observá-la próxima a cama. De imediato ocorreu-me
que eu ainda não tinha visto meus pais depois do culto do dia anterior. Isso
significava que não demoraria para a bronca sobre a minha mentira chegar.
— Bom dia, filha.
— Bom dia, mãe. Que horas são? — Perguntei, espreguiçando-me.
— Dez pras seis. Se ajeite e venha para a cozinha, eu e seu pai
queremos conversar com você. — Disse e saiu do quarto. Troquei de roupa
preparando-me psicologicamente para o sermão que estava por vir. Cheguei à
cozinha pronta para a viagem de volta pra casa com meu cabelo preso em um
rabo de cavalo, camiseta rosa, calça jeans e o bom e velho All Star branco
nos pés. Sentei-me à mesa e, depois de cumprimentar a todos, preparei meu
Nescau. Papai me observava com os olhos verdes semicerrados e eu resolvi
fixar os meus no copo com achocolatado.
— Betina. — Chamou-me logo após pigarrear. Levantei os olhos em
direção a ele. — Está com a mala arrumada?
Balancei a cabeça em sinal afirmativo.
— Que bom, porque fiquei sabendo que a Zuleide detesta bagunça.
— Depois de todos esses dias por aqui, acho que essa informação
chegou tarde demais. — Respondi.
— Mas acredito que vai ser de grande serventia para as próximas
semanas. — Falou colocando uma colher de cereal na boca. Eu não entendi o
que ele quis dizer. Meus pais trocaram olhares confidentes com a Zuleide.
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olhos:
— De onde você tirou isso?!
Ela lançou-me um olhar zombeteiro. Sissa não esboçou nenhuma
reação.
— Clarissa, me defende! Você sabe que isso não é verdade! — Forcei o
drama com a mentira e me arrependi segundos depois. Claro que era verdade,
eu só não queria que elas soubessem disso. Sissa olhou-me como se dissesse
que não podia fazer nada. Nanda passou o braço direito por sobre meus
ombros.
— Betina, a gente sabe do seu interesse pelo Noah desde a primeira vez
em que o viu. Não é errado se interessar por alguém, mas esconder isso das
primas-e-agora-amigas foi um crime! — Nanda repreendeu-me e Sissa
resolveu falar.
— Depois do que te falamos sobre ele, era de se esperar que você não
contasse nada sobre seu interesse a nós. Quero deixar claro que nós só
quisemos te alertar sobre as escolhas dele, para que você não sofresse caso
decidisse seguir em frente com o que estava sentindo.
— E também para que eu não visse de perto a fúria da Thami sobre
uma garota interessada em Noah, né?
— Também. E pelo jeito, você já viu. — Nanda mirou o chão com
olhar pesaroso.
— Como você sabe?! — Questionei surpresa.
— A gente sempre acaba sabendo, não é mesmo, Sissa?
Sissa deu de ombros. Nós continuamos o caminho em silêncio, mas
antes de virarmos a esquina da rua da igreja, resolvi soltar o que estava preso
em minha garganta há dias. Eu precisava contar para alguém e já que a Luca
não devia ter nenhum sinal de comunicação há menos de cinquenta metros de
distância e Beca parecia ter esquecido que eu existia, contei àquelas que
estavam se mostrando mais que simplesmente amigas para mim. Elas eram
irmãs em Cristo de verdade e isso contava muito. Resolvi dar mais um voto
de confiança e subir do patamar primas-amigas-irmãs-em-Cristo para primas-
amigas-irmãs-em-Cristo-que-falam-sobre-garotos.
— Eu dei um beijo em Noah.
As duas pararam bruscamente.
— Como assim?! — Nanda questionou absorta.
— Beijo na... boca? — Sissa me olhava desconfiada.
— É, gente. Sabe quando dois lábios se encostam?! — Debochei. As
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duas não acharam graça. Comecei a pensar que talvez alguma delas gostasse
dele. Ai, minha nossa, será? Um arrepio de desespero passou pelo meu corpo.
— Como foi isso? Quando? Onde? — Nanda me interrogava.
— Noah não deve beijar ninguém há uns três anos. — Sissa comentou
pensativa.
— Dois anos e meio. — Respondi e elas me encararam juntas.
— Foi na trilha, né? Vocês ficaram um bom tempo sozinhos esperando
socorro... Nunca imaginei que Noah pudesse fazer o que ensina a todos para
que não façam. — O tom de voz da Nanda era de decepção.
— Não, meninas, não aconteceu como vocês estão pensando. Eu disse
que eu o beijei, e foi o tempo suficiente para que ele caísse em si e se
afastasse atordoado. Foi praticamente um selinho, nada de troca de saliva e
essas coisas.
Elas me olhavam atônitas.
— Muitas meninas da igreja teriam uma inveja mortal de você se
ficassem sabendo. — Nanda falou, ao que foi interrompida por Sissa:
— Mas elas não ficarão sabendo. Aliás, ninguém mais ficará sabendo,
porque pelo que percebi vocês já se acertaram por lá mesmo, certo?
— Sim, Sissa. Nunca tive tanta vergonha em toda minha vida, levei um
fora colossal, mas aprendi a lição.
Caímos na gargalhada e eu contei em detalhes o que aconteceu.
— Eu entendi o que vocês queriam dizer sobre o compromisso de
pureza que ele fez. Nunca tinha visto algo parecido, por isso não acreditei que
um garoto de 18 anos em pleno século XXI esperasse para trocar beijos
somente em um relacionamento sério. Mas depois desse episódio, entendi
que nem todos são iguais a mim.
— Ou ao que você era. — Sissa comentou e eu não respondi nada.
Chegamos à igreja atrasadas e adentramos ao templo na hora que o ministério
de louvor guardava os instrumentos. Noah estava agachado colocando a
guitarra em seu suporte, ao se levantar olhou para a igreja e sua expressão foi
de surpresa. Eu estava no corredor, esperando as meninas entrarem e se
sentarem em uma fileira de bancos. Seus lábios abriram-se em um sorriso
iluminado e eu respondi ao sorriso, um pouco mais contida que ele. Sentei-
me tentando controlar as batidas desritmadas do coração.
A Escola Bíblica terminou e nós ficamos do lado de fora conversando
com algumas pessoas. Pietro, o gatinho que me carregara na floresta, se
aproximou da rodinha e olhou-me admirado.
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***
bebíamos água.
— Eu acho que nunca corri tanto em toda minha vida! — Dramatizei.
— Você correu bem.
— Não é o que disse minutos atrás. — Encarei-o com olhar divertido.
— Você não levou a sério minhas provocações, né? — Alarmou-se.
Eu fiz um biquinho com os lábios e coloquei o dedo indicador na cabeça, em
sinal de pensamento.
— É claro que não! — Disse por fim e Noah soltou um “ufa!” bem
alto.
— Acho que a última vez que corri tanto assim foi quando encontrei
um boi “meio irritado” solto pela fazenda.
— Falando em fazenda... Acho que vou me aposentar e não vou ter
conhecido a terra das aventuras do Tarzan aqui! — Zombou Cássio. Noah
coçou a cabeça.
— É verdade, Noah. Você nunca levou ninguém lá! — Incitou
Nanda.
— Que isso, galera, é que...
— Qual a desculpa dessa vez? — Provocou Pietro, em um tom não
tão de brincadeira assim. Noah prendeu o ar e foi soltando aos poucos.
— Tudo bem. Pode ser amanhã?
Todos se entreolharam espantados.
— Tá falando sério?! — Questionou Matheus com a altura da voz
elevada pela euforia.
— Sim, gente! Podemos nos encontrar às duas horas na praça?
O entusiasmo da galera era visível, mas Noah mantinha no rosto um
sorriso amarelo.
Virei os olhos para o lado, sem mexer meu corpo. Era Pietro.
— No Autor dela.
Ele sorriu, deixando os olhos pequenininhos e as covinhas à mostra.
— Você é uma menina especial.
— Obrigada.
— Desculpe pela brincadeira de mais cedo, acho que fui
inconveniente. — Seu rosto branquinho ganhava novos tons de vermelho a
cada palavra que proferia.
— Acha? Eu tenho certeza. — Respondi com uma expressão serena,
mas por dentro adorando espetá-lo.
— Pelo jeito o inteligente aqui acabou de perder a chance de sair com
uma garota sensacional.
Arqueei as sobrancelhas e voltei a ficar em pé na água — que
chegava quase até ao meu colo.
— Quer dizer que o convite para tomar sorvete era sério?
— Ainda é. — Ele cravou os olhos em mim e eu fiquei sem saber o
que responder. Apenas mergulhei e fui nadando até os outros. Ele veio atrás
de mim.
Sissa e Nanda disputavam uma partida de briga de galo contra Cássio
e Matheus. Noah estava em cima de uma pedra rindo e dando pitacos na
disputa. Fiquei dentro d’água a uma distância segura do quarteto, pensando
que poderia ser o Noah me dando um mole daqueles e não Pietro. Não me
senti a mais exemplar das pessoas por pensar isso.
— Que fome bateu agora! Alguém trouxe algo para comer? —
Matheus perguntou. Ninguém havia levado nada.
— Bom, então eu acho que é hora de voltarmos e comermos aquele
lanche caprichado! — Noah provocou alguns suspiros de alívio em nós, que
compartilhávamos da mesma fome que o Matheus. Nos empoleiramos no
velho trator e fizemos um percurso cheio de adrenalina na volta. O anjo
estacionou perto da baia dos cavalos e nos direcionou pela escadaria até a
entrada do que podemos chamar de mansão. Ninguém abriu a boca ao
cruzarmos a imensa e sofisticada sala de estar e passarmos pelo corredor
cheio de portas fechadas, até chegarmos à cozinha, que parecia ter vindo
diretamente de uma revista de decoração. Era enorme — como tudo naquela
casa — e tinha os eletrodomésticos, louças e enfeites esbanjando
modernidade.
— Caramba, que cozinha irada! Na verdade, que casa irada! —
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— Caraca, que sorte! Seus pais e avós devem mimar muito você!
— Eu só tenho minha avó. Meus pais morreram em um acidente de
carro há cinco anos e meu avô de câncer há dois.
Meu sorriso aberto de antes fechou-se imediatamente. Tem como
rebobinar essa cena e apagar o meu último comentário, produção?
— Oh, Noah, me desculpe...
— Que isso, como você ia imaginar?! — Ele tinha um sorriso triste
no rosto. — Eu ia fazer treze anos, estava tudo certo para uma festinha estilo
“arraial” aqui na fazenda. Tinha convidado meus amigos mais chegados e
pela primeira vez consegui que nenhum convidado pomposo da minha avó
viesse. Eu estava cheio de alegria com os preparativos, mas meus pais
precisaram fazer uma viagem de última hora. Eles ficariam dois dias fora e
retornariam no dia do aniversário. Fiquei um pouco triste, mas pelo menos
eles chegariam a tempo da festa. O que não aconteceu... — Noah suspirou. —
Foram terríveis os dias que se seguiram. Não teve festa e muito menos
alegria. Eu morava com eles em Gruta Alta, mas depois do acidente vim
morar com meus avós aqui na fazenda. Eu sofri absurdamente.
— Não precisa contar mais nada se não quiser... — Coloquei uma
mão sobre seu ombro em sinal de compadecimento. Ele continuou.
— Meus avós tentaram me ajudar de todas as formas, fiz terapia
alguns anos, mas a única maneira que encontrei de extravasar toda a minha
tristeza e decepção foi aprontando tudo que eu podia. Ia a todas as festas e
chopadas da região, entrei em coma alcóolico umas seis, sete vezes... Não
queria estudar, repeti de série, armava todas na escola, ficava com muitas
meninas e não assumia compromisso com nenhuma, fora os muitos corações
machucados que deixei pelo caminho. Experimentei alguns tipos de drogas,
mas graças a Deus não me apeguei a nenhuma. Eu causava uma tremenda dor
de cabeça em meus avós e quem mais sofria era o senhor Carlos, meu amado
vovô. Ele não dormia enquanto eu não chegasse da rua, e quantas vezes eu o
xinguei e levantei a voz pra ele... — Seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Mas você era tão novinho... Como conseguiu fazer tudo isso? —
Perguntei.
— O que não se pode fazer em uma cidade pequena quando seus
avós são os maiores e mais influentes fazendeiros da região? Mesmo com
meus 14, 15 anos, eu tinha passe livre em qualquer festa. — Ele parou uns
instantes, observando o céu manchado de laranja cintilante. — A revolta em
meu coração era muito grande. Eu só era um garoto e não sabia onde afogar
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minha dor. — De repente, a opacidade dos seus olhos deu lugar a um brilho
sem igual. — Mas aí eu conheci Jesus. E tudo mudou.
— Como isso aconteceu?! — Questionei maravilhada.
— Levei uma suspensão na escola porque tinha aprontado, pra variar.
Mas naquele dia eu fiquei muito mal, porque meu avô tinha acabado de
descobrir o câncer e eu não queria chateá-lo com a notícia. Sentei-me em um
canto afastado lá no colégio mesmo e fiquei pensando em tudo que estava
vivendo e remoendo a minha tristeza. A ideia de perder mais alguém que
amava me dava calafrios. Sem que eu percebesse, um garoto da minha sala se
aproximou e sentou ao meu lado. Eu achei aquilo no mínimo estranho,
porque eu nem falava com ele direito. O Davi perguntou se estava tudo bem
comigo e eu não respondi. Mas mesmo assim ele começou a falar várias
coisas sobre um Deus que me amava muito e que podia me dar alívio, porque
Ele já havia carregado todos os meus fardos. Ele citou o versículo onze de
Mateus 28: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e sobrecarregados e
eu vos aliviarei. Pois o meu jugo é suave e meu fardo é leve”. Meu coração
aqueceu-se ao ouvir aquelas palavras, mas pensar em Deus era a última coisa
que eu queria. Ele já tinha tirado meus pais e estava querendo tirar meu avô
também. Então falei rispidamente para o Davi me deixar em paz porque eu
queria ficar sozinho. Alguns dias depois ele voltou a falar comigo, me falou
para dar uma chance para que ele me contasse um plano. Fiquei sem
entender, mas permiti. Foi aí que ele me falou sobre o Plano da Salvação e eu
comecei a fazer várias perguntas, fiquei até com pena porque algumas ele não
sabia responder. Naquele mesmo mês, fui para Gruta Alta andar de skate para
esquecer um pouco meus problemas, mas tudo que consegui fazer foi chorar
ao me lembrar do meu avô e como estava definhando rápido. Quando dei por
mim, estava com o skate em mãos entrando numa igreja. Por Jesuiscidência,
era a mesma igreja que Davi frequentava.
A voz de Noah agora estava animada e cheia de vida.
— Recebi Jesus naquela noite e nunca mais o deixei. Davi me
discipulou e eu mudei radicalmente de vida. Foi a alegria do meu avô. Ele
ficou tão feliz com minha conversão e mudança de vida que seu quadro
clínico até melhorou.
Eu ouvia o testemunho dele com muita curiosidade e expectativa.
Como Deus é lindo, não importa a circunstância, nada é páreo para o Seu
amor.
— Meses depois o vovô faleceu, mas meu coração foi consolado pelo
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início da viagem! Aquela que a Zuleide identificara como “não é flor que se
cheire”. Bem que ela disse que o neto da Laura Marquês era da igreja.
— O que foi? Você viajou nos pensamentos de repente.
— Não foi nada. — Parei por um instante, lembrando-me de outra
situação. — É por causa disso tudo que acabou de falar, que no dia da
mensagem sobre família no acampamento você ficou um pouco pra baixo?
Noah, que estava com os braços apoiados no parapeito da varanda e o
corpo levemente inclinado para frente, virou-se para mim. A serena luz do sol
caía sobre ele como um manto, deixando seu rosto ainda mais iluminado.
— Sim. Às vezes a saudade me pega de jeito, fico imaginando como
seria se os três ainda estivessem por aqui... Mas depois passa. — Ele mordeu
o lábio inferior e olhou saudoso para os imensos pastos que estavam em
nossa frente. Eu pensei em como a luz de Deus que estava nele nunca deixava
de brilhar, mesmo nos momentos de tristeza.
— Sobre hoje mais cedo... Qual o problema com os comentários dos
meninos sobre o carro? Sua Hilux é realmente maneira! — Resolvi acabar
com o rápido silêncio mudando quilometricamente de assunto e tirar a outra
dúvida que me deixou encucada aquela tarde.
— Betina, o carro é da minha avó, não meu. — Ele direcionou-me
olhos firmes. — Eu não curto muito a exaltação das coisas, sabe? Meus pais
sempre me ensinaram que eu não precisava ter para ser e mesmo que eles
tivessem condição de me dar o que quisessem, isso raramente acontecia. Sei
que não há nenhum problema em ter coisas maneiras e desfrutar delas com
nossos amigos, mas eu não me sinto à vontade ouvindo muitos elogios.
Quando preciso, prefiro andar com a mimosa mesmo velhinha, até conseguir
comprar um carro pra mim.
— Um discurso um pouco diferente do que costumamos ouvir por aí.
— Comentei admirada com a sua forma de ver a vida.
— Andar com Jesus é ser diferente. — Ele piscou para mim, que
respondi com um sorriso alegre.
— Betina? Noah? Está tudo bem por aí? — Nos viramos para trás e
vimos Sissa se aproximando.
— Acho que acabamos demorando demais em nosso papo. — Noah
falou baixinho e eu concordei balançando a cabeça.
— Nós ficamos preocupados, vocês sumiram do nada.
— Está tudo certo, só estávamos conversando. — Noah respondeu a
Sissa. Aproximei-me dela, puxei-a rumo à sala de jogos e sussurrei em seu
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ouvido:
— Depois te conto tudo.
Ela olhou-me espantada.
— Calma, não aconteceu nada demais. — Expliquei-me e percebi,
pela expressão de Sissa, o que o resto da galera não devia estar imaginando
sobre nosso “rápido” desaparecimento. Nós três seguimos para a sala de
jogos e quando eu e Noah entramos, Pietro desviou a atenção do videogame e
metralhou-nos com os olhos. Os outros não pareceram se importar e logo
chamaram Noah para uma partida no Xbox. Nanda puxou-me para um canto
e disse aos sussurros:
— O que vocês estavam fazendo para demorarem tanto?
— Conversando, ora bolas, o que mais poderíamos fazer?!
Ela deu uma piscadinha e finalizou: — Depois quero saber tudinho.
Uma hora mais tarde estávamos dentro do carro voltando para Gruta
Alta. Foi um retorno muito agradável, cheio de conversa jogada fora e
bastante risada, que fechou com chave de ouro uma das tardes mais divertidas
daquelas férias.
Noah levou cada um em sua casa e deixou eu e as meninas por último
na casa da Zuleide, pois naquele dia planejamos uma festa de pijama para
nosso trio. Sissa e Nanda desceram do carro primeiro e, antes de sair, eu
agradeci ao Noah pela conversa que tivemos naquela tarde.
— Pelo monólogo você quer dizer, né? Mais falei do que ouvi. —
Seus lábios abriram-se em um sorriso divertido.
— Foi legal saber um pouco da sua história. — Falei com sinceridade
e ele meneou a cabeça, contente. Coloquei os pés para fora do carro e, antes
que descesse, ouvi-o me chamar.
— Betina, posso te pedir uma coisa?
“Quantas quiser”, pensei, mas só respondi com “uhum”.
— Não comenta com ninguém o que te falei a respeito da minha avó?
— Pode deixar. — Passei um zíper imaginário pela boca. Ele sorriu e
eu desci do carro em um pulo.
Aproximei-me das meninas, que me observavam estarrecidas. Passei
por elas tranquilamente e abri o portão.
estava impressionada.
— Espírito Santo, tudo culpa dele. — Nanda soltou uma risada. —
Deus escolheu as coisas loucas desse mundo para confundir as sábias. É
louco passar a adolescência inteira sem beijar ninguém? Para os padrões do
mundo é! Mas para os padrões de Deus, não. Ele quer que a gente seja a
diferença nessa terra. Lembra quando falamos com você sobre ser sal e luz?
Nós estamos nesse mundo para fazer a vontade do Pai, viver em integridade o
que Ele planejou pra nós e isso significa andar na direção contrária do
mundo. Requer renúncia do nosso ego e vontades a maioria das vezes, mas
em troca ganhamos uma carne mortificada e um espírito dependente de Deus!
— Mas como se consegue isso, Nanda?! — Meus olhos vibravam.
— Buscar a Deus é fundamental. Como saber o que Ele quer se não
passar tempo com Ele? Na Palavra tem tudo que nós precisamos saber para
viver verdadeiramente como servos do Senhor e na oração nós construímos
intimidade e entrega a Ele. À medida que nos aproximamos de Deus, mais
nos afastamos do pecado, enfraquecendo a carne e fortalecendo o Espírito. E
lembre-se: “Quem é dominado pela carne não pode agradar a Deus”, isso está
escrito lá em Romanos oito.
Naquela noite, dentre as diversas coisas que aprendi, uma em especial
marcou meu coração: andar com Jesus é não ter hora e nem lugar para
aprender, pois cada momento da vida pode se tornar uma escola. Quando eu
ia imaginar que depois dessa conversa eu e minhas primas nos ajoelharíamos
em cima dos colchões espalhados no chão do quarto para a noite do pijama e
oraríamos? Foram minutos regados com confissões de medos, angústias e
pecados, muita entrega a Deus e agradecimentos. Eu nunca tinha vivido algo
tão espontâneo na presença de Deus! Quando a Palavra fala que nós podemos
bater que a porta será aberta, está falando sério!
***
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tocam e eu... Eu não faço nada disso. Nunca cantei e não sei tocar nenhum
instrumento. — Baixei os olhos e mirei o chão, corando de imediato.
— Você canta! — Nanda afirmou veementemente. Levantei a cabeça
sem entender o que ela estava falando. — Você pensa que nunca percebi o
timbre bonito que sua voz tem todas as vezes que te ouvi cantar no momento
de louvor dos cultos? Sem contar suas cantaroladas por aí, que não deixam
dúvida quanto à sua afinação.
— Nanda, nada a ver! — Bufei, desdenhando do comentário dela. Eu
cantando bem? Conta outra! — Por que vocês estão olhando pra mim? Não,
gente, eu não vou cantar.
— Se você não sabe cantar... Então prova. — Disse Nanda, vindo
com um microfone em minha direção.
— Isso é brincadeira, né? Passar vergonha cantando em um
microfone? Nunquinha!
Eles formaram um paredão em minha frente e me observavam, como
se eu fosse um réu na hora da pronúncia de sua defesa.
— Só sairemos daqui depois que você cantar pelo menos três frases
de alguma música. — Decretou Nanda, recebendo apoio dos outros.
Vermelha como um tomate e já sentindo o estômago formigar de tanta
vergonha, peguei o microfone. Isso não é o tipo de coisa que se faz com uma
amiga — principalmente em frente ao garoto que ela gosta! Nanda ia se ver
comigo depois!
Olhei para o Noah em expressão de clemência, mas ele não parava de
vibrar e me dar forças. Sissa também me incentivava e, por fim, dei uma
tossida de leve e, fechando os olhos, comecei a cantar. Já tinha pagado tantos
micos em frente ao Noah, mais um não faria muita diferença. Tive que fazer
uma escolha rápida, então decidi pela música Partir, da cantora Marcela Taís.
Como aquela era uma das canções que eu mais escutava nos últimos dias,
poderia cantar pelo menos sem errar a letra — o que não podia garantir em
relação à afinação.
— É certo que venha partir/Tudo que não me faz andar, crescer ou
sorrir/É certo que venha partir/Tudo o que não me traz a paz pra ser
feliz/Veja como o céu é bom/De notas tristes, vem, insiste até eu mudar o
tom/Veja como o céu é bom/Do meu silêncio fez dele um lindo som.
Abri os lábios e as primeiras palavras saíram baixinho, trêmulas e
sem segurança. Depois da terceira frase, comecei a ganhar mais confiança e
esqueci a vergonha que me inundava segundos atrás. Comecei a cantar como
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se contasse a eles o que eu estava vivendo por dentro. O deixar “partir” que a
música tanto falava se refletia em minha vida nas renúncias que vinha
fazendo e nas abnegações de todas as coisas que me afastavam dEle. Eu tinha
plena consciência de que ainda havia muito a ser mudado, mas sabia,
também, que minha intimidade com Deus e fortalecimento na vontade do Pai
cresciam cada vez mais.
Quando chegou ao ponto mais alto da música, percebi um som
diferente acompanhar minha voz. Era o violão do Noah. Não arrisquei abrir
os olhos, pois não queria ser desmotivada antes de a música terminar, caso
enxergasse alguma expressão desgostosa entre eles.
— Então é certo que venha partir/Pois perto de Deus aprendi/Que é
certo quando deixo ir/Pra ganhar o que o céu guardou pra mim. — Antes
que terminasse as últimas palavras da música, ouvi altos gritos e muitas
palmas, acompanhados de assovios. Abri os olhos lentamente, corando outra
vez. Minhas primas vieram me abraçar dando pulinhos — especialidade
delas.
— Depois a nojenta vem dizer que não sabe cantar. Se isso não é
cantar, não sei mais o que pode ser! — Nanda falou dando-me tapinhas nas
costas. Todos teceram algum tipo de elogio à minha voz que, até então, eu
nem sabia que podia fazer o que fez.
— Acho que fui bem além das três frases que você ped... Pediu não,
ordenou, não é mesmo, Nanda?!
— E fez isso lindamente! — Ela concordou, dando-me beijinhos nas
bochechas.
— Então, todos confirmados, precisamos agir! — Noah disse,
puxando uma cadeira para se sentar. Nos acomodamos nos bancos da igreja e
passamos a ouvir as instruções dele. De acordo com o que ficou resolvido,
precisaríamos nos encontrar todos os dias até o concurso. Era letra, melodia,
arranjos, ensaio... Muito trabalho nos aguardava e eu ainda não acreditava
que aquilo estava acontecendo mesmo. Nunca tinha cantado na frente de
ninguém em toda minha vida e, de repente, vejo-me preparando para me
apresentar a centenas de pessoas. Uma verdadeira loucura.
A reunião acabou por volta das dezoito horas. Enquanto todos
conversavam em frente ao portão da igreja, Noah fechava a porta principal.
Corri até ele a fim de chamá-lo para comer pastel comigo e minhas primas.
— Desculpa, Betina, mas não vai dar. — Disse, girando a chave pela
última vez. — Eu preciso fazer umas coisas agora.
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***
nas vozes principais. — Noah falou com um leve corar nas bochechas. Seu
embaraço durante a decisão das duplas foi perceptível.
— Se a Betina está tão insegura, eu posso cantar com você, Noah,
sem nenhum problema.
Todos viraram juntos para trás, procurando de onde vinha aquela voz
familiar. Thami apareceu pela porta lateral e se aproximou de nós. Noah
parecia não saber o que falar, então Pietro resolveu abrir sua brilhante boca
outra vez:
— Ótima ideia, Thami! Você canta muito bem!
Metralhei-o com o olhar. O que Pietro estava querendo dizer com
isso? Era para ele me apoiar e não àquela... Àquela... Ai, Jesus, me perdoa
pelo adjetivo que pensei!
— Pode até ser ótima, mas não é uma ideia viável, já que a Thami
não faz parte da banda. — Disse Nanda encarando-a. Vibrei internamente.
— Posso fazer a partir de agora. E fica tranquilo, Noah, que eu te
perdoo por não ter me convidado desde o início, tá?! — Provocou, juntando-
se a nós na roda.
Com o maxilar pressionado e lábios apertados, Noah soltou o ar pelo
nariz e olhou para Thami.
— Obrigada pela disposição, mas você não pode entrar na banda
agora.
Tive que conter um “wow” que minha língua estava se coçando para
soltar.
— Mas por quê?! — Ela fez uma voz de criança que me irritou até o
último fio de cabelo.
— Nós já temos o número suficiente de pessoas. — Noah estava
visivelmente incomodado com o clima chato que se formara. Thami engoliu
em seco e direcionou-nos um olhar carregado de afronta. Ajeitou a bolsa no
braço e, antes de ir embora, virou a cabeça para trás e soltou:
— Vejo vocês no sábado.
Olhamos uns para os outros em um silêncio mortal. Matheus resolveu
quebrar o climão:
— Devíamos ter orado antes de decidir. — Disse e iniciou uma
oração bem sincera, pedindo a direção de Deus em todas as decisões e
ensaios dali em diante. Depois disso, as coisas ocorreram da melhor forma
possível.
Nas primeiras vezes em que passamos a música, era quase impossível
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não tremer a voz. Aos poucos, Noah e as meninas foram me deixando mais
confiante. Ele, em especial, dava várias dicas e me ajudava a encontrar o tom
certo cheio de paciência. Finalizamos o ensaio com outra oração, dessa vez
feita por Luana. E, novamente, como acontecia desde a primeira reunião,
Noah saiu às pressas da igreja sem nem conversar conosco direito. Desde
aquele dia ele vinha me evitando e a cada encontro do grupo isso ficou mais
perceptível. Durante os ensaios, ele me cumprimentava de longe, procurava
não conversar e olhar para mim e até quando eu puxava um papo, ele
arrumava uma maneira de esquivar-se. Na hora de cantar a música, me
ajudava no que fosse preciso, mas depois se afastava gélido.
Tanta indiferença estava me aborrecendo. Desde a minha quase-ida,
Noah havia se aproximado de mim de forma considerável e mesmo que não
tenha me dado o mínimo mole, eu sabia que de certa forma mexia com ele.
Ok, talvez eu não mexesse tanto como pensava, mas, poxa, nada justificava
aquelas atitudes dele comigo. Frustração era meu sobrenome naquele
momento.
— Oi, Bê. Está tudo bem? — Como se fosse despertada de outra
dimensão, olhei para Pietro. Bê? Que intimidade era aquela?
— Tô indo. E você?
— Estou bem. Foi mal por mais cedo, eu não preferia a Thami a
você, tá? Só estava pensando nas opções, já que te achei bem insegura para
cantar na voz principal.
— Sem problemas, eu não achei que você tenha preferido a Thami ao
invés de mim. — Depois que falei, a ficha caiu de que eu menti. Pedi perdão
a Deus mentalmente na mesma hora.
— Bom, não foi o que seu olhar furioso disse a mim. — Ele riu.
— Está bem, está bem. Eu realmente achei isso. Mas deixa pra lá,
aceito suas desculpas.
Ele sorriu balançando a cabeça. Ficamos em silêncio por rápidos
segundos, mas que foram o suficiente para eu abrir a boca e falar o que não
devia:
— Pietro, aquele convite para ir à sorveteria ainda está de pé?
diferente. Não comentei nada, até que chegamos em frente à praça e ele
parou.
— Por que você parou aqui? — Indaguei. Ele se aproximou de mim.
— Pensei que talvez pudéssemos sentar um pouco aqui na praça.
Eu continuei parada olhando para ele. Pietro ergueu as sobrancelhas,
pedindo uma resposta. Eu já tinha ficado com uma quantidade considerável
de garotos para entender os motivos dele para nos sentarmos ali. Olhei em
volta e a praça estava sem uma viva alma.
— Tudo bem. — Falei por fim, e ele colou um sorriso vitorioso no
rosto e me puxou pela mão. Nos sentamos em um banquinho atrás da pista de
skate. Continuamos a conversar assuntos diversos, mas eu estava tensa,
olhando seguidamente para os lados. Se alguém nos visse ali, o que iria
pensar? Não queria que Zuleide ligasse para minha mãe falando que a filha
dela estava de namorico pelas ruas de Gruta Alta.
— Você tem namorado?
A pergunta dele me pegou de surpresa. É claro que Pietro estava
dando uma de João sem braço, porque qual menina topa um passeio com
outro garoto quando é comprometida?!
— Não.
— Gosta de alguém?
Olhei para baixo, o rosto corando involuntariamente. Se dissesse que
não, estaria mentindo. Meneei a cabeça. Ele esticou os lábios, mas sem abrir
o sorriso.
— É do Noah, não é?
Arregalei os olhos, abri a boca como se fosse falar algo, mas logo
depois desviei o olhar para o chão, juntando os lábios novamente. Ele soltou
uma risadinha.
— Sabia.
Seu braço apoiava-se no encosto do banco, atrás de mim. Pietro se
aproximou um pouco mais e pegou uma mecha do meu cabelo, colocando-a
atrás da orelha.
— Noah parece não se interessar por menina alguma. Desde que ele
entrou para a igreja, nunca o vi dando mole para ninguém. Nem para a
Thami, que vive aos pés dele.
Virei e analisei o rosto do Pietro. Feliz pela informação em relação à
Thami, mas desconfiada de onde ele queria chegar com aquele papo.
— Ele é um pouco neurótico com essa parada de santidade.
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com ela, nós adoraremos a Deus e ministraremos através dela. E para que
Deus nos use naquele lugar e vidas sejam tocadas por Ele por intermédio de
nós, é necessário que estejamos totalmente ligados a Jesus e a santidade é
primordial nesse negócio. Se nossas vidas não estiverem totalmente nEle,
pode ser que a gente não alcance esse objetivo.
Noah falou por mais quinze minutos e a cada frase eu me enterrava
um pouco mais no banco. “Só pode ser para mim e para o Pietro essa
palavra!”, pensava, sentindo o peso da culpa nas costas. Depois que o
“sermão” terminou, passamos ao ensaio. Exteriormente, tudo parecia bem,
mas por dentro estava me sentindo pesada. Isso se refletiu na minha voz, que
demorou até alcançar o tom certo.
Tão logo o ensaio terminou, já fui pegando minhas coisas e saindo de
fininho da igreja. Não queria ser metralhada pelas perguntas — que
certamente viriam — das minhas primas. Como já estava tarde, apertei os
passos. Cheguei em casa e nem troquei de roupa, da maneira em que estava
caí na cama e dormi profundamente até o dia seguinte.
***
— Algo estranho está acontecendo e você não quer nos contar. Não
que você tenha obrigação de fazer isso, mas...
Continuei quieta mesmo depois da terceira tentativa da Nanda em
tirar algo de mim.
— Tem a ver com o Pietro, não é? O que foi aquela intimidade dele
ontem com você?! Parecia um cãozinho querendo marcar território.
Olhei para ela com uma cara de “Como assim?!”.
— Ué, Betina, vai me dizer que você não percebeu o olhar dele para
os meninos quando te “cumprimentou”? — Nanda bufou. — Para os meninos
não, para o Noah, na verdade.
Sentei-me na cama e endireitei o corpo. Aquela parte eu não sabia.
— Na real, eu já venho percebendo um comportamento mega
esquisito do Pietro em relação ao Noah há algum tempo. Ele responde
asperamente, provoca e afronta em público... Dá pra perceber que não são
comentários inocentes. O que não dá para entender, já que os dois são amigos
próximos há tanto tempo... E uma coisa que isso não parece é implicância
boba entre amigos. — Sissa compartilhou. Será que aquela situação
desagradável tinha algo a ver comigo? Fiquei calada, pensando nisso por
algum tempo.
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— Você não vai falar o que está acontecendo mesmo, não é?! —
Nanda respirou um pouco mais forte que o normal. Baixei os olhos.
— Tudo bem, prima. Se algo está te incomodando de verdade, pode
contar com a gente no momento em que quiser ou precisar. — Sissa, fofa
como sempre, me deu um beijinho na bochecha antes de ir embora e Nanda
me deu tchau com um pouco de ressentimento.
Elas partiram e eu aproveitei o tempo a sós para tentar algum contato
com minhas amigas do Rio. Sua chamada está sendo encaminhada para a
caixa de mensagem... Quando finalmente consegui sinal, o celular da Beca
deu desligado. Tentei não reclamar e liguei mais quatro vezes, todas sem
sucesso. Pensei em ligar para a casa da Luca, já que ela estava sem celular.
Mas, para isso, eu teria que usar o telefone fixo da Zuleide, que era o único
meio onde eu conseguia falar bastante tempo com meus pais sem que a
chamada caísse.
— Zuleide? — Entrei na cozinha e fui invadida pelo cheirinho de
café feito na hora. Não gosto de café, mas não tenho como negar: o aroma é
uma verdadeira delícia!
— Oi, querida, vamos fazer um lanchinho?
Peguei um pedaço de bolo de abacaxi e resolvi ir direto ao assunto,
pedindo para usar o telefone.
— Com certeza você pode usá-lo, mas não sem antes me deixar te
falar uma coisa.
— Pode falar. — Respondi, sem fazer a mínima ideia do que viria
pela frente.
— Espero que não se importe, mas vou ser bem direta, ok? —
Inspirou suavemente o ar. — Talvez agora você possa até duvidar, mas vale
muito a pena esperar em Deus. Um dia, você verá que beijos passageiros não
trouxeram nada de bom ou valioso para sua vida, porque na verdade
relacionamentos rápidos e sem propósito só nos atrasam. Cada minuto com a
pessoa errada é menos um com a pessoa certa e hoje, na sua idade, a pessoa
certa, sem dúvidas, é Jesus. Seu relacionamento com Ele é o mais importante
da sua vida e enquanto não chega o tempo em que, com maturidade, você
poderá viver em plenitude aquilo que Deus planejou para um casal, você é
responsável por não permitir que nada atrapalhe seu relacionamento com
Deus. Fique tranquila, Ele cuidará de tudo pra você, inclusive a pessoa com
quem vai se relacionar amorosamente no futuro.
Isso que eu chamo de pessoa direta. Agradeci suas palavras e soltei
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um sorriso amarelo. Depois desse papo, ficou claro para mim que Zuleide
sabia que fiquei com Pietro. Ai, será que ela tinha contado pra minha mãe?!
E, pior, será que ela me mandaria embora pra casa?!
— Zuleide me perdoa por favor eu não quis fazer aquilo eu pensei
que fosse uma simples ida à sorveteria e a gente acabou se beijando mas eu
prometo que eu não vou mais fazer isso a verdade é que o Pietro é um
gatinho e também muito cheiroso e isso pesou na hora de não fugir do beijo
dele mas eu quero que saiba que estou arrependida e disposta a mudar meu
comportamento em relação aos meninos e... — Só nesse momento percebi
que estava falando muito rápido, quase sem vírgulas, pontos e respiração.
— Querida, você está realmente disposta? — Zuleide falou com voz
firme e olhos cheios de amor, impedindo-me de continuar o falatório
afobado. Pensei por uns segundos e balancei a cabeça positivamente. Não
tinha como fugir, hora ou outra Deus me pediria uma atitude como essa
mesmo.
— Então, seja firme. Saiba dizer não, não negocie valores e
princípios de uma vida que agrada a Deus. Não busque suprir suas vontades
em coisas que nunca serão capazes de te preencher por completo. Garotos
devem ser vistos com olhos de amor em Cristo e não como ficantes em
potencial e, da mesma forma, você não deve aceitar se relacionar com um
rapaz que não te olhe e trate com o respeito que uma filha de Deus merece. E
se ele quer te dar uns beijinhos só porque você é bonita e atraente, algo está
errado. Gosto muito de uma frase de C.S. Lewis que diz mais ou menos
assim: “O coração de uma mulher deve estar tão bem guardado em Deus, que
um homem para achá-lo, precisará buscar a Deus primeiro”.
Lembrei imediatamente de Provérbios 4.23: “Sobre todas as coisas
que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procede as fontes da
vida”. Agora já sabia onde devia guardar meu coração: em Deus. O único
que resguardaria as fontes da minha vida sem machucados ou feridas. Porém,
apesar de ter gostado do que ouvi, mesmo tendo sido tão confrontador, não
conseguia parar de pensar em minha mãe e no que ela faria se aquela
informação chegasse aos seus ouvidos.
— Minha mãe já sabe? — Minha expressão de sofrimento devia estar
dando dó.
— A menos que você tenha contado, acredito que não.
Sorri aliviada.
— Obrigada, Zuleide. De verdade. — Respondi e logo depois fui
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para o quarto falar com o Pai. Acabei nem ligando para as meninas, tinha
algo mais importante a tratar. E ao som de “Oh You Bring”, da banda
Hillsong United, assumi um compromisso com Deus de que meu coração
estaria sob Seu comando e que um garoto só conseguiria conquistá-lo se Ele
permitisse. Abri mão do pecado que eu mais gostava de praticar e que
defraudava constantemente meu coração e corpo e senti um alívio percorrer-
me por completo. Como era bom saber que Deus estava me ouvindo e
aprovando minha atitude.
***
agarrou pela cintura e procurou minha boca. Eu levei a cabeça para trás. —
Qual foi, Betina, nosso beijo foi tão incrível ontem... — Eu empurrei-o com
as duas mãos e consegui me soltar.
— Eu não quero beijar você! — Esbravejei. — É ridículo você tentar
me beijar a força!
Seus olhos baixaram-se e ele pareceu cair em si.
— Está bem, me desculpa.
— Você já percebeu que está sempre me pedindo desculpas? — Mal
comecei um rolo com o garoto e já estava tendo a primeira DR. Ele não
esboçou nenhuma reação e eu decidi ir para a igreja, antes que ele fizesse
outra gracinha.
— Espera, eu vou com você! — Pietro falou alto e eu, que já estava
andando, parei por um instante.
— Eu não quero que você vá comigo. — Respondi, sem olhar para
trás. Ele correu até mim e segurou meu braço.
— Betina, eu fui um idiota, mas espero que isso não altere o que está
acontecendo entre nós. — Com o cenho levemente franzido e olhar de
cãozinho sem dono, a única coisa que Pietro conseguiu foi intensificar a raiva
que eu estava sentindo dele.
— Não existe “nós”, Pietro. E nem vai existir.
— Você está dizendo que não quer mais ficar comigo? — Ele olhou-
me confuso. Apertei os lábios, assenti com a cabeça e continuei andando.
Cheguei à igreja e mal cumprimentei os que já estavam lá. Sentei em um
canto e comecei a mexer no celular, numa tentativa vã de esquecer o
aborrecimento que a atitude de Pietro me causou. Não demorou muito e ele
também entrou pelo corredor da igreja visivelmente contrariado e sentou-se
no banquinho atrás da bateria. Após a oração inicial, ensaiamos por
aproximadamente duas horas. Não olhei para a direção em que ele estava
uma só vez nesse tempo. Após o término, despedi-me da galera e saí do
templo em direção ao portão. Pietro veio atrás de mim e colocou-se em minha
frente, impedindo-me de continuar a andar. Revirei os olhos.
— Quer lanchar comigo? — Ele perguntou e eu respirei fundo.
— Não. — Respondi séria e seu olhar desmontou.
— Eu prometo não tentar te beijar outra vez. — Ele juntou as mãos
embaixo do queixo. — Por favor...
— Pietro, não precisa gastar seu tempo. Não dá mais para ficar com
você, aliás, com mais ninguém. Eu assumi um compromisso de santidade
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— Mas...
— Beijos, até amanhã. — Entrou no templo com um sorriso
brincalhão no rosto e eu me senti uma bobinha. Como pude achar que ele me
permitiria desistir tão fácil?
***
***
proporcionava. Aquele lugar podia ser onde Judas perdeu as botas, mas que
era lindo, disso eu não tinha dúvidas! Encontramos um cantinho ao lado da
gruta e nos sentamos para descansar e também admirar juntos aquela
paisagem incrível.
— Por que vocês decidiram me trazer aqui? — Perguntei.
— Você não podia ir embora sem antes conhecer o lugar mais lindo
da cidade. E já que todos nós precisávamos relaxar depois de quase duas
semanas intensas de ensaios, unimos o útil ao agradável. — Sissa respondeu
jogando a água de sua garrafinha no rosto avermelhado pelo sol.
— Eu teria conhecido a cachoeira durante o acampamento se não
tivesse aprontado tudo aquilo... — A lembrança daquele dia ainda me
entristecia às vezes.
— Ih, qual foi a desse papo torto, aí? Já te falei que passado perdoado
não tem que ser lembrado! — Nanda, que poderia ter intensidade como
segundo nome, me abraçou forte, mesmo com todo o suor e calor que nos
envolvia e ainda me tascou um beijo demorado e melado (eca!) na bochecha.
Voltamos para o poço da cachoeira e aproveitamos o restante do dia com
bastante mergulhos, fotos e risadas.
— Gente, vocês sabem o que é rede social? — Perguntei, já dentro da
caminhonete, na volta para cidade.
— Você está falando de Facebook, Twitter e essas coisas? — Luana
respondeu com outra pergunta e eu concordei. Eles riram.
— A Betina realmente acha que só porque moramos no interior não
há vida além do Globo-Rural!
— Que maldade, Cássio! Eu não penso assim... Ah, talvez só um
pouquinho. — Meu comentário gerou várias gargalhadas e algumas
polêmicas, mas, por fim, Luana respondeu à pergunta inicial:
— Nós não só sabemos o que é, como também participamos de redes
sociais, viu, mocinha?! A questão é que Gruta Alta ainda não tem nenhum
sinal de internet banda larga e acabamos dependendo de algumas operadoras
para acessar, o que nem sempre conseguimos.
— Na casa da avó do Noah tem wi-fi! — Pietro gritou lá da frente.
— Sério?! Não acredito que estive lá e nem pedi a senha para usar!
— Soltei meu comentário inconformado e todos riram. — Assim que eu
conseguir acesso aos meus dados móveis e responder às 27358912
mensagens que chegarão depois de todos esses dias sem internet, eu adiciono
vocês no Facebook, tá bem?
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***
que vi. O estilo dos sapatos combinava com o vestido soltinho salpicado de
flores que havia escolhido. Penteei o cabelo, dei os últimos retoques na
maquiagem e finalizei o look jogando um colete jeans por cima do vestido.
Agradeci a mim mesma por ter levado quase o guarda-roupa inteiro para
Gruta Alta, isso certamente ajudou na penosa tarefa de escolher uma roupa
para participar do concurso.
O evento estava marcado para as dezoito horas, mas às duas da tarde já
estávamos na estrada rumo a Jeriri. Eu e as meninas pegamos carona com o
Noah, enquanto os garotos foram no carro que o Cássio pegou emprestado
com o pai. Todos os instrumentos e apetrechos necessários para a
apresentação estavam devidamente guardados no porta-malas e toda
ansiedade boa em nossos corações. Não sabia o que aquela noite nos
guardava, mas sorria ao ter certeza de que o Convidado mais importante
estaria lá, sendo exaltado por nós e fazendo tudo correr nos trilhos da vontade
dEle.
Uma hora mais tarde desembarcamos em frente ao Ginásio Municipal
da cidade. Não havia muitas pessoas, mas algumas bandas já começavam a
passar o som. Fomos recebidos por uma mulher muito simpática e sorridente,
que mostrou todo o lugar e nos direcionou para uma espécie de camarim atrás
do palco, comum a todas as bandas participantes.
— Você é o Noah Marquês?! — Um garoto perguntou à maior altura e
chamou atenção de todos no ambiente.
— É, sou eu... Tudo bem? — Noah sorriu tímido e apertou a mão do
menino, que lhe ocupou os ouvidos por bons minutos. Depois disso, a cada
hora vinha alguém cumprimentá-lo com olhares que beiravam à admiração.
Quando enfim conseguiu uma folga dos quase-fãs, correu para perto da
banda.
— Nem cantou ainda e já tem admiradores! — Brinquei. Ele soltou o ar
de forma rápida e levantou os olhos.
— Não gosto quando isso acontece.
— Ah, então é algo comum! — Ri e recordei que naquela cidade a
dona Laura era como celebridade e o neto dela, consequentemente.
Deixamos tudo pronto para a apresentação e nos ocupamos entre
papos furados e piadas. É claro que, entre uma conversa e outra, não paravam
de chegar garotinhas animadinhas se apresentando para o Noah. Coitadinhas,
assim como para mim, a chance era zero para elas.
— Pessoal, preciso que me passem os vídeos de vocês! — A
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Trombei o pé direito num par que estava jogado por cima dos outros, me
desequilibrei e cheguei aterrissando no chão da sala de estar. Ergui a cabeça
devagar e me deparei com vários olhinhos concentrados em mim. Era a
reunião de discipulado semanal das senhoras da igreja.
— Betina?! — Zuleide virou-se espantada. — O que foi isso?! Você
não deveria estar no concurso?
— Esqueci uma coisa! — Levantei rapidamente e corri para o quarto.
— Isso. — Disse, apontando para o pen drive, após tê-lo pego jogado em
cima da cama. As irmãs permaneciam paradas, me olhando como se eu fosse
um ET. Zuleide abriu a boca para falar algo, mas antes que ela me prendesse
ali por um tempo que eu não tinha, dei um tchauzinho e fechei a porta. Entrei
no carro rindo.
— O que foi? — Noah perguntou, enquanto manobrava o carro.
— Acabei de pagar um mico. Estava demorando pra isso acontecer de
novo... — Caçoei de mim mesma e contei sobre a cena anterior.
— Pode ficar despreocupada que elas não vão te achar sem educação.
As irmãs da igreja são tranquilas.
— Não posso dizer o mesmo sobre o temporal que está para cair a
qualquer momento... — Comentei ao observar a escuridão que já havia
preenchido o céu. Não demorou muito e os primeiros pingos invadiram o
vidro do carro, fazendo os para-brisas trabalharem ininterruptamente. Por
causa da intensidade da chuva, Noah precisou diminuir a velocidade, mas a
hora avançava sem piedade, o que nos deixou um pouco mais preocupados.
De cinco em cinco minutos ele olhava o relógio de pulso.
— Ai, porque eu fui esquecer esse pen drive?! — Esbravejei.
— Betina, não adianta ficarmos aflitos agora. Não há nada que
possamos fazer para chegar lá mais rápido. — Ele tentou apaziguar a
situação, mas o barulho cada vez mais alto do aguaceiro do lado de fora só
aumentava a tensão. Depois de uns vinte minutos na agilidade de uma
tartaruga, a chuvarada minimizou e pudemos andar mais rápido. A estrada era
asfaltada somente após determinado ponto e àquela altura faltava pouco para
chegarmos lá. Até aquele momento não tivemos problemas com o trajeto de
chão batido, mesmo estando bastante escorregadio. Até aquele momento...
— O que aconteceu?! — Gritei alarmada. Noah fechou os olhos e
respirou fundo.
— Atolamos. — Colocou a mão na maçaneta para abrir a porta do
carro.
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descrever o que você e minhas primas significaram pra mim nessas férias.
Posso garantir que achava a vida livre em Deus que vocês levam como uma
prisão, no início. Porque eu de fato achava que tudo era fruto de regras e “não
podes” da igreja. Porém Jesus, que é lindo demais, usou a vida de vocês para
que eu percebesse que ser cristão não é ser careta. Ser cristão é andar na
liberdade dada por Jesus na cruz e viver uma vida ao lado do Dono do
Universo! — Senti meu coração arder. — Por isso foi tão maravilhoso
conhecer vocês. E é por isso que vai ser tão trágico ter que me despedir
depois de amanhã. — Passei as mãos pelo rosto, desalentada.
— Na verdade, Betina, as melhores coisas vão começar a acontecer
depois de domingo. Porque assim que você colocar os pés em solo carioca,
toda uma antiga vida estará te esperando e será a hora de colocar em prática
tudo que aprendeu aqui.
— Não vai ser fácil. — Disse, lembrando-me da conversa que tive
com a Beca.
— Mas Jesus vai estar ao seu lado.
Assenti balançando suavemente a cabeça, sendo analisada por seus
afáveis olhos cor de mel.
Tic-tac-tic-tac-tic-tac... O relógio não descansava. Cinco e quarenta.
Cinco e quarenta e dois. Cinco e quarenta e cinco...
— Precisamos fazer alguma coisa! — Decretei, saindo do carro.
— Betina, você vai se sujar nessa lama! — Noah gritou e logo desceu
também. — Como você vai cantar toda molhada e suja? Volta para o carro.
— Disse ele, aproximando-se de mim.
— Você realmente acha que ainda dá pra participar do concurso? —
Cruzei os braços. — Mas, se existe alguma esperança, ela está em nossas
mãos.
— Você não está pensando...
— Isso mesmo! — Apontei o dedo indicador pra ele e me coloquei
atrás do carro. Flexionei uma perna, enquanto esticava a outra para dar
impulso e coloquei as duas mãos na traseira do veículo. — Está esperando o
quê? Vem me ajudar!
Ele soltou uma gargalhada.
— Olha o tamanho desse carro! Nós dois juntos não vamos ter força
o suficiente para empurrá-lo daqui. — Noah colocou as mãos na cintura e
olhou-me incrédulo.
— Pois eu li na bíblia essa semana que se tivéssemos fé do tamanho
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encontro. Chico, como era chamado, foi o mais solícito possível. Teve uma
breve conversa com Noah sobre questões técnicas — as quais eu não
entendia bulhufas —, pediu licença e entrou no carro. Eu e Noah nos
entreolhamos, cheios de esperança.
Chico, com a maior tranquilidade do mundo, deu um arranque na
picape e, quase com um pulo, tirou o carro de dentro da lama. O queixo de
Noah caiu.
— Tenho menos de um ano com carteira de motorista. Dá pra relevar,
né? — Ele sussurrou envergonhado.
— Prontinho, garoto. Pode seguir viagem despreocupado agora. —
Seu Chico deu um aperto de mão em Noah que quase desconjuntou seu pulso
e sorriu para mim. Agradecemos um milhão de vezes e antes dele seguir
viagem, piscou para nós e disse:
— Vocês formam um belo casal.
Olhamos de esguelha um para o outro e, com o rosto levemente
corado, seguimos para o carro em silêncio.
— Quando eu digo que Deus coloca anjos em nossas vidas, não estou
brincando! — Noah vibrou, já com as mãos no volante. “Eu que o diga...”,
pensei, olhando para ele.
— Mas a partir de agora, chega. Você foi longe demais. Eu não posso
suportar omisso o que você aprontou com a Betina.
— O que você vai fazer? Namorá-la para fazer raiva em mim?
Noah riu nervoso.
— Eu vou ter uma conversa séria com seus pais. — Ele cruzou os
braços, mirando-a com olhos frios. — E vou pedir a gentileza de que você
nunca mais se intrometa e atrapalhe a vida de alguém que eu gosto. Se isso
não acontecer, vou ser obrigado a me afastar de você.
Thami abaixou a cabeça e Noah olhou em volta. Nesse momento,
nossos olhos se encontraram. Ele enrugou a testa, como se perguntasse o que
eu estava fazendo ali. Como a Thami estava de costas para mim, não notou
minha presença e perguntou, com uma risada afetada:
— Você está apaixonado por ela, não é?
Ele desviou o olhar de mim. Respirando fundo, replicou:
— Com toda gentileza do mundo, mas vou precisar falar quantas
vezes que o que envolve a minha vida não te diz respeito? Espero que hoje
você finalmente caia na real de que não importa o que faça, nós nunca vamos
namorar novamente. Eu não falo isso para te magoar, porque meu maior
desejo é que você se apaixone primeiro por Jesus e depois de estar completa
nEle, o próprio Deus te apresente o amor da sua vida.
Ui, essa doeu! Ela começou a passar as mãos nos olhos, indicando
que não tinha nem esperado um lugar reservado e já estava chorando ali
mesmo. Procurou o corpo do Noah para um abraço, mas ele deu um passo
para trás. Thami limpou as lágrimas com força e saiu rapidamente pela porta
dos fundos.
Permaneci onde estava observando-a ir embora e não consegui mais
sentir raiva, um sentimento de compaixão começou a ganhar-me aos poucos.
Amar não é viver aprisionado a um sentimento, como Thami vivia, porque o
amor, na verdade, liberta. E somente depois de conhecer Jesus é que fui
capaz de entender isso. O amor verdadeiro não sufoca, não precisa ser
mendigado, não faz a gente perder o domínio próprio e nem “se conduz
inconvenientemente”.
Noah puxou o ar e soltou aos poucos, vindo em minha direção.
— Me desculpe por isso, Betina. — Baixou o rosto, envergonhado.
— A culpa não foi sua.
Ele fitou-me com carinho, mas ainda havia tristeza em seus olhos.
— Eu demorei muito pra falar com ela abertamente e impor limites.
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intervim:
— Galera, eu agradeço muito o apoio de vocês. E, Nanda, eu entendo
a sua reação e agradeço por tomar as minhas dores como se fossem suas, mas
eu não quero que essa situação ganhe mais atenção do que merece. Eu não
desejo reservar em meu coração ódio pela Thami ou qualquer coisa parecida.
Eu fiquei brava sim, mas rejeito esse sentimento dentro de mim, porque onde
o Espírito Santo está só deve haver paz!
Nanda baixou a cabeça e concordou silenciosamente. Dei um abraço
nela e Sissa orou, pedindo a Deus que nossas reações fossem cada vez mais
como as de Jesus. Pediu também pela vida da Thami e pelo resultado do
concurso, que já estava para sair. Após o amém, Nanda falou baixinho:
— Obrigada por me fazer lembrar como devo agir. Amo você!
Um sorriso bobo nasceu em algum lugar do meu coração e foi
subindo até chegar aos lábios. Era a primeira vez que ouvia alguém dizer que
eu tinha influenciado a fazer o que é correto.
Permanecemos abraçadinhas até o apresentador voltar a falar. Com
muito ânimo nas palavras, o rapaz fez um discurso sobre as bandas em geral e
logo depois passou o microfone para a organizadora do evento, que falou
mais meia hora de agradecimentos. E então, o momento mais aguardado da
noite chegou. Eu quase já não tinha unha para roer e a expectativa sobre o
resultado enchia o ambiente.
— A ESCOLHA FOI ACIRRADÍSSIMA E DUAS BANDAS
FICARAM ENTRE AS FAVORITAS. MAS ESTE ANO, QUEM VAI
ABRIR A EXPO CRISTÃ DE JERIRI É...
Estávamos de mãos dadas e em silêncio. Todas as outras bandas
também estavam mais ou menos assim.
— A BANDA SAL DA TERRA!
Eles pularam. Eles gritaram. Eles dançaram. Eles foram para o palco
se apresentar novamente e nós ficamos ali, um pouco xoxos, um pouco
tristes, um pouco sei lá...
— Por pouco não conseguimos! Estávamos tão pertinho deles, no
mesmo versículo...
Luana olhou para Matheus sem acreditar no que acabara de ouvir. Ele
fez um gesto, mexendo seguidamente o polegar e o indicador da mão direita.
— Não entendeu a referência a Mateus 5?
Todos riram e em poucos segundos aquela decepçãozinha básica por
não termos sido escolhidos esvaiu-se e passamos para o ginásio, pulando e
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cada detalhe das barraquinhas de comes e bebes da expo cristã de Jeriri. Tudo
parecia ter sido preparado com muito zelo e havia mil e uma opções de
lanches. A noite começava a dar o ar da graça, trazendo consigo inúmeros
pontinhos luminosos que, junto à lua cheia, teciam um céu deslumbrante.
Ainda faltava algum tempo para os nossos mais novos amigos da
banda Sal da Terra iniciarem a primeira noite (e única, para mim) de shows
da expo, então aproveitamos para lanchar e visitar alguns stands de lojas. Em
nossa peregrinação, acabamos chegando ao outro lado do enorme espaço a
céu aberto onde o evento acontecia. Não contive minha surpresa ao ver que
havia ali um parque de diversões!
— Gente, isso é fantástico! Quanto tempo eu não vou a um parque
assim! — Meus olhos brilharam e todos riram.
— Se soubéssemos disso tínhamos te trazido aqui antes, esse parque
está em Jeriri desde o início do verão.
Mal esperei Sissa completar a frase e enlacei meus braços no dela e
no de Nanda e puxei-as para a cabine de compra de bilhetes. Noah, Pietro,
Cássio, Matheus e Luana vieram atrás.
— Ai, eu quero ir em todos! — Parecia ter virado criança de novo.
Eles achavam graça da minha animação. Andamos nos dois brinquedos mais
“radicais” do parque: o primeiro chamava-se Chacoalha Samba, que rodava
em velocidade nem tão alta assim, de um lado a outro sem parar, por dois
minutos. O segundo era uma espécie de barca, que nos levava para frente e
para trás sem grandes emoções. Apesar de não ser nenhum Hopi Hari da vida
e não ter brinquedos transbordando adrenalina, eu estava adorando passar o
tempo ali. O que não posso dizer em relação aos meus amigos, que se
esforçavam para me fazer companhia. Descemos do segundo brinquedo e eles
logo me chamaram para voltar à expo.
— Temos que guardar lugar perto do palco, se não na hora do show
ficaremos lá atrás! — Matheus cortou todas as minhas esperanças.
— Ah, mas eu queria tanto andar mais pelo parque... — Fiz biquinho.
— Podem ir, eu fico mais um tempo aqui com a Betina. Guardem um
espaço para nós. — Noah sentenciou e eles concordaram. Nanda mandou
uma piscadela para mim e saiu sorrindo. Meu coração aqueceu-se.
— Obrigada. — Soltei um sorriso tímido.
— Não há de quê. Esse parque passa os verões em Jeriri há muitos
anos, todos nós já viemos tanto que perdeu um pouco a graça... Por isso a
galera meio que “foge” dele. — Noah explicou.
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— Puxa vida, onde eu moro não vejo parques desse tipo desde
quando eu tinha uns seis, sete anos... Tenho muitas lembranças boas de
lugares assim, porque minha avó materna sempre me levava. Ela era a melhor
vovó do mundo! Nós passávamos a tarde toda andando em brinquedos,
comendo algodão doce e maçã do amor, além de jogar bastante na pescaria.
Mas que fique registrado: nunca ganhamos nada! — Gargalhamos.
— Imaginei mesmo que houvesse algum sentido emocional por trás
da sua paixão inesperada pelo parque. Quando o viu, parecia ser uma
criancinha novamente. — Noah sorriu cheio de inocência, mas eu tive
vontade de cavar um buraco para me esconder. Nada pior nessa vida para
uma adolescente do que ser comparada a uma criança e ainda mais quando
essa comparação vem de um garoto que a gente admira e controla o coração
para não gostar além do normal.
— Você quer ir à roda gigante? — Perguntou, nem parecendo notar
meu constrangimento com seu comentário.
— É meio sem graça, né?
— Bom, se você me disser alguma coisa que tenha mais graça por
aqui eu vou na hora! — Debochou e eu dei um soquinho em seu braço.
— Vamos lá. — Apontei com a cabeça para a entrada da roda
gigante. Sentamos em uma das cabines e o operador fechou a porta gradeada
na cor verde-limão. A roda começou a girar vagarosamente, mas o vento
fazia com que o compartimento balançasse. Senti um frio na barriga. Não
trocamos uma palavra até estarmos no topo da roda gigante.
— Essa vista é que faz valer a pena! — Noah exclamou, observando
a cidade escura, cheia de pontos de luz espalhados por sua extensão. Lá de
cima conseguimos ver o palco da expo e a quantidade de pessoas que se
aglomeravam próximas a ele.
— Eles já devem estar lá! — Apontei e senti um solavanco que fez a
cabine balançar. Soltei um grito e segurei o braço do Noah com força.
— Calma. — Ele riu. — Não é nada.
— Então por que paramos de nos mover? — Perguntei assustada,
olhando para os lados.
— De vez em quando tem uma parada rápida. É normal. Daqui a
pouco voltamos a rodar novamente. — Noah olhou de relance para mim e foi
aí que percebi que estava grudada nele e ainda agarrada ao seu braço. Afastei-
me sem graça.
— Sua avó não está mais entre nós, né? — Questionou-me com
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feminina, já que a banda era composta somente por garotos bonitos e cheios
de estilo. Nanda era uma das mais descontroladas, pois desde que conhecera
o vocalista no concurso, não parava de falar dele. “Como o fulano canta
bem!”, “Como o fulano é bonito”, “Você viu o que ele falou? Fulano é muito
consagrado!” e por aí vai.
Eu e Noah conseguimos um espacinho próximo à grade, ao lado
deles. Ele assoviava de vez em quando e cantarolava algumas partes da
música que aprendera ontem. Eu não conseguia fazer nada disso, minha
mente não parava de pensar na tal coisa que ele queria falar comigo. Todos à
minha volta pulavam, cantavam, levantavam as mãos, alguns fechavam os
olhos para louvar a Deus e eu estava parada, feito uma estátua, perdida em
meus pensamentos. A banda Sal da Terra deixou o palco e eu nem percebi.
— Tudo bem? — Noah perguntou, olhando para mim com certa
estranheza.
— Por que não estaria? — Repliquei, tentando disfarçar minha
viagem ao mundo da lua dos últimos minutos.
— Estou há um tempão te olhando e você nem percebeu. Parecia
estar com a mente em outro lugar.
— M... Me olhando? — Gaguejei.
— Uma pessoa parada no meio de uma multidão movimentada
chama um pouco de atenção, não acha? — Ele riu e eu baixei os ombros,
ligeiramente decepcionada.
— Só estava pensando em umas coisas. — Disfarcei. Noah prendeu a
visão em mim por alguns instantes. Seu olhar parecia querer falar-me algo.
Não demorou muito para que a segunda banda da noite fosse anunciada e ele
desviasse os olhos para o palco. Não conhecia o grupo, mas todos à minha
volta cantavam os louvores com bastante propriedade. Tentei prestar atenção
às letras e desviar aqueles pensamentos para longe dali. Não queria criar
falsas esperanças e, além do mais, eu já tinha dado a minha palavra a Deus de
que guardaria meu coração, não fazia sentido enchê-lo de fantasias e ainda
mais com um garoto como o Noah. Eu nunca teria chances com ele, um rapaz
tão espiritual, e eu ainda tão nova na fé.
Depois de quatro músicas, a vocalista da banda, uma moça baixinha e
gordinha, segurou a bíblia e começou a discorrer sobre o capítulo quatro da
primeira carta de Paulo aos Tessalonicenses. Leu lenta e pausadamente os
versículos que diziam:
entrou na conversa. — Noah leva muito a sério aquele versículo sobre fugir
da aparência do mal.
— Mas por que uma garota seria aparência do mal? — Estava
confusa.
— Você já não percebeu que onde ele está sempre tem meninas por
perto?! A maioria dá em cima sem dó nem piedade. Então ele vive fugindo de
oportunidades que possam deixá-lo tentado a pecar.
— E olha que não são poucas, hein! — Luana, que até então comia
seu cheeseburguer sem falar nada, completou enfaticamente a fala de Sissa.
Pensei que semanas atrás eu era uma dessas meninas que queria chamar a
atenção de Noah a qualquer custo. Pelo menos na maioria das vezes eu não
havia sido tão descarada. Menos uma coisa para me envergonhar agora.
— E vocês três nem para me contar que ele já namorou a Thami! —
Mudei de assunto, ainda falando baixo.
— Ah! — Exclamou Sissa. — Faz tanto tempo que às vezes a gente
até esquece. E também, qual a necessidade de você saber disso?
Olhei ofendida para Sissa, que agiu como se tivesse falado a coisa
mais gentil do mundo. Não consegui respondê-la, porque logo os meninos se
aproximaram de nós cheios de risadinhas e dando soquinhos nos braços uns
dos outros.
— Quero só ver quem consegue mandar pra dentro um sundae de
morango com nutella! — Pietro desafiou, apontando para a enorme e
convidativa foto do sorvete nos fundos da barraquinha.
— Em minha barriga sempre há espaço para um sundae, meu
querido! — Nanda respondeu, engolindo o último pedaço do seu lanche.
Sissa e os outros também toparam. Eu ainda estava na metade do meu
sanduíche e nem sabia se conseguiria terminá-lo. Voltaram para a fila do
caixa e eu continuei onde estava.
— Não gostou? — Noah perguntou, apontando para o eggburguer.
Não tinha notado que ele permanecera perto de mim.
— Acho que pedi um grande demais. — Respondi, observando o
quanto ainda faltava para comer. — Mas e você? Não o vi comprando lanche.
— É que estou com vontade de comer pastel e não hambúrguer.
Meneei a cabeça, sem saber o que dizer. Odiava quando aconteciam
esses vácuos de assunto entre nós.
— Quer ir comigo comprar um? — Noah propôs e olhei para ele um
tanto surpresa. Lembrei-me do que minhas primas disseram, será que era
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Capítulo 18 – A partida
lateral e saiu do templo. Senti algo remexer dentro de mim e engoli em seco.
Era a mesma sensação de quando entendi que precisava pedir perdão frente à
igreja pelo que aprontei no acampamento.
“Eu não preciso fazer isso. Ela é quem errou comigo o tempo todo!”,
pensei angustiada, tentando argumentar com a voz que soprava em meu
coração. Conserte, dizia a voz. Conserte. “Mas consertar o que, Senhor?!
Não há nada para consertar! Bem, na verdade, talvez haja sim...”. Soltei o
ar, resignada. Reconheci, embora muito a contragosto, que a atitude que
estava pensando em ter poderia ser humilhante, mas era necessária. Passei
pelos bancos e saí pela porta lateral. Olhei de um lado a outro e não a vi.
Procurei pelo pequeno jardim da entrada e ali só havia algumas senhoras que
chegavam para a Escola Dominical. Já estava desistindo, quando pensei em
dar uma última olhada no pátio da parte posterior do templo. Chegando lá,
deparei-me com ela sentada em um pequeno banco de cimento onde havia
espaço para duas pessoas.
— Posso? — Perguntei. Ela virou o rosto, mas concordou em
silêncio. Sentei-me ao seu lado com o coração batendo forte. Thami mantinha
uma expressão fria. Os dois minutos mais longos da minha vida se passaram
e resolvi tomar coragem e iniciar a conversa.
— Bom, eu gostaria de... Bem, falar algo para você. — Pigarreei. —
Ontem eu li um versículo que dizia que assim como Deus nos perdoou, nós
devemos perdoar aqueles que nos fizeram mal. — Parei um instante. — Não
que eu esteja dizendo que você seja uma vilã e eu a mocinha, longe disso. E
nem que você tenha me feito um mal enorme, é só que... Bom, acho que não
estou sabendo falar direito o que estou sentindo, então só quero que saiba que
eu não tenho raiva de você. Tive muita, mas ao ler esse versículo percebi que
Deus te ama da mesma forma que ama a mim, então...
— Você não precisa fazer isso, Betina. — Ela continuava mirando o
outro lado, querendo manter uma posição firme.
— Como assim?
— Talvez eu não queira saber se você me perdoa ou não.
Prendi o ar e pisquei os olhos seguidas vezes. Foi como levar um
soco no estômago.
— Meu pai me forçou a vir aqui hoje para te pedir perdão. Ele achou
muito feio o que fiz com você no concurso. — Aqui ela finalmente virou-se
para mim. — Você sabia que eu vasculhei cada rede social sua em busca de
algo que pudesse usar contra você? Olhei cada canto daquele Facebook,
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engatinhando quando o assunto é vida com Deus, mas de uma coisa eu sei:
nada que eu ou você façamos de ruim pode fazê-Lo nos amar menos, e nada
que façamos de bom pode fazê-Lo nos amar mais. Ele simplesmente ama, e é
isso. Um amor incondicional, ou seja, que não impõe condições, como Sissa
costuma dizer.
Ela ergueu os olhos marejados para mim e soltou uma palavrinha
rouca e falha:
— Como?
— Acreditando. Você crê que Jesus morreu por você e te ama?
— Agora acho que sim. — Ela deu um sorriso torto.
— Além de crer, você precisa se arrepender dos seus pecados. E
assim, você será salva para sempre. — Repeti as palavras que ouvi de Patrick
no dia em que me entreguei ao Senhor. Ela ficou em silêncio e meu coração
não parou de se remexer dentro de mim. Não tinha ideia do que fazer a partir
daquele momento. Resolvi que o melhor era esperá-la falar alguma coisa.
— Obrigada, Betina. Acho que preciso pensar mais sobre isso.
— Tudo bem. — Respondi satisfeita. Aquele era um bom começo. —
Eu já vou indo porque meus pais devem estar querendo partir. Tchau! —
Levantei-me e fiquei em um impasse se deveria abraçá-la ou só ficar por isso
mesmo. Preferi a segunda opção e me afastei devagar, cruzando o pátio para
entrar na igreja. Ao me distanciar, fiquei admirada comigo mesma. Thami
havia contado como fez para me expor e humilhar no concurso e eu não tive
vontade de dar um tapa sequer nela! Agradeci a Deus no íntimo do meu ser.
Ter aquele sentimento constante de paz no coração era o que minha alma
buscava há tanto tempo e não sabia.
— Onde você estava?! — Nanda gritou e todos na pequena sala
olharam para mim. Balbuciei qualquer desculpa e ela me puxou para uma
foto.
— Sabia que o sinal de internet voltou ontem à noite? Vou postar
essa foto agora no Facebook!
— Ah, que ótimo! Passei um tempão em Gruta Alta e não tive
internet, nas vésperas da minha partida o sinal volta. Que sorte. —
Resmunguei.
— Pare de reclamar, menina. Veja o lado bom, pelo menos todo
mundo aproveitou as férias intensamente sem ficar com a cara enterrada no
celular!
Sorri, concordando com a Nanda e ouvi meu pai anunciar que era
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hora de partir. Espreitei os olhos à procura de Noah pela pequena saleta, mas
não o encontrei. Logo uma fila se formou para os últimos abraços e notei que
faltavam apenas dez minutos para o início da Escola Bíblica Dominical.
Talvez ele estivesse ajeitando os instrumentos para o momento de louvor.
Abracei a todos e o clima descontraído dispensava choros e lamentações.
Saímos da sala e olhei diretamente para frente do templo. Não havia
ninguém lá. Analisei cada banco e ele não estava dentre as pessoas que já se
acomodavam para o início do culto. Meus pais deram o último adeus e
entraram no carro. Eu ainda olhava de um lado a outro e quando, enfim,
estava prestes a passar pelo portão aramado e ir para o carro, notei um garoto
de cabelo loiro com suas ondas remexidas pelo vento, dono de um olhar
harmonioso e sorriso iluminado, parado em frente a uma árvore ao lado do
portão. Não consegui conter meus lábios, que se abriram em um sorriso
maravilhado. Ele deu uns passos à frente, aproximando-se de mim.
— Oi.
— Olá! — Respondi. Nossos olhos se encontraram e a minha
impressão era de que os meus transmitiam sentimentos além do que
deveriam.
— Queria entregar-lhe isto. — Ele estendeu um pequeno envelope
para mim. Cuidadosamente, levantei a aba e tirei um pedaço de papel
dobrado que havia dentro dele. Com letras pequenas e um pouco irregulares,
lia-se:
— Queria que soubesse que é isso que vou fazer por você a partir de
agora. Orar.
Levantei o rosto e fitei-o. Em seus olhos havia um brilho encantador
que parecia mandar uma mensagem invisível do seu coração para o mundo
exterior. E a mensagem era linda.
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resgatarei de todos os lugares para onde foram dispersas num dia de nuvens
e de trevas”.
Sissa me mostrou, pouco depois do acampamento, o capítulo de
Ezequiel 34 e disse que Deus havia me falado em sonho o que estava escrito
em uma parte daquele capítulo. Lembro-me de ter ficado perplexa e muito
grata a Deus. Agora aquela mesma sensação voltava e, olhando para o céu
através do vidro da janela do carro, entendia que aquele sonho tratara-se da
ilustração da minha própria vida. Até aquela noite no acampamento, eu
andava perdida, longe de Deus, na escuridão dos meus pecados, enganando-
me o tempo todo. E então Jesus chegou. Sua intensa luz logo denunciou as
sujeiras que havia em mim, mas em vez de me expulsar de Sua presença, Ele
tomou-me em seus braços. Jesus procurava suas ovelhas perdidas e me
encontrou.
Com o coração ardendo de alegria, sussurrei para o céu as palavras
que guiariam meus dias e mudariam tudo em mim dali em diante:
[1]
Frase escrita no livro “Adoração Extravagante” – Autora Darlene Zschech,
Editora Atos.
[2]
Música “Menina Não Vá Desanimar”, da Cantora Marcela Taís. CD Cabelo
Solto, 2011.