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Juoaglo do homem segundo Plato / Evlézio Francisco Borges Teixeira. ~ So Paulo: Paulus, +1999, ~ (Flsotia) Biblogratia. ISBN 85-349-1562-6 1. Educagio ~Flosotia 2. educagdo @ Estado 3, Pato |. Titulo. I. Série, 90-2817 cpp-1es Indices para caatalogo sistematico, 1. Edveaptio: Filosofia de Pato 184 Colegio FILOSOFIA + homer. Quam 6 oe? — elementos de antepoogla Hossa. Mondin * Quomé Deus? elementos de tolga Hose, 8 Monn + Os fldsofos através dos textos - de Pratdo a Sartre, WA, *Temismo no Brasil FA. Campos. + Alosofia na anighidade cist, C. Stoad + Aecueapao do homem segundo Platdo, EF B, Teixeira + Filosofia para + Realidade o existrcla:Lipdes de Metatsica — Introduo e Ontologla, Immanuel Kant + O.argut + Deus nas tradigdes Hosea (2 vols), A. Estrada * O fendmeno religioso: A fenomenologla om Paul Tilich, Tommy Akira Goto —— EVILAZIO FRANCISCO BORGES TEIXEIRA A EDUCACAO DO HOMEM _ SEGUNDO PLATAO PAULUS i AEDUCAGAO DO HOMEM SEGUNDO PLATAO 2.1. INTRODUZINDO A QUESTAO O género humano é marcado fundamentalmente por duas triades: a triade composta de mente-vontade-coragao e a triade tragica marcada pelo sofrimento-culpa e morte. Essas duas tria- des afloram no homem sua consciéncia de caminheiro. O ser hu- mano, na crueza de seu ser, se percebe como um eu que nao est pronto. Vive sua vida segundo o reino das possibilidades, cresce no ser e seu existir manifesta-se como um constante fazer-se num eter- novir-a-ser.! Diferente dos animais, que estao na natureza como seres jé da- dos, prontos, e, portanto, fechados, o homem traz consigo o impera- tivo de crescer sempre mais no seu ser. Sua vida se manifesta como abertura. Através da relacao e na relagao, existe a possibilidade de tornar-se sempre mais e melhor. A vida do homem, antes de mais nada, se apresenta como um encontro. Essa possibilidade aberta ao homem nés a chamamos de educagao2 Na educagdo e por ela, o homem néo somente assume uma con- igdo de abertura ao novo, mas, sobretudo, supera a si mesmo, atua- liza suas capacidades e potencialidades. Por isso, a tarefa primeira 0 homem experimenta seu préprio ser como um eterno advento, isto 6, como algo diante dele, leve ser buscado, realizado, Sua existéncia ce manifesta, axsim,néo simplesmente como um fato, Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997, p. 9, Cologdo Fil 2 Aldéia de educacto par: dntroduzindo a questao a da educagao é a humanizagéo. Educar um homem implica ajudé-lo a tornar-se humano. $6 0 homem é um ser educével que consegue conservar e propa- gar a sua forma de existéncia por meio da vontade e da razéo.’ O ser humano cria progressivamente a si préprio e cria, pelo conhecimento do mundo exterior e interior, formas melhores de existéncia humana.‘ Daj advém uma velha e antiga pergunta filoséfica, sempre nova esempre atual: o que é 0 homem? Eo que torna este homem humano? Como pano de fundo, o que esta em jogo é o que poderiamos denominar uma Antropologia® que seja capaz de responder a estas perguntas: que homem educar? Educar para qual sociedade? Ou seja, qual é 0 modelo de homem e que sociedade queremos? Esta talvez tenha sido a preocupagao central de Platao: formar © homem para uma sociedade ideal. A ela dedicou grande parte de sua filosofia. A motivagao filoséfica-chave de Platao consiste em tentar re- construir com novos pilares a paideéa® grega, forcando a passagem 3, bidem, pp 2 ouvetma a ler o primeiro capitulo da obra ctada acima de Manfredo Arasjo de OLIVEIRA que hed nsf histrica do homem, bem ‘como na relagdo objetiva e sul ‘Compreender o ser humane significa ‘movimento no qual o homem se gera asi mesmo, sto 6, compreender Uicldnde Sen dfn a pales pats, Ew geal eniiamospaidla ‘com “cultura A dificuldade que aparece 60 fato de estarmas habituados a usar a palavra "cultura, do ideal proprio da humanidade, herdeira da Grécia. Mas para nés a palavra ‘cultura’ ples conceita antropoldgico desertivo. J& nio significa um alto conceto de va te. Os gregos sho os erindores da idéia de cultura eestabelecer, pela primeira paidefa grognesté presente a ideia de uma educago do homem de acordo com a verdadeira forma burma ‘na, com 0 seu autintion ser. Nio se pode evitar 0 emprogo de expreasies modernas, camo evlizapho, culeura, tradigio,iteratura ou edveago; nenhuma dels, porém, eincide realmente com o que os gregea fentendiam por paidea, Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daqueleconceto global «para sbranger o campo total do conceto grgo, terfamos de emprogivles todas de uma s vet. "Paideta tem que ver com a educagso da pessoa fsien, estéticn, moral, religiosae politica, ou sq, ‘uma ediucagéo integral (cf. op. ct, pp. 88. “ee 4 educagao do homem segundo Platdo de uma explicagéo predominantemente mitica da realidade para uma compreensdo mais consistente dela em que seus fundamentos se encontrem na Filosofia e nao mais no mito. Essa motivacao nos parece tao evidente que numa de suas prin- cipais obras, A Repiiblica, Platao vai reservar um espago consideré- vel para discutir o problema da educagdo de seu tempo eo que ele mesmo entende por educagéio. A preocupagao de Plato é com uma educagéo harménica que garanta a felicidade tanto a polis quanto ao individuo. Tal educagao esté idealizada em seu grau maximo na figura do filésofo. Através da Filosofia, 0 filésofo da Academia pre- tendeu expressar 0 modelo mais elevado de educagao do homem. Ninguém, como 0 filésofo, chegou a pincaros tao elevados de huma- nidade. O amigo da sabedoria é aquele que vive feliz. porque é virtuo- 80, possui como ideal de vida viver a justia tanto individual quanto coletiva, seu objetivo é chegar A verdade que se manifesta na trans- paréncia das coisas, por meio de uma consistente formagao dialética. 0 fil6sofo idealizado por Platao ¢ o nico capaz de governar a cidade com justica, pois é o que mais recebeu educagao, Sua educagao nao consiste apenas numa formagao técnica, mas integral, de modo que péde désenvolver todas as suas capacidades. O modelo do fildsofo a medida suprema, o Bem, entendido como princfpio absoluto. 5 ele, o filésofo, quem mais conseguiu assemelhar-se a Deus. Seu ob- jetivo é a construgao da polis justa, por isso o fildsofo é um devoto de sua comunidade e est imbufdo de um grande espfrito comunitario de solidariedade. A prova disso é a sua volta 4 caverna, para libertar seus irméos, pois sabe que sozinho nao lhe sera possivel realizar nada. Para Platéo, o ideal da educacao néo é formar o individuo por ou para si mesmo, mas formar 0 cidadao para a polis. O que os gre- gos entendem por polis? Comecemos por ela. 2.2, O IDEAL DE POLIS COMO CRITERIO. PARA A EDUCACAO DO HOMEM. O mais importante, segundo Platao, é o ideal de sociedade. A partir desse ideal, formar-se-4 0 individuo enquanto tal. Por polis se entende uma cidade auténoma e soberana, cujo quadro institucional é caracterizado por uma ou varias magis- U taeat de Pons Como Crilerto Para G eGUCAEdO UO MOnmlent of traturas, por um conselho e por uma assembléia de cidadéos (po- litai). Quando falamos da polis grega, podemos referir-nos aos regi- mes oligdrquicos (tipicos dos séculos VIII-VI, mas também verifi- céveis nos séculos posteriores) e aos regimes democraticos que se encontram a partir, mais ou menos, do século VI." A polis representa um principio novo, uma forma mais consis- tente e mais acabada da vida social, de significagéo muito maior que nenhuma outra para os gregos. A palavra polis pode ser traduzida tanto por Estado como por cidade. Do conceito de polis derivam as palavras “politica”® e “polf- tico”, que ainda se mantém vivas entre nés e lembram-nos que foi com a polis grega que apareceu, pela primeira vez, 0 que nés de- nominamos Estado.? Werner Jaeger mostra, em seu livro acima citado, que a polis é o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o pe- riodo mais importante da evolugao grega. S6 na polis se pode encon- trar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual e huma- na e determina de modo decisivo a sua estrutura. No perfodo primitivo da cultura grega, todos os ramos da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitaria da vida em comunidade. Por isso, descrever a polis, a partir do conceito de cidade grega, é descre- ver a totalidade da vida dos gregos. A polis é o marco social da histé- ria da formagao grega."° A polis grega encontrou a sua expresso primeiro na poesia e, logo a seguir, na prosa, e determinou permanentemente o caréter da nagao."" rberto & MATTEUCI, Giantaneo Pasqino,Disionrio de Politic. Bras, ‘reat 1086p. 04. ; ‘lien termo derivado do adjiivoarigindo dpi (olin) que signin oo qu ae refer A cdats consoquetemene, que urban, cv ploy Q tno pies” se expen, gages initia de gra obra de Arottees intuada Plazs, que deve so onideraa como 0 primer trata sore natures, unsesedvsts do Eat, pobre a vin formas dn governo com a aig ‘tpl mts comum dete ou cna do governo BORBIO & MATTEUCI, op, tp. 954) SIAEGER op. "Sh tide pp. 108: ; 2 il paca eto igus da ol, aa 6 opr da corns ee estrutura poliicnpropsia do mun grego-Algne autores fizam tem best oigem da pols om Eralo 6002 Gr outro, ao contri fare rennter ofandmeno 8 epoca andres al ‘Segundo a opinido de alguns atudioeos, triam sido precisamente os dérios, outro povo de origem indo-europdia e de estirpe helénica, mas mais jover e militarmente mais forte, que submeteram os 28 A educagdao do homem segundo Platao 4Jé Plato parte dos poetas, ao tentar tragar em As Leis 0 esque- ma do pensamento politico e pedagégico da antiguidade helénica, ¢ chega a determinagao de duas formas fundamentais que parecem representar a totalidade da cultura politica do seu povo: o Estado militar espartano e o Estado jurfdico original da Jénia.2 As particularidades do espfrito dérico e jénico revelam-se de maneira precisa nas formas da vida das cidades e na fisionomia espiritual da polis. Ambos os tipos se juntam na Atenas dos séculos Ve IV. Enquanto a vida real do Estado ateniense recebe o influxo decisivo do ideal jénico, na esfera espiritual, por influéncia aristo- crética da Filosofia dtica, vive a idéia espartana de uma regenera- go que, no ideal platénico da formagao, funde-se numa unidade superior com a idéia fundamental jénico-atica, despojada da sua for- ma democratica, de um Estado regido pelo direito.2? Esparta foi, em muitos aspectos, modelo para Platao e outros tedricos da educagao posterior a ele, embora neles houvesse um es- pirito totalmente novo. O grande problema social de toda a educa- ¢40 posterior foi a superagao do individualismo e a formagao dos homens de acordo com as normas obrigatérias da comunidade, por- que a democracia restaurada em Atenas, nos fins do século V, en- contra no século IV sua decadéncia. A causa desse declinio foi o pre- dom{nio desenfreado do individualismo. A participagao na Assembléia nao é mais entendida como contribuigéo para o bem comum, mas como meio de obter vantagens pessoais. Sobre esse pano de fundo vai ganhando cada vez mais corpo a tendéncia de uma parte consideravel do pensamento politico a favor do regime monérquico, 0 tinieo que se acreditava ainda capaz de devolver a ordem ao Estado. O Estado espartano, com sua autoridade rigorosa, surgiu como a solugio pratica desse problema e ocupou o pensamento de Platéo durante a vida inteira. Para os homens do século IV, a possibilidade da educagao dependia, em tiltima andlise, de se conseguir uma nor- ma absoluta para a agéo humana. Esse fundamento encontra-se ‘aqueus, jf etabelocdos no tervtéri da Hélade o governados por uma monarquia, Com a conseqten: ‘egueda oreginemonéruin ¢ainstaurgio droping teria sureto nova oganzoie precisamente a op. ci Be PONORTIARGER op. tp. 107 idem, p. 108, 4m busca da eudaimonfa (felicidade) 28 resolvido em Esparta.* Nesse particular, a disciplina espartana ten. de a ser apresentada como a educagdo ideal e teve uma influéncie significativa na estruturagao da paideia grega superior. A gigantesca influéncia da polis na vida dos individuos basea va-se na idealidade do pensamento dela. O Estado converteu-se num ser especificamente espiritual, que reunia em si os mais altos as. pectos da existéncia humana e os repartia como dons préprios. Re- tomar essa concepedo de polis, através da construgao de um Estad¢ ideal, fundamentado na Filosofia, foi a solugéo encontrada por Platad como um modo privilegiado de consolidagao e unificagao do pove grego. Por isso, “Platao foi o grande organizador do tesouro espiri- tual da nagdo grega”.’® Em seu didlogo A Repiiblica (ou Politefa), Platao defende a tese de que os homens, que devem mandar na cidade, deveriam ser filéso- fos. Conforme essa teoria, a educagao mais completa seré aquela que melhor possibilite a formagao do fil6sofo, capacitando-o a comandar a cidade com justica e, portanto, garantir 0 maior grau de felicidade (eudaimonta) a polis. Isto 6, a justica é condigao de possibilidade de uma vida feliz, e o contrério dela seré a causa da infelicidade. 0 fil6sofo, segundo Platao, é 0 mais bem preparado para govi nar a cidade, pois, gragas ao seu conhecimento e sabedoria, adquit dos com a educagao, poderé fazer boas leis que garantam a harmo- nia e a superagdo das conseqiientes contradigées da vida em sociedade. 2.3. EM BUSCA DA EUDAIMONIA (FELICIDADE) Apalavra eudaimonta vem do grego eu (bom) + daimén (esptri- to) = aquele que tem um espirito bom. Em As Leis, Platao diz que todos os homens aspiram a felicida- de. A questo 6: em que consiste a felicidade? O que torna o homem feliz? JAEGER mostra que a antiga Exparta dos tempos heréicos do século VII tinha uma vida mals rica e estava totalmente livre da pobreza espiritual que a sua imagem histérica nos apresenta de ‘modo tio vigoroso. Vé-se, com toda a clareza, que a condigao da mulher na vida pibliea e privada de Esparta era muito mais livre que entre os Jénios, inlueneiados pelos costumes asidticos, @ que em ‘Atenas, por sua vez influenciada pelos jonios (op. cit, pp. 128-128). "8 Pedder, p 117. 30 A educagdo do homem segundo Platao Platéo comeca analisando as poss{veis classes de vida: aquela entregue ao prazer; a consagrada a sabedoria; e aquela consagrada a pratica da virtude (areté). Nao aceita o hedonismo como ideal de vida. Antes, condena a vida entregue ao puro prazer e prope um ideal de vida inspirado no cultivo da virtude e da sabedoria. O ideal de vida apresentado por Platao passa por certa mortificagdéo e ascese.'® E ledo engano pautar a vida pelo imperativo do gozo. A vida virtuosa é a Gnica forma de viver bem e ser feliz. No Filebo, Plato insiste na idéia de que “cada um de nés deve- r4 esforgar-se por demonstrar qual é 0 estado e a disposic¢ao da alma capaz de proporcionar vida feliz aos homens. Se a vés compete de- monstrar que 6 o prazer, a mim compete demonstrar que é a sabedo- 7 Em A Repiiblica,™* descreve de um modo tragico a existéncia daqueles que pautam sua vida segundo o imperativo do prazer: vi- vem errantes, s4o ineapazes de ultrapassar o limite do prazer e ele- var-se até o verdadeiro ser, nem podem provar o que seja um prazer s6lido e puro. Engordam e acasalam-se, semelhantes aos animais, vivem pela cupidez dos sentidos, dilaceram-se e batem uns nos ou- tros, matando-se por causa do seu apetite insacidvel. Passam a vida em prazeres misturados com sofrimentos, sio fantasmas do prazer verdadeiro, Sao insacidveis, porquanto nao enchem de alimentos consistentes a parte real e estanque de si mesmos. Platao condena o prazer como sentido tiltimo da existéncia. Isso néo significa dizer que Platéo ndo valorize a importancia do prazer na vida humana, Afinal, a vida 6 também gozo, fruigao. Porém, quais prazeres realizam 0 homem? Quais prazeres colaboram para a sua felicidade?”® Diante dhedonismo de Endo, que afrmava sero prazero nico bem. «do Platdo adota uma posigio intermedidria, © equilibrada, na tentativa de bus io. Nao condena necessariamente o prazer, mas submete-o aa julgemento teil 6860 \ ARISTOTELES, em sua Etiea a NicOmaco, distingue prazer de folicidade. Nao obstante, néo equ atestad om ts de psn Fos Aces acs pn See se ‘Rejeita a primeira, baseado na afirmagto de que o softimento é, com certeza, mau; portanto, 0 prazer deve ser bom. E'um néscio aquele que afirma que o homer pode ser felis no meio de tormentos, ‘Ohhomem, para ser feliz, necssita dos bens corporaiseexteriores, Todas as coisas tim algo de dvino, ou £m busca da eudaimonia (felicidade) 3] Para Plato, os prazeres mais excelsos da vida humana so aque les ligados a alma; a vida feliz é a do homem que tende para o inte ligivel e ndo cede a fascinagao do sensivel. A felicidade 6 da ordem do conhecimento. A felicidade esta na procura do Bem e do Belo, esta na marcha para a fonte do ser e do conhecimento.2” Abel Jeanniére, escreve que “0 Bem 60 fim supremo de tudo o que vive e ele basta-se a si mesmo. Mas nem a sabedoria nem o prazer sozinhos podem pretender ser 0 Bem. Ninguém aceitaria uma vida de prazer que nao fosse iluminada por uma centelha de inteligéncia; ninguém aceitaria uma vida de sa- bedoria imperturbével que ndo fosse despertada por nenhuma emogdo de prazer ow dor: A vida feliz é uma mistura de sabedoria e prazer, que nao pode afastar a dor”! No Filebo, Platao esforga-se para revalorizar o sensivel na com- Pposigdo de uma vida feliz, mas nao volta atras; a felicidade esté sempre na ascensdo dialética para o Bem e 0 Belo. O problema é que o mero prazer sensivel é diferente do sumo Bem, porque ¢ instével, incompleto e fugaz. Viver a vida, tendo como nico horizonte de sentido o prazer, esta longe de ser chamada vida autenticamente humana. O homem nao é somente um corpo, mas, sobretudo, é possuidor de uma alma inteligente. Tampouco é possf- vel ao homem ser feliz. sozinho.2* cae (fh CAUCUGaO GO omen segundo £ratao A tentativa de Platao 6 estabelecer um equilibrio entre prazer sensivel corporal e a alma inteligivel racional. A felicidade esté na mistura dessas duas realidades humanas. Nao é possivel ao homem uma inteligéncia pura, j4 que a alma, mesmo que seja acidental- mente, esté unida a um corpo material. A sabedoria pura nao s6 6 uma inviabilidade, como também nfo seria o bem do homem com- pleto.** A felicidade, portanto, consiste num misto de prazer com inteligéncia e discernimento.” O préprio Platao afirma no Filebo: “Quero saber se algum de nés aceitaria viver com sabedoria e inteli- géncia e conhecimento de todas as coisas e a meméria de tudo o que acontecera, porém sem participar, nem muito nem pouco, do prazer ou da dor, ou seja, inteiramente insensfvel a tudo isso”.* Existe uma {intima relacéo entre prazer e dor. Ténue é a linha diviséria que os separa. Quanto mais o homem viver em fungao dos prazeres sensiveis e imediatos, tanto maior seré sua possibilidade de encontrar-se com a dor. Prazer e dor sao dois lados de uma mes- ma moeda. Escreve Platao no Fédon: “Como é extraordinario o que os homens denominam de prazer, e como se associa admiravelmen- te com o sofrimento, que passa, alids, por seu contrério. Néo gostam de ficar juntos no homem. Mal alguém persegue e aleanga um deles, de regra é obrigado a apanhar 0 outro, como se ambos, apesar de serem dois, estivessem ligados por uma mesma cabeca” 2” Educar o homem de modo que o torne feliz, educar para apren- der a desejar, isso significa educar 0 homem virtuoso. De todos os homens, 0 fildsofo platénico é o que mais recebeu educagao, é 0 mais divino em sua atividade. Purificado, por meio da ascese, de seus desejos irasciveis, é, portanto, o mais feliz. No Fédon, a virtude assume um sentido catartico e ascético.2° A pratica da virtude tem como finalidade ajudar o homem a educar suas paixdes inferiores, por meio da purificacdo. Através da purificagao, 0 CF. FRAILE, op. cit, p. 953, 2 Filebo, 220. * Ibidem, 2. 2 Fédon, 60b 40 fundo dest estilo de vide 6 onstituido pela doutrina de origem érfica da transmigragéo das ‘almas: a alma se origina de um outro mundo e, tendo pecado (hamartia), deve agora, jungida ao corpo, Jevar uma vida de expiagdo e errante, até chogar,libertada do corpo eda sensualidade, a ser de novo totalmente espirita. O corpo 6 o sepulero da alma. Importa entao trlhar o caminho da purifeapto. Este comproende a asceae (preceitas do jejum, do eiléneio, exame de conaciéneia & note sobre os cus ‘tos diversos bons e mau)" (HIRSCHBERGER, op cit, p26) am Ousca Ga eudaimonia (feticidade) 33 homem vai libertando sua alma da prisdo do corpo, que se concentra sobre si mesma,’ preparando-a para o estado feliz em que, por meio da contemplagéo das realidades eternas, retorna ao mundo ideal. A felicidade esta na vida virtuosa e, sobretudo, no exercicio da razao contemplativa.” 0 homem néo 6 pura contemplagéo, mas, através da vida contemplativa, participa da vida divina. Através do raciocinio, o homem contempla o invisivel. Mergulha na esséncia das coisas que nao se deixam tocar ou perceber pelos sentidos, mas 86 podem ser apreendidas pelo raciocinio, por serem todas elas invi- siveis e estarem fora do aleance da visio. Aristételes, em sua Etica a Nicémaco,® parece concordar com Platao. Em sintese, a doutrina do livro consiste em que a felicidade reside na atividade virtuosa, e a felicidade perfeita consiste na me- lhor atividade, que é contemplativa. A felicidade suprema esté no exercicio da razao, pois a razdo é 0 homem. Quem exerce e cultiva a sua razéo possui uma melhor disposigao de espirito, e assim 6 0 mais caro aos deuses. Os deuses se interessam pelos assuntos hu- manos e deleitam-se com aquilo que é melhor e que mais afinidade tem com eles. Ora, a razao é justamente aquela que mais aproxima os homens dos deuses. E evidente que 0 filésofo, dentre todos os homens, é 0 que mais possui esses atributos, 6 o mais caro aos deuses. E serd, presumi- velmente, também o mais feliz. E preciso afastar a idéia de que o prazer é 0 tinico bem. A vida feliz pertence, antes de tudo, ao individuo que procura a participa- ¢4o no Bem com letra maitiscula, ou seja, no Uno. O homem que age assim nao se abandona indiferente aos prazeres; também nao 0s rejeita. A vida desse homem é um misto de sabedoria e prazer. A felicidade consiste justamente na arte de viver a vida, dosando a mistura de prazer e sabedoria. A harmonia entre o prazer puro e a razdo é também 0 critério que permite julgar o equilfbrio interior do composto humano.* Eis o que Platao nos diz no Filebo: # Rédon, 610. Para FRAILE, “Platdo abriga a convicedo, ou pelo menos a esperanga, de que existe um Bem ‘Supremo em si, eo considera como acessivel ao homem, nlo por possessio, nem por uniso efetive, no ‘menos por contemplapao” (p. ei, p. 355) idon, 790. Btiea a Nicémaco, 1179 a. 8 JEANNIERE, op. ci p. 136. us (fA CGECULAO GO MOTE SESUNGO £tGLaO “Facamos, pois, esta mistura, invocando os deuses, Dioniso ou Hefatstos, ou qualquer outro que tenha a honra de presidir ds mistu- rast...). Somos como o escangao diante de duas fontes: a do prazer, que se pode comparar com uma fonte de mel, e a da sabedoria, sobria e sem vestigio de vinho, comparével a uma fonte de égua austerae pur, Estas sao as duas fontes que devemos misturar da melhor maneira possivel”. 4 Platéo insiste na tese de que a eudaimonta (felicidade) s6 € pos- sivel se for a felicidade para todos e consiste justamente na procura de mais justiga na cidade, justiga essa que deverd comportar tam- bém a procura do Belo e do Bem. Em suma, a felicidade consiste na pratica das virtudes. Mas afinal o que Platao entende por areté, ou virtude? 2.4. EDUCAR E FORMAR O HOMEM VIRTUOSO Uma das perguntas centrais em Platdo é a pergunta pela virtu- de. Afinal de contas, o que é e em que consiste a virtude?® Para Platao, a virtude é a coisa mais preciosa e mais valiosa da vida, pois, somente sendo virtuoso, o homem poderé ser feliz: “Todo o ouro da terra e debaixo da terra nao aleanga o valor da virtude”.® No Primeiro Alcibiades,.” Sécrates tenta convencer 0 jovem Alcibfades, que ambicionava a carreira politica, da importante ne- cessidade da sabedoria e da bondade para se alcangar a felicidade. Os maus sao infelizes. As riquezas nao dao cabo de evitar a infelici- dade, mas a sabedoria sim. Para serem felizes, as cidades nao ne- cessitam de muros, nem de uma superpopulagao, nem de tamanho, necessitam, sim, de homens virtuosos. A virtude diz respeito Aquilo que é belo e bom na vida. O belo e bom sao dois aspectos que formam uma mesma realidade, dando- SFilebo, 6c. mundo que de fato existe, como ele ‘que deve ser. O deverser 60 ideal 3. Acondonagao injusta e a morte de que o mundo-que-de-fato-é nem sempre enincide com 0 IRNE LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. Porta Alegre, $, 1996, p. 42, Colegio Filosofia, 48) Leis, 728a, OE PLATAO....O Primeiro Alcibiades, 1346, “aucar € formar o homem virtuoso 35 Ihe unidade, A suprema areté do homem como ser belo e bom forma © ideal daquilo que os gregos chamavam de kalokagathia. A kalokagathia na sua esséncia pura vai dar o princfpio ordenador de toda a vontade e conduta humanas.*® Por exemplo, quem executa uma bela agdo se comporta bem. E 05 que se comportam bem sao felizes, e sao felizes por possuir algum bem. E s6 alcanga esse bem, por seu comportamento bom e belo. Assim, 0 belo e o bom se revelam como idénticos. Sempre que acha- mos que uma coisa é bela, teremos de consideré-la boa. Quem prati- ca agao justa necessariamente realiza um ato belo. Por diversos caminhos, Plato tenta chegar ao conhecimento da areté; mas 6 a virtude objeto de ensino, ou nao? Pode a virtude ser conhecida e ensinada? A discussao que se estabelece a partir do Protagoras tem como pano de fundo duas questées fundamentais. A primeira, a que jé aludimos acima, discute a possibilidade de a virtude ser ensinada ou nao. Afinal, se a virtude néo é um saber e, portanto, nado é objeto de conhecimento, nao pode ser ensinada; dai conclui-se que ela nao & objeto de educacao. ‘A segunda, néo menos pertinente, est4 presente na pergunta sobre a multiplicidade e a unicidade daquilo que chamamos areté. Ou seja, “a sabedoria, a temperanga, a coragem, a justica e a santi- dade, sendo cinco nomes diferentes, aplicam-se a uma sé coisa, ou a cada uma em separado corresponde uma esséncia subjacente, dota- da cada uma de propriedade peculiar que se distingue de todo em todo das demais”?° No Protdgoras, Sécrates procura ganhar os sofistas para a sua causa. Por isso, defende a tese de que a virtude é um saber e, por- tanto, deve ser ensinada."! Através do conhecimento da virtude, o homem melhora seu comportamento.? ‘CL JAEGER, op. cit, p. 748. Cf PLATAO... O Primeiro Alcibiades, 116b-c. “CE PLATAO. Protagoras, 349 “Séerates faz ver a Protégoras, que representava o pensamento da multidéo, e, portanto, do senso comum, que o homem, para escolher oom acerto a maior soma de prazer, precisa distingult 0 ptazer maior do menor e isso ndo se podia aleangar sem o conhecimento do melher tipo de vida (f. JAEGER, op. cit, p. 647). ‘«"Escreve Juan A. NUNO: “O conhecimento da areté, por conseguinte, néo 6 6 posstvel, sento nocessério para melhorar o comportamento humano através do conhecimento.A isto se resolveu char ‘mar ‘ntelectualismo ético' de Sécrates, porém, talver haja certo abuso nessea termos, No ee entenda, ae “A educagao ao homem segundo Platao As diferentes qualidades chamadas virtudes, como a valentia, a prudéncia, a piedade e a justiga, s4o apenas partes de uma virtude, da virtude total. Essa virtude total é 0 Bem, e a esséncia dessa vir- tude é por si mesma um saber. Pode parecer contraditério 0 fato de Sécrates, num primeiro momento, afirmar que a virtude nao é suscetivel de ser ensinada.** O argumento de Sécrates baseia-se no fato de que “os melhores e mais sdbios cidadaos sao incapazes de transmitir a alguém a virtu- de que Ihes é propria”. E, num segundo momento, tenta provar por todos os meios que a virtude 6, sob todas as formas, um saber; e Protagoras, que a con- siderava matéria apta para ensino, faz, ao contrério, grandes esfor- gos para demonstrar que ela é tudo menos um saber, com o que se torna materialmente discutfvel a possibilidade de ensind-la.4° E certo que Sécrates nao considerava a virtude suscetivel de ser ensinada, nem apregoa pretensio de educar os homens, mas Plato dé a entender que por tras dessa atitude irénica esconde-se apenas @ sua profunda consciéncia das reais dificuldades que semelhante missdo encerra.** A questdo decisiva é esta: poderdo o saber e 0 co- nhecimento ajudar o homem a agir bem e a consciéncia do que é bom escudé-lo contra qualquer influéncia que pretenda levé-lo a agir mal?" A tese socratica que reduz a virtude ao conhecimento dos verdadeiros valores deve constituir a pedra angular de toda a edu- cacao. O Menon é 0 primeiro didlogo dessa investigagao e tenta escla- recer a relagéo entre saber e virtude para toda a educagdo. Torna-se urgentemente necessaria uma investigacéo especial do problema do que era o saber assim concebido. O Menon 6 uma tentativa de resol- ver o problema colocado no Protdgoras: que espécie de saber 6 aque- le que Sécrates considera fundamental para a areté? #ducar é formar o homem virtuoso 37 Sécrates recusa varias vezes o termo “ensinar’, porque ele pa- rece refletir a idéia de um atulhamento na alma, de conhecimentos provenientes do exterior. Nao por alguém a ensinar, mas, sim, por tiré-la do seu proprio saber que o escravo descobre a verdade da regra matematica.® O coneeito platénico do saber, explicado na digressao matemiti- ca do Menon, retoma o velho problema do que é areté. E aqui apare- ce com destaque a possibilidade do conhecimento positivo da verda- de. A verdade aparece como um processo de autoconhecimento progressivo e gradual do espirito. Cabe a experiéncia sensivel o pa- pel de despertar na alma a recordacdo da esséncia das coisas, con- templadas desde sempre no mundo das idéias, que veremos mais adiante, quando trabalharmos 0 conceito de verdade. No Menon, Platao néo faz mais do que indicar a teoria de que 0 saber socratico 6 reminiscéncia, bem como a teoria da imortalidade e da prees téncia, que mais tarde serao desenvolvidas no Fédon, em A Reptibli- ca, no Fedro e em As Leis." 2.4.1. A virtude é uma harmonia Por diversas vezes, Plato refere-se & virtude como sendo uma harmonia. A virtude harmoniza os diversos elementos que compéem o complexo humano. Tanto no Gorgias quanto em A Repiiblica, a justiga (dikaiosyne) aparece como a virtude mais importante. Praticando-a, nos asseme- Ihamos ao que é invistvel, divino, imortal e sébio. Por meio da justi- ¢a, chegamos a felicidade.5! Em outros didlogos, como As Leis e 0 préprio Fédon, a sabedoria (sophia) e a prudéncia (phrénesis) s4o as mais fundamentais. A pru- déncia ou sabedoria é a virtude prépria da alma racional (nous); no seu exercfcio esté o divino no homem. Outra virtude importante é a fortaleza (andrefa). Essa virtude exerce uma fungdo reguladora na alma das paixdes nobres (timés) e generosas, fazendo com que o homem se sobreponha ao sofrimento e “Ct, PLATAO. Menon, 85, 4. Segundo JAEGER, op. cit, p. 712, Platdo encontra-se interessado ‘no caso conereto do saber matemético, porque partlha esta origem com oconhecimento dea valores. E Cf. JABGER, op. eit, p. 71. "CE Fédon, Bia, aed “A educagao do homem segundo Platao a dor, sacrificando os prazeres, quando, em nome do dever, isso seja necessério. Portanto, temos um grupo de virtudes, como a justiga, a prudéncia, a sabedoria e a fortaleza,®? que forma o grande time das virtudes cardeais.©° A justiga é uma virtude geral e compreende todas as demais.+ Em A Repiiblica, ela assemelha-se & harmonia musical. E ela que Pde a casa em ordem, possibilita 0 autodominio e torna o homem. amigo de si mesmo. Em suma, a virtude da justiga sera, a0 que parece, uma espécie de satide, beleza e bem-estar da alma; ao pas- 80 que 0 seu contrario, a injustica, é uma enfermidade, fealdade debilidade.®* No Protdgoras, a justiga é proclamada como sendo um dom dos deuses para o homem. “Zeus mandou que Hermes levasse aos ho- mens 0 pudor e a justica, como principio ordenador das cidades: para garantir aos homens a sobrevivéncia da espécie.”*? Sendo um dom dos deuses, a justica foi distribufda para todos e ela se concre- tiza através da lei; portanto, “todo homem incapaz de pudor e de justiga sofrerd a pena capital, por ser consideradoflagelo da socie- lade” __Aharmonia, tanto individual quanto social, imita a harmonia césmica. Tudo esta regido por meio de uma lei universal, por meio da qual tudo se encontra perfeitamente medido, regulado e propor- Nao importa aquio fato do, por vezes, no lugar da sabedoria| quatro virtudes no sio novidade de Platdo, O filésofo,certamer leis helnieas. Segundo TUGENDHAT, “Platéo contribu relativamente pouco para a compreen- ‘ho da definigto dem ue isto The parecia mais ou menos evidents a partir da tredipa Sdn definite de moral, porque isto Ihe idente a partir da tradipso, e toda ‘Estado eos cidade garentiro beta count FRAILE. op of 10 mento acntece na Bice @ Nisbmaco. Areas gota um ntzero malar de arta Platao. Ao falar de justiga, distingue um duplo concei ic ste ine tin om sentido mas gral, que engloba a totaldade ds termes tneis e potters Avior ‘também postula que na justica se encontram todas as demais virtuc ELES, op. > ering deo ARISTOTELES op ci, 11299) SE ibiem, a. BE PLATAO Potigoro, 326. idem 5204. Educar é formar o homem virtuoso cionado. O universo néo foi feito para o homem, mas o homem par o universo, no qual reina a mais perfeita ordem e harmonia.®? Avirtude seré, portanto, a arte da boa medida. A arte da bo medida é 0 prinefpio salvador da vida humana, pois é capaz de i além da aparéncia. Se a aparéncia leva a ilusdo, a arte da medid neutraliza essa ilusdo, j4 que se aplica naquilo em que consiste verdadeira relagdo das coisas. Aquilo que Platao, no Protdgoras, chama de arte de medir, em, Reptiblica aparece como a virtude da temperanga. Importa educar homem temperante. A temperanca é uma espécie de ordem e de dc minio sobre os prazeres e os apetites. Assemelha-se a uma espéci de harmonia, por isso diremos que ela é uma coneérdia ou um aco do segundo a natureza do inferior e do superior. Para Platao, a virtude da temperanca é essencial para o deser volvimento da sabedoria e aperfeigoamento da alma. A alma set cultura e sem graca nao tende sendo para a falta de comedimento. verdade é aparentada com o comedimento, e néo com a falta del 2.4.2. O que Platéo entende por justiga? Nao 6 por acaso que Platao, no livro I de A Repiiblica, comes discutindo o problema da justiga. E refuta as definigdes proposte pelos amigos debatedores de Sécrates: a de Céfalo, segundo o qual justiga significa “dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou” Platao refuta, também, através das palavras colocadas na bod de seu antigo mestre Sécrates, a tese de Polemarco, segundo o qu ‘justiga é dar a cada um o que se lhe deve”. E a de Trasimaco, qu afirma que a ‘justiga ndo é outra coisa sendo a conveniéncia a mais forte”. ‘a despeito de sua inaignifiedneia,eatd sempre voltada para o todo; mas o que nio percebes 6 que to {goragéo s6 se processa em beneficio do conjunta, a fim de ensejarthe vida feliz, eque o eonjunto n {oi feito para fi; ta € que nascesto para o todo" (As Leis, 9036-2). ‘Cf PLATAO. Protégoras, 3560; 357. Ibidem, 838. _— th caucagao do homem segundo Platao Segundo Platao, a pergunta pela justiga implica perguntarmos pelo problema da igualdade entre os homens. Ja de anteméo afirma que os homens néo séo iguais, tampouco livres por natureza.* Aristételes em sua obra A Politica afirma que a escravidio 6 um fato natural." Todos os seres, desde o primeiro instante do nasci- mento, s4o, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para co- mandar, outros para obedecer. Segundo Aristételes, ha homens fei- tos para a liberdade, outros para a escravidao. Uma vez manifesto que uns séo livres e outros escravos por natureza, a escravidao, por sua vez, é conveniente e justa.5” Platdo comega afirmando que os cidadaos devem ser divididos em trés classes: a gente comum ou trabalhadores (que, segundo ele, teriam sido feitos de bronze), os soldados, também chamados de sen. tinelas (de prata), e os guardiaes denominados governantes-filéso- fos (de ouro). Para justificar a idéia de que os homens foram feitos de diferentes elementos da natureza, Platao se vale do mito Mas o deus que vos modelou, aqueles dentre vos que eram aptos Para governar, misturou-lhes ouro na sua composi¢ao, motivo por que sao mais preciosos; aos auxiliares, prata; ferro e bronze aos la- vradores e demais artifices”.®° Para fundamentar a idéia de que o Estado devia ser dirigi- do por fildsofos e que os homens néo sao iguais, Platao se vale da constituigao do corpo humano, formado por cabega, peito e baixo-ven- to de Estudios Politicos, 1970,1255a, Trad. Julién verdad 56 surgiu com os grogos. Por istoos gregos foram tas, no entanto, os gregos ¢ os romanos souberam quo somente alguns eraim Livres, no gure home cao tal ve, Pati Aristtnea nfo soheram st. Porqua yhomem &o que deve ser, median- rediatamente o homom 6 somente a possibilidade de a8-1o, la Filosofia del Derecho, Barcelona, Edhasa, 1988, pardgra: aucar é formar o homem virtuoso baie tre.®® Cada parte corresponde a determinada caracteristica e est& associada a uma virtude correspondente, qual seja: a cabeca a ra- 280, e, portanto, associada a virtude da sabedoria; a vontade ao pei- to, correspondendo a virtude da coragem; e o baixo-ventre esté as- sociado ao desejo ou ao prazer, dai a importancia da virtude da temperanga e do comedimento. A idéia platénica de uma educagao organica para um Estado, funcionando como um organismo, vai determinar a definigdo de jus- tiga que é dada no Livro IV. O conceito de justiga em Platao esté diretamente associado a sua tentativa de busca de maior organi- cidade educacional, que possibilite um desenvolvimento mais har- monioso do Estado. A justiga consiste, portanto, no seguinte: cada um deve ocupar-se de uma fungéo na cidade, aquela para a qual a sua natureza é mais adequada. Além disso, executar a tarefa propria, e nao se meter nas dos outros”.”" O que Platao quer dizer a rigor 6 que a justiga consiste em que cada um se dedique ao seu trabalho e que pode haver desigualdade de poder e de privilégio, sem que necessariamente haja injustiga. Somente haveria injustiga, se houvesse nas outras classes pessoas mais sdbias e mais bem preparadas do que os guardiées. Para o bom andamento e harmonia de uma sociedade, requer- se que os individuos desempenhem diferentes fungbes e que a di- rego da cidade ndo deve ser entregue a qualquer um, mas aqueles que se distinguirem pela experiéncia, maturidade, virtude e edu- cagao. “As pessoas aperfeigoadas pela educagéo e pela idade, somente a essas seria entregue a cidade. Tal pessoa deve ser dotada de meméria e faci- lidade de aprender, de superioridade e de amabilidade, amigo e ade- rente da verdade, da justica, da coragem e da temperanca.”* ‘A partir disso, Platdo imagina um Estado constitufdo exatamente como o ser humano. Assim ‘ "batxo-ver ibém o Estado possui governantes,sentinelas ‘caracteriza pelo fato de cada um conhecer 0 ‘Sofia. Séo Paulo, Cia. das Letras, 1995, p. 106). WA Repilblica, 4338. ™Deidem, 87a. a “A eaucagao do homem segundo Platdo 2.5. O PROCESSO EDUCATIVO ATE SE CHEGAR AO REI-FILOSOFO. Platdo dé maior importancia a classe dos guerreiros, pois deles tudo depende. Essa classe, portanto, deverd receber educagao espe- cial e formagao aprimorada, tanto do corpo como da alma. Os me- Ihores dentre esses 6 que justamente serdo preparados para assu- mir o governo da cidade: os filésofos. _ Isso nao nos deve levar a pensar que a Filosofia seja uma tarefa facil. Pelo contrario, a formagéo do guardido-filésofo sera ardua e dificil. Platao chama a atengdo para o fato de que a formagao filos6- fica 6 conseqiiéncia de muitos anos de educagao e que a arte do filo- sofar supée reflexao e, portanto, siléncio e solidao. A vocagao a Filo- sofia 6, de certa forma, uma voeacéo a soliddo. E, como toda vocag: Para ser auténtica, exige fidelidade. A arte do filosofar exige mo- mentos de deserto e afastamento do mundo. Plato compara a vida do fil6sofo com uma espécie de exilio.“(...) poucos séo dignos de con- viver com a Filosofia, a nao ser qualquer espfrito nobre e com boa. educagio, retido pelo exflio, que, por falta de quem o corrompa, per- manece por natureza fiel a Filosofia.” Por isso, a Filosofia ndo é uma atividade de massa, antes, pelo contrério, é impossivel que a multidao seja filésofa. A Filosofia é uma atividade grandiosa e por demais sublime para estar nas maos de todos. A experiéncia nos tem demonstrado que, em geral, nem todos possuem o dom de captar o que é grandioso e sublime, “porque tudo 0 que € grandioso € perigoso; e é verdade o que diz o addgio: 0 que é belo é dificit”.” ___Pelo fato de ser um aprendizado dificil e exigente 6 que Platéo insiste na sua Politefa em que a educagéo e formacao filoséfica de- vem iniciar-se desde cedo. O tempo propicio de seu infeio é junto aos adolescentes que mal safram da infancia. Apesar de néo ter tido grande preocupagao de elaborar um pro- grama original para esse ciclo de estudos, a educagdo propriamente dita, segundo Platao, deverd comegar aos sete anos com a gindstica eamisica. Estas, por sua vez, tém o objetivo de desenvolver harmo- 24 Repablica, 4960. "Pbidem, 4978. O processo educativo até se chegar ao rei-filésofo niosamente o espirito e o corpo. Falaremos da educagao, através d gindstica e da musica, no terceiro capitulo. Os primeiros anos das criangas deveriam ser ocupados por jc gos educativos, praticados em comum pelos dois sexos e sob vigilAr cia. O estudo da matemitica se torna imprescindivel. Ela terd luga em todos os niveis, comegando pelo mais elementar, desde os ntume ros propriamente ditos até a pratica de exercicios de célculos lige dos a problemas concretos extraidos da vida e dos negécios. ‘Segundo Platao, as mateméticas possuem uma fungio educativ profunda. Nao se trata apenas de resolver problemas praticos. A matemiticas ajudam a despertar o espfrito, adquirir meméria, de sembarago e vivacidade. Elas conduzem naturalmente a inteligén cia e elevam aquele que a pratica até o Ser.” As matemiticas des pertam e exercitam aquilo que 6 comum a todos os homens: faculdade da razao. Sua fungao é despertar o pensamento, purifica e estimular a alma na busca do conhecimento. O pensamento er sua aco visa a uma finalidade. Visto que o homem é um ser racic nal, o homem age em vista de um fim. O fim do pensamento, er quanto tarefa do espirito, 6 satisfazer o desejo de conhecer as coisa: Ea finalidade do conhecimento é a pratica do bem. O homem é ur ser desejoso de conhecer as causas tiltimas, pergunta-se constante mente por aquelas causas que tocam mais de perto a propria natu reza e seu destino. O homem deve, através do pensamento, eleva se moralmente, dai a importancia das mateméticas na educagao com purificagdo e conversao ao ser. Seu estudo, num primeiro momento, teré o cardter de um jog sem imposigao, a fim de tornar o estudo mais eficaz. Importante que se aprenda brincando. Nenhuma ciéncia deve ser aprendida com uma escravatura. Insiste Platéo em A Repiiblica: “Nao eduques @ criangas no estudo pela violéncia, mas a brincar, a fim de ficare mais habilitado a descobrir as tendéncias naturais de cada uma’ Desde crianga, o educando aplicar-se-4 a ciéncia do célculo, d geometria e aos demais estudos que precederdo o da dialética. ( objetivo primordial do estudo das matemiticas é o de preparar alma para trilhar o caminho da dialética.”® MOF. A Repiiblica, 5230, * Poider, 88%. CLA Repiblica, 536. a“ “ eaucagao do homem segundo Platao Platéo parece ter claro que somente as mateméticas poderao Provar as melhores naturezas e selecionar aqueles espfritos que um dia sero dignos da Filosofia, porque somente devem ocupar-se dela aqueles que estao a sua altura. A fungdo educativa que exerce a matematica é uma fungao preparatéria.”” Ao mesmo tempo que se- leciona os filésofos, também os prepara para o seu futuro trabalho: governar a cidade com justiga, coragem, temperanga e sabedoria.”* A juventude deve ser posta em contato, primeiramente, com 0 mundo sensivel, através da misica e da gindstica. Paulatinamente, com o estudo da matemitica, ela aprender a se desprender do mundo sensfvel para contemplar a verdadeira realidade. O estudo da dialética assumiré a citpula dessa formagado intelectual, visto que somente pela dialética chega-se a Filosofia. Essa educagdo continua até os dezoito anos, quando comeca a Preparagdo civico-militar. Os mogos mais capazes continuam a edu- cagao depois dos vinte anos, j4 com cardter superior, onde se inten- sifica o estudo das matematicas, da dialética e da Filosofia. Dentre eles, se escolhem os futuros governantes, cuja educacao prossegue até os cingtienta anos, que em tese deverao continuar durante toda a vida. Pois a educagao filoséfica possui um cardter permanente.”? Reale, em seu estudo sobre as doutrinas nao escritas de Platao,®° que mais adiante teremos oportunidade de referir, fala de um Platao esotérico, que insiste na oralidade dialética como tinica condigo de Possibilidade de se chegar & doutrina dos primeiros prinefpios. Avia de acesso as realidades ultimas justifica 0 durissimo tirocinio imento da ‘eonversio' da alma, e desta na capar de contemplar néo mais "as sombras dos objetas reais, mas « propria re cit, p. 123), CF A Republica, 504a, {Johannes HIRSCHBERGER, em sua obra Histéria da Filosofia antiga, escreve sobre como de- veria ser a educagao do filésofo-rei, “Os mais bem-dotados dos uerreiros so esealhidos, entrsoe visto 08 trinta anos, ¢ submetidos a uma particular odueapio centifia, Quem nela se dstinguis ¢ omeds ¢g introduzido na tereeira classe, a dos ‘perfoitos guardides’E agora peresbemos proprinmente a alee do Estado platonico.Pois esses perfeitos guardites devem erfeitoe fi ‘er o Estado platdnico nos seus fundamentos de verdade Pe inco anos, filosofia, mateméties, astronomia, belas-artes, citarom de todas as leis, verdades e valores do mundo. Pasoam det ‘cargos politics, para aprender a conhecer praticamente o munde etreulo de escolhidos se retia, vivendo entao somente na contermplacéo do bemeem. Hor i “REALE, Giovanni. Para uma no interpretagdo de Platéo, Sto Pealo, 4 educa¢gdo para a adiatetica a educativo. A Repiiblica fala de um tirocinio que dura até os cingiien- ta anos. Isso quer dizer que os prineipios supremos, que possibili- tam o sentido tiltimo as coisas, s6 sdo acessfveis ao homem apés longos anos de empenho e dedicagéo. Uma educagio que busque caminhar pela “longa via do ser” exige paciéncia, pois nao hé espe- rangas de encontrar atalho. 2.6. A EDUCAGAO PARAA DIALETICA 0 didlogo foi o método por exceléncia adotado por Sécrates para transmitir suas idéias. Daf resulta a palavra “dialética”. Dentro desse contexto, dialético 6 aquele que est4 aberto ao didlogo, a um diélogo vivo e livre. Nessa forma peculiar de ensinar socrético, o papel do educador é muito mais o de perguntar e inquirir do que o de respon- der ou contestar. Esse método socratico, baseado no diélogo, compreende duas etapas: a ironia e a maiutica. Na primeira, Sécrates procura evi denciar as contradigées presentes no discurso de seus disefpulos, repleto de contetidos vagos e vazios, ajudando-os a purificar o espf- rito da falsa ciéncia. Através da ironia, Sécrates tinha como objetivo bombardear nos discipulos o orgulho e a arrogancia do saber. Por isso, a necessidade de conhecer-se a si mesmo. A intengdo de Sécrates néo era propriamente destruir o contetido proclamado por seus interlocutores, mas conscientizé-los de suas proprias respostas e de suas imprecisées. ; . Liberto do orgulho e de toda a pretensao, o discfpulo poderia fazer o caminho de volta, reconstruindo suas prdprias idéias e, con- seqiientemente, rever onde errara, corrigindo-as. Essa segunda etapa Sécrates chamava de maiéutica,*! arte de parto ou arte de trazer & luz. Sécrates traz para a Filosofia um exemplo baseado na sua expe- riéncia de familia, pois sua mae era parteira. Assim como a mae ‘Bat rltode mips» airman exist no interognde dota potnci ceprtulntinsce, e aoconveriela de poten em at, tom de covsierar je eaente om a eopetcera saber cong ‘ils eer eapacidde cgnoniion que tende a renlizarae. im outraspalavas o meio stra amaitioscontém em germ, raison menos conscientement, a cnwoyio que Plats express em ~— fe eaucagao do homem segundo flatao Fenareta ajudava a trazer criangas ao mundo, Séerates ajudava a extrair a verdade dos discipulos. A dialética platénica tem como centro o didlogo com a vida. A esfera da dialética é a esfera da vida.®® Educar implica aprender a perguntar sobre a vida, na vida e com a vida. A vida também traz perguntas. O homem nao apenas pergunta pela vida, sendo tam- bém é perguntado por ela. Dentro dessa perspectiva, aparece a per- gunta pelo sentido. Nao sou eu que pergunto pelo sentido de minha vida, mas é a propria vida que me indaga a respeito da qualidade como eu a estou vivendo. A dialética esté presente em todos os didlogos de Platao. Ela consiste num processo de divisées e aproximagées que permitem ao individuo falar e pensar. Aptidéo de dirigir a vista para a unidade e a multiplicidade.* 0 filésofo 6 aquele que possui uma visao de con- junto. Somente ele é capaz de captar a unidade na multiplicidade. “Quem sabe ver o conjunto é dialético, quem néo sabe nao 0 6." A trajetéria da dialética tem como objetivo levar do sensivel ao inteli- givel, passar do plano fisico ao metafisico, aproximar a multiplicidade do sensivel 4 unidade do inteligivel. Uno e miltiplo se fundem e se juntam na sintese, possibilitando a unidade na multiplicidade. O que busca a dialética é chegar a contemplacao das Idéias Supremas, ou seja, a abstracdo ultima da unidade absoluta. De todas as idéias, a mais especial é a idéia do Bem. A dialética tem como objetivo tltimo elevar-se até a néésis, a ciéncia suprema. Se a maioria dos homens é incapaz de ir além da opiniao, e, alguns, através das matematicas, chegam a didnoia; so- mente o fil6sofo, por meio da dialética, aleanca a néésis. O filésofo “Segundo alguns comentadores, a dialética platOnieacarece do aeabamento da dalética hegeliana. atral que Hegel extraida dislética platdniea 6 que o método ¢ agdo da propria coisa. como ‘mostra. E a coisa 36 se mostra no didlogo. No entanto, para Hegel o dialogo ¢ 96 0 comes, ferntement de Plt, nao aac 0 diogova crfera de vides na esers da donee dinlétice hogeliana, em sums, consste nara mane fn de Se mando, on fase Snorion en lético 6.0 da negagdo —implicio no anterior, letico no sentido hepellan ed nes. © proceed ego, elcanse nove pogo ou Poti tos anteriores os supers, na vtalizagn ou na sineses Ce PLATAO. Fadro, 260, A Replica, Be A educagao para a aatetica at © dialético por exceléncia. A dialética é este proceder pelo qual a inteligéncia passa do sensivel ao inteligivel e vai de idéia em idéia até intuir a Idéia Suprema, ou soja, o Bem, o Uno, o incondicionado.®® A dialética possui dois movimentos: um ascendente, outro des- cendente, O caminho ascendente possui um carter sinético. Con- siste em libertar-se dos sentidos e abstrair de idéia em idéia até alcangar a Idéia Suprema, no caso o Bem, fonte de ser e inteligi- bilidade. O caminho ascendente, portanto, passa das idéias, hipéte- ses inferiores As superiores. Eis a afirmagao de Platao: “Quem néo for capaz de definir com palavras a idéia do bem, separan- do-a de todas as outras, e, como se estivesse numa batalha, exaurindo todas as refutagdes, esforeando-se por dar provas, ndo através do que parece, mas do que é, avancar através de todas estas objepdes com um raciocinio infalivel — néo dirds que uma pessoa nessas condigdes néo conhece o bem em si, nem qualquer outro ber, mas, se acaso toma con- tato com alguma imagem, é pela opinido, endo pela ciéncia que agarra nela, e que a sua vida atwal a passa a sonhar e a dormir, pois, antes de despertar dela aqui, primeiro desceré ao Hades para lé cair num sono completo? (..) Mas se um dia tiveres de fato de educar na préitica aque- las criangas que educas e instruir em palavras, néo consentirds, se- gundo creio, que sejam como simples quantidades irracionais, se tem de governar a cidade e de ser senhores de altas instancias’’ O outro caminho da dialética é 0 descendente, conhecido tam- bém como diatrisis. Esse caminho é oposto do primeiro. Ele parte da Idéia Suprema e, através de sucessivas divisées, busca compreen- der a complexidade existente entre as partes e 0 todo.*” “—Aquele que assim € capaz discerne, em olhar penetrante, uma for- ma tinica desdobrada em todos os sentidos, através de uma pluralidade de formas, das quais cada uma permanece distinta; e mais: uma pluralidade de formas diferentes umas das outras envolvidas exte- riormente por uma forma tinica. numerosas formas inteiramente iso- ladas e separadas; e assim sabe serem possiveis ou impossiveis. Cf. REALE, Histéria da ilosfia antiga. Sé0 Paulo, Loyola, 1994, p. 164. A Repiblica, 584ced “14 fim de entendermos mais claramente eases dois procedimentos da dialética,leiamos as devi- das distingSes feta por REALE: a) primeiramente 6 necessiro ter bem presente que o procedimen- to sindptico eo diairtico se entreerizam de varias maneiras e encadeamente, de sorte que um 96 6 compreensivel em conexso como outro ereciprocamenta; b) em segundo lugar, 6 preciso ter bem presen- teo fat de que os nexos fundacionais consistem exatamente nas YelagSes Una\imuitese que as gradagbes dos dois procedimentos dinlétioos sto as que levam passo a passo a se abracar a multiplicidede na ‘unidade guprema; © as que levam a docompor dinireticamente a unidade na multiplicdade, de modo ‘que se compreenda como o Uno se desdabra nos muitos” (REALE, Historia da flosofia antiga, p. 166) Rall 4 educagao do homem segundo Platao — Perfeitamente. — Ora, esse dom, o dom dialético, nao atribuirés a nenhum outro, acredito, sendo aquele que filosofa com toda pureza e justiga.”® Somente por meio da oralidade dialética chega-se & verdade. A educagao se faz no dialogo; portanto, no encontro de uma ou mais pessoas. Parece ter estado muito presente na mente do fundador da Academia que educagdo é, sobretudo, encontro e processo. Segundo Reale, “a dialética no seu sentido global leva & compreensao daquela coisa ‘admiravel’, a saber, de como ‘os muitos sejam um e o um seja muitos’. No seu grau maximo, ela é exatamente o conhecimento que o demiurgo (a inteligéncia suprema) possui de maneira perfeita”.® Platao ¢ 0 filésofo que mais aplicou o jogo dos opostos, levando- 0 & sua maxima perfeicdo. “Perfeicdo é aquilo para o que Platao nos aponta, quando faz filosofia. Nunca antes dele, nunca depois, o ho- mem apontou para tao alto.” Carlos Cirne Lima, em sua obra Dialética para principiantes,®' mostra a sutileza presente na dialética platénica. Platao é conside- rado o fildsofo das aporias. Com muita propriedade, esboga a tese e traceja a antitese, mas a sintese quase nunca aparece. Como é pos- sivel falar de perfeigéo sem remeter A sintese? Para entender a dialética de Platéo, nao h4 outro remédio se- néo recorrer As suas doutrinas nao escritas. Somente aqui podemos contemplar a sintese em sua maxima expressio. Comumente fala- se que em Platao hé duas doutrinas. Uma, a doutrina exotérica, ou- tra, a doutrina esotérica.? A doutrina exotérica é destinada Aqueles que esto fora da Aca- demia e, portanto, nao possuem as condigées necessérias para com- preender com mais profundidade a doutrina. Aqueles que esto fora © Ch, PLATAO... Sofista, 2534-6 “REALE, Histéria da filzeofia antiga, p. 166, %°CIRNE LIMA, op eit, p. 31. " Ibider, pp. 37-38. “25H tempos os estudiosos introdusiram a distineio entre um Platso ‘exotéric’e um ‘esot6r Por ‘exotérico’ entende-se o pensamento que Platdo destinava com 03 seus escritos também aah {que estavam fora da Escola (exotéric = fora) Plato reservava ao cireulo dos estudantes dentro da escola (esotérico = dentro). Mas no passa, “esotéric’ era entendido de modo muito vago, e indicava genericamente uma doutrina destinade @ permanecer encoberta por um misterioso segredo, quase como wina espécie de metaflocefia para Iniciados’ (REALE, Para uma nova interpretagdo de Plato... p. 95) A educagao para a diatetica a recebem uma formagéo mais leve, mais didética; para esses, os jo- gos dos opostos ficam quase sempre em aberto.** Ha também a doutrina esotérica, aquela destinada aqueles que esto dentro da Academia, e que, portanto, nao s6 gozam da intimi- dade do mestre, como também esto a par das discussées. Séo os iniciados. Entre esses, a dialética assume a sua maxima expressao. Aqui fazem-se as sinteses. Aqui pratica-se a oralidade dialética em seu grau maximo. Aqui, ndo hé dualismos como aqueles que estéo presentes na doutrina exotérica.* Platao traz consigo certa desconfianga com relacao a letra mor- ta da escritura, O que é a escritura em comparagdo a0 logos vivo e falado? A concepgao de escrito em Platao remete para aquilo que 0 filésofo entendia por linguagem. A linguagem verdadeira é oral. Na Carta VII contesta seriamente a validade de sua filosofia escrita. Platao usa alguns argumentos para provar que, se um escritor é “sério”, as coisas, que para ele sdo as mais sérias, ndo séo confiadas ao escrito, j4 que o lugar por exceléncia onde devem ser guardadas 6 a prépria alma. “Posso dizer o seguinte sobre todos aqueles que escreveram ou que es- creveréo: todos os que afirmam saber as coisas sobre as quais medito, seja por té-las ouvido de mim, seja por té-las ouvido de outros, seja por té-las descoberto sozinhos, nao ¢ posstvel, segundo meu parecer, que tenham entendido algo desse objeto. Sobre essas coisas nao existe um texto escrito meu nem existiré jamais.” ‘A dialética af 6 uma dialtica negativa, uma dialétics sem sintese. Mas iso diremos ndo é uma boa dialética. E Platt, disefpulo do fibeofo heraclitiano Cratilo, bem como de Sécrates, sabia rauito ‘bom disso, Como sabia também que a Dialética no se faz num passe de mégica, num instante, om um pisear de elhos, « sim num longo, séro, traballoso, muitas vezes dolaroso processo de superaséo das te ema sro pena do nies de conn dos opston, aso Pst sue germane tctuda pon tron eno rave ino =o Patan de yare pane i radio scdaniea 6 senso Pato da ourne oxen, Plato os opto aon into 0 lato ula pe 4, St REALE, Pare um nova inerreoge de Patio. 6 GF PLATAG.- Carta Vil tb a Ah EEATLAO GO flomem segundo Fiatao Quais as razdes que levaram Platéo a confiar as coisas maiores somente a oralidade dialética? As razées que levaram Platao a nao escrever possuem, sobretudo, um carater didatico-ético-pedagé- gico.%” E, por outro lado, sabe ele do abismo existente entre o que é experimentado e a sua possibilidade de ser expressado e compreen- dido. Segundo Reale, “o conhecimento dessas coisas nao pode ser comunicado como o conhecimento das outras coisas, porque ele re- quer uma longa série de discussées feitas em conjunto e em estreita comunhdo entre quem ensina e quem aprende e uma comunhéo de vida, até que nasca na alma de quem aprende a luz que ilumina a verdade”.® Aeducagéo a dialética nao é apenas colocar a servico do educan- do determinadas ferramentas racionais que o ajudem a pensar conhecer a verdade das coisas. O método dialético, sobretudo, tem o carter de purificar a alma, portanto educar 0 coracéo. O didlogo vivo, tao apregoado por Sécrates e assumido por Platéo de modo incondicional, prova, a rigor, que educar implica uma relagéo de co- munhéo. Compreende uma relagio de subjetividade e intersub- jetividade. E no encontro subjetivo e intersubjetivo que mestre e discipulo aprendem juntos, educam-se. O didlogo vivo rompe com as unilateralidades onde “alguém” que sabe ensina a’ “alguém” que néo sabe. O didlogo vivo supée exterioridade, onde se manifesta a von- tade de fazer o outro melhor e de ser melhor, mas também manifes- ta a interioridade, isto é, didlogo interior com a prdpria alma. No Teeteto, Plato fala do filésofo, quando esta exercendo sua atividade que lhe é prépria: fica em siléncio, em coléquio intimo com a propria alma, fica isolado do que esta ao seu redor, e coloca o exemplo de Tales de Mileto, que estava de tal modo absorto, ao contemplar os astros e olhar o céu, que acabou caindo num pogo.*? fascem mal esrtes, Se, no contri, acreditasoe que se deveriam eereter equa se Paden ee, ear de modo adequado& maiorin, Guo coisa de mais bela poderia eu Taser ou minha vide oo np SSREALE, Pera uma nova inerpretapdo de Plat. p. 68 Of. PLATAO. Teeteto, 174b. “e » A educagao como a arte de desejo do bem 51 No coragdo da dialética esta presente um defeito humano. Esse defeito denuncia a incapacidade do homem de conhecer tudo. Ou seja, 0 fato de ventilar as coisas de todos os lados revela a incapaci- dade do ser em compreender tudo de uma s6 vez. ‘Tomemos como exemplo pitia. Pitia é aquela sacerdotisa ine- briante que transmite a sabedoria de Apolo, o deus da razao, Somen- te que pitia sempre traz a revelagdo de um modo contraditério, visto que a revelagdo aparece sempre de um modo turvo. Por isso, toda a revelagao se revela através do enigma. Qualquer revelagao comporta © seu contrario. Assim posto, o enigma tolera a sua ndo-decifracéo. O intelecto humano assemelha-se a um filtro ou a uma lamina, a qual, quanto mais fina, mais luz permite passar. Eo modo pelo qual o homem deixa transparecer o seu interior é pelo diélogo, ou pela disputa dialética. B através do jogo dos opostos que o homem vai dando conta de desvelar a realidade, tornando-a inteligivel. A dialética se impée por causa dessa incapacidade divina dos homens. 2.7. A EDUCACAO COMO AARTE DE DESEJO DO BEM Antes de procurar definir o que é educagéo, para Platao, comece- mos pelo que nao é educagéo. Segundo Plato, educagéo “nao é 0 que al- guns apregoam o que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir cién- cia numa alma em que ela nao existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos”.!" O papel da educacéo nao é dar a viséo, mas orientar os olhos para a diregdo certa. E aqui é que se coloca justamente o pro- blema: como se haveré de proceder a uma educagdo integral, de forma mais fécil e completa, que possibilite ao homem olhar para a diregéo certa e realizar na sua existéncia aquilo para o que é chamado a ser? A pedagogia de Plato, juntamente com a sua filosofia, assenta em sua coneepeao de Idéia. Baseia-se na sua teoria dos dois mundos (mundo das Idéias e mundo-sombra), em que, no mundo das Idéias, os homens conheciam todas as coisas na sua verdadeira esséncia e, ao fazer parte deste mundo das sombras (mundo sensivel), os ho- mens se esqueceram de tudo aquilo que sabiam. No mundo das Idéias, encontra-se a verdade, porque ali est4 o fundamento tiltimo A Republica, 6186. O46 A educagdo do homem segundo Platao © aesséncia da realidade. O mundo das Idéias corresponde ao inte- ligfvel (mundo do espirito). Na teoria dos dois mundos, considera Platéo que o homem, ao descer do mundo ideal para o mundo sombra, encarnou-se num cor- Po que, por sua vez, é a prisdo da alma (séma-séma). espirito humano, peregrino neste mundo e prisioneiro na ca- verna do corpo, deve, pois, transpor este mundo para realizar 0 seu fim, isto 6, a contemplaco do inteligtvel. que Platao faz é formular uma teoria que separa o corpo da alma. Segundo essa teoria, chamada doutrina das reminiscéncias, a alma guarda a lembranga das Idéias contempladas, que passam para a percepedo e voltam a consciéncia. Aprendizagem nada mais 6 que uma reminiscéncia,'® ou seja, aprender é recordar. Fis uma passagem ilustrativa do Fédon: “Se em verdade antes de nascer jé tinhamos tal conhecimentoe 0 per- demos ao nascer e, depois, aplicando nossos sentidos a esses objetos, voltamos a adquirir 0 conhecimento que jd possutmos num tempo an- terior: 0 que denominamos aprender serd a recuperagdo de um conhe- cimento muito nosso. A este processo dé-se o nome de reminiscéncia” 12 No Fedro a reminiscéncia 6 a rememoragdo da alma, quando estava na presenga dos deuses, onde conhecia todas as coisas. Remi- niscéncia é lembrar o esquecido, acordar o adormecido. E saudade de Deus e da verdade. “Ea reminiscéncia do que nossa alma viu e quando andava na compa- nhia da divindade que a impulsionava a algar a vista para o verda. deiro ser. Aquele que mais se aproxima desse ideal é 0 fildsofo, porque este se aplica com todo empenko, por meio da reminiscéncia, ds coisas que asseguram ao préprio deus a sua divindade. Sé atinge a perfeigao 0 individuo que sabe valer-se da reminiscéncia e foi devidamente ini- ciado nos mistérios. Indiferente as atividades humanas e ocupado s6 com as coisas divinas, geralmente passa por louco, jé que o vulgo néo percebe que ele é inspirado,” 81 Segundo CURTIS, sobre a teoria da reminiscénei “a citneia perfsita, or meio da contempla- 7" esa vida porge a line encore enctceada 80 ‘nosso alcance um conhecimento distante,indireta, por meio do racioeinio ue contribu para areminisctci, Ent despertar do conheinento gue alma je posuia fies eine compe gunn, presi , gozava da contemplapio do mundo superior das 88 Redon, Toe. §8 Fedro, 249 04. A educagao como a arte de aesejo Go berm oe Por isso, para Plato, a educagdo supée recordagéo. Educar, nesse sentido, seria recordar. Deixar vir para fora o conhecimento e a ver- dade j4 presentes potencialmente dentro. Segundo Patrizia Bonagura, “aqui est4 a descrigéo emblematica do ato educativo como um e-ducere, um tirar para fora aquilo de que esta cheia a alma. (...) Deve-se saber ler dentro de si mesmo a imagem da verdade que se encontra refletida na alma. Para mostrar aos outros o caminho, Platao, filésofo, demonstrou ser um grande educador precisamente & medida que quis comunicar aos outros a melhor forma possfvel, que ele mes- mo experimentou, de ser pessoa”.'* Grube, em seu livro O pensa- mento de Platao, assim se expressa: “Platao postula a teoria do re- cordo. Essa teoria poe em relevo que o homem possui uma capacidade especial para a verdade: que na mente humana existe algo que ‘vera’ a verdade simplesmente com que se dirjja na direcdo correta”.} O que vem a ser entao educagdo? Para o fundador da Academia, educagao seria “a arte do desejo do bem”. B, para o discipulo de Sécrates, isso é téo evidente, que, nos livros VIe VII de A Repiiblica, coloca a importéncia do bem na formagao do filésofo, se este quiser continuar sendo amigo da sabedoria. ‘Obem nao somente é importante, senéo que é a condigdo neces- séria para aqueles que querem alcangar 0 saber mais elevado (mégiston méthema). Ele 6 condigao de possibilidade para o conhe- cimento dos objetos. Eis a justificativa dada por Platao: “Para os objetos do conhecimento, dirds que nao s6 a possibilidade de serem conhecidos Ihes é proporcionada pelo bem, como também é por ele que o ser e a esséncia Ihes sao adicionados, apesar de o bem nao ser uma esséncia, mas estar acima e para além da esséncia, pela sua dignidade e poder”. Aqui se encontra, pois, o cerne da metafisica e teoria do conhecimento de Platao. Nao se pode pretender com- preendé-las separadamente, assim como nao se pode compreender, prescindindo delas, a teoria educacional. O bem é a Idéia suprema pela qual é possivel a inteligibilidade do mundo. Diz Maria Helena da Rocha Pereira, em comentario a A Repiiblica de Platao: ‘9 RONAGURA, Patrizia, Bxterioridad y interioridad: la tension filostfico-educativa de algunas péginas platsnicas. Pamplone, Ediciones Universidad de Navarra S. A, 1991, p. 329. ‘SS GRUBE, G. M. Bl Pensamiento de Platén. Madr, Biblioteca Hispénica de Filosofia, Ed. Gredow us 4 educagao do homem segundo Platao “O bem para Platao é, em primeiro lugar, e com mais evidéncia, a finalidade ou alvo da vida, o objeto supremo de todo o designio e toda aaspiracdo, Em segundo lugar, e mais surpreendentemente, 6a condi ¢a0 do conhecimento, 0 que torna o mundo inteligivel eo espirito inte ligente. E em terceiro e iltimo, e mais importante lugar é a causa eriadora que sustenta todo 0 mundo e tudo 0 que ele contém, aquilo que dé a tudo 0 mais a sua prépria existéncia”*® A educaco, para Plato, possui uma finalidade: a prética do bem. E o bem est associado a sabedoria enquanto busca da verda- de. O amor pela sabedoria e pela verdade possibilitaré que o bem seja praticado. Eis o objetivo supremo da educagio. A questo que se coloca é justamente esta: como proporcionar uma educagéo que possibilite ao homem conhecer e praticar a bondade? “De todas as idéias, a Idéia do Bem é a mais valiosa, € por isto que de todas as ciéncias a mais nobre a ser ensinada deverd ser justamente esta, pois da Idéia do Bem dependeréo todas as demais virtudes. Ain- da néo conhecemos suficientemente essa idéia, Se nao a conhecemos, de nada nos serve, da mesma maneira que nada possuimos, se nao tivermos o Bert De nada vate possuir qualquer coisa que se, se ela Platao insiste em que conhegamos cada vez mais a Idéia do Bem. “Contemplar a Idéia do Bem” é um “apreender a Idéia do Bem”. Gra- gas a Idéia do Bem, temos a luz que permite a todas as coisas mostra- rem-se e, sobretudo, chegar ao préprio ser das coisas. Ao longo dos didlogos, Platao nao explicita com clareza o que seja o Bem. Somente por meio das doutrinas nao escritas, podemos concluir que a esséncia do Bem 6 0 Uno. Platao acalenta a convicgao de que existe um Bem, um Uno. E possivel ao homem alcanar as realidades supremas, pe. netrar naquilo que possui maior valor, ou seja, chegar a esséncia do Bem, Tal coisa por demais grandiosa é tarefa da educacao.° , EVIL 0 taro “rider” poiet, emprogado na cago scm, nd dove sr ds ear da TologinGrot, piso grogn doses 8 “ao do nade” fica fazer, produzir, realizar algo. * mae smento longa. Ela devia pasear subir ao conhecimento de Bem, O fim iiltimo da educagdo: assemelhar-se a Deus oo 2.8. 0 FIM ULTIMO DA EDUCAGAO: ASSEMELHAR-SE A DEUS O homem é um conjunto de forcas, ora conciliatérias, ora con- traditérias. Por vezes, néo é facil harmonizar a complexidade dos impulsos humanos. O ser humano experimenta dentro de si forgas estranhamente desencontradas. De um lado, é atraido para o alto, para 0 absoluto; num outro momento, experimenta sua contingén- cia, deliciando-se com a limitagdo inerente a qualquer criatura. Por que e para que educar os homens? A educagao é essa possi- bilidade de o homem transcender a sua propria natureza, carregada de medos, fugas e receios, complexos malditos e amaldigoados. Para Platao, o fim ultimo da existéncia, e, portanto, o objetivo da educa- do sera a assemelhagio com Deus (homotésis t0 Thed). Bis télos, 0 dever-ser, 0 motivo pelo qual deve-se educar os homens. Em seu didlogo Teeteto,""' Platéo sugere que o verdadeiro caminho de for- magao e crescimento espiritual da alma consiste em tornar-se o mais possivel semelhante a Deus. E tal semelhanga é possivel ao homem, se viver em grau maximo a justiga, a santidade e a sabedoria. Deus 6 justo em grau maximo, e ninguém pode tornar-se semelhante a ele, se no for tornando-se o mais justo possivel. Werner Jaeger, em sua interpretagao @ passagem referida aci- ma, diz: “A formula do Tecteto em que a tendéncia do filésofo para a areté é qualificada como uma semelhanga com Deus surge como expressdo lapidar da paidefa platénica; e a associagao da idéia do Bem é educa- edo do governante filoséfico, cuja ligdo fundamental pretende ser aque- la, ganha enorme clareza. Se Deus é bom por esséncia, mais ainda se €0 proprio Bem, entao a suprema areté acesstvel ao homem constitui um processo de aproximagéo de Deus (...). A humanidade plena 6 pode existir onde 0 Homem aspira a assemelhar-se ao divino, quer dizer, d medida eterna”. O homem sempre se debateu com a crenga ou descrenga na e3 téncia de Deus. Quem é Deus para Platao? Diante da pergunta so- bre o que produzia o movimento, a mudanca, a vida e a morte. Sua “Cr Teeteto, 1760. S®JABGER, op. cit, p. 878. as “ educagao do homem segundo Platao resposta era: Deus. Deus é algo real. A experiéncia da divindade consiste na experiéncia mais profunda que um homem pode ter nes- te mundo. A perfeicéo é um dever-ser a ser buscado para além da caducidade deste mundo, j4 que neste mundo tudo copia uma idéia, idéia nao somente como objeto, como também abstragao. A idéia m perfeita é a idéia de Deus. A religido de Platéo tem muito que ver com a sua filosofia. Esta baseada, sobretudo, em conviegées racionais, em verdades intelec- tuais. “Para Platéo, tanto os filésofos ateistas como os expoentes da religiéo mitolégica tém em comum o fato de no verem que o mundo é efeito de uma causa ou prinefpio inteligente.”""* O que sempre exis- tiu e nunea teve princfpio e que verdadeiramente é, 6 o inteligivel. O que devém e nunca é, porque nasce e perece, é 0 sensivel.""4 O divin em Platdo 6 uma espécie de continuo do inteligivel, que perpassa 0 mundo como um todo. Tanto a alma quanto a razéo se encontram no universo pela ago de Deus. Dai decorre 0 fato de o universo ser racional e bom. Em Deus, bondade e racionalidade estado presentes no seu grau méximo e néo podem ser separadas. Com Platao temos a primeira tentativa de uma religido racio- nal, que se contrapée a uma religiao meramente mitica. Essa tenta- tiva diz respeito a capacidade do homem de, através da razao, che- gar a conhecer o inteligivel. Platdo possui uma viséo tipicamente intelectualista da religido que, por sua vez, pode levar a uma élitizagéo de determinada concepeao de Deus a que somente os fil6- sofos teriam acesso. Na Reptiblica ideal, os filésofos seriam, nao apenas os legisladores, como também lideres religiosos, portadores da verdadeira religiao. Charlesworth, em sua obra intitulada Philosophy of Religion: the historic approaches, aponta algumas posstveis conseqiiéncias a que tal abordagem poderé conduzir: a) a religido torna-se totalmen- te dependente da Filosofia e é tao valida quanto a Filosofia da qual depende; b) tal religiao filosdfica é inevitavelmente elitista, isto é, somente poucos afortunados e sofisticados intelectuais, eapazes de especular filosoficamente, terdo condigées de ser religiosos no senso § CHARLESWORTH, M. J. Philosophy of Religion: the historical approaches. Londres, The laemillan Press Ltd. 1972, p. 7 ‘SCE PLATAO. Timeu, 274-204, O fim ultimo da educagao: assemethar-se a Deus or pleno; c) esse tipo de religido intelectual tem um caréter predomi- nantemente especulativo ou contemplativo."'* Diferentemente de Protdgoras,"® que assume uma postura agnéstica em relagao a Deus, Plato insiste em As Leis que “Deus 6 a medida de todas as coisas, néo o homem”."” No Filebo, Platéo admite a existéncia de uma Inteligéncia Ordenadora, que ordena e harmoniza todas as coisas num grande espetaculo do cosmo, do sol, da lua, dos astros e de toda a evolucio celeste.""® “Deus revelou nas coisas existentes um elemento finito e outro infinito.”"* Segundo Reinholdo Ullmann, “Deus para Platao é o Demiurgo, inteligéncia suprema, modelo para a vida humana; acha-se perto do homem re- presentando um ideal acess{ivel”.!”° Deus 60 Uno, aBeleza eamedi- da suprema, eo Demiurgo é bom no grau maximo. Ele é 0 ordenador, organizador da desordem, quando do chdos forma 0 késmos. _ Poderiamos perguntar: se o homem, espelhado no Demiurgo, possui como fim tiltimo, para a sua vida, a pratica do bem, por que a experiéncia e a prética do mal sao uma realidade conereta na vida humana? De onde procede 0 mal?! Assegura Platao que o mal nao é vontade de Deus e, mesmo que seja uma realidade presente na vida dos homens, sua origem deverd ser buscada numa outra causa que nao seja Deus. Bis a passagem ilustrativa de A Repiiblica: NS CHARLESWORTH, op. cit, p. 11. 1 nko poso saber se existe, nem sno existem, nem qual ‘os impedimentos para sabél: a checuridade do problema ea 4m Dibgenes Lat iy Ben Bono Pro Bo cud vol tepid brevidade da vida do homem" MONDOLFO, Rodolfo. O peasamento antigo. Sio Paulo, Ed. Mestre Jou, 1966+ idem, 23e, _ ‘MANN, Reinholdo, “A Eacatalogia em Plato ¢ Plotino’, in Revista Teocomunicagdo, Porto nuldade? Como anny un Bs vn pcr seo rattan seem humane cess tort he tetas do leer ola a pools eter rd Se a ea ee epethras Dis ae a arcadia melicaneas qisisea pra ran St ae cca rae Seu pura. © ao tdsceexplicavaelarmente ao 3° mae tempos tm Deus uncon DODDS as # educa¢ao do homem segundo Platéo “Logo, prossegui eu, Deus, uma vez que é bom, nao poderia ser causa de tudo, como diz a maioria das pessoas, mas a causa apenas de um equeno ntimero de coisas que acontecem aos homens, ¢ sem culpa do maior niimero delas. Com efeito, o8 nossos bens so muito menos do que 08 males, ¢, se a causa dos bens a ninguém mais se deve atribuin, dos males tem de se procurar outros motivos, mas néo deus"? ___Bsereve Platao no Timeu: “Ele era bom; ora, no que 6 bom jamais poderé entrar inveja, seja do que for. Estreme de inveja, quis que, na medida do possivel, todas as coisas fossem semelhantes a ele. Podemos admitir com a maior seguranga a opiniao dos homens sensatos de que esse 6 o prinefpio mais eficiente do devir e da ordem do mundo. Desejando a divindade que tudo fosse bom e, tanto quanto possivel, estreme de defeitos, tomou o conjunto das coisas vistveis — nunca em repouso, mas movimentando-se discordante e desorde- nadamente — e fé-lo passar da desordem a ordem, por estar con- vencido de que esta em tudo ¢ superior Aquela. Nao era, nem nunca foi possivel que o melhor pudesse fazer uma coisa que néo fosse a mais bela de todas. Depois de madura reflexao, concluiu que das coisas visiveis por natureza jamais poderia sair um todo privado de inteligéncia mais belo que um todo inteligente, e também: que em nenhum ser pode haver inteligéncia sem alma. Com base nesse ra- ciocinio, pés a inteligéncia na alma ea alma no corpo, e construiu 0 universo segundo tal critério, com o propésito de levar a cabo uma obra que fosse, por natureza, a mais bela e perfeita que se poderia imaginar. Desse princ{pio, de verossimilhanga pode-se concluir que 0 mundo, esse animal dotado de alma e de razéo, foi formado pela providéncia divina”. Portanto, Deus é bom por exceléncia, justamente porque opera em fungéo da idéia do Bem, ou seja, do Uno e da medida suprema, atuando perfeitamente. Deus imprimiu no homem esse desejo de tornar-se semelhante ao Bem-Uno, através da busca do bem, da Rena 1, 879. ‘Para Plato, destace-seacima de tudo que a dvindade ¢absoitamenta bose livre nécula Na reaidae ata nusente de toda a sua naturera ttn demosine a paseo a one, trap com quo o mito o adnma, Nio pose. por conse fue eto eae presenta, Sogu-s ag Fiteane As cntarodoqueo pooas' da nape vide” GAEGER pct p 178 RCE PLATAG, meu 260 © perverso w 0 nociv, mundo, onde quer autora do destino sm todas as doagragan O fim ultimo da educagao: assemelhar-se a Deus oF medida e da ordem.5 Ele unifica a multiplicidade, ligando 0 Uno e 08 muitos e os muitos e 0 Uno. Em O Banquete,® aborda o tema da imitagao de Deus como ideal filos6fico e da vida virtuosa. O homem, possuidor de uma alma, pode alcancar a bem-aventuranga eterna e é essa bem-aventuranca que realmente importa conquistar na vida. O fildsofo é aquele que encontrou 0 caminho da bem-aventuranga. Em A Republica, aparece como ideal de educagéo dos guardides que sejam piedosos, sdbios e justos, porque nunca sera abandonado dos deuses aquele que busca ser justo e assemelhar-se a Deus, pela pratica da virtude.!”” 0 filésofo, dentre todos os homens, é aquele que mais convive com 0 divino, por isso é ordenado e divino até onde 6 possivel a um homem.™8 A educagéo, portanto, deveré desempe- nhar a tarefa de ajudar o homem a amar a Deus, tornar-se seme- Ihante a ele, na medida das possibilidades humanas. Seo fim da educagao 6 assemelhar-se a Deus, tendo como cami- nho a virtude, a questo que se coloca justamente esta: Deus 6 virtuoso? Deus é simples, nao disperso, Uno, e portanto néo pode ser virtuoso. Se pela virtude chega-se a ele, como a virtude pode assemelhar-se & néo-virtude? Platéo parece ter claro que, de um lado, temos a virtude; de outro, a ndo-virtude; de um lado, temos Uno; de outro, temos 0 miltiplo. Para o filésofo da Academia, & me- dida que o homem € virtuoso, ele se simplifica. A virtude possibilita a méxima redugéo do multiplo externo para 0 uno interno. A razéo remete para uma inteligéncia suprema, infinitamente superior a0 homem. Para honrécla, se faz necessério o culto interior que se ma- nifesta na procura da verdade e da virtude.' Por isso é necesséria a ascese, a temperanga, a prudéncia, a piedade, a justica e a sabedo- ria. O saber e a virtude tém a fungdo metafisica de harmonizar a desarmonia, ordenar a desordem, unificar a multiplicidade da rea- lidade. “Deus dispée de poder e conhecimento para misturar 0 °C REALE, Para uma nove interpretagdo de Platéo. p. 181. ‘0 Banquete, 208-212 ‘mando a si mesmo como medida de todas as coisas, saa ou possa fazer, nem mesmo remotamente, tiguilo que Deus faz. Se quer agir ber, o homem deve fazer oque Deus mesmo, depois de tar eriado o8

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