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Fome de Saber - Richard Dawkins
Fome de Saber - Richard Dawkins
Caderno de imagens
Agradecimentos
Créditos de excertos
Créditos das imagens
De genes e capacetes coloniais
Foi com muita dificuldade que li esse poema no funeral de meu pai,
em 2011, e mais uma vez no ano seguinte em um panegírico a
Christopher Hitchens, outro homem de Balliol, na Convenção Ateísta
Global, em Melbourne. Com muita dificuldade porque, mesmo em
ocasiões mais alegres, lacrimejo com uma facilidade vergonhosa ao
recitar um poema amado, e esse de Belloc em especial é um dos mais
humilhantes.
Depois de deixar Balliol, meu avô fez carreira, assim como muitos
de minha família, no Serviço Colonial. Foi nomeado conservador de
florestas no seu distrito da Birmânia, onde passou longos períodos em
pontos remotos das florestas de madeira de lei, supervisionando o
trabalho pesado executado por elefantes lenhadores de notável
destreza. Em 1921, estava embrenhado entre árvores de teca quando
lhe chegou a notícia — gosto de imaginar que foi entregue por um
mensageiro levando, numa das mãos, a carta e, na outra, uma
forquilha — do nascimento de seu filho mais novo, Colyear (batizado
em homenagem a Lady Juliana Colyear, mãe do audaz Henry, aquele
que fugira para se casar com Augusta Clinton). Ficou tão eufórico
que, sem aguentar esperar outro transporte, percorreu oitenta
quilômetros de bicicleta para estar junto à cama de sua esposa, Enid,
onde opinou com orgulho que o novo menino tinha “narizinho de
Dawkins”. Psicólogos evolucionistas já notaram a avidez com que
bebês recém-nascidos são vistoriados em busca de semelhanças com o
lado paterno, mais do que com o materno — pelo motivo óbvio de ser
mais difícil estar seguro da paternidade que da maternidade.
Colyear era o caçula e John, meu pai, o mais velho de três irmãos.
Todos nasceram na Birmânia — quando bebês, atravessavam a selva
dentro de cestos presos em varas seguradas por carregadores
cuidadosos —, e todos seguiram os passos do pai rumo ao Serviço
Colonial, mas em três regiões distintas da África: John na
Niassalândia (atual Malaui), o irmão do meio, Bill, em Serra Leoa, e
Colyear em Uganda. Bill foi batizado Arthur Francis em homenagem
a seus dois avôs, mas era sempre chamado de Bill por conta da
semelhança, quando criança, com Bill, o Lagarto, o personagem de
Lewis Carroll. John e Colyear eram parecidíssimos quando jovens, a
ponto de, um belo dia, alguém interpelar John na rua e lhe perguntar:
“Você é você ou seu irmão?”. (A história é verídica, o que já não se
pode dizer da famosa lenda de que W. A. Spooner, o diretor de minha
faculdade atual em Oxford, cujos desastres oratórios deram origem ao
termo “spoonerism”,6 certa vez cumprimentou um jovem no pátio
com a pergunta: “Deixe-me perguntar, nunca me lembro: foi você ou
seu irmão que morreu na guerra?”.) Com o avançar da idade, Bill e
Colyear começaram a ficar mais parecidos um com o outro (e
também com o pai), ao contrário de John, pelo menos a meus olhos. É
comum que as semelhanças familiares apareçam e desapareçam em
vários estágios da vida, um dos motivos por que as considero
fascinantes. É fácil esquecer que os genes continuam a exercer seus
efeitos ao longo da vida, não apenas durante o desenvolvimento
embrionário.
Não houve irmã, para a decepção de meus avós, que haviam
guardado para a criança mais jovem o nome Juliana, mas precisaram
se contentar com o fidalgo sobrenome dela. Os três irmãos tinham
talentos. Colyear era o mais inteligente em termos acadêmicos, e Bill,
o mais atlético; tive o orgulho de ver o nome dele no rol dos notáveis
do colégio em que estudei mais tarde, como recordista da corrida de
cem metros — capacidade que sem dúvida lhe serviu bem no rúgbi
quando marcou um ousado touchdown para o Exército contra a
equipe da Grã-Bretanha, no início da Segunda Guerra Mundial. Não
puxei a energia atlética de Bill, mas gosto de acreditar que aprendi a
pensar em ciência com meu pai e a explicá-la com meu tio Colyear.
Colyear se tornou don de Oxford após deixar Uganda e foi muito
venerado como brilhante professor de estatística, assunto
notoriamente difícil de transmitir aos biólogos. Morreu cedo demais,
e a ele dediquei um de meus livros, O rio que saía do Éden, nos
seguintes termos: “À memória de Henry Colyear Dawkins (1921-92),
fellow7 do St. John’s College, Oxford: mestre na arte de deixar as
coisas claras”.
Os irmãos morreram na ordem inversa de idade, e tenho imensa
saudade de todos. No funeral de Bill, meu padrinho e tio, depois de
ele falecer aos 93 anos, em 2009, fiz o discurso fúnebre.8 Tentei
transmitir a ideia de que, embora houvesse muito de ruim no Serviço
Colonial Britânico, o que era bom era muito bom; e Bill, assim como
os dois irmãos, e assim como Dick Kettlewell, que mencionarei mais à
frente,9 estava entre os melhores.
Se é possível dizer que os três irmãos seguiram os passos do pai
rumo ao Serviço Colonial, tiveram herança similar também pelo lado
da mãe. O avô materno, Arthur Smythies, foi conservador-chefe de
florestas em seu distrito na Índia; seu filho Evelyn tornou-se
conservador-chefe de florestas no Nepal. Foi a amizade de meu avô
Dawkins com Evelyn, forjada quando ambos estudavam silvicultura
em Oxford, que o levou a conhecer e se casar com a irmã de Evelyn,
Enid, minha avó. Evelyn foi o autor de um livro célebre, India’s
Forest Wealth [A pujança das florestas indianas], lançado em 1925,
além de várias obras de referência sobre filatelia. Lamento dizer que a
esposa dele, Olive, era afeiçoada à caça de tigres e publicou um livro
chamado Tiger Lady. Há uma foto dela pisando sobre um tigre,
usando um chapéu de safári, com o marido dando um tapinha
orgulhoso no ombro dela. A legenda: “Assim que se faz, pequena
mulher”. Não acho que ela faria meu tipo.
O filho mais velho de Olive e Evelyn, o taciturno Bertram “Billy”
Smythies, primo em primeiro grau de meu pai, também participou do
serviço florestal da Birmânia e depois de Sarawak: escreveu as obras
de referência Birds of Burma [Pássaros da Birmânia] e Birds of
Borneo [Pássaros de Bornéu]. O último tornou-se uma espécie de
bíblia para o escritor viajante (e nem um pouco taciturno) Redmond
O’Hanlon em sua hilária jornada Into the Heart of Borneo [Rumo ao
coração de Bornéu] com o poeta James Fenton.
O irmão mais novo de Bertram, John Smythies, fugiu à tradição
familiar e tornou-se neurocientista de renome, autoridade em
esquizofrenia e em drogas psicodélicas, tendo residido na Califórnia e
por ali levado o crédito de inspirar Aldous Huxley a tomar mescalina
e purificar suas “portas da percepção”. Recentemente pedi seu
conselho sobre a gentil proposta de um amigo para me orientar numa
viagem de LSD. Ele foi contra. Yorick Smythies, outro primo em
primeiro grau de meu pai, foi devoto amanuense do filósofo
Wittgenstein.10 Peter Conradi, na biografia que escreveu da
romancista Iris Murdoch, identifica Yorick como o “tolo sagrado” em
quem ela baseou um de seus personagens de Sob a rede, Hugo
Belfounder. Devo dizer que é difícil notar a semelhança.
Yorick queria ser motorista de ônibus, mas, ressaltou [Iris Murdoch], foi o único na
história da empresa de transportes a rodar na prova teórica […]. Durante sua única aula
prática, o instrutor saiu do carro enquanto Yorick subia e descia a calçada.
É fato que meu tio Colyear viria a me dizer, ao ver-me pela primeira
vez de shorts (que também eram habituais nos trajes dele, sustentados
por dois cintos): “Meu Senhor, mas são genuínos joelhos Dawkins”.
Em seguida escrevi, a respeito de meu tio Colyear, que o pior que ele
podia dizer de um jovem era:
“Em toda a minha vida, nunca estive em um albergue da juventude” — uma limitação que,
infelizmente, descreve-me até hoje. Meu eu jovem parece ter desapontado as tradições
familiares.
Recebi todo apoio possível de meus pais — ambos conheciam cada flor silvestre
encontrável num penhasco da Cornuália ou num prado alpino, e meu pai entretinha a
mim e a minha irmã soltando nomes em latim a esmo (as crianças adoram o som das
palavras mesmo que desconheçam o significado). Pouco após chegar à Inglaterra, morri de
vergonha quando meu alto e belo avô, já aposentado das florestas da Birmânia, apontou
para um chapim-azul na janela e perguntou se eu sabia identificá-lo. Não sabia, e
lastimavelmente balbuciei: “Um tentilhão?”. Meu avô ficou escandalizado. Na família
Dawkins, tal ignorância equivalia a nunca ter ouvido falar de Shakespeare: “Meu Deus,
John” — nunca esqueci essas palavras, tampouco a leal escusa de meu pai — “mas como?”.
1 Henry Benjamin Wheatley e Peter Cunningham, London Past and Present. Londres: John
Murray, 1891. 2 v., p. 109.
2 Balliol rhyme é uma forma irregular de versificação, associada ao Balliol College, com uma
métrica peculiar e tema quase sempre centrado em uma pessoa. (N. E.)
3 Em tradução livre: “Primeiro venho eu, meu nome é Jowett./ Não há saber, mas disso eu
sei./ Sou diretor desta faculdade,/ O que eu não sei não é saber”. (N. T.)
4 Em tradução livre: “Os positivistas são de falar/ Em tom épico como o de Dawkins;/ Deus é
nada e o Homem é tudo,/ Que se lhe atribua a maiúscula”. (N. T.)
5 Em tradução livre: “Há muitos anos, quando estava eu em Balliol,/ Os homens de Balliol —
eu entre eles —/ Nadávamos juntos em rios invernais,/ Digladiávamos juntos sob o sol./ E
ainda em nossos corações, Balliol, Balliol,/ Já amada, mas tão saudosa,/ Fundiu-nos todos uns
aos outros:/ Fez a recruta e escolheu os seus./ Esta é a casa que encouraça o homem/ Com
olhos de menino e coração de caçador/ E um jeito risonho à beira do abismo/ E com fome
sagrada e sede de perigo:// Balliol me fez, Balliol me nutriu,/ Tudo que eu tinha ela me deu de
novo:/ E o melhor de Balliol me amou e me conduziu./ Deus esteja convosco, homens de
Balliol”. (N. T.)
6 Troca inusitada dos fonemas iniciais de duas palavras, seja por acidente, seja por trocadilho
deliberado (por exemplo, de “bola de gude” para “gula de bode”). (N. E.)
7 Em âmbito acadêmico, o fellow é um “companheiro intelectual”, membro de um grupo de
elite da universidade. Realiza pesquisas em cooperação com os outros fellows e desfruta de
certos benefícios, que podem ir desde o direito de fazer refeições gratuitas à mesa principal da
instituição até um estipêndio. (N. E.)
8 Ver o apêndice para a web: <www.richarddawkins.net/afw> (em inglês).
9 Cujo obituário escrevi: ver o apêndice para a web.
10 <http://wab.uib.no/ojs/agora-alws/article/view/1263/977>.
11 Richard Dawkins, “Growing Up in Ethology”. In: Lee Drickamer e Donald Dewsbury
(Orgs.). Leaders in Animal Behavior. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.
l2 Joseph Thomas (Org.), Randigal Rhymes. Penzance: F. Rodda, 1895.
13 Em tradução livre: “Ouviu-se um terrível estrondo e alvoroço ali perto do estoque de iscas
vivas,/ Pois que o menino de Ben Trembaa foi lá e engoliu uma semente de ameixa,/ Não
desceu bem, que entalou na garganta,/ E como fazê-la sair, vou te dizer que foi um enrosco/
Pois ele se sufocou, e arfou, e enjoou, e os olhos se reviraram e se vidraram;/ Gorgolejou e
ficou aos pisoteios como se tivesse endoidecido.// A velha Mally Gendall foi a primeira a vir
em seu auxílio, —/ Como o Jimmy Eellis dos gatos, ela sempre foi cabeça e chefe;/ Pegou-o
pela franja e, antes dele poder dizer ‘Não’,/ Enfiou o dedo goela abaixo até onde dava,/ Mas
ele logo a agarrou entre os dentes e começou a morder/ Até ela berrar como uma doninha
que se ouvia a uma milha;// E ninguém podia ajudar o menino, todo mundo apavorado,/ E
alguém disse: ‘Filho, dá uma cambalhota; vai resolver’;/ E outros foram atrás de remédios de
menta, e o tio Tommy Wilkin/ Começou uma história maluca de um garoto que engoliu um
sapo;/ Alguns balançaram a cabeça e em tom grave disseram:/ ‘Tava claro pra eles/ Que o
menino ia acabar mal, pois era moleque arteiro,/ Que matava aula, jogava cara ou coroa e
maltratava cães e gatos,/ Ou roubava de ninhos, escancarava portões, coisas assim’.// Foi
então que o Grande Jem por acaso passou pela rua, e gritou, audaz:/ ‘Cê parece os homens lá
de Ruan Vean, vizinho, não entende e não quer entender’;/ Enfiou-se no meio do tumulto e
deu uma pancada no menino,/ Logo abaixo da nuca, e a pedrinha saiu voando;/ E lá está o
menino, parado onde brota o cerefólio:/ ‘Bendito! Se é que não meteu outra semente na
boca!’”. (N. T.)
14 Consultei um especialista em idiomas escandinavos, o professor Björn Melander, e ele
concordou com a minha teoria da “ofensa ou lisonja”, mas acrescentou que há inevitáveis
complicações de contexto.
15 “Sra. Pardalfalcão”, em tradução literal. (N. T.)
Quênia: de acampamento em
acampamento
Pouco tempo atrás minha mãe fez uma pintura que retrata o
incidente. A ilustração aparece no caderno de imagens.
Um tempo depois, vi Richard e William Walter brincando com dois filhotes de leão em
outra fazenda. Tinham tamanho e peso similares aos de labradores adultos (com pernas
curtas), muito brutos e potentes. Mas ele e William pareciam estar se divertindo.
Costumávamos ir fazer piquenique nas colinas de Ngong, dirigindo sobre a grama curta
dos pastos montanhosos — não havia estrada. Frias, altas e esplêndidas. Mas é certo que
éramos idiotas, pois havia búfalos que rondavam aquelas colinas às manadas.
Meu pai não comprava agulhas de fibra. Como era do seu feitio,
preferia improvisar com os espinhos na ponta das folhas de sisal.
Acho que algumas das minhas canções eu tirei de discos, mas outras
eram bobagens que eu bolava de improviso, como as citadas acima, e
outras ainda vinham de meus pais. Meu pai, em especial, encantava-se
em me ensinar músicas sem sentido, geralmente vindas de seu
próprio pai, e muitas noites correram nas toadas de pérolas como
“Mary had a William goat”, “Hi Ho Cathusalem, the harlot of
Jerusalem” e “Hoky Poky Winky Fum” — esta última depois fiquei
sabendo que era cantada diariamente pelo meu bisavô Smythies
somente enquanto amarrava as botas e em nenhuma outra hora.
Certa vez me perdi numa praia do lago Niassa e fui encontrado entre
duas senhorinhas deitadas em espreguiçadeiras, a deliciá-las com a
canção “Gordouli” — aquela serenata zombeteira que desde 1896 é
berrada por estudantes de Balliol para transpor o muro e chegar aos
ouvidos da faculdade vizinha, Trinity. Era das preferidas do meu pai e
do meu avô.
Gordooooooooli.
He’s got face like a ham.
Bobby Johnson says so.
And he ought to know.
Bloody Trinity. Bloody Trinity.
If I were a bloody Trinity man
I would. I would.
I’d go into the public rear,
I would. I would.
I’d pull the plug and disappear.
I would. I would.
Bloody Trinity. Bloody Trinity.3
Não sei como é que pude vir a aprender qualquer hino que fosse,
pois na África nunca frequentamos a igreja (apenas quando ficávamos
com os avós na Inglaterra). Suponho que meus pais tenham me
ensinado esse hino, assim como este aqui: “There’s a friend for littul
chuldren, above the bright blue sky” [Toda criancinha tem um amigo,
lá depois do céu azul].
Likuni foi também onde pela primeira vez notei e me fascinei com
as longas sombras da tardinha, que na época ainda não traziam o mau
agouro evocado por T.S. Eliot no verso “sombra que à tarde se ergue
para receber-te”. Hoje, quando ouço os noturnos de Chopin, sou
conduzido de volta a Likuni e à sensação reconfortante e segura de
finalzinho de tarde, quando as “estrelas começam a espreitar”.
Meu pai inventava para mim e para Sarah histórias de ninar
maravilhosas, geralmente com destaque a um “Broncossauro”, que
falava “Tiddly-widdly-widdly” em falsete e morava muuuuuito longe,
numa terra distante chamada Gonwonkylândia (só fui entender a
alusão durante a faculdade, quando me apresentaram a
Gondwanalândia, o grande continente do sul que se separou para
formar África, América do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Antártida,
Índia e Madagascar). A gente adorava ficar vendo o mostrador
luminoso do seu relógio de pulso no escuro, e ele desenhava um
relógio no nosso pulso com caneta-tinteiro, para que pudéssemos
acompanhar a hora sob as redes contra mosquitos durante a noite
serena.
Lilongwe é também onde guardo preciosas recordações da infância.
A residência oficial do agrônomo-chefe do distrito era revestida por
cascatas de buganvílias. O jardim era tomado de nastúrcios, e eu
adorava comer as folhas. Aquele gosto singular, apimentado, que vez
por outra ainda encontro em saladas, é outro candidato à minha
madeleine proustiana.
A casa vizinha, idêntica, era a do médico. O dr. Glynn e a sra. Glynn
tinham um filho, David, da minha idade. Brincávamos todos os dias
na casa dele, na minha ou entre as duas. Havia grânulos azul-escuros
em meio à areia, que deviam ser ferro, pois conseguíamos erguê-los
arrastando um ímã na ponta de um barbante. Na varanda
construíamos “casas”, com saletas e corredores, estendendo tapetes,
carpetes e cobertores sobre cadeiras e mesas viradas do avesso.
Chegamos a equipar nossas “casas” na varanda com água encanada —
fizemos os encanamentos conectando ramos ocos de uma árvore do
jardim. Talvez fosse uma cecrópia, mas nós chamávamos de
“ruibarbeiro”, tendo provavelmente derivado esse nome de uma
canção que gostávamos de cantar (ao som de “Little Brown Jug”):
Ha ha ha. Hee hee hee.
Elephant’s nest in a rhubarb tree.5
Era tudo que meu avô apreciava, uma boa aventura. Ele adorava
mapas. E também cronogramas de ferrovia, que conhecia de cor e que
viriam a se tornar sua única leitura na idade avançada.
Em Lilongwe, todos já sabiam dez minutos antes quando um avião estava para chegar. Isso
porque uma família local tinha grous-coroados de estimação no jardim. Esses pássaros
ouviam a aproximação de um avião muito antes das pessoas e começavam a gralhar. Se de
medo ou de alegria, não se sabe! Como não havia previsão do avião semanal, ficamos
pensando se não seriam os avós quando os grous começaram a berrar, certo dia. Fomos
então ao campo de pouso, Richard e David pedalando triciclos. Chegamos a tempo de ver
o aviãozinho dar duas voltas na cidade antes de aterrissar com fortes solavancos, e então
Vovó e Vovô desembarcaram.
Nenhum de nós já havia visto aquilo escrito, nem sabia o que queria
dizer. Toda noite um imitava o outro feito papagaio, noite após noite,
e consequentemente as palavras foram evoluindo até se tornarem uma
insignificância truncada. Daria uma bela experiência para a teoria dos
memes, caso você se interesse por esse tipo de coisa — se não se
interessa e não sabe do que estou falando, pode pular para o próximo
parágrafo. Se entendêssemos as palavras da oração, elas não sairiam
truncadas, porque o significado delas teria um efeito “normalizador”,
similar à capacidade “corretora” do DNA. É essa normalização que
possibilita aos memes sobreviver através de “gerações” suficientes
para cumprir sua analogia com os genes. Mas, como muitas das
palavras da oração nos eram desconhecidas, só nos restava imitar os
sons delas, foneticamente. Assim, conforme eram transmitidas através
de “gerações” de meninos imitadores, as palavras apresentavam alta
“taxa de mutação”. Acredito que seria interessante realizar uma
investigação experimental desse efeito, mas ainda não tive a
oportunidade.
Um dos professores, provavelmente Tank ou Dick, costumava nos
comandar no canto coral, incluindo “The Camptown Races” e:
I have sixpence, jolly jolly sixpence,
Sixpence to last me all my life
I’ve tuppence to lend and tuppence to spend
And tuppence to take home to my wife.3
1 A tradução mais consagrada desse trecho do hino para o português (“O tempo é qual
vagante rio que corre para o mar, qual sonho breve é seu feitio, fugaz seu caminhar”) omite a
referência a “dia da inauguração” (opening day). (N. T.)
2 Literalmente, “Lutai o bom combate com toda a tua força”. Hino composto por John S. B.
Monsell e William Boyd, publicado em 1864. (N. T.)
3 Em tradução livre: “Tenho seis pence, belos, belos seis pence,/ Seis pence até o fim da vida/
São dois pence para emprestar e dois pence para gastar/ E dois pence para levar à patroa”. (N.
T.)
4 Em tradução livre: “Aqui sentamos como passarinhos silvestres/ Passarinhos silvestres/
Passarinhos silvestres/ Aqui sentamos como passarinhos silvestres/ Aqui em Demerara”. (N.
T.)
Adeus à África
Algumas delas não tinham melodia e estavam mais para mais berros
de solidariedade do que para canções:
There ain’t no flies on us.
There ain’t no flies on us.
There may be flies
On some of you guys
But there ain’t no flies on us!6
Pièce de résistance era uma saga épica sobre um ovo podre cantada
por Chippi. Eu a reproduzi no apêndice para a web, na esperança
sentimental de que alguns leitores possam querer cantar em torno da
fogueira essa música esquecida e metaforicamente agitar as cinzas de
Henry Murray Letchworth, bacharel em artes por Oxford, integrante
dos Fuzileiros Reais de Dublin, codinomes Slush e Chippi, o afável e
melancólico patriarca da Chafyn Grove que lembrava o personagem
de Goodbye, Mr. Chips. Em 2005, na festa do nonagésimo aniversário
do meu pai, realizada no alojamento dos professores do Balliol
College, transcrevi com fidelidade a letra inteirinha da música do ovo
para uma apresentação magnífica da adorável soprano Ann Mackay
com sua acompanhante ao piano, e meu pai, muitíssimo jovial, ainda
que nem tão afinado, se juntou a ela.
No acampamento escoteiro, ganhávamos insígnias por alcançar
excelência em atividades como manipular o machado, atar nós e
dominar o código de bandeiras ou o código Morse. Eu era bom em
Morse; usava uma técnica aperfeiçoada por meu pai na Somalilândia
durante a guerra, quando emitia sinais a partir de seu blindado. Para
cada letra, você aprende uma frase que começa com essa letra.
Palavras de uma sílaba são pontos, palavras maiores são traços. G, por
exemplo, era “Gordon Highlanders go” — traço traço ponto. Não
consegui criar um auxílio mnemônico semelhante para o código de
bandeiras, e talvez por isso eu me atrapalhasse tanto nessa linguagem.
Ou talvez fosse porque tenho baixa inteligência espacial: vou bem em
testes de QI até chegar às questões de rotação espacial ali pelo fim, que
derrubam minha pontuação.
O outro momento alto do ano era a peça anual da escola, sempre
uma opereta, sempre produzida por Slush, numa tradição que já
vinha pelo menos desde a época de meu pai. Meu tio Bill depois me
contou: “Cheguei a fazer um teste para o papel de uma lâmpada, mas
minha atuação foi considerada insatisfatória”. Os papéis principais
ficavam com meninos que soubessem cantar, e eu era um deles. O
prato do salgueiro-chorão, na qual fiz a protagonista feminina em
meu último ano, era uma das peças típicas. O pano de fundo era uma
grande pintura naquele estilo de porcelana azul e branca. O pagode
era a residência da princesa real; ela havia morrido e, para evitar a
ameaça da republicanização, os três homenzinhos na ponte vinham
conspirando para manter a morte dela em segredo. O plano deles foi
ameaçado quando um formoso príncipe tártaro mandou avisar que
estava a caminho para pedir a mão da princesa. Naquele instante eu,
como donzela da aldeia, aparecia e fazia meu grande número musical.
Eu descrevia, com gestos histriônicos e burlescos para o cenário, o
mundo cerâmico azul em que todos vivíamos:
Blue is the sky above my aching head.
The grass is blue beneath my weary feet.
Blue are the trees that o’er the blue path shed
A deeper shade of everlasting blue.
And all the world is clothed in robes of blue.
The restless sea is of the self-same hue.7
LATIM: Fez progresso constante, mas infelizmente, ao usar tinta, seu trabalho escrito fica
deveras sujo.
1 Em tradução livre: “Ó meus camaradas! Vede o sinal que vem do céu./ Os reforços já
surgem, a vitória está próxima./ ‘Mantenham-se a postos, estou chegando’, Jesus sinaliza./
Acenai a resposta ao Céu: ‘É pela tua graça que o faremos’”. (N. T.)
2 Em tradução livre: “Entre nuvens de vapor e luzes piscantes, esta máquina é um colosso,/
Os latões abrem asas penduradas em fios, como fadas de uma pantomima”. (N. T.)
3 Marca inglesa de jogo de montar baseado nos princípios de engenharia, com peças de metal
como vigas, rodinhas, polias e engrenagens. (N. E.)
O campanário às margens do Nene
À medida que sua voz subia num crescendo constante, seu rosto foi
ficando cada vez mais vermelho, e por fim ele pegou tudo que estava
em volta — giz, tinteiros, livros, apagadores de quadro, tudo — e
começou a atirar com ferocidade atroz na direção do malfeitor. No
dia seguinte ele era o charme em pessoa, pediu breves mas elegantes
desculpas ao mesmo garoto. Era um gentil cavalheiro provocado além
dos limites — e como não o seria, nessa profissão? Quem não o seria
na minha profissão, aliás?
Snappy nos deu Shakespeare para ler e despertou minha primeira
estima por esse gênio sublime. Encenamos Henrique IV (as duas
partes) e Henrique V, e ele próprio interpretou o moribundo
Henrique IV, repreendendo Hal por lhe ter tirado a coroa antes do
tempo: “Oh meu filho. Foi Deus quem te inspirou para levá-la, porque
o amor de teu pai acrescentasses advogando tua causa desse modo”.
Ele pediu voluntários que soubessem fazer o sotaque galês (Williams)
e o irlandês (Rumary: “Ah, Rumary, você é um achado”). Snappy
também nos leu Kipling, com um sotaque escocês convincente para o
hino do engenheiro-chefe, M’Andrew (grafia do próprio Kipling). A
primeira estrofe de “The Long Trail” [O caminho prolongado], em
seu ritmo assombroso, lançou-me numa melancólica nostalgia das
medas de Over Norton e da satisfação do “tudo armazenado e seguro”
do início de outono (leia por favor em voz alta para captar o ritmo
Kipling).
There’s a whisper down the field where the year has shot her yield,
And the ricks stand grey to the sun,
Singing: “Over then, come over, for the bee has quit the clover,
And your English summer’s done.”2
E então, na deixa mais doce e fecunda possível, o sr. Priestman nos leu
Keats.
Nosso professor de matemática do mesmo ano, Frout, era dado a
acessos de tontura. Uma vez, antes de ele chegar à sala de aula, lembro
que deixamos todas as lâmpadas do teto balançando no ar. Então ele
entrou e nós começamos a balançar no mesmo ritmo delas. Não
lembro o que aconteceu a seguir. Talvez o remorso tenha me
bloqueado a memória. Ou talvez seja uma memória falsa baseada
numa lenda de moleque sobre o que outros já haviam feito com ele.
Seja o que for, agora vejo esse como mais um exemplo da lamentável
crueldade das crianças — tema recorrente nas minhas recordações de
colégio.
Nem sempre saíamos impunes. Uma vez, nosso professor de física,
Bufty, estava doente e a turma ficou aos cuidados do professor sênior
de ciências, Bunjy. Após confirmar que já havíamos chegado à Lei de
Boyle no nosso currículo, ele passou à aula, chamando os alunos não
pelos nomes, mas por números que ele ali na hora nos atribuiu e que
não tivemos tempo de decorar. Pequenininho, recurvado, idoso e
mais míope do que qualquer pessoa que eu já tenha encontrado antes
ou depois na vida, sua figura caquética significava, assim julgamos,
carta branca para a algazarra. Ele mal parecia notar nossa insolência.
Pois estávamos redondamente enganados. Podia ter hipermiopia, mas
percebia tudo. Ao fim da aula, Bunjy anunciou com toda a calma do
mundo que todos ficariam em detenção naquela mesma tarde.
Cabisbaixos, à tarde voltamos e recebemos a ordem de escrever numa
página em branco de nossos cadernos: “Lição extra para a Turma 4B1.
Objetivo da lição: ensinar boas maneiras e a Lei de Boyle à 4B1”.
Tenho certeza de que esta não é uma memória falsa e eu, pelo menos,
nunca me esqueci da Lei de Boyle.
Um dos nossos professores — o único que tínhamos a permissão de
chamar pelo apelido — era dado a apaixonar-se pelos meninos mais
bonitinhos. Até onde eu sei, ele nunca foi além de pousar o braço
sobre os ombros do aluno durante a aula e fazer comentários
sugestivos, mas hoje em dia isso já seria o bastante para metê-lo em
sérios apuros com a polícia — e com os vigilantes estimulados pelos
tabloides.
Como quase todas as escolas de sua estirpe, Oundle era dividida em
casas. Cada menino morava e jantava numa das onze casas, e ela
exigia dele lealdade em todas as áreas competitivas de diligência. A
minha era a Laundimer. Não sei como as outras eram por dentro, pois
nos desencorajavam de visitá-las, mas suspeito que eram
praticamente a mesma coisa. O interessante, porém, é como nossas
mentes tendiam a ver cada casa com a sua “personalidade” própria, e
inconscientemente transplantávamos aquela personalidade para cada
garoto da casa. Essas personalidades eram tão nebulosas que não
consigo achar nenhum meio de sequer tentar descrever qualquer uma
delas. Era apenas algo que se “sentia”, subjetivamente. Suspeito que
essa observação represente, sob uma forma talvez mais inocente do
que as predominantes no mundo mais amplo, aquele impulso
humano “tribal” por trás de quase tudo o que há de mais sinistro,
como o preconceito racial ou o sectarismo. Falo da propensão
humana de identificar indivíduos com o grupo a que pertencem em
vez de vê-los como indivíduos por si mesmos. Psicólogos
experimentalistas já demonstraram que isso acontece mesmo quando
indivíduos são redistribuídos ao acaso entre grupos e rotulados com
distintivos totalmente arbitrários, como camisetas de cores diferentes.
Uma ilustração específica desse efeito — no caso, um exemplo
agradável — era o único garoto de ascendência africana em Oundle
enquanto estive lá. Tenho a impressão de que ele não sofria nenhum
preconceito racial na época, talvez porque, sendo o único garoto
negro, ele não era identificado no colégio como parte de um grupo
racial. Era, porém, identificado com a casa a que pertencia. Assim
como a seus contemporâneos da Casa Laxton, não o enxergávamos
como negro, mas como “do bando da Laxton”, com uma
personalidade semelhante à dos outros da casa. Hoje, com o devido
distanciamento, duvido que exista um só traço de personalidade que
se possa com alguma razão associar à Laxton ou a qualquer outra
casa. Minha observação não tem nenhuma relação com a realidade
que se vivia em Oundle, mas com uma característica geral da
psicologia humana: a tendência de enxergar indivíduos com crachás
de um rótulo grupal.
O motivo que me levou a escolher a Laundimer como minha casa
foi o rumor, que logo em seguida se provaria infundado, de que era
uma das poucas casas sem a tradição de um ritual de iniciação (o que
os estudantes de faculdades norte-americanas chamam de “hazing”).
Ledo engano: devíamos ficar em pé numa mesa e cantar uma música.
Com minha voz sibilante de soprano, cantei uma das músicas de meu
pai:
Oh the sun was shining, shining brightly
Shining as it never shone before — shone before.
Oh the sun was shining so brightly,
When we left the baby on the shore.
1 Em tradução livre: “Pelos meninos, para os meninos. Os meninos é que sabem./ Eles sabem
aplicar nos patifes/ A justiça bruta que todo bom menino conhece”. (N. T.)
2 Em tradução livre: “Ouve-se um sussurro campo afora, onde o ano já valeu seu peso,/ E as
medas de feno acinzentam-se ao sol,/ E cantam: ‘Vocês aí, venham, pois a abelha já largou o
trevo,/ E o verão inglês se encerrou’”. (N. T.)
3 Em tradução livre: “Oh, o sol brilhava, brilhava forte./ Brilhava como nunca antes — nunca
antes./ Oh, o sol brilhava tão forte,/ Quando deixamos o bebê na praia.// Sim, deixamos o
bebê na praia./ Algo que nunca tínhamos feito — nunca tínhamos feito./ Quando você vir a
mãe, avise-a com delicadeza/ Que deixamos o bebê na praia”. (N. T.)
4 Cassandra era pseudônimo de Sir William Neil Connor (1909-67), famoso colunista do
tabloide inglês entre 1935 e 1967. (N. T.)
5 Durante a Segunda Guerra Mundial, “Lord Haw-Haw” era o apelido dado no Reino Unido
aos locutores radiofônicos que faziam propaganda alemã, sobretudo William Joyce, e “Tokyo
Rose” o dado nos Estados Unidos a certas locutoras de ascendência nipônica que faziam
propaganda japonesa, em especial Iva Toguri d’Aquino. (N. E.)
6 Em tradução livre: “Sentado um dia no Oregon”. O autor faz referência à composição “The
Lost Chord”, de Arthur Sullivan, cuja primeira frase é “Seated one day at the organ” [Sentado
um dia ao órgão]. (N. T.)
7 Em tradução livre: “Objetivamente falando, nossa sala de encontros é um pequeno estado
ateniense…/ Com exceção de Lewis: ele é até legalzinho, mas será que é de primeira linha?”.
(N. T.)
Campanários sonhadores
“Sr. Dawkins? Assine aqui, por favor, sir. Lembro-me de seus três
irmãos, excepcional ala um deles. Suponho que o senhor não jogue
rúgbi, joga?”
“Não, receio que não e, hã, na verdade não tenho irmãos. Você deve
estar falando do meu pai e dos meus dois tios.”
“Sim, jovens cavalheiros excepcionais, assine aqui, por favor, sir. O
senhor ficará na Escadaria 11, Quarto 3, a dividir com o sr. Jones.
Próximo?”
Bom, a conversa foi mais ou menos assim. Não anotei na época. O
porteiro do Balliol College havia incorporado a visão atemporal
característica de sua profissão, com o chapéu-coco e tudo mais. Os
jovens cavalheiros vêm e vão, mas a faculdade dura para sempre.
Aliás, ela viria a comemorar setecentos anos durante minha estada.
Por falar nessa antiga e leal profissão associada ao chapéu-coco, não
vou resistir a contar uma anedota mais recente relatada pelo porteiro-
chefe da minha faculdade atual, o New College (bom, era new em
1379). Um porteiro novo e inexperiente não tinha pegado o jeito com
o registro de ocorrências mantido pelos porteiros, nem entendido
bem para o que é que servia. As entradas que ele acrescentou durante
sua primeira noite, de hora em hora, consistiam em
(aproximadamente, sem precisão de detalhes):
20h. Chuva.
21h. Continua chuva.
22h. Chuva mais forte.
23h. Continua chuva forte. Deu pra ouvir batendo no chapéu quando fiz a ronda.
* Um English major seria tanto um major das Forças Armadas inglesas como, no linguajar
universitário norte-americano, um estudante de letras. (N. T.)
Consertos de computador
(15 fev 1927) O sr. Cox aposta com o professor Hardy 10/- para 1/- que o rev. Canon Cox
(“Fred”) não será o próximo bispo da Niassalândia.
(4 de agosto de 1993) O sr. Dawkins aposta com o sr. Raine £1 que Bertrand Russell se
casou com Lady Ottoline Morrell. Árbitro: mlle. Bruneau. (Dawkins perdeu e pagou, com
20 anos de atraso.)
Apostas como esta última não acontecem mais, porque hoje a coisa
mais fácil e trivial para qualquer um é conferir essas questões factuais
nos smartphones sem se levantar da poltrona do Salão Acadêmico.
Mesmo então, mal era necessário designar um árbitro para uma
questão puramente factual.
Mas voltemos a 1970, quando eu tinha 29 anos e acabara de
retornar para Oxford. O computador/cantor Elliott havia entrado em
extinção, mas a Lei de Moore e aquela bolsa de pesquisa que no ano
anterior me convencera a voltar para Oxford me possibilitaram ter
meu “próprio” computador, um PDP-8, que superava o Elliott em
todos os aspectos exceto tamanho físico e preço. Também ao
encontro da Lei de Moore (que já naqueles tempos começava a se
provar verdadeira), a funcionalidade do PDP-8 era muito menor e seu
porte físico muito maior que o de um laptop atual, e ele vinha com
um absurdo livro de registro em que você devia anotar toda vez que
ligasse (é óbvio que eu não anotava). Era meu maior orgulho e um
recurso valioso — assim como eu próprio, sendo o único
programador disponível para todos na Bevington Road número 13 (o
que acabou com meu tempo). Agora sim meu vício em computador
podia decolar, e eu já não precisava mais saciá-lo na calada da noite,
como na época do meu vergonhoso caso com o Elliott 803.
Eu só havia usado antes linguagens compiladas de alto nível —
linguagens para seres humanos, traduzidas pelo computador na sua
própria linguagem binária de máquina. Mas agora, para poder usar o
PDP-8 como ferramenta de pesquisa, eu tinha de dominar sua
linguagem maquinal de 12-bits, tarefa à qual me atirei com ardor.
Meu primeiro projeto com código de máquina foi o “Órgão
Dawkins”, um sistema para registrar comportamento animal —
equivalente ao “Aquisão de Dados”, de George Barlow, mas bem mais
barato. A ideia era criar um teclado que o observador pudesse usar em
campo, apertando botõezinhos para indicar as ações de um animal.
Os comandos dados eram registrados num gravador de fita, que
depois automaticamente informaria ao computador o momento exato
em que ocorreu cada ação do animal.
Meu teclado era literalmente um órgão eletrônico improvisado,
onde cada tecla tocava uma nota (audível somente ao gravador de
fita). Essa parte seria fácil de fazer. A caixa conteria um oscilador
simples de dois transistores, sendo o tom de cada nota afinado por
uma resistência. Cada tecla do órgão faria conexão com um resistor
diferente e assim tocaria uma nota diferente. O observador teria de
levar o órgão a campo e observar o comportamento de um animal,
pressionando uma determinada tecla para cada padrão de
comportamento. A gravação da sequência de notas constituiria então
um registro compassado do comportamento do animal. Em teoria,
uma pessoa de bom ouvido que ouvisse a fita conseguiria detectar
qual tecla fora pressionada, mas isso não ajudaria. Eu precisava que o
computador assumisse o papel da pessoa-de-bom-ouvido. Isso até se
poderia fazer por meio eletrônico, com uma série de detectores de
frequência afinados, mas seria caro e desgastante. Será que a mesma
proeza desse computador especial — o ouvido absoluto — poderia ser
alcançada por um programa sozinho?
Eu discutia o problema com meu então guru de informática, Roger
Abbott — um engenheiro sagaz (e, por coincidência, organista) que
estava a serviço da grande bolsa de pesquisa do professor Pringle —,
quando ele deu uma sugestão inspirada. Toda nota musical tem um
comprimento de onda característico, correspondente à sua altura. Os
computadores são — e eram, já naqueles tempos — tão rápidos que o
intervalo entre picos de onda dentro de uma nota musical poderia ser
medido em centenas de ciclos do programa. Roger me sugeriu
escrever um programa para cronometrar os intervalos entre picos de
onda: escrever, em outras palavras, uma rotina que funcionasse como
cronômetro, contando quantos loops ele faria antes de ser
interrompido pelo pico da onda seguinte (quando se tira a média
entre vários picos de onda, tem-se a altura da nota). Quando uma
nota se encerrava (quando mais do que um tempo crítico decorria
desde o último auge da onda), o computador devia registrar o tempo e
aí esperar pela próxima nota do órgão. O loop-cronômetro do
computador, em outras palavras, seria usado não só para identificar a
altura de uma nota musical, mas também para, numa escala temporal
muitíssimo mais ampla, medir a passagem do tempo entre as notas.
Depois que consegui fazer essa rotina central funcionar, o resto foi
só questão de suar a camisa na escrita e na depuração do programa até
ficar fácil de usar. Levou um bom tempo, mas terminou em sucesso.
O Órgão Dawkins tornara-se um produto viável. O usuário do órgão
iniciava cada sessão tocando uma escala na fita — todas as notas do
órgão em ordem ascendente de altura. Uma vez passada para a fita, a
escala seria então usada para “calibrar” o software — “ensinar” ao
computador o repertório de notas que lhe seria solicitado identificar.
Encerrada a escala de calibragem (ao atingir a primeira nota pela
segunda vez), todas as subsequentes notas na fita designariam notas
de comportamento. O sistema de calibragem tinha a vantagem de que
o órgão dispensava afinação precisa. Qualquer conjunto de notas que
se distinguissem o bastante umas das outras daria conta, pois o
computador aprendia rápido quais notas escutar.
Assim, quando a fita era trazida ao computador e tocada, ele sabia
exatamente o que o animal havia feito, e quando. O núcleo do
programa era o loop-cronômetro, mas ele estava integrado a uma
quantidade substancial de códigos a fim de registrar, na fita de papel,
os nomes de todos os padrões de comportamento e os momentos
exatos em que ocorriam.
Publiquei um artigo sobre o Órgão Dawkins1 e disponibilizei o
software gratuitamente. Ao longo dos anos seguintes, Órgãos
Dawkins foram usados por numerosos integrantes do ABRG e por
alguns etólogos de outras partes do mundo, por exemplo, da
University of British Columbia.
Meu vício em programar código de máquina me lançou numa
espiral de decadência. Cheguei a inventar minha própria linguagem
de programação, o Bevpal, que tinha até manual próprio; foi um
exercício um tanto inútil, visto que a linguagem não foi usada por
ninguém além de mim e, durante um curto período, por Mike Cullen.
Douglas Adams fez uma deliciosa sátira do vício em computador bem
do tipo que me infectou. O alvo da sátira era o programador que
enfrentava um problema específico X, de solução urgente. Ele podia
ter escrito um programa em cinco minutos para resolver X e
arranjado aí a solução. Mas não: ele passou semanas escrevendo um
programa mais genérico que poderia ser usado por qualquer pessoa a
qualquer momento para resolver qualquer problema da genérica
classe X. O fascínio reside na generalidade — na busca por um
produto esteticamente agradável e fácil de usar, para o benefício de
um contingente de usuários que provavelmente nem existe —, e não
na tentativa de achar uma resposta ao problema específico X. Outro
sintoma dessa variedade de vício geek é que, toda vez que você resolve
um problema local e consegue fazer malabarismos com o
computador, tem vontade de sair correndo para a rua e arrastar
alguém pelo cabelo a fim de mostrar a elegância daquilo.
A fértil camaradagem que se cultiva em uma casinha como a
Bevington Road número 13 chegou ao fim por essa época, quando o
grupo de comportamento animal se mudou para o novo prédio de
zoologia/psicologia, na South Parks Road — um edifício imenso e
pavoroso que mais parecia um encouraçado. Informalmente era
conhecido como HMS Pringle, em homenagem ao ambicioso professor
do Linacre College que convenceu os superiores da universidade a
construí-lo — não tendo conseguido persuadi-los antes a construir
um arranha-céu da espessura de um lápis e de uma altura que
ultrapassaria os campanários sonhadores de Matthew Arnold. Tenho
sentimentos contraditórios quanto à minha participação em
transformar o HMS Pringle oficialmente em Tinbergen Building, pois
ele é deplorado por muitos como o prédio mais feio de Oxford. E
ganhou um prêmio de arquitetura da Concrete Society. Sem
comentários.
Por volta dessa época publiquei um artigo curto na Nature.2 A cada
dia morrem centenas de milhares das nossas células cerebrais, e isso
me angustiava já aos 29 anos. Meu cérebro obcecado por Darwin
buscou conforto na ideia de que, caso as mortes celulares não fossem
aleatórias, esse massacre aparentemente indiscriminado podia ser
mais construtivo do que destrutivo:
O escultor transforma um bloco de rocha numa complexa estátua por meio da subtração,
não do acréscimo. Uma máquina de processar dados eletrônicos tem maior probabilidade
de ter sido elaborada primeiro com conexões de diversos componentes realizadas de
maneiras complexíssimas e então com o aprimoramento dessas conexões para tornar a
máquina ainda mais complexa. Por outro lado, ela também pode ter sido construída de
início com interconexões extremamente ricas, até mesmo aleatórias, e depois com o
entalhamento de uma organização mais significativa por meio de cortes seletivos dos fios.
[…]
A teoria proposta aqui pode a princípio soar extravagante. A reflexão mais aprofundada,
porém, mostra que essa inverossimilhança vem sobretudo do postulado altamente
improvável em que ela se apoia: o de que as células cerebrais decaem em taxa prodigiosa a
cada dia. Dado que esse postulado é, por incrível que pareça, um fato comprovado, a teoria
atual não apresenta nada de implausível — muito pelo contrário, aliás, pois ela faz o
processo parecer menos dispendioso. O que está em questão é se os neurônios morrem ao
acaso ou por uma seletividade que serve ao armazenamento de informações.
1 Richard Dawkins, “A Cheap Method of Recording Behavioural Events for Direct Computer
Access”, Behaviour, Leiden: Brill, n. 40, pp. 162-73, 1971.
2 Richard Dawkins, “Selective Neurone Death as a Possible Memory Mechanism”, Nature,
Londres: Nature Publishing, n. 229, pp. 118-9, 1971.
3 Richard e Marian Dawkins, “Decisions and the Uncertainty of Behaviour”, Behaviour,
Leiden: Brill, n. 45, pp. 83-103, 1973.
A gramática do comportamento
A frase nuclear está em destaque. Você pode ler e verificar que está
gramaticalmente correta, sem as orações adjetivas e os sintagmas
preposicionados incrustados no meio. Podemos construir a
incrustação da seguinte maneira. O importante é que a construção
ocorra dentro da frase nuclear, ou dentro de partes já incrustadas. Leia
para si as partes destacadas:
O SUBSTANTIVO ADJETIVO do substantivo adjetivo que adverbialmente
adverbialmente verbou em substantivo do substantivo que verbou ADVERBIALMENTE
VERBOU.
Niko Tinbergen odiou essa abertura. Não gostava de nada que desse
a entender ser a humanidade uma espécie inteligente; sentia-se
profundamente magoado pelos efeitos terríveis que temos sobre o
mundo. Mas realmente não era essa a mensagem que eu estava
passando.
Devo explicar uma coisa em relação ao capítulo “Memes: os novos
replicadores”. Dado que o restante do livro levou o gene ao palco
central como replicador protagonista na evolução da vida, era
importante afastar a impressão de que o replicador só pode ser o DNA.
Ainda no clima de ficção científica da abertura, ressaltei que em
outros planetas a evolução da vida poderia ser promovida por um
sistema de autorreplicação completamente diferente — mas que, fosse
ele qual fosse, precisaria ter certas qualidades, tais como alta
fidelidade de cópia.
Fui à cata de algum exemplo, e poderia ter usado os vírus de
computador, caso eles já tivessem sido inventados em 1975. Eis que
me surgiu a visão da cultura humana como um novo “caldo
primordial”:
Será que temos de viajar até mundos distantes para encontrar outros tipos de replicador e,
em consequência, outros tipos de evolução? Penso que um novo tipo de replicador surgiu
recentemente neste mesmo planeta. Está bem diante de nós. Está ainda na sua infância,
flutuando ao sabor da corrente no seu caldo primordial, porém já está alcançando uma
mudança evolutiva a uma velocidade de deixar o velho gene, ofegante, muito para trás.
O novo caldo é o caldo da cultura humana. Precisamos de um nome para o novo
replicador, um nome que transmita a ideia de uma unidade de transmissão cultural, ou
uma unidade de imitação. “Mimeme” provém de uma raiz grega adequada, mas eu
procuro uma palavra mais curta que soe mais ou menos como “gene”. Espero que os meus
amigos classicistas me perdoem se abreviar mimeme para meme. Se isso servir de consolo,
podemos pensar, alternativamente, que a palavra “meme” guarda relação com “memória”,
ou com a palavra francesa même. Devemos pronunciá-la de forma a rimar com “creme”.
Exemplos de memes são melodias, ideias, slogans, as modas no vestuário, as maneiras de
fazer potes ou de construir arcos. Tal como os genes se propagam no pool gênico saltando
de corpo para corpo através dos espermatozoides ou dos óvulos, os memes também se
propagam no pool de memes saltando de cérebro para cérebro através de um processo que,
num sentido amplo, pode ser chamado de imitação.9
1 Konrad Lorenz, A agressão. São Paulo: Martins Fontes, 1973 (publicado originalmente em
alemão como Das sogenannte Böse [O suposto mal], em 1963). Robert Ardrey, The
Territorial Imperative: A Personal Inquiry into the Animal Origins of Property and Nations.
Londres: Collins, 1967. Id., The Social Contract: A Personal Inquiry into the Evolutionary
Sources of Order and Disorder. Londres: Collins, 1970.
2 Richard Dawkins, O gene egoísta. Trad. de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. pp. 87-9.
3 George C. Williams, Adaptation and Natural Selection. Princeton: Princeton University
Press, 1966.
4 Daniel C. Dennett, Intuition Pumps and Other Tools for Thinking. Nova York: Norton,
2013.
5 John Maynard Smith, The Theory of Evolution. Cambridge: Cambridge University Press,
1993 (publicado originalmente pela Penguin em 1958). [Ed. port.: A teoria da evolução.
Lisboa: Ulisseia, 1958.]
6 Richard Dawkins, O gene egoísta. Trad. de Rejane Rubino. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 66.
7 Ibid., p. 31.
8 Ibid., p. 37.
9 Ibid., pp. 329-30.
10 Suspeito que ele seja a fonte original de uma anedota de ampla circulação sobre a estrela
de cinema Diana Dors. Ambos vieram da mesma cidade do condado de Wiltshire e foram
amigos de infância. O sobrenome verdadeiro dela não era Dors, mas Fluck. Ela foi convidada
a abrir um festival ou algo assim na sua cidade natal, e o vigário, julgando apresentá-la pelo
nome que os locais conheceriam, cordialmente convidou-os a dar as boas-vindas à querida
“Diana… Clunt” [trocadilho com as palavras em inglês “fuck” e “cunt”].
11 Em tradução livre: “À distância, da noite e da manhã/ E do céu dos doze ventos acolá,/ A
matéria da vida que me cerziu/ Soprou-me para cá; e cá estou. […] Dize-me já, e hei de
responder;/ Como posso ajudar, dize-me;/ Aos doze quadrantes do vento/ Tomo meu rumo
sem fim”. (N. T.)
O caminho trilhado
Isso de fato poderia ser verdade, mas não parece tê-lo atrapalhado.
Minha capacidade de recordar poesia palavra por palavra não ajudou
muito minha ciência, embora tenha enriquecido minha vida e eu
jamais desejasse perdê-la. É possível, também, que o senso de
cadência poética tenha alguma influência no meu estilo de escrita.
Meus hábitos são metódicos, o que não é de pouca utilidade na minha área de trabalho.
Por fim, tive amplo ócio por não ter de pagar o meu pão. Mesmo a saúde debilitada,
embora tenha aniquilado vários anos de minha vida, poupou-me das distrações da
sociedade ou do entretenimento.
* Em tradução livre: “Um milhão de milhões de espermatozoides,/ Vivos, todos eles:/ Deste
cataclismo, um coitado Noé/ Ousou ter a esperança de sobreviver.// E dentre os bilhões
menos um/ Teria a chance de ser/ Shakespeare, outro Newton, o novo Donne…/ Mas o Um
era Eu.// Vergonha de ter destituído os melhores,/ Pegando a arca enquanto outros ficaram
de fora!/ Melhor para todos nós, homúnculo teimoso,/ Se você morresse quieto no seu
canto!”. (N. T.)
A família Dawkins faz parte do grupo Chipping Norton desde os princípios do
século XVIII, quando meu pentavô Henry Dawkins MP construiu o mausoléu
da família na igreja de St. Mary “para si e seus herdeiros”, nas palavras da
inscrição sobre a mesa memorial. Um retrato da família de Henry pintado em
1774 serve como pano de fundo a uma foto da família tirada na Over Norton
House por volta de 1958. Meu avô Dawkins, com sua gravata rosa do clube
Leander, senta-se entre a esposa, Enid, e sua nora, Diana. Minha irmã, Sarah,
aparece na frente dele; tio Bill está atrás dele, entre tio Colyear e eu. Meu pai é o
da extrema esquerda. Minha mãe está entre Enid e a esposa de Colyear,
Barbara.
Será que Zuleika Dobson está entre os espectadores a bordo da barcaça da
faculdade enquanto meu avô Clinton G. E. Dawkins, encurvado para a frente,
se prepara para remar por Balliol?
A formação superior do meu avô (à direita) foi financiada por seu tio (futuro Sir) Clinton
Edward Dawkins (à esquerda), cujas ideias de livre-pensador foram exaltadas nas rimas
Balliol.
Meu pai (acima) e Bill (na foto seguinte), seu irmão jogador de rúgbi,
acompanharam o pai deles e vários outros Dawkins a Balliol após uma infância
idílica nas florestas da Birmânia.
A família Smythies em Dolton, Devon. Minha avó paterna, Enid, com o
cachorro e o livro, está sentada ao lado da mãe (com o chapéu requintado), do
irmão Evelyn (com a raquete de tênis) e do pai (de chapéu-panamá), junto com
dois convidados não identificados.
Os primos Smythies por volta de 1923. Sentados no chão, da direita para a
esquerda, Bill, Yorick, John e a irmã de Yorick, Belinda. Colyear está nos braços
da mãe.
A esposa de Evelyn Smythies, Olive, era conhecida como “Tiger Lady” por seu
desagradável passatempo de alvejar tigres.
O filho de Olive, Bertram Smythies, primo em primeiro grau de meu pai,
cultivava o interesse menos aniquilador e mais literário pelo mundo natural.
Meu avô materno, “Bill” Ladner (o terceiro sentado da esquerda para a direita),
integrava um grupo de oficiais da Marinha enviados ao Ceilão para ajudar a
construir uma estação radiotelegráfica durante a Primeira Guerra Mundial.
Será que o cachorro era mascote da estação? Parece ser o mesmo cachorro que
recebe o afago de minha avó Connie.
A família voltou à Inglaterra quando minha mãe, Jean, tinha três anos.
Eles foram morar em Essex (minha mãe é a que está com os braços em volta de
um amiguinho, na foto seguinte) e passavam as férias em Mullion, na
Cornuália: na foto tirada na praia, minha tia Diana está de mãos dadas com a
mãe e a irmã.
Meu avô Ladner, engenheiro telegráfico contratado pela Marconi e autor do
livro de referência sobre comunicação radiotelegráfica de ondas curtas,
demonstra equipamentos durante visita da realeza árabe. Ele conheceu minha
avó na Cornuália enquanto trabalhava na Estação Radiotelegráfica de Poldhu.
Algumas das chapas da estação, usadas como material isolante dos painéis de
instrumentos, acabaram virando blocos de pavimentação da nossa casa na
enseada de Mullion.
Minha avó Enid com sua cachorrinha Susan no jardim da casa The Hoppet,
onde meus pais se conheceram.
Às vésperas da guerra eles se casaram na Water Hall, vista na foto seguinte com
a irmã mais nova de minha mãe, Diana, no jardim.
Após descobrir, ao chegar, que meu pai (acima) fora convocado para a guerra,
minha mãe acompanhou-o (ilegalmente) ao Quênia no calhambeque Lucy
Lockett, visto nas fotos seguintes sobre uma ponte improvisada, com minha
mãe lavando o rosto no rio, e durante o café da manhã em um dos vários
acampamentos deles.
A passagem de meu pai por um de seus locais de treinamento coincidiu com o
funeral de Baden-Powell. Por ser ex-escoteiro, ele foi convidado a acompanhar
o caixão. Acho que ele está muito arrojado na farda da KAR, marchando junto
de Lord Erroll (fora do passo), que foi assassinado pouco depois.
Para minha mãe, a vida doméstica no Quênia, durante os tempos da guerra,
teve lá suas surpresas: aqui está a pintura que ela fez retratando o episódio da
leoa, descrito no segundo capítulo.
Para sinalizar marcos na vida familiar, minha mãe tinha o costume de pintar
quadros grandes representando cenas e acontecimentos. Esta é uma pequena
parte de um quadro chamado Por onde fomos, que ela fez para suas bodas de
ouro em 1989. Além de cenas genéricas da África, vê-se o carro blindado de
meu pai na Somalilândia; eu em meus primeiros passos largos com minha mãe;
uma praia arenosa do lago Niassa; meu camaleão de estimação, Hookariah;
nosso gálago de estimação, Percy; e nossa casa em Makwapala, onde apareço
empurrando Sarah no carrinho em direção ao Tui, o dachshund.
Parece que, ainda bebê, eu já via em meu pai não só um homem grande, mas
também um grande homem , e acompanhei-o na subida de encostas do
Kilimanjaro (na foto seguinte).
Baraza, benevolente, tolerava minha teimosia em empurrar meu próprio
carrinho.
Mais tarde, mudamos para Makwapala, na Niassalândia, onde aparentemente
eu me entediei com a aula de corte e costura ministrada por minha mãe no
jardim.
Em 1946, num breve recesso, ficamos com meus avós na Inglaterra. Nesse
período, meu tio Bill e a tia Diana (o casal da esquerda na faixa do meio, ao
lado de meus pais) casaram-se em Mullion, e a família toda fez um piquenique
na enseada de Kynance.
Ao retornarmos à Niassalândia, moramos em Lilongwe, onde meus pais
compraram a Creeping Jenny, nosso primeiro carro zero.
Fui enviado para o internato Eagle School, na Rodésia do Sul. Na foto, Tank (o
diretor) está ao centro com Coppers (supervisora) e Dick (outro professor) à
sua direita. Eu sou o terceiro garotinho miúdo da esquerda para a direita na
mesma fileira e David Glynn, também baixinho, é o terceiro da direita para a
esquerda, ao lado de Wattie, que está ao lado de Paul.
David e eu colecionávamos as belíssimas borboletas rabo-de-andorinha, que ele
enigmaticamente chamava de “Papai Noel”.
A foto em que estou com meus pais, tirada num casamento da família (minha
irmã, Sarah, era dama de honra, por isso não estava conosco), infelizmente não
mostra o vermelho-vivo do chapéu que eu usava como aluno da Chafyn Grove.
No meu primeiro trimestre em Oundle, não acho que eu estivesse tão feliz
quanto demonstrei para a câmera.
Uma das melhores coisas do colégio era Ioan Thomas, aqui visto incentivando
a fome de saber no mundo natural.
A vida em Over Norton: o decrépito Land Rover com que nos arrojávamos pela
terra esburacada; nas fotos seguintes, porcos Wessex Saddlebacks ornando a
terra igualmente esburacada que na época era o jardim de nosso chalé, por
volta de 1951; meu inventivo pai orgulhoso diante de seu pasteurizador
patenteado; e a colheita do feno com o tratorzinho Fergie.
Nas férias de verão, minha tarefa era rebocar fardos.
Seguindo os passos de meu pai, transportando uma relíquia de família ou algo
assim.
Niko na aldeia de Ravenglass, fazendo o que gostava: pintando ovos de
mentira.
“Olhos de profundidade sagaz, que captavam o que você queria dizer antes
mesmo de suas palavras saírem. […] o erguer cético e zombeteiro das
sobrancelhas sob o cabelo desalinhado”. Mike Cullen, saudosíssimo mentor de
tantos.
Qual bicar? Pintinhos que nunca tinham visto luz vinda de cima da cabeça.
Peter Medawar antes do AVC que mudou sua vida.
George Barlow, meu amigo e guia dos tempos de Berkeley, anos mais tarde
tirou um período sabático, veio a Oxford e foi andar de barco no rio Cherwell
comigo e mais um amigo (que não é John Lennon, mas sim Tim Halliday,
especialista em salamandras).
Caçando o puma de Surrey — explorador intrépito esquadrinha a paisagem em
busca da fera selvagem.
Feras selvagens ou garotinhos assustados? A Guarda Nacional da Califórnia
confronta esganiçadamente o Povo da Paz em Berkeley.
O som dos grilos: Ted Burk e eu gravando o comportamento com microfone e
o Órgão Dawkins.
Grupo de Pesquisa em Comportamento Animal após a mudança da Bevington
Road. Marian é a da extrema esquerda. Eu estou um pouco à direita do centro.
Um computador PDP-8 igual ao que alimentou meu vício na Bevington Road.
O professor Pringle e (da esquerda para a direita) seus colegas E. B. Ford, Niko
Tinbergen, William Holmes, Peter Brunet e David Nichols.
Danny Lehrman (de pé) e Niko Tinbergen (à direita) resolvendo suas
divergências.
Niko outra vez fazendo o que gosta: será que a cinza vai cair antes que ele
termine de filmar?
Pensamentos profundos. Acima: Bill Hamilton e Robert Trivers debatendo-se
com um problema durante a visita de Bill a Harvard.
O infinitamente revigorante John Maynard Smith em seu amado jardim.
O gene egoísta com a capa original de Desmond Morris.
Com o alto, pensativo e lincolnesco George Williams.
“EU TENHO QUE FICAR COM ESSE LIVRO!” Michael Rodgers, editor
estrategista-K das ciências.
Agradecimentos
Pelos conselhos, pela ajuda e pelo apoio das mais variadas espécies,
gostaria de agradecer a Lalla Ward Dawkins, Jean Dawkins, Sarah e
Michael Kettlewell, Marian Stamp Dawkins, John Smythies, Sally
Gaminara, Hilary Redmon, Sheila Lee, Gillian Somerscales, Nicholas
Jones, John Brockman, David Glynn, Ross e Christine Hildebrand,
Bill Newton Dunn, R. Elisabeth Cornwell, Richard Rumary, Alan
Heesom, Ian McAlpine, Michael Ottway, Howard Stringer, Anna
Sander, Paula Kirby, Stephen Freer, Bart Voorzanger, Jennifer
Jacquet, Lucy Wainwright, Bjorn Melander, Christer Sturmark, Greg
Stikeleather, Ann-Kathrin Ehlers, Jan e Richard Gendall, Rand
Russell.
Créditos de excertos
Empreendeu-se todo esforço para localizar os detentores de direitos autorais, mas todos que
não tenham sido mencionados aqui estão convidados a entrar em contato com a editora.
“To the Balliol Men Still in Africa” [Aos homens de Balliol ainda na África], de Hilaire
Belloc, reproduzido com autorização da Peters Fraser & Dunlop
(www.petersfraserdunlop.com), em nome do espólio de Hilaire Belloc.
Excerto de Iris Murdoch: A Life, de Peter J. Conradi © Peter J. Conradi, 2001, reproduzido
com autorização da A. M. Heath & Co Ltd. e da W. W. Norton.
Excerto de The Autobiography of Bertrand Russell, de Bertrand Russell © 2009 The
Bertrand Russell Peace Foundation, reproduzido com autorização da Taylor & Francis Books
UK e da Bertrand Russell Peace Foundation Ltd.
Letra de “A Song of Reproduction” reproduzida com autorização dos espólios de Michael
Flanders & Donald Swann, 2013. Qualquer uso de material de Flanders & Swann, seja grande
ou pequeno, deve ser comunicado aos patrimônios via leonberger@donaldswann.co.uk.
Excerto de “Summoned by Bells”, extraído de Collected Poems, de John Betjeman © 1955,
1958, 1962, 1964, 1968, 1970, 1979, 1981, 1982, 2001, reproduzido com autorização da John
Murray (editora) e do espólio de John Betjeman.
Excerto de “A Hike on the Downs”, extraído de Collected Poems, de John Betjeman © 1955,
1958, 1962, 1964, 1968, 1970, 1979, 1981, 1982, 2001, reproduzido com autorização da John
Murray (editora) e do espólio de John Betjeman.
Excerto de The Loom of Years, de Alfred Noyes © 1902, reproduzido com autorização da
Society of Authors como representante literária do espólio de Alfred Noyes.
“Blue Suede Shoes”, de Carl Lee Perkins © 1955, 1956 Hi Lo Music, Inc. © Renovado em
1983, 1984 Carl Perkins Music, Inc. Administrado pela Wren Music Co., divisão da MPL
Music Publishing, Inc. Todos os direitos reservados. Direitos internacionais garantidos.
Usada com autorização da Music Sales Limited.
Excerto de The Silent Traveller in Oxford, de Chiang Yee © 1944 Signal Books Ltd.
Excerto de W. D. Hamilton, “The Play by Nature”, Science, v. 196, n. 4291, pp. 757-9
(1977), reproduzido com autorização da AAAS.
Excerto de Leda, de Aldous Huxley. Copyright © 1929 Aldous Huxley. Reproduzido com
autorização da Georges Borchardt, Inc., em nome do Aldous and Laura Huxley Trust. Todos
os direitos reservados.
Excerto de “Genes and Memes”, de John Maynard Smith, publicado originalmente na
London Review of Books, 4 de fevereiro de 1982.
Excerto de “Selective Neurone Death as a Possible Memory Mechanism”, de Richard
Dawkins, publicado originalmente na Nature (Nature Publishing Group), 8 de janeiro de
1971.
Excerto do prefácio de Richard Dawkins a The Theory of Evolution, de John Maynard
Smith (Cambridge University Press, 1993).
Trechos de prefácio, capítulos 1 e 13 de The Selfish Gene, de Richard Dawkins (1976),
reproduzidos com autorização da Oxford University Press.
Créditos das imagens
Todos as fotos são da coleção da família Dawkins (agradecimentos a Sarah Kettlewell), com
exceção das relacionadas abaixo. Empreendeu-se todo esforço para localizar os detentores de
direitos autorais, mas todos que não tenham sido mencionados aqui estão convidados a
entrar em contato com a editora.
(1)Cerura vinula (no capítulo “Aprendendo o ofício”): foto gentilmente cedida por N.
Tinbergen.
CADERNOS DE IMAGENS
Primeiro caderno
Igreja de St. Mary, Chipping Norton: foto gentilmente cedida por Nicholas Kettlewell.
Clinton Edward Dawkins (1880), Clinton George Evelyn Dawkins (1902), Clinton John
Dawkins (1934), Arthur Francis “Bill” Dawkins (1935/6): fotos gentilmente cedidas pelo
Balliol College, Oxford.
Segundo caderno
Rabo-de-andorinha imperial (Papilio ophidicephalus): © Ingo Arendt/Minden
Pictures/Corbis.
Terceiro caderno
Salão da Oundle School, Northamptonshire: © Graham Oliver/ Alamy; Ioan Thomas, 1968:
arquivo da Oundle School.
Niko Tinbergen pintando ovos de galinha para parecerem ovos de gaivota, aprox. 1964:
Time & Life Pictures/Getty Images; Mike Cullen, 1979: arquivo da Monash University, foto
de Hervé Alleaume; a caçada ao puma de Surrey: foto gentilmente cedida por Virginia
Hopkinson; manifestantes do Parque do Povo e a Guarda Nacional, Berkeley, 19 de maio de
1969: © Bettmann/Corbis; de barco em Oxford: foto gentilmente cedida por Lary Shaffer;
Peter Medawar no University College, 26 de novembro de 1960: Getty Images.
RD e Ted Burk, novembro de 1976: Time & Life Pictures/Getty Images; Danny Lehrman e
Niko Tinbergen: foto gentilmente cedida pelo professor Colin Beer; Niko Tinbergen
filmando: gentilmente cedida por Lary Shaffer.
William D. Hamilton e Robert Trivers, Harvard, 1978: foto gentilmente cedida por Sarah B.
Hrdy; Michael Rodgers: foto gentilmente cedida por Nigel Parry; RD e George C. Williams:
foto de Rae Silver gentilmente cedida por John Brockman; John Maynard Smith: Corbin
O’Grady Studio/ Science Photo Library; O gene egoísta: agradecimento a Keith Cullen.
RICHARD DAWKINS nasceu em Nairóbi, em 1941, e cresceu na
Inglaterra, ganhando fama com sua icônica obra O gene egoísta,
de 1976. É autor também dos best-sellers A escalada do monte
Improvável, Desvendando o arco-íris, O relojoeiro cego, Deus,
um delírio, A grande história da evolução, O maior espetáculo
da Terra e A magia da realidade, e da coleção de ensaios O
capelão do Diabo, publicados no Brasil pela Companhia das
Letras, além de outros títulos.
Copyright © 2013 by Richard Dawkins Ltd.
Todos os direitos reservados.
As passagens de Henrique IV (p. 125) e A tempestade (p. 182), de William Shakespeare, foram
extraídas respectivamente dos volumes Dramas históricos: Teatro completo e Comédias:
Teatro completo, ambos traduzidos por Carlos Alberto Nunes e publicados pela Agir em
2008.
Título original
An Appetite for Wonder: The Making of a Scientist — A Memoir
Capa
Claudia Espínola de Carvalho
Foto de capa
The LIFE Images Collection/ Getty Images
Preparação
Percival de Carvalho
Revisão
Thaís Totino Richter
Carmen T. S. Costa
ISBN 978-85-438-0340-1