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Copyright © 2000 Maria Carlola Rosa

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Revisão
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Projeto de capa e montagem
Antonio Kehl

Editoração e filmes
Global Tec Produções GráfIcas

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (etP)


(Cãmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rosa. Maria Carlota


Introdução à morfologia I Maria Carlota Rosa. -
São Paulo: Contexto, 2000.

Bibliografia.
ISBN 85-7244 - 145·X

1. Gramática comparada e geral - Morfologia


2. Português - Morfologia I. Título.

00-2295 CDD-415
índices para catálogo sistemático:
I. Morfologia: LingUística 415

Proibida a reprodução lotai ou parcial.


Os infratores serão proces.sados na fonna da lei.

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EDITORA CONTEXTO (Editora Pinsky LIda.).
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05083-1 10 - São Paulo - SP
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www.editoracontexto.com.br
Sumário

Lista de abreviaturas,ll
I. Teoria para quê?, 13
1. De que lingüística estamos falando?, 15
1.1. Introdução, 15
1.2. Um enfoque fonnalista, 16
1.3. Que entendemos por linguagem e por língua?, 18
1.3.1. O estágio inicial da aquisição: a GU, 19
1.3.2. O estágio estável da aquisição: o conhecimento lingüístico, 22
IA. E o conhecimento do vocabulário?, 23
1.5. E a tarefa do lingüísta na perspectiva gerativa?, 24
2. Como interpretar linguagem e língua?, 27
2.1. Introdução, 27
2.2. Linguagem e língua nos estudos tradicionais:
a palavra como centro da gramática, 27
°
2.3. Linguagem e língua no estruturalismo: império do morfema, 37
Súmula,39

II. O retorno da palavra, 41


3. A conceituação clássica do morfema, 43
3.1. Introdução, 43
3.2. Três modelos de análise lingüística, 44
°
3.2.1. A palavra no centro da análise: modelo Palavra e Paradigma, 44
3.2.2. O mofema no centro da análise:
o modelo Item e Arranjo, 47
3.3.3. Uma tradição do Oriente: Item e Processo, 48
3.3. A definição clássica de morfema, 49
3.3.1. Os tipos de morfemas, 51
3.3.1.1. Morfema aditivo, 51
3.3.1.2. Morfema reduplicativo, 53
3.3.1.3. Morfema alternativo, 55
3.3.1.4. Morfema zero, 56
3.3.1.5. Morfema subtrativo, 57
3.3.2. O morfema é uma classe de morfes, 58
3.3.3. A alomorfia, 59
3.304. A morfotática, 61
7.3.2. Quanto à possibilidade de gerar vocabulário:
classes abertas e classes fechadas, 103
3.4. A morfofonêmica, 62
3.5. Alguns problemas para a análise morfêmica, 63 7.4. As classes abertas, 103
3.5.1. Os fonestemas ou elementos fonestéticos ou simbolismo fonético, 64 7.4.1. O nome (N), 103
3.5.2. Os morfes supérfluos, 64 7.4.2. O verbo (v), 104
3.5.3. O morfe vazio, 65 7.4.3. O adjetivo (A), 105
3.5.4. O morfe cumulativo, 65 7.4.4. O advérbio (ADv), 106
7.4.5. As categorias lexicais de Chomsky (1981): N, V, A, 107
4. Preparando o retomo da palavra, 67 7.5. As classes fechadas, 108
4.1. Introdução, 67 7.5.1. As proformas, 109
4.2. O morfema na derivação, 67 7.5.2. Os elementos qu-, llO
4.3. A flexão: o abandono do morfema, 69 7.5.3. Os clíticos, llO
4.3.1. Um-para-um versus um-para-muitos, muitos-para-um, 70 7.5.4. Os marcadores, III
4.3.2. Morfemas versus formativos, expoentes, 71 7.5.5. Os determinantes, 111
4.4. Morfologia baseada em morfemas e morfologia baseada em palavras, 71 7.5.6. Os classificadores, 112
7.5.7. Os auxiliares, 112
5. Quantas palavras temos num enunciado?, 73 7.5.8. Cópulas e predicadores, 112
7.5.9. As conjunções, 113
5.1. Introdução, 73 7.5.10. Completizadores, relativizadores, adverbializadores, 113
5.2. A delimitação da palavra, 74 7.5.11. Preposições e posposições, 113
5.2.1 A palavra gráfica, 74 7.5.12. Os ideofones, ll3
5.2.2. A palavra fonológica, 77 7.5.13. As interjeições, 114
5.2.3. A palavra como unidade sintática mínima, 80
5.2.4. A palavra enquanto unidade da morfologia, 82 8. Categorias e flexão, 115
5.2.4.1. A forma de palavra, 83
5.2.4.2. O lexema, 83 8.1. Introdução, ll5
5.2.4.3. A palavra morfossintática, 83 8.2. A combinação de elementos semânticos, ll7
8.3. Categorias e propriedades, 119
Súmula,84 8.4. As categorias morfossintáticas, 120
8.4.1. Propriedades inerentes, 120
8.4.2. Propriedades de concordância, 121
8.4.3. Propriedades configuracionais ou relacionais, 122
8.4.4. Propriedades de constituinte, 123
III. Revisitando as partes do discurso, 85
8.5. Que vamos caracterizar como flexional?, 124
8.5.1. A questão do Gênero do nome em português, 125
6. A formação de vocabulário: o lexema, 87 8.5.2. E a vogal temática? (Ou: Afinal, o que é uma vogal temática?), 128
6.1. Introdução, 87 8.6. Exemplos de categorias morfossintáticas, 130
6.2. O léxico, 87
6.2. Produtividade, 89 Súmula, 132
7. Classes de palavras, tipos de significado e questões relacionadas, 91
7.1. Introdução, 91 Exercícios, 133
7.2. O número de partes do discurso, 94
~eferências bibliográficas, 149
7.3. A classificação em partes do discurso, 99
7.3.1. Quanto ao tipo de significado: Indice de assuntos, 155
significado lexical e significado gramatical, 100 Agradecimentos, 157
Lista de abreviaturas

I Primeira pessoa N Nome


2 Segunda pessoa NEG Negação
3 Terceira pessoa NOM Nominativo
4 Quarta pessoa NT Neutro
A Adjetivo NUM Número
ADV Advérbio O Objeto
AG Agente P Preposição
AT Ativo PAC Paciente
AUX Auxiliar PART Particípio
BEN Benefactivo PAS Passado
CI Constituinte imediato
PERF Perfeito
CL Classe
PESS Pessoa
CLASS Classificador
PL Plural
DAT Dativo
DEF Definido
PP Palavra e Paradigma
PRES Presente
DES Desiderativo
PRO Pronome
ERG Ergativo
EXCL Exclusivo S Sujeito
FEM Feminino SA Sintagma adjetival
FUT Futuro SADV Sintagma adverbial
GEN Genitivo SD Sintagma determinante
IA Item e Arranjo SG Singular
IMPER Imperativo SN Sintagma nominal
INCL Inclusivo SUB Subjuntivo
IND Indicativo TRANS Transitivo
IP Item e Processo TMA Tempo - Modo - Aspecto
MASC Masculino VT Vogal temática
,.
I
TEORIA PARA QUÊ?

PAIAVRAS-CHAVES
SM.!lI.·:;::;:se+ . ;:;;:a,. "'14..; t4 j., .4. P +LO, A
formalismo/funcionalismo;
gramática gerativa;
linguagem e língua; gramática universal.
1
De que lingüística
estamos falando?

1.1. Introdução
Este texto trata de morfologia e procura ser uma introdução ao seu estudo. Co-
meça aqui nossa primeira questão: que vamos entender por morfologia? A pergunta
parece banal; no entanto, como no caso de muitos outros conceitos utilizados em
lingüística, a resposta não é exatamente muito simples.
A consulta ao étimo, no caso de moifologia, nos dirá que o termo provém das
formas gregas morphê, 'forma', e logos, 'estudo, tratado'. Tentar definir um fenôme-
no tomando como ponto de partida o étimo do termo que lhe dá nome é uma estratégia
explicativa de longa tradição no Ocidente nos estudos sobre diferentes áreas do co-
nhecimento. De algum modo se concebe a existência, na origem de uma palavra, de
significados ou relações que o tempo encobriu. Morfologia significa, com base nos
seus elementos de origem, o 'estudo da forma '. Mas o que tal definição nos diz acerca
de o que vem a ser morfologia? Não muito, como veremos.
Primeiramente, o termo forma pode ser tomado, num sentido amplo, como si-
nônimo de plano da expressão, em oposição a plano do conteúdo. Nesse caso, afor-
ma compreende dois níveis de realização: os sons, destituídos de significado mas que
se combinam e formam unidades com significado; e as palavras, as quais, por sua vez,
têm regras próprias de combinação para a composição de unidades maiores'. Mas a
palavra não precisa ser interpretada, necessariamente, como a unidade fundamental
para representar a correlação entre o plano da expressão e o do conteúdo. Podemos
atribuir esse papel ao moifema. Temos aqui, por conseguinte, duas unidades distintas
como possíveis centros de interesse de nossos estudos de morfologia.
A diferença no tocante à unidade em que se centra o estudo morfológico - o
moifema ou a palavra - redunda de maneiras também diferentes de focalizar a
morfologia. De modo muito geral, e correndo o risco de uma simplificação exagerada,
podemos dizer que a noção de morfema está relacionada com o estudo das técni-

I Esta é a visão apresentada, por exemplo, em Lyons (1968: 53-54).


16 Teoria para quê? De que lingülstica estamos falando? 17

cas de segmentação de palavras em suas unidades constitutivas mínimas, ao passo


que os estudos que privilegiam a noção de palavra preocupam-se com o "modo pelo Não se entenda gerativa como sinônimo de 'que gera', ou seja, como um mo-
qual a estrutura das palavras reflete suas relações com outras palavras em construções delo da produção Iingüística do falante. Uma gramática é gerativa se analisa de
modo explícito uma determinada língua, i.e., se não deixa para a inteligência do
maiores, como a sentença, e com o vocabulário total da língua" (Anderson, 1992: 7; leitor parte do que deveria explicar. Uma gramática gerativa não se propõe a ser
1988: 146). uma descrição de dados de uma determinada língua, mas uma "teoria que se volta
Um segundo problema com relação à definição tomada do étimo, e mesmo com para a forma e o significado das expressões nessa língua" (Chomsky, 1986: 3).
relação a definições que possamos extrair de dicionários, é serem elas vagas. Ao defi- Um modo de alcançar a clareza é por meio do emprego da formalização: con-
nirmos morfologia como o ramo da gramática que estuda a estrutura das palavras, segue-se precisão para as afirmações acerca do que constitui a faculdade da lin-
guagem. A formalização não pode, porém, ser entendida como "um exercício técni-
por exemplo, não fazemos referência ao tipo de interesse que temos nos dados,
co desprovido de finalidade", mas como um meio de "trazer à luz erros ou lacunas
tampouco ao tipo de dados que nos interessam. Morfologia é um termo que não tem a e pressupostos ocultos", e de "conduzir a novos insights teóricos e sugerir novos
mesma realidade de uma pedra ou de uma árvore: pressupõe determinado modo de se problemas empíricos para a investigação" (Chomsky, 1981: 336)3.
conceber o que sejam linguagem e língua, e somente como parte desse quadro mais
amplo - isto é, de uma teoria - é que podemos compreender que tipo de estudo está
sendo levado em conta. Até mesmo se precisamos de ter na gramática algo que cha- Ao classificar o enfoque adotado como formalista, estamos dizendo que nos
memos morfologia. É este o ponto que queremos ilustrar nesta primeira unidade ao restringimos à parte do conhecimento lingüístico a que chamamos competência gra-
apresentarmos um pequeno histórico dos estudos lingüísticos no Ocidente: queremos matical, que é apenas um dos módulos do conhecimento lingüístico, aquele que lida
expor a perspectiva aqui adotada ao mesmo tempo em que a confrontamos com aque- com as estruturas gramaticais que podem existir numa língua. Estamos dizendo tam-
las em estudos levados a cabo em outras épocas. Para que se tenha idéia de como bém que estão fora do âmbito deste trabalho aspectos relevantes para a pesquisa sobre
interesses de pesquisa distintos podem colocar seu foco de atenção em pontos de o funcionamento de uma língua, como, por exemplo, o conhecimento que os mem-
investigação diferentes, apresentamos, primeiramente, os pressupostos gerais em que bros de uma comunidade têm das regras que tomam o uso lingüístico adequado às
nos baseamos, passando, no capítulo 2, a uma visão também geral de propostas vigen- diferentes situações sociais. Tampouco veremos o fenômeno lingüístico como uma
tes no passado. simbiose de aspectos gramaticais, pragmáticos, discursivos e semânticos. Numa pro-
posta funcionalista são os aspectos comunicativos e sociais que recebem a ênfase da
análise.
No âmbito de uma perspectiva formalista na atualidade, as questões de interes-
1.2. Um enfoque formalista se dizem respeito à interação entre a morfologia e o restante da gramática e também
A perspectiva aqui adotada é a da gramática gerativa. Conhecida inicialmente entre ela e o léxico, como exemplificado em seguida em (1.1):
como gramática gerativo-transformacional, desenvolveu-se a partir dos trabalhos do
lingüista norte-americano Noam Chomsky (1928-). Por conseguinte, é uma perspecti- (1.1) a. Qual a unidade básica de estudo na morfologia? O que implica perguntar:
vaformalista e não funcionalista. Que vem a ser isto? b. Que tipo de estrutura as palavras têm?
O formalismo é um modo de focalizar a descrição gramatical cuja ênfase recai c. Como essa estrutura está relacionada à gramática e ao léxico?
naforma ou estrutura gramatical- não nas funções dessas formas. Formalismo, mui- d. Como essa estrutura reflete a relação entre palavras?
tas vezes, se confunde com o uso deformalização, i.e., com o emprego de "formula-
ções totalmente explícitas que captem a intuição acerca da estrutura lingüística em
termos que requeiram tão pouco quanto possível [...] a contribuição [...] de um leitor Parte dessas questões nem sequer foi levantada por estudiosos de algumas épo-
compreensivo" (Anderson, 1996: 1). Segundo Chomsky (c.p.), "há quem considere a cas, ao passo que outras tiveram respostas bem diferentes, como veremos adiante.
formalização importante", mas, afirma, não é o caso dele2 •
J Asserção semelhante em loos (1950:349): " ...within our field we must adopt a technique of precise
tr~atment, which is by definition a mathematics. We must make our 'linguistics' a kind of mathematics.
2 Chomsky (1999, c. p.): "There are people who think that formalization is important; I don't, for reasons wlthm which inconsistency is by definition impossible." [...em nosso campo devemos adotar uma técni-
I've explained. We ali think that clarity is important." [Há quem pense que a formalização é importante; ca de tratamento preciso, que é, por definição, uma matemática. Devemos fazer de nossa 'lingüística'
eu não, por razões que já expliquei. Todos pensamos que a clareza é importante.] uma espécie de matemática, na qual a inconsistência seja, por definição, impossível.]
18 Teoria para quêi De que lingüfstica estamos falandoi 19
~:
i

1.3. Que entendemos por linguagem e por língua? 1.3.1. O estágio inicial da aquisição: a GU
A hipótese acerca da faculdade da linguagem no seu estágio inicial, isto é,
Mesmo restringindo o enfoque a uma visão formalista, ainda assim veremos que
a representação do conhecimento que o indivíduo tem ao nascer, antes de qUlÜ-
os termos linguagem e língua, que nomeiam os objetos por excelência do estudo
quer experiência lingüística, é referida na teoria gerativa como gramática uni·
lingüístico, não foram sempre compreendidos do mesmo modo. Por esse motivo cha-
versai (abreviadamente, GUr, A nomenclatura evoca estudos sobre a linguagem
mamos a atenção para o fato de que, cada vez que empregamos aqui o termo lingua-
anteriores ao século XIX. Não nos deixemos enganar, porém, pela nomenclatura.
gem (salvo indicação em contrário) ou faculdade da linguagem, temos em mente um
Pode ser a mesma, mas tem significados bem distintos de época para época.
dos sistemas complexos que interagem com outros sistemas de conhecimento na men-
te/cérebro de um indivíduo, ativado logo após o nascimento e que lhe permite vir a
adquirir a língua ou as línguas faladas no ambiente ao seu redor.
Q)
'. . A questão da universalidade da linguagem surgiu na Idade Média, do confron-
A faculdade da linguagem, comum à espécie humana, permite a aquisição da to do latim com os vernáculos de um Império Romano que se desmantelava. Para
a Antigüidade Clássica, que classificou como bárbaras quaisquer línguas que não
língua materna, que se processa por fases, indiferentemente ao meio cultural e até o latim ou o grego, foi esta uma questão desconhecida. A hipótese da universalidade
mesmo a fortes restrições biológicas4 • Assim, para todos os bebês, o balbuci05 prece- alcançaria o século XVIII, e voltaria a ser retomada na atualidade, embora em bases
de a fala holofrástica6; esta, ,a fase de frases de duas palavras; em seguida, surgem diferentes. Santo Agostinho (354-430 d.C.), por exemplo, propunha haver uma
frases de qualquer tamanho. E este quadro que constitui uma das evidências a favor de linguagem do conhecimento, "que não era nem grego nem latim, nem uma língua
se considerar a existência de uma predisposição genética no que toca ao campo da natural nem nacional, mas universal para todas as línguas e para todo o conheci-
mento" (Apud Trentman, 1976: 285). Essa linguagem do conhecimento diferia,
linguagem, o que significa dizer: (a) que todos os seres humanos nascem com a facul- assim, das línguas humanas particulares, que necessitam de algum tipo de ex-
dade da linguagem, própria da espécie e apenas dela; e (b) que todas as línguas têm, pressão física, seja som, seja letra.
por conseguinte, de partir de um mesmo estágio inicial, isto é, de uma estrutura pré- O contato com as línguas do Novo Mundo, conseqüência dos Descobrimen-
programada que limita as línguas possíveis. A língua que o indivíduo vem a desenvol- tos, intensificaria a especulação acerca de o quanto as línguas podiam ser seme-
ver depende da experiência lingüística a que for exposto: falará português, por exem- lhantes, e os ensinamentos bíblicos levariam a crer ter havido "hüa sô lingua quan-
do a razão era mais unida", como afirmaria a versão portuguesa da Janua
plo, caso cresça numa comunidade onde se fale português. .
Linguarum B (Reboredo, 1619: b4 V). A hipótese de uma gramática universal, evi-
E se não houver gente falando à volta dessa criança, como nas histórias de Rômulo dente no título, está também, por exemplo, neste trecho (Reboredo, 1619 : c2'): "O
e Remo, criados por uma loba, ou de Mogli, ou mesmo de Tarzã, crescido entre maca- Mestre, que quiser meter em outras linguas o Discipulo [00']' como na Italiana, Fran-
cos? Bom, não haverá experiência lingüística; logo não haverá como desenvolver cesa, Grega, Hebrea &c. Ensine nella a declinar, & cãjugar, ajuntãdo as
uma língua (não obstante todos esses personagens serem muito fluentes no cinema). irrigularidades a hüa partes [00'] em lugar dos exemplos Latinos [oo.] meta, como fica
ditto, os da Iingua que quer ensinar".
Nesse mundo impregnado de religiosidade, a linguagem é um dom divino,
distribuído a todos os homens. Mas a perspectiva dos estudos Iingüísticos de en-
Q) As tentativas de ensinar uma língua a indivíduos que cresceram afastados do tão tem ainda uma característica fortemente prescritiva, captada nesta frase de
contato com seres humanos e encontrados já na adolescência não parecem ter Carlos Magno (742-814): "aqueles a que apetece agradar a Deus devem também
obtido, em geral, grande êxito. (Para uma rápida consulta, v. Crystal, 1987: 289.) agradá-lo não negligenciando o falar correto" (Apud Amsler, 1989: 175-6)9. É a
gramática o instrumento que ensina ao público comum o falar corret0 1D.

7 Comumente se chama GU aos próprios procedimentos mentais (Chomsky, 1988: 61; Uriagereka, 1998:
36). Gramática significa, nesse contexto, uma teoria sobre um determinado estágio.
8 A Janua Linguarum (lat. 'porta das línguas') foi um método de ensino de línguas estrangeiras primei-
ramente voltado para o latim, mas que, posteriormente, foi aplicado ao ensino de diversos vernáculos
(vide Rosa, 1994a).
4 Como no caso das crianças com algum tipo de deficiência auditiva ou visual, por exemplo. 9 Amsler tem por fonte Luitpold Wallach: ..... ut, qui Deo placere appetunt recte vivendo, ei etiarn placere

, Fase lingüística na vida do bebê em que surge a vocalização e que antecede aparecimento das primeiras pala- non neglegant recte loquendo."
vras. Crianças com deficiências auditivas "emudecem" por volta do final dessa fase (Eulália Fernandes, c. p.). 10 "Grammatica est ars docens comune vulgagium quod consistit in tribus que faciunt hominem

6 Fase da aquisição em que os enunciados da criança compõem-se de uma única palavra, equivalente grammaticum" (Rombo, 1497. foI. aaij.) Também em Pastrana (1497: [foI. cviij ']): "Grammatica quod
funcional de uma frase completa. est? Ars docens congrue loqui: recte scribere: debite partes pronunciare".
20 Teoria para quê? De que IingOlstica estamos falando? 21

A GU, na versão gerativa, é uma hipótese para explicar o conhecimento lingüístico Tal concepção de linguagem coincide apenas em parte com aquela que podemos
que assenta na proposta de existência de uma base genética para a faculdade da lin- encontrar em textos mais antigos de Iingüística. Como tenno técnico da Iingüística, o
guagem. A base genética está representada nos princípios obrigatórios para todas as tenno linguagem esteve sempre restrito apenas à faculdade humana. No entanto, lin-
línguas e nos princípios abertos (ou parâmetros), que a eles se somam. O contato güistas estruturalistas, como o brasileiro 1. Mattoso Camara Jr. (1904-1970), embora
com os dados encontrados no ambiente desencadeia na mentelcérebro da criança um definissem a lingüística como a ciência da linguagem (Camara Jr. 1973: 15), não se
processo que redundará numa gramática particular, ao serem estabelecidos os valores interessaram propriamente pela linguagem, mas pelas línguas, uma vez que estas con-
para cada parâmetro. Os parâmetros representam o mecanismo que leva à seleção da cretizavam os diferentes sistemas de comunicação humana. Camara Jr. (1973: 24)
gramática da língua materna, dentre muitas gramáticas possíveis com base nu~a fa- afinnava, por isso, que à lingüística
culdade universal que todo o indivíduo teria ao nascer. Em outras palavras: a cnança Nem lhe interessa, a rigor, a linguagem em si mesma, considerada como uma faculdade abs-
adquire, melhor dizendo, desenvolve uma língua como o resultado de um severo pro- trata do homem. O seu objeto [... 1é o estudo dos sistemas de linguagem, ou línguas, as quais
cesso de restrições das muitas possibilidades que lhe estariam disponíveis ao nascer. podemos assim defInir: "conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, a
Vamos a um exemplo. fim de permitir o exercício da linguagem por parte do indivíduo" (Saussure, 1922: 25).
Um princípio postulado para a GU é o de que todas as construções tenham um A linguagem era então considerada uma "aplicação secundária, e fisiologica-
núcleo. O núcleo é o elemento obrigatório de uma construção: num sintagma nomi- mente falando, excrescente" de órgãos do corpo humano, semelhante ao uso de dedos
nal, o núcleo é um nome; num sintagma verbal, o verbo; num sintagma preposicional, para tocar piano ou dos joelhos para "o gesto simbólico de genuflexão" (Camara Jr.,
a preposição. Uma criança nascida no Brasil, numa comunidade em que se fale portu- 1973: 19).
guês, vai adquirir a ordem linear do português, que é a ordem núcleo + complemento. Procurar no cérebro humano alguma área relacionada à linguagem seria um con-
Seria diferente se a língua a que essa mesma criança estivesse exposta fosse outra, por tra-senso, como Bloornfield (1933: 36-37) assinalara:
exemplo, o mundurucu, língua tupi do Alto Tapajós (PA) e de alguns de seus afluen-
O erro da busca de correlações entre partes do sistema nervoso defInidas anatomicamente e
tes. Observe (1.2) a seguir (exemplo em Crofts, 1973: 48)11:
atividades defInidas socialmente aparece de modo claro quando vemos alguns fisiologistas
3. 3 3 procurando um "centro da palavra visual", que controle a leitura e a escrita: seria então o
(1.2) a3ya2cat2 py3bit2 o1 JO wy 3dPbim2
caso de procurar, igualmente, o centro cerebral específIco da telegrafia, da direção de auto-
mulher comida ela-a-Iavou água-com móveis, ou que outro exercício de uma invenção moderna.
'A mulher lavou a comida com água'
A afinnação de Bloornfield soa distante das preocupações atuais. Não só a lingua-
Em (1.2), o objeto precede o verbo que complementa e, no sintagma 'água- gem interessa à Iingüística, como é ela que define os limites da variação entre as línguas.
com', em lugar de preposição, aparece uma posposição. Nenhuma criança aprende
que, na sua língua, o núcleo antecede o complemento ou vem depois dele. Não há mãe
A Iingüística estrutural partiu da hipótese de que "as línguas podem diferir entre
(mesmo que ela seja lingüista) ou professor que a instrua a esse respeito.
si sem limites e de modos imprevisíveis" (Joos, 1957: 96), uma vez que aprender
O enfoque gerativista assume que uma língua não é aprendida. A linguagem não uma língua era formar hábitos por meio de mecanismos de imitação. O interesse e
se constitui num hábito que alguém ou a sociedade ensina a um ser que não possui a relevância em se pesquisar uma gramática universal inexistem nesse período.
qualquer habilidade especial para isso e que aprende uma língua por um misterioso Como afirmaria Bloomfield (1933: 20), as únicas "generalizações úteis acerca das
mecanismo de imitação. Ao contrário: o organismo humano já nasce preparado para, línguas são as generalizações indutivas. Traços que pensamos que deveriam ser
a partir da exposição a uma língua, selecionar as características nela presentes, e daí universais" - e Bloomfield dá como exemplo a distinção entre o nome e o verbo -
"podem estar ausentes na primeira língua que se vier a estudar". No entanto deve
desenvolver a língua. Por essa razão, qualquer criança domina sua língua nativa tão haver uma explicação de por que alguns traços são comuns a muitas línguas, mas
rapidamente - mesmo aquela que, portadora de deficiências mentais, nunca alcançará isto, segundo Bloomfield (id et ibid), seria uma pesquisa para uma época futura:
grandes progressos escolares. Essa visão tem levado a compreender as línguas natu- "quando tivermos dados adequados sobre muitas línguas, teremos de retornar ao
rais como epifenômenos, isto é, como "o resultado acidental da interação de vários problema da gramática geral e explicar essas semelhanças e divergências, mas
esse estudo, quando for feito, não será especulativo, mas indutivo".
princípios independentes" (Trask, 1993: 91).

II Os números sobrescritos indicam tons.


22 Teoria para quM De que lingürstica estamos falando? 23

1.3.2. O estágio estável


da aquisição: o conhecimento lingüístico existia na medida em que havia massa falante. A Ifngua-I refere-se a um "fenômeno
individual, um sistema representado na mente/cérebro de um individuo particular'
(Chomsky, 1988: 36).
Um indivíduo que sabe sua língua é aquele que alcançou o estágio (relativamente) Há ainda pelo menos um outro sentido, em que língua é um conceito pré-teórico.
estável da faculdade da linguagem. Esse estágio estável é também chamado conheci· Podemos perguntar se o chinês é uma língua (ou cinco, ou mais...), ou se o catalão
mento lingüístico. Ao se focalizar uma língua como conhecimento lingüístico, passa-se e o português são a mesma língua. Essa última questão dificilmente seria fonnulada,
também a concebê-la como um fenômeno individual e não social. A competência grama- em virtude de conceitos como pátria, nação, país. Em última análise, estarlamos
tical, ou conhecimento da gramática, ou sistema computacional, ou língua-! é exclusiva- compreendendo que "uma língua é aquilo que tem exército e marinha" (Chomsky,
1977: 175; 1988: 15, em que atribui a frase a Max Weinreich)'2.
mente humano. É ele que permite ao indivíduo criar e compreender um número infinito
de frases de sua língua. Um enfoque formalista restringe-se a esse aspecto.
Saber uma língua é, porém, mais do que ter o conhecimento (internalizado ou
não consciente) de processos gramaticais. Daí a teoria gerativa reconhecer a existên- 1.4. E O conhecimento do vocabulário?
cia de dois outros subcomponentes ou módulos: a competência pragmática e o siste-
ma conceptual. Vamos a um exemplo bem simples: tratar o presidente da República Falamos até aqui em GU, em conhecimento lingüístico, competência ou sistema
por você ou pelo prenome numa cerimônia não qualifica um erro no que respeita à computacional. Todos esses conceitos fazem referência à gramática, isto é, ao modo
formação das frases em português. Mas, como falantes, temos consciência de que como os elementos lingüísticos se organizam para formar uma construção. Mas não
esse uso é inapropriado para a situação. Sabemos que há coisas que podemos dizer, dissemos nada sobre esses elementos.
outras que devemos calar. Um exemplo extremo: Becker (1995: 292-293) relata uma De um lado não esperamos que haja algo de inerente à seqüência fônica queijo,
desajeitada entrevista a um jovem dançarino javanês feita por umjornal nova-iorquino. por exemplo, que a faça dizer respeito a um alimento feito à base de leite. Até porque
Diante da pergunta sobre se faria da dança seu futuro, o jovem permaneceu calado, e a relação entre esse significado e essa seqüência sonora existe só para o português.
o tradutor teve de intervir para dizer que não se faz uma pergunta como essa a um Como dizia Saussure, a relação entre significante e significado é arbitrária.
indonésio. A pergunta não era apenas grosseira: colocava o rapaz na posição de ter de Se deixarmos de lado essa relação específica, veremos que é preciso considerar
falar como somente um deus falaria. A competência pragmática é a parte do conhe- a existência de princípios também no campo das palavras de uma língua - isto é, de
cimento lingüístico que focaliza a língua efetivamente posta em uso. sua morfologia. Somente desse modo se consegue explicar como as crianças domi-
Por fim, o sistema conceptual, não exclusivamente humano, permite-nos "per- nam uma enorme massa de palavras de sua língua materna tão rapidamente também.
ceber, categorizar, simbolizar, talvez mesmo raciocinar de modo elementar" (Chomsky, Afinal, uma criança aprende cerca de dez novas palavras ao dia a partir da idade de
apud Botha, 1989: 76). Talvez o sistema conceptual "não deva ser considerado [...] dois anos. Por volta de seis anos já domina cerca de 14 mil palavras. Com o início da
parte da faculdade lingüística, e sim de alguma outra faculdade, responsável pela vida escolar, seu vocabulário incorporará em média três mil palavras ao ano até os 17
'compreensão de senso comum' do mundo em que vivemos" (Chomsky, 1980: 49). anos (Clark, 1993: 13).
Voltemos ao exemplo do queijo, para darmos uma pálida idéia da complexidade
Que se entende por língua então? em que consiste vir a dominar o vocabulário de uma língua Uma criança tem de
O tenno língua tem diversas acepções nos textos de IIngüística. Uma delas é depreender, inicialmente, uma seqüência sonora em meio a vários sons, e qual deva ser
"uma colação de dados", sejam palavras ou sentenças bem-fonnadas. Nesse senti- seu significado. É preciso ainda vir a compreender os tipos de relações entre queijo e
do, uma Ungua é um constructo que é "compreendido independentemente das pro- queijos, ou entre queijo, queijeira, queijeiro, requeijão, queijadinha, ou entre queijo e
priedades da mente/cérebro" (Chomsky, 1988: 20). Uma língua é um conjunto de
outras palavras que venham a ser formadas. Tem de perceber que formas como queijo-
estruturas compartilhadas por um grupo. Quando usado nessa acepção, o termo
língua tem sido especificado como Iíngua-E(xterna). do-reino ou queijo-de-minas apresentam um tipo de coesão muito mais forte do que
Numa outra acepção, língua é o resultado da interação de dois componentes: o aquela entre um nome e um locativo (bem diferente de algo como queijo da Colônia ou
estágio inicial, comum à espécie, e aquilo que vai sendo "aprendido" com o ambiente queijo do Paraná). Tem de perceber que essa palavra pode ser sujeito ou objeto de um
Iingürstico. É a Iíngua-I(nternallzada), ou competência gramatical, ou sistema verbo, e como nome, tem de atribuir-lhe gênero; tem de perceber incompatibilidades
computacional. Para os gerativistas, o programa de pesquisa a ser desenvolvido
centra sua atenção na Ilngua-1. Il Ellen Prince (LinguistList 8.340, de 9/311997) localizou a citação original: M. Weinreich, 1945. Der
Observe que a língua-I não equivale à langue saussureana: esta era coletiva, yivo un di problemen filn undzer tsayt: "a shprakh iz a diyalekt mit ao anney un a flot".
24 Teoria para quAi De que Iingüfstica estamos falandoi 25

semânticas (por exemplo *0 queijo alegre escreveu uma carta). À medida em que for . Isto significa que cada teoria "delimita urna certa 'região' da realidade corno seu
ampliando seu vocabulário, a criança terá de perceber que queijo e laticínio são relacio- obJ~:o de estudos" (Dascal & Borges Neto, 1991: 18). Aquilo que vimos até aqui foi a
nadas, mas que o significado desta é mais abrangente que o daquela. regIao que a ?ramática gerativa privilegia, e corno ela é construída a partir dos interes-
Uma parte do conhecimento que temos acerca das palavras de nossa língua está ses de pesqUIsadores. "Um erro comum" - e citamos mais uma vez Dascal & Borges
representado sob o rótulo morfologia: é o que pode ser captado como generalizações N~to (1991.: 19) ~ "é supor que as divisões da ciência correspondem a divisões natu-
acerca da estrutura das palavras. O que é imprevisível será tratado sob o rótulo léxico. raIS da realIdade. [...] O loteamento do observacional é resultado de um trabalho hu-
mano sobre a realidade e, em conseqüência, já é um primeiro momento de teorização".

1.5. E a tarefa do lingüista na perspectiva gerativa?


No quadro aqui esboçado, a discussão acerca dos objetivos da pesquisa no cam-
po da lingüística pode ser assim resumida. O lingüista visa alcançar com seu trabalho
duas diferentes metas. Obviamente não é necessário dizer que qualquer uma delas
pressupõe que seus dados devam ser confiáveis: que não tenha ouvido um som por
outro, que não tenha entendido erroneamente o significado dos enunciados que cole-
tou, que não tenha omitido informações...
Urna das metas do lingüista diz respeito à elaboração de urna gramática da lín-
gua que está pesquisando. Nada deve ficar por conta da imaginação do leitor. Por
exemplo: o artigo vem antes ou depois do nome? As gramáticas do português em que
estudamos no colégio, por exemplo, não nos dão essa informação: pressupõem que os
falantes de português sabem isso. De uma gramática totalmente explícita de uma lín-
gua se diz que alcançou a adequação descritiva.
Para explicar o porquê de a gramática daquela língua se apresentar de talou qual
modo, o lingüista deve esclarecer de que maneira ela concretiza possibilidades previs-
tas pela OU, de que modo os princípios da OU interagem com os dados, fixando
determinados valores para parâmetros que, inicialmente, estariam em aberto para a
criança. Se todos os seres humanos têm cérebros relativamente semelhantes e se todos
podem ter corno língua materna, em princípio, qualquer das línguas humanas, deve
haver algo de comum a todas as línguas, apesar das diferenças óbvias entre elas. Ao
conseguir fazer tal relação diz-se de seu trabalho que alcançou a adequação explicativa.
Essa é a razão de se afirmar que o objetivo da gramática gerativa é o de construir urna
teoria sobre a faculdade da linguagem e não "apenas" descrever as línguas do mundo.
Se fizermos, no entanto, um passeio pela história dos estudos lingüísticos, vere-
mos que o interesse dos estudiosos e a concepção que têm de seu campo de estudo
podem ser bem diferentes de tudo isto. É estranho? Não, não é.

o mundo das aparências (o mundo das coisas tal como se apresentam) é um mundo de
diversidade: pouco ou nada há de comum na multiplicidade das coisas individuais, que
parecem diferir radicalmente umas das outras. As ciências, assim como outras espécies de
saber, fazem reduções parciais da diversidade, isto é, recortam () campo da diversidade
observacional de maneiras que lhes parecem apropriadas para o tipo de entidades e de expli-
cações que lhes são preferenciais (Dascal & Borges Neto, 1991: 17 - ênfase no original).
2
Como interpretar
linguagem e língua?

2.1. Introdução
Como se pode inferir dos comentários de Dascal & Borges Neto citados no final
do capítulo anterior, há várias respostas à pergunta que serve de título a este capítulo.
Em textos gramaticais antigos, por exemplo, o termo linguagem aparece empregado
no sentido de 'língua não apropriada para a escrita',ou 'vernáculo'. Por vezes parece
significar 'variedade lingüística sem prestígio'. Ademais, no período estruturalista
linguagem não é um termo que receba muita atenção, como vimos anteriomente.
Nas seções que se seguem vamos focalizar os diferentes contextos teóricos em
que esses termos foram empregados a partir do século xv. Selecionamos começar
desse período porque nele têm início estudos de fôlego sobre línguas vernáculas que
viriam a colocar em cheque os modelos descritivos do latim e do grego.

2.2. Linguagem e língua nos estudos


tradicionais: a palavra como centro da gramática
Tomemos para ilustração do significado do termo gramática a definição do por-
tuguês Pedro Rombo (séc. XV-XVI), um dos muitos comentaristas da famosa gramática
latina do espanhol Juan de Pastrana (séc. xv) conhecida pelos curiosos títulos de Baculo
cecorum (lat. 'bengala de cegos'), ou ainda de Thesaurus Pauperum (lat. 'tesouro dos
pobres') ou de Speculum Puerorum (lat. 'espelho dos meninos'). Embora o estudo da
palavra seja aí central, evidentemente não encontramos nela o termo morfologia - que
é uma criação do século XIX.
28 Teoria para quê? Como interpretar linguagem e lingua 29

A primeira [parte da gramática] é o conhecimento dos vocábulos. Onde cada vocábulo ou é


A última parte da gramática, segundo Rombo, trata da sintaxe4 , a parte "que
um nome, ou é um verbo, ou é um advérbio', denominando-se o vocábulo muitas vezes por
dição. A segunda é a própria declinação. E a declinação é a manutenção do início e a responde à construção", como afirmaria João de Barros (1540: 1), autor de uma das
variação da terminação. Declina-se o nome por suas declinações; o verbo, pelas conjuga- primeiras gramáticas do português 5• A construção gramatical 6, pelo menos até o sé-
ções; o advérbio não se declina. A terceira parte é a própria construção. E se faz por quatro culo XVII, é definida pelos dois aspectos que a constituem. Primeiramente pelas três
maneiras, a saber: entre o substantivo e o adjetivo, entre o relativo e o antecedente, entre o concordâncias ou conveniências, decorrentes de variações que se dão, basicamente,
suposto e o verbo e quando uma palavra exige outra depois de sP.
na forma do nome e do verbo, os "dous reis" de "todalas linguagens" (Barros, 1540: 1).
As duas primeiras partes da gramática segundo Rombo dizem respeito, portanto, Essas três variações se estabelecem: (a) ou entre o suposto (mais exatamente o nome
respectivamente: (a) ao conhecimento do vocabulário e sua classificação em partes do no caso nominativo), e o verbo, ou aposto; (b) ou entre o nome e o adjetivo; (c) ou
discurso; e (b) às categorias gramaticais que nos dão as variações possíveis para uma entre o relativo e seu antecedente. Em segundo lugar, pela regência ou regimento
palavra. Juntos, (a) e (b) constituem-se no estudo das partes do discurso (v. cap.7 e 8). ("quando uma palavra exige outra depois de si"). A sintaxe é, por conseguinte, uma
A relação entre (a) e (b) é estreita: em última análise, a classe a que pertence a palavra extensão do estudo das propriedades formais da flexão, expressas na concordância e
a inclui entre as palavras variáveis (o nome e o verbo) ou entre as invariáveis (os também na regência.
advérbios), além de indicar, no caso das primeiras, quais as marcas flexionais que se Desse estudo da palavra não emergem automaticamente noções como estrutu-
podem esperar (as declinações e as conjugações); do mesmo modo, a presença de ra ou hierarquia de constituintes7 • Nesse contexto não há lugar para sentença e
determinadas marcas indicaria a que classe se deveria atribuir a palavra. oração, unidades não da gramática, mas da retórica, referidas na parte final dos
O estudo das declinações e das conjugações se faz por meio de paradigmas, isto capítulos sobre a sintaxe (ou melhor, na sintaxe irregular ou figurada): asfiguras 8•
é, de modelos para classes morfológicas 3 • Não se estuda, na tradição herdada da Não vale aqui substituir suposto ou nominativo pela noção atual de sujeito de uma
Idade Média, a constituição interna dos vocábulos. Segundo Law (1997: 257), os oração. O nome equivale ao suposto quando suas propriedades são, em parte,
termos "radix 'raiz', praefixum 'prefixo', suffixum 'sufixo' e affixum 'afixo' aparece- marcadas também no verbo. Não é um constituinte de uma estrutura mais ampla que
ram nas gramáticas do Ocidente apenas no século XVI, após o contato com as gramá- está em questão, mas um conjunto de marcas morfológicas do nome e sua repetição
ticas medievais do hebraico, nas quais havia um vocabulário bem desenvolvido para a (a conveniência) no verbo.
análise morfológica" .
Q) É possível imaginar a força dessa tradição tão antiga ao se encontrar numa
Q) Até por volta do século IX, a constituição da palavra é focalizada em termos de gra~ática publicada no século XX, a de Eduardo Carlos Pereira, cuja última edição
sílabas e de letras. Não há unidades morfológicas envolvidas, como nos habitua- revista pelo autor data de 1918, basicamente o mesmo esquema das concordân-
mos a ver no século xx. Somente por volta do século XII os manuscritos começam a cias, além da apresentação da sintaxe irregular ou figurada.
exibir consistentemente o que se pode considerar uma análise implícita em radical-
terminação (vide Law, 1997).
Uma conseqüência um tanto inesperada aos olhos atuais resultou de se conside-
rar a sintaxe regular como o estudo da concordância e também da regência: a relutân-
, O significado do termo advérbio é mais amplo então que hoje em dia: inclui não só o que denominamos
atualmente advérbios, como hodie, unde, multum, bene, prudenter, non, mas também conjunções, como 4 Ou melhor, da sintaxe regular ou ordinata, uma vez que a sintaxe irregular ou figurada ficava para a
nec, aut, vel, et, sed (Pastrana, 1497: dij r-v). Em outros autores, podia ainda incluir as preposições. retórica (Padley, 1985).
2"Primum est cognitio vocabulorum, unde omne vocabulum aut est nomen aut verbum aut aduerbium. S A definição de sintaxe como a parte da gramática que trata da construção, entendida como o estudo das
sumendo vocabulum large per dictione. & Secundum declinatio eorum & declinatio est principij retentio três concordâncias e da regência, é duradoura. Veja-se, por exemplo, João de Barros (1540: 2); Arnauld
& finis variatio. Nomen declinatur per suas declinationes. verbum suas per coniugationes. aduerbium & Lancelot (1660: 103).
non declinatur. & Tertium constructio ipsorum Et fit quatuor modis. scilicet. inter substantiuum & 6 Ou melhor, a constructio ordinata.
adiectiuum. inter relatiuum & antecedens. inter suppositum & verbum. & quando una dictio exigit aliam
post se." (Ro)1lbo, 1497: foI. aaij) 7A não ser no sentido de que as letras formam a sílaba; as sílabas, a palavra; as palavras, a sentença ou
enunciado.
J Classe morfológica designa um agrupamento de palavras de mesma categoria gramatical, as quais
S Aqui, a ênfase recai sobre as figuras que envolvem um desvio do uso de uma palavra. As sete figuras
apresentam as mesmas marcas flexionais.
geralmente focalizadas são: metáfora, sÜlédoque, metonímia, antonol1uísia, omotopéia, catacrese emetalep.I'e.
30 Teoria para quê?
Como interpretar linguagem e Ifngua 31

cia em se considerar que as línguas vernáculas tivessem sintaxe9• Ao transpor o mode- mãe gerou, a partir de então, intensa pesquisa das mudanças na estrutura fonética, que
lo de análise baseado na palavra, empregado nas gramáticas gregas e latinas, para a levou ao que conhecemos como gramática comparada, ou filologia comparada, ou
análise quer das línguas européias, quer das línguas reveladas pelos Descobrimentos, ainda como lingüística histórica e comparada.
os gramáticos constatavam que os vernáculos não tinham casos morfológicos, ou que Nesse contexto de meados do século XIX o termo morfologia começava a ser
apresentavam menos casos que o latim, e não viam como levar a cabo o estudo da utilizado. Atribui-se sua criação ao escritor e cientista alemão Johann Wolfgang von
regência lO • Goethe (1749-1832). No século XIX fixou-se boa parte da nomenclatura sobre a estru-
São inovadoras para sua época, portanto, afirmações sobre a natureza acidental tura da palavra que nos é familiar nos estudos lingüísticos. Tal interesse era decorren-
da regência (a par com o carácter natural da concordância) e a introdução das ques- te da busca dasfarmas básicas, originárias das palavras, pertencentes ao prato-indo-
tões de ordem das palavras: "cada nação tem sua ordem" - afirmava Barros (1540: 42), europeu 13 , a partir do estabelecimento de mudanças fonéticas sistemáticas entre dife-
observação que seria ainda digna de nota cerca de um século mais tarde na gramática rentes línguas, que ficaram conhecidas como as leis fonéticas. A mais famosa delas e
de Port RoyaP': "umas [línguas] fazem o regime através de casos, outras, em vez de a primeira a ser proposta foi a Lei de Grimm. A Lei de Vemer e a de Grassmann
casos, empregam apenas pequenas partículas que os substituem, não indicando senão procuraram complementá-Ia.
um pouco desses casos, como em francês, e em espanhol só se dispõe de de e de à, que
indicam o genitivo e o dativo. [...] Os outros casos não têm partículas, mas o simples Quadro 1: As leis fonéticas
artigo, que também nem sempre está presente" (Amauld & Lancelot, 1660: 138).
Com a aproximação do século xvrn começa a paulatina reintrodução de terminolo-
gia importada da lógica aristotélica: sujeito a par com predicado substitui suposto e
C9máticas
'.'
A Lei de Grlmm (de Jacob Grimm, 1785-1863) estabelecia alternâncias siste-
entre consoantes do latim, do grego, do sânscrito e do gótico. Apresenta-
mos essas correspondências em seguida, acompanhadas de exemplos para, res-
aposto, ou mesmo nominativo. Aliadas à nova denominação estão as questões de
pectivamente, as palavras 'pé' e 'dez'.
ordenação, que ganham ênfase com a descrição de vernáculos: "O nome está no caso
nominativo quando é o Sujeito de um Verbo, e então costuma vir, no Sentido correto,
antes do Verbo" (A. Lane, 1700. Apud Padley, 1985: 184). Ainda aqui estamos ante as Gótico p b e t d h k g fotus taíhun
questões decorrentes da palavra (Padley, 1985: 188): o nome e o verbo são semantica-
mente independentes, isto é, podem ser declinados sozinhos, ao contrário dos adjeti-
Latim p b f d t c 9 h pedis decem
vos. Afrase ou proposição, "grupo de palavras com sentido completo", começa, con-
Grego p b ph d th k 9 kh podós déka
tudo, a tomar-se uma unidade da gramática, ou melhor, da sintaxe regular l2 • A sintaxe d dh j h padas dasa
Sânscrito p b bh S
mantém-se, porém, uma sintaxe que depende da palavra.
A descoberta, no século XVIII, de que o latim e o grego eram relacionados com o
sânscrito não retirou da palavra seu lugar central. A preocupação com uma língua- 'Indo-europeu
aspirada sonora bh dh gh
oclusiva sonora b d g
9 É essa uma diferença de monta entre as três línguas sagradas e os vernáculos. Em propostas de ensino oclusiva surda p k
de línguas surgidas nesse período, como a Janua Linguarum jesuítica, chega a afirmar-se que " ... en las
lenguas vulgares [...] no es necessario aprender cientificamente las cosas que tocan ai methodo de la
Grammatica" (Bathe, 1611: foI. 35). Havia, no entanto, alguns dados que pareciam contradizer as correspondências
10Uma saída foi a proposta de se considerar que as línguas vernáculas apresentavam casos "abstratos", propostas por Grimm. Por exemplo, se ao latim trater, 'irmão', correspondia o góti-
reconhecidos pelas preposições que os regiam. É a proposta, por exemplo, de Petrus Ramus (v. Padley, co broOer, ao latim pater'pai' correspondia fadar(e não a forma esperável faOar).
1985: 43ss). O Iingüista dinamarquês Karl Verner (1846-1896) conseguiria explicar a aparente
II Antoine Amauld (1612-1694), o Grande Arnauld, e Claude Lancelot (1615-1695) são os frades
exceção, ao levar em conta a posição do acento na palavra correspondente em
jansenistas que escreveram a famosa Grammaire générale et raisonnée (1660), também conhecida como
Gramática de Port-Royal, numa alusão à abadia a que pertenciam ambos.
13 Uma protolíngua é uma língua reconstruída pelo método comparativo. Reserva-se o nome indo-
12Cabe notar que, por volta do mesmo período, a sentença torna-se uma unidade ortográfica (vide Rosa,
1994b). europeu para a família Iingüística, e proto-indo-europeu para a língua-mãe dessa família.
32 Teoria para quê?
Como interpretar linguagem e Iingua 33

sânscrito, que teria preservado o lugar do acento do proto-indo-europeu. Se a posi- [A] ovelha e [os] cavalos
ção em gótico fosse alterada, a Lei de Grimm não se aplicaria. [Uma] ovelha, [sobre] a qual não havia lã (uma ovelha tosquiada) viu cavalos,
[um] deles puxando uma pesada carroça, [um] outro um grande peso, [um] terceiro
'irmão' 'pai' transportando pessoas com rapidez. [A] ovelha falou [aos] cavalos: [O] coração se
aperta em mim (sinto muitíssimo), vendo [os] cavalos levando [as] pessoas.
Sânscrito brátar pitár [Os] cavalos disseram: Ouça, ovelha, [o] coração se aperta [naqueles] que
Gótico brõear fadar têm conhecimento (sentimos muitíssimo, já que nós sabemos): [o] ser humano, [o]
latim frãter pater homem faz [da] lã [das] ovelhas uma roupa quente para si e [para as] ovelhas não
há mais lã (as ovelhas, porém, não têm mais lã, elas são tosquiadas; elas estão em
A Lei de Grassman (do nome do filólogo alemão Hermann Grassmann, 1809- pior estado ainda que os cavalos).
1877), como a Lei de Verner, procuraria explicar exceções â Lei de Grimm. O gótico Tendo ouvido isto, [a] ovelha dirigiu-se (foi-se embora) [para o] campo (pôs-se
dauhtar, 'filha', correspondia ao sânscrito duhitar e não, como esperado, a • dhuhitar. a caminho).
Segundo Grassmann, havendo duas aspiradas em seqüência no proto-indo-euro-
(Trad. prof. Álvaro Alfredo Bragança Jr.)
peu, a Lei de Grimm não se aplicaria.
---_._--_.. _~-_.~,_ ..
_-"--.<-~-~ . _~~----,-_.~~----------~~ .. ~.,--~._--,--_ . ~---~._ .

Nesse trabalho de reconstrução do vocabulário destacou-se o alemão August Quadro 3: ''A ovelha e os cavalos", segundo Lehman & Zgusta
Sch1eicher (1821-1868), que chegou a escrever uma pequena fábula em indo-germânico,
,---- ._------------..---_._-_._---
GWerei owis, kWesyo wlhnã ne est, ekwõns espeket, oinom ghe gWrum
denominação com que referia o proto-indo-europeu. Transcreve-se, no quadro 2 a
monte-sobre ovelha cuja lã não existe cavalos viu, um pesada
seguir, a fábula, a tradução para o alemão feita pelo autor (Apud Jespersen, 1922: 81-82) 'Sobre o monte uma ovelha que não tinha lã viu cavalos, um puxando uma pesada
e a tradução para o português, do professor Álvaro A. Bragança Jr. (UFRJ).
woghom weghontm, oinom-kwe megam bhorom, oinom-kwe ghmenm
A mesma fábula recebeu uma versão mais recente pelas mãos dos 1ingüistas carga puxando, um-também grande fardo, um-também homem
Lehman e Zgusta, que reproduzimos no quadro 3 (Apud Cornrie, Matthews and carga, um suportando um pesado fardp e outro transportando um homem
Polinsky, 1996: 27). õku bherontm.
rápido suportando.
Quadro 2: ''A ovelha e os cavalos", segundo Schleicher em velocidade.
Owis nu ekwomos ewewkwet: "Ker aghnutoi moi ekwõns
AVIS AKVASAS KA [DAS] SCHAF UNO [DIE] ROSSE Ovelha agora cavalos-para disse: "coração dói me cavalos
Avis, jasmin varna na ã ast, [Ein] schaf, [auf] welchem wolle nicht
A ovelha disse então aos cavalos: "Meu coração dói-me ao ver um homem
dadarka akváms, tam, vãgham garum war (ein geschorenes schaf) sah rosse, das
vaghantam, tam, bhãram magham, [einen] schweren wagen fahrend, das reine] agontm nerm widentei".
tam, manum ãku bharantam. Avis grasse last, das [einen] menschen schnell dirigindo homem vendo".
akvabhjams ã vavakat: kard aghnutai tragend. [Das] schaf sprach [zu den] a dirigir cavalos".
mai vidanti manum akvams agantam. rossen: [Das] herz wird beengt [in] mir (es
Akvãsas ã vavakant: krudhi avai, thut mir herzlich leid), sehend [den] Ekewõs tu ewewk Wont: "Kludhi, owei, ker ghe aghnutoi nsmei widntmos
kard aghnutai vividvantsvas: manus menschen [die] rosse treibend. Cavalos então disseram: "Ouça, ovelha, coração dói nós vendo
patis varnãm avisãms karnanti [Die] rosse sprachen: Hõre schaf, [das] Os cavalos disseram: "Ouça, ovelha, nossos corações sofrem quando vemos
svabhjam gharmam vastram herz wird beengt [in den] geschen-haben- ner, potis, owiõm r wlhnãm sebhi gwermom westrom kWrneuti.
avibhjams ka varnã na asti. den (es thut uns herzlich leid, da wir senhor das ovelhas lã ele quentes roupas faz
Tat kukruvants avis agram ã wissen): [der] mensch, [der] herr macht [die]
como o homem, o senhor, faz da lã das ovelhas vestimenta para ele próprio.
bhugat. wolle [der] schafe [zu einem] warmen kleide
[für] sich und [den] schafen ist nicht wolle Neghi owiõm wlhnã esti."
(die schafe aber haben keine wolle mehr, E não da ovelha lã está.
sie werden geschoren; es geht ihnen noch E a ovelha não tem lã."
schlechter ais den rossen).
Dies gehõrt habend bog (entwich) [das] Tod kekluwõs owis agrom ebhuget.
schaf [auf das] feld (es machte sich aus Isto ouvindo ovelha campo fugiu.
dem staube). Ao ouvir isto, a ovelha fugiu para o prado',
34 Teoria para quê? Como interpretar linguagem e língua 35

A morfologia desenvolve-se, então, como um estudo histórico, que resolveria, Como exemplos de raizes citaremos FL, que se nota nos vocabulos seguintes: flamma,
nas palavras do orientalista e sanscritista alemão Max Mül1er (1823-1905), "o velho fluxo, flava, flecha, flexão, flexível, refluxo, influxo, e.ffluvio, e.fflorescencia, flammula,
enigma do mundo acerca da origem da linguagem" (Apud Matthews, 1974; 1991: 3). a.ffluencia,fluir, a.ffluir, defluir, influir, defluxo, confluente, defluente, c01ifluir,fluente, a.ffluen-
te, refluir, fluido, influente, flauta, flatos. fluctuar, flotilha;
Do mesmo modo que, na viagem a bordo do HSM Beagle, as semelhanças entre animais ...............................................................................................................................................
de regiões muito distantes entre si haviam suscitado na mente do biólogo inglês Charles Due, DUZ em conduzir, adduzir, reduzir, reducção, conducção. adducção, induzir, inducção,
Darwin (1809-1882) a hipótese de ancestrais comuns, as semelhanças entre línguas produzir, producção. conducente, ductil, ductilidade, ducal. ducado. duque, duqueza.
diversas faziam supor que, num passado bltstante remoto, de uma língua comum te- productivo, reproducção. educação. educar, reducção. seduzir, seducção, introduzir,
riam derivado as chamadas línguas indo-européias. O paralelo entre a mudança lin- introducção. reducto, viaducto.
güística e a evoluçao dos seres vivos não é casual. O próprio Charles Darwin estava Não há como deixar de atribuir a uma forma lingüística um significado que não
familiarizado com os trabalhos de filologia comparada e foi por eles influenciado (e seja vago se as relações que se levam em conta não se estabelecem no tempo de vida
viria posteriormente a influenciá-los). de um usuário potencial, mas num tempo que se conta em milênios ou, pelo menos em
muitos séculos: afinal, postula-se que o prato-indo-europeu teria sido falado por volta
C) Na verdade, a hipótese de uma língua de origem é anterior a Darwin. O primei- de 4000-3000 a.c., ou seja, ainda na Idade dos Metais. Se deixamos de lado o proto-
ro estudioso a propor a existência do que viria a ser denominado proto-indo-euro- indo-europeu e buscamos o latim, estaremos recuando até o século III a.C ou, pelo
peu foi o orientalista William Jones (1746-1794), que, ao se dirigir à Bengal Asiatic menos, até o século III d.C. O interesse do gramático concentra-se, portanto, em arro-
Society, em 1786, afirmava que as semelhanças entre o sânscrito, o grego e o lar as formas originárias da protolíngua, as quais são o ponto inicial de uma cadeia
latim, e ainda o persa, o gótico e o celta eram tantas que não poderiam ter sido evolutiva complexa.
produzidas acidentalmente. Essa afirmação foi levada a sério por pesquisadores,
que, ao confirmá-Ia, fundaram a filologia indo-européia. (V. Crystal, 1987: 296; Fox,
1995: 17-36.) 1F Atente para o fato de que não estamos diante do ESTUDO DIACRÓNICO como defi-
nido pelo Estruturalismo. Não há aqui qualquer referência à noção de SISTEMA. Vol-
taremos a este ponto adiante, na seção 2.3.
Tomemos para ilustração das preocupações com estágios anteriores e com uma
origem comum a obra do brasileiro Ernesto Carneiro Ribeiro (1839-1920), no tocante
à formação e à estrutura de palavras. Nos Serões Grammaticaes (Ribeiro, 1890: 103) A noção de raiz toma-se central porque permite ainda, segundo os autores da
está presente o paralelo entre os elementos lingüísticos e a anatomia de um ser vivo: época, estabelecer o estágio de evolução (e, por conseguinte, de separação, da língua
originária) em que as línguas se encontram (ênfase no original).
A parte da lexicologia que estuda a palavra'em sua forma e estructura, isto é, como um todo
composto de orgãos, chama-se MORPHOLOGIA. Na formação das línguas passam as raízes por Ires phases, estadios ou períodos sucessivos,
As partes ou membros de cada vocábulo, que têm uma funcção especifica, recebem a deno- a que dão os philologos as denominações de monosyllabismo, agglollleração ou agglutinação
minação de orgãos ou elementos morphologicos. efusão ouflexão.
No primeiro período as palavras se compõem só de raízes, que se juxtapõem sem se fundir,
A noção de palavra permanece central, mas sua estrutura interna passa a desper- guardando cada uma dellas sua independencia e autonomia. Representa este periodo o
tar interesse na medida em que os elementos que a constituem são elos no estabeleci- estado mais primitivo em que se nos depara a linguagem.
As línguas neste primeiro estadio e que. por circumstancias especiais, podem nelle persistir
mento de relações entre uma dada língua, no caso o português, e um ancestral ou passar aos dois periodos subsequentes, chamam-se monosyllabicas ou isolantes. Taes
lingüístico. A definição e a exemplificação para a noção de raiz, que reproduzimos são o chinez, o annamitico, o thibetano, o siamez e o binnano.
em seguida, deixam claro esse enfoque (Ribeiro, 1890: 104-7 - ênfase adicionada): O periodo de agglutinação é aquelle em que as raízes se unem para formar palavras com-
plexas, ficando uma dellas intacta e perdendo a outra sua independencia e forma primitiva.
Entre os termos raiz e radical ou thema faz-se a distincção seguinte: a raiz é o elemento Taes são a maior parte das linguas affricanas, as linguas americanas, as uro-altaicas, as
geralmente monossylabico, irredutivel, cornrnum ás palavras que ela forma, pode constar maleo-polynesicas, o japones, o coreu e o vasconço.
apenas de um grupo consonantico, exprime uma ideia geral e vaga, sem a ideia accessoria No terceiro período, chamado flexão oufusão, raiz e elementos acessorios unem-se e fun-
de tempo, lugar, pessôa ou numero; o radical ou thema, porem, tem por si mesmo uma dem-se, constituindo um só todo, um corpo unico, perdendo todas ellas sua independencia
significação; é uma palavra mais ou menos completa; é o que fica intacto e invariave/, e autonomia.
quando ao vocabulo se tiram as lettras ou syllabas que denotam os accidentes dos nomes São exemplos desse terceiro período todas as línguas indo-germanicas e as linguas semiticas,
pronomes, adjectivos e verbos. a que pertencem o chaldeu, o syriaco, o assyrio, o hebreu. o phenicio e o arabe. (Ribeiro,
1890: 107).
Como interpretar linguagem e língua 37
. 36 Teoria para quê?

o paralelismo com a evolução dos seres vivos mantém-se presen~e:, as língua~ o grande impulso para levar de vez para segundo plano a busca de protoformas
caminham para estados mais elaborados do me,s~o ~od~,q~e um ~oll1lll1deo evolu~ deu-se no início do século XX, quando a lingüística foi chamada a auxiliar no trabalho
até o homem. Sabemos atualmente que tais estaglOs llllgU~St.1COS n~o se s~~edem ne de campo da antropologia. Produzir descrições de línguas não indo-européias que
cessariamente na ordem apresentada por Ribeiro, que estaglOs m~s anabtlcos a:te:- facilitassem a comunicação do pesquisador com a comunidade em estudo e que o
nam-se com estágios mais sintéticos, e que não há modo de consldera~ um estagl~ ajudassem na compreensão da cultura desse grupo punha em foco questões teóricas e
lin üístico como mais ou menos primitivo que outro. Em outras ?alavras. o d~senvo~ metodológicas da lingüística. Começava o estruturalismo.
vi~ento da linguagem no homem não pode ser explicado por melO de uma ta~lO~Om!a
de estruturas lingüísticas que, ordenadas, apontem para uma crescente Soflstlcaçao
estrutural. (V acerca desta questão, Lenneberg, 1964).
2.3. Linguagem e língua
Começava assim, um novo modo de classificação das línguas, que nã~ I~va­
va em conta a ~rigem histórica de uma língua, mas as semelhanças morfologlcas no estruturalismo: o império do morfema
entre elas A tipologia Iingüística de base morfológica foi proposta por August von
Schle el (1767-1845) e desenvolvida por outros lingüistas, dentre eles ~ugust No início do século xx, com o lingüista suíço Ferdinand de Saussure (1857-
schle~her (1821-1868). Considerando que uma língua é composta de slgniflc~do 1913), o tipo de estudo histórico focalizado na seção anterior passou a receber fortes
e relação Schleicher proporia três tipos de línguas (consulte-se a esse respeito,
críticas. Para compreender o valor de um elemento lingüístico, há necessidade de
Jesperse~, 1922: 76ss. Exemplos extraídos de Crystal, 1987:.293): '.
(a) línguas isolantes: os sons indicam apenas os slg~lf~cados da~ ralzes a analisá-lo num determinado momento de uma dada comunidade. Ele não pode ser
relação gramatical decorre da ordem. das palavras. ~~ chmes (na vanedade e
d visto isoladamente, arrancado dos diversos contextos a que pertenceu em diferentes
Beijing ou Pequim), "eu comprei laranjas para comer' e. épocas. Uma língua é um sistema. Esta nova visão consolidaria o estudo sincrônico:
~ m~ j~ c~ A sincronia conhece apenas uma perspectiva, a dos sujeitos falantes, e todo seu método
Eu comprar laranja comer consiste em recolher seu testemunho. Para saber-se em que medida algo é uma realidade,
será necessário e suficiente pesquisar em que medida isso existe para a consciência dos
(b) línguas aglutinantes: a raiz é invariável e por isso os elemen~os a ela
apostos para a expressão de som e significado sã~ facllment~ depreenslvels. Em
sujeitos [00']' O estudo sincrónico não tem por objeto tudo que é simultâneo, mas somente o
conjunto de fatos que corresponde a cada língua; na medida em que se fizer necessária, a
suaíli, "eu te amo" é mimi ninakupenda wewe, ou, literalmente.
separação chegará aos subdialetos (Saussure, 1916: 128).
mimi ni- -na- - ku- -penda wewe
Eu 1SGS PRES 2sGO amar (raiz) você o tempo levado em conta para o estudo dos fatos lingüísticos é o de um usuário
(o "sujeito falante"), porque o critério para a depreensão de um elemento lingüístico é
o que existe para a consciência desse falante como membro de uma comunidade. É
(c) línguas flexionais: "os elementos de significad~ e de rel.ação funde~-se isso que a noção de sistema representa. Por conseguinte, impõem-se limites temporais
ou são absorvidos numa unidade mais alta, sendo a raiz suscetlvel de modifica- -e também espaciais - às relações entre elementos lingüísticos, que têm de ser vistos
ções internas, bem como os afixos, ao denotar a forma" (Jesp:rsen, 1.922: 76). p~r
exemplo, a terminação -o do latim a,!"o indica que a forma e prtmelra pessoa o
numa língua, ou melhor, dentro dos limites de uma comunidade lingüística. O estru-
singular do presente do indicativo attVo. _ . turalismo ressaltaria, portanto, o aspecto social do fenômeno lingüístico: é necessário
Um quarto tipo, as línguas polissintéticas ou incorpo~antes, nao fOI reco~ que se tenha uma massa falante para que se possa ter uma língua (Saussure, 1916:
nhecido por todos os Iingüistas como independente dos dema~s, uma vez que apre 112). Cada "língua define uma comunidade lingüística: o conjunto total de pessoas
senta traços flexionais e aglutinativos. Essas línguas c~ra?:enzam-s~ p~r aprese~­
que se comunicam entre si, direta ou indiretamente, por meio de uma língua comum"
t a incorporação entendida como a realização de slgnlflcad~s lexicais por meio
d~ afixos como op~ão à realização desses significados por me~~ de palavras.
A tipologia de base morfológica do século XIX recebe~ cntlcas~ por ~ada de
relevante se seguir de seu estabelecimento e porque a~ Iln~u~~ nao se Inclu.em
nitidamente num tipo único (v. Anderson, 1985a). Isto nao significa dizer, po.rem,
que estudos tipológicos são desprovidos de ~nteresse; tampouco que nada mais de
I
I
(Hockett, 1958: 8 - ênfase no original).

A comunicação entre os membros de uma comunidade se faz porque eles conse-


guem relacionar seqüências sonoras a significados. A unidade da gramática que re-
interessante se fez nesse campo desde entao.
I
I'
presenta o fundamento dessa comunicação é o morfema, definido como uma unidade
mínima de som e significado. O morfema torna-se a unidade básica da morfologia e

t
_ _ _ _ _ _ _1.:." ~ _
38 Teoria para quê? Como interpretar linguagem e lingua 39

e a sintaxe, e a palavra passava a segundo plano - unidade problemática, a não ser na


C) Mais recentemente, estudos em que o aspecto social de uma língua foi escrita (Gleason Ir., 1961: 137). Pela substituição, um dos eixos da análise estrutural,
enfatizado levaram à criação de conceitos como o de semifalante (v. Dorian, 1973). podia-se ir do morfema para o enunciado (proposta de Harris, 1946), tomando apala-
Um semifalante (denominação considerada insultante por muitos) seria um falan-
vra uma unidade, se não desnecessária, de forma alguma um primitivo '4 .
te bilíngüe que domina imperfeitamente uma das línguas de sua comunidade,
aquela que se encontra em vias de desaparecimento. A denominação também se Em meados do século xx, as descrições produzidas pelo estruturalismo geraram
aplica a indivlduos que não têm proficiência nativa em qualquer das línguas (v. insatisfação em alguns lingüistas formalistas. Sabia-se como eram muitas e muitas
Payne, 1997: 17). línguas; faltava saber por que eram assim. Deveria haver um passo além da descriç~o:
Estudos sobre o aspecto social das línguas conduziram a uma revisão do con- a explicação. Só desse modo se poderia falar em teoria lingüística. Começava assIm
ceito de comunidade lingüística: não é um grupo de falantes que necessariamente
mais um tipo de questionamento, a gramática gerativa.
tem uma língua comum, como afirmava Hockett no final dos anos 50, mas um
grupo que compartilha da mesma conduta Iingüística em diferentes situações (SiI-
va-Corvalán, 1989).

Súmula
também da sintaxe: "no estudo gramatical estamos voltados para os morfemas e seus
arranjos" (Gleason Jr., 1961). Grosso modo, poderíamos postular para cada uma das grandes linhas da lingüís-
Se não há características específicas que diferenciem a relação entre os consti- tica a que nos referimos - gramática tradicional (levando-se em conta apenas o sécu-
tuintes da palavra das relações que se estabelecem entre os constituintes de unidades lo XIX), estruturalismo e gramática gerativa - as preocupações explicitadas nas per-
maiores, a distinção entre morfologia e sintaxe passa a ser também difusa, como no- guntas no quadro 4 a seguir:
tou Glea'>on Jr. (1961: 137):
Quadro 4: Interesses da pesquisa lingiiística
Podemos dividir a gramática de modo conveniente em morfologia e sintaxe. A sintaxe
pode definir-se, grosso modo, como o conjunto de princípios de organização das constru- Época Questões gerais
ções formadas pelo processo de derivação e flexão (palavras) em construções mais vastas,
de espécies diversas. Nem sempre é clara a distinção entre morfologia e sintaxe. Para algu- Gramática Tradicional século XIX Qual a origem da linguagem?
mas línguas, esta definição de sintaxe é razoável, enquanto que, para outras, levanta dificulda- Como seria a língua original?
des consideráveis. Não é, porém, possível uma discriminação mais satisfatória que abranja Quais as raízes básicas dessa língua?
as línguas em geral.
Estruturalismo século xx Como segmentar o enunciado?
Assim H. A. Gleason Jr. (1917-) introduz o leitor no capítulo em que começará Como classificar esses segmentos?
a abordar as "unidades mais vastas da gramática", sobre os constituintes imediatos e
Gramática Gerativa século xx O que é o conhecimento Iingüístico?
sobre a noção de construção, entendida agora como "todo e qualquer grupo significati- Como esse conhecimento se
vo de palavras (ou morfemas)" (Gleason Jr., 1961: 141). Embora ressalve que a dis- desenvolve no indivíduo?
tinção entre morfologia e sintaxe não é necessariamente clara, ele e outros lingüistas
da época consideraram a morfologia como "a gramática interna das palavras" e a
sintaxe, como o estudo de "sua gramática externa e das seqüências de palavras" (Wel1s, Voltemos à pergunta que abre esta unidade, "teoria para quê?". Para observar
mos um pedacinho da realidade e tentarmos compreendê-lo, podemos responder. Par:
1947: 197n), da "descrição compacta da estrutura de enunciados numa determinada
isso identificamos elementos, atribuímo-lhes propriedades, estabelecemos relações
língua" (Harris, 1946: 142).
Morfemas e palavras, por exemplo, são construções teóricas. Não correspondem ;
Focalizamos o modelo estruturalista norte-americano. Foi um modelo essencial- entidades físicas. Não brotam espontaneamente dos dados. Os dados só nos dizen
mente concatenativo, em que a análise se constituiu no estabelecimento de unidades algo se temos em mente algumas perguntas. E nossos interesses, refletidos nessa
irredutíveis, ordenadas linearmente, e na busca dos padrões que regiam sua combina- perguntas, são decorrentes da teoria a que nos filiamos. Mesmo quando não damo
ção. Ao se tratar a palavra (ou melhor, alarma de palavra - v. seção 5.2.4.1.), o por isso.
sintagma e a oração como o resultado da aglutinação de morfemas em camadas su-
cessivas de constituintes imediatos, tomava-se indefinida a fronteira entre a morfologia 14 Num sistema formal, um primitivo é uma unidade com base na qual outros elementos são definido!
· 40 Teoria para quê?

Seguir Saussure, Chomsky ou seja quem for, por conseguinte, não é sinónimo de
ser antiquado/sério ou moderno/modernoso, como é possível ouvir ainda hoje (embo-
ra raramente). Muito menos é uma questão de fé. Significa reconhecer a existência de
II
diferentes modos de conceber um pedacinho da realidade, do que se entende por lin-
guagem, língua, tarefa do lingüista. Tudo isso é parte da pesquisa.
Podemos perguntar, então, se um enfoque centrado no que a língua tem de fenô-
O RETORNO DA PALAVRA
meno social é intrinsecamente melhor do que um que a considere no seu aspecto de
conhecimento individual. Para responder, imagine que tem diante de si um objeto,
digamos, uma jarra, sobre uma superfície de vidro, como uma mesa, por exemplo.
Poderia olhá-la de diversos ângulos e até mesmo ir para debaixo da mesa e vê-la dali.
Os resultados poderiam parecer-lhe bem distintos. Ainda assim ajarra seria a mesma,
mas de cada ângulo seria possível captar apenas uma parte desse objeto.

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PAlAVRAS-CHAVES
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IA, IP e PP
morfema/morte; morfema como coisa
e morfema como regra;
morfologia baseada em morfemas;
morfologia baseada em palavras;
lexema, palavra morfossintática, forma de palavra.
3
A conceituação
cl6ssica do morfema

3.1. Introdução
Vimos no capítulo anterior que o início do século xx assistiu ao questionamento
e subseqüente declínio de importância da noção de palavra. Neste capítulo vamos
apresentar a noção de morfema, na sua versão estruturalista norte-americana, bem
como algumas das críticas feitas a essa proposta. Tais críticas prepararam o retorno da
noção de palavra à morfologia.
A palavra havia sido o fundamento da gramática tradicional. Mas como definir
essa unidade? Despojada da representação escrita - vista como "meramente um dis-
positivo externo" (Bloomfield, 1933: 294) que reproduzia imperfeitamente a fala de
uma comunidade (id.: 293) -, a delimitação da palavra tornava-se difícil. Não coinci-
dia, na maioria das vezes, com um elemento mínimo de som e significado, e sua
característica distintiva passava a ser a possibilidade de ser enunciada em isolado.
Nada de muito interessante.
Os problemas com a noção de palavra apontados pelos estruturalistas decor-
riam, em grande parte, de a definirem como uma forma, i.e., como "um traço vocal
recorrente que tem significado" (Bloomfield, 1926: 27). Isto implicava haver a neces-
sidade da utilização de critérios fonológicos indissociados de critérios gramaticais
para a sua depreensão. Fonologicamente uma seqüência como deixe-me, por exem-
plo, é uma palavra, uma vez que me equivale a uma sílaba átona em relação ao verbo
e não pode, sozinho, funcionar como enunciado. Gramaticalmente, porém, deixe-me
equivale a duas palavras: me é um pronome em função de objeto e pode ser mudado
de posição para antes do verbo, o que não acontece com simples sílabas.
Para evitar que enunciados diferentes pudessem ser segmentados de maneiras di-
versas e que noções oriundas dos estudos tradicionais fossem associadas à análise gra-
matical, a lingüística do século xx retirou da noção de palavra, em favor da noção de
morfema, a ênfase que tinha nos séculos anteriores. O morfema tomou-se a unidade
básica da gramática e, por conseguinte, da morfologia - agora transformada em
morfologia baseada em morfemas. Desse modo, a morfologia da maior parte do sécu-
lo xx passou a ser a análise sintagmática dos vocábulos l .

I Estamos utilizando indistintamente os tennos palavra e vocábulo.


'44 o retorno do palavra
I A conceituação clássica do morfema 45

latina, decompor palavras em unidades mínimas de som e significado, em busca da


3.2. Três modelos de análise lingüística seqüência sonora específica que corresponde a talou qual significado e vice-versa.
Aliás, a função do hífen nas formas em (3.3) adiante não é a de assinalar a segmentação
Tal mudança correspondeu à adoção de um modelo d~ análise gramat~cal dife- em unidades mínimas de som e significado, mas a de indicar que qualquer verbo
rente daquele herdado da tradição greco-Iatina. O estruturalIsmo nor~e-amen~a~o e~­ regular de primeira conjugação pode seguir esse paradigma (a palavra grega para
tabeleceu um método para identificar que partes específicas do ma~en~l fonOloglC~, e 'modelo'), que funciona, descritivamente, como uma espécie de molde, ou, se prefe-
uma forma complexa expressavam as diferentes partes de .um slgmfJcado tam em rirmos, como uma fronteira para regras que derivam formas do paradigma. Para isso
complexo. As unidades som e significado assim depreendIdas eram os elementos substitui-se: (a) ou o elemento na posição inicial, (am-) - o radical, -, por outro de
mínimos ou itens da análise. mesma classe, como louv-, por exemplo, e mantêm-se as terminações, que expres-
sam as categorias gramaticais envolvidas; ou (b) mantém-se o radical e mudam-se as
3.2.1. A palavra no centro . terminações. As relações assim expressas são verticais, ou melhor, paradigmáticas.
da análise: o modelo Palavra e ParadIgma Para ficar mais evidente o quanto a análise tradicional estava afastada de qual-
Para ilustrar a diferença entre o modelo de análise que prevalecera ~or tantos quer preocupação com formas mínimas, relembremos, por um momento, o modo como
séculos no Ocidente - denominado por Hockett (l9~4) Palavr~ e Paradigma (ou aprendemos a conjugar o verbo em latim no colégio, seguindo um modelo tão antigo
PP) _ e o modelo de análise estruturalista norte-~mencano domlllante e~tre meado~ quanto o gramático Prisciano (ca. 500 d.e.) - daí a denominação formação prisciânica
da década de 1940 e de 19502 - que ficou conhecido como Item e ~rral1Jo (ou IA) para o estudo da formação do paradigma segundo esse modelo.
tome-se como exemplo o estudo tradicional do verbo em portug~es. . . _ O verbo latino que em português traduzimos por 'optar, desejar' deveria ser
, Um verbo como AMAR, por exemplo, é regular e pertence à pn,m~lra conJugaç~o. lembrado por quatro formas: optá, -ãvi, -ãre, -mum. Tais formas correspondiam, res-
ual uer das formas desse verbo é descrita pelas suas caract,en~tlcas de palm r~ pectivamente:
~OI/;ssintática(v. cap. 5). A referência a amemos, por exemplo, e feIta como em (3.1).
a) à primeira pessoa do presente do indicativo ativo (optÔ);
b) à primeira pessoa do singular do perfeito do indicativo ativo (Optãvl);
(3.1) primeira pessoa do plural do presente do subjuntivo de AMAR
c) ao infinitivo presente ativo (optãre);
Qual a diferença entre essa e uma análise estruturalista? A diferen~a está em q~e d) ao supino3 (optatum).
a caracterização em (3.1) não é linear (Matthews, 1972: 106): amemos e um t~do, nao
a relação sintagmática entre signos mínimos que se devem suceder necessarIamente A partir dessas formas - que representam os chamados tempos primitivos- po-
numa dada ordem, como expresso a segUIr: dia-se conjugar todo o verbo. Vamos usar aqui para ilustração apenas as formas ati-
vaso Do primeiro radical (ou raiz de formação) formavam-se o impeifeito e o futuro
(3.2) AM- + VT/ SUB PRES + lpL do indicativo, o presente do subjuntivo, o particípio presente e o gerúndio. Bastava
Exemplificado do modo clássico em (3.3) adiante, o para~igma apr~senta as para isso trocar a terminação: tirando-se o -õ final de optõ e colocando-se
diversas realizações da palavra, ou lexema, que no nosso exemplo ~ ~MAR. Tms formas -abam4 tinha-se o impeifeito (optabam); se em vez de -abam a terminação escolhida
resultam das variações ao longo de cada categoria gramatical admitIda pel.o ve~~ em fosse -abo, tinha-se ofuturo (optabo); para o gerúndio, tirava-se o -õ final e coloca-
~rtu uês e das combinações entre as diferentes categorias. Cada categona -. ume- va-se -andi, -ando ou -andum (optandi, -o, -um).
~o, po~ exemplo _ concretiza-se como propriedades morfossintáticas (como Smgular, Do segundo radical formavam-se o mais-que-peifeito e o futuro peifeito do
Plural) que se opõem e excluem. . indicativo, o peifeito e o mais-que-peifeito do subjuntivo e o infinitivo peifeito, tro-
No modelo tradicional a relação entre a cadeia sonora e as propnedades expres- cando-se o -1 final, respectivamente, por -eram (optaveram), -ero (optavero), -erim
, d f ' . como se os dados (optaverim), -issem (optavissem), -isse (optavisse). Do terceiro radical formavam-se
as não é direta. Não se trata de uma sucessão e ormas mlmmas, .
~ertencessem sempre a línguas aglutinantes ideais (até porque esse modelo fOl desen-
volvido no estudo de línguas que exibem morfologia fle~ional razoaveln:e~te com-
3 FOTIna nominal do verbo latino em -um, empregada com verbos de movimento, ou em ou, com adjeti-
vos. O supino pode ser traduzido como indicando a finalidade (algo como lusum, 'para jogar', auditum
plexa). Não se procurava, no modelo gramatical que nos fOllegado pela tradIÇao greco- 'para ouvir').
4 Estamos exemplificando sempre com a primeira pessoa do singular. O mecanismo era o mesmo para as
. . - d to IA O próprio 13l00mfield estava
2 Nem todos os estruturalistas nortc-amencanos seguIram tao e per . demais pessoas.
bem mais orientado para IP.
46 o retorno da palavra A conceituação clássica do moriema 47

Imperativo
dois tempos: pela supressão da terminação -re, o imperativo (opta); do acréscimo de-
m, o imperfeito do subjuntivo (optarem). Por fim, do supino em -um formava-se o AFIRMATIVO NEGATIVO
particípio futuro, pela troca de -um por -urus (optaturus, -a, -um). am-a Não am-es
Em resumo: derivamos palavras do paradigma verbal a partir de outras palavras am-e Não am-e
do mesmo paradigma. Não partimos de seqüências de formas mínimas mais abstratas am-emos Não am-emos
para explicar quer a formação dos chamados tempos primitivos quer a dos demais am-ai Não am-eis
tempos. Como não estamos trabalhando com signos mínimos, também não vem ao am-em Não am-em
caso termos formado, por exemplo, o imperfeito e o futuro a partir do presente. Para
um estruturalista, tudo isso é muito estranho, para dizer-se o mínimo. Formas nominais
INFINITIVO IMPESSOAL INFINITIVO PESSOAL GERúNDIO PARTIcípIO
(3.3) AMAR
am-ar am-ar am-ando am-ado
Indicativo am-ares
PRESENTE PRETÉRITO PERFEITO PRETÉRITO IMPERFEITO am-ar
am-armos
lsG am-o am-ei am-ava am-ardes
2SG am-as am-aste am-avas am-arem
3SG am-a am-ou am-ava
lPL am-amos am-amos am-ávamos
3.2.2. O morfema no centro da análise:
2PL am-ais am-astes am-áveis
o modelo Item e Arranjo
3PL am-am am-aram am-avam
Para um estruturalista, quaisquer das formas latinas que acabamos de ver são
PRETÉRITO FUTURO DO FUTURO DO seqüências de unidades mínimas de som e significado que se ajustam a um padrão
MAIS-QUE-PERFEITO PRESENTE PRETÉRITO geral - o equivalente descritivo dos paradigmas dos verbos regulares dos es~udos
lSG am-ara am-arei am-aria tradicionais - que descreve a flexão verbal na língua em estudo. Não há a necessIdade
2SG am-aras am-arás am-arias de um paradigma para que de uma palavra se derive outra. Uma forma como optãturus,
3SG am-ara am-ará am-aria numa análise estrutural, é resultante da seqüência em (3.4):
lPL am-áramos am-aremos am-aríamos
2PL am-áreis am-areis am-aríeis (3.4) opt- ã- t- ur -us
3PL am-aram am-arão am-ariam desejar VT marcado PART. FUT NOM/SG
4° radical
Subjuntivo
É uma análise sintagmática. O papel da morfologia passa a ser o de juntar esses
PRESENTE IMPERFEITO FUTURO
pedaços de material, ou morfemas, que são signos mínimos. Para identificá-los no
lSG am-e am-asse am-ar 5
enunciado, o estruturalismo lançou mão da substituição ou teste da comutação , que
2SG am-es am-asses am-ares se apoiava no "princípio primordial da gramática" (Camara Jr., 1973: 43): a oposição
3SG am-e am-asse am-ar lingüística. Retomando-se o verbo AMAR como exemplo, uma forma como amas con-
lPL am-emos am-ássemos am-armos tém uma parte que não sealtera, que é am-, que se relaciona ao significado mais geral
2PL am-eis am-ásseis am-ardes
3PL am-em am-assem am-arem SSubstituição é tenno proposto por Harris e utilizado na Iingüística norte-americana; teste da comutaçã~
é a denominação dada por Hjelmslev e seguida, no Brasil, por Camara Ir. (v. Haugen, 1951). Para CrítI-
cas, ver o quarto capítulo de Chomsky (1964).
A conceituaçãa clássica do morfema 49
'48 o retorno da palavra
foi denominado Item e Processo (ou IP). Tal como IA, IP é um modelo aglutinativo
atribuído a AMAR. Substituído am- por louv-, ou por ador-, por exemplo, tem-se uma
(v. Spencer, 1991: 50), embora a concatenação de elementos se dê num nível mais
forma que apresenta um outro significado lexical, o que nos faz concluir que am- é
abstrato ~ue a~uele do enunciado, o das formas subjacentes ou teóricas. A essas
uma unidade de som e significado; um morfema, portanto. formas sao aplIcados processos, ou regras, ou operações, que as transformam nas
Como saber, porém, se o restante, -as, é um elemento ou mais de um? Também fo~mas ~e superf~cie8. Esse artif~cio procura demonstrar a regularidade que existe por
pelo confronto com outras formas. Amas difere, por exemplo: (a) da forma de terceira tras das Irregulandades, que senam, então, irregularidades aparentes,
pessoa do singular (ama), o que nos mostra que -s pode ser isolado; (b) da forma do Tomem?s p~a e~em~lo a descrição proposta por Camara Jr. (1970: 104) para as
subjuntivo (ames), o que demonstra que -a- também pode ser isolado; por fim, (c) não formas verbaIS h~s, ha, hao. Segundo o A., elas derivam das estruturas subjacentes
há qualquer marca específica para Tempo-Modo-Aspecto (doravante TMA), como no err: ~3.6). O as!ensco n~s formas da primeira coluna indica qu~ se trata de formas
futuro (amarás), por exemplo, ou no pretérito imperfeito (amavas), formas, por essa teoncas, que nao se realIzam como tais fonologicamente:
razão, mais "canônicas" do que amas. Amas poderia ser compreendida, portanto, numa (3.6) *havs c> haos c> hás
análise em constituintes imediatos (ou Cls) como ou contendo um zero (3.5a), ou *hav c> hao c> há
7
ainda, seguindo Pontes (1965)6, como em (3.5b), contendo um morfe cumulativo : *havlN/ c> haolN/ c> hão

(3.5) Por não ser seguido da vogal temática da segunda conjugação, o radical *hav-
a. amas
perde a consoante fin~l Ivl (perda que assinalamos com o símbolo o) e forma sílaba
-a- - 0 - -s
am- com a consoante segumte, no caso de ela existir.
raiz VT IND. PRESo 2SG C:s mesmos dadosAle~am a análises diferentes, se nosso modelo é IA: como uma
sucessao de ;zeros morfeIlllcos, ou, ainda, com a postulação de um morfe cumulativo.
A forma ha, por exemplo, seria a cumulação de "tema, MTA e PN" (P t
73~7~), i~to P~,
b. amas
-S
1965: é, ''I'a I Presente do Indicativo, verbo haver" (id.: 74)9. on es,
am- -a-
, .A dlstmçao entre os tres modelos é fundamental para entendermos a definição
2 5G
raiz VT + IND. PRE5 classl~a de morfema: alguns dos problemas que esse novo elemento apresentou aos
pesqUisadores, questoes de que trataremos a seguir.
Uma análise do verbo em português deveria, pois, arrolar quais os elementos ou
itens constitutivos de sua estrutura, como também os padrões em que se apresentam.
Daí denominar-se esse tipo de análise Item e Arranjo ou Elemento e Arranjo. Cada
um dos elementos mínimos pertence a uma ordem ou classe (raiz, afixo). Elementos 3.3. A definição clássica de morfema'°
da mesma ordem são mutuamente exclusivos para uma única posição (Nida, 1949:
84): isto significa que uma palavra não pode ao mesmo tempo estar no Fututo e no O morfema é "uma forma recorrente (com significado) que não pode ser anali-
Passado, por exemplo, numa língua que expresse essas propriedades. sada e~ f~~~s recorre_ntes (si~nificativas) menores" (Bloomfield, 1926: 27); "uma
forma Im~Uistlca que nao mantem semelhança fonético-semântica com qualquer ou-
3.2.3. Uma tradição do Oriente: Item e Processo tra form~ (Bloomfield, 1933: 161). Estas definições de Bloomfield:
... dao conta do morfema em duas dimensões, e correspondem a dois passos fundamentais no
Um terceiro modelo de análise, mais antigo que IA, porque suas origens remon-
tam aos trabalhos de gramáticos hindus sobre o sânscrito, como PãJ).ini (ca. 500 a.c.),
8 O fo~ato que a análise to~a
em IP é o que se chama derivação: camadas estruturais que se formam
suce.sslv~ente, pel~ a~licaçaode operações a uma determinada cadeia de elementos. Derivação nesse
6 Pontes (1965: 60): "Consideramos que a VI, no Presente do Indicativo, indica também MTA, porque sentido, nao tem o slgmficado mais comum nos estudos lingüísticos, quando se opõe aflexão. '
existe a oposição entre este paradigma e todos os outros. Não se pode analisar como um zero morfêmico,
9 Ver, porém, a seção 3.5.4. adiante.
neste caso, porque o sufixo MIA também não pode ser segmentado no Pretérito Perfeito, que, no entan-
to, se opõe (com exceção de P3) ao Presente do Indicativo. A intelpretação como morfema cumulativo se :0 Lembramos que o quadro a que nos reportamos é o do estruturalismo norte-americano especialmente
aquele formado pelos distribucionalistas das décadas de 1940 e 1950 que f ' h 'd
impõe". bloomfie1dianos. Icaram con eCI os como
1 Ver nota 22 adiante.
50 o retorno da palavra A conceituação clássica do morfema 51

... dão conta do morfema em duas dimensões, e correspondem a dois passos fundamentais no tatar em (3.7): os constituintes do primeiro nível do diagrama tanto podem ser pala-
processo de identificação de morfemas. No primeiro, o da segmentação, serão isoladas na vras como os elementos que as constituem. O próprio Hockett (1958: 178) "ajustaria"
cadeia da fala seqüências fônicas recorrentes mínimas que apresentam significado; no segun- a definição de morfologia para "todas as construções em que um CI é menor do que
do, o da classificação, serão considerados membros do mesmo morfema os morfes que apre- uma palavra....". Ou, na pena de Gleason Jr. (1961: 137), trecho já referido anterior-
sentem distintividade fonético-semântica comum... (Basílio. 1974a: 80 - ênfase adicionada).
mente (seção 2.3), "Nem sempre é clara a distinção entre morfologia e sintaxe. [...]
Não é, porém, possível uma discriminação mais satisfatória que abranja as línguas em
Cada morfema é um átomo de som e significado - isto é, um signo ·mínimo.
geral". Reconhece-se, no entanto, que as construções morfológicas são mais elabora-
Segundo tal perspectiva, a morfologia é o estudo desses átomos (a alomorfia) e das
combinações em que podem ocorrer (a moifotática) - i.e., a morfologia é o estudo das que as sintáticas (Bloomfield, 1933: 207).
dos moifemas e de seus arranjosll.
3.3.1. Os tipos de morfemas
C) Com Bloomfield o signo deixava de ser a palavra (como fora para Saussure) e pas-
Até aqui os exemplos que apresentamos constituem-se de um radical e afixos, que
sava a ser. por excelência. o morfema. Com isso o morfema passava a ter lugar no léxico.
"O estoque total de morfemas numa língua é seu léxico" (Bloomfield, 1933: 162). se combinam na formação de uma palavra. Uma das conseqüências de se trabalhar com
um modelo baseado na noção de item (e não na de palavra) foi a de que, de algum modo,
se passou a compreender a morfologia sintagmaticamente, como afixação.
São os morfemas os elementos centrais para o modelo; a palavra, do mesmo A análise de diferentes línguas demonstrou, porém, que os processos morfológicos
modo que o sintagma, resulta dessas combinações. Tais combinações são arranjos podem ser de outros tipos, captados não tão elegantemente nessa análise de um signi-
hierárquicos de constituintes imediatos, como exemplificado em Hockett (1958: 180 12 ficado para um significante. Mecanismos como moifemas alternativos, subtrativos e
e 154 13), reproduzidos em (3.7a, b) respectivamente: zero, embora considerados "uma difícil manobra, contudo necessária" (Hockett, 1947:
(3.7) a. 230), vieram somar-se, assim, ao moifema aditivo. Apresentamos em seguida os tipos
un gentle
\) -man -Ii ·ness de morfemas.

3.3.1.1. Morfema aditivo

Os morfemas aditivos são facilmente captados pela análise morfêmica: são os


radicais e os afixos. Os exemplos que vimos até aqui (am-, os) incluem-se neste grupo.
A raiz ou radical primário é o elemento mínimo de significado lexical. Se for
b. Eng- -Iand use- -s the foot I pound I second I system ampliado por derivação ou por composição, forma o radical ou radical secundário.
l Em transformar, por exemplo, temos um radical ou radical secundário transformo.
Retirado o prefixo (trans-), ficamos com a raiz ou radical primário formo. Em tercei-
ro-mundista, temos um radical, (terceiro-mundo) que é a base do derivado em -ista;
temos, porém, duas raízes.
~
No estudo da formação de palavras encontra-se muitas vezes o termo base '
Uma vez que a unidade básica da gramática (isto é, da morfologia e da sintaxe) em lugar de raizou de radica/ou ainda de palavra. Retomando os exemplos acima,
é o morfema, a distinção entre morfologia e sintaxe não é nítida, como se pode cons- transform- e terceiro-mundo são as bases. respectivamente. de transformare ter-
ceiro·mundista.
11 Bloornfield (1933: 163): "Os arranjos significativos de formas numa língua constituem sua gramáti-
cd'. E ainda (id. 163ss): "As formas lingüísticas podem apresentar quatro tipos de arranjos: ordem.
modulação. modificação, fonética. seleção". O que chamamos afixos são elementos que se distinguem pela posição que to-
12 Traduzível como 'descortesia'.
mam em relação à raiz. Os prefixos antecedem a raiz, como re- em reler; os sufixO!
13 Traduzível como 'A Inglaterra utiliza o sistema pé-libra'. seguem a raiz, como -ai em arrozal~
A conceituação clássica do morfema 53
· 52 o retorno da palavra
r-....---..- - - - - - - - - - - - . - - - - - - - . - - - - - - - - - - - - - - - ...- - . - - . - - - - - - - - -..-
A morfologia das línguas costuma repousar predominantemente em apenas um
N~Osão apenas. as raízes que são focalizadas como podendo apresentar-se
desses dois tipos de afixos. Afinal, "uma língua com dez classes de posições tanto ~omo ormas descontinuas, em virtude de um morfema ter sido incluído no seu inte-
para prefixos como para sufixos traria dificuldades reais para a localização das raízes nor. Segun.d? Nlda (1949: 67-68; 76), em zoque, língua indígena do México or
das palavras" (Anderson, 1985b: 166-167). Há tendência entre as línguas para maior exemplo, vanos morfemas apresentariam alomorfes descontfnuos numa análise'b~m
número de sufixos: "Línguas exclusivamente sufixais são razoavelmente comuns, ao ao gosto de IA. Comparem-se as formas básicas em (a) com as ~eqÜências em (b):
passo que línguas exclusivamente prefixais são bastante raras" (Greenberg, 1963:92).
Uma das generalizações acerca das línguas do mundo diz respeito à ordenação (a) ken- 'olhar' (b) kenu 'olhar-PAs'
que sufixos (ou prefixos) derivacionais e sufixos (ou prefixos) flexionais tomam em y- '3sGI SI TRANS' kenpa 'ele olha, ele olhará'
-hay- I
BEN '14 kyenhayu 'ele viu isso para ele
relação à raiz. Essa generalização foi expressa por um dos universais implicacionais
-to?y- 'OES '15 (em seu favor)'
de Greenberg (1963: 93): -u 'PAS' kento?yu 'ele queria olhar'
-pa 'PRES ou FUT' ken\o?pya 'ele quer olhar'
Universal 28. Se tanto a derivação como a flexão seguem a raiz, ou ambas precedem a raiz, a
derivação está sempre entre a raiz e a flexão.
"" O.Benefactivo e o Presente/Futuro podem, por exemplo, apresentar-se na se-
Vamos a um exemplo: livr-inho-s apresenta mais perto do radicallivr- o sufixo que~la -hapya-, em que cada um está parcialmente dentro do outro
derivaciona1 -inho que a marca de Plural. ambém ~s morfemas alternativos fazem um morfema apresent~r-se numa
forma des?ontl.n~a. Como dissemos anteriormente, casos como esses não se a'us-
tam bem a analise em constituintes imediatos, embora evitem que se fale em] fie
Não são tão claros casos como os dos plurais de alguns diminutivos portugueses, gras ou processos. -
tais como pãezinhos, florezinhas, pasteizinhos. Ou ainda dos derivados em -mente
cujas bases são adjetivos variáveis quanto ao Gênero: lindamente, historicamente... por meio de .um sufix?e a adjunção de um prefixo, este sem significação pró ria.
~ma alternatIva de anah.se para que se evite a postulação de morfemas sem Signi~ca-
Os infixos são um tanto diferentes dos prefixos e dos sufi:ws, uma vez que se ?
e para levar em c~nsIderação a adição simultânea de elementos nas posições ini-
inserem por completo no interior de uma raiz, tornando-a descontínua. Em árabe, cI~l e fin.al da formaçao -que é a característica definidora dos derivados parassintéticos
como de resto nas línguas semíticas, o padrão mais geral para as raízes é CCC (em que -e consIderar formas como amanhecer com a estrutura em (3.10):
C equivale a consoante), que recebe infixos (dados em Nida, 1949: 68, que remete a
(3.10) manhã + a....ec(e(r)).
Bloomfield, 1933):
'escrever' d N.este_cas~, a....ec(e(r)) é um afixo descontínuo, o circunflXO (e por essa razão a
(3.8) *ktb
katab 'ele escreveu' enommlaçao clrcUlzfixação é empregada em lugar de parassíntese caso se leve em
'escrevendo' conta ta proposta).
katib
kitab 'livro' Para alguns estrutur~li~tas, como Nida, por exemplo, os moifemas reduplicativos
maktab 'lugar para escrever' de que trataremos a segmr, mcluem-se entre os morfemas aditivos. '

Note-se que a característica definidora do infixo é a de ele posicionar-se no


3.3.1.2. Morfema reduplicafivo
interior de uma raiz. Não se entenda, portanto, como infixo um afixo que se
apresente entre outros dois afixos. Vamos a um exemplo. Em turco, o verbo yemek O mo~~m~ reduplicativo pode ser focalizado não como um afixo com formas
'comer' apresenta, no seu imenso paradigma de cerca de três mil formas, a forma
~:~:a~lt:~~:v;~e~~:omo uma modificação na raiz, que consiste na repetição de
yedim 'comi' e outra, yemedim 'não comi'. Não há razão para se considerar -me-
um infixo. É um sufixo numa seqüência de sufixos, como ilustrado a seguir (vide
Gleason, 1961: 121):
"OB enef activo
. e, o Caso que indica em favor de quem algo é feito.
(3.9) ye- me- di- m
IS Desiderativo é o Modo para a expressa-o do deseJo
. ou vontade.
PAS lSG/AG
comer NEG
54 o retorno do palavra
A conceituaçõo clássico do morfema 55

De acordo com Anderson (1985b: 169), são quatro os tipos mais comuns de Observe como o tratamento que Gleason Jr. (1961: 96) apresenta para a
reduplicação. A c6pia pode afetar a consoante ou grupo inicial. Nesses casos não é reduplicação é diferente daquele formalizado por Iensen e apresentado em (3.13).
difícil encontrar-se a inserção de uma vogal determinada. Alguns perfeitos latinos, Jensen, ao empregar uma regra para descrever a formação do Plural, capta uma genera-
por exemplo, são marcados pela repetição da consoante inicial do primeiro radical do lização acerca da gramática dessa língua. Gleason Ir., por seu turno, defme a reduplicação
verbo, seguida de -e-: como "afixos com formas extremamente variáveis". Estamos, assim, na análise de Gleason
Jr., perante uma lista de morfemas aditivos. Ao apresentar a reduplicação não como uma
(3.11) Presente Perfeito regra, mas como uma lista de afixos, Gleason Ir. mantém-se atrelado a IA, mas perde em
pango 'concordo' pepigi generalização. Vejamos um dos exemplos que apresenta, do tagalo, língua austronésia
pargo 'abstenho-me de' peperci falada nas Filipinas (Gleason Jr. ido et ibid):
cano 'canto, celebro' cecinI
(3.14) lisá' I 'um' liisá/ 'só um' prefixo li-I
A c6pia pode afetar a primeira seqüência inicial de consoante e vogal: no pídgin Idalawá/ 'dois' Idadalawá/ 's6 dois' Ida-I
da Nova Guiné, pairap 'explodir' é intensificado em papairap 'explodir diversas ve- Itatl61 'três' Itatatlól 's6 três' Ita-I
zes e em rápida seqüência' (Mühlhausler, 1979: 405). Pode também copiar toda a pri- Ipísol 'peso' Ipipísol 's6 um peso' Ipi-I etc.
meira sílaba, ou ainda toda a raiz, como no pídgin da Nova Guiné pretpret 'estar muito
amendrontado' , formado a partir de pret 'estar amendrontado' (Mühlhãusler, 1979: 406). Diferentemente de Jensen, que muda uma forma, básica, em outra, Gleason Jr.
A reduplicação não afeta necessariamente apenas seqüências fônicas iniciais. Ain- apresenta-nos uma lista de alomorfes (a parte que se repete) que expressam a mesma
da no pídgin da Nova Guiné é possível encontrar a reduplicação da sílaba final, por noção, embora com formas fonológicas bem distintas.
exemplo: lapun 'velho', mas lapunpun 'muito velho'. Observem-se também os exem- Anderson (l985b: 170) observa que é razoavelmente limitado o conjunto de
plos a seguir, acerca do Número no verbo em samoano, língua austronésia falada em significados expressos pela reduplicação. Nos nomes indica "pluralidade, formas
Samoa (oceano Pacífico - Gleason, 1955: 29; Jensen, 1990: 70): diminutivas (ou aumentativas), mas não caso, gênero ou categorias dêiticasl
referenciais". Nos verbos, a reduplicação costuma indicar diferenças aspectuais ("tais
(3.11) manao l6 'quer' mananao 'querem' como progressivos, imperfeitos, perfeitos representando um estado, distributivos,
matua 'é velho' matutua 'são velhos' interativos etc.), formas plurais e modos tais como hipotético, não realizado etc.,
malosi 'é forte' malolosi 'são fortes' mas não pessoa, voz...", ou mesmo tempo, se esta categoria está dissociada de opo-
punou 'retesa' punonou 'retesam' sições aspectuais.
pese 'canta' pepese 'cantam'
alofa 'ama' alolofa 'amam' 3.3.1.3. Morfema alternativo
galue 'trabalha' galulue 'trabalham' O morfema alternativo consiste na mudança da estrutura fônica da raiz (seja por
maliu 'morre' maliliu 'morrem' alternância da qualidade ou quantidade de vogais, de consoantes, de acento ou de tom),
como em digo/dizes. Exemplos clássicos desses morfemas nas línguas ditas f1exivas são
No exemplo acima, a expressão do Número Plural se faz pela repetição da sílaba
o Ablaut ou apofonia e o Umlaut ou metafonia, dois processos de alternância de vogais
mais próxima àquela que é a última na forma singular. Jensen (1990: 71) analisa esses no interior de uma raiz, cuja distinção se faz, em geral, na lingüística histórica. Em grego
exemplos como um processo, formalizado como em (3.13), a seguir, em que o símbolo X clássico, por exemplo, a alternância entre lei, marca o presente, e 10/, aliada à reduplicação,
indica que não importa o que veio antes da penúltima sílaba, isto é, da penúltima seqüência o perfeito: leipo/ leloipa; em português, casos como fil/fez.
C(onsoante)+V(ogal); o colchete de fechamento] indica o final do vocábulo; o em letra Muito freqüentemente as alterações na raiz são acompanhadas por outros afixos.
subescrita indica que a classe gramatical da palavra é verbo: v
É, por exemplo, o padrão geral do Plural de nomes em inglês que explica a postulação
de um alomorfe zero de Plural, além da alternância, para a palavra inglesafeet 'pés'
(3.13) X C v (C) V]v (plural defoot ·pé'). Segundo Nida (1949: 54),feet é decomponível em três morfemas:
1 2 3 4 56 2 3 2 3 456 (a) o radical; (b) a substituição de lul por liy/; e (c ) o sufixo zero, este último, na
[+plural]
realidade, um alomorfe zero de Plural (Nida, 1949: 46n44). À substituição de lu! por
16 As seqUências de vogais contam como sílabas separadas. Não há ditongos nessa língua (Jensen, liyl é atribuído o status de morfema porque se constitui na única diferença visível
1990: 71). entre o Singular e o Plural (Nida, 1949: 54).
A conceituação c1óssica do morfema 57
56 o retorno da palavra
A postulação do morfema zero não foi aceita por todos os lingüistas. Gleason Ir.
(id. et ibid.), por exemplo, considerou-o "absolutamente desnecessário" e "logicamente
(I] Vaca é feminino de boi?
insustentável", porque não haveria "fronteiras definíveis" para a justificativa de seu
.~ A literatura Iingüística refere exemplos como boi/vaca, sou/fui/era sob a deno-
minação supletivismo, que é a alteração máxima que se poderia aplicar a uma emprego, uma vez que poderíamos "adicionar livremente zeros de toda a ordem às
raiz: substituí-Ia por outra forma. Uma alternativa a esse enfoque flexional é consi- nossas descrições, cada um deles tão defensável como o último". Uma forma como
derar que estamos diante de itens lexicais diferentes, relacionados semanticamen- mestre, por exemplo, poderia ser analisada como (3.16):
te, cada um expressando diferentes propriedades.
O motivo que levou à inclusão desses casos entre os fenômenos flexionais (3.16) mestre + 0 + 0
nos estudos gramaticais foi, justamente, o estudo de línguas morfologicamente
MASC SG
muito flexionadas como o latim, o grego e o sânscrito. Na medida em que lidava
com línguas que apresentavam processos de alteração das raízes, a gramática A crítica de Gleason Jr. toma-se mais aguda se atentarmos para a diferença entre
tradicional focalizou tais exemplos como os casos mais radicais desses processos.
fenômenos flexionais e derivacionais. As categorias gramaticais formam classes fechadas.
Um exemplo clássico pode tornar mais claro o nível de alteração das raízes
estudado nas gramáticas tradicionais: o sistema de Ablaut (ou alteração de vo- Ao trabalhar com elementos flexionais, o lingüista postula zeros que se opõem a elemen-
gais) do proto-indo-europeu, aqui exemplificado com a raiz indo-européia *bher tos bem definidos, representantes das propriedades morfossintáticas. Ao lidar com dados
'carregar' (Hock, 1986: 545). As alterações são classificadas em graus: derivacionais, porém, apresenta-se-lhe quadro diverso. Poderia opor a marca de Masculi-
a) grau normal, ou grau-e, em que se mantém o -e- na raiz, como em *bher-õ: gr.
no à de Feminino, por exemplo; mas que poderia opor, digamos, a uma derivação em
pher-õ; lat. fer-õ 'eu carrego'; -dade? Ou melhor: o fato de uma forma não apresentar um derivado em -dade seria motivo
b) grau-o, em que há a substituição do e do grau normal por o, como em *bhor- para a postulação de um morfema zero? Os dados não permitiriam, neste caso, um uso
eyõ: gr. phor-eõ 'carrego repetidamente'; justificável desse artifício descritivo:
c) grau expandido, com a substituição de e ou o pela vogal longa correspon-
dente, como em *e-bher-s-t sânscr. a-bhã-r'carregou'; gr. phõr'ladrão';
Mesmo aqueles que não se opuseram à postulação de morfemas zero advertiram
d) grau -t; , em que há a supressão da vogal básica, como em * bh[-ti: sânscr. bh[- quanto à parcimônia com que deveriam ser empregados. É o caso de Nida (1949: 46),
ti - 'um carregamento'.
_._. __._-----_._--- por exemplo: "Deve-se evitar [...] o uso indiscriminado de zeros morfêmicos. De
outro modo a descrição de uma língua toma-se excessivamente polvilhada de zeros,
devidos apenas à congruência estrutural e ao equilíbrio".

3.3.1.4. Morfema zero 3.3.1.5. Morfema subtrativo


O morfema subtrativo consiste num radical que perde fonemas para a expressão de
o morfema zero é de natureza diferente. Observem-se os exemplos em (3.15),
um dado traço gramatical (Nida, 1949: 75). O exemplo clássico do morfema subtrativo foi
referentes ao Gênero do nome (mais especificamente, de nomes relativos a seres ani-
apresentado por Bloornfleld (1933: 217) para o Gênero do adjetivo em francês:
mados) em português.

Feminino (3.17) Masculino Feminino


(3.15) Masculino
mestre mestra plat [pIa] 'plano' platte [plat]
hóspede hóspeda laid [IE] 'feio' laide [IEd]
leitor leitora distinct [distE"] 'distinto' distincte [distE"kt]
professor professora long [lo"] 'longo' longue [lo"g]
marquês marquesa bas [ba] 'baixo' basse [ba:s]
menino menina gris [gri] 'cinza' grise [gri:z]
gato gata frais [frE ] 'fresco' fraí:che [frE:s]
gentil [iunti] 'gentil' gentille [iu"ti:j]
A marca de Feminino é sempre l-a! nesses exemplos. Sua ausência é significati- léger [leie] 'luz' légere [leiE:r]
va como característica de Masculino. Daí Camara Jr. ter postulado um morfema zero soul [sul 'bêbado' soule [sul]
para o Masculino em português, isto é, "um morfema no qual não haja nenhum alomorfe plein [pIe n] 'cheio' pleine [plE:n]
evidente" (Gleason Jr., 1961: 80).
58 o retorno da palavra A conceituação clássica do morfema 59

l
menos) por meio de dois outros alomorfes, cada um deles com uma distribuição ?
Uma possibilidade de análise seria a de se tratar o Feminino como um caso de
determinada. Assim, acrescenta-se l-s/ ao nome no Singular se termina em vogal ou
morfema aditivo: a uma forma básica masculina somar-se-ia uma consoante,
ditongo; /-es/, caso termine em consoante, como em (3.18a) acima, exceção feita a
indicadora de Feminino. O problema seria: que consoante? As consoantes finais da
nomes paroxítonos em /s/, quando então a forma permanece invariável, como em
forma feminina somente são previsíveis caso se tome a escrita como base (mas este é
(3.18b). Neste último caso estaríamos perante um alomorfe zero: dentre as possíveis
um procedimento inválido, como vimos anteriormente). Daí a proposta de Bloomfield
realizações de um morfema uma delas é não apresentar realização fonêmica. O morfema
(id. et ibid.):
de Plural não é, portanto, a realização específica x ou y, mas o conjunto dessas realiza-
se tomamos a fonna feminina como nossa base, podemos descrever esse tipo irregular pela ções, ou alomoifes. Poderíamos representá-lo como em (3.19), com o elemento que
assertiva simples de que afonna masculina é derivada da feminina por meio de um traço subtrativo aparece no maior número de ambientes tomado para a representação do morfema. As
(ing. mínus-feature), a saber, a perda da consoante final ou do grupo [-kt]. reticências indicam que, com a ampliação do corpus, poderíamos encontrar outros
alomorfes:
O morfema subtrativo,juntamente com o alternativo e o zero, faz parte do grupo
dos "malcomportados" (Anderson, 1988: 153). Todos ajustam-se mal a IA, porque -es .. ./
(3.19) {S} 0+ /-s 121
não há como segmentar "a forma de superfície de uma palavra contendo essa catego-
PL
ria de modo que alguma subparte (possivelmente descontínua) de sua estrutura cons-
titua o morfe em questão" (Anderson, 1988: 160). Mas o que é um morfe?
3.3.3. A alomorfia
3.3.2. O morfema é uma classe de morfes Como dissemos anteriormente, para chegar aos morfemas de uma língua o lin-
güista procede pela substituição, já adotada na fonêmica: isola-se ofoco da análise do
O morfe é um segmento de enunciado, ou melhor, uma seqüência fônica, a que restante do ambiente, como nos experimentos controlados das ciências naturais
é possível atribuir significado e que será posteriormente classificado num morfema. O (Haugen, 1951:360). Essa técnica permite ao pesquisador segmentar o enunciado em
morfema é, por conseguinte, uma abstração em relação ao morfe, do mesmo modo morfes, que serão posteriormente classificados em morfemas, a partir de procedimen-
que o fonema o é em relação ao fone: um morfema é uma classe de moifes, isto é, cada tos bem determinados, como, por exemplo, os princípios estabelecidos por Nida (1949),
moife, ou alternante moifêmica, é um elemento de um conjunto (que pode ser unitá- que reproduzimos adiante, no quadro 5.
rio) formador de uma unidade estrutural, que é o morfema. Qualquer enunciado é Cabe ao lingüista comparar enunciados parcialmente diferentes, para formas
completamente composto de morfes (Hockett, 1947:230). Também são morfes todas que apresentem distintividade semântica comum, em busca de identidade fonêmica
as seqüências fonêmicas que restam após a divisão do enunciado, tenham ou não (princípio a) ou de diferenças que possam ser definidas fonemicamente (princípio b),
significado (Hockett, 1947: 239). de distribuição complementar ou variação livre (princípio c).
Quando, anteriormente, segmentamos gatinhos, segmentamos esse enunciado Como identificar, por exemplo, os elementos formadores do vocábulo gatinhos? A
em morfes, não em moifemas. Qual a diferença? Tomemos para exemplo o -s final, resposta é: com a ajuda de vocábulos parcialmente semelhantes. Pela comparação de gati-
que identificamos como marcador de Plural. Se ampliássemos nosso corpus, de modo nhos com gatinho e com pares como pato/patos, mestre/mestres, depreende-se o -s final
que, além dos exemplos acima, ele incluísse também formas como as de (3.18), a como marca de Plural. Pela comparação com gato e com formas como patinho, ursinho
seguir, veríamos que o Plural em português pode manifestar-se ainda de outras manei- isola-se mais um elemento: -inho, indicador de diminutivo. Resta a forma gato, que é
ras que não a adição de l-s/. Vejamos algumas delas: recorrente e que se não consegue, por sua vez, subdividir em unidades menores com
significado: compare-se gatinho com formas parcialmente semelhantes como gato, gataria.
(3.18) Singular Plural Singular Plural E ágata, por exemplo? Não é possível comutar ágata com gato sem que se
a. cruz cruzes b. lápis lápis ~ destrua qualquer relação de significado. Uma vez que aquela forma ocorre em isola-
pilar pilares cáctus cáctus !:'! do, é classificável num morfema (princípio f).
líquen líquenes pires pires ~ Deve-se ter sempre em mente que a seqüência sonora tem de estar associada a
um determinado significado. É este um dos fundamentos da análise: o morfema é
Os poucos exemplos acima revelam que l-s/ não é a única expressão possível
para o Plural em português. Em outras palavras: o morfema de Plural realiza-se (pelo J7 Por distribuição entenda-se o conjunto de ambientes em que uma forma pode ocorrer.
· 60 o retorno da palavra
A conceituação clássica do morfema 61

·1
uma "unidade mínima com significado" (Nida, 1949: 6). Ora, se a mesma seqüência 2. A distribuição complementar em séries estruturais diferentes consti-
tuem a base para a combinação de possíveis alomorfes num morfema
de fonemas /gat/ está pre~~nte em termos como ágilla, gilluramo l8 , isto não é condi-
apenas se aí também ocorrer nessas séries estruturais diferentes um
ção suficiente para classificarmos tais ocorrências em conjunto com a seqüência/gat/ morfema que pertença à mesma classe de distribuição, como as sé-
de gato. É que não se pode aí identificar qualquer semelhança de significado com a ries alomórficas em questão, e que ele próprio tenha apenas um
forma {GAT- } presente em gato, gatinho, gatão etc., e, por conseguinte, subdividir as alomorfe ou alomorfes definidos fonologicamente.
formas ágata e gaturamo (em á-gat-a ou gat-uramo), comutando-as com gato. 3. Ambientes táticos ímediatos (ing. immediate tactical environments) têm
E fOlmas como canto 'atividade de cantar' e canto 'junção de duas paredes'? precedência sobre ambientes táticos não-imediatos na determinação
do status morfêmico.
Novamente, embora fonemicamente idênticas, tais formas não podem ser relaciona-
das, porque seus significados nada têm em comum. Trata-se de formas homófonas, 4. Contraste em ambiente distribucional idêntico pode ser. tratado como
submorfêmico se a diferença no significado dos alomorfes reflete a
que não serão classificadas no mesmo morfema (princípio e). distribuição dessas formas.
d) "Uma diferença formal explicita numa série estrutural constitui um morfema se
em qualquer membro dessa série a diferença formal explicita e uma diferença
Os estruturalistas tiveram dificuldade em lidar com a noção de significado. Joos estrutural zero são os únicos traços para distinguir uma unidade mínima de
(1950: 356). por exemplo, define o significado de um morfema em termos distintividade fonético-semântica." (v. secção 3.3. 1.3);
distribucionais: o significado de um morfema é, "por definição, o conjunto de proba- e) "As formas homófonas são identificáveis como o mesmo morfema ou como
bilidades condicionais de sua ocorrência em relação a todos os outros morfemas". morfemas diferentes com base nas seguintes condições:
Para alguns problemas que cercaram o tratamento estruturalista do significa-
do, a partir da noção de raiz, ver Operacionalização do conceito de raiz (Basilio. 1. As formas homófonas com significados nitidamente diferentes consti-
tuem morfemas diferentes.
1974b).
2. As formas homófonas com significados relacionados constituem um
único morfema se as classes de significado podem ser postas em
paralelo pelas diferenças distribucionais, mas constituem múltiplos
morfemas se as classes de significado não podem ser postas em pa-
Quadro 5: Seis princípios para a identificação ralelo pelas diferenças distribucionais.";
dos morfemas de uma língua (Nida, 1949). f) "Um morfema é isolável se ocorre sob as seguintes condições:
1. Em isolado.

a) "Constituem um morfema único as formas que têm distintividade semântica co- 2. Em combinações múltiplas, pelo menos em uma das quais a unidade
mum e forma fonêmica idêntica em todas as suas ocorrências"; com que se combina ocorre em isolado ou em outras combinações.

b) "As formas que apresentam distintividade semântica comum mas diferentes na 3. Numa combinação única, desde que o elemento com o qual se combi-
forma fonêmica (i.e., os fonemas ou a ordem dos fonemas) podem constituir um na ocorra em isolado ou em outras combinações com constituintes não-
morfema desde que a distribuição de diferenças formais seja fonologicamente únicos."
- - - - - - - - - -__, ---J
definível";
c) "As formas que apresentam distintividade semântica comum mas que diferem
na forma fonêmica de tal modo que sua distribuição não pode ser fonologicamente 3.3.4. A morfotática
definida constituem um morfema único se estão em distribuição complementar
em acordo com as seguintes restrições: Se a alomorfia diz respeito às configurações que um morfema pode tomar, a
1. A ocorrência nas mesmas séries estruturais têm precedência sobre a morfotática dá conta das restrições à combinação de morfemas, ou melhor, estuda a
ocorrência em diferentes séries estruturais na determinação do status sua distribuição. A difusão do termo deve-se a Hockett: por tática « ingl. taeúes)
de morfema; compreende-se qualquer teoria sobre a combinação de unidades similares, como
fonemas com fonemas 19 , morfemas com morfemas.
A morfotática leva em conta: formas, ordem (linear), construções e hierarquia
JS Observe-se que, conforme já vimos anteriormente (cap. 1), não há a possibilidade de se argumentar de constituintes, representada por CI.
que gat- em gato e em gaturamo não podem ser classificados num mesmo elemento por terem étimos
diferentes: respectivamente, o latim cattus e o tupi call1rama. 19 Seria a fonotática.
A conceituação clássico do morfema 63
62 o retorno do palavra

(3.21) [k] + [a] + [z] + [à] + [z] + [a] + [I]


+ [e] + [g] + [r] + [1.] + [8]
~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~
C) Segundo Hockett (1954: 389), o padrão fáfico de uma língua resulta de: ~ ~ Ig/ Irl lei IS!
a) Uma lista das construções. /k/ lal Iz/ lal IzI la! /li lei
b) Em cada construção:
• a enumeração das posições nela contidas;
• a especificação de algum marcador para essa construção;
Para cada posição:
• uma lista dos morfemas que nela podem ocorrer;
• uma lista das construções que nela podem ocorrer.

Para estabelecer o padrão tático de uma língua no tocante à morfologia, descre-


?
vem-se as classes de distribuição característica dos morfemas. As "classes mais uni- •
versais em todas as línguas do mundo são a dos radicais e a dos afixos" (Gleason Ir.,
Eis aqui um problema, apontado pelas setas. Havíamos afirmado ~ue tanto Iz/
1961: 63). Os radicais e os afixos distribuem-se, por sua vez, em subclasses. Dentre os
radicais, há, por exemplo, radicais verbais e radicais nominais; dentre os afixos, en- como IS! eram fonemas, bem como /s/, e uma vezfonema, sempre fonema . No enta~­
to nessa posição tais elementos não contrastam: podemos ter casa[z] (alegres), ca:a~z]
contramos, por exemplo, os sufixos. Um sufixo segue um radical, o que faz com que
*docaminha, por exemplo, seja impossível para a expressão do particípio de CAMI- (v~rdes), casa[i] (feias). A saída para aqueles q~~. ado~aram esse enfoque Ol a
postulação de um terceiro nível de análise, intermediano. Listam-se os m~rf~~onemas
NHAR em português.
(representados entre barras verticais, assim II ), os fonemas para subStItUl- os ~ os
ambientes em que ocorrem. Pontes (1965: 32), por exemplo, ~? tratar ~os v.er os,
ro õe ara o -s final, que ela representa pelo morfof?ne~a I z I ,a segumte h~ta de
Pf p p. (a) / z / dI'ante de vogal' (b) / s/diante de silenciO ou consoante surda, e (c)
onemas. ' . 'ld T f' eçopor
3.4. A morfofonêmica /z/ diante de consoante sonora. A inclusão de mms um rnve e ana Ise Ol o pr
procurar levar IA às últimas conseqüências. , .,,'
Alguns estruturalistas norte-ameócanos, como Hockett e Wells, por exemplo, Vimos até aqui o modo como uma influente corrente da hngUlst~ca compreendeu
defenderam a necessidade de um nível intermediáóo entre a morfologia e a fonologia. os póncípios que regem a estrutura da palavra. Passamos, em segUlda, a alguns dos
A morfofonêmica é "o ramo da gramática que lida com a forma fonêmica de morfemas, problemas com esse tipo de análise.
palavras e construções, sem atenção ao significado" (Hockett, 1942: 107). Esse nível
segue-se da inclusão de uma condição de biunivocidade na análise fonêmica. Tal
condição previa que a uma determinada cadeia de fonemas deveóa corresponder uma
cadeia de fones e vice-versa. Assim, para uma forma como asa teríamos a correspon- 3.5. Alguns problemas para a análise morfêmica
dência fonema/fone como ilustrado a seguir:
Considerar o morfema como a unidade mínima de som e sig~cado. e~.que se
(3.20) lal + .IzI + lal seqüência fonêmica baseia a análise acarretou problemas, que não passaram despercebidos Já aos lmgul~stas da
~ ~ ~
época Apresentamos, em seguida, quatro desses problemas, todos recorrente~ na Iteratu-
[a] [z] [à] seqüência fonética ra: osfonestemas, os moifes supérfluos, os moifes vazios, os moifes cumulatiVOS.

Podemos afirmar que IzI é um fonema no português porque pode opor formas na
20 Não se pode, ao adOIar a biunivocidade, lançar mão do conceito de arquifonema, possível em IP:
21P tes (1965' 31)' "É claro que os morfofonemas estabelecidos, foram-no com base n~p,ara~g~a
língua (asa/ assa, por exemplo). Pela mesma razão, também IS! pode ser considerado
um fonema: acha/assa/asa. Pela condição da biunivocidade, dada uma cadeia fonéti- ver:~: corres~nde~ a alternâncias fonologicamente c,ondicionadas de _morf:m~s :::b::~aso~l:s:So d~
ca, deveóa também ser possível depreender a cadeia fonêmica. Imagine, então, a se- servação dos paradigmas qu~ os es.tab;lecemos. ~ ,~o~~~~~.~~e ::::: ;:~:;alPp~eriaocorrer qualquer
palavras." A escolha ded"Z I e edxPhca a e~ n~~aIlnã~ oco~.e ·(~O português do RJ): sendo ela surda, só
qüência fonética casas, mas seguida de uma palavra começada por vogal, como em um dos fonemas, mas, lante e consoan e, ,"
casas alegres. Deveóa corresponder a algo como (3.21): encontramos I ii I e sendo sonora, somente I i I, A troca é automática, portanto .
64 o relorno da palavra A conceiluação c1óssica do morfema 65

3.5.1. Os fonestemas ou elementos 3.5.3. O morfe vazio


fonestéticos ou simbolismo fonético
Um dos problemas para a análise estruturalista são os elementos recorrentes que
Os fonestemas « ingl. phonaesthemes < phono- 'som' + aesthé- 'perceber' + não apresentam significado. Um morfe vazio é um morfe que não tem significado e
-ema 'unidade estrutural') são seqüências sonoras recorrentes que associam algumas que não é atribuído a nenhum morfema. Para Hockett (1947: 238), laI, vogal temática
poucas palavras cujo significado é relacionado (J oseph, 1998: 360). O exemplo clás- do infinitivo espanhol amar é um morfe vazio, uma vez que a forma pode ser analisa-
sico é a seqüência gl em vocábulos ingleses semanticamante relacionados como glimmer da como composta da raiz am- mais a terminação -r de infinitivo 22 •
'ret1exo', gleam 'brilho', glow 'fulgor', glitter 'cintilação'. Pode-se apontar como um
Se "o morfe vazio não é atribuído a morfema algum, não tem razão de ser"
exemplo paralelo em português a nasal Inl em formas como nada, ninguém, nenhum,
(Basílio, 1974a: 83). Que diferença pode ser postulada entre esse/ai sem significado
não, nenhures. Em geral tais seqüências não foram consideradas morfêmicas, embora
fossem recorrentes e se lhes pudesse atribuir algum tipo de identidade de significado. e que não é atribuído a morfema algum, por exemplo, e o fonema laI? Caso aceitemos
O ponto em questão é o de que, ao se reconhecerem tais formas no interior ~e u?ida- a proposta de morfes vazios, a definição do morfema como elemento mínimo de som
des maiores, destroem-se, para o restante do vocábulo, as relações de som e slgmfica- e significado desmorona. É como um cobertor curto: ou ficam dados a descoberto, ou
do que fundamentam a segmentação em unidades mínimas. fica-se com princípios de análise que são inúteis, uma vez que só funcionam às vezes.

(I) Nida argumenta que tais formas não podem ser isoladas como morfemas "uma 3.5.4. O morfe cumulativo
'<"vez que não ocorrem como formas livres ou com formas que ocorram em outras
combinações". Já Joseph (1998:361) defende algum status gramatical para os
fonestemas com base na diacronia do inglês. A seqüência -ag aparece em pala- Na análise morfêmica espera-se que a um elemento de significado deva
vras inglesas cujo sentido poderia ser glosado como 'ação tediosa, cansativa ou corresponder um elemento no nível da expressão e vice-versa. Retomemos, no entan-
lenta', como em drag 'arrastar (com força e dificuldade)', fag 'fatigar, estafar', flag to, a análise de Pontes (1965) para a forma portuguesa amas, apresentada antes, em
'esmorecer', lag'demorar-se', todas elas já presentes no inglês médio (ca. 1100-
1500). Essas formas, segundo o A., teriam atraído para sua órbita sak, que, a partir
(3.5b) e aqui repetida por conveniência:

. __
do século XVI torna-se sag 'afundar, descair'.
_--_._--------_....__ ..- ...__•.._--_. ..._~-------_. __._----' (3.5) b. amas
am- -a- -s
3.5.2. Os morfes supérfluos (Anderson, 1992:54)
raiz VT + IND. PRESo 2SG
É possível em português formar advérbios a partir de adjetivos, junt.an?o a estes
o sufixo -mente: doce/docemente, triste/tristemente,feliVfelizmente. Os adJetlvos doce, Ao propor que um único morfe pudesse representar a vogal temática e a
triste e feliz são uniformes: homem doce/tristelfeliz, mulher doce/tristelfeliz. Mas e desinência para TMA (as quais, em outras formas do verbo, tais como em am-á-va-
quando não o são? Bem, nesses casos os advérbios em -mente têm de ser derivados a
mos, são elementos separados) quebrava-se esse desiderato: um único morfe repre-
partir da forma de Feminino do adjetivo: lindamente, graciosamente ,fonologicamente.
sentava duas posições distintas do padrão verbal. O mesmo em sua análise para amo
Existe uma razão histórica para isso: -mente deriva do substantivo feminino mente,
[que segue a de Hockett (1947)]: 1-01 indica, cumulativamente, IND. PRESo + ISO.
com que o adjetivo que o antecedia concordava.
Deixando de lado a história da língua, que não pode, numa análise sincrânica, Problema semelhante apresenta-se no caso da fusão de dois ou mais morfemas
ser chamada à cena, temos três morfes em lindamente: lind- + -a + -mente. Que fazer distintos, realizados por uma única unidade, denominada na literatura morfe
com -a nesse tipo de análise? Podemos classificá-lo como marca de Feminino, mas tal portemanteau (fr. 'cabide') ou cumulativo, como no caso da forma du do francês,
marca é decididamente supért1ua num vocábulo invariável e, além disso, incompatí- que realiza dois morfemas distintos, a saber de+le.
vel com o significado do vocábulo. Se a considerarmos como expressão do Gênero,
temos ainda um problema a mais, que é o de marcar uma flexão (supért1ua) antes da
derivação. Resta-nos ainda uma outra alternativa: classificar esse -a- como um morfe
vazio: -a- não seria considerado marca de Feminino, mas algo como uma vogal de 22A análise de amas não é a mesma. Não há aí, segundo Hockett (1947: 238). qualquer morfe vazio:
ligação, sem significado, por conseguinte, e teríamos tentado sair de um problema nesse caso, la! indica IND PRES, uma vez que é a única diferença em relação a ames, por exemplo (cf. seção
3.2.2.).
criando outro, como veremos em seguida.
66 o retorno do palavra

Em virtude dos problemas suscitados pela noção de morfema segundo o mode-


lo IA, começariam a surgir propostas alternativas para lidar com a morfologia. A
análise de Matthews (1972) sobre o verbo em latim23 advogaria a volta do modelo
4
Palavra e Paradigma no estudo das chamadas línguas flexivas. Era o começo de pro-
postas voltadas para a palavra, como veremos a seguir.
Preparando o retorno
da palavra

4.1. Introdução
No presente capítulo vamos focalizar alternativas à noção clássica de morfema
nascidas nas últimas três décadas. Surgiram tanto no âmbito da morfologia derivacional
como no da flexional, em conseqqênc;ia de problemas como os que acabamos de ver.
Das muitas propostas, quase uma por autor, este capítulo tem como pano de fundo
quatro, em virtude da repercussão desses trabalhos internacionalmente e, em especial,
no Brasil: Matthews (1972; 1974), Aronoff (1976; 1994), Basílio (1980), Anderson
(1985b; 1992). Para uma visão ampla das propostas surgidas nas últimas décadas,
sugerimos Spencér (1991) e Carstairs-McCarthy (1992).

4.2. O morfema na derivação


Na morfologia por Item e Arranjo, os morfemas são as unidades que constroem
a análise em CIso Esses 'pedaços de material', em geral (ou pelo menos idealmente)
em seqüência, juntam-se para formar sucessivamente palavras, sintagmas, orações,
frases. Esse modo de focalizar o morfema está captado na metáfora 'o morfema é
uma coisa' - i.e., uma forma -, e a morfologia, por conseguinte, é afixação por exce-
lência.
A definição do morfema como forma mínima com significado levou a dificul-
dades que não deixaram de ser detectadas pelos estudiosos da época, a começar pela
questão do significado a atribuir a um morfema. Em seu clássico Morphology, Nida
(1949: 162) afirmava que "os significados das formas presas são particularmente
difíceis de descrever". Em especial as dificuldades em estabelecer com precisão o
23 Na lingüística atual, talvez a primeira voz em favor da importância da palavra na análise gramatical significado de um morfema se fizeram sentir no estudo da derivação (Basílio,
seja Robins (1959). 1974a: 85).
Preparando o relorno da pa.lavra 69
. 68 o relorno do palavra
lhantes no inglês, nos nomes derivados -cep- toma sistematicamente o lugar de -ceb-
"amos ilustrar tais dificuldades com dois conjuntos de exemplos recorrenthes na
v, , . . t /' as que recon ece- (conceber/concepção, receber/recepção), num processo comum de alomorfia, não fora
literatura. Primeiramente, que significado atnbUlr a ormas rmmm 1 a questão do significado. Não se trata de atribuir status a qualquer seqüência fônica
mos como recorrentes, mas cujo significado nos escapa? ~ue fazer com exemp os
que se repete, mas de atribuir esse status a seqüências que se relacionam a uma entida-
como re-ª--er,b con-ª--,b er. de-du7-ir
""""""
cUJ'as raízes (e tambem os prefixos) parecem
de lingüística fora dela (Aronoff, 1976: 15). Para Aronoff (1976: 10ss) tais formas são
não ter qualquer significado? . morfemas, embora sem significado.
Por outro lado, que fazer com os hapax legomena (gr. 'que foram ditos apenas
Mas não é só isso. Uma forma como -vel, por exemplo, presente em palavras
uma vez'), ou seja, com formas para as quais se en~ontra somente u~ exemplo n~ como dobrável, reversível, não existe independentemente de uma Regra de Forma-
língua? Em inglês, cran- aparece apenas na palavra mglesa cranb~r1)' uva-do-mon. ção de Palavras 2 que forma adjetivos a partir de verbos em português com o signifi-
te' e é isolável em resultado da comparação com formas termmadas em -berry, cado 'que pode ser X-do' (onde X representa o verbo derivante), ou de uma regra que
de~ominativas de pequenos frutos silvestres, como strawberry 'morango', blueber~ analisa3 adjetivos existentes língua.
'fruto do vacínio', blackberry 'amora preta' e gooseberry 'gr.oselha' . r-: 0 entanto qua Uma palavra pode mudar de significado com o tempo, e seu significado já não
. . 'f' d d cran- 'II É bom lembrar que o primeIro dos seis passos para
sena o SIgm Ica o e . . . ' 1) d' . ser previsível a partir dos elementos que a constituem: amável 'gentil', considerável
determinar o significado dos morfemas (Nida, 1949: 162 - ênfase no ongma ma 'muito/grande' são alguns exemplos. Novas palavras em -vel apresentam o significa-
respeito justamente ao número de dados: do esperado, o que leva a considerar que foi a palavra como um todo, e não o sufixo,
que sofreu mudança semântica.
1. Faça a coleta de muitas oconências de um mOlfema. É quase i;Upossível chegar a uma
A

O redimensionamento do conceito de morfema significou retirar dele o papel


definição de um morfema na base de duas ou três oconenclas. E cI~ro'. podem-se tentar
hipóteses acerca do significado. mas no mínimo oito ou dez ocorrenClas devenam ser central na análise morfológica. Na busca de explicação para a competência lexical
dos falantes, o que passa a ser necessário não é o estabelecimento de listas de elemen-
checadas..
tos mínimos, mas a resposta a questões acerca de que palavras os falantes podêm
Decorre dessa estratégia o fato de que "o analista se vê diante de dois c~nhos: formar, que tipos de palavras, novas ou antigas na língua, são capazes de analisar, que
a não considerar tais formas [como -ceb-, -duz, -fero, MCR). co~o morfemas Isolados, relações estabelecem no âmbito do vocabulário. É esta, grosso modo, a visão de Aronoff
a~esar da recorrência; b) não considerar a atribuição d~ sIgmficado com~,elem~1~to (1976), de Aronoff & Anshen (1998) e de Basílio (1980). Os processos produtivos de
decisivo para considerar ou não uma s~~üênci~ fonêmIca como morfema (Basl !o, formação de palavras (a questão central em Aronoff, 1976) atuam sobre palavras exis-
1974a' 85). Qualquer dessas soluções e mdeseJável. . .. f tentes na língua. Essa hipótese é conhecida como morfologia baseada em palavras.
No estudo da formação de palavras, os problemas com os SIgmfIcados das o~- Para não ser facilmente falsificada, a noção de palavra teve de ser "ajustada", como
mas não levou ao puro e simples abandono da noção de morfem~, mas a um redI- veremos no próximo capítulo.
mensionamento desse conceito. Retomemos parte dos exemplos aCima, acrescentan- Preocupada tanto com as formações produtivas como com o reconhecimento
da estrutura de formas existentes na língua que não resultam de processos produtivos,
do-lhes alguns mais:
Basílio (1980) tem este como um dos pontos discordantes em relação a Aronoff (1976).
(4.1) referir reduzir receber
deferir deduzir
conferir conduzir conceber
inferir induzir
4.3. A flexão: o abandono do morfema
preferir No que toca à flexão, os ataques ao morfema foram mais ferozes e levaram boa
transferir parte dos lingüistas que se dedicam à morfologia flexional, em especial no trabalho
com línguas flexivas, a abandonar a noção de morfema. Isto não significa dizer que
Podemos constatar a recorrência das raízes -fer-, -duz e -c:b- nesses dados, mas
não há interesse em identificar as relações entre partes da forma de uma palavra e
conseguimos atribuir significado não a elas, mas tão-soment~ as palavras como um
todo. No entanto, como nota Aronoff (1976: 12-13) a respeito de exemplos seme-
2 Denominação em Aronoff (1976).
huckieberry ]Para Aronoff (1976), a análise da estrurura é a contraparte da Regra de Formação de Palavras. Para
INo mesmo caso de cran' estão bovsell' em boysellberry 'tipo de amora' e huckie· em
Basílio (1980), isto é papel de outra regra. a Regra de Análise de Estrutura.
'mirtilo'. Formas desse tipo são referidas na literatura como morfes cranberry.
70 o retorno da palavra Preparando o retorno da palavra 71

partes de seu significado. Essa é uma tarefa que continua sendo relevante; contudo, 4.3.2. Morfemas versus formativos, expoentes
como nota Anderson (1985b: 160), "é necessário ir além da simples noção de que há
uma correspondência de um-para-um - como implicado na noção de que o morfema é Se não queremos considerar que todas as relações sejam obrigatoriamente de
a unidade mínima de análise - que estabelece uma associação direta entre forma e um-para-um, que fazer? A solução alternativa foi a de disting~ir dois ní,:,ei~: (a~ o
significado". nível da estrutura semântica, que envolve as raízes e as categonas gramatlcazs (Vide
Um exemplo simples: a forma verbal amo pode ser segmentada em am-o, e cap.8); e (b) o nível da expressão fonológica, em que aparecem os processos gramati-
poderíamos dizer (como é usual) que -o é o morfema de Primeira Pessoa/Singular. cais tais como alternância nas raízes - seja vocálica, consonantal, de tom ou de acen-
Sabemos, no entanto, que essa marca é "condicionada" pelo IND.lPRES., isto é, que não to -: a afixação, a reduplicação. Neste segundo nível temos os formativos ou, especi-
temos outra lSG em -o no verbo AMAR. Esse -o, portanto, marca Pessoa/Número, mas ficamente fazendo referência à expressão de uma categoria, os expoentes (Matthews,
também Modoffempo. Propor um morfema modo-temporal zero para o IND.lPRES. 1972; 1974). A diferença entre morfemas de um lado e formativos ou expoentes de
nada mais é que um artifício descritivo que procura manter o padrão canônico da outro pode parecer apenas de nomenclatura, mas não o é. Ela representa uma ruptura
estrutura do verbo em português. De qualquer modo, a presença desse -o nos diz que com a noção de que o morfema é um signo: o significado e sua expressão devem
essà é a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo AMAR. O que receber tratamento em separado.
queremos dizer com isso é que a relação entre -o e lSG, e entre IND/PRES e 0 é mais
complexa do que possa parecer nessa análise em morfemas. Por quê?
4.3.1. Um-para-um versus um-para-muitos, muitos-para-um
O morfema clássico captava nosso conhecimento de que determinadas seqüên-
4.4. Morfologia baseada em morfemas
cias fônicas expressam determinados significados. O grande problema foi focalizar e morfologia baseada em palavras
de modo relativamente simples essa relação, transformando-a numa relação direta
entre uma seqüência sonora e um significado e vice-versa, ou, como geralmente refe- Ao propormos (tal como Matthews, Anderson, Aron~ff) que a mo~ologia ap~e­
rida, como uma relação um-para-um. No trabalho com diferentes línguas do mundo senta dois níveis, um que lida com osformativos e outro cUJo enfoque esta no matenal
multiplicaram-se os dados para os quais tal visão era insatisfatória. sintático-semântico, estamos assumindo que o morfema não é a unidade básica de
Carstairs-McCarthy (1992: 194-195) aponta quatro tipos de afastamento do pa- análise, mas que esse papel cabe à palavra. Segue-se daí que a morfologi~ e a sintaxe
drão um-para-um. Em primeiro lugar, uma propriedade flexional pode ter várias realiza- não são basicamente a mesma coisa, como a análise em constituintes imedIatos levava
ções numa única forma de palavra. É o que Carstairs-McCarthy classifica como desvio a crer. Teorias em que a morfologia tem a palavra (no sentido de lexema) como su.a
I: um-para-muitos sintagmático, que corresponde ao que Matthews (1972; 1974) de- unidade básica contrapõem-se, assim, às teorias que tomaram o morfema como a Ulll-
nomina exponência expandida. A distinção entre o Presente e o Perfeito nas formas do dade básica. Essa distinção está marcada na nomenclatura: morfologia baseada em
grego le-lu-k-a 'eu perdi' e lu-o 'eu perco' está marcada: (a) na reduplicação ou redobro palavras ou morfologia baseada em lexemas, de um lado e, de outro, morfologia
(le); (b) no sufixo -k-; e (c) na forma que indica Primeira Pessoa/ Singular. baseada em morfemas. Passemos agora a precisar o termo palavra.
Uma propriedade pode realizar-se de várias maneiras, mas em palavras diferen-
tes. Segundo Carstairs-McCarthy (1992), é o desvio II: um-para-muitos
paradigmático. Em português, por exemplo, a Segunda Pessoa/ Singular realiza-se
como -ste no Perfeito do Indicativo, como" no Imperativo, como -s nas demais formas.
Por outro lado, diferentes propriedades morfossintáticas podem realizar-se num
único elemento da forma de palavra. Em insul-is, -is indica que a forma latina é, ao
mesmo tempo, Ablativo e Plural. Para Carstairs-McCarthy (1992), é o desvio III:
muitos-para-um sintagmático. Na classificação de Matthews (1972; 1974), é a
exponência cumulativa.
Por fim, as relações de muitos-para-um podem ser um caso de homonímia
flexional: insul-is, por exemplo, podem representar o Ablativo Plural ou o Dativo
Plural. Constituem-se no desvio IV: muitos-para-um paradigmático.
5
Quantas palavras temos
num enunciado?

5.1. Introdução
Até aqui usamos o termo palavra num sentido pré-teórico, isto é, sem defini-lo,
enfim, sem enquadrá-lo no âmbito de uma teoria. Como palavra é um termo que
existe no uso cotidiano da língua, pode parecer, a princípio, uma tarefa muito simples
defini-lo. Não é bem assim.
De acordo com o uso comum do termo, que tem por base nosso conhecimento da
escrita, parece trivial definir o que seja uma palavra. Qualquer criança no ensino fun-
damentaljá sabe responder quantas e quais são as palavras em Penélope ama Odisseu.
Talvez já fique em dúvida perante ama e amava, não sabendo se as contará como uma
ou como duas palavras, quando, então, a pergunta parece levar em conta algo que
ultrapassa uma determinada seqüência de letras ou símbolos. Ou ainda se contará
também como palavras elementos como que, se, de, quando entra em jogo o tipo de
significado das formas.
Deixada de lado a escrita, porém, tem a palavra, afinal de contas, algum tipo de
relevância teórica que a tome interessante para a pesquisa gramatical, ou, ao contrá-
rio, poderia ser considerada apenas um epifenômeno, isto é, um fenômeno secundário?
A resposta parece ser sim para a primeira parte da pergunta. A despeito do con-
tínuo sonoro existente na oralidade, os falantes conseguem abstrair parte das caracte-
rísticas físicas de um enunciado e desenvolver, a partir da mais tema infância, algum
tipo de estratégia que lhes permite segmentar esse contínuo em unidades menores,
com base no ritmo do input nativo, seja ele acentual, silábico ou moraico.
Pesquisas com línguas diferentes têm demonstrado que há estratégias que não
são universais, mas dependentes das características rítmicas específicas da primeira
língua, ou da língua dominante no caso de bilíngües, para a depreensão dessa unidade
a que estamos denominando intuitivamente palavra (Cutler, 1994). Ao ouvirmos o
contínuo sonoro, lançamos mão dessa estratégia, e ela é surpreendentemente eficaz
mesmo quando os sinais sonoros da fala vêm misturados com outros sons do ambien-
te, ou pronunciados com sotaque estrangeiro, ou a uma boa distância do ouvinte.
Falantes do inglês como primeira língua, por exemplo, segmentam o enunciado
com base no ritmo acentual entre sílabas fortes e fracas (Cutler, ido et ibid.). Uma vez
que a maior parte das palavras em inglês tem sílaba tônica inicial, os erros de percep-
74 o retorno da palavra
Quantas palavras temos num enunciado? 75

ção são mais comuns se produzem a inserção de uma fronteira de palavra diante de ção de palavra gráfica seja, no mais das vezes, equivalente a uma f~rma livre, ela é
uma sílaba forte (como em achieve ouvido como a cheap) ou o apagamento de uma tratada por regras da escrita. Talvez onde melhor possamos perce~~-lo, no ca,s? do
fronteira de palavra diante de uma sílaba átona (como no caso de bird in ouvido como português moderno, seja na representação de compostos, de preposlçoes e de chtlcos.
burgling). São menos usuais quando produzem a inserção de uma fronteira diante de Com a ortografia atual para o português do Brasil por base, por ex~mplo,. te~os de
uma sílaba átona (como em effective ouvido como effect oj) ou o apagamento de uma considerar fatores como os hifens ao definir uma palavra composta: pe de anJo ( aquele
fronteira diante de uma sílaba tônica (como were waiting sendo ouvido como awaiting). que tem pé grande'), por exemplo, é uma seqüência composta por três palavras gráfi:
Por seu turno, falantes de francês usam como estratégia de segmentação o reconheci- cas, mas pé-de-cana ('aquele que bebe muito') é apenas uma p~lavra: pelo menos ate
mento sílaba a sílaba I, ao passo que falantes de japonês usam como estratégia a mora o aparecimento de alguma reforma ortográfica que venha a bam~ os hlfens, ou que, ao
(Cutler, 1994: 92-93)2. contrário inflacione seu uso, quando, então, o quadro passana a ser outro. Nosso
Para a lingüística, o grande problema em definir palavra é ser esse termo passí- estudo d~ morfologia teria de incluir um capítulo sobre o uso de hifens? Seria estra-
vel de receber diferentes caracterizações nas diferentes dimensões do estudo da lin- nho, uma vez que o uso de hifens é regulamentado, em última análise, por decreto do
guagem, nem sempre resultantes na mesma unidade. Afora o uso na escrita, podemos presidente da República... .
entender palavra: (a) como uma unidade fonológica; (b) como o elemento mínimo da Não podemos esquecer que nossa escrita resulta de cerc~ de q~mhen~os anos ~e
estrutura sintática; (c) como um elemento do vocabulário da língua. Nas secções que padronização, que começou a ser efetivamente imposta a partir da mvençao, no ?CI-
se seguem vamos focalizar essas diferentes interpretações. A começar pela mais dente, da' imprensa de tipos móveis. A palavra gráfica, como a conhecemos, e um
usual. Vamo-nos deter um pouco nas justificativas para não levar em conta, aqui, a artifício relativamente recente, e escritas mais antigas nem sequer segmentaram o
palavra gráfica. espaço do suporte4 • A chamada escrita bustrofedônica dos gre~os. (século VI a.c.),
por exemplo, fazia-se em linhas horizontais, alternadament~, ?a dlr~Ita p~~ a esquer~
da e vice-versa, algumas vezes de baixo para cima na superflcle escnta (Dmnger, s.d..
148), sem qualquer separação entre palavras. .'
5.2. A delimitação da palavra Num tipo de escrita diferente da nossa, a hieroglífica do antlgo EgltO (ca. 5000
a.c. a 100 d.C), a fronteira gráfica que delimitava o final de uma palavra era marcad~
5.2.1. A palavra gráfica por um símbolo·especial, o determinativo, que podia combi.nar-se (ou não) com ate
dois outros. Os 180 determinativos tinham por função clasSificar as palavras: o rolo
Utilizamos o termo palavra, cotidianamente, como uma noção oriunda da escri- de papiro selado (~), por exemplo, indicava que aquela palavra per~encia à classe
ta, que se aplica também à fala. Por que motivo essa caracterização não será aqui das idéias abstratas (Jacq, 1994: 27). Seria uma nova palavra o que Viesse antes do
privilegiada? Simples: porque consideramos a escrita como parte de um outro estudo, determinativo, ou depois dele, dependendo da direção para a qual as figuras human~s
o dos recursos expressivos particulares que a representação gráfica toma disponíveis ou de animais se voltavam no suporte. Para os nomes de reis a visualização era maIS
(Nunberg, 1990: 7). A escrita tem sua própria "gramática", isto é, seu conjunto parti- fácil: o cartucho, uma linha ovalada, envolvia o conjunto de símbolos que comp~­
cular de regras. nham a palavra, assim, ~, e sinalizava qual o conjunto a levar em conta em melO
Aprender a escrever é, em parte, aprender a identificar e a assinalar os limites da
a uma seqüência sem solução de continuidade. . .,
palavra gráfica, unidade delimitada por separadores, i.e., por espaços em branco ou Para as escritas alfabéticas, talvez possamos conSiderar os pnmelros passos na
quebras de linha, mas também por sinais de pontuação ou ainda por letras de traçado
direção da palavra gráfica o desenvolvimento de formatos diferenciados para alguns
diferenciado, consoante ocupem ou não a posição final na palavra escrita3.
grafemas, o que viria a ajudar o processamento da leitura de um conjunto compacto de
Embora nas escritas modernas ocidentais que empregam o alfabeto latino a no-
linhas e, nas inscrições monumentais romanas (séculos I e II), o uso de um ponto entre
I O ritmo do português do Brasil estaria em mudança: de um padrão silábico como o francês ou o espa- ~"m. _
nhol, para o acentual, como o inglês (Major, 1981). Mesmo depois de os separadores começarem a ser empregados, seu uso nao
2 Que pode ser urna parte da sílaba que não o onset.
3 Vimos exemplo deste último tipo nas primeiras aulas de Grego, quando aprendemos a distinguir o 4Dá-se o nome de suporte ao material em que um texto está inscrito. Esse material tem variado ao longo
sigma final (ç) do não-final (a). dos séculos: pedra, papiro, pergaminho, papel, vinil, disco magnético, película fotográfica.
Quantas palavras temos num enunciado? 77
'16 o retorno da palavra
permanente (verba volant, scripta manent, já dizia o antigo provérbio) e não a trans-
coincidiu de imediato com o das escritas modernas. Na Europa medieval, preposições
crição sistemática e inequívoca de dados para o trabalho de um lingüista7, Nem se
e palavras curtas foram, em geral, unidas à palavra seguinte (Bischoff, 1986: 173).
imagine identificar os separadores com as pausas na fala. Quando falamos, não faze-
Mas, pelo menos até o início do século XVI, obras manuscritas e impressas estiveram
mos pausas a cada forma livre ou dependente 8, mas entre seqüências com extensão
repletas de formatos diferenciados para os grafemas, consoante sua posição na pala- média de cinco a seis palavras (Chafe, 1992: 25). Deixemos então de lado a escrita e
vra, e de conglomerados gráficos inesperados pela óptica de um leitor modema, os passemos à fala.
quais, por vezes, induziram até mesmo renomados filólogos a erros de leitura.
. _----_.__._---- 5.2.2. A palavra fonológica
(2) Um exemplo famoso de erro de leitura, causado por separadores utilizados de
forma diferente daquela a que nos habituamos, originou-se de um verso da écloga O que é denominado palavra fonológica - unidade formada por fonemas, síla-
Cristal (Cristóvão Falcão, 15-): cantou canto de ledino. Teóphilo Braga (1875), no bas e traços supra-segmentais - pode ser menor do que aquilo que desejamos conside-
Manual da história da literatura portuguesa, interpretou esses desconhecidos can- rar uma palavra no estudo morfológico. É a um afixo, considerado ou não como uma
tos de ledino como' cantos de romarid, explicando que eram cantos alegres por-
palavr~ fonológica, que recorre a análise para distinguir, em italiano: (a) prefixos
que, nas romarias, as moças tinham ocasião de encontrar-se com seus amados. O
texto de Braga influenciaria outros filólogos, como E. Monaci, que lhe dedicaria prod.utIVOS que, quando se agregam a uma palavra começada por /s/, não configuram
toda uma obra (Cantos de ledino trafti daIgrande Canzoniere portoghesi della Biblio- ~mbIente para a sonorização da fricativa, como em (5.1)9; de (b) formações improdu-
teca Vaticana,1875). tIvas que permitem a sonorização de /s/, como em (5.2). No primeiro caso temos duas
Carolina Michaelis de Vasconcelos viria mais tarde a demonstrar que a leitura
palavras fonológicas 10, uma que corresponde ao prefixo, outra, à base:
correta do verso seria: cantou canto d'ele dino. Dito de outra forma: cantou um
canto digno dele. (Para mais detalhes, Roncaglia, 1974-5: 88-89).
(5.1) (ri) p (suonare) p [risuonare] 'soar novamente'
(a) p (sociale)p [asoCiale] 'não social'
Os separadores em textos antigos podiam, mesmo, refletir um estágio da língua (pre) p (sentire) p [presentire] 'ouvir antecipadamente'
que já então era passado: formas como tal vez, por tanto e advérbios em -mente, por
exemplo, continuavam a ser grafadas como duas palavras gráficas tempos depois de (5.2) (presentire)p [prezentire] 'ter pressentimento'
já se terem combinado numa só. A título de ilustração, veja-se o excerto abaixo, ex-
traído da Estoria de muy nobre Vespesiano emperador de roma (Anônimo, 1496. foI. . De ,o.utr~ modo, em italiano, no interior de uma palavra fonológica, o ambiente
mtervocabco Impede o aparecimento de /s/ não geminado:
c3 r-v), um dos romances do ciclo do Graal:
E pilatus & eJ rey archileus com dez caualleyros. se sobirõ no muro sem armas. & vestidos (5.3) (rosa)p [roza]
de senhas briaes vermelhos [...] O nobre meu padre te encomêdou esta çidade por que (cosa) p [coza]
aguardarres & arregerres por elle [oo.] E de pois de sua morte enuiar te me o trebuto [...] E
[oo.] derprezar teo muyto mal. ~~ português também há ex~mplos em que podemos considerar a palavra
Nesse pequeno exemplo, os pronomes átonos ora estão, ora não, formando uma fonologlca menor que a forma livre. E o caso de derivados em -mente, -íssimo e -inho,
unidade gráfica com o verbo; o advérbio depois « lato de post) aparece como duas que podemos c?nsiderar como constituídos de duas palavras fonológicas. A postulação
palavras gráficas, revelando a consciência do étimo latino. E que fazer quando nos de uma fronteIra entre palavras fonológicas explicaria o não fechamento da vogal
5
deparamos com termos desconhecidos, como o distributiv0 de senhos?6. Observe-se
ainda o traçado diferente para <s>, em conformidade com sua posição na palavra 7 Aliás, foi essa mesma conclusão que levou ao estabelecimento de alfabetos fonéticos.
8Quando muito, os espaços em branco da escrita poderiam corresponder a pausas potenciais. Se enunciada
gráfica. bem lentamente, no entanto, uma frase poderia apresentar pausas também entre suas sílabas: ai bolne/Cal
Em suma: a função básica da (orto)grafia é o registro da informação de modo
dei palna esltá/ su/ja.
'Exemplos extraídos de Spencer (1996: 178-179). cuja análise reporta-se a Nespor, M. & Vogel, L 1986.
5 Dá-se o nome distributivo a um item que refere individualmente cada elemento de um conjunto, como
ProSOdlC Phanalogy. Dordrecht: Foris.
cada, todo, nenhum. 10,indica 'palavra fonológica'.
6 De senhos « lat. singuli) signitica 'cada um'.
78 o retorno da palavra Quantas palavras temos num enunciado? 79

média pretônica no derivado, correspondente à tônica no termo derivante, uma exce- E completava: "Esse pressuposto perturba a definição de sintagma [...]"'3
ção ao fato de, no dialeto carioca, as vogais médias abertas não ocorrerem em ambien- (Bloomfield, ido et ibid.).
te pretônico: A questão reapareceria em Nida (1949: 104), já então com a preocupação em
14
justificar por que incluir o genitivo 'sdo inglês entre os afixos e não entre os clíticos •
Segundo Nida, os cliticos têm muito maior liberdade que afixos, e s ocorre apenas
(5.4) forma ['6xma], mas formoso [foxmozu]
com nomes, pronomes e sintagmas nominais.
Os formativos de sintagma ou afixos de sintagmas formam, porém, um conjun-
Do mesmo modo clero, com [e] faz o derivado clerical, com [e]. A fronteira to mais restrito que as formas dependentes de Camara Jr., porque estas incluem
artigos e preposições, na medida em que, na fala comum, pertencem ao mesmo
entre palavras fonológicas, no entanto, previne o fechamento da vogal média:
grupo acentual do núcleo do sintagma.

(5.5) (seri) p (íssimo) p (nova) p (mente) p (pe) p (zinho) p


Os clíticos prendem-se fonologicamente a outra palavra no enunciado, que é o
seu hospedeiro (tradução do inglês host)15. No português europeu, por exemplo, os
Ao contrário desses exemplos do italiano e do português, há palavrasfonológicas clíticos de acusativo "são sempre fonologicamente enclíticos, a despeito de qual seja
que não gostaríamos de considerar como uma única palavra num estudo morfológico. a palavra precedente", o que os impede de estarem no início absoluto da sentença
É o caso de formas fonologicamente dependentes que se agregam a outros elementos (Nunes, 1992: 5, citando Carvalho, 1989 16). O sinal =nos exemplos abaixo indica a
da sentença como se fossem sílabas iniciais ou finais. Uma seqüência como disse-
cliticização:
lhe, foneticamente ['dzisiAi] na fala carioca, serve para ilustrar o problema. Formas
átonas como o pronome lhe do exemplo agregam-se fonologicamente a outra palavra (5.6) a. Quem=me vê?
do enunciado a eles contígua e recebem a denominação geral de clíticos (do gr. klitikós, b. Já=te digo
'que se inclina ou apóia' pelo lat. cliticus). c. Não=te vi
Um clítico é umaforma dependente. A classificação forma dependente foi cria- d. João tinha=me dado um livro
da por Mattoso Camara Jr. como complemento à distinção bloomfieldiana entre for- e. *Me=diga uma coisa
mas livres e formas presas. O problema classificatório não era novo. Também Sapir
constatara, ao tratar do paiute ll , que havia formas que nem eram verdadeira afixação, Afora os clíticos, é interessante observar ainda que a fala espontânea apresenta
nem se constituíam na justaposição de elementos independentes 12 • muitas vezes o "apagamento" de fronteiras entre palavras. Uma seqüência como as

13 Bloomfield (1926: 27): "Uma forma livre não-mínima é um sintagma. E.g., the book. or The man beat
C) O próprio Bloomfield (1926: 26) reconhecera a existência de formas de cará- lhe dog; mas não, e.g., book on [...] , porque é sem significado e, logo, não é uma forma; tampouco
ter misto, e classificou-as como formativos de sintagma: blackbird, que é uma forma livre mínima,"
14 Nida (1949: 104): "The genitive -s may occur wilh single morphological units, as in John's, his, and
Pressuposto 51. Um sintagma pode conter uma forma presa que não é parte
everybody's, or it may occur with phrases, e.g. lhe oId man's (aches and pains) and the king ofEngland's
de uma palavra.· Por exemplo, o possessivo [z] em the man I saw yesterday's
(hat). This morpheme is considered a suffix rather than a clitic because its distribution is limited to
daughter. ['a filha do homem que eu vi ontem' - MCR]
occurrence wilh nouns and pronouns and because the resultant construction belongs to one of two
Def. Essa forma presa é um formativo de sintagma.'3 external distribution classes: (1) attributive to nouns, e.g. lhe king of England's (hat) or (2) a substilute
for nouns, e.g, the king of England's was there. [...] The distributional behavior of lhe genitive -s is quite
different from lhat of the usua! clitic, which may be combined with any number of classes of forms and
wilh numerous resultant externa! distribution class memberships. Ainda no âmbito do estruturalismo
norte-americano, a mesma questão seria outras vezes retomada, como, e.g., em Wells (1947: 196ss).
II Língua uto-asleca do N de Nevada, Oregon, Califórnia e Idaho (EUA). 15 Na dependência da posição que ocupam em relação ao hospedeiro podem ser proclíticos, mesoclíticos

12 "Enclisis is neilher true suffixation nor juxtaposition of independent elements. It has the external ou enclíticos.
characteristics of lhe former (including strict adherence to certain principies of order), the inner feeling 16 Carvalho, J., 1989. Phonologica1 conditions on Portuguese cHtic placement: on syntactic evidence for

oflhe laner." (Edward Sapir, 1930. Southern Paiute, a Shoshonean language. Apud Klavans, 1982: 1). stress and rhythmical pattems. Linguistics. 29, 405-436.
• 80 o retorno da palavra Quantas palavras temos num enunciado? 81

l7 Não é importante para a sintaxe que reler seja formado a partir de ler pela adjunção do
amigas [aza' migas] é um contínuo sonoro, em que a sílaba travada do artigo desapa-
rece em razão de uma vogal iniciar a palavra seguinte, transformando uma seqüência prefixo re_ 23 • Daria no mesmo se estivéssemos diante da forma primitiva ler. Importa
VC#V em V_CVl8. Se ajuntura, por um lado, indica que não houve solução de conti- que ler (ou reler) seja verbo, uma vez que essa informação é relevante para fenôme-
nuidade na emissão da voz, por outro é ela um fenômeno típico de fronteira entre nos como concordância e regência. A hipótese lexicalista representa o reconhecimen-
palavras em português, e que ajuda, por conseguinte, no reconhecimento dessa unida- to de que as construções morfológicas são reguladas diferentemente da frase. Uma
de. Os acentos (representados pelo sinal ') indicam a presença de um nome, verbo, palavra e uma frase não são diferentes porque há mais unidades constituintes nesta
adjetivo, advérbio, que constituem, em geral, unidades também no nível fonológico. que naquela, mas porque têm tipos de coesão interna diferentes.
Em algumas línguas, mais precisamente aquelas que apresentam o acento ~ulminativol~, Numa palavra os constituintes internos não têm mobilidade. A posição de um
como o latim, o checo ou o polonês, a localização do acento é fixa, servmdo de aUXi- sufixo não pode ser preenchida por uma raiz; tampouco por uni prefixo. Em línguas
liar na identificação de palavras 2o . como o suam, que refletem pela concordância o Sujeito e o Objeto na estrutura do
Poremos de lado a palavra fonológica neste trabalho. A existência de clíticos, de verbo, essa ordem interna não tem a mobilidade existente para S(ujeito), V(erbo) e
juntura, de regras como a do italiano a que aludimos anteriormente faz com que essa O(bjeto) sintáticos: os formativos têm de apresentar-se na ordem [Sujeito - Tempo-
unidade não coincida, necessariamente, com o que gostaríamos de considerar palavra Objeto -raiz]v' Assim, a forma verbal que poderíamos traduzir como 'eu lhe darei' é
num estudo morfológico. Em princípio queremos que as formas livres e as formas aquela em (5.7):
dependentes façam parte do que entendemos como palavra. Assim, seqüências como
os meninos ou disse-lhe serão aqui consideradas como compostas de duas palavras; o (5.7) [ni - ta - m - pa ]v
italiano asociale, por sua vez, como uma única. ISG/S - FUT- 3SG/0 - dar (raiz)
Aliás, em estudo recente, Hanlon & Edmondson (1996) sugerem, com base em
estudo sobre a afasia de jargão fonêmica 2l , que palavras fonológicas podem manter- As unidades da sintaxe têm mobilidade incomparavelmente maior. Numa das
se intactas apesar de o paciente não apresentar qualquer outra evidência de que essas chanladas línguas de ordem livre, como o latim, por exemplo, o número de posições
unidades tenham significado ou classe gramatical, por exemplo22. possíveis para os elementos sintáticos é grande. Uma frase como 'Pedro vê Paulo'
pode ser traduzida como (a), ou, por questões de ênfase, como (b), (c) ou (d) abaixo
5.2.3. A palavra como unidade sintática mínima (baseado em Moreland & Fleischer, 1977: 5):

Considerar a palavra como uma unidade mínima para a sintaxe significa dizer (5.8) a. Petrus Paulum videt (ordem neutra).
que a sintaxe não forma palavras. É o que a literatura gerativa denomina hipótese b. Petrus videt Paulum (ênfase no sujeito e no objeto).
lexicalista. A sintaxe forma constituintes, frases, mas não palavras. Dito de outro c. Paulum Petrus videt ('É Paulo que Pedro vê').
modo: a estrutura interna da palavra não é da alçada da sintaxe, mas da morfologia. d. Videt Paulum Petrus ('Pedro realmente vê Paulo').

17 Aquela que tennina em consoante, representada como (C)(C)VC. Uma palavra tem expansão limitada e regulada a partir de certo ponto, ao contrá-
"Em que C representa 'consoante' e V, 'vogal'; -, 'fronteira silábica', e #, 'fronteira de palavra'. rio da possibilidade de expansão infinita dos grupos de palavras. Por exemplo,
19 Opõe-se ao acento livre ou distintivo de línguas como o português, por exemplo. as regras do português que formam derivados em -aI, -iz(a(r)), -ção podem aplicar-
20 Em latim clássico o acento é determinado pela quantidade: em dissílabos acentua-se a penúltima síla- se em seqüência. Assim, podemos derivar de instituir, instítuição, e, sucessivamen-
ba. Em palavras de três ou mais sílabas, acentua-se a penúltima se esta for longa (ou por apresentar uma te, em camadas, institucional, institucionalizar, institucionalização, ??? ins-
vogal longa, ou um ditongo, ou uma vogal breve seguida de duas ou mais consoantes); se for breve, titucionalizacional. A expansão é possível, mas, a partir de determinado ponto, as
acentua-se a antepenúltima.
21 Afasia em que o paciente produz seqüências fluentes de fonemas, mas destituídas de qualquer signifi-
cado. O termo afasia foi utilizado primeiramente por Platão, para designar o silêncio daquele que se
23 Os hifens que representam a posição de uma forma presa em relação aos outros constituintes da pala-
calava diante de um argumento definitivo, e seria retomado por Armand Trousseau em 1865 com o
vra. Por exemplo: des-, -ção, -duz· indicam, respectivamente: (a) que a forma des· precede outra forma;
sentido de déficites lingüísticos (Guindaste, 1996).
(b) que ·ção se segue a algo; (c) que -duz· (como em deduzir) necessita de um elemento anteposto a ele
22Um pequeno exemplo: como resposta à pergunta "Diga-me como dormiu a noite passada, OK?", a e de outro, que o siga.
paciente responde: 'hre?E 'd 3Elan 'thrre?1). 'thrrek 'naZI)..
Quantas palavras temos num enunciado? 83
82 o retorno da palavra

derivações param. A expansão de uma unidade sintática, por sua vez, é, teoricamente, num estudo morfológico: como sinônimo de lexema; como sinônimo de forma de
ilimitada: o meu grande amigo, o meu grande e querido amigo, o meu grande, palavra; como sinônimo de palavra morfossintática ou gramatical (vide Matthews,
querido... e inesquecível amigo. 1972; 1974, 1991).

5.2.4.1. A forma de palavra


(I) A hipótese lexicalista veio substituir a chamada hipótese transformaclonallsta
~-da gramática gerativa, exemplarmente ilustrada em Lees (The grammar of Eng/ish
A forma de palavra é composta de uma seqüência sonora. Aforma de palavra
nomina/ization, 1960). A hipótese transformacionalista tratava processos gerais de
formação de palavras, como a formação de nomes a partir de verbos como um
é o uso mais aproximado dos conceitos estruturalistas de forma livre (Bloomfield,
processo sintático, as nomina/izações. a mesma estrutura sintática geraria João 1926: 27) e de forma dependente (Camara Ir., 1970: 60).
não quer que Pedro participe da reunião e João quer a participação de Pedro na Fazemos referência à forma de palavra quando dizemos estar diante de palavras
reunião (exemplos em Basílio, 1980: 26). A diferença entre as duas sentenças re- homófonas: no português padrão do Brasil25 amamos pode representar a primeira
sultaria da aplicação de uma regra sintática (a transformação) de nominalização no pessoa do plural do presente do indicativo de AMAR, mas também a primeira pessoa
caso da segunda.
Qual a vantagem que essa análise apresentava? A vantagem estava em cap- do plural pretérito perfeito do indicativo de AMAR.
tar generalizações, como a relação semântica existente entre um verbo e seu deri-
vado nominaF4. 5.2.4.2. O lexema
O lexema é uma palavra considerada como unidade abstrata. Tem significado
Se, no entanto, a estrutura interna da palavra é opaca para a sintaxe, que dizer lexical e pode apresentar variações, caso se inclua entre as palavras variáveis. O
dos expoentes para as categorias m01fossintáticas? O Caso e o Número em latim, por lexema pertence a uma das classes abertas da língua. Seguimos aqui a convenção de
exemplo, fazem parte da morfologia dos nomes e são relevantes para a sintaxe. Não representá-lo com todas as letras maiúsculas.
há como formar uma oração correta em latim sem esse tipo de informação. O que nos Em geral, por motivos didáticos, traça-se um paralelo entre um lex.em~ (part~ do
leva a ver essas marcas de Caso e de Número como um tipo de morfologia diferente conhecimento de um indivíduo acerca de sua língua) e uma forma de cltaçaQ (umda-
daquele que temos em formas como -dade. Podemos entender que a formação de de de um dicionário em papel, ou na tela de um computador). Quando, na linguagem
palavras está em interação com o léxico; a flexão, por sua vez, representa a interação do dia-a-dia, referimo-nos a um verbo e não a uma de suas formas específicas, empre-
entre a morfologia e a sintaxe, ou morfossintaxe. Por conseguinte, nossa asserção gamos umaforma de citação: procuramos no dicionário o v~rbo amar, ou o ve~bo
acerca de a sintaxe ser cega para a estrutura da palavra, para não ser facilmente vender, ou partir. Se fosse um verbo latino, a consulta buscana amo, vendo: pa~tl.or,
falsificada, necessita de um "ajuste" que distinga os processos flexionais daqueles por exemplo. Com as formas de citação não fazemos referênci~ so.me~te ao. mfim~lvo
que formam vocabulário na língua. Se tratamos a flexão e a derivação como tipos não flexionado português ou à primeira pessoa do presente do mdicatIvo atlvo latmo,
distintos de morfologia, podemos considerar seus elementos como entidades de cará- mas a todos os tempos, modos e pessoas desses verbos. A forma de citação amar, por
ter também diverso. Foi o que começamos a apresentar no capítulo 3, ao introduzir- exemplo, é virtualmente um conjunto de formas e nenhuma delas. O lexema é UI~a
mos conceitos como formativos e expoentes. Os capítulos subseqüentes voltarão a abstração nesse sentido: o lexema AMAR, ou SABER, por exemplo, representa ~ combI-
essas questões. nação virtual dos radicais que pode apresentar com todas as propnedades
morfossintáticas com que se pode combinar.
5.2.4. A palavra como unidade da morfologia
5.2.4.3. A palavra morfossintática
Como já ficou evidente, o termo palavra é ambíguo. Mas e se ficarmos restritos
apenas ao seu uso na morfologia? Essa ambigüidade persistiria? A resposta é 'sim'. E se quisermos falar não do verbo AMAR em geral, mas de um dos membros que
formam seu paradigma? Por exemplo: se quisermos focalizar apenas a primeira pes-
Vamos distinguir aqui diferentes significados que o termo palavra pode apresentar
soa do singular do presente do indicativo? Estaremos, então, com o mesmo AMAR,

""Como princípios metodológicos" - explica Dillinger (1991: 58) - "preferem-se as generalizações e a "No português de Portugal, a abertura da vogal tónica distingue as duas formas. Já no português não-
eliminação de idiossincrasias. Conseqüentemente, uma das questões centrais da teoria lingüística é: até padrão do Brasil, o presente amamos distingue-se do pretérito amemos.
que ponto informações podem ser eliminadas do léxico sem sacrificar a adequação descritiva?".
.84 o retorno da palavra

mas agora acompanhado de uma única entre as possibilidades de realização das cate-
gorias gramaticais ou morfossintáticas TempolModo/Aspecto e NúmerolPessoa. A
palavra gramatical ou morfossintática é o lexema (AMAR, por exemplo) mais deter-
III
minadas propriedades morfossintáticas, como IND/PRES/tSG.
Nos próximos capítulos nossa atenção estará voltada para o lexema e para a
palavra morfossintática. E também para um conceito relevante para os estudos mor- REVISITANDO AS PARTES
fológicos: o léxico.
DO DISCURSO
Súmula
Os problemas com a análise morfêmica clássica são variados e derivam, basica-
mente, do modelo de análise adotado, IA. Os problemas são interdependentes e alcan-
çam até mesmo, como aponta Basílio (1974a: 82),
a não abrangência da metodologia, se considerarmos como morfes apenas os elementos aos
quais podemos atribuir significado; ou se resumem na não adequação da metodologia às
definições básicas de que ela partiu, se considerarmos também como morfes os elementos
mínimos que restam após a segmentação em morfes.
Ao se desmembrar, no estudo da morfologia, significado e expressão, abria-se
caminho para o retomo da palavra ao cenário, mas não mais corno uma forma (i.e.,
"um traço vocal recorrente que tem significado" - Bloomfield, 1926: 27) livre ou
dependente. Por que não? Porque, ao tratar a palavra como uma unidade que se
concretiza num enunciado, ela foi definida por um critério de pouco interesse para os
estudos morfológicos: se pode ou não ser enunciada sozinha. Para o estudo morfológico,
as características gramaticais são mais interessantes do que essa.
Em suma: a palavra é "por definição, urna abstração gramatical" e "qualquer
critério fonológico deve permanecer logicamente secundário" (Robins, 1959: 120). O
lexema e a palavra moifossintática são os elementos que nos interessam aqui. Com
eles podemos dar conta das relações existentes no vocabulário da língua como tam-
bém da informação gramatical que carregam.
i_.. . p..... ,,VRAS_.
,l\LA....,,,
.... C.,.".,H_A::vE
,_,.,.,..,:.... ....S..........J,J
morfologia e léxico;
flexão e deJivação;
item lexical;
Regra de Formação de Palavras e produtividade;
bloqueio;
classe gramatical/parte do discurso;
significado lexical/significado gramatical;
classes abertas/classes fechadas',
categorias e propriedades.

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