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Luis Miguel Nava Poesia Completa 1979-1994 Prefacio de Fernando Pinto do Amaral Organizacao e posfacio de gABINETE POR Gastao Cruz ove Lemurs € ‘Rua Luiz do Canios, © Bie he dameie= PUBLICACOES DoM Quixote SBA 2002 Bibioieca Nacional ~Catalogagio aa Publicagto ‘Nava, Luis Miguel. 1957-1995 Poesia completa. - 1979-1994. — (Poesia do século xx) ISBN: 972-20-2038-2 cpu 21.134. 5- Publicagies Dom Quixote, Lda. "Rue Cintsea do Porto. Urbonizagio da Matha, Lote A. 1900-629 Lisboa > Portugal eC Resernadas tos os dietios de acon com leistagio em vigor (© 2002, Fundagso Luis Miguel Nava e PubicesBes Dom Quixote Foto do autor: © Fundsgo Luts Miguel Nava Revisio tipogrsfica: Alvaro Marques 1? edigSo: Margo de 2002 Depésio legal n® 17102602 ‘ré-impresi: VEM-Produyées Gries, Ld. Impressto ¢ acabamento: SIG ISBN: 972-20-2038.-2 INDICE Notasobre autor ea presente edica0 Prefécio de Fernando Pinto de Amaral ONDE A NUDEZ PELICULAS: Nos teus ouvidos. Emsintra Ha uma peda feroz Otanque de Basho Contra os flashes esas mans Arserouca Ars pootica Opoema. Através da nuder .. Atrds da pigina Omar. Sketch Apenasa folhagem B 8 38 40 a 2 a “a 45 46 a8 » OCOQOODOOODODOOOCOONONDOOCOO0N! Q0000000Q00 C c e e c S c c ©. . IQEC lhando ormaro Apreto ebranco ONDEANUDEZ ‘Onde mudez 5 Ementrelinhas Asaida, Brevssimo creprisculo ‘Os dedos. Aida ds vezes Nao muita vez Manuet AINERCIA DA DESEREAD COMO ALGUEM DISSE Falesias Rope. ‘Agora que de novo ‘Ao minimo clara Apoucoe pouco -Janem sequer baalto Abem dizer eeu Nudez Napele. 7 7 varios metros de profundidade. memoria .. Reco Como alguem disse out REBENTACAO Fwele Osndé daescrita so. Decaleomania Introducan BSR88 8 BSSeeysuy Beesasegesss 103 108 108 Ateainfancia Na iven cs00) O céwagyaclorme pensar 6 para mim Ochto Crawl Espothos O real ‘Aletra errante Washer Aoacordar Gespetho Rapazes CO ifiito amigo Adescoberto Paixao Paisagem boca Paisagens Despenhadeivos Mergulho tEntvanhas Abismos ovew Poemainical Hosana, Xadrez Ores 0s pratos da balance Sol subterraneo As sombias Crepisculo Owe De vezem quando Witrines or 09 0 1 1 1 4 ns, 16 7 he 9 na 0 nt i is ba 5 136, 1 6 ne a0 Mar 142 a3 Nanguem se lemma Reatre nome Aasmmas nes bolas Vestuario Inverno asmaos osolhes Othanelo 0 sot OCEU SOB AS ENTRANHAS University Parks vir Osceretario (Os rastas noutragas stacas Paisagemn ctadina egueira Retrato Insania corpo espaceiedo Asombea couarido ‘Una candoia “Transparencia (ikino reduto opolve osossos Aor dos oss0s Amio Osnerves tras des Disjuncao ‘Mentidade. Matadouro Regresso : 10 waa 15 140 ww 1a ws 150, 151 132 155 56 157 159 160 191 102 163 lot 106, wr 68 9 v0 m m 3 va 176 w 78 19 0, wa 183 Ames Aexactican das coisas Ovisitante um rio rough Osoleascinzas Abertura Dols ies fmbreho Naufrigio Outro vio Transericao Estreitas ares doce's Trestas Marcas Por trasdoespetno io fogo da memoria embranca de A. Morin os daseanpados: aauldomar Os ecos Lembrancas: Lamparina Um asso “Tres voltas Espinhos Sem outro tntuito, Aneve Afome Anoite Otimpanoea puplla Bem fundo Acarne VULCAO nT va 185 209 211 22 213 2a 215 216 a7 28 219 220 2 me 24 DODDOCNDOODOADOOGODOOODDOO OOO OOOO OD0O 0! LoOOoOoAarNAAANnNNCOOAN: As trovas Reeénaitas palavras ogrito ‘Um prego. ‘Num dia de verao Oolho algdbrico ‘Acertaaltura Acela Pogo.e mentira Borrasca Oowido Alionca Oabismo um ‘Aimagem 0s comedores de espa Crepasculo Final POEMAS INEDITOS othar do pene ‘Um ceu de funcionarios Umgesto Bios Posficio de Gastio Cruz 12 a SESE eo NOTA SOBRE 0 AUTOR EA PRESENTE EDIGAO Luis Miguel de Oliveira Perry Nava nasceu a 29 de Setembro de 1957 em Viseu, cidade onde frequentou a Escola Priméria. Apés uma breve passagem pelo Colégio dos Carvalhos (1965/67), regressa a Viseu, af concluindo ‘© Ensino Secundério em 1974, No ano seguinte, vem para Lisboa ¢ inscreve-se no curso de Filologia Roménica da Faculdade de Letras. Apds terminar a licenciatura (1980), frequenta o mestrado de Literatura Francese (1980/82), comega a colaborar regularmente como critico literério em Jornais e revistas (Coldquio-Letras, J. L. cic.) ¢ exerce as fungdes de assistente do Departamento de Literaturas Romanicas entee 1981 ¢ 1983, data em qu parte para Oxford, em cuja universidade permanece durante trés anos como Leitor de Portugués. Desde 1986 passaa residir em Bruxelas, onde desempenha o cargo de tradutor do Con- selho das Comunidades Buropeias. A partir dessa data passa a viajar cada vez mais, sobretudo pela Europa, Norte de Africa, México ¢ um pouco por todo o mundo. Brutal- ‘mente assassinado em Maio de'1995 no seu apartament de Bruxelas, 0 poeta deixou inéditos alguns textos harra- OOOVCOOCOOOOCDOOCOOOOOCOOCOOVCOOOOOOC0 Ot avexetere’ OOC q 3 SO O00 Omar aAeaonNnacecoann tivos (a publicar brevemente) e instituiu por testamento a Fundagio Lufs Miguel Nava, que desde 1997 publica a revista Relémpago e atribui um prémio anual de poesia. Além de tr@s livros de ensaio - O Pao a Culpa a Es- crita (IN/CM, 1982), A Poesia de Francisco Rodrigues Lobo (Ed. Comunicagio, 1985) ¢ O Essencial sobre Eugé- nio de Andrade (IN/CM, 1987) -, Luts Miguel Nava orga- nizou ainda uma Antologia de Poesia Portuguesa ~ 1960/ 1990, editada em 1991 em portugues e emsfrancés, por ocasiaio da Europdlia (Bruxelas). Publicou os seguintes livros de poesia: Peliculas (Moraes, 1979, Prémio de Reve- Jago da A.P.E); A Inércia da Desergao (& etc., 1981); Como Alguém Disse (Contexto, 1982); Rebentacao (&etc., 1984); Poemas (reedig2o conjunta dos livros anteriores, Limiar, 1987); 0 Céu Sob as Entranhas (Limiar, 1989) e Vulcdo (Quetzal, 1994). Este ultimo livro esté também publicado em francés (Volcan, traducao de Marie-Claire \Vromans, Paris, Ed. Eulina Carvalho, 2000). ‘A presente edigZio retine toda a sua obra postica, acres- cida de quatro textos inéditos entretanto descobertos pelo seu colega e amigo Alexandre Garcia no computador de Lufs Miguel Nava em Bruxelas. Fernando Pinto do Amaral Gastao Cruz PREFACIO DE FERNANDO PINTO DEAMARAI, a toujours pensé qu'une idée de plus n'est pas tune addition. Non, un désordre ivr, une perte de sang-froid, une fusée, ensuite une ascension générale. Henri MicHaux AS CICATRIZES DA LAVA Quase sete anos apés a morte de Luis Miguel Nava, a sua poesia tem‘continuado a destacar-se como um fulgu- rante meteoro no panorama poético portugués das slti- mas décadas. Estreado em 1979 com Peliculas e tendo publicado um total de seis livros até 1995, Luis Miguel Nava deixou-nos uma escrita situada na interseogao entre pelo menos trés vectores essenciais: uma extrema criat vidade metaférica, com um amplo poder transfigurador; uma vontade narrativa muitas vezes espraiada através de poemas em prosa; ¢ ainda uma extrema vigilncia do fluxo discursivo, que Ihe adensa o sentido ¢ lhe confere uma forga expressiva pouco frequente na nossa tradi lirica. ‘Uma das particularidades da poesia de Luis Miguel Nava diz respeito & relagHo que nela por vezes se esta- belece entre dreas semanticas aparentemente afastadas, originando efeitos ins6litos, por exemplo 20 associar 0 19 CODCOD OOCODDOCNDDDOOOCCOCOCOCO0CCOCO00000®, G iG C C Cc Cc c RH C C Cc Cc Cc c Cc iC Cc Cc concreto € 0 abstracto: «Tem furos na consciéncia, este rapaz. Tem a meméria em cacos»; ou: «A prépria alma € eléstica: podemos, assentando um dedo sobre a sua super- ficie ¢ pressionando-a, levé-la a tocar nas coisas mais inesperadas». Poderiam multiplicar-se os modos como se concretizam as unides entre o mais flagrantemente palpé- vel e 0 que, a primeira vista, pareceria incorpéreo (como as jé citadas «alma» ou «consciéncia»). Intimamente rela- cionada com essa tendéncia est4, alids,'a escolha de um titulo como O Céu Sob as Entranhas... Assim se reiinem, elementos provindos de éreas tradicionalmente literdrias € de outras que a literatura tem resistido a explorar, por estarem ligadas aos aspectos mecdnicos ou técnicos da sociedade industrial em que vivemos. fo que se passa, por exemplo, na comparacao dos coragdes humanos a refinarias de petrdleo ou na insGlita referéncia aos «agra- fos» do oéu: «A fala quer-se Srida, de uma arider, idéntica 8 da roupa que nos cobre 0 corpo ou & do céu, de que me esforgo, sempre que dele falo, por deixar & mostra um dos agrafos mais profundos», O desejo aqui formulado de exercer uma fala drida introduz-nos nas questdes da linguagem e, quanto a isso, deve dizer-se que a poesia de Nava nunca perde de vista um exercicio de auto-reflexividade em que se expandem as consideragées disso a que Maria Liicia Lepecki chamou um «discurso metapoético»', sensivel quer em passagens teorizantes — «Bscrever é para mim tentar desfazer nds, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja " Matia Ldcia Lepecki, «O Mar 0 Relampagos, Diario de Noticias, 14/2 11988. 20 ‘embrulhar ainda mais os fios» —, quer noutras presencas da escrita e dos seus artefactos, como quando se evoca a «pagina» a que é necessério trazer 0 —e desencadeanido resulta- dos @stéticos talvez préximos de um neo-expressionismo. ‘Trata-se de'uma forga perceptiva que, azlutinando senti- 21 dos, se traduz também por uma inconsciéncia (e incon- sisténcia) ontolégica do sujeito, por vezes vitima de uma despersonalizagao de contomos quase borgesianos — veja- ~se a referéncia a um «secretdrio», estranha personagem que, & revelia do sujeito, se apropria da sua escrita até vir a tomar-se um desdobramento do préprio eu que escreve: «Nao é sequer possivel saber qual de nés neste momento faz. correr sobre o papel a esferogréfica, de tal forma mesmo aos meus olhos ele se faz passar por mim» Apesar desta fuga a um eu definido, néio se pense na poesia de Lufs Miguel Nava como impessoal ou desca- racterizada, Nada mais longe da verdade de uma obra inconfundivel pelo universo que soube criar, sobretudo mediante a recorréncia de certas palavras que, podendo oscilar de livro para livro, vaio compondo um complexo quadro em que o vigor poético de cada elemento depende dos que, num determinado contexto, o rodeiam. Tais pala- vras ¢ as modalidades da sua ocorréncia ~ p. ex. «mar», «deserton, «coragio», «praia», «pele», «meméria», «corpo, «rapaz>, «cu», «entranhas», «relmpago»,etc.—merece- riam ser analisadas numa abordagem mais demorada do gue esta. Seja como for, se percorrermos com atengio algumas coordenadas essenciais, destaca-se desde logo 0 papel de motor atribuido meméria e & sua forga — uma forga quase de ordem mecénica, bem patente nas frases que mencionam a o seu mais alto cume, funciona sobretudo na dependéncia de certos meca- nismos perceptivos a que chamaria um efeito-flash. Razio tem por isso Gastao Cruz ao sublinhar em Lufs Miguel Nava a importancia de uma arqui-personagem que de- signa por «rapaz-relimpago»? e que corresponde a uma imagem cujo brilho se prolonga desde sempre. sendo * Gastio Cruz, precio & edigdo dos Poemas de Luis Miguel Nava, Porto, Limiar, 1987, p. 10. 25 transportad pela meméria: «trago um rapaz na minha! /meméria». Estamos aqui em face do irrepresentavel, do que nao pode ser descrito ~ «N&o sei como € possivel falar dese /rapaz» — ,¢ a comparagio entre 0 «rapaz> € a «rebentagiio» das ondas faz. propagar ao ser humano os atributos de violéncia e simultaneamente de beleza que geralmente associamos a tal paisagem: «Ainda 6 0 mar contudo o que se vé/florir onde ele chegar. Chamando a esse {rapaz rebentagao/0 céu rasga-se volta dos seus ombros>. O fulgor erbtico deste discurso atravessa, no entanto, as fronteiras teméticas mais previsiveis ¢ contamina tudo © que se relaciona com 0 corpo, abrindo um territétio de Teitura quase inesgotdvel. Nao 6, neste caso, 0 corpo tra- dicional das caricias ou dos beijos a estar em cena ~ nem: sequer, no que seria 0 extremo oposto, 0 corpo como mero sinal da fugacidade do tempo ¢ da vida que se escoa. Para este poeta, o mais indelével resulta de um irresistivel desejo de se expor até ao Amago, até as entranhas: : «Dancei num matadouro, como se o sangue de todos 0s animais que & minha volta pendiam degolados fosse 0 meu (...). A luz que desse sangue irradiava (...) atraves- sava-me os poros e fazia-me cantar 0 coragio (...). $6 num espelho assim safdo ha pouco das entranhas dum ser vivo se desenha a nossa verdadeira imagem (...). A luz que das visceras emana é a de deus, aquela que, por uma excessiva dose de trevas misturada, mais que qualquer ‘outra se aproxima da de deus». Em face da tensZo assim gerada, gostaria ainda de cha- mar a atengo para os elementos corporais dominantes, tendo em conta a sua génese embriol6gica: vemos, entdo, que, das visceras propriamente ditas (ou seja, endoblds- ticas), nenhuma surge individualizada com insisténcia, a0 asso que os Srgiios de origem mesobldstica (por exem- plo, os ossos, 0 sangue e sobretudo 0 coragio) rivalizam ‘com os de proveniéncia ectobldstica (os nervos e a pele), muito convocados por esta poesia. Dir-se-ia que longas paginas poderiam ser escritas a propésito do complexo caleidoseépio de relagées que se engendram entre a «pele», deum lado, ¢ 0 «coragao», do outro. Ao ligar 0 coragdo a0 «destino», atribuindo-Ihe o papel de «rei da criago», enquanto a pele estaria reservado o de «firmamento»; a0 fazer coincidir a pele com um espago celeste - «A pele serve de céu ao corago» ~ ou, enfim, ao comparar, na rvore humana, 0 coragio as «raizes» e a pele 2s «folhas», a poesia de Naya consegue criar um antagonismo entre o profundo ¢ o superficial, que apenas & vencido pela expe- 28 riéncia transfiguradora da paixZo, unindo 0 sujeito a outro corpo numa rara cumplicidade & qual se chega pela via exdtica. Por isso «é sem dtivida em dias de maior/paixio que pelo coragio se chega & pele Conviré abrir aqui um breve paréntesis para sublinhar que, subjacente ao outro lado desses momentos, espreita a sombra da morte, adquirindo a sua espessura em virtude da subtil mas insistente presenga do tempo. Neste con- texto, 0 préprio conceito de eternidade ~ «Sei que existe algures um espelho onde a imagem do mea rosto incor- pora a eternidade» — deixa de se reportar a uma ordem transcendente ou imaterial, mas passa a absorver 0 peso de uma histéria que é, afinal, o fruto do percurso imemo- rial da natureza ¢ da sua evolucao. Para lé desse aspecto (a que poderfamos chamar uma memsria jilogenética), surge aqui a inevitével passagem do tempo, que traz.con- sigo a promessa da morte ¢ do esquecimento e se torna particularmente nitida, por exemplo, nos dois poemas que encerram O Céu Sob as Entranhas. Enquanto «Dos Des- campados» alude a paisagem de um cemitério de onde nos fala um sujeito post-mortem, «O Azul do Mar» dé- nos a terrfvel medida de como a beleza (toda a beleza, mesmo a dese azul que se acreditava consubstancial & realidade das aguas) acaba por se desvanecer ao longo do tempo: «O azul do mar desprende-se da gua. ‘Dos sso que cravei na realidade, onde pensava/ que 9 mar se sus- tivesse (...)/(...)/nem um s6, mesmo pintedo,/subsiste agora/que o tempo tudo’ apaga & minha volta». ‘Voltando as obsessées mais fecundas da poesia de Luts Miguel Nava; gostaria de relembrar.o titulo do seu derra- 29 deiro livro — Vidledo — para dizer que o corpo ¢ a meméria biolégica dos seus érgaos se situa aqui precisamente no lugar de um vulcdo cuja actividade eruptiva nascesse das correntes ¢ contracorrentes da memsria. Se recordarmos 5 diversos tipos de vulcdes que existem no globo terres- tre, os poemas de Nava no corresponderiam aos de tipo havaiano (em que a lava € muito liquida e flui sem grande violéncia), mas sim a certos vulcdes de tipo stromboliano ‘ou mesmo mais fortes, em que as erupgées se tornam explosivas ¢ a lava € constituida por uma considerdvel percentagém de pedras e materiais em estado sélido. Neste caso, é como se nos poemas estivessem incrus- trados fragmentos de uma realidade to recOndita e bizarra ‘que parece estar mais ligada & imaginagfo do que & me- ‘méria, ou, por outras palavras, € como sc a meméria pare- cesse tho estranha como costurna sera imaginagio, ¢ 0 que Vuledo nos mostra é muitas vezes uma rara capacidade imaginativa, sobretudo nos seus textos em prosa, compa- raveis a pequcnas ficgdes narrativas, a contos mais ou menos fantsticos onde se configuram situagdes extrema- mente insdlitas e refractérias a qualquer leitura realista («A Cela», «Borrasca» ou «Os Comedores de Espaco» sio alguns exemplos alucinantes dessa imaginagao). Diga- ‘mos que a respeito da propria poesia de Luis Miguel Nava se poderia chegar ao diagnéstico tragado num desses tex- tos: «Deslocava-se de uma forma insélita: “alheando-se”, como que aproveitando as fendas da realidade e desli- zando através delas, de que assim ao mesmo tempo se tomara o habitante e o portador».. E exactamente através dessas «fendas da realidade» que-a escrita-de Luis Miguel Nava nos atinge e ganha a 30 sua maior intensidade expressiva: tal como a lava de um vulc&o ao irromper subitamente do interior da terra, tam- bém estas palavras parecem provir directamente das trevas do corpo ¢ da alma, do lugar inomindvel ende se formam as sensages ¢ os instintos mais préximos disso a que chamamos o inconsciente — um inconscierte que, ao abrir fendas na prépria linguagem, consegue incuzir em muitos leitores a surpresa de uma ferida nas svas percepedes do real, deixando-Ihes, apés a leitura, algumas indeléveis cicatrizes. 31 ODDDODHODNONDOVDOVOOOOCOOOONODOOOOCON0NND! g a 5 ee < w Hee Zz 6 VV SOS Sov VoOY IDONNDDDNDDO ND VODDDDDOD GND DOONAN VO NOOCO000 PELICULAS NOS TEUS OUVIDOS Nos teus ouvidos isto explode de amor, palavra ampola sob 08 astros funcionando abril & boca das cidades, dos imperturbaveis muros aos quais as criangas que de cristais nos punhos acontecem passam, seus chapéus brevissimos, os indicios de nada, o modo de ler, de acender um texto de amor nos ouvidos, isto explode e entra nesta pagina o mar da minha infancia, meigo no modo de lembré-lo, Ié-lo, de acender de caricias um texto na meméria. De astros as ruas eram cheias que 0s cuspiam hoje na minha mie de outrora, nas criangas de Agua, nos pensamentos nenbuns que eu punha em seus joelhos, em seus amaveis joelhos a que 0s astros acor minha mie que arranco ao sono, &s areias v:rgens das palavras, que amanhecido eu gero, as mos ‘fo de repente em panico nos muros. 37 EM SINTRA As Gguas maravilham-se entre os labios ea fala, répidos em Sintra espethos surgem como passaros, a luz de que se erguem acontece as aguas, a flor da fala divide os labios e a ternura. Da linguagem rebentam folhas duma cor ineémoda, as de que maravilhado de Agua surges entre livros, algum crime, um menino a dissolver-se ou dele os labios ¢ ergues equivoca a luz depois. Répidos espelhos entéo cercam-te explodindo os passaros. 38 HA UMA PEDRA FERCZ Hi uma pedra feroz, um rapaz, hé 0 olhar do rapaz,atado a pedra, © olhar do rapaz, a minha casa, © olhar do rapez as vezes € a pedra. 39 IOOVDDOOODVOCVOCOCONO! OOOOCNDDOOOCOON OC war O TANQUE DE BASHO © tanque junto a que o crepisculo mo traz é 0 de Basho. . ‘A gua maravilha-se. Inquinam-se as imagens, a pequena rotagio do outono, 0 dia decompée-se, o sangue explode contra a claridade, Um n6 de leite a nudez cresce pela Agua. CONTRA OS FLASHES E terra doutro 0 corpo dum rapaz, o leite amarrotado nele o incéndio corre contra os flashes, minimo'relampa- go de terra 0 pogo da alegria. {As paisagens os mitidos reiinem-nas & mao, a minia- tura delas é o seu rosto. Voltam-se as paisagens como as paginas. Um deles, forga macia, ensanguentado e verde ingu na-se na luz, uma fralda de inc&ndio hé-de escorrer-the pelos labios. Eis 0 rosto, eis © pogo, péem-se as imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando. Os mitidos a nudez. destii-os nesses lébios. 41 ESSAS MANHAS, Essas manhas, as mais profundas e por que eu cami- nho para as ondas, manh&s como um pogo, no perfil das aguas ougo-as eclodindo 0 leite a avolumar-se pelas cristas, esta pagina redu-las a uma rdua anotagdo. A luz por dentro agora invadem-na outras ondas. 42 ARS EROTICA. Eu amo assim: com as mis, os intestinos, Onde ver deita folhas. 43 IOOONVODOOOOOOCNND: oe OOV0000 (olelererelerenererenere ARS POETICA, O mar, no seu lugar por um relmpago. O POEMA E um arbusto, armados ainda nele os ultimos relampagos, © poema. A pedra cai no ventre da gua —a fruta poderosa, as paginas onde a brancura se estilhaca, o lengo como um relampago. s ces brilham ao alto = sio eles 0 arbusto de imagens onde a forga mitida como um ledo fris a atravessa o poema encarcerado em sua propria imagem. ‘A pedra, digo, cai no ventre da gua como um punho — agora esté no fundo desta imagem, 45 ATRAVES DA NUDEZ Este garoto € facil comparé-lo a um campo de relémpagos encarcerando um touro. Através da nudez véem-se 08 astros E onde o poema interioriza a sua propria hipérbole, a paisagem. Movem-se 0s tigres como cAmaras na areia, prontos eles também a deflagrarem. A manha espanca a praia, é impossivel descrevé-la sem falar dos fios deste poema que a cosem com a paisagem 46 ATRAS DA PAGINA. ‘As mios no poema, pelas paginas acima escoam-se os espelhos, a trovoada vermelha emerge das imagens. A trovoada redonda. Uma revoada de espelhos € a alba, hé pogos nos espethos onde a nudez se precipita, a luz mordendo a agua, Do poema véem-se as trovoadas iméveis atrés da pagina, as imagens, da alba, as dum rapaz arriando a noite, os astros a afluirem-lhe aos cabelos. Véem-se a tona da trovoada os lengos caindo na manha, com as veias de rapaz as desta a confundirem-se, depois os pogbs da nudez abertos pelos astros. Esse rapaz. as suas préprias veias © amarram & manha. Nao me olhar ele ateia-me. Pequenos inc€ndios, os da abébada do poema; arrancam-Ihe a nudez. Esté alguém ao poema como a un. espelho. 47 OBOKCOOTDOOODDCOOVOCOOCOCOODOOOOONOOOD! O° eeneannanacnannccarr LAC OMAR As ondas fazem-se as imagens, a manha do sol caindo os raios esticam-na na Agua despenteada. © macho cujo peito em poderosos € lentos haustos & para Melville © mar do sol servem-lhe os raios de cabelos. renner ream RPE A EO SKETCH ‘Vem 0 rapaz.& pagina, é 0 seu sketch, a luz as vezes € de tal intensidade que a pégina fica em branco, outras porém mais fraca, 0 rapaz pde 0 poema em perspectiva, a gua ainda mal alinhavada nas bainhas dela depois ava-se, a tens%io no poema é entGo tanta que as imagens saltam em descargas, € assim colhido em flanos varios, hd alturas em que apenas um pormenor do rosto vern & pagina outras em que a ela aflui a nudez toda, um né de imagens avoluma-se, 0 rapaz leva o siléncio ao méximo, acelera-o, é onde ele se ergue que ha no poema uma pequena confluéncia de astros ¢ a rebentagao da luz 6 id@ntica & das ondas, as imagens esticadas sob a pele irrompem pelas mos, abrem janelas sobre os rins, a intensidade do rapaz é entio tal que é ele quem pe em branco a pagina, 49 APENAS A FOLHAGEM De novo o encontro onde as linguagens abrem umas sobre as outras, 0 rapaz. Da arvore encarnada, meio dentro da meméria, apenas a folhagem salta pelos olhos e se espalha pelo rosto, o que me poe a bragos com as palavras. As raizes entram-Ihe no sangue, abrem-lhe internos focos de paixao, nao tarda que penetrem pela terra a cujos intestinos vo buscar com que saciar-Ihe os olhos ~ as visGes ascendem tumultuosamente, como sei- va a ferver, creio que por vezes trazem pedra misturada. Lembro-me de o ver assim, todo ele tomado pela forga da folhagem. TE PORT oo “ee, oe, LENTURR o a Unie do: C208 Fe ia Some 50 OLHANDO O MURO E assim ficava olhando o muro. Nzo atentava ento na claridade em que a casa e a terra a essa hora faleciam, nos fragmentos varios do horizonte de que a luz fazia um jogo insuportavel. Tao pouco em como a sublevagao das paisagens é matéria da linguagem, to pouco nisso ele atentava ao colocar o olhar no muro, outro suporte procurando, a ele idéntico, no leite & superficie do qual pequeninos nds de fezes eclodiam, nés que com uma vara ele agitava e perturbava com fascinio. Metade do seu rosto entrava pelas paisagens, em prisioncira da fabulagdo de que apenas os animais o libertavam contra a face Ihe quebrando imagens fortes — as fees imiscuindo-se no muro, a luz uma infeogao que alastra pelo leite, a vara de agité-lo desviada desse oficio. Estranhos actos cometia ele entio, deles 0 mais minucioso sendo a introdugo de minimos calhaus nos intestinos. 51 OOOOOO0! OCOOCCCOCC0C0N0S oe) OOOOCOVVOOVO0C ¢ iG, C (Ss C c sOOOOLr OC AQVAEEQAQTOIARAONOC A PRETO E BRANCO- Uma mulher encosta-se a um muro, encosta-se meméria. Veste duma maneira simples, uma blusa, uma saia cobrindo os joelhos, talvez. uns tamancos. Tem ainda, amarrado A cabega, um lengo negro, negros alids e brancos todos os tons em que se veste, negros os tamancos, um casaco de 14 sobre a blusa, negras ainda algumas das riscas da saia, brancas as outras, como a blusa. Encosta-se ‘a0 muro aonde cola as costas, os ombros ¢ depois uma das faces, assim é mais facil ver-Ihe o rosto. As méos encosté-las-ia também se nfo segurasse um lengo branco. Aperta-o entre os dedos, fé-lo passar entre eles, uma pequena serpente. Ou entio amarrota-o, faz das palmas das mios uma concha onde esconde, 0 lengo assim desa- parece totalmente, apenas as mios se véem projectadas para a frente, dir-se-ia que rezam. Depois, sempre ocul- tando o lengo, levam-no ao rosto novamente de perfil, tudo a preto e branco ainda, ou € 0 rosto que desce até as mios, mergulha no lengo, talvez. este € a Iingua se pro- curem, uma lingua pelo lengo adiante, uma Iingua provavel que vermelha, nfo, é tudo ainda muito a preto € branco, é tudo ainda demasiado a preto e branco para permitir um pormenor vermelho. 52 \ 1 i ONDE ANUDEZ | | ONDE A NUDEZ Escrevo onde & nudez cabe o papel habitualmente atribuido a uma janela. Quando afasto as cores para no lugar delas nfo deixar senfio a luz ou me debrugo ao peitoril sobre os meus proprios intestinos, a ficgao fica por conta dos relampagos. E como se habitasse uma cidade que tivesse um espelho por subirbios © 0 mar viesse estilhagar-se ao fundo da meméria, onde se encon- tra 0 coragdo. Abro na pagina um buraco onde alicergo a casa, as letras vém as janelas. 55 DOODVDODVONOD OOOO DO CONVO ONNDO OOO COO O00 Ot EM ENTRELINHAS ‘Tem furos na consciéncia, este rapaz. Tem a meméria em cacos. Que fard da minha infancia quando entrar no rasgiio com que deu a todo o comprimento dela? Que sabe cle do labirinto onde uma letra se extravia ou do horizonte ‘em que pressinto um sublinhado? Ignoro o que ele fard, bem como o que diré ao ver num poema o céu em entre- linhas. ASAIDA Havia no seu corpo uma safda. Podia através dela ir até onde quisesse, de momento que a porta nao ficasse a bater com um ruido que a maior parte das pessoas confundia com o bater do coragaio. Nao consta que o sangue o perseguisse seno muito raramente ‘e mesmo assim nfo para além da beira-mar. ‘Trazia hé algum tempo na meméria um espelho onde quem quer que se abeirasse dele podia contemplar-se. Pelo espelho era possivel ver os pogos através dos quais a pele desaparece, as ondas momentaneamente im6veis, as areias a assaltar-Ihe o coragio, cue Lac < OC 56 57 C BREVISSIMO CREPUSCULO Escrevo, o que ndo deixa de, por meias palavras, fazer ver as ondas ascendendo do fundo dos bats. A Agua a contas com as trevas. Fascinam-me essas ondas, bem como uma pedra &s mos de quem procura abrir nela um sorriso, 0 ¢6u que neste poema sei subentendido ¢ apenas aos olhos dum rapaz a paixio trouxe num brevissimo crepiisculo antes de ganhar velocidade e, nos meus ombr0s, as mios desse rapaz quase de rapariga prontas ‘2 Voar. Sinto @ romper na boca os dentes como a ventania. 58 OS DEDOS O mar recua,o leite e a lingua digladiam-se ao sentirmos a chama largar leite, aliarem-se 1a boca ao leite os dentes comovidos e ao contacto do mar a romper nela os dentes como a ventania. Persigo assim o mar, no encalgo dele os dedos avangam na meméria, as Vezes acontece en sentir, mesmo por baixo dos cabelos, a meméria aligeirar-se e arderem nas midos os dedos em desordem. 59 DOOVCOCDOOCOUCOOCOCOOCOOOOOOCOCOOO00000 AINDA AS VEZES ‘Avango devagar, vio-se os amigos na ressaca de cujo amor avango assim deixando + ficar contudo aos poucos para trés, embora o mar Ihes sobre ainda as vezes do sorriso. Procuro esses amigos. E possivel atar-lhes o horizonte entre o cabelo e acari ainda uma vez. mais. Fazer-lhes através das mios passar 0 sopro das pedreiras. NAO MUITA VEZ Nao muita vez nos vemos, mas, se poucos amigos hd para falar dos quais me sirvo de relampagos, de todos 6 ele o que melhor vai com a minha fome. ‘Os dedos com que me tocou persistem sob a pele, onde a meméria os move. ‘Tacteiam, impolutos. Tantas vezes © suor os traz consigo da memsria, que nfo tenho na pele poro através do qual eles ndo procurem sair quando transpiro. A pele é o espelho di meméria. 61 MANUEL Fui ter com ele & Feira Popular, donde minutos Gepois paitimos para Sintra. Lembro-me de 0 carro avangar & velocidade do meu sangue. No Guincho, onde momentos antes de 0 sol se por parémos, vi o mar ganhar no espfrito dele outra ondulagao. De nés, assim o soube, erguem paisagens as viagens. Entre a pele e 0 coragio algam-se as pontes. 62 AINERCIA DA DESERCAO DOOVONDVCOOODD DOO OO OOCDOONOCOCOC00000! farareve! ... entrar num quarto onde nao hé sendo um pequeno espelho ¢ uma cadeira do outro lado, 0 ruido das vagas desertando, espelhos desertando na peugada das vagas, onde nao ha sendo a inércia da desergao. 65 ... jogar entiio; fazer coincidir, uma a uma, as cartas com esta pagina, de forma a que, quando der por mim, esteja a escrever jé sobre o valete de ouros, a fazé-lo tomar parte activa na ficgio. .. um texto onde o cinema se insinue, a um tempo apa nhando-Ihe as imagens e os seus miltiplos sentidos. sn trata-se dum filme, as personagens abrem brechas no écran. «+. um texto a que preciso de habituar o clhar como a uma luz mais forte. 67 5° Q 5 5° 3 5° 3 ° oO 5 ° ae ++» da casa a cuja porta acabo de bater a maior parte esta na minha infancia. .. havia um patamar para o qual davam alguns quartos € a partir do qual a luz da clarabéia e os degraus se despe- nhayam juntos ¢ em desordem. .-/ de novo 0s subo, ao respirar 0 ar comunica com a me- inéria: 68 .-- As vezes extravio-me, ao enfiar pela meméria as ondas saem-me ao caminho. percorro assim a praia ao longo do seu brago. .. servindo-me os relampagos de sede, todo eu tremo a vista dessas dguas. 69 .. ague vem ele ao poema, abreviagao das ondas? _.. transforma-se aos seus passos a paisagem num cendrio, uma gravura. _.. 0 mar sobra-lhe as vezes do sorriso, 10 .. 0 mar, incendeiam-se-Ihe as cristas ao contacto das falésias. == COMO se a luz se formasse onde se forma 0 cuspo. © coragao contra que.as ondas se debaiem. n COODDOCOCOD000O0: OQ ODDO OOOOOON0ONOOON o -- sinto ... 0 mar, sentindo as mos desse rapaz uma janela abrir ‘ faltar-me esse rapaz. como a respiragio. ‘como um sorriso. CS esse rapaz a lingua a interpelar-lhe a pele. ao espirito do qual as ondas vinham rebentar. # 3 -Tembro-me de 0 seu a pele, séntindo ao.fundo a sorriso abrir até A agua. de cada poro sett o mar rebentar: 2 2B a minha propria mae poderd vir sentar-se onde por ora se ndo vé sequer o mar. wo aE de novo 0 mar se Ihe adiantar no rosto. «0 frio encapelado. 14 © mar de que deflagram as ondas por acgdo da meméria. _- ameméria, sentindo-a da cabega aos rins. +. 0 arrebatamento.a que sto dadas certas aguas. 15 CODDOODOOOSCDOOOOOODOOOOOCOO0 000000 Or a0 mar replica a dinamite. «+ @-Vaga, incendeia-se-Ihe a crista ao rebentar nas pedras. pedreiras de que, tendo-as ouvido rebentar na minha infancia, ainda --- Como se a mana me tivesse escolhido a mim para agora me saltam estilhagos pelos olhos. tomar consciéneia de si prépria. C o ..- 05 dentes arqueiam para dentro da meméria. . inquieto coragéo, sombra das vagas. LOOC 76 7 _.. 05 méveis abrem-se ao nevoeiro; procuro entre eles a ferida a que com jeito encosto estes degraus. a porta, um campo 20 fundo do qual sinto o mar lavrar como um incéndio. .-:distribuidos 0s dedos pelos pogos. 78 «++ disponho alguns retratos junto 20 mar, 0 mar rebenta- -Ihes em cima ¢ atravessa-os, fica dentre deles. © pio divide-se entre os dentes e a meméria. +. 0 olhar que-a solidao vai devagar apedrejando, 19 DODVCOVDDCOODO ONG OC OOOO CODNCCOC00000 C or perdia-me & procura da humidade que a maré deixa nas rochas. ...0 Sol de siibito esverdeando 0 céu. «++ 0 mar, uma luz cava. 80 a vaga no rastro da qual me fica as vezes o intestino a mostra perdeu-se entre a névoa. +++ do verao no ha j sendo os ossos. ... um eu ivrepardvel 81 DODDDODD ODD COON HOOOOONOOOONDO0OO0O0N0D000000 COMO ALGUEM DISSE et FALESIAS Poder-me-o encontrar, trago um rapaz na minha meméria, a casa a uma janela Ga qual ele vers como um sabor & boca, falésias onde o aguardo & hora do crepiisoulo. Regresso assim ao mar de que nfio posso falar sem recorrer ao fogo e as tempestades a0 longe multiplicam-nos os passos. Onde eu no sonhe a solidao fé-lo por mim. 85 RAPAZ, Nao sei como é possfvel falar desse rapaz pelo interior de cuja pele 0 sol surge antes de o fazer no céu. 86 AGORA QUE DE NOVO O mar voa nas rochas, como se a manha se formasse onde se forma 0 cuspo eu aproxi- mo-me dele ¢ arde a pele de que a meméria vem lentamente tomar conta. ‘Avango com cuidado, agora que de novo nas praias 0 mar solta os ces. O que chamdvamos ‘vero so pogos através dos quais se some a pele pela meméria dentro. 87 OOQDQ0000 dC 00 O OONCOO™’ OO00 Oo O0ON00900000N0 AO MINIMO CLARAO Talvez. seja melhor nao nos voltarmos a ver, a0 minimo claro : das miios a pele se desavém com a meméria, ‘As mios so de qualquer corpo a coroa. Das dele jé nem sequer 0 itinerério sei hoje muito bem, onde o horizonte se desata o mar agora regressa ao coragdo de que faz parte, Ainda 6 0 mar contudo o que se vé florir onde ele chegar. Chamando a esse rapaz rebentagio, © c6u rasga-se a volta dos seus ombros. 88 A POUCO E POUCO HG entre 0 coragao e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele as vezes con- tibuem. Olhando-o nos olhos nao € fécil destringar do alean- tilado coragao a cama onde dormiamos, a0 mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se. Por esse coracao, ainda que escarpado, ere, no entanto, fécil alcangar a pele, o mar & forga de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva 89 JA NEM SEQUER, As ondas que se encontram ainda agora em formagio no esptrito dele jé nfo vém rebentar ao men, Por mim nao volto a vé-lo, encontros houve com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas. J nem sequer dele quero ouvir falar, saber que se ele fosse uma cama estaria por fazer nada me traz agora além de desconforto. 90 BASALTO Agora que se o mar ainda rebenta € por acco da meméria, arrancam-me basalto ao coraco ondas fortissimas. ‘Ainda 0 vejo &s vezes por af, olhamo-nos entdo como se a boca nos viesse 0 sabor do nosso proprio coragao, mas pouco hi a dizer acerca disso. 91 OVONOCOCOBOOVO0000000 OOOO 9OV00NO0OO000C A BEM DIZER céu desembaraca-se do sangue, espalha-nos agora a solidao ervas nos rostos. mar vai pelos ares. Nao ha, a bem dizer, forma nenhuma de 0 coser com a esperanga. 92 oO cEU Assoam-se-me & alma, quem como eu traz desfraldado 0 coraco sabe 0 que querem dizer estas palavras. A pele serve de céu a0 coragao. 93 Oo00001 NUDEZ NA PELE . oO ° H oO Onde hé quem tenha a pele tenho a meméria, sepultura O mar, venho ver-Ihe a pele a rebentar 5 nenhuma atingird profundidade igual & desta a0 longo das falésias, o que sempre 5 nudez com quem a pele sempre tem sido hospitaleira. me traz a exaltagio desses rapazes que circulam : por Lisboa no verio. O mar esté-Ihes na pele. Partilho Oo ‘com eles os quartos das pensées, sentindo as ondas 2 a avancar entre os leng6is. Perco-me a vista 3 da pedra onde o mar vem largar a pele. 5 o ° oO ° o . Oo 3 3 94 95 OOOOC000?" A VARIOS METROS DE PROFUNDIDADE, Quem como eu nio sentiu j4 no corpo um dos seus 6rgios a afundar-se? Sentir nele os bronquios, por exem- plo, ou o figado, o intestino, a varios metros de profun- didade torna-nos, entre outras coisas, impacientes. Mais, contudo, quando a pele, que com eles sonha, devagar nno-los espetha, subterranea, ‘A MEMORIA Assim é a meméria, Onde quer que cu me encontre abre um buraco, entra na terra, o que ms dificulta a ‘marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me sentir ev até onde nem mesmo as minhas mios, ainda que escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada cla deixa de aceder por causa deles — as, vezes acontece essa inquietante coisa de, num prédio, ser como se ela atingisse 0 andar de baixo 01 outro mais abaixo ainda, 0 que € de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse nada ter notado, eu ficaria atOnito. Mas é na pele que tudo se refiecte com maior intensidade — a meméria abre um sulco através dela, espalha-se-Ihe & tona com tudo o que da terra atris de si carrega até se misturar com a saliva, ¢ qual — com- pletamente subterrainea — € 0 que por fim Ihe serve de coroa, aquilo a que chamamos, referindo o mar, rebenta- gio. Vem sempre dar & pele o que a meméria carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos. os destrogos vém dar a praia, 7 RECUO O céu recua, da meméria eu ja nao sinto senio as mais violentas cristas nas gengivas, nde regressa, € pelos dentes que a memoria recomega a subir como a maré. aminl 98 COMO ALGUEM DISSE Nao € que eu seja sibio, como entre as de mérmore alguém disse ser sempre uma coluna de madeira, ‘mas creio jf ter visto um livro brilhar come se fosse o mar quem nele ao rebentar depositasse 0 texto. }GOOOODOCO000 Oo ONOODODOOOOCGOONLOOOON0GOND LOUBLI A minha mie morrera. Ninguém a nio ser eu de tal se deve ter apercebido, o que sou levado a crer pelo facto de as pessoas se admirarem com a tristeza que os meus olhos nio logravam desmentir. Suponho que a devo ter incine- rado, porque dela me lembro que couberam os restos numa pequenina uma que, sozinho, eu préprio transpor- tei de autocarro para 0 cemitério. Para que os demais passageiros a no descobrisser:, ocultei-a, junto duma boneca, no respectivo bergo, entre os lengdis. Sentadas & minha frente iam uma mulher e uma mitida, a qual, para minha grande apreensio, se preparou vérias vezes para vir mexer no bergo, 0 que ndo fez apenas por ao cabo de algum tempo.a mae a ter repreendido. $6 algumas horas depois, subindo eu, a pé, uma das ruas onde, na minha infancia, com mais frequéncia passara em férias a cami- nho do jardim, dei conta de que, ao deixar no cemitério a.uma, me esquecera ile fechar a sepultura. 100 REBENTACAO EU, ELE H& quem de quanto escreve faga timeis através dos quais se move sem ser visto. Quando, por exemplo, eu digo ou escrevo eu ow ele, qualquer dessas palavras parte em busca de alguém a quem se ajuste. Sao palavras que sufocam, que boiam & deriva até encontrarem algo com que possam respirar. Sob eu ou ele, ou qualquer outra palavra, hé um ade~ sivo, uma dessas substincias cuja qualidade as vezes deixa muito a desejar, de to dificil que € fazé-las aderir a0 mundo e umas as outras entre si, ou de tio fécil que € puxar tima das suas pontas sempre sola. ‘Aderir, neste contexto, 6 uma palavra que podemos tomar em qualquer dos seus sentidos: seja porque, embora sempre na iminéncia de se descolarem, de perpetuamente ‘0 mundo as rejeitar e as sacudir de ncvo na borrasca do vazio, a ele aderem na medida em que se colam, seja por- que no mundo se filiam, a ele aderem como a um clube ov um partido pelo qual desde essa alture passam a bater-se. ‘Uma palavra é uma coisa que se ensaia, uma expe- riéncia, embora, ao recolher que nele hd de musical, de luminoso, o que dele é possivel reunir para haver lu2, as ve7es, se a puxarmos, acontega vir atrés a propria pele do mmundo, ou mesmo a sua came. Umia palavra faz da pr6pria pagina onde a lemos a substancia do seu espirito. 103 ,OOOVCOOO oc O¢ COOGGOQDNOOOUOCCOOCOOC oan rc OS NOS DA ESCRITA Escrever é, para mim, tentar desfazer nés, embora 0 que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A propria caligrafia € sufocada. Hi, todavia, um momento em que as palavras sto cuspidas, szem em borbotdes, ¢ 0 sangue ¢ a saliva im- Ppregnam o ser E impossivel separd-los. Por trés talvez nao haja mesmo nada. Sao palavras que niio esto ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva jé no passe. Oprimem toda a pagina, através da qual deixa de ser Possivel respirar. Tapam-lIhe os poros. A prépria chuva que neles caia nao se escoa. 104 DECALCOMANIA Palavras hé que, como se as coisas a que esto presas encolhessem, ganham folgas. Outras incham. Nao raro os poemas so protuberdneias assim. E quando o sol se poe entre as palavras, quando entre elas suporiamos ouvir o mar bater, que com major inten- sidade se revela a puruléncia. Cosida interiormente ao nosso espirito, a paisagem — como se com ele formasse um né ~ jamais por nds seré compreendida. O mar, bata ele onde bater, € uma decal- comania que no podemos arrancar sem que atrés fique 0 nosso préprio corpo em carne viva. 105 INTRODUCAO ‘Atei uma ligadura ao mundo. ‘Seguindo uma estratégia diferente, hé quem 0 apara- fuse, ajoelhando-se na terra, ou abra nele um olho, uma pupila, Por cima dele 0 céu € elistico. Eléstico, adesivo, eis dois dos atributos que, a0 dar por acabado 0 livro de que este texto pode, entre outros, ser a introdugo, mais me fascinam. ‘A propria alma é eldstica: podemos, assentando um dedo sobre a sua superficie e pressionando-a, levé-la a tocar nas coisas mais inesperadas. O real um vidro pintado sob 0 sol berrante, as, coisas prendem-se-me ao espfrito. Do mar, para nao dar senio um exemplo, fiz a minha méscara integral. 106 ATE A INFANCIA. Tive hoje, olhando o céu pela janele do meu quarto, a sensagio de que ele se me entranhava até a infancia. Nunca supus que em mim houvesse uma profundidade capaz de absorver uma to extensa superficie azul, a qual vertiginosamente reflufa por mim dentro, iluminando espacos de cuja existéncia eu nem sequer desconfiava. O certo € que, ao atingir maior profundidade, a cor se Ihe alterou sensivelmente, embora a natureza dessa mutagaio nfo fosse propriamente de ordem fisica. Foi como se 20 cchegar a esse ponto, tendo a bomba da meméria comegado a trabalhar, a luz que sobre ele este mecanismo vomitava The alterasse a propria consisténcia e furiosamente arran- casse a0 coragao da terra aquele que, a un ritmo idéntico, eu sentia acelerar-se-me entre 0s 0550s. 407 OCODOVDDONO CODCOD OOTCOCOCOOOOD COON COOCO0000 Cc OOO oO ANAECHK oo0c VOOOQAC oe NA GAVEA Ocorre-me de vez em quando a ideia de que o homem Que nos barcos sobe A gavea o faz navrealidade apenas para perscrutar a sua propria pele, obter dela uma outra perspectiva, funcionando 0 mar como uma representacao muito aumentada, qualquer coisa como uma metéfora ou uma lente. E pelo menos desse homem que eu me lembro. sempre que sobre a minha pele, inquieto, me debrugo, a avaliar os mais leves prentincios de intempéries. 108 CISAO Gostava de saber até que ponto a ideia de céu © a de unidade andam ligadas, Sé assim poderia avaliar que peso tem 0 facto de eu sentir que 0 céu se encontra dividido uma das partes se alojou transversalmente no meu corpo. Tal é As vezes 0 seu peso, que me vejo constrangido a andar dobrado. 109 O CEU AGRADA-ME PENSAR 0 céu agrada-me pensar que é a meméria de dois ou trés amigos, aqueles contra cujos lébios a partir de dentro empurraremos docemente os nossos nomes ¢ que, quando Jevam a comida A boca, sabem que é a nés que esto a alimentar, So dois ou trés amigos, aqueles s6 em cujos coragdes enfiamos achas, o clarao atinge-Ihes os olhos, pensardo: hoje a meméria é como se a trouxéssemos em bragos. Nao sei se quando o mar thes vier ao espirito 0 ‘ouviremos rebentar, o certo é que por ele 2s vezes sobem as marés. Ha ondas que se vé terem por cle passado antes de contra os nossos corpos deflagrarem, 110 SO PARA MIM Queria ter o sol s6 para mim, té-Io de forma a dele poder de vez em quando ceder parte apenas a um dos meus mais fntimos amigos. WI COOCOO000C0000 O OOOVDDONOOGIVOVOOOOOD’ lolereren Ci © Cc ¢ C O CHAO As vezes acontece-me sentir que 0 chio existe simul- taneamente em varios nfveis, como se, poisando eu nele os pés, me interceptasse ao mesmo tempo os tornozelos, 05 joelhos, a cintura, e, mais abaixo que os primeiros, em diversos outros planos continuasse a caprichar nesse exercicio, de tal forma que, por fim, também eu acabasse por me ver multiplicado, distribuindo pés por todos eles, pisando a um s6 tempo varios niveis, transparentes uns, ‘opacos outros, procurando o préprio cerne da linguagem que, maledvel, permedvel ¢ 0 que mais quisermos de adjectivos que a aproximem desse chiio, o torna possivel, sustentavel, e me faz andar sobre ele como o Messias sobre as éguas. 2 CRAWL ‘As vezes, entranhando-me num espelho, consi; nele duas ou trés bracadas sucessivas. 3 ESPELHOS O REAL Um labio contraindo irrealidade Levado e revolvido pelas vagas ~€ isso 0 que me traz do real, estou como uma mesa pos:o até 20s Oss0s, empresto & pagina os meus ossos ¢ ao escrever © mar, de que os espelhos so remi & como se tivesse a mio dentro dum espelho. Na us CODON OOO OOD DODO VDOC GVVODNOVNOCOOO OND OODO Ol LO c A LETRA ERRANTE ‘Aqui, como se o livro, onde o atingisse 0 mar, se desfizesse ¢ refizesse e nele por fim a letra errante, essa insidiosa letra ha tantos anos & deriva, achasse o espago onde coubesse, principio. 116 WASHER De vez em quando a roupa enfia-se-ne toda para 0 coracdo, fazendo dele a maquina ¢ do sangue o detergente, ea pele vai atras dela, as vezes precedida ainda pelo pr6- prio tempo. Sio séculos e séculos que nele nessas alturas revol- teiam: véern-se-me os ossos ir ganhando aos poucos um. sentido que s6 quando 0 tempo por eles passa como uma corrente eléctrica os anima. 417 AO ACORDAR ‘Ainda mal tinha acordado, veio-Ihe & meméria de sibito 0 rapaz que era costume pagar na leitaria um copo a todos os amigos. O dinheiro acendia-se-Ihe nas mios antes de 0 por sobre o balcdo. 118 O ESPELHO 0 céu imteitigou-se a todo 0 comprimento do vidro ao levantar a persiana. Levou as méos ao rosto, atravessou a sala, ao canto da qual reinava o espelho, ¢ aproximou-se dele como 0 nao fazia ha muitos anos. 119 ROROROROLOROLOLOLORC) COQG0OOO0 Ut OOO00™" OOODOOCOHTC c =I | o RAPAZI ee 7 OINFINITO Foi h cerca de um ano mf 08 vi, onde o granito e ia ae Gostava de passar pela experiéncia de um desses c s#o consanguincos. ' espelhos em frente dos quais um outro colocado — sen- « Seguiam abragados um tira minha imagem multiplicar-se por mim dentro até a0 “ : isto justamente o infinito — o interior 0 outro, 0 pensament infinito. Porque é isto jus : lengol de aos Gotha ae de um espelho em face do qual outro foi posto. Sempre o ibiguaedarehival denn auiech * que dois espelhos amorosamente se interpelam, qualquer 'pacao. : deles, incorporando 0 outro, o atravessa e,carregando-o consigo, se coloca, perfilado e atento, do outro lado. 120 at O AMIGO As vezes procurava-me, trazia no sangue a accntuagéo do corpo, 0 que no fundo dele é maritimo corria & superficie. 122 A DESCOBERTO ‘Trazia 0 coragiio a descoberto, antes ainda de 0 céu cicatrizar eu via-o por af, aproximava-se ‘do mar como se a forga do mar fosse a dos espelhos. 123 ROLOLOLOLOROLOROROLOLOLOLOLOLOLORG) JOO GE ODDO ONVOU000C Cc PAIXAO Ficdvamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos situar num mesmo poema o coragdo e a.pele quase podiamos erguer entre eles uma parede ¢ abrir depois caminho a gua. Quem pelo seu sortiso entio se aventurasse achar-se-ia de sibito em profundas minas, a meméria das suas mais longinguas galerias extrai aquilo de que € feito 0 corago. Ficéivamos no quarto, onde por vezes ‘0 mar Vinha irromper. E sem diivida em dias de maior paixio que pelo coragdo se chega & pele. Nao hé entdo entre eles nenhum desnivel. 124 PAISAGEM As vezes, afastando-nos, do cume dos nossos coragdes sentfamos ‘omar estalar a toda a nossa volta, havia sobre ele um traco idéntico ao de um vidro fracturado. 125 A BOCA A boca, onde a meméria vem levantar fervura, contrai-se, h4 quem a sinta de siibito emergir da transparéneia, O mar, hd quem o faga subir no encalgo de! nos vai para a mem6r que todo 0 nosso coragio fica A mercé das aguas. quando a0 engolirmo-la a saliva 126 | 1 PAISAGENS, a em So outras as paisagens quando algu as v6 pelas janelas do seu préprio coragHo ou quando com esse coragio ; 4 pr6pria estrada est comprometida. 127 OODOCOVOHODOOOVOCODHOODOCOONDODOO00D00000 a DESPENHADEIROS cs A luz solidifica; ao desfazer-se-nos ¢ © gro no coragao, onde a meméria o vai moer, © sangue € quase espftito - a luz abre os nossos coragées despenhadeiros, E sempre o mar o que, no fundo, quem por eles descer faz vir & superficie — 0 que dos olhos ‘nos rola, se desprende, 0 que fulgura no fundo da memoria, Entre o mar e a miisica hé uma sflaba, G 128 MERGULHO. O céu mal se equilibra, do mar, dele no corpo 0s coragdes sendo embaixadas, irrompem as falésias e nés, como se as vissemos melhor quando sobre elas o mar poisa uma das asas, entramos por nés dentro até de nés nem mesmo a mais pequena marca subsistir na 4gua. 129 ENTRANHAS O céu descai; agora que alguém fez dos nossos coragées refinarias, © fumo irrompe dir-se-ia que cheio de emogdo das chaminés. ‘Aqueles a quem servem de entranhas as da terra mal padem deslocar-se; até j4 nao haver senfio céu contra 0 coragio, sobre eles poe subterraneas nuvens 0 petréleo. 130 ABISMOS, Entre estes meus amigos através de cujos coragdes arde o horizonte € a ponte Ga qual o seu sorriso era um dos arcos abriram-se os abismos. 131 CVOVDVONVVOHOOVOVOOCOCOCC0OO0GN00 2 9 ° ° ° ° O VEU A chuva jé nfo € uma mera hipétese, sentimos . cobrir-se de saudade 0 céu como de nuvens. 0 véu que 0 coragiio pas sobre as coisas a elas aderiu duma tal forma que tentar agora retiré-lo & desfazé-las. 132 POEMA INICIAL Poder-me-do entender todos aqueles de quem 0 coragao for a roldana do pogo que Ihes desce na memsria. Se alguma coisa vi foi com o sangue. De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderé falar quem o fizer de mim. 133 HOSANA Disponho-me a jogar; enquanto ao préprio corpo se alarga a cabotagem sei de alguém ‘a quem 0 coragdo oxida e de um xadrez ‘a cujas pegas também j comegam a chegar as Aguas. 0 jogo em breve nao seré sendo a forga do mar a expli O cheiro a carne crua do mar move-me as pegas. 134 XADREZ, As vezes entretenho-me a sentir cada palavra minha transformar-se em tantas quantas as pessoas que me es- cutam, As palavras multiplicam-se, itrad:am, ficam-Ihes no espirito como esses passaros que, entrando em nossas, casas, se debatem horas infinitas contra os vidros. Eentio que, com frequéncia, me apetece abrir o peito, expor todas as visceras, os érgdos sobre os quais a luz do corago incide, e que, se acaso 0 sol me sobe na consciéncia, sinto 0s dedos regressarem lentamente as méos. Trazem entio consigo uma vontade imensa de jogar, de abrir de novo as visceras, mostrar por dentro © corpo, esse magnifico xadrez de que 0 trabalho dos meus érgaos equivale & sucesso dos Jances. 135 OCDOVOOGOVVGOONVODDOODOOOU0000NR0: Oo OO0000 OREI mar esté-nos no corpo; enquanto alguém a quem 0 coragao serve de rei 7 dispde no tabuleiro as outras pegas rebenta-the na mio; hé entre as pegas € 0 mar cumplicidades de que 36 quem joga estima o peso em cada lance. 136 OS PRATOS DA BALANCA Por entre as rochas um rapaz, nas mios levando uma balanga, avanga em direccio 20 mar. Vai procurar pesé-lo. Num dos pratos, 0 mar hé-de revolver-se, debater-se, rebentar, hé-de trazer a superficie a forga das entranhas atrair 0 céu, hé-de-o fazer precipitar-se até com ele se confundir, € as préprias rochas através das quais o rapaz segue hiio-de pesar no prato ferozmente. Imperturbavel, © rapaz, colocaré no outro prato 0 seu sorriso 137 SOL SUBTERRANEO AS SOMBRAS sol € subterréneo, aquele a que eu sol declina-me no espfrito, do meu mundo interior me quero hoje estender é o do meu espfrito, é preciso ‘vém-me as sombras ocupando aos pouccs o lugar da pele. cavar bem fundo até o fazer surgir. OOVCVOVOOD00OCO00U0G 138 139 ODOOOODDDODOV0 000000 QODOLL, CREPUSCULO Ao sol comega a faltar lenha, a rua por onde agora eu sigo vai s6 até onde a meméria a conseguir abri 140 OUIVO Quando um cio uiva € como se 0 fizess: do interior dos nossos ossos e os pusesse A mostra, os confundisse com aquilo que nos cerca, de algum modo eatio © nosso esqueleto integra o patio, a roupa branca pendurada, a pitha de tijolos, hd entre tudo isso € os nosscs ossos uma afinidade a que somente 0 cZo, como se 0 mar todo Ihe pesasse na garganta, empresta nitidez. 141 DE VEZ. EM QUANDO mar, se acaso alguém fechando a mao o faz como se as praias assim o subtrafsse, 0 mar ligado por cem mil cordas ao meu leito, reduz-se a poucas vagas; porque ha poros na pele por onde o espirito goteja, hd também quem da parte envidragada do seu espirito de vez em quando as veja rebentar. 142 VITRINES. Por dentro do meu corpo, onde é possivel separar do sangue os varios érgdos, a quem destes 0 contemple é dado vé-lo embravecer contra as vitrines. Desnudarmo- -nos € pouco, hé que mostrar as visceras, pensei quando tal fiz pela primeira vez. Conhego alguém a quem a fome serve de lanterna, a quem em certas ocasiées cla se torna levemente luminosa, e de algum modo sinto que do fundo Go seu espirito procura fazer vir a lua & superficie. 143 IOONQOOOVOONVOOOCGOO0D09N OOOQ0000000000 NINGUEM SE LEMBRA De quem a6 coragao vai buscar égua ninguém se lembra nem : de quem por té-lo pregado A pele mostra os seus pregos ferrugentos. 144 TEATRO Na selva dos meus érgdos, sobre a cual foi desde sempre a pele o firmamento, a0 coragao coabe 0 papel de rei da criagdo. Tgnoro de que pega é todo este meu corpo a encenago perversa, onde se vé 0 sangue rebentar contra os rochedos. Do inferno, aonde as vezes o sol vai buscar as chamas, sobre ele impiedosamente jorram os projectores. 145 O NOME Todo ele estava torcido para dentro da meméria, Sentia-se-Ihe 0 corpo a abarrotar de sombra, a qual se The escapava com frequéncia pela boca, destruindo-Ihe assim parte da cabega. HA quem sugira que o seu nome, de que nunca nin- guém soube a forma exacta, se situa onde dele nada aos nossos ofhos é visivel; quem pelo contrério admita que talvez alguém a quem 0 coragio sirva de lupa algures 0 venha ainda a decifrar. Escalda-me a saliva onde a meméria a surpreende, costumava-me ele dizer. Comega-se 0 verdo a descolar por toda a parte. A uma luz que de nés proprios irradia 6 impossivel conhecer seja 0 que for. 146 AS MAOS NOS BOLSOS 'As mios nos bolsos, como se com eles comunicasse © coragdo, as vezes aparecia por ai. (O nome que Ihe tinham posto era, no entanto, dema- siado para uma s6 pessoa. Trazé-lo assim sempre consigo abria-Ihe feridas pelo corpo, onde as coctinas se metiam, agitadas pelo vento. et Nao serei eu a negar que o raciocinio € a pele se contamina, costumava-me ele dizer, Ainda hoje a pele ganha terreno a0 coraclo. 147 OCOVODOVVGOO00N00 > 00 OoO00 Q0Q00000000 ooo VESTUARIO. __Um dia descobriu-se que ele, em vez de, como & habito, vestir a roupa sobre a pele, a conseguia enfiar por baixo dela, ostentando, assim, uma nudez perpetuamente deformada. A ninguém desde af voltou a passar desper- cebido que, apesar de nu, ele se encontrava agasalhado ¢ ue por baixo da pele dele a roupa competia com 0 volu- me dos seus miisculos. Como se a malha, ou a fazenda, de que certas pecas do vestudrio se compunham fosse no seu proprio espitito engendrada, urdida nos seus proprios intestinos, era a partir deles que ele se vestia, agasalhava © conferia ao seu aspecto dignidade. ; 148 INVERNO Havia jé algum tempo, comegara-se-Ihe 0 corpo a encher aos poucos de feridas, através das quais se adiv nhava um céu que permanentemente prenuaciava tempes- tade. As malas iam-se entretanto amontcando ao pé da porta. Sobre elas, meio amarrotado, alguém deixara 0 espesso cachecol e o guarda-chuva, 0 qual, apesar de ele na rua 0 segurar, obviamente, com a mao, abria para dentro do seu espfrito. As pessoas, pouco habituadas a ver alguém andar em semelhante posigao, entreolhavam-se, interditas, sempre que ele passava, as vezes encharcado até 20s 0ssos por aquela chuva que de sibito 0 seu espiri:o fazia desabar em cima dele. 149 AS MAOS No extremo do seu brago, onde era de supor que nio houvesse sendo uma, ele na realidade tinha, uma envol- vendo a outra, duas mios. Ambas podiam, consoante a ocasio, chamar a si qualquer destas fungSes ~ acariciar ou agredir ~, embora sempre de maneiras diferentes. Apesar de apenas uma, provavelmente a que mais proxi ma estava do seu espfrito, fazer o mar vir a superficie daquilo em que tocava, era impossivel distingui-las, so- bretudo pelo facto de elas, sem que alguma vez tenhamos Gescoberto de que modo, permutarem entre si. Nunca sabfamos qual de ambas se encontrava grévida da outra. 150 OS OLHOS Sempre que sobre mim poisava os olhos, o olhar dele era de quem os volta para dentro de si préprio, como se esse espago me quisesse aprisionar ou dele, sem que ev sequer o suspeitasse, hd muito me tivesse feito residente Raro era, porém, surgirem sob as pélpebres, no rosto, onde seria de esperar vérmo-los, esses olhos. Nao o faziam endo quando, como depois veio a ser sebido, até af com Fmpeto 0s algava o sett mar interior nas suas cristas. ,OOOO0DO oO OCOONQDVOVOOOVODOVGDOVOUQGOO0000 OLHANDO O SOL. Um dia, olhando o sol, deu conta de que nele tinha ‘0s ossos mergulhados. Era no entanto impensivel proce- der a escavagdes no sol, embora tarde ou cedo a gente acabe por sentir no coragao as escavadoras, Dir-se-ia um sol magnético, capaz de decidir dos resultados das mais ‘rduas partidas de xadrez. Como se fosse uma das pecas, dir-se-ia, ou como se a luz dele recuperasse através deste uma etimologia insuspeitada Ha quem em si se embrenhe até lhe dar 0 corago pela cintura ~ comegou ele a escrever entéo. Como se a espinha do proprio acto de escrever ficasse & mostra, a mio foi-Ihe emergindo aos poucos do papel. 152 O CEU SOB AS ENTRANHAS UNIVERSITY PARKS Do céu pende a folhagem. ‘A miida angiistia a que de novo apoio os cotovelos adguire aqui tonalidades de ouro. Passaram efies que pareciam cabras. Por entre 0s vidros inguietos dos meus éculos, 0 verde das folhas tinge 0 coragio. Nas ervas que crescem do meu espirito pequenos animais escondem o focinko. © mar vem agarrado 2 luz. As drvores desafiam o sol como se nele tivessem as raizes enterradas. 155 O00O0 axe C 5 C OCOKCCOODOOCOOVOOOOVOOCONDOOVO0U0000' VIRGINIA Embora 0 sol fosse alto ainda, Aquela hora Ja dali desertara, as sombras iam saindo aos poucos de debaixo dos armérios. De vez. em quando as miios, completamente absortas, detinham-se no ferro, sobre a tabua, ao lado. - do gigo agora esvaziado e dos pesados tabuleiros de verga, onde se erguia a roupa. ‘Tornavam-se m: tidos, assim, os seus contornos recortados contra a luz. Dali podia-se avistar o mundo inteiro. Ao longo dos telhados, por onde um ou outro gato cotria airs das pombas, oscilava ligeiramente a corda, onde a cidade, 0 céu © 08 montes pareciam pendurados. 156 O SECRETARIO Gerei dentro de mim, sem que disso tenha tido cons- cigncia desde 0 inicio, uma espécie de filho cue depressa ‘em muitas circunstincias veio a tomat 0 meu ‘ugar. Passei a partir dessa altura a agir por delegagiio, como se, apro- priando-se ele das minhas ideias, as executasse antes de mim, mas de tal modo que s6 posteriormente eu dava conta de que nao havia sido eu quem as pusera em préti- ca, Tal foi 0 caso, por exemplo, com a escrita, Como se ele me lesse no espirito 0 que eu gostaria de eserever, ante- cipava-se-mé, tendo sido assim que, entretanto, a mim vi atribuidos livros cuja autoria The pertence. Jamais — fago questo em sublinhé-lo ~ no préprio instante da sua redac¢o me apercebi dessa transferéncia, de que 6 depois varios indicios me deram uma nogio, dos guais 0 tom incipiente de que todos esses textos participam no é decerto o menos relevante. Vé-se que se trata, se nao duma crianga, pelo menos dum adolescente, o seu autor. Nao € sequer possivel saber qual de nés neste mo- mento faz correr sobre 0 papel a esferogréfica, de tal for- ma mesmo aos meus olhos ele se faz passar por mim, levando a asticia 20 ponto de se invectiver. Talvez na realidade eu nunca venhia a escrever uma 36 linha que seja,talvez esteja condenado a do que-nesse sentido me 157 aflorai 0 espirito jamais poder dar sendo uma imagem distorcida pelo facto de entre o espfrito e 0 papel inexora- velmente se interpor a mao de tio indesejado secretério. 158 OS ROSTOS NAUFRAGOS ‘A substincia do deserto é a do mar, que dele difere apenas pelo grau de apuramento. O mar surge no termo dum processo em que 0 deserto € uma das fases ou, mais concretamente, a sua cristalizagao. Se se atenider a que o lugar onde esse apuramento se produz ¢ o nosso espirito, no poderdo causar qualquer estranheza factos como, por exemplo,o de a presenga do deserto sernotada por quem, como os marinheiros, tenha um fntimo contacto com 0 mar. (© que eu do mar conhego, devo-o contudo, mais do que 2 qualquer outra experiéncia, a corsos onde a nitidez das suas dguas ultrapassa muitas vezes a dos proprios tragos fisionémicos; no raro, basta uma breve caricia, ou outro contacto ainda mais discreto, para sentir como Séo avassaladoras essas Aguas, & superficie das quais parecem prestes a afundar-se os rostos néufragos. ‘Nao obstante, também ja eu me-apercebi da clandes- tina presenga do deserto, 0 que me leva a comparé-lo aquela roupa que persiste em irromper na pele de quem por isso nunca por completo se consegue desnudar. 159 IOONVVOOOODGOVOGDOOOOUO00000 OOQO000C oO 7 OC ESTACAS Os meus ossos estiio espetados no deserto, nfo hé um s6 no mew corpo que Ihe escape. | Cravados todos eles na areia do desert, uns a seguir 08 outros, alinhados. Seria absurdo falar-se de esqueleto. A pele foi entretanto soterrada, hé quem ja tenha caminhado em cima dela. Quem diria? A pele, outrora hasteada, uma bandeira, quase uma coroa. vento apoderou-se-me das vértebras. © proprio sol que entre elas brilha € descarnado, um sol deserto, onde © deserto penetrou. Talvez pudéssemos lavé-lo, este deserto, quem sabe, ou amarré-lo, amordag4-lo. A pele garante 0 espago, 0 resto logo se veria. 160 PAISAGEM CITADINA A pele por fulgurantes instantes muitas vezes abre-se até ond= seria impensdvel que exercesse ‘com to grande rigor o seu dominio. Nao temos entio dela sendo répidas visdes, onde os reclames do coragao se cruzam, solitérios c agrestes, reflectidos por trds nos ossos empedrados. Em certas posigdes véern-se as cordas do nosso espfrito esticadas num terrago. A roupa d6i-nos porque, embora nos cubra a pele, é dentro do espitito que esto os tecidos amarrados. 161 CEGUEIRA Uni trago agudo e andnimo, apesar de nela 0 corago fazer publicidade, nfo dé da pele a exacta dimenstio. Qualquer de nés 0 sabe, a0 exibirmos as correias que prendem ao destino 0 cora¢ao sentimos romper-se a pele sob a cegueira dos tecidos. 162 RETRATO ‘A pele era 0 que de mais solitério havia no seu corpo. Hé quem, tendo-a metida num coffe até as mais fundas raizes, simule nao ter pele, quando de facto ela nao esté sendo um pouco atrasada em relagdo ac coragao. Com ele porém nao era assim. Apele ia imitando 0 céu como podia. Pequena, solitéria, era uma pele meticta consigo mesma ¢ que servia de pogo, onde além de égua ele procurara proteccao. 163 LNOOOOOCOOVOOCVOU0000 oF IOOVNVONVAOOV¢ OOO Oo INSONIA Fechou os olhos, procurando adicionar & escuridao do quarto a escuridao suplementar das suas entranhas. Agradou-lhe a ideia de que, através desse simples gesto, pudesse homogeneizar o exterior ¢ o interior, como se as trevas em que 0 aposento mergulhava e as que dentro de si assim se desprendiam fossem de uma s6 ¢ mesma natureza ¢, por uma progressiva porosidade do seu corpo, circulassem em ambos os sentidos até por completo lhe anularem os limites. De certa forma deixava de ter corpo, ou pelo menos um corpo exterior, ¢ 0 que a ele se atinha quando havia luz podia agora reduzir-se a um niicleo ou expandir-se em cftculos que s6 ndo abarcavam sucessiv: mente 0 quarto, o apartamento, o prédio, o bairro, porque no escuro nada disso chega a ter sentido. A tnica refe- réncia era, de quando em quando,-o longinquo motor de um camifio ou o apito de um comboio na linha de Sintra. Esse rufdo, que em seu entender constitufa o modo de a distincia se exprimir, proporcionava-lhe entZo um inco- mensurdvel prazer, que tanto podia advir de, na sequéncia da transformagao que as trevas haviam provocado no seu corpo, 0 ouvido se ter aproximado do corag#o, como de, gragas & assimilagdio que essas mesmas trevas haviam produzido entre o interior ¢ 0 exterior, esses rufdos Ihe chegarem como vindos de dentro de si préprio, de dentro 164 desse coragio a que os sentidos pareciam encostar-se, ¢, mediante uma identificagiio entre 0 espago € 0 tempo a que a escuridio também era propicia, se Ihe apresentarem como provenientes duma época remota, tZo distante do presente como da sua cama o inimaginavel troco de es- trada ou de linha férrea donde a espagos irrompiam. 165 O CORPO ESPACEJADO Perdia-se-lhe 0 corpo no deserto, que dentro dele aos poucos conquistava um espago cada vez maior, novos contornos, novas posigdes, e Ihe envolvia os Grados que, isolados nas areias, adquiriam uma reverberagao particular. Ta-se de dia para dia espacejando. As varias partes de que 86 por abstracedo se chegava & nogo de um todo come- savam a afastar-se umas das outras, de forma que entre elas ido tardou que espumejassem as marés © a propria via-ldctea principiasse a abrir caminho. A sua came exer- cia alids uma cnigmética atracgao sobre as estrelas, que em breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos de quem 0 nao soubesse, como lumninosas cicatrizes cujo brilho, transmutado em sangue, lentamente se esvafa, Ele mais nfo era, nessas ocasides, do que um morrio, nas cinzas do qual, quase imperceptivel, se podia no entanto detectar ainda a palpitagio das visceras, que a mais pe- quena alteragdo na direceio do vento era capaz de por de novo a funcionar. Resolveu enti plastificar-se. Principiou pelas extremidades, pelos dedos das maos ¢ pelos pés, mas passado pouco tempo eram jé os pulmdes, os intesti- nos ¢ 0 coragdo © que minuciosamente ele embrulhava em celofane, contra 0 qual as ondas produziam um ruido aterrador. 166 A SOMBRA ‘Seo homem fosse uma érvore, se-ia diferente de todas as restantes, dado que € no centro do seu corpo, ¢ nao né extremidade, que se encontram as ra'zes. Refiro-me, evi dentemente, 20 coragio, esse Orgio a partir do qual ganharr sentido as outras partes, sendo indutitavelmente a pele ¢ que no corpo corresponde as folhas. ‘Talvez parega insélito trazer dentro de si, escondida: no Amago, as rafzes, em lugar de as espetar na terra. De ta modo a esta se associa a ideia de raiz que quase somo compelidos a pensar que 0 coragao é subterraneo, qu: entre ele e 0 que do nosso corpo vemos hé uma linh divisoria, uma demarcagdo correspondente aquela outre horizontal, que habitualmente representa 0 solo. Jmporta, na verdade, salientar que, se entre a pele © coragdo, como entre as folhas ¢ a raiz, parece ao mesm tempo haver um trago de unifio que o tronco, por seu turn¢ configura, tal unio, que além do mais esconde o intran: ponivel hiato que os separa, € menos real do que aparents Pense-se no fosso que nos jardins zool6gicos ha entre « feras ¢ as pessoas ¢ ter-se-4 uma ideia desse abismo. O que € que neste caso so as feras ~ a pele ou coragdo — é que ¢ talvez dificil de dizer. De tal modo i vezes & frondoso o-coragio que toda a pele se acolhe sua sombra: 167 OOODQOODVOOOC OV OOD OOUCUNDOOO00O0000000 CEU ARIDO Devemos, a0 falar, ter 0 maior cuidado com as pala- vras que empregamos, pois, sendo algumas delas parti- cularmente vulneréveis as raizes, arriscamo-nos a ver apoderar-se-nos da fala uma vegetacao que talvez.chegue mesmo a destruir-nos. A fala quer-se drida, de uma aridez idéntica & da roupa que nos cobre o corpo ou & do eéu, de que me esforo, sempre que dele falo, por deixar & mostra um dos agrafos mais profundos. UMA CANDEIA. Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras ¢ que, contraria- mente as aparéncias, nao est na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, 0 préprio olhar dos leitores tora visiveis os contornos dos banhistas, OG GWOG HOAKOAC a 168 169 TRANSPARENCIA ‘Momentos hi em que a toda a nossa volta os objectos se tornam insuportaveis como se nos roubassem 0 ar,como se neles houvesse uma respirago onde o ar ¢ a luz inter- viessem simultaneamente. Entre os sabores que tocam no meu espirito procuro entéo o que melhor me possa devol- ver & transparéncia, ndo a dos espelhos ou dos vidros, que a literalidade impregna, mas a abrupta transparéncia dos sentidos. 170 O ULTIMO REDUTO ‘Naquilo a que chamamos eu hd sempre um espaco inocupado, onde parece alimentar-se um mecanismo que de dentro de nés proprios se apostasse 2m escorragar-nos, repelir-nos, algo cuja natureza nos € estranha e que no raro ocupa toda a nossa identidade. Vamos assim sendo confinados a um dominio que se exaure, a um territério em progressiva retracgdo, que em breve se limita as mos, aos labios, ao rebordo de uma ferida, sendo na pele que inevitavelmente concentramos entao tudo 0 que nos resta. Na pele € um modo de dizer: na roupa, nos adornos. S30 os brincos, as pulseiras € os anéis 0 que por vezes nos sustém, o que garante a nossa integridede, o tiltimo reduto contra esse mecanismo que de dentro de nés préprios nos rechaga e de que a pele, a plataforme a que, alarmados, entao nos agarramos, é igualmente o carburante, numa duplicidage idéntica & de um livro cujas paginas entrassem e safssem do espirito de quem o escrevesse. 171 OOOCDOKODDADO OVO OO OOVDOO DO VDOUOO00000

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