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524 HISTORIA DA LITRATURA CEARHNSE Procusto da " que ldgicamente supi 6 absurdo de iguatdade fsica, morale intelectual Uma das exceléncias da democracia ¢ a temporariedade das fungées governamentais, Normaimente basta que se ‘cumpra a lei para que funcione o mecanismo politico e admi- nistrativo. Quando a situagdo se torna anormal, ha 0 recurso da revolugdo, que sana 0 abuso, som destruir nem o regime politico nem a organizagio social. Fragilidade imanente ao espirito humano 6 a valdade, irm& e sécia do orgulho. Quando um individuo qualquer asgume posiggo eminente tende, insonsfvelmente, a consi derar-so, na sua pessoa, como um ser a parte, melhor, mais digno que os seus concidadios. Essa tendéncla féz os reis © imperadores absolulos e faz os tiranetes que por ¥ maculam as melhores democracias contemporaneas. Quando um sujeito nasce para tzar ou para sultdo, quando herda o titulo de bardo, que transmitird aos seus filhos, tanto se Ihe arraiga a convicc&o da sua prépria supe- rioridade, que até depois de vencido e esmagado, ainda se julga na’ posse de seus imaginérios atributos e privilégios. ‘Mas quando um homem é um qualquer de nés, sem pretensio Ge ser filho de herdis ou de deuses, a precarldade das fungdes de mando, na Repdblica, constitui um poderoso freio contra seus pendores & prepoténcia ou arbitrariedade. E quando a mé autoridade, inebriada pelo poder que se Ihe outorga, ou por ineapacidade da percepedo da realidade, se excede € se desmanda, logo finda 0 seu mandato ou o interrompe a revoluco, © ci-la reduzida 20 que sempre foi, 2 coisa nenhuma, se nada era” — A premencionada obra restante de Téo Cabral, de cardler clentifico ou técnico, a Historia das Giéncias e da Cultura tomaré a seu cargo estudar, no lugar devide e na cocasiiio propria, DOLOR BARREIRA 525 ‘Té0 Cabral faleceu no Rio de Janett de junho de 1956. , Inupto, a 23 140 — A promissora aparigfo, em 1916, de “Dentro do Passado”, da autorla de Otacilio de Azevedo, enseja-nos ocasiona-nos 0 estudo, que prometrames, do autor e da sua cobra, (199) OFACILIO DE AZEVEDO (Otacilio Ferreira de Azevedo) — Nasceu em Monte- Alegre, municipio de Redencio, e atualmente de Baturité, a 11 de fevereiro de 1898. Filho de Bemardino Ferreira de Azevedo e de D. Felismina Maria dn Conee' eeliguenso tim ensahor —« catido prometlén 6 de ser foto agua porate moo Alma Ansion suas aim Dendro te Passage "cue deve Fonuigeraco @ seu. Primeifo ro. ‘Schade’ postaa "Bento do Passado" fot inerepado do. plac. nos termen do "A Gulba de Caria, eecrto por Nonsio Baltes C16ne “A lelturs do sua hima exinies publleada no, “Corea” de anta- contem, Sugeriiome a ida destor rabiaces, A guisa cata, Daa Mane Snr ‘com lee os paveson de mnha'aiiaeto ao et Talento de ‘Gonsia a sue crénica de une apreciarto em forma de erties a0 oct "entra d ane co, Ota Azevedo transorion em aoa efonien, ehamiram & miniie sizogto para uma cars dirigiia ‘por vs. ao urnalita se Mederon © Aluuergue, mublicnea {ame Resto jormal ha mate ov tiene dole mets Teast cae y's, fag Teteromias's tin posts, de cup nome no me reconto (0 pocts’-~ dizemos nee = se ehamare Cortla.iinion), aut Plaga ‘ine verses es Clave Bine Nem into ao cato bara lombrar a ¥. 8. que, mum daguses dois vere trenbirtas do posma do st Otaibo, 6 fendmeno da teleptla a8 mane fesin de tine maneim tic clare que’ a gente fice a cisar nes Drodigioe da teansmiasto eo pessamento, io crrio tue ovcaso presente tenha relaplo com 0 culo pasiade Tamer qie'a ‘adie ce plago ho ‘proocupaase 0 poets “nsedor de veeson magondox” quando’ @ fia aguele alrandeine to, pareeido, 30 Tatido enn. time, com age outeo oi fueto. eaves ‘Mad o que € fato ¢ que os versa dos dois pootes tanto se parcoem poeta Guerea jue Hawes (Osler Wo da blr Gouna Glaley £8 e5 do “natin do Gere) 1962. v. 526 HISTORIA DA LITRRATURA CEARENSE » alisou bancos escolares, nem f€z qualquer curso sisternat ssmo 0 diz’ “Nunca transpus as portas de uma escola, © pouco que aprendi s5 a mim devo... Escrevo andando... e enche'se-me a cachola le idéias, cada vex que, andando, escrevo!” Traalhou, dos & ags 14 anos, camo funileiro, ¢ inielou-se em Fortaleza (1910) na profissio de fotdgrato, comegando a estudat pintura, ¥ol empregado da Light. ‘Tudo isto nos relata Otacilio, através do seu verso: “De ito anos aos catorze — funileiro, de eatorze aos dezoito — copiador de retratos e, agora, por terceiro, sou fotdgrafo, sou poeta e sou pintor. Wem com 9 outro que... dio que pensar & gente Fal alsin que Gicits Junguese comegeu a aia belt © conhectdasime ponsin "Pie Na lus do seu othar tio Iinguldo © tho doce vis um quer que ide B nec ecroven © sr. Otseo: “Amoi... @ ent sou olhar enlanguesekio « doce Quatauet cose havia, Diante iste confronto, mou aprecade eronisia, deve ou milo deve gente sereditar ‘no feuimeno da telepata?” (Cortein do Ceara, de 20 ("tetera de 101%) respons, in gu defend Olan Ten agrado, 0 seu eaerilo A Gulea de eatta, inserto em a ditto 0 “Corsto” de Preven a\minha satisfagdo de dues esueas: da clrcunstancin de ter tgtse Gum ineiro, de epinto investigador — V. S cxpucar ‘ume coisa que talver Snpres ‘Reltr-me 4 eemebangs que existe entre doit vertot do se. taco ‘Azorei, eilados por sim emma aprelagao to seu poem ‘Dentro do DOLOR BARREIRA 527 Empreguel-me na Light 0 amargo espaco de trés anos brutais, consecutivos, fas forcas diminuindo no cansago, ante um grupo integral de homens cativos. Féz, contudo, gracas ao verso, vida intelectual cheia & intensa. ‘Como poeta, tem colaborado nos jornais e revistas lite- rarias do Estado: — Ceara Operiirio, Correio do Ceara Gornais) e Fénix, Panéplia, Semana, Nota, Ceara Mustrado ¢ Revista Contemporiines (revistas) Publicou os seguintes livros de versos: “Dentro do Passado” (1916); “Alma Ansiosa” (1918); “Svgestio ao Luar”, (1918); “Musa Risonha” (autobiografia-1920) ; Réstea de Sol (1942); “Redengéo” (1944); "Deselagio” (1947) “Alma Ansiosa” (2.* 1955) Pertenceu Otacilio de Azevedo, como sécio efetivo, a0 “Gremio Literdrio Cearense”, ocupando a cadeira de que era patrono Lopes Filho. fo © dots versos de Guerra Junqueiro, da poesia O Fie foto ave site) © objeto damsel ain We eevee, no entanto, dlatr Que nfo cossidero pldgio uma comm coeiatucia de ila, 19 soso que’ se dtouie, com mals Tazo ‘Ore. ben sebe que, mute ante ao imorial poeta portueu broclamavt livremente 3 anguider e ‘doguea de Um olfar qual Eum boriso que.o'«, Olacllin deverin evitar” como tambemn Ouerr opacity 10 tec Snio deft vere no wat eee “O ceab do st Correia Junior, plogtario de Olav Bllac, © do. qual me coupe ‘hums, earta lilerdria «Medes 'e Albuquerauo, que ctilestn © Seu tveo, eifere do caso lo sr" Olacllio ‘Aravedo. taeniico nest, ext fherarin vinos © s0 Grateado ‘le varsajadares notabilssis. ‘Tio, para. excmplo. Bilas Uen hovtor grande © muda, um siéncto profundo No'dia do peeado, sioriaihaye o mundo, Alvereda do Amor ~ Possis) fstes dois versos iio fazein Jembrar outras de Guerra. Junqueiro? ‘gm altinsio pesado amortaIhava © mundo Srietmanke do tonge velba Tar prety . (Gardace © austen ro meio de dezenss, Sabino 528 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE — Otacitio é também pintor, quigd um dos mais repre- sentativos pintores do Cearé, Seus quadros ornamentam galerias particulares de Fortaleza, S. Paulo, América do Norte, ete, encontrando-se duas telas de sua criacéo nos estiidios da B.B.C. (British Broadcasting Corporation), de Londres, © pintor, com a sua aprecidvel produgio artistica, sera estudado, como merece, na Histésia das Artes (Belas Artes) Aqui, s6 nos interessa 0 poeta, embora nao consideremos fora de propésito indicar, como adminiculo para 0 estudo do pintor, a reporiagem de Jandira Carvalho — Otacilie de Azevedo — Poeta e Pintor — nesta \iltima parte (in Revista Contemporanea), ano XI, n° 66, pag. 21 —— Desde tenra idade, pouco a pouco, dominou Otacitio do Azevedo a idéia de fazer versos. le mesmo njio hesita em deelarar que o primelro sonéto que féz (infelizmente nfo diz em que data. Nao teria Batiste, que fechow déste modo um sontto intitulace O Adeus ‘nguanto ela ma praia inconsoiente Aloneava 9 thar storhainente Ao passo que téda gente nd de lembrar-ee do Nel Meso det ‘exjo iim tertaa teptoduz! E eu, salto, vollo a face e tremo, Vendo 0 teu rulto que desepazece [Na eterema curs do comin extrema, (Ser988 de Fogo? Macanhfo Sobrinno tambémn escreveu: uve! o mar escarpando as roches, na agonia ‘quando Raimundo Currein J havin esceto © pubeede sbrasela o Ocldente na agonia Ove peer uase todo eseitor page penitenciar-ae por peeado desta natureza ‘Albeo de Oliveira, © escrupuleco. artista ‘do "verse, morece © Mea pend que 20 queirs apiiear ap cantor da Via Lacten, © toe outros reeridoa DOLOR BARREIRA 520 ‘sido em 1910?) foi mnitissimo elogiado pelo poeta Raimundo Vario, que, como Otacilio, trabalhava na antiga Fotogratia Nilo Olsca, e de cuja influéncia muito se ressentia Inicialmente. E acrose: ta © poeta: “O movimento intelectual do Cears, quando comecei a escrever versos, cr. chefiada por Carlos Gondim (o melhor poeta de todos os tempos), Cruz Fitho, Paula Achiles, Genuino de Castro, Antonio Furtado, Soares Buledo, Beni Carvaiho, todos de grande cultura o de resl merecimento”, TUends, ha tampon, © gen poewa Natalia, eurpreendeusmo dete tera An! dor neni, como 2 de tembranea Da venture que 10), na desventura, Perr rua fundo 9 coragea aleanga! (Woes = 9, série) © gue eu tera no Dante: ‘Che ricordarsi del tempo feice ES Bivind Cometia ~ Ltatorno - Canto ¥) Parece quo the estou a ver, dlanto de tudo isto, pradar-me, astreg: whE woot ainda se nfo Teferly um cos maiorespoctat tino, © cepulente. Came, enjaimitagio = Versio, no arn extranrdinécl.pocins (Gu Lasiadan esta patente B eu estou pronto a concordar com V. 8. esto ponta, acrescentance: podeziamos te Gar Win salto por elma de Camine e pegarmee Verio ‘© processo de imitar pen, nao € ce todo condanavel, pola que ead conaxgrado prin tradieto ‘antonio -Albelat = A formagso, do. est) (© procedimento qua roquer castigo, hoje camo em todos. es tempos, vom a ber 0 plagia, B por tal se mio Pode acusar 0 St. Oreciio Azcvede ‘oe V. 8. quer contindirane perguntando ee, estate, mines hous plagies, cu ine sespondere, solctamenta, que tenho eincla de Th fntie on quar odo. J8 mienelonsao posts, Correia, Junior oat Guerra “guquees, icando, ecr liv, como ae Teme, tna poets fo"beenarel Lae’ Carles com ‘poneae e ‘geste alteragisa, em digas Yereas (Camilo Castelo Bano = Canclonsiro Alegre = IS volume). (Creo haver alto p sufeiente, Em Forma de resposia, a proptsito da sus ‘agradavel producto A. Gulsa’ de Casta Gaeche, presimo, manifestar n tun simpalia pelo posta de quem dasseontion, prosarande’ azera conocer’ 0” ee tsballo (rite “Carre a Ceara’ de 36 de setembro de 15D. 530 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE vindos, depois, Mario da Silveira, Sobreira Filho ¢ Jader de Carvalho. (200) — Poeta possuidor de um talento que honra a geragio do seu tempo — 6 ésse 0 dizer com que 0 qualificou Mario Linhares. ‘Mas — acrescenta logo em seguida — simples operdrio, sempre em precirias condigées financeiras, nao Ihe fol per- mitido vestir boas roupas e apresentar-se com elegincia nos circulos sociais, do que resulton, por isso mesmo, ter-se tor- nado um timido e arredio, a olhar tudo de longe, esquive das agrupamientos ruidosos (201) ou, em outros termos, como Giria Liberato Bittencourt, nao poder aparocer nas grandes rods, impondo-se definitivamente. (202) — Boémio de imenso talento, assim o definiu Antonio Sales, sugestiva ¢ expressivamente. De resto, dessa boémia rumorosa e impenitente, o proprio Otacilio se encarregaria de nos dar a conveniente definigao na sua poesia: CANGAO DOS QUE SOFREM Milos & taca © bebei oh! miservois poctas Que arrastais do inforbinio a esmagadora cruz! Se tendes de amargor vossas almas repletas, encontrareis na taga um talisma de luz! preciso beber para esquecer a vida eos eternos grilhdes do sofrimento eterno! — Quem no eéu do prazer nunca encontrou guarida, encontrara, bebendo, um delicioso inferno! ‘Vija-se *Palam oe fnteleetunis do Cearé", de Abdise Lime, pg. 17 ) Rectan Esquesidos, p45. 219 (aoa) Nova Miistde da Literatura. Brasileie, v. 1%, pis. 48 DOLOR BARREIRA 531 # preciso beber, beber, sim, beber muito, deixar rolar ao chao as Anforas vazias. . E adormecer depois no enfebrecido intuito de esquecer da existéucia os tenebrosos dias! Para aquéle a que a mente ¢ um inquebrantavel clo, onde assoma 0 terror e 0 desespéro assoma, mais atroz que o rancor que envenenou Otzlo, mals ardente que 0 fogo onde expirou Sodoma; para aquéle a que a vida é um pesadelo enorme, repleto de amargura e de pesar repleto, onde acorda a saudade e eternamente dorme a lembranga final de um voluptuoso afeto; para aquéle, afinal, que percorreu chorando © Calvrio da dor pela existéncia fora, buscando um novo sonho e a inspiragéo buscando ‘come Fingal, sizinho, a procurar Teodora; quando longe da gloria e da vohipia longe, 86 existe um remédio, um s6 balsamo existe: — 6 beber, viver como se fOsse um monge, onde persiste a treva e soliddo persiste! —~ Bo olhar em brasa, a mente em fogo, alucinado, tendo a béca entreaberta um sorriso escarninho, dir-se-ia o velho poeta ansioso e desgragado, um Tantalo a boiar num rubro mar de vinho! — A vida postica de Otacilio de Azevedo, do meu conhe- cimento, remonta ao ano de 1913. Entéo, como depois Publicou avulsamente, em jornais e revistas, sonetos € 532 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE porsias, alguns dos quais enfeixou nos seus livros definitivos, como adiante se vers. No “Coari Operario", de agésto e sotembro de 1913, publicou: Anita, No Cemitério e Nao sei! versos, destaco 0 sondto Nao seit... 0 tinico que incorporou ao livro Alma Ansiosa, mosmo assim sob 0 dife- 2 titulo de Pesadelo, com inteira substituigio do 2° quarteto e dos 2 tercetos, PESADELO Ao dr. Leonardo Mota Nilo sei porque to cedo a vida se me esvoaga de encontro negra dor, de encontro ao sofrimento, qual nuvem que perdida, As vézes, se espedaca no cOncavo infinito azul do Firmamento! ‘Tudo o que outrora fiz se desfez em fumaga, em redemoinhos no ar, aos caprichos do vento... E em meu cérebro enférmo alguém, chorando, passa, como na solidao profunda de um convento. .. ‘Tantos sonhos de amor vi rolar em del de meus prantos sem fim no doloroso inverno como rosas a0 Iuar, acucenas ¢ lirios. E hoje que choro em vio tanto tempo perdido sinto apenas o horror do pesadelo eterno de quem tudo ja foi sem nada enfim ter sido! Na revista “Fénix”, de outubro de 1913, publicou 0 sonéto Ultimo Othar, depois incorporado com muitas alte- racGes em “Alma Ansiosa”, sob o titulo de DOLOR BARRE 533 ‘A CURVA DO CAMINHO Morria 0 sol no ocaso... ¢ 0 olhar de minha amada, qual rubro sol distante a rutilar morria. Gemia 0 seu solugo errando pela estrada, e errando pela estrada eu, misero, gemial Pordia 0 sol tombando a clara luz doirada, 0 vulto dela, ao longe, aos poucos, se perdia, Fugla 0 meu olhar no curso da jornada, 0 seu magoade olhsr tristissimo fugia. © 01 tombou no poente em nuvens de oiro © arminho © Cleonice, chorando, curva do caminho entre as sombras da noite, exinime, tombou, Entanta, 0 mesmo sol que desmaiara outrora. Vem ‘das as manhas 90 despontar da aurora; $6 ela nunca mais... oh! nunca mais voltou. Na “Panéplia”, de marco e abril de 1914, deu & lume 0 wu sonéto Vestal. Deixamos de transladivlo, porque Ja 0 fizemos & pag, 395 © 396 do 3° volume. © *Correio do Coara”, de 20 de outubro de 1915, estam- poulhe o sonéto Esperanca, estampando-Ihe o mesmo jornal, no seu niimero de 23 de maio de 1917, 0 sonéto: A MARIA SANTISSIMA dita sejais vés, oh! pérola divina, Extralda do oceano imenso da amargura Bendita sejais vs, oh! fonte cristalina, ~ Clara fonte de luz eternamente pura! 534 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE Quando da vida atroz na mais ampla tortura, Do destino impiedoso eu sinto a mao ferina, Recordo-me de 75s — ¢ oh! suprema ¥ Como sei suportar minha terrivel sina! Salve! oh consoladora, oh! virgem Mae piedosa, sorvestes da dor a anfora amargosa, Fazei que vosso vulto em toda a parte eu veja. Bendita sejais vés — Astro resplandescente, Bendita sojais vos, oh! Mae do Onipotente, Bendito seja o vosso nome, eternamente seja!... (203) N'A Nota”, de 24 de dezembro de 1917, inseriu Otacfiio de Azevedo 0 sonéto NATAL DUM CAIPORA ‘Vem chegando 9 Natal! Gloria a Deus! Vem chegando © bom tempo feliz para sempre adorado E enquanto os outros véo roupas comprando Amargamente escovo 0 palit6 surrado! ‘Toda noite anterior hei de passar pregando Na janela, a martelo, o meu sapato usado — Pois nao deve viver a gente mais se fiando Prineipalmente ne que j4 compramos fiado. No outro ano quando fiz tudo ao contrario disso Desgragado de mim! que negro instante aflito E para vos provar que 6 verdade tudo isso Ente tonite — ae parccer — nfo foi enfeixad em nenhur dos listen de taco’ de Azorazo. DOLOR BARREIRA — Suro pelo valor dos santos Evangelhos, Quando fui ver se o meu presente era bonito — Haviam me roubado os meus sapatos velhos! (204) A revista “A Semana” deu acolhida, nos seus niimeros dv 1 © 22 de fevereiro © 21 € 28 de marco, tudo de 1920, aos sonetos, respeetivamente, Saudade, Sonéto, Salomé © Por uma noite de inverno, que passamos a reproduzir nessa ordem: SAUDADE, Saudade... Ansia... Crepiisculo... Sol poente. Cinza de oiro do outono. Fu, pequenino, mergulhando a sorrir na agua corrente pequenos barcos de papel... © sino do antigo Monte Alegre, docemente, solucando ao sol-por... Tudo imagino: — mamie, de joethos, a rezar e, eu erente, postas as mos, num éxtase divino! Saudade! o velho oltio sempre lembrado da casa onde brinquei na juventude © por t6das as eriancas invejado! Saudade! Hoje carpindo, em desenganos, esta amarga existéneia aspera e rude, torturada por vinte e tantos anos! (205) conta de nen dos ros de Otto de Azevedo o transerio Rte sonito figuen no tivro Héstea de Sol, visleimente moitieado tos dois terselas, com passamas a evideneien, transcrevenc-o Saudade... merguihando, a sorrir, agua corrente Pequence baveos de papel.-- 0 sine a... Crepisculo. S01 poente 10 outono. He, peauenino, 936 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE SONSTO Bom sei que astes meus versos falhos de arte sem requintes de forma ou fingimento, nfo poderio dizer-te, ao menos, parte, do que sofro por ti... Meu todo intento & através de meu sonho idealizar-te e te faver sentir meu sofrimento © com frases duleissimas magoar-te enquanto houver no mundo o sentimento.... Uma coisa te implore: Quando, um dia, te esqueceres de mim — ao certo — quando eres estas estrofes de agonia por outro 0 coragdo de amor pulsanco, nao te esquecas, jamais, que esta poesia foi a primeira que escrevi chorando. ... (208) SALOME, ‘Oh! Salomé que eu busco a todo instante Na religiosa paz do isolamento, porque os ollios descerras tao distante que mal pode te ver meu pensamento? fo antigo monte Alegre, docemante, Solugance so sol per. "Tudo teeing, Matnte, ds joelhos, a rezar ee, crete Dostas ss ies, nim Estase aWinat Saudade! As verdes moites de mofurbo, fade, cutrora, eu brineava. Tur do dla, onge Go disabor «que sucumbo! SSnudade! Hoje carpindo em mar de escolhos, nts noite tremenda de snrernis, Sripinace de mess proprios alos! (296) Referiéa sontto con 0b 0 Hilo de Supa, do livre Alma Ansiosa, na, ego Sf) sonéto Salomé fax parle do lero Réstea de Sol flterado” no seu primetto tereéto. {aoe © “sonsta "irensorito, com modifcngses de forma, contempiouo Gtachig de Avcvedo, no seu tivo Desolagio, sob 0 tibile Noite de Taverne, 1s, sem modifionsio no, seu corpo, emborn DOLOR BARREIRA Salomé! Salomé! Visio radiante, chela de encanto e de deslumbramento, descerra sobre mim, triste ¢ arquejante. um sorriso de luz, nésse momento! Ha tantos anos que proruro, inquieto! estreitar-te nos bracos doloridos, tendo de mégoa o coracao referto! Bante o teu vulto amortecido e langue trago os trémulos olhos embebidos num dilivio de lagrimas de sangue... (207) POR UMA NOITE DE INVERNO Inverno... Angistia... Hu, doente... A noite érma e chorosa traja imenso burel de ampla, pesada bruma. La fora a agua soluca e na calgada oleosa de trémulos vitrais rendilbados de espuma. . ‘Tenho sono... Alguém tosse... & uma tuberculosa @ quem o luar de um beijo a vida no perfuma... Como deve sofrer nesta hora dolorosa aguéle que nao tem felicidade alguma! Chove! O vento fustiga os vidros da janela! E cla tosse! Meu Deus... como vai ser comprida esta noite de insOnia e de pesar para ela! Creio que vai morrer... E, em lagrimas, suponho vé-la morta através da poeira dolorida de oiro do trigo ideal da esfera do meu Sonho! (208) tuiromente 538 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE “Cearé Tustrado”, no sou mimero de 4 de outubro de 1025, deu o methor gasalhado & poesia de Otacilio de Azevedo ESFORGO INUTIL Quando mergulho os olhos em mim mesmo E penso nés s io de vir, € que descubro, alucinado a ésmo tOda 2 inutilidade de existir... Do meu sonho de amor sempre cativo, na incerteza medonha em que me envelvo, tenho a amarga impresséo de que, ha anos, vivo, abracado aos lentaculos de um polvo! E no afd doloroso em que procuro asconder As rogides da plaga etérea, Ji me slato morrer tristonho e obscure. ante a luta do espirito e a matéria! Sofro e quero fugir so mal sem térmo gue me consome, e sinto na vertigem do pensamento, ante 0 meu corpo enférmo que sou do mal que sofro a propria origem.. Natureza-Mae! sempre impiedosa, porque é que tantos males acarretas sdbre mim, cuja vida dolorosa € um continuo crisol de Ansias secretas?! Porque me nao fizeste, ou astro ou chama, ou floculo de espuma, inseto ou miasmas, ‘en vez de me lancares & érma lama criginadas pelos protoplasmas? DOLOR BARREIRA 539 Tivesse eu nascido Arvore copada no yeludineo leito de uma alfombra os viandantes, apés longa jornada, dormiriam, sorrindo, @ minha sombra! Porque me nio fizeste Agua corrente que desse & rosa esséncias ou matizes, ou fizesse brotar da terra ardente (© luminoso pio dos infelizes! — E a Natureza, embalde, me responde ‘Com frases que impossivel compreendé-las. Ah! porque é que nio vivo, ao menos, onde ‘Ardem 03 olhos de oiro das estrélas! (209) Especialmente para a “Revista Contemporanea”, de dezembro de 1944, escreveu Otacilio os dois seguintes sonetos — Beijo na Treva e A Alguém, depois reunidos na 2.* edicio do seu livro “Alma Ansiosa” ‘Aqui os tém os leitores de bom gosto: BEMO NA TREVA Noite, Plange, convulsa, a harpa do vento. A terra dorme. © espaco, 14 fora, € tempestuoso, escuro. Nem sequer urna estréla as palpebras descerra, se as palpebras descerro e uma estréla procuro... # nesta hora de amor que me ajoelho e murmuro doce nome de alguém que, entre saudades, erra. Surge, irradiando ao sol de seu sorriso puro, 4urea visio de luz que sé perfume encerra! Gea) A pucsia Ratirgo Anil vem repetia, com rapldlaimes madangas Ge palavra ou expressio, no livre Kestea. de Sel 540 HISTORIA DA LIPERATURA CEAEE Abro-the 0s bracos! Vem... ¢ 6 seu cabely lotro deixa ver através de uma neblina de olro todo o seu corpo em flor que de almo luar se neva... ‘Mas se tento oscular-the 0 alvo colo macio, foge... © eu sinto, tristonho, abandonatio e frio, 9 meu beijo rolar na soliddo da treva A ALGUEM Porque de mim te foste em prantos mergulhando todo 0 meu coracio que era s6 teu? Nio crias que éste amor desvairado, éste amor miserando era maior que 9 amor que tu por mim sentias? Porque me abandonaste assim tio eed quando éste afeto aumentava ao mesmo tempo em que ias © teu corpo desnudo, aos poucos, entregando ‘a mim, que om vo te amei como um doido! Nao vias? Ah! S6 me encher de angiistia e de saudade viestet ‘Que eu nunca mais te veja o olhar que sempre quis, © que no vejas mais o olhar que nio quiseste... Que eu seja desgragado e sejas tu feliz: — que outro te faca 0 bem que nunca me tizeste, fe que ndo facas nunca 0 mal que te néo fiz! (210) Nilo se esqueca que nao transcrevo 0 verso como de primeiro mas na expresso final que Ihe deu o pocta, sempre que 0 aproveitou em livro. [Zio “Aina Anaions” & o tio definitive de Otaelis de Azevedo, embora ‘o primeir, pols coma tal conaidero “Dentro do Posda” DOLOR BARREIRA 5a ta-se, no verso que anterede “Alma Ansiose”, que se trata, no comégo, de um poota incipiente, prineiplante, de primeiros pasos, que prossegue por experiéncias ou tenta- tivas, e anda as hesitagdes e aos titubelos. Claudicagées escorregos aqui e ali: — uma palavra imprépria, ou mal colocada, transgresso as leis da boa linguagem, pensamento ‘mal ou imperfeitamente traduzido. . ido & ainda a pocsia sumo de fruto maduro —, de que nos fala Gilberto Amado, Nem ha 0 que admirar tratando-se de quem ‘Go pouco ou nada estudara. Verifica-se, porém, ao mesmo tempo, que se trata de pocta que, por entre essas imperfeigdes, procura rumo certo, di- reco segura, destino definitivo e que, seja como for, mints- ‘tranos prognésticos do valoroso poeta que h4 de ser. Rumo certo, aliés, jé aponta ao pocta 0 seu opisculo “Dentro do passado”, aparecido, como se disse, em 1916, Era constituido, primitivamente, de catorze sonetos. (211) \Nésse poema conta-nos o poeta sua paixdo por Cleonice, que, @ principio, era “triste e s6" e que, de siibito, acordou ‘para 0 amor: I Ela era triste © 86. Um tumular desgésto E um constante pesar dolorido e profundo obrigavam-na a ver, contra o seu proprio gosto, © seu pranto correr cada vez mais fecundo, Desde o claro romper da aurora ao sol ja posto, présa A amarga obsessio de um sentimento undo, uma légrima sempre a umedecer-ine 0 rosto, buscava amargamente a solidio do mundo. a Bite pooma enfelvon-o Otsefio. no sou leno “Alma Ansan 2 2°D ety no mais com 1 mas tort 10 sonelas, 542 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE Um dia despertou sibitamente. Um dia urea réstia de sol_a mente Ihe irradia como géta de orvalho em ressequida flor. Bento tornou-se altiva, alegre e deslumbrante, e sentiu qual Beatriz nunca sentiu por Dante, ‘© mais puro e sincero ¢ ilimitado amor. Cleonice amou... Viveu com interminavel alegria désse sonho a Amou... E em seu olhar resplandescente e doce qualquer coisa de vago e indefinido havia. Fosse porque sentisse ou porque amada fésse, vivia désse sonho onde a ilusio vivia, De tristissimo que era o seu olhar, tomou-se um sorriso de luz, repleto de alegria! E ésse olhar nunca mais oh! nunca mais Ihe trouxe uma ligrima s6, cristalizada e fria, Dos seus labios em flor, voluptuosos, divinos, mil solugos de amor, ardentes, cristalinos, se evolaram no azul, pela amplidio dispersos... Ba ventura maior que me alegrava a vida era saber que amava, ébria de amor, vencida, © simples fazedor déstes magoados versos.... Amaram-se desmedidamente: DOLOR BARREIRA 543 mm Amamo-nos os dois... E éste amor desmedido fora como que um sol dentro de nés nascido na eterna evolucdo de incontide desejo. . Que importa se hoje a dor todo o meu ser transtorna, se a sua béca vermelha enlanguescida e morna fol a concha aromal de meu primeiro beljo? ‘A amada do poeta, como se salientou, tinha 0 nome de Cleonice, inesgotavel nascente das suas melhores inspi- ragGes, — ao que éle conta Vv Chamava-se Cleoniee... Ail sim, era Cleonice! Nome que sempre li como se Iésse um poema num livro de oiro ¢ luz que alegremente abrisse na extrema sensagio de uma ventura extremal ‘Tudo que eu visse alegre ou tristemente visse evocava éste nome — oh! delicia suprema! Nome — fonte de amor, de ternura e meiguice — Esquecé-lo? Adoré-lo? — Bis o fatal dilemma! Quantas vézes ao luar das noites silenciosas Nao escrevi sorrindo estas letras saudosas no prateado lengol da areia dos caminhos.... ‘On! letras musicais! Jamais hei de esquecé-as! Letras feltas, talvez, do um rosério de estrélas Mas que sio para mim como um crisol de espinhos! HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE © destino, porém, imp! dos juramentos inesqueciveis: fol, separou-os... & a hora v Cansado de ser fiel, de nos unir cansado, © destino brutal nos separou... Distante, se eu tentava esquecer 0 nosso amor passado, a saudade sem fim se atravessava adiante. .. Separamo-nos nés... Num “adeus" desolado 08 labios descerrou tio chorosa e arquejante ‘que ésse sentido “adeus” em prantos pronunciade nunca mais esqueci um diminuto instante! “Serei tua...” inda ouvi como um solugo vago. E a promessa que inda hoje 20 pensamento trago repereutiu, gemeu, desfaleceu ao longe.... no exilio infernal onde, ansioso, vivia, esta frase a chorar mil vézes repetia nna religiosa paz de meu viver de monge... Séfrego do abrago e do beljo de Cleonice, o poeta tenta voltar e volta afinal. # assim que éle nos descreve, em versos candentes, éste momento do seu drama sentimental: vi Largo tempo passou... Uma ansiedade incrivel amortalhou-me @ vida, inconsolaveis anos... E um desespéro enorme, amargo, indescritivel, mergulhou-me no horror de mil sonhos insanost DOLOR BARREIRA BS Tentei voltar mais tare. Esforeos sére-humanos fiz, encontrando em tudo apenas o impossivel E a mente tendo imersa em fundos desenganos fiquel... Anos depois, numa ansiedade horrivel, disse: — “Hei de vé-la agora, hei de agora abragi-la € de sorver-Ihe o aroma espiritual que exala © seu corpo ainda em flor, rescendendo a jasmim”... ‘Movido como que por misterioso impulso regressel, finalmente, a murmurar, convulso: "Hei de vé-1a outra vez, hei de beijé-la entim!” vir Voltel, tudo era festa! A natureza inteira era um sacrario enorme inteiramente aberto! — 0 monte, 0 vale, © bosque, a mérmura ribetra, desde a campina verde ao matagal deserto, tudo me recordava 0 pasado... A cachoeira entre pedras rolava. E de prantos coberto desde 0 primelro plano serra derradeira meu tristissimo olhar se prolongava incerto. Contemplei, de relance, o velho engenho, a seara onde, ao vir do arrebol, ha seis anos partindo, pela primeira vez, cheio de dor, chorara. — No olro do oriente em febre o rubro sol surgindo toda a antiga floresta ao longe iluminara como um leque de luz em crispacées abrindo! Ris, porém, como Cleonice o recebe, fria e indiferen- temente: 546 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE 1x “ant Cleonice, eis-me aqui. Téda a minha alma chora pela radiosa Iz que em teus olhares erra. Foges de mim? Perdio! Nao vés que me devora a paixdo que outta igual ndo se encontra na terra? Maldita sojas tu, para sempre maldita, 1d que em teu coragao s6 falsidade habita e um reflexo de luz dentro déle nao medra!” Indiferente olhou-me e conservou-se fria, e na amarga expresso de seu semblante havia a algidez tumular de um coragio de pedra! E 0 luto e a saudade fol tudo 0 que ficou désse amor dosgracado e fatidico: x Amel — como inda h pouco 0 confessel — Entanto em troca d@ste amor, restam-me agora o pranto, a magoa, 0 desespéro, a realidade, a dor! ¥ dentro do passado, onde a saudade existe meu iniitil viver é tao magoado e triste ‘como um quadro hibernal que vai perdendo a cor... —0 verso ¢ facil, espontaneo, evideneiando, no seu auts ‘uma irreprimivel inelinagdo para a poesia, De forma correta, embora sinda um tanto ou quanto ‘excessiva, 0 pocta ja se mostra aprumado, isento, sem divida, das yacilagées e perplexidades da sua produgo anterior. DOLOR BARREIRA Obedece, outrossim, fis mais rigorosas exigéncias de métriea. (Os alexandrinos so harmoniosos, e 0 pensamento, que os inspira, tradu-lo o poeta artisticamente. Clovis Monteiro, & propésito de “Dentro do Passado”, assim se manifestou: “O segrédo da arte, como o mistério do amor nio depende dos nossos esforgos desvendi-tlo. Quando nos jul- gamos mais de préximo a éle, elo mergulha novamente nas sombras. & a ilusio perfeita da miragem. ‘© vero artista 6 aquéle que sabe dar expresso ao tra- balho inanimado — tal qual um ténue s6pro de vida, Mas aquilo que nos habilita a isto se ndo consegue apenas com © recurso da paciéncia e com o dispéndio de energias, pois, que, sendo um predicado, 6 também um privilégio dos espi- ritos superiores. ‘Temos, de qualquer modo, afinidade com uma obra, quando esta obra é 0 produto de uma alma de artista. E, assim, apraz-nos sempre estar em eontacto com ela; por esta raziio, relemos o poema do st. Otacilio de Azevedo, subordinado 20 titulo — Dentro do Passado, Safdo & luz no ano transacto, sdmente agora nos foi dado conhecé-lo; isto dizemos com algum pesar. So versos de um mogo rico de talento, con- quanto ainda nao opulentado de cultura, e no qual se verifica uma espontanea tendéncia para a poesia. Nao se tortura para produzir, ao contrario, obedece as vibragdes do seu estro. Canta 0 amor, néo 0 amor-loucura, que ¢ como um vuledo cujas flamas latentes envolvem e causticam 0 coracdo, mas aquéle suavissimo amor que nasce com uma esperanga fe morre com uma saudade, Catorze sonetos alexandrinos compdern Dentro do Passado, Histéria de um longo idilio, como téda narracio deste genero, prende e sensibiliza. Como que estamos a ver, diante de nés, a virgem que, de ordinario, triste e sé, & semelhanga do préprio sentimento 548. HISTSRIA DA LITERATURA CHARENS® que Ihe incendeu as fibras, um dia despertou sitbitamen E que ela Amou.,, E em seu olhtar entangueselde e doce, Qualquer coisa de vago ¢ indefinido havia. E a quem ela amou? perguntar-nos'ha, com justificavel curiosidade, 0 leitor. Queres tu sabé-lo? ‘Ao simples fazedor désses magoados versos. Excusamo-nos de pormenorizar 0 enrédo do poema, 0 que seria talvez supérfluo. Apenas nos restringimos a ex- ternar que, em sintese, 0 poeta fol infeliz nessa fase da sua vida: viu ruirem os castelos que arquitetara, experimentou © fel de um desengano inesperado, 0 sr, Otaeilio de Azevedo conduziu-se com aprumo na ela~ 10 do trabalho. mais agradavel torna a impressio que nos fica de Dentro do Passado, 0 perceber-se gue os versos foram feltos com facilidade, ¢ que as imagens vinham natu- ralmente como se J estiveram t0das bem dispostas. Inferimos disto, também, que © Jovem poeta esta em condigdes de fazer obra de mais péso. ‘Metrifica corretamente. £ conveniente, no entanto, registrar, como iinica censura, que ndo procura evitar os lugares comuns; mas daste defeito, relevével até nos consi- Gerados mestres, ir-se-i corriginde A proporgio que for tomando conhecimente profundo da lingua que maneja. E, ainda, senhor de vocabulério mais amplo, saber vestir com forma mais tersa as suas idéias que, pois, se ja sao brilhantes, passardo a ter a solide do mrmore, que se ndo gasta com © perpassar dos tempos, © poema Dentro do Passade atesta sobejamente o mere cimento do seu autor.” (212) — Com 0 pocma Dentro do Passado habilitou'se Otacilio de Azevedo ao preenchimento da cadeira do “Grémio Literario Cearense", da qual era patrono Lopes Filho, e em que, gracas elite “Corseio da Ceank", de 18 de setembro de 1917 DOLOR BARREIRA Wo de efiviente valia, afnel se om: xvidamente, em 1918, dois anos depois, saia-nos Olucilio de Azevedo com 0 seu Livro Alma Ansiosa, ¢ de versos era publicado, em 1° edicfo, sob os ensas do “Gremio Literario Cearense.” Alma Ansiosa se dividia em quatro partes: — Sonho s, Dentro do Passade © © Castigo de extinte, Aluch t5tin. (214) vi se, pelo indicads livro, da primeira & ultima das suas piginas, que o poeta vive fora do mundo, adormecido num internsindvel sonho de arte e de poesia. Otacilio de Azevedo, como diria Mario Linhares, é daquelas eriaturas toeatas do fogo sagrado, para quem 0 convivio das musas constitui um verdadero viitico espiritual. # que, no seu pensar, como no de Voltaire, a poesia & necessiria ae homem; quem ngo ama a poesia tem um espi- rito drido e pesado, porgue os versos sZo a mdsica da alma. Vede como 0 vate abre 0 livro, corroborando 0 que s° afirmou: PORTICO Arte! Supremo ideal inatingivel! Sopro que nos faz delirar na ansia da perfeigao © empresta alma ao pincel e diviniza o escépro, na conquista da gloria e da ressurreigao! Foram excluicas, nessa 2 exigio: Awséncla de am coryo, A Sidney Ho ‘Hone iva nto an clam a 3 ele, revatece HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE Arte! Oceano divino onde o espirito do homem mergulha na explosdo de um desespéro atroz, cujas vagas febris, que os tempos no consomem, sio Niégaras de luz rendilhadas de sols! Arte! Eterno farol diante do qual se ajoclha toda a minha alma ansiosa abencoando o porvir, ha mals vida e calor numa tua centelha que em téda a irradiagio das pérolas de Ofir! Préso 20 circulo cruel déste anseio infinito ante © meu grande, imenso e iluminado amor, chamorte; se é debalde ora enviar-te 0 meu grito, certo nunca ouvirés meus queixumes de dort Certo néo saberds se é por ti que mergulho na religiosa paz de minha solidao, de meus prantos ouvindo 0 queixeso marulho, ‘quase que espedagado 0 préprio coracao! Certo nao saberas se, a proclamar teu nome, Ge mim mesmo esquecido, © olhar fixo no além. todo o mal que me punge e a vida me consome, 86 de ti, 56 de ti, doce viséo, provém! Volve-rme um meigo olhar purissimo ¢ risonho cheio de encanto € amor e inspirago, pois vim terra para amar-te acorrentado a um sonho que ndo teve coméco ¢ nunca tera tim! Eo poeta, em verdade, sonha infindavelmente. MEU CASTELO No mundo da ilusio, de sonho em sonho, de tenda em tenda, divaguel sonhando. Num faustoso castelo, alto, risonho, fitando # aurora, adormeci cantando. DOLOR BARREIRA As colunas de claros alabastros, — flocos de nove, de cristal vestidos, tinham todo o fulgor da luz dos astros, que no azul da amplidio rolam perdidos. .. ‘Tudo era ricot SONHO MORTO Construi na esfera azul de meus sonhos naseidos i ao luar das ilusdes, ureo castelo... Ao lado, papollas, roseirais, jasmineiros fleridos, tudo, tudo ao frescor das viragdes plantado, Acontece, porém, que tudo era mentiroso e falaz. Uma ver que despertasse, era para velo, 0 seu sonho querido, a jazer-Ihe de ao pé, destrocado e morto, de encontro as asperezas e amarguras da realldade. .. E exclama: Finalmente, um dia, cansado de dormir, eis, despertei. E de tudo que, enfim, sonhando via, nada 20 meu lado, despertando, achei! Désse efémero sonho despertado, como quem vive sem saber que vive, eu contemplo os destrocos do sonhado eastelo que era meu... ¢ nunea o tive! ‘Ou entao: Fui feliz no arrebol das estagées primeiras, mas ao chegar 0 outono 0 castelo eu vi prestes a rolar, qual se esval o fumo das lareiras. ‘ORIA DO LITERATURA CEARENSE Hole, no amplo contraste obedeeendo ao edrmulo, todo o jardim se encheu de trémulos ciprestes © 0 castelo faiaz transformou-se num tiimulo. . Ou ainda: Quantos castelos desmontados! Qantos sonhos de amores na amplidio dispersos! Nada resta, afinal, que ur mar de prantos na marmérea aigides déstes meus versos! — Mas i850 de nada the importa, pois o poeta, dando de ombros as intempéries da vida, readormece para continuar 8 sonar. Otacilio de Azevedo & um subjetivista, um emotive, um sentimental, em outros térmos, como de Raimundo Correfa escreveu Amadeu Amaral, “um lirieo de forma parnasiana, ou um parnasiano de alma romantica.” Leva todo © tempo a cantar Cleonice e 0 seu amor. E 0 faz sempre em yerso harmonioso, de maviosas cadéncias, miisicalmente, — itrompendo-Ihe os carmes, palpitantes dos misteriosos penetrais do coragao Ora canta Cleonice ¢ as extintas ilusdes e venturas do passado, como na poesia PAGINA ANTIGA ‘Tio alegres que fomos no passado, to venturosos no passado fomos. E porque hoje, Cleonice, é desolado tudo em que os othos tristemente pomos? Quaiquer coisa morreu... ail qualquer cousa cujo profundo mal minha alma junea; se a minha pena desctever nao ouss, a tua boca aromal nAo dir nunca DOLOR BARREIRA 553 Entant, Pio alogres que fomos lo sei que acerba e indefinida magoa faz que 0 meu peito viva imerso em pranto € 0s teus timidos olhos rasos de Agua. Se rompemos 0 azul da mocidade como dois cisnes meigamente unidos, ‘viveremos, agora, da saudade como dois nautas pelo mar perdidos! ‘Toda vex que 2 tormenta escura e fria nos perseguir pela existéncla a fora, abriremos, repletos de agonia, nesta eterna afliedio que nos devora, © livro do passado — aureo tesouro em cujas velhas paginas benditas contemplaremos em mil letras de oito, ‘todas as nossas ilusdes escritas, Regressaremos aos bons tempos idos, — ésses tempos de amor que longe vio ‘Se em vio soltares os teus als sentidos, meus ais sentidos soltarei em vao. E veremos, Cleonice, o rio, as fontes, onde deixavas a tremer de anseios meu olhar descobrir mil horizontes na morna aurora de teus mornos seios. Quando formos, mais tarde, bem velhinhos, torturados por mérbidos desejos, encheremos de prantos os caminhos onde, outrora, floriram nossos beijos. Bad HISTORIA DA LIT Na vis-erucis de nossos desenganos chorazemos em Ansias imortais, por aguéles de amor passados anos que nanca mais veremos... nunca mais! Ora, como no sonéto A Curva do caminho, ja atras transerito, canta Cleonice, perdende-se nas sombras da noite, para mune mais voltar. ‘Ora, scorrentado A mais eruel das obsessées, canta Cleonice sorta, como no sonéto vIsKo Noite morta, Um luar velho, amortecido e fio, da pzisagem silente os miisculos recorta. Entre, pela jancla, em meu quarto sombrio nivea réstia de luz que a vista me conforta Alongo 0 olhar... Medito... Em meu pensar doentio erra o vulto de alguém... Abro convulso, a porta; © penumbra que envolve o meu leito vazio, desenha-se Cleonice, hi tantos anos, morta... Prése & acerba impressdo que a mente me fulmina, tento, embalde, esquecé-la e, sem destino ou rumo, ougothe, ansioso, a voz plangente e cristalina. . Ela sempre! Cleonice! E, alucinado, a ésmo, para fugir-lhe — oh! céus — tresloucado presumo que preciso me féra eu fugir de mim mesmo! Os olhos da bem amada, que caudal de emogées niio he arrancam da lirat No pcma dessa denominagdo, em que, como em muitos outros, parece acentuar-se a nota simbolista, quantas vibregbes, quanta sensibilidade! thos, mortos cristais, velados de tristeza, de solugos de dor, de gritos de agonia, olhos — reflexos da alma, envoltos de incertesa, de quelxumes, de angiistia ¢ de melancoliat Othos! Soluga em vés tOda a minha alma présa no magoado esplendor de vossa luz doentia. .. B ao contemplar-vos tenho a dorida certeza que jé fostes de febre e de vohipia, um dia! Ah! vés sois para mim dois diafanos espelhos onde erram, sob 0 luar, entre imidos refolhos, a saudade de alguém, solugando de joelhos. Se da esfera do amor rolo no amplo declive por ¥és, é porque sois, oh! doloridos olhos, dois sepuleros de carne onde a minha alma vive! 1 HA no mortudrio azul désses olhos doentios, — olhos que abertos sempre estdo mortos de sono, a tristissima luz dos creptisculos trios que despontam nos ¢éus no oiro fluido do outono. Othos — fontes de amor — que dolorosos rios de légrimas sensuais, que inda agora ambiciono, nao deixastes correr, em solucantes fios, em mil noites de treva, oh! filhos do abandono! Na muder tumular onde viveis envoltos quantos poemas, enfim, pelo Universo soltos nao inspirastes sempre em vosso olhar profundol Certo estou que vos amo... ¢ toda vez que penso neste amor gue evolui cada vez mats imenso, suponho mergulhar num misterioso mundo. mr No violiceo esplendor désse olhar que segreda toda a historia infellz de uma existéncia atroz, hha como que o chorar de um violino de s8da. embalado ao sabor de misteriosa voz... Do ilimitado amor na limpida veréda, das claras ilusdes nos flavos arrebéls era, outrora, sua luz to cristalina e Iéda como se houvesse nela um turbilhdo de sis! . Hoje, é um lar quase morto 0 seu clardo pressago. Da urea chama que the era ardente a diamantina resta apenas um esbéco amortecido e vago. E 0 queixume da dor que inda o embala prevejo que é talver 0 rumor da ansiedade divina do rogar musical da asa de oiro de um beijo! — © amor, que é ao mesmo tempo o supremo encanto ¢ a agdnica tortura da sua vida, ora esté para sempre acabado © morto, como atesta 0 sonéto: PONTO FINAL Tudo morte entre nds... Tudo acabado... Tudo para sempre desfeito entre nés dois... Que importa que 2 natureza seja um cemitério mudo, ou que seja um tesoico? A solitaria porta = DOLOR B sor ARR do tugiirio onde vivo ¢ em ti pensando estude ndo se abrird jamais, nem plsaret na horta ‘ onde, outrora, beijei teus labios de veludo, nessa febre de amor entre nés dois ja morta. . Longe de teu soztiso e de mim mesmo longe, na amarga solidio de meu viver de monge, como o batalhador que abandonasse 0 escudo, depois de tantos ais e de martirios tantos: A derradeira vez venho dizer-te em prantes: — Tudo morto entre nds... Tudo acabado. .. Tudo. Ora, contraditériamente, morto embora, sobrerive a si mesmo, para reviver eternamente na sua lembranga, como se ¥@ dos sonctos Paisagem Morta e Sonho desteito, PAISAGEM MORTA ‘Mudo ¢ 56. No siléncio augural do abandono, tenho em ti todo o meu vio pensamento absorto. Qual viajor que deseja hospitaleiro sono, Penetro da saudade o amargurado porto. Morta nunca serés pata 0 meu ser, se no horto €o amor — 0 tinico tem que na terra ambiciono — Gintila ainda hoje 0 Iuar de teu sorriso morto como num fim de ocaso 0 oiro fluido do outoro... Na amarga solidao, que me envolve neste érmo, abrir-se-4 para ti, qual misteriosa porta, todo o meu coracio néste pesar sem térmo! Na ampla esfera a que o teu grande amor me transporta continuards vivendo em meu sonhar de enférmo ‘como um rio de luz numa paisagem morta, 558 - HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE SONHO DESFEITO ‘De nosso antigo amor nada mais nos conforta, nada mais nos embriaga os coragdes. .. Entanto, no sei porque através dessa afeicao ja morta ino me € dado esquecer teu doce olhar tZo santo Nesta auséncia brutal que o coracdo me corta, tendo no olhar teu vulto emoldurado em pranto, descerro da saudade a misteriosa porta, eu que tanto te amei, que inda te quero tanto! ‘Se aos paramos dos céus os tristes othos abro € dos sonhos contemplo o desfilar macabro sobre 2s ruinas finais dessa itusio perdida, um solugo de dor sufoca-me a garganta 6 tanto o meu pesar e a minha angustia é tanta como se um corvo atroz me estrangulasse a vidal — Olacilio nfo canta somente o amor, que & a sua gloria 0 seu suplicio, mas tambem a tristeza e o sofrimente, que Ihe angustiam os dias presentes e Ihe enchem de méus pres~ sfigios 0 futuro. Digam-no os sonetos ‘ULTIMA PAGINA Como o viajor que em meio do deserto eneontra, ao pér do s0!, plécido abrigo, — repouso, agora, solitario, certo de que sé mégoas dormiréo comigo.... Meu coracéo — tristissimo jazigo de mil sombras de anguistia hoje referto, fechou das ilusies 0 dures postigo depois que para © amor fol todo aberto! DOLOR BARREIRA 559 Préso A teia de aranha da saudade © que mais me tortura 0 vo sentido e de amarguras 0 meu peite invade 0 remorso cruel de haver mentido: — pois se do anior cantel mais da metade metade nao cantei do que hei sofride. A TAPERA Nesta antiga e fecunda e abrasadora seara, onde fuzila a luz e colorido impera, quanta vez nio sentiste uma volipia rara Palpitar no teu ventre, oh! misera tapera! Sorri de ti, hoje, 0 sol que suavemente aclara teu palido esqueleto emoldurado de hera... Fs a estétua da dor que uma saudade ampara, és um sonho que morre e 0 esquecimento espera! Eu também, qual tu fdste, As mos a eburnea lira, cantel, sob 0 alvo Tuar das estagées de outrora, a esmeralda do campo e 0 azul do céu safira.... Hoje, tudo pesar, desengano, amargura E se te amo € porque no teu cadaver mora a tristeza imortal que em meu viver perdura! — Otacilio é, outrossim, um grande evocative, eujo verso se nos desentranha, em nostalgias doloridas, em magicas Suavidades. Nao nos deixam mentir as quadras que batizou com o nome de ' ' 1 | | i t | | | | 860 HISTORIA DA LITERATURA CFARENSE SAUDADE Saudade — magoado opiisculo da vida dos infelizes Amargurado erepiisculo de merenc6reas matizes. Saudade — Santa Teresa chorando uns olhos azuis. Alma de oiro da tristeza, miios postas, em solos nus... Saudade — paisagem fri num fim de ceaso, no outono. ‘Tristeza... Melancolia de uns olhos mortos de sono. Agua parada... Perfume, de uns labios virgens, em prece, indefinido queixume das aves, quando entardece. .. ‘Saudade — argentea nebiina érmas estradas molhando, chéro de amor em surdina, mérbido luar se apagando. Verdes moitas de mofumbo, carro de bois a cantar.. # contigo que sucumbo A poeira de oiro do luar... Galos cantando, alta noite, distantes, na solidao... Do vento no brando acolte as queixas de um violéo. DOLOR BARREIRA 561 Saudade — fumaga ao longe, saindo de uma lareira Olhos tristonhos de um monge pensando malguma freira... Palavras Ocas, sem nexo, tudo isso... Quem dizer ha-de 20 menos, como um reflexo, © gue nos seja — saudade? — © poota, todavia, no sente apenas. . © poeta também pensa... Bo de que nos certifica a poesia Deus, pela qual se vé cue Otacilio nfo é indiferente ou alhelo aos problemas sobrenaturals, DEUS ‘Tudo se acabard, precisamente, um dia na face do Universo, A platina, o trineal, © carbinculo, a gema, # opala que irradia, algas, iodo, carbono, a enémona, o coral. © inabatavel roble, hi cem anos nascido A abrasadora luz do sol radioso e quente, © rochedo ancestral, entre escarpas erguido, — tudo se acabard, impreterivelmente! Os astros rolardo, como coreéis de togo, pelo azul da amplidio nos pélagos profundos.... A terra partini no derredeiro afOgo fem busca de outros eéus, outros caos, outros mundos... Ao nada volverd 0 orbe em poeira submerso, # vaidade, a soberba, a falsidade, 0 egoismo. ‘Tudo que o pincel diz, tudo que exprime o verso, teré por sepultura a profundez do abismo! 502. --HISTORIA DA LITPRATURA CEARE DOLOR BARREIRA 503 pee ee eae alee Pad ene Ainda filosofando sdbre o principio e fim do homem, diz | de Leonardo da Vinci a célebre Gioconda, EE pociataa senso tudo que acusa o artista e a natureza acusa , Gesde © sabio que pensa ao vagalhao que estronda! IVER, De onde vim? Aonde irei? Qual seré porventura Mergulhardo no horter do ciclone, desteitas iS onaintin asec ince cient eepene 2s obras de Vergilio, Horacio, Dante, Homero, @ perde-se, no azul da ilimitada altura ‘© em mil nuvens de po transformar-se-do as seitas a o6u muda e aem fim, todo o-men grito: sonde? Ge Inicio de Loiola e Martinho Lutero. De onde vim? Aonde irel? Na Ansia que me amargura Alias aos ombros tendo © amplo globo do mundo, 03 sentidos, por mais que atente 0 ouvido © sonde De Rodes 0 colosso, 0 Coliseu, a Bstinge, 0s mistérios da vida — oh! terrivel tortura Deste o pequeno grio de areia, vagabundo vejo que tudo foge © aos meus ollos se esconde ‘Ao Everest, uja fronte os céus atinge! Para que vivo, ento, se fataimente, um dia na desesperagiio que a vida me agonia como todos no mundo hei de, afinal, morrer? — Sdbre viver © morrer faz 0 poeta curiosa filosofia no sonéto INCONTENTADO Eom vio falo e preseruto a natureza, e note que esta diivida eterna € 0 pesadelo ignoto déste sonho de horror e maldi¢o — viver! Que Ansia 6 esta de viver que nos domina? Que ansia se apodera de nés, se a nossa vida ¢ um inferno ee een ae ee Otacilio nfo era estranho ao géneto trova, de que & 1 to opulenta a poesia cearense, mas, ao contrario, como entre outros Alvaro Martins, José Albano e Antonio Sales, as pa bere ae rare ee oleae sera compés com apreciivel felicidade. Vejamos algumas destas: | da ventura e do bem s6 existe na distancia do pensamento? Ea dor — negro vampiro eterno — TROVAS | da alva flor da ilusio sorve téda a fragancla? HA umm relogio que me espanta 6 aquéle que tenho em casa, quando cheyas, éle adianta, quando te vais, le atrasa... Tudo é amargo e irrisério em nossa vida. Entanto, inda assim préso a0 mal que o destino nos tece eu quisera viver! Que me importaya 0 pranto? Cuidei dez anos de rosas Mas ail — sorte infeliz que s6 infortinios junca © dolas perdi 0 gésto fora o mais desgracado aquéle que tivesse quando vi, mais perfimosas, a certeza brutal de néo morrer mais nunca! as rosas que tens no rosto! 5 9 EES ere - HISTORIA DA LITERATURA CEA SALOME, 1 (© festim terminara. .. Herodes, tendo em vista que Salomné triunfou na inimitavel dansa dizthe — “Dar-te-ei, agora, oh! primorosa artista, tudo que o teu pensar néste momento alcangs!” Salomé, téda nua, aos régios pés se Janca ¢, de joelhos, algando os bracos bela e egofsta, devolvendo-Ihe 0 olhar onde a volipia avanca, exige-the a cabeca, apenas, do Batista. _—“Pede-me, oh! Salomé, barras de oiro, aos montes, incenso, mirra, tudo 0 que me cerca... Pede fe terels meu reinado.... os corcéis, os pavées. Suplicar Yokanaan é-me de mau augtitio Fora, tendo agua aos pés, morrer de horror e séde € 0 palécio trocar por misero tugirio. ..” m Nada, entanto, Iho muda 0 lascivo desejo que o sex vio pensamento aquéle instante abarca. Que Ihe importa ouropéis se j& Ihe vence o ensejo de realizar um sonho? E que importa o tetrarca? ‘Seu tesoiro que fique entre as paredes da area... ‘Toda a gidria do mundo é um pilido lampejo ante 0 ansioso momento emocional que marca a esperanea sensual de seu primeiro beljo. Quando se Ihe apresenta, em prata de oito fino, 6 sou prémio fatal, num éxtase divino, numa voliipia enorme, esmagadora ¢ louca, —--4 DOLOR BARREIRA B07 apagarst-Ihe 0 olhar, arfa-the 0 ebirneo seio, © ébria de gozo oscula, em delirante anseio, da cabega sangrenta a regelada bocal ur E diz-lhe: “Ate que enfim posso, Yokanaan, beljar-te a boca inanimada, umedecida e fria. E, ombora em prantos, posso agora merguthar-te ee meu colo sensual na alva carne macia... Quando pregavas tu teu verbo em tdda parte, num desinaio de amor, alucinado, ardi todo meu coracdo! E desejava amar-te © al s6 pelo teu beijo eu, misera, vivia! Para agora aleangar-te, o men corpo alvo ¢ ardente deu mil voitas, valsando, em longa Ansia incontida, como se enrosea ao cedro a languida serpente.. Porém — oh! caro instante onde encontrei conférto — se nao pude aleanear-te inteiramente em vida, tive a gléria Infernal de inda possulr-te orto!” — A respoito de Alma Ansiosa escreveu Silvio Jiilio a Otacilio de Azevedo a seguinte carta: “Muito me agradou a leitura do seu livro “Alma Ansiosa”” A delicadeza das suas estrozes, 0 suave simbolisma das suas rimas, as docuras liricas dos seus versos, denotam 0 pocta vordadeiro Das estrélas que compulsei, aqui no Cearé, escritas por conterrineos seus, nenhuma 6 melhor do que a sua. Hoje, entio, creio que nao hé, néste trato da patria brasileira, trés representantes da nova geragio capazes de principiare com talento e gosto a espinhosa carreira literdria. Os mocos, afastados da lealdade estética, esquecendo a orientacao en te cn IE LET TT IT IE EES: 568: HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE nacional e calorosa do nosso sentimento, metidos no casacio de inverao, que nao Ihes faz falta néste clima quente, per ceram 0 rumo, Agora, com straso de quase meio século, & que a juventude da terra de Clévis Bevikiqua descobriu 0 gelado, impassivel ¢ avelhantado parnasianismo! Nao é preciso ir adiante. © sr. facllmente venceré neste meio, porque permite ‘que 2 sua poesia venha do sou préprio coracio. O que ¢ indis- pensével € o trabalho de ourives. Dia a dia, procure simpli- ficar a métrica, despojar a expresso de pedrarias falsas, aportuguesar bastante o idioma e aproveitar as belezas do Brasil. Quando o assunto for triste, ai esté Casimiro de Abreu, ai esti Garrett, af esta Zeferino Brasil, para mestres; quanda far bélico, ai estd Camies, ai estd Bilac, ai esta Castro Alves; quando for galante, af esta Bernardim Ribeiro, ai esti B Lopes, af esti Fontoura Xavier; quando for descri- tivo, ai esta Cesttio Verde, ai esté Fagundes Varela, ai esta Alberto de Oliveira... Temos o Bocage, temos 0 Gongalves Dias, teros 0 Joao de Deus, temos o Guerra Junqueiro, temos boa gente, que merece aplauso e carinho, porque sempre trabalhou pela nossa lingua e tradicao. Afinal, 0 estudo dos estrangeiros. Depois, sim, a literatura alema, a russa, a espanhola, a italiana, a seca, @ inglésa, a sul-americana, a norteamericana, a francesa, tédas sem predilegées, sem antipatias, sem preceitos tolos, sem birras. De cada pais, convém conhecer tudo. Nao 6 praticar 0 que fazem certos sujeitos abestathados, que, sem pudor algum, nao entendem Musset, Hugo, Chateaubriand, e, pontificando, 2urram que a Franca artis tica naseeu com Leconte de Lisle e Herédia; no 6 dar coiees na meméria de Basilio da Gama, de Gonzaga, de Durfio e até do indiscutivel Cambes, ¢ marcar o inicio da vida intelectual luso-brasileira, com 0 surgimento de Raimundo, Alberto e Bilac; nao é pilhar sonetilhos esparsos de Reneda e Villaespesa, e esquecer Campoamor, Zorrilla, Espronceda, Lope, Calderon, Santa Tereza. DOLOR BARREIRA 509 Nada disto é certo. Cultura s6 a tem aquéle que vem da origem ao térmo, regularmente... Cultura, é a de Tomaz Pompeu, 6 de Alcides Maia, é a de Rui Barbosa. Analisar, euidadosamente, as fontes, passar as épocas seguintes, aleangar os dias contemporaneos, ¢ ser culto, ¢ saber de verdade, O resto sandice e espayento. t superficialidade e pachequismo. Dosgracadamente, espaventosos e pachecos hd muitos. Basta que 0 rapazola rabisque sueltos politicos para 0 érgio do partido e 0 mundo € déle. Advogado sem causas, logo recebe 0 adjetivo de procurado. Fiitil e vaidoso, logo é profundo modesto. As vézes, porque, mal e mal, gagueja ai um frane@s de almofadinha, ¢ literato; porque aprendeu a dala do descobrimento do Brasil, ¢ historiador; porque papagueia regrinhas imprestaveis de gramatiquice provin- ciana, é fildlogo. Ora, vé o sr. que é preciso reagir... necessério triunfar limpamente. Por isto mesmo Ihe digo quanto 6 indispensével ao legitimo intelectual trabalhar, trabalhar... e combater. Fique certo da minha admiragao e estima — O futuro ha de ser seu.” (215) — Ainda em 1918, aparece-nos Otacilio de Azevedo com “Sugestiio do luar”, versos, mais tarde enfeixados em “Réstea de Sor”. Gis) “Aime Ansiona” sina provocon a antonio Sules a eeguinte carta por éle endereseda a Otacillo Ce azcvedo “afew ‘caro, poeta, Guein counéce a’ humlldade de sua posico e a Impertelcto do. seu proparo intelectual, £6 pode ter ‘wna palav?a para’ comentar ‘eu livre: stent 'S2 talento e muito talento poderia, do pouca que vos’ tem vivido fe estudado, ficar stan estrofes “edlidas, ‘hermoniosss e"cintilantes em ‘quo vibra 6 chora alms de um veraadeire poeta ‘Tao jovem, tho. pobre, to desajudado de’ todcs os melos ge utara fe e bem ear, tot talento, como uma ‘somente Taselda debaixe de lima’ pedra, medeoue aehou cautinho pare a luz. que fecundow numa ‘loragao do sono. e. belo “hos dodos rijos e fodiseretos da critica @ prolbldo tocar messas roses eng “irtes, onde Id tons formas que por Yéves rivalizam com ce mle -\. CEARENSE 590 HISTORIA DA LITSRATUI Sompre a mesma elogiténcia, a mesma vibragiio, o mesmo ‘Sempre a Imagem de Cleonico a invadir-the e atormen- tar-the, obsedante, o pensamento, E tu, Cleoniee infiel, cuja amarga lembranga ‘me fere mais que @ ponta aguda de uma langa onde foste pairar? Vern em sonho e diz-me: — onde quer que © teu corpo esteja, todo abismo, montanhas, vagalhdes, desertos ¢ penedos, pedras, urzes e, em sangue os pés, vales, rochedos exposto ao sol, exposto ao vento, A chuva exposto sem soltar um gemido, ou temer um desgdsto, romperei, se no fim da viagem dolorosa. tiveres para mim uma frase amorosa. ‘Tudo rolou por terra e 0 meu pesar medonho € um negro véu que vela 0 cadaver de um sonho que julguel f0sse a minha eterna mocidade e hoje é um crepiisculo violéceo de saudade. .. Compreendo o grande mal que o teu primeiro beije me eausou para sempre! Ah! néo tivesse 0 ensejo de te amar com loucura ¢ fervor, néo tivesse © infortiinio de haver queimado toda a messe de oiro dos sonhos meus, 20 calor de tua boca € nd fora infeliz, nao tivera a ansia louca de ser amado e amar! Ah! s6 agora compreendo que a morte do prazer € um pesadelo horrendo Deragrines produtos dos Jardins bem tratados das casas ricas 'E ha weiss, melhor que tudo, a sa de ‘ume ‘ima op berante de emoso ¢ impregnada do sol fertlizante das tg ‘Alma Ansiosa € a promessa florida de una messe que hi de vir, se a desesperance oo The ressgcar 0 coragto com set sopro.mortilere ‘Mas quem tho fenaamente Tow para ‘conguisiae wm lugar vim #0, ha DOLOR BARREIRA que alucina, que esmaga, enlouquees ¢ toreura. — Ditoso 0 que no soube o que fésse a ve Nunca mais te verei a alva destra macia que, dantes, tantas véz0s, 6brio de g6z0, eu via Carpirei teu rigor no mais fundo abandono té que os olhos me cerrem 0 derradeiro sono. — A “Sugestio do luar” segue-se “Restia de Sol”, publi cado em 1942. (216) Neste livro, Otacflio é mais descritivo, de mais objetivi dade, mais préximo da natureza, apanhando-Ihe em fla- grante aspectos, quadros, paisagons, cendrios, panoramas, Ora, sio as Arvores, como 0 Flamboyant ¢ 0 Pau a’Arco; ora os arbustos, como 0 Cardo; oras as aves, como a Graiina, © Pavio, a Araponga; ora os animais, como 0 Camelo; ora a Arana, a Lagartixa, 0 Cameledio, 0 Sapo; ora, finalmente, espetdculos como 0 do Crepiisculo © dO Amanhecer na Praia de Iracema, Comprovando a exatiddo das suas pinturas e do suges- tionante dos seus painéis (0 poeta chega a ser, as vézes, suntueso no colorido do seu verso), seja-nos permitido trans- crever os sonetos © Flamboyant, Gradina, A Lagartixa, 0 Sapo, @ Camelo e O Amanhecer na Praia de Iracema: © FLAMBOYANT Alto, pompeando ao sol, a ampla copa escarlate num desvao de floresta, escarpado e rochoso, nem sequer dos tufées 0 rijo agoite o abate, hé um século, talvez, o flamboyant majestoso! (G10) Agu Né equiroco de Maio Linhares, Rétea de. Sol foi publced, AIF, mas sitn'em 1902, camo o torna expllete o exenipa que tenho & as sma TORIA DA LITERATURA CEARENSE Resistira do tempo ao proceloso embate: — chuvas, raios, trovoes... Ofertara ainda 0 g6z0 20s viandantes que, apés mil léguas, o remate encontravam-lhe & sombra, & feicio de repouso. Perverso lenhador que ali passara, 0 augusta régio troneo the fere @ afiada ségure... B éle, préso a resignacao de um martire, de um justo, ante @ luz que o contorna, em doiradas centelhas, num surto de eclosio, tomba, exdnime, imbele, sob 0 rubro esplendor de fgneas flores vermelhas. GRAONA Negra, da mesma cOr, do negro fruto oleoso da carnatiba em sazio, mal foge a noite bruma ampla copa imperial do juazeiro frondoso © auréo canto desfere, a0 sol nascente, a gratina, Quando a séca € tremenda e o calor impiedoso como 0 cearense, emigra... H & essa época oportuna abre as asas e parte e buscando outro pouso faz que & trémula voz @ nostalgia se una. No atro exilio, a evocar os longinquos recantos como que num solugo @ argentea voz desata, fora alegre e feliz, ora cheia de prantos, E a cantar, sob 0 azul que de nimbus se veste, (65 nossos coragdes nos domina e arrebata, é a alma sentimental dos sertées do Nordeste! DOLOR BARREIRA A LAGARTIXA A esconsa chaminé de colonial mansarda, sem guardar a outras mais qualquer despeito ou rixa tendo o corpo a vestir-Ihe 2 cdr cinrenta-parda, vive, ha um ano, talvez, a estranha lagartixa ‘A-asa de olro e rubi do inseto, ansiosa, aguarda.. Vence, de lado a lado, a parede de lixa, cis que & frente Ihe chega a présa ideal. Nao tarda tela As maos... Para tal os miisculos espicha. . Corre em circulos, corre em linha reta, corre em diagonal e ao fim a libélula alcanca que, embalde, se debate ¢ ninguém socorre F quer suba morosa, ou mais depressa desea, como um simbolo que é da maior desconfianga fa ver se esté segura, ainda move a eabeea. © SAPO Soja manha de sol, ou noite escura seja, ou nilo fulja de luz 0 minimo farrapo, ‘como 0 sibio que pensa ou filosofa, arqueja, de obseuro charco & borda, entre llanas, 0 sapo Na Agua que 0 céu desenha e 0 seu corpo roreja, dando-Ihe a atra feleo de imido e ascoso trapo, se, acaso, Ihe aparece imprevista peleja, el-lo, apés um mergulho, A superficie eseapo. E sonha, e sofre, ¢ sente, cisma silencioso, E na atitude alvar que nos parece iniqua, préso & vida através de um prisma misterioso, | SORIA DA LITERATURA CEARENSE fulge, no espélho morto, a fronte hedionda ¢ chat a0 convulso esplendor da rutilancia obliqua do érmo reflexo azul de seus olhos de prata, © CAMELO Grande Cireo Central de Variedades. Novo Programa. Orquestra. Ao centro, as argolas, a barra, Oespetaculo tem coméco... Freme © povo, que dir-se-ia uma s6, retumbante algazarra Dansa a artista no arame. O olhar, inquieto, movo & plaléia. Um fedelho ao trapézlo se agarra, Chega a vex do camelo. & triste... Eu me comovo enquanto se diverte a assembléia bizazra! ‘Trabalha. Admira-o © piiblico. O érduo passo persegue-Ihe a fazer mil piruétas oriundas de um eérebro demente, igneo 0 rosto, 0 palhaco. Entristece-the, entanto, um pesar quase humano, quando Ihe ensombra 0 olhar, e as érbitas profundas a saudade sem fim do deserto africano... © AMANHECER NA PRAIA DE IRACEMA Crepiisculo de sangue. As nuvens vaporosas — Résea fimbria que a luz num longo beljo aquece — Cintilam como um véu marchetado de rosas, Ao rubro olhar do sol que, trémulo, aparece © mar, bramindo, irado, em Ansias dolorosas © amplo dorso, arquejante, avoluma... Estremece. As espumas, em torno, esmaiam, preguigosas, Na volipia glacial das ondas. Amanhece. stn iene any 2m sence iene este pra enmnennnt eta rap eee Risca 0 esmalte do oceano, asa sdita, uma vela. © iro fluico agonisa... O oriente se desata ‘Na apoteose da cdr, nuns longes de aquarela.. Da paisagem ao fundo, A luz quente do sol, ‘Como que se diluindo em laminas de prata ‘Suzge do Mucuripe 0 longinquo farol. — Tudo isso no obstante, no The saem do espitito a bem-amada e 0 scu amor, antes, pelo contrétio, continua a canté-los, em transportes intimos, Allds, 6 aqui que o prefiro, mesino porque a sua verdadeira poesia Ihe yern de dentro alma, em gritos, em gemidos, em impetos de vida interior... De uma e de outra dizem, respectivamente, os scnetos: RESTIA DE SOL ‘No érmo ventre da noite, onde o meu ser se entranha e ertam, convulsos, no ar, os meus fundos gemicos, €00 teu amor, cuja saudade me acompanha, 0 objeto singular de meus cinco sentidos. . Rios correm que 0 luar 0 argénteo dorso estanha € onde poe sombras de otro, em cambiantes diluidos. (© vento sopra ¢ as rijas drvores assanha, mas 86 0 teu nome é que me canta aos ouvidos! Onde quer que derrame o diibio olhar enférmo, surgem fantasmas deslizando na penumbra que enche de horror e tédio esta noite sem térmot Porém, mal penso em ti, faz-se a treva arrebol, © 0 teu vulto divino o meu lelto deslumbra, como em dias de chuva, aurea réstia de sol! 516 HISTORIA DA LITERATURA CEARENSE INDECISAO Houve sempre entre nés uma divida... Uma amarga indeeisiio — misto de amor e médo... Se em tomo désse afeto eu mesmo disse alguma, palavra, apenas fi-lo em surdina, em segrédo. .. 1 ésse amor, rosa ideal de ccrola de pluma, que nascera ao sabor dos prantos, no degrédo, e que ainda, hoje, o meu ser diviniza e perfuma, tinha que se acabar, ou mais tarde, ou mais cedo, Quanta vez, a evocar os seus olhos de monja, no passel, triste e 86, ante 0 horror que me chumba como se a alma me fora amarissima esponja! 4% pena que ésse amor, cheio de Ansia e desejo, capaz de me fazer 0 mals feliz, sucumba, sem um terno sorriso, uma légrima, um beljo. — Da sua capacidade de evocer continua Otacilio a nos oferecer as mais vigorosas amostras. Veja-se a dogura nostal- giea com que nos relembra e recorda os lugares em que passout 0 seu tempo de menino: RECORDAGAO ‘Da casa em que passel a meninice, nada mais resta, hoje, a ndo ser tristonho paredio a que a velhice aprouve um dia que assistisse © meu pranto amarissimo correr Doloraso alicerce! Quantas vézes na tua angustia mineral, nfo tens sorvido, as derradeiras fezes, © negro ealix dos revezes no teu silencio atroz de pedra e cal! DOLOR BARREIRA sit Quantas vézes, sdzinho, no maidizes, préso 2 um flamivomo crisol, 0s tous longos momentos infelizes, expondo as pétreas cicatrizes aos céusticos da luz de ardente sol! Passa sobre 0 teu dorso mutilado, de me cortar © coraca tremenda cérca de arame farpado, num quadrilitero alongado pela mais rude, indiferente mio! Ainda 18 esto os ingremes rochedos, negros, escalvados ¢ nus, cujas sdxeas arestas de Iagedos eu coroava de brinquedos, entre as urtigas e os mandacarus. . © solitério engenho e, erecta, a prumo, ‘a sua longa chaminé enegrecida pelo antigo fumo. ‘segue, cantando, 9 mesmo rumo orlo... A ipueira se enche de agua-pé. Eo meu carro de bois que se montava por sObre um simples earretel. camo vai longe o tempo em que eu brincava € 08 vitreos pocos pontithava de minsisculos barcos de papel! Vejam-se as emogdes retrospectivas e as incoereveis saudedes que Ihe produz SUGESTAO DO CREPGSCULO Creptisculo. Sol poente... Uma enorme ansiedade Paira em tudo... Hora triste a hora do entardecer! Que amargura na luz, que infinita saudade ‘Merguiha no meu ser! HISTORIA DA LITERATURA CRAPENSE A agonia do ocaso... A lembranga de outono Que erra na mela luz doentia do sol-pér ‘Tudo me faz lembrar, em maguado abandono, Velhas coisas de amor... © vito féseo diluido, a tristeza da bruma, Que o crepe negro vai abrindo na amplidao, Parece que a saudade, em péso, se avoluma Dentro do coragao. Paira no invio horisonte, entre espasmos o cme, A alma de Otelo, imersa em sangue, a solucat E ota é tao doloroso o seu fundo queixume Que me ponho a chorar... Erram sombras pluvials de érmos vultos doridos. Dafnes oscula, ansioso, a boca de Cloé.... Eyocando Tokanaan olhos no azul perdidos, Solua Salomeé. ¥ um cortejo infeliz de almas apaixonadas Que viveram do amor na doirada manha.. Ante as réseas visdes das mulheres amadas, Agoniza D. Juan Ante a diafaneidade esmaecida que encanta pée no poente em fogo aurea renda de luz Faz poesias de amor ao crepasculo, Santa ‘Tereza de Jesus. . He céu, visto por entre a luz trémula e incerta, Quando se the desfaz 0 azul puro de anil, Relembra uma gravura em oiro, toda aberta, ‘A golpes de burll... (217) ia poesia. conta a’A Poesia cearense no Centenicto, de Selet Casspon, com" titulo caso, depois woalfieada ©” suimestada, DOLOR _- As atividades poétieas de Otacilio de Azevedo nao cessam... Prossegue produzindo e publicando 2 sua pro- dugao, apesar da sua pobroza ¢ dos desestimulos do meio. Em 1944, publica — “Redenedo.” © um poema heréico a Aboligéio dos Escravos, em que Redengio, no Craré, an cedeu, gloriosamente, de muitos anos, o Brasil. Mostra, ai, © poeta que também sabe arrancar da la, yrdes e vibragées patristicas Depois de deserever, em alacres tonalidades, a sua terra © 05 seus eneantos naturais, e de dar-nos noticia do que era a tragédia horripilante e lobrega do cativeiro, o filho de Redengio, em bem recortados alexandrinos, assim termina, — exultante de incontido entusiasmo, o seu hino civico ao oxeelso e aurifulgante acontecimento: Foi um dia de festa e regozijo. As pracas regorgitam. © o grande ideal que veneeu... © apéstolo de Deus a missa canta, em gracas do instante mais feliz que Acarape viveu! E no céu que se arqueia ¢ de esrélas se borda, como brilhantes num estojo todo azul, ante o imenso prazer que 08 coragbes transborda, fulge a constelaedo do Cruzeiro do Sul! ‘Tédas as ruas se embandeiram de mil cdres, & impossivel supor a alegria geral ‘Atapetam-se, em cheio, as ealgadas de flores, Gizem velhinhos: — Nunca houve festa igual! Crozam de palhas de coqueiros as esquinas, 4 guiisa de areos de triunfo. O sino plange. — Ba chamada dos fis, as horas das matines Crepuseula. Da lua aparece o dureo alfange. 580 ISTORIA DA LITERATURA CEARENSE ‘Terminara o furor cielépico dos relhos Fora Persou que vendo a vil megera intrusa, som auxilio sequer de magicos espelhos, decepara a cabega horrivel de Medusa. E os sus cabelos, salamdndricss serpentes, gue se estoreeram, venenosas, pelo chao, semelhavam, depois, as tétricas correntes, cujos elos quebrou, sézinha, Redencio! ‘Terra — Mae, A sonhar com ten manto azutado, de estrilas de oiro a arder na capula de anil! sem Ayescha que de mim se apiede, destronado, choro, como o fizera 9 Rel Mouro Boabdil! Que outro te louve a gloria e o grande feito cante, ois que eu, pobre de mim, néo te soube exaltar. E que ésse outro — 0 que imploro aos céus — me néo [suplante neste ardor com que sei, mais que ninguém, te amar! Recebe, pols, meu verso humilimo, num fausto . de Ansin e vencragio — nostalgico penhor que te iré oscular, num profundo holocausto, na infinita extenséo déste infinito amor! — Passados trés anos, ou seja em 1947, dé Otacilio a lume o seu livro — Desolagio. (218) Porque resultado de maior experiéncia ou fruto de espirito mais amadurecido, 0 certo 6 que considero ésse 0 seu melhor livro. Sente-se que 0 poeta é mais seguro da sua técnica e est ra posse integral de si mesmo. (218) Ao wero — Detolaeso — snoxou-se © pooma — Redencio —, de page, Sta 20h DOLCR BARREIRA saL © titulo do livro se confunde com a prépria vida do poeta — desolacio, — ou 0 seu sofrimento, o seu deseneanto, a sua infelicidade. Esta infelicidade, as mais das vézes, ou quase sempre, the advem do amor, dos seus enganos e desenganos: FELICIDADE Ha no sei que anos luto e em vio perquiro 0s meandros do destino, na ansiedade de saber o suavissimo retiro onde se esconde essa felieidade. .. Ser no olro aos montées? Na arte que admiro? No sorriso da crianca, em tenra idade? Ou do que morre no iiltimo suspiro Ou num beljo sensual dado & vontade? Grito, porém sé 0 éco me responde e repercute na amplidio tranquila (© meu tremendo e irrespondivel — onde? Existe, sim, mas num Ambito ignorado e aquéle que correr para possui-la se julgar que € no amor, é um desgracadot SUBLIME INSTANTE Aquéle instante em que tu me entregaste (© corpo, onde 0 desejo tumultua, e, num surto de amor, me segredaste com lagrimas na vor — sou téda tua nunca mais o esqueci... Porém passaste como um reflexo trémulo de lua eno mar de meus prantos estampaste esta saudade que se perpetua 582 «HISTORIA DA LITERATURA CEARE Fora melhor nunca me aparecesses! E eu nio sentira ésse inefavel g6z0 que me faz infeliz... Nao sentira ésses dias de angiistia ¢ horror — sombra querida! — Pois em paga do instante venturoso sou desgragado para toda a vidat OCEANO OCULTO HA no meu peito inguieto um mar revélto, e em ruina, velas s6ltas, a Nau da esperanga a flutuar, de onde se ouve, alta noite, a vor clara, em surdina, de sereias, prateando os colos nus, a0 luar: Ouvindo, muita vez, essa orquestra divina do Chopin que nao ha no pranto incontide do mar, penso no eterno bem que minha alma imaging, € que os meus olhos nunca mais hao de encontrar ‘Téda vez que ao seu dorso 0 dibio olhar mergulho, € olgo ésse intima e vago © queixoso marulho, sinto no sei que amargo e imprevisto temor. ‘So minhas ilusdes as sereias... As ondas, desenganos, .. E oh! tu, largo oceano, que estrondas, és 0 pranto que verto em meus sonhos de amor! ~ Torturou-o ¢ afligiu-o de tal mancira © amor que tende a realizar-sc, que choga a considerar, como jé 0 acen~ tuava Humberto de Campos, tinico e verdadeiro amor o que nunca se realiza ou foge a qualquer realizacdo. Ougamos-the 0 501 POLOR BARREIRA 03 DESEJAR Desejar 6 methor do que possuir... A posse 60 ponto primordial da morte do dese}o. ‘Mais doce ao pensamento € 0 beljo que se esboce i que aquéle que se dé em troca de outro beijo! Feliz © que, no amor, nunea encontrou 0 ensejo de materializar ésse afeto tio dove, © soube a Ansia abafar com restricdes e pejo, como se um largo culto & castidade {6sse, .. Rese sera, de certo, o grande ideal perfeito, que nao cabendo em si, em remigios profundos, na de, eterno, entreabrindo 0 cércere do peito ascender, como um sol, sem sombras ¢ sem rastros, e arder pelo infinito, em misteriosos mundos, € perder-se, depois, na vibragho dos astros! — Entretanto, obstinada e impenitentemente, corre atrés do cilicio com que éle préprio se suplicia e atormenta, bendizendo-o, como supremo lenitivo, o que é mais. Diga-o 0 sonéto SAMARITANA, Nesta febre de amor que me devora, cuja existéncia s6 de te promana, chamo pelo teu nome, a téda hora, num solugo de dor, Samaritana! Entorna sobre mim, num véu de aurora, © licor de teu beijo, que esta insana séde que o coracdo me abrasa, agora, das que existe, decerto, 6 a mais tirana! ritas HISTORIA DA LITERATURA CRA mo trago nos escombras dos sonhos © madeiro mais pesado, esmagando-me, em cheio, os frageis ombros, © choréveis tanto que, entre escativos, vendo-me, todo teu, tay desgracado, te acabarias pelos préprios olhos! De resto, 6 to intensa esta Ansia de amor, avassala-o integralmente, que ji ndo 0 contenta 0 amor da Sama- ina; quer o amor de tédas as mulheres, o que chama SUPREMA GLORIA # contra o homem que explode o meu rancor medonho, no inviolivel siléneio em que, a sés, me aprofundo, abencoado rancor que além de tudo ponho, como a f6rea vital que me prendesse ao mundo. # contra éle que de dio, ¢ de eétera inundo todo o meu coracéo cada ver que transponho na voliipia imortal de um desejo profundo DOLOR BARREIRA 585, MAGNUS DOLOR Esta amargura que nio tem remédio, esta infinita, incégnita ansiedade que enche minhalma de tristeza ¢ tédio, sem um sorriso, ao menos, de piedade! © sentimento que, encontrando assédio no meu trémulo ser, féz-se verdade, a Ansia do triunfo que, por intermédio do meu sonho me punge... esta saudade de um bem que a gente téda a vida anseia, formam, reunidos, no solar secreto que ha no meu coracdo a larga tela que a negra aranha do destino estende ‘onde eu morro de dor — misero inseto cuja vida interior ninguém compreende! — Alma visionaria e lirica, como ja se féz sentir, 0 seu as cem portas de luz da tebes de meu sonho! lirismo mais uma vez desabotoa e se expande nessas quadras que crismou de —Rimario — algumas das quais destaco a BE por isso que sou 0 D. Quixote inimigo seguir: do agro moinho do mal, cujas moendas consomem. da ampla seara do Bem 0 iro fulvo do trigo. E oh! Deus! se de um s6 golpe éste orgulho nao feres, certo sabes que odiando a mim mesmo, como homem, Quando 0 teu pé meigo € doce pisa, de leve, no chao, Quisera que a terra fésse © meu pobre coracao. tenho a gloria de amar a tédas as mulheres! ‘Jé vou chegando aos cinguenta, ainda te amo com fervor. Com os anos 0 afeto aumenta, nio ha velhice no amor. ~~ As vézes 0 pocta sucumbe ao péso do tédio da vida, ou oprimido por essa dolorosa ansiedade na procura de um bem tantalicamente desejado, mas que nunea alcanga,

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