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Jorge Schwartz Vanguardas Latino-Americanas POLEMICAS, MANIFESTOS E TEXTOS CRITICOS A Parabola das Vanguardas Latino-Americanas Eu Vio Mundo, le Comecava no Rect ‘eee Dias, tuo deur panel exposto 0 Salto Revolclonsrio", 1931 ‘A vocagio comparatista de Jorge Schwartz néo estréia na presente obra, {JS estava patente nos seus estudos minuciosos sobre Oliverio Girondo e Oswald de Andrade, autores embleméticos das vanguardas argentina e brasileira, que Jorge Schwartz crtico argentino-brasileio e professor de Literatura Hispano~ “Americana em Sé0 Paulo, publicou, hi poucos anos, sob o titulo de Vanguarda e Cosmopolitismo. ‘Agora o interesse do estudioso desloca-se no espaco e no tempo. Volta-se para as muitas e dispares vores lterérias de “nossa América” que se fizeram ‘ouvir no period de intensa fermentacao cultural balizado pelo fim da Primeira ‘eo comeco da Segunda Guerra Mundial. A paixto da pesquisa anima 0 t1a- balho inteiro: 0 autor alia a solidez da documentacéo e a variedade da biblio- {gratia a pertinéncia do longo comentério introdutério, A sua informagéo iddnea fndo se atém ao registro seco dos dados, pois ¢ cruzada por pontos de viste pessoais capazes de alimentar duvidas e polémices fecundas. Esta é, a meu ver, a funcao das boas antologias lterdrias: combinar histo- riografia e critica de modo constante e discreto para que o leitar possa ver 20 mesmo tempo 0 panorama e 0 olho seletivo cuja mirada abraga 0 conjunto, rnada esconde, mas nao se abstém de iluminar mais vivamente o que Ihe parece de maior relevo. Schwartz cumpriu cabalmente 0 seu propésito de apresen= tador e editor critico desse fartissimo material, agora enfim posto 20 alcance de todos os pesquisadores das letras latino-americanas dos anos 20 e 30. E nao figura entre os seus menores méritos 0 de ter integrado firmemente as vanguardas brasileiras a esse universo de onde a rotina ou a incompreen- so de outros antologistas nos costuma exclu. Consideradas por um olhar puramente sincrénico, isto é, vistas como um sistema cultural definivel no espago e no tempo, as nossas vanguardas literérias no sugerem outra forma se nao a de um mosaico de paradoxos. Causa ern- bbaraco 20 seu historiador atual qualquer tentativa de exposicdo sintética desses movimentos, pois a busca de tracos comuns esbarta a cada passo em posicoes ¢ juizos contrastantes. 0 leitor de hoje, se interessado em detectar 0 carater dessa vanguarda continental, 0 quid capez de distingui-la de sua congénere [A Paussoun As VaNuatOAs LATHO-AMERCANAS \Vancatoas LATINO-AMERCANAS européia, colhe of defeitos de tendencias opostas e, multas vezes, repuxadas. para seus extremos: as nossas vanguardas conheceram demasias de imitacéo demasias de originalidade. ‘Quem insiste em proceder ao corte sincrOnico teré que registrar, as vezes no mesmo grupo e na mesma revista, manifestos em que se exibe o moderno cosmopolita (até & fronteira do modernoso e do maderndide com toda a sua babel de signos tomados a um cenério técnico recém-importado) a0 lado de exigéncias convictas da propria identidade nacional, ou mesmo étnica, mis- turadas com acusacbes a0 imperialismo que desde sempre massacrou 0s povos da América Latina. ‘Assim, no interior da mesma corrente, como por exemplo entre 05 mo- dernistas brasileiros da fase mais combativa (de 22 a 30, aproximadamente’, valores estetizantes mais protestos nacionalistas pedirao a sua vez impondo- se 3 atencSo do pesquisador que se queira analitico e isento de preconceitos, ‘A esse historiador caberé por fim adotar a linguagem resvalante das conjuncoes aditivas que somam frases semanticamente disparatadas embora sintaticamente rmisciveis: “o modernismo foi cosmopolita e nacionaliste"; "as vanguardas bus- ccaram inspiraco nos ismos parisienses bem como nos mitos indigenas e nos rites afro-antilhanos”, ou ainda, “a arte latino-americana de 20 foi néo 56 ab- solutamente pura como também radicalmente engajada” ssa leitura estética tenderia a cair por si mesma sob 0 peso das antino- mias que pretendesse agregar. As vanguardas néo tiveram a natureza com- pacta de um cristal de rocha, nem formaram um sistema coeso no qual cada face refletisse a estrutura uniforme do conjunto. As vanguardas devem ser con- templadas no fluxo do tempo como 0 vetor de uma pardbola que atravessa Pontos ou momentos distintos. ‘Mas uma visdo que persiga mods e ritmos diferentes néo deveré, por sua vyez, camuflar a imagem de uma outra unidade, sofrida e necessariamente con- tracitéria: a unidade do processo social amplo em que se gestaram as nossas vanguardas. As diferencas entre movimento a e movimento b, ou entre posicOes do mesmo movimento, 36520 plenamente inteligiveis quando se consegue aclarar por dentro o sentido da condicdo colonial, esse tempo hist6rico de longa du- racéo no qual convivem e conflitam, por forca estrutural, oprestigio dos mode- fos metropolitanos e a procura tacteante de uma identidade originériae original Nos escritores mais vigorosos que por sua complexidade interior se liberam mais depressa das palavras de ordem, & 2 busca de uma expressao a0 mesmo tempo universal e pessoal que vai guiar as suas poéticas e as suas conquistas cestéticas, As passagens, as mudancas aparentemente bruscas que se obser vam, por exemplo, em Mério de Andrade e em Borges, conheceram motivagSes de gosto e ideologia mais profundas do que o pendulo das modas vanguardeiras. No entanto, como nada acontece fora da histéria (totalizante: piblica e in- tima), também as opcbes decisivas desses artistas to diferenciados se inscrevern naquela dialética de reproducéo do outro ¢ auto-sondagem que move toda cultura colonial ou dependente. : ; : : Qs pélos dessa calética, vistos em um interval de tempo breve (dos anos “200 fim dos 30), parecem reverstvels: uma tendéncia, cosmopolita ou na- cionalista, no precede forcosamente a outra; qualquer uma delas pode apre~ sentar-se em primeiro lugar, al €a sua complementaridade enquanto vertentes do mesmo processo, Acertar © passo com as novissimas correntes artisticas dos centros inter- . naGionais € @mi Sequida revolver os tesouros da vida popular indio-luso-negra, este foi o caminho de Mario de Andrade, fundador do “desvairismo” e, poucos ‘anos depois, protagonista na luta pela construcao de uma literatura nacional (Ou percorrer estacdes semelhantes em sentido contrario: foi a rota batide por Jorge Luis Borges, jovem poeta da magia portenha e, em um segundo tempo, ‘mais cosmopolita dos escritores hispano-americanos. Seré a vanguarda uma ponte de dias mos? E da bivaléncia estrutural da condi¢do dependente que nascem tanto as po- larizagées dos grupos quanto aquelas mudancas de rumo em trajetorias pes- soais. $40 posicées e passagens de outro modo inexplicéveis, ou mal explicadas quando atribuidas t40-s6 a uma presumida inconsisténcia de toda forriaco cultural periférica. Basta atentar para a fecundidade de alguns dessesitinerarios quando vivi- dos por intelecturais como Vallejo, Mério de Andrade, Oswald de Andrade, Borges, Carpentier ou Maridtegui; e basta deter-se na forjadura de certos con- ceitos polemicos (como “nacionalismo pragmatico” e “nacionalismo critico”, de Mério; “antropofagia", de Oswald; “nacdo incompleta’, “esboco de nacao", de Maristegui; ou, em outra perspectva, “realismo magico", de Asturias, e “real maravilhoso", de Carpentier) para reconhecer nessas invencdes de pen- samento e fantasia o trabalho de uma razao interna e a expresso de uma fome de verdade. ‘Amibas as direg6es apontadas (da incorporacéo do outro & busca da iden- tidade, e vice-versa) demandam um esforco de compreenséo que nos faca vis- lumbrar algum sentido na histéria des vanguardas e no curso da producéo cultural que se Ihes seguiu a partir do decénio de 30 Em Borges e no empenho que a inteligéncia de nossa América tem feito para evitar os riscos do provincianismo, afirma-se 0 motivo que ditou estes versos de Oliverio Girondo, tao brilhante experimentador poético nos anos 20 quanto autor do argentino Campo Nuestro de 1946: Nunca permitas, campo, que seagote | C. nuestra sed de horizonte y de galope © pampa é origem, mas néo a determinacéo. € fonte, mas ndo o limite. Dé imagens inaugureis, mas ndo detém em sia palavra derradeira. € compo nuestro ¢ aqui figura: a metonimia de todas as paisagens que inspiraram _poesia regional-universal. A poesia bebe no poco da memoria e da visao, mas 0 poste modula a sua frase ne paute surpreendente do imaginério para [A Patdtots OAs VaMGUAROAS LaTING-AMERCANS Vancuanons LATNO- AM onde confluem as percepcoes da viglia cotidiana e os sonhos de um vivido sem margens precisas. Para compor a verdade da poesia (e esta ¢ a licéo de uma vanquarda que vem dos pré-romanticos]entram com iguas dreitos © teal, 0 iteal, e essa zona movel ene o real ¢ 0 irreal que se chama o possivel. ce ecorro a um exemple tirado de outro contexto regional para lustrar a pas- sagem & universalizaca0. Um exercicio de singular atencéo prestada 20s ritos afro-cubanos por umn eseritor de vanguarda, Alejo Carpenter, em seu romance juveniljEcué-Yemba- Ot, de 1933, pode valer como subterranea pré-histéria de um projeto narra- tivo de vastos horizontes em que o “particular” ~ aquele recanto onde mora Deus, na bela frase de Warburg ~ oferece 0 melo mais feliz de sondar a face enigmatica do universal. Pay que tomar nuestras cosas, nuestros hombres y proyectarfos en fos acontecimientos universales para que el escenario americano deje de ser una cosa exdbtica” ~ séo palavras do autor de Siglo de las Luces e de El Recurso Gel Método, obras que tecem 0s delicados fios que prender mitos pré-colom~ pianos 8 histéria do Ocidente e, em senso inverso, 0 pasado latino-amer: Cano a mitos universes, Ese descermas 8s fontes do pensamento e da postica de Carpentier, reencontramos algumas inquietacbes do mais expressivo dos Grgd0s da vanguarda cubana,a Revista de Avance, talvez2 primeira 3 pubII- cara "poesia negra" da ilha; © convém lembrar que da pena do seu diretor, forge Mariech, solu em 1928 2 Indagacon de Choteo,enseio em que prope desenhar © pertil da cubanidad. A obra inteira de Alejo Carpentier perfaz 0 transite do campo nuestro a nuestra sed de horizonte y de galope de que ros fala o vanguardista Girondo. Volto a atencso agora para o outro vetor da parébola: aquele que parte da ruptura ostensiva com o passado e agride as convencbes acadamicas. ditas vrpalstas® ou “de cOpia seri. O cerne de todos os hovigntitos de vanguard, Tonmal at se desnuda, € a apologia do(“espirito novo") do “espirito modemno” que aproxima futuristas e ultrastas, Se dacialstas-cesvdiristss © Sieridentistas, Mas o que se assimilou, em todos eles, das correntes contem- poraneas europeias? wn idéia fundamental da autonomia da esfera estética, que é uma tese (&~ dical da modernidade pbs-roméntica. Segundo uma leitura de extracBo socio Togica (quer macvsta, quet weberiana), as vanguardas estéticasrepresentaramy 2 ponta de lanca do pracesso moderna de ‘eutonomizagao~ da arte, na me gis em que sa0 movimentos andlogos a diviss0 crescente do trabalho © 2 es- pecializacao técnica das sociedades industrials avancadas. Tosa tose, que se escora no travejamento de nexos deterministas, fol rela- tivizada por Leon Trotski na sua interpretacéo do futurismo. © pensador ob~ Servou que o imagindrio mais gitantemente tecnotaticolangado pelos grupos ‘Feteristas ndo sa gestou nos paises onde a indéstra tinha alcancado 0 seu auge {Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha), mas entre escrtores de nagdes menos desenvolvidas como a Russia, agitada pelos cubo-futuristas, e a Italia, patria de Marinetti (0s textos das venguardas formais ndo seriam, portanta, cbra mecanicamente produzida pelo avanco econémico, mas encontrariam chao fértil na periferia ‘ou, pelo menos, em certa periferia onde o desejo ardente do novo seria mais forte que as condigoes objetivas da modernidade Certas revistas e manifestos mexicanos, argentinos e brasileiros da década de 20 podem abonar a tese de Trotski que, por sua vez, deve ser dialetizada, pois alguns dos vanguardistas mais ldcidos do mesmo periodo, como Vallejo, Maridteguie Mario de Andrade, recusaram a mitologia da mSquina e com maior veeméncia 0s tracos da retorica fascista que a obra de Marinett jé trazia em seu bojo. A reproducao do outro entre os povos dependentes nao & sempre e necessariamente cega, nem a faculdade de criticar € privlégio dos que che- garam em primeiro lugar na corrida da revolugao tecnolbgica e da hegemo- nia imperialista, Creio que o ponto basico a considerar em toda a questdo de “transplante” de correntes estéticas est4 em saber 0 que, de fato, significou para a arte latino americana essa operagao de renovado contacto com a cultura europeia do primeiro quartel do século XX, colhar em retrospecto de que dispomos hoje, apés setenta anos da eclosso vanguardiste, favorece o exercicio de um critério que descarte o supérfluo e colha o essencial Nés no inventamos a teoria da autonomia da arte, é certo, mas pudemos trabalhar o seu pressuposto geral mais fecundo: o principio da liberdade, tanto nna dimenséo construtiva quanto na expressiva, A liberdade estética constitui o a priori de todas as vanguardas literdrias. O senso da liberdade propicia, de um lado, a disposicio de agir ludicamente no momento de criar formas ou de combiné-las, e, de outro, amplia o ter= Fitorio subjetivo, tanto na sua conquista de um grau mais alto de consciéncia critica (pedra de toque da modernidade), quanto na direcao, so aparentemente contréria, de abrir a escrita 8s pulsdes afetivas que os padrées dominantes cos- tumam censurar, Formar liviemente, pensar livremente, exprimir livremente. Este é 0 legado verdadeiramente radical do “espirito novo” que as vanguardas latino-ameri- canas transmitiram aos seus respectivos contextos nacionais. Nao se trata de fazer o empréstimo de um elenco de temas e léxicos atua- lizados, 0 que teria significado apenas uma importacao de tracos passageiros; trata-se de atuar um principio que se afirma pela negatividade de sua acéo. Exatamente como a liberdade ética, que néo traz em si contetidos morais pron- tos (@ no ser quando farisaica), mas limpa o terreno das opressoes e das ati- 1, pi ost ops gv ne pein um ond cua. nha aa ‘buhante expresso, aon Amica cura Alam, ms ld en Rs, Nenhurn staal ranspot rh rae taccace an singuagen literatura shes Rnd ni, Tabor 1968p 1 23 [A Pasatous pas Vancuntoas LaMno-AMENEANAS \Vawovatons Latino“ AMENCANAS tudes falsas, e deixa a consciéncia em aberto para escolher e julgar os seus modos de agit. ‘A liberdade permite que a “sede de horizonte e de galope” se sacie onde ‘ecomo Ihe pareca melhor, e, para tanto, é necessério que ela exerca primeiro a ruptura com a ma positividade das convenc6es ossiicadas. Depois, ou no curso da luta, 0 escitor vai enfrentar 0 seu assunto, que o levard de volta as suas experiéncias vitaise socais significatvas. A liberdade marcaré entéo novos termose limites, exigindo o tom justo, a perspectiva carta. Eo modernista ce- dera a vez aquele moderno que sobrevive as modas. ‘Apassagem, que vincula estretamente liberdade e opgao, deu-se na mente dos poetas e narradores que inlectiram a parbola da sua obra da proclamacéo de tOrmulas libertsrias para aquela “procura tacteante de identidade”, vista, paginas atrés, como um dos polos das letras na condicéo colonial Os freios tinham sido arrancados, a hora era de partir sim, mas para onde? Para a propria historia social, para a propria histia subjetiva. Céser Vallejo, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, José Carlos Maristegui, Leopoldo Marechal: nomes que define exemplarmente esse percutso. O que Ihes dera © conhecimento intimo que tiveram do futurismo italiano e russo, do expres- sionismo alemo, do surrealsmo francés? © desejo de uma nova experiencia intelectual e expressiva, que imediatamente os apartou dos clichés, meio na~ turalistas, meio parnasianos, da belle époque, e os lancou de chelo 8 busca do “carater” ou "nao-caréter” brasileiro, pervano, argentino: uma aventura entdo prenhe de sentido estético e vastamente social e politico, Se o discurso se mantém fel a uma inspracBo dialética (pela qual arepetic8o a diferenca se chamam e se aclaram mutuamente), ficam relativizados os dualismos de que & prédiga a nossa linguagem didética quando secunda o tom drstico das polémices: vanguardas de arte pura versus vanguardas de arte compromissada; opcdo estética versus opcao ideolégica etc. O vetor da pardbola que aqui se tenta acompanhar nao permite 20 pensamento enca- thar na mera antinomia de atitudes datadas. O que interessa ao historiador & verificar se hd, e quando hd, um potencial de passagem, imanente & tenséo entre os polos. ‘A recusa incial de estilos ja exaustos deu & nova literatura fOlego para que retomasse 0 labor cognitivo eexpressivo peculiar a toda acéo simbdlca, Depois, de Macunaima, das Memérias Sentimentais de Jodo Miramar, dos Sete Ensaios de Interpretacao da Realidade Peruana, de Adén Buenosayres (que 0 autor comecou a escrever por volta de 1930), ndo parece Ikito separar, por espirito de geomettia a essmilacio do principio de liberdade formal ea auto-sondagem antropol6gica, pois embas as tendencies coexistem e se enlacarain nos pro- Jetos mais criativos que se seguiram aos manifestos das vanguardas. Chegou 0 momento em que, estimulado pelo conhecimento do outro, artista latino-americano olhou para si mesmo e surpreendeu um rosto humano, Jogo universal, nos seus cantose mitos, nas paixGes do cotidiano e nas figuras, da memoria ‘pesquisa operada no smago da pr6pria cultura eleangou nivelseistintos de originalidade em relacéo as literaturas europtias contemporaneas, Aqui, ta notivel dversidade das formacées socizislatino-americanas ede seus rt: mos de desenvolvimento que explica as diferencas quanto aos resultados artis ticos e ideolSgicos obtides pela literature pés-vanguardista ‘Culturas que se comptem de estratos no-europeus densos e significativos puderam insprar um tipo de literatura “marcada”, se contrapesta das eto- Foles Eo caso do Peru quéchua de Ciro Alegria e José Maria Arguedas: do Mésico Geteca e mestico de Agustin Yafez e Juan Rulfo; da Guatemala maye-quiché de idsturias; do Paraguai quarari do primeiro Roa Bastos, da Cuba negra de Nicolas Guillén: do Porto Rico mestigo de Luis Palés Matos; das Antifhas mulatas de Carpentier, de Jean Price Mars, de Aime Césaite.£ 0 caso parcial do Nordeste brasileiro negro e mulato de Jorge de Lima, Todos se benefiiaram do vento de Iiberdade que soprou nos anos 20. 0 serta0 mineiro (uso, negro e caboclo) de ‘Sagarana, o primeir vro de novelas de Guimardes Rosa, nao faz propriamente encecao nesse quadro, mas sinaiza um contexto peculiar ao Brasil onde © por- fugues nunca perdeu a sua hegemonia no processo da mesticagem linguistic Nesses ¢ em outros exemplos taca-se o perfil do que me pareceu adequado chamar “vanguarda enraizada"?: um projeto estético que acha no seu préprio habitat os materiais, os temas, algumas formas e, principalmente, 0 ethos que enforma o trabalho de invenséo. Exemplos tomados a outras artes, como a misica e 2 pintura concorrem para ilustar a expressio, As Bachianas Brasileras de Heitor Villa-Lobos © @ Sinfonia India do mexicano Carlos Chavez, compostas no decénio de 30, s80 Sirteses genisis de uma escuta moderna, pés impressionists, de timbres, rte ros ¢ frases melodicas autdctones. Juntas, de novo, liberdade @ opc#0. ‘Dos muralistas mexicanos, Siqueitos, Rivera e Orozco, a critica j8 disse © quanto souberam fundir motives da historia nacional com sugestoes formals Aaeubismo e do expressionismo, Nos “Tes igmamientos de Orientacion Actual ios Pntores y Escultores de la Nueva Generacién Americana”, de 1921, David ‘niaro Siguelros [a propunha tanto “a preponderBncia do esprito constrtivo sobre o espirito decorativo” (uma proposta que vem de Cézanne), quanto "2 fompreensao do admirével fundo humano da ‘arte negra’ e da ‘arte primi tiva" em geral”. Nesta ordem de ideas, iqueiros insist: “Aprorimemo-nes, de nossa part, das obras dos artigos povoadores Ge noss0s als, os pintoreseescutores Inds (malas, astcas,incsl nossa preximidade de cima com cries dare a assimlacBo do vigor construtivo de suas obras, em que existe um Caro co ciwanto elementer da natureze, que nas pode servi de ponto de partda, Adotemes 2 sua energia sintético.” ate “AVonguaéa aed (0 Nain Wo de Maite, tale rons 8 an-ae.1290), 955 2 AN educa 92. puso Ma el 0) Madara era 6 esc nea anate 90242. ve nee pl eae ae A aS alo depot quran set 0 Saad oes on nares a I yan co aforun cca oo mas, una eciin 2 SM ETOS Fee ees eiece ncaa Nagin, “1 Homaizo Wa Mia ena" et es teh Harare eueab. 36M, Fe 1017. \a5 ‘a tamaaots pas Vancunnoas LANNO-ANERICANAS Vanuasoas LaTWo-Al A metéfora do enraizamento corte o risco de soar como naturalista, raza0 por que convém esclarecer 0 seu sentido para afestar possiveis equivacos. Tomo 2 palavra na acepgao de contexto cultural e existencial: uma esfera que abrange tanto as percepc6es do cotidiano mais prosaico - a rede apertada da neces- sidade -, quanto o seu reverso, as figuras polissémicas do imaginério. Estas ltimas vive a ambivaléncia das formacées simbélicas, pois, filhas embora do desejo, aspiram ao estatuto de “coisa mental” e “fantasia exata”, para lembrar as definicées que da arte deu Leonardo, Um escritor “se enraiza" de modos diversos. Pode sentir e comunicar um enorme prazer na descricéo da superficie mais humilde do seu ambiente, e entao fard um veraz e vivaz neo-realismo; mas pode também, se for esta a sua voca¢ao, sondar 0 subsolo mitico da inféncia e descobrir nos labirintos da ‘memeéria 05 arquétipos do amor e da morte, da esperanga e do medo, da luta da resignacéo, sentimentos que habitam as narrativas de todas as latitudes. Leyendas de Guatemala, Hombres de Maiz, Vides Secas, Fogo Morto, Sagarana, EI Reino de Este Mundo, Los Rios Profundos: que minas de explorac3o par- ticular e de verdade universal! (Os seus narradores herdarem da revolugéo intelectual de entre-guerras aquele ppressuposto da liberdade pelo qual o espirto sopra onde quer; e por essa mesma Fazio, Ignoraram quaisquer constrangimentos de escola e grupo, internando- se resolutamente nos seus proprios materiais de vida e pensamento, Basta comparar as sues conquisias de estrutura romanesca e estilo com a prosa dos velhos regionalismos das suas respectivas literaturas para perceber ‘© quanto a vanguarda limpou © terreno nas diversas instancias do fazer nar- rativo: na representacao dos espacos, no sentimento do tempo, no grau de ora lidade dos didlogos, na autenticidade do tom, na formacao do ponto de vista ‘As paisagens familiares recebem nas lendas guatemaltecas de Asturias uma aura magica de lugares estranhos vistos como se fora pela primeira vez. Eis um caso feliz em que o contacto com 0 surrealismo despertou no poeta-nar- rador 0 desejo de penetrar no que ha de potencialmente misterioso na mais trivial das relagdes entre homem e homem, homem e mulher, homem e na- tureza. A caréncia desoladora em que vive o sertanejo no Nordeste brasileiro ¢ ana- lisada, por dentro, sem complacéncias folclorizantes mas também sem pre- conceitos burgueses, na prosa cortante de Graciliano Ramos. Eas palavras do campones peruano, mesmo quando articuladas no limpido espanhol de Arguedas, traem acentos e modulacées sintaticas que so um ‘amoroso convivio com a fala quéchua poderia ter inspirado. (© empenho ético acabou coincidindo com a pesquisa de uma linguagem ‘em que verdade e beleza acertaram o passo. A\literatura dos anos 30 e 40 criou uma nova imagem (densa, dramstica, desafiadora) de reas do continente onde eram e continuam sendo fundas as, marcas de dominacdes seculares: 0 sertao nordestino, as Antilhas negras, as aldeias serranas da América Central e do Peru. Para a mesma direg3o e com reflexos sensiveis na criagao artsticae lterdria convergiram entao 0s estudos antropol6gicos e histéricos sobre as diversas formagbes étnicas e sociais latino-americanas. Em Cuba, um valente pesquisador das tradic6es populares (musica, danca, santerias..) eda economia afro-antilhana, Femando Ortiz, foi inspirador e com- panhelro de primeira hora da poesia mulata de Nicolas Guillén, e deu subsi- dios para que 0 jovem Alejo Carpentier se aprofundasse nos segredos do passado local. 'No Peru, uma sélida linhagem de pesquisas incaicas e pré-incaicas aproxi- mou os etndlagos Julio Tello e Castro Pozo do ensafsta Mariétegui e do pin- tot José Sabogal, repercutindo fundo na vocacao narrativa e nos ideais politicos, de José Maria Arguedas, No México, o pensador de La Raza Césmica, José Vasconcelos, investido da autoridade de ministro da EducacSo, sustentou longamente os muralistas Rivera, Siqueiros e Orozco. No Brasil, um antropdloga sacial de peso, Gilberto Freyre, sem ter 05 ar- dores revolucionérios que animaram aqueles estudiosos, levou um José Lins do Rego a tratar em formas narrativas que beiram a oralidade a sua experiencia de menino de engenho paraibano. Imbricagées de meméria individual e meméria grupal, de exoresséo romanesca € pesquisa antropol6gica, fizeram dessa arte um divisor de aguas entre um tratamento convencional e naturalista daquelas formacées sociais e uma re- construcao afetiva, muitas vezes politicamente empenhada, do seu cotidiano. Uma outra conquista, absolutamente digna de nota, comum a intelectuais entre si to diferentes como Ortiz, Mariategui e Gilberto Freyre, foi a supera- {¢80, que todos eles empreenderam, da idéia de raga. Nesses anos pré-nazis- ‘tas a inteligncia latino-americana deu um salto qualtativo que seria irreversvel (0 mesmo néo aconteceu, como se sabe, com José Vasconcelos, notavel homem ppdblico, mas confuso manipulador do darwinismo, de Nietzsche e do mais exal- tado nacionalismo.) (© mesmo principio de libertacdo estética que presidiu 4 redescoberta do ‘ethos popular e das condigées socials do continente atuou em romancistas & poetas que se voltaram para os meandros da realidade inter e intra-subjetiva, ‘Adotando procedimentos de alto poder analitico (como 0 monélogo interior € 0 jogo de focos narrativos), destocaram as fronteiras do realismo psicolégico para os territérios do sonho, do delirio ou de uma cruel hiperconsciéncia da anomia e alienacao da cidade moderna. Alliteratura entre "objetiva” e “expressionista” que se forjou nesse processo de autoconhecimento do homem urbano se chamard, com igual dieito, "en- raizada” na medida em que as contradicGes da Historia compdem ume face interna, vivida e pensada, t0 real quanto a dos destinos coletivos. Penso na Buenos Aires e na Santa Maria imaginéria e verdadeira a um tempo, purgatorio fechado das almas e lugar de uma geografie absolutamente dbvia {que sai dos contos de Juan Carlos Onetti e de seu torturado Tierra de Nadie. ‘sPasdsovs AS VANGUAROAS La 28 ‘vavauatons Latno-Auenicanat Penso na Porto Alegre pesadelar de Os Ratos, de Dionélio Machado. E certa~ mente hd ainda muito © que extrair dos velos que a experiéncia da cidade em mutagdo abriu nos contos de Mario de Andrade e na sua *Meditacao sobre 6 Teta", entranhadamente paulistas; cu na poesia de Drummond e nos con- tos e romances de Marques Rebelo, filtro perplexos e irdnicos do cotidiano carioca de ambos. (0 exemplario é apenas indicative poderia continua Por exemplo: a critica latino-americana ainda nos deve o mapeamento das veredas, algumas sinuo~ sae insuspeitadas, que o surrealismo percorreu na historia de nossa poesia a0 longo dos anos 30 € 40. Murilo Mendes, Jorge de Lima, César Moro, um certo Neruda, 0 primeiro Octavio Paz, Xavier Villaurrutia e Lezama Lima esperam uma leitura de con- junto que dé conta dos enlaces de vanguardismo e crenca (religiosa ou ima- inente) nos poderes Gricos da imagem e da palavra (© que importa, afinal, & contemplar a variedade dos caminhos, solares ou rnotumos, corais ou solitrios, que ¢ vanguard franqueou aos escrtores latino- americanos que dela partiram ou imediatamente a sucederam. O seu destino de ponte me parece ainda 0 mais ico de promessas: da liverdade aberta para esta ou aquela opcio bem concreta. Mas no sé ponte: cais de onde se zarpa, plataforma de onde se alga v6o, zona franca que permite 20 escrito saltar as Givisas que separam o espaco ja percorrido eo horizonte que se desejaalcancar. © contrério também pode acontecer: a vanguarda, em vez de lancar pas- sagens, apropra-se das formas novas e exalta-as em simesmas, abstratamente Em lugar de pontes, constr6i moinhos de letras e castelos de cartas Alfredo Bost Universidade de Sa0 Paulo, janeiro de 1991

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