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Capítulo 1

Missões nas Ilhas Britânicas

Não há nenhuma indicação mais marcante da vitalidade das


igrejas ocidentais
durante os séculos, quando a autoridade romana estava sendo
substituída pela dos reinos bárbaros, do que a
força e persistência dos esforços feitos
para ctistianizar as
tribos pagãs que haviam ocupado territórios anteriormente
romanos ou territórios imediatamente adjuntos às
antigas fronteiras do império. Em nenhum
lugar esses
esforços foram mais bem sucedidos do que nas ilhas
britânicas, cuja conversão final ao cristianismo romanoe
católico redundou para o benefício não apenas do papado mas
das igrejas continentais de modo geral.
O cristianismo havia existido na Grã-Bretanha mesmo antes da conversão
de Constantino. Parece ter havido no oeste da Inglaterra um
cristianismo céltico, inti-
mamente aparentado com aquele da Gália romana, desde um
período razoavelmente cedo. Glastonbury, em particular, que
- como sua localização perto da desemboca-
dura do rio Severno atesta - era um porco antigo engajado
no comércio com a Gália e o Mediterrâneo,
aparentemente eta um primitivo local
sagrado cristão. O cristia-nismo também
existia nas cidades e vilas da ocupação
romana. Três bispos bretões de
fala latina estiveram presentes ao concílio de Axles (314).
Perto do final do quarto século, as tropas romanas foram
gradualmente removi-das da Grã-Bretanha (na
maioria das vezes por usurpadores imperiais
procurando fazer suas fortunas na Gália),
com o resultado que os habitantes da antiga
província
tiveram que se arranjar sozinhos para rechaçarem as
incursões dos saxões pagãos na costa arienal da Inglaterra
e, no norte, a pressão dos pictos da Escócia. Diferente-
mente da Gália e da Espanha, a Grá-Bretanha nunca havia sido
completamente
peso A IDADE MÉDIAE O ENCERAMENTO DA CONTROVERSIA DA
INVESTIDERA 259

romanizada, e a partida dos oficiais e


das tropas imperiais significou que, no
decor-Ter do quinto século, o país gradualmente
reverteu para uma organização tribal e as cidades foram
lentamente despovoadas, mesmo quando as incursões dos
saxões, anglos
e juros se tornaram em invasão total e ocupação.
O cristianismo, entretanto, sobreviveu. No livro História
Inglesa, de Beda, o
Eclesiástica da Nação
Venerável, encontramos que o bispo Germano
de Auxerre fez
duas visiras à Grã-Bretanha a pedido de seus colegas dali (429
e 444-445). A primei-ra dessas teve como
objetivo uma ação contra a propagação do
pelagianismo, embo-
ta, como veio a acontecer, ele também fora convocado, como
um antigo dux (Le., general) na Gália, a liderar
uma força bretã contra uma invasão conjunta
de saxões e
pictos no norte. Na época de sua segunda visita, os
adversários da Grã-Bretanha provenientes do outro
lado do mar do Norte haviam começado a
ocupar as costas
oriental e meridional da Grã-Bretanha. No decorrer do século
seguinte, os bretões, e com eles o cristianismo, foram expulsos mais
e mais para o oeste, até eventualmente
serem confinados a Cornwall, Gales e, no norte, Strarhelyde,
Mesmo na época de Germano, entretanto, os labores
missionários que iriam re-
sultar na conversão das ilhas já estavam a caminho. Nessa obra, o
é o de Patrício (ca. 389-ca. 461),
nome mais notável
“o apóstolo da Irlanda.” Um bretão cujo local
de
nascimento permanece tópico de especulação, Patrício era
filho de um certo Calpúrnio, diácono cristão e
homem de categoria curial em sua cidade
nasiva. Se-
questrado por corsários irlandeses quando jovem c
transformado em escravo, o futu-ro missionário escapou
depois de seis anos e chegou à Gália (talvez após uma visita
à
sua casa na Grã-Bretanha). Pouco é conhecido de sua carreira
parece que ele passou algum
nesse período, embora
tempo como membro da família episcopal de
Germano de Auxerre. Em 431, o papa
Celestino (422-432) enviou um certo
Paládio para ser
bispo para “os escoceses [i.e., irlandeses] que criam em
Cristo”, mas Paládio morreu dentro de um ano, e
Patrício, agora ordenado bispo, foi
enviado à Irlanda em seu
lugar. Trabalhando no norte da ilha, em uma sociedade
organizada de acordo com territórios tribais, Patrício
parece ter conquistado conversos significantes entre as
realezas locais. Ele aparentemente estabeleceu bispados
base tribal, uma vez que
territoriais (mas sobre uma
as “cidades” da sociedade galo-romana não
existiam na
Irlanda) e estabeleceu sua própria sé em Armagh.
Não há razão para duvidar de que Patrício introduziu alguma forma
de vida asceta comunitária na Irlanda, mas
foi somente após sua morte - e na
realidade no
260 HISSÚRIA DA IGREJA GRISTÃ

século seguinte - que as comunidades monásticas se


tornaram os centros pastorais da
igreja irlandesa. Este desenvolvimento pode ser datado de
modo grosseito a partir da fundação do mosteiro
de Clonard, em Meath, por São Finiano (ca.
540), que foi rapidamente seguida por
outras fundações rais como Bangor (uma
palavra que signi-fica simplesmente
“mosteiro”, estabelecido no Ulster por São
Congall, e Moville,
criação do outro São Finiano (m. 579). Os abades que
governavam tais comunida-
des normalmente pertenciam às famílias reais de suas
tribos e frequentemente tam-bém eram bispos. Dessa
maneira, o episcopado territorial do
império romano foi
substituído por um episcopado monasticamente baseado, e
essencialmente tribal. As
comunidades monásticas se tornaram não apenas o foco da
obra missionária e pasto-ral mas também centros
de aprendizagem, das artes e da educação.
De certa forma contemporâneo do
florescimento do monasticismo irlandês, e
possivelmente mes-
mo uma fonte dele, houve um desenvolvimento paralelo do
monasticismo em Gales.
A origem de tal movimento costumeiramente é atribuída à obra de Sanro
Tltide ca. 535), o fundador do mosteiro
(m.

posteriormente denominado Laniltide


(“igreja de Iltide”), que pode ret estado localizado
na ilha de Caldey. O sucessor de Lltide como
líder do monasticismo galês foi São David (7. ca. 560),
fundador da abadia em Menévia (presentemente de São David)
e o santo patrono de Gales.
Mesmo antes desse crescimento do monasticismo irlandês e
galês, entretanto, e na realidade durante os anos da missão de
Patrício à Irlanda, o cristianismo bretão
também se estendeu para o norte em direção à Escócia. O líder dessa
missão foi São
Niniano. Sobre ele, a História Eclesiástica de Beda, relata que
ele era um bretão nativo que havia sido instruído
na fé em Roma. Ele era, como Patrício,
bispo (o que sugere que já havia cristãos
na área para a qual ele foi enviado).
Niniano estabeleceu sua sé
em Whithom (Candida Casa) e trabalhou no território ao
Adriano, norte da muralha de sem dúvida havia
onde uribos celtas parcialmente
romanizadas e parcial-
mente cristianizadas.
A conversão da Escócia propriamente dita, porém - ou
seja, a área ao norte dos
estuários do Clyde e do Forth - foi obra de monásticos da
Irlanda. Desde o seu início, o monasticismo
irlandês foi um movimento missionário
expansivo. Nós já
vimos (I:7) como, caminhando para o fina! do sexto século,
Columbano, um monge
da abadia de Bangor, em uma longa peregrinação, estabeleceu
casas monásticas (que por sua vez se tornaram
centros missionários) na Borgonha, onde
atualmente é a
Suiça, e mesmo no norte da Itália. Semelhantemente, São
Kiliano (m. ca, 689), de
N A IDADE MÉMIA E O ENCERAMDEA NTO
EONTDRASIVNVÉERTISDEIRAA 267

uma geração posterior, trabalhou na


Francônia e Turíngia, estabelecendo a sé de
Witzburg. O primeiro e mais notável desses peregrinos
monásticos irlandeses, en-
tretanto, foi Columba (521-597). Um produto da abadia em Clonard e membro da
família real dos O'Neill de Connaughr, Columba
estabeleceu uma comunidade monástica na ilha
de
lona, sob o patrocínio e proteção de rei
de Dalríada (mais ou menos o atual
Argyleshire), que era ele próprio, com seu
povo, de origem irlandesa.
De lona, Columba executou trabalho missionário entre os povos
pictos da Caledônia, conquistando seus chefes para a nova fé
e organizandoa igreja lá nas mesmas bases monásticas que
ela possuía na Irlanda.
A obra missionária da comunidade de Iona continuou depois da
morte de Columba, e no início do segundo terço do sétimo
século ela foi estendida aos colo-nizadores anglo-saxões
pagãos do nordeste da Inglaterra. A oportunidade para esse
desenvolvimento foi a solicitação do rei Osvaldo da Bernícia
(Nortúmbria), que durante sua juventude havia sido criado
em exílio entre os escoceses e pictos da
Caledônia cristã. Recuperando seu trono em 633, Osvaldo
solicitou o auxílio de Iona para a
cristianização de seu povo. A resposta foi
a missão de Santo Aidano (m.
651), que sob o patrocínio de Osvaldo estabeleceu um mosteiro na
“Tlha Santa” de Lindisfarne (634), e dali, durante os reinados de
Osvaldo (m. 641) e seu irmão Oswy
(641-670), enraizou o cristianismo na Nortúmbria. Aidano também
treinou um grupo de jovens para continuar sua
obra, entre cles os irmãos Chad (m. 672),
que por fim se tornou parte da missão,
iniciada em 654, ao reino de Mércia e
estabeleceu a sé de Lichfield, e Cedd, que
trabalhou entre os saxões orientais, para
os quais fora
consagrado bispo em 654.
Na época em que a missão de Aidano e seus sucessores
missão enviada pelo papa
havia sido iniciada, uma
Gregório Magno já havia chegado no sudeste
da Inglaterra = se estabelecido em Kent e
Anglia Oriental. À iniciativa do papa foi
calculada para
tomar vantagem do casamento de Etelberto, rei de Kent e
Bretwalda (rei supremo) dos territórios saxões ao sul do
Humber, com uma princesa franca cristã, Berta. A
missão originalmente consistiu de Agostinho, o prior do mosteiro
de Santo André em Roma, o próprio mosteiro de
Gregório, c um pequeno grupo de monges. Che-
zando em Kent em 597, Agostinho - um
missionário algo relutante, cujo zelo foi
mantido em grande parte pot um fluxo de
correspondência com o papa Gregório -
conseguiu converter Btelberto, que foi
batizado na Páscoa de 601, De acordo com
o 2iano de Gregório, Agostinho deveria
estabelecer uma sé merropolitana para si
em
262 VISTÓBIA DA IBREJA ERIETÁ

Londres, com doze bispados sob sua jurisdição. Ainda


segundo o plano concebido pelo papa, Agostinho teria
jurisdição sobre as igrejas célticas do oeste e, conforme a
oportunidade surgisse, estabeleceria uma segunda sé
metropolitana em York (no rei-
no de Deira) para o norte da Inglaterra. Estes planos
entusiásticos do papa, contudo, não foram rotalmente
realizados. Agostinho estabeleceu sua própria
sé não em Lon-dres mas em Cantuária, onde
ele construiu uma igreja e, nas
proximidades, um
mosteiro. Em 604 ele já havia fundado bispados em Rochester
(em Kent) e Londres (em Essex). Após sua morte (em 604 ou 605),
entretanto, e depois da morte do rei
Etelberto (616), uma reação pagá reveloua falta de
profundidade das raízes que a igreja possuía fora
de Kent. A missão enviada (625) sob Paulino
para York e o teino de Deira extinguiu-se
em 632, quando Edwin de Deira foi morto em
combate. Não
foi senão aré a segunda metade do sétimo século, portanto,
e então em grande medi-da por cansa do impero
missionário oriundo de Lindisfarne e de
uma missão papal independente para os
saxões ocidentais iniciada por um certo
Birino (ca. 635), que a
Inglaterra foi conquistada substancialmente para o
cristianismo,
Mesmo naquele momento, contudo, restava
um problema significativo. Havia
permanente atrito entre os cristãos do norte e do oeste
por um lado e, pelo
de tradição céltica e irlandesa
outro, os novos cristãos saxões do sul,
cujas igrejas não apenas foram organizadas segundo
o padrão continental sob bispos territoriais mas também
eram conscientemente leais a Roma e ao papado. Em parte,
esse atrito tinha suas
origens na luta militar mais antiga, e muito longa, entre
pagãos. Para os
cristãos bretões e invasores
bretões do Ocidente, não era Fácil conceber
os anglos e saxões, seus inimigos
tradicionais, como companheiros cristãos. Mas
o conflito também possuía raízes
eclesiásticas. Bastante separados das
questões óbvias e definíveis, como uma
diferença sobre a data da páscoa, O caráter e organização
peculiares do cristianismo céltico eram diferentes daquele
da missão romana. Felizmente para o futuro do cris-
tianismo nas ilhas britânicas, esse atrito foi fonte de
grande ixritação para o rei Oswy
da Nortúmbria. Cortespondentemente,ele convocou uma conferência ou
concílio para resolver a questão para seu reino. O concílio
reuniu-se em 664, em Whitby, no litoral do mar do Norte, onde
recentemente (659) havia sido estabelecido sob a
orientação da nobre abadessa Santa Hilda (m. 680) um
magnífico mosteiro duplo, com casas para homens e
casas para mulheres. Wilfrido, abade de
Ripon e mais tarde bispo de York (ele
próprio um produto da comunidade céltica
em Lindisfarne), de-fendeuo caso pela
lealdade a Roma, enquanto Colman, abade de
Lindisfarne, advo-
O A IDADE MÉRIA £ E ENCERAMENTO DA CONTROVÉRSIA
DA INVESTINDA 263

gou a tradição céltica. A questão foi


resolvida quando o rei Oswy ouviu que o
bispo de Roma era o sucessor e representante do apóstolo
Pedro, a quem o próprio Senhor
havia dado as chaves do reino dos céus.! À decisão que resultou dessa
descoberta
eventualmente trouxe a totalidade da Inglaterra sob a obediência
romana, e o cristi-anismo
inglês eventualmente
provou ser um aliado principal do papado
tanto no estabelecimento come na reforma das igrejas no
continente europeu,
O vigor e disciplina desse novo cristianismo céltico-inglês deveu
muito à feliz
circunstância que, em 668, o papa Vitalino indicou Teodoro (ca.
de Tarso, na Ásia Menor, como
602-690), nativo
arcebispo de Cantuária - o primeiro
ocupante daque-
la sé cuja autoridade era reconhecida por toda a Inglaterra.
Teodoro começou sua incumbência conduzindo
visitação sistemática a todas as igrejas
sob sua jurisdição. Como resultado dessas
viagens de inspeção, cle se dispês a
reorganizar as dioceses
mais antigas e a estabelecer novas dioceses. Ele presidiu
o sínodo de Hercford (673), que promulgou leis
básicas para o governo das igrejas e
constituiu-as em um corpo
nacional em uma época onde a soberania política ainda
estava dividida. Foi sua política que encorajou a adoção
da prática monástica céltica de confissão privada e
absolvição, que, seguindo o costume irlandês, ele impôs
sobre pessoas leigas não-monásticas como uma obrigação
anual. A capacidade pastoral e organizacional de
Teodoro foi revelada acima de tudo no faro de que ele não
favoreceu nem os saxões nem os celtas, mas
reconciliou todos em um único corpo no
qual as duas tradições se complementavam e
alimentavam uma à outra.
Os frutos da decisão do rei Oswy e da habilidade de Teodoro como
governante
logo se manifestaram na vida das igrejas inglesas. Elas
tinham uma reputação de lealdade à sé de Roma e
aos padrões que estabeleceram para
doutrina e disciplina:
um fato atestado pela fregiiência de peregrinos anglo-saxões
aos santuários dos após-tolos Pedro é Paulo em
Roma, como também pela introdução da Regra
de São Bento
na vida monástica inglesa na época de Teodoro e seus sucessores
imediatos. Ao mes-
mo tempo, o amor pelo estudo que havia
caracterizadoa tradição irlandesa foi
pre-servado e desenvolvido em uma série de escolas
monásticas, das quais talvez a mais
brilhante tenha sido a do mosteiro conjunto de Wearmourh e
Jarrow na Nortúmbria. Lá Beda, o Venerável (672-
735), estudou e escreveu nos campos da
cronologia, gra-
mática, exegese bíblica e história. Lembrado acima de tudo por sua Flistória
Eclesids-

Mateus 16:
264 HISTÓRIA DA IGREJA CRISTA

tica da Nação Inglesa, ele e seus contemporâneos provocatam


um pequeno renascimento de erudição que iria, no final,
produzir frucos no renascimento carolíngio do século nove
no continente.

Capítulo 2

O Cristianismo e o Reino Franco

A conversão de Clóvis ao cristianismo católico em 496 (ver


IIT:5) foi um evento decisivo tanto para o futuro relígioso
como político da Europa continental. Sob a liderança de
Clóvis e de seus filhos, os francos conquistaram os antigos
territórios romanos na Gália e na Alemanha e criaram o que
veio a ser chamado de zegrum
Francorum (“reino dos francos”). Deslocando-se de suas terras
originais entre os rios
Reno e Somme, eles primeiramente invadiram
e ocuparam a região anteriormente
governada pelo dx romano Siágrio,
aproximadamente a área entre o Somme e o
Loire. Depois Clóvis liderou seus seguidores contra os
alamanos, cujo reino abarcava o sule o oeste do Reno.
Finalmente, ele atravessou o Loire na Aquitânia, onde, em
Vouillé (Vogladensis) em 507, derrotou os visigodos e assumiu
o controle do sudoes-te da Gália até a linha dos Pirineus. Os
sucessores imediatos de Clóvis concinuaram
a expansão da hegemonia franca. Eles incorporaram a Turíngia
aos seus territórios e eventualmente, após 532, o
reino da Butgúndia, que controlava o vale
do Ródano e
o oeste da Suiça.
Na metade do sexta século, então, a dinastia franca ou
“merovíngia” dominava a totalidade do que havia sido
território romano na Gália e Alemanha. Este domínio era
frequentemente dividido entre diversos reis, pois o
costume franco ditava que a propriedade do pai fosse
dividida entre todos os seus filhos vivos. Parcialmente em
consegiiência desse faro, surgiram divisões regionais
dentro do império, que tinham caráter quase político, quase
étnico. À primeira destas, Austrásia, englobava a pátria
franca ao redor do baixo Reno e também a Turíngia e os antigos
territórios dos alamanos. A segunda, chamada Nêustria, tinha
seu centro em Paris, onde Clóvis havia feito sua capital, e
se estendia ao sul até o Loire e ao norte até o Somme. De
PERO ALIBADE MÉDIA E O ENECRAMENTO DA CONTROVÉRSIA BA
INVESTURÓRA 255

importância centra! menor na história polírica


dos francos estavam as regiões meri-
dionais da Aquitânia « Burgúndia. Apesar destas divisões,
entretanto, o reino franco era entendido como sendo
um único parrimônio, e de fato, nos
últimos anos de
Lotaro 1 (m. 561), filho de Clóvis, e durante grande parte
do reinado de Dagoberto 1(623-639), ele teve um único
soberano.
Os habitantes galo-romanos destas áreas não ficaram descontentes
com seus no-
vos conquistadores. Como eles mesmos eram católicos,
ficaram felizes em ter um soberano católico; e de
qualquer modo, os imperadores romanos em
Constantinopla
deram aos líderes francos reconhecimento, assistência
financeira ocasional e, no caso do próprio Clóvis, o título,
categoria e insígnia de cônsul, Este gesto não foi um
mero símbolo. Clóvis e seus sucessores assumiram o que restava
da administração financeira e civil romana na
Gália. O veguum Francorum era, e em certo
sentido
permaneceu, o representanse formal da auroridade c tradição
romana. Os francos, ademais, diferentemente de seus
predecessores, os godos, não se mantiveram como uma casta
governante separada, mas se misturaram e se casaram com os
povos que
eles conquistaram, criando assim o fundamento de uma
culwira mista para a qual o latim vulgar
permaneceu, na maioria das antigas
províncias romanas, a língua co-
mum. Em sua própria maneira, também, eles fomentaram a
disseminação do cristi-anismo, Valendo-se
inicialmente da vitalidade e da liderança
clerical das igrejas galo-romanas no su] é
no oeste de seus territórios, eles
apoiaram missões para aquelas
áreas do norte e do leste onde o paganismo persistia e onde igrejas
cristás previamen-
te estabelecidas rinham sido expulsas ou grandemente
bárbaras. Eles
enfraquecidas pelas migrações
encorajaram ainda mais o movimento
monásrico, o qual - talvez espe-
ciahmente depois da missão de Columbano (ver IU:7) -
rendeu a se tornar, como Savia sido na Grá-
Bretanha, o principal veículo para a
disseminação do cristianismo.
Isto não quer dizer, entretanto, que igreja e sociedade
não continuaram, nesse :eino merovíngio, a mostrar
sinais de declínio e mesmo desintegração. A
decadência «as cidades antigas, como também do
comércio e da comunicação, continhou em
passo acelerado. Os centros de vida verdadeiros tornaram-se
propriedades rurais -
rendas que tentavam ser, é na prática eram, auto-
suficientes no que sc refere às essidades da vida
cotidiana. Governadas direta ou
indiretamente por um senhor «ue poderia ser
algum magnata ou o próprio rei, tais
fazendas proporcionavam segu-
-ança tanto para o proprietário como para seus servos ou
locatários. Ao mesmo tem-esse sistema senhorial
encorajava a descentralização de
autoridade e garantia que
266 HISTÓRIA DA IEREJA ERISTA

poder, assim como riqueza, acompanhariam a posse da tetra,


uma vez que era a fazenda que produzia não apenas alimento e
vestimenta mas também os homens e equipamentos necessários
para a guerra quase permanente que marcou a sociedade
franca.
Tal descentralização foi encorajada ainda mais pelo
fato de que os francos, como todos os povos germânicos,
não concebiam o estado como algo que, em suas leis e
estruturas, durava independentemente de pessoas
individuais. Para eles, a ordem política era uma questão
de lealdade pessoal de guerreiros para com seu líder; uma
lealdade que tradicionalmente dependia da habilidade do rei
para recompensar seus seguidores com os espólios
de guerras vitoriosas. Essa compreensão da
natureza dos
laços políticos teve algumas consequências no reino
significava que os
merovíngio, Primeiramente, isto
recursos econômicos do “estado” eram
identificados como propri-edade pessoal ou
riqueza do rei - uma situação na qual a
própria noção de proprieda-
de “pública”, e portanto de taxação, era totalmente
inconcebível. Isso também signi-
ficou, portanto, que para assegurar lealdade, os reis
merovíngios - uma vez que as oportunidades para
novas conquistas se exauriram - tiveram que
“beneficiar” seus
seguidores com fazendas de seu domínio real. Esta prática
teve o efeito inevitável de enfraquecer o monarca,
ainda que tais benefícios fossem
tecnicamente garantidos
apenas durante o tempo de vida do recipiente.
Em tal sociedade - violenta, descentralizada, insegura -
da igreja estavam
as estruturas e maneiras
destinadas a ser afetadas de alguma forma.
Um dos desenvolvimen-tos mais importante, talvez, e
conectado com o surgimento do sistema senhorial, foi
o aparecimento muito mais frequente de igrejas
“proprietárias”; i.e., edifícios eclesi-ásticos construídos
em uma fazenda às custas privadas de um senhor e sustentados
por ele com uma dotação para os serviços de um sacerdote.
Nesse desenvolvimento, podem ser vistos os inícios
do sistema paroquial posterior, assim como
de muitos debates posteriores sobre o
controle laico de indicações clericais. Os
bispos do novo
reino continuaram seu hábito antigo de se reunir em
concílio para regulamentarem
assuntos comuns, embora tais concílios não restemunhem nem
frequência nem re-gularidade. Os bispos
reagiram a questões externas como a luta
sobre os Três Capítu-
los (ver HI:10) e a controvérsia monotelica (ver HI:11).
Crescentemente, porém, as igrejas francas parecem
ter-se tornado isoladas, até mesmo da
liderança do papado, embora o respeito aos
sucessores de Pedro e a prática da
peregrinação às tumbas dos apóstolos em
Roma não tenham acabado de forma alguma.
"ima

emirroar A MDARE MÉDIAE O ENCERAMENTO DA


CONTROVERSIA RR INVESTIDARA 267

Nos assuntos do reino franco em si, entretanto, a igreja


desempenhou um papel central e essencial, Para os reis,
magharas, e campesinaro igualmente, a proteção e ajuda de
Deus e dos santos eram essenciais paro a ordem e a justiça
em um mundo desordenado. O bispo cristão, ademais, ocupava
um lugar especial. Defendendo si-multaneamente as tradições
da ordem romana antiga e as propensões singulares do Deus
cristão por justiça e misericórdia, o bispo era
alternativamente magnata políti-co, homem santo, e profera,
Alfabetização e erudição estavam em grande medida
confinados ao clero, pois eram apenas nas casas
monásticas, e nos lares episcopais onde os jovens
eram educados para o serviço como clérigos,
que existia qualquer
coisa semelhante a escolas. Progressivamente, portanto, as
igrejas c monásricas
comunidades eram
recompensadas com concessão de terras
pelos serviços incontestá-veis que prestavam.
Isto significou, todavia, conforme o tempo passava, que os
bis-
pos dispunham de recursos que poderiam ser de grande uso
para os reis merovíngios. Estes, em decorrência, deixatam
de lado o antigo costume da eleição dos bispos pelo povo e
pelo clero e assumiram para si o diteito da indicação de
bispos, utilizando esse
direito, na realidade, como uma maneira de conferir benefícios
Com frequência, um governante
para servidores leais.
icia além e permitiria que uma sé permanecesse
vaga enquanto ele se apropriava dos
rendimentos dela. Tais práticas - uma
expressão natural senão inevitável da
época - foram uma fonte de pavor para
sucessivos papas;
mas do tempo de Gregório Magno em diante, os bispos de Roma
não tiveram suces-so em seus esforços para
trazer a casa metovíngia para uma melhor
disposição de
cai mente.
Por fim, a reforma e renascimento da igreja frasica aconteceu
apenas por meio da
substituição da dinastia merovíngia. Isto ocorreu
gradualmente por um período le-«emente superior a
um século depois da morre de Dagoberto 1
(639). Depois de sua
época, a degeneração da linhagem merovingia e a elevação ao
poder na Austrásia e Burgúndia dos
Nêustria,
assim chamados “prefeiros do palácio”
(.e., os principais conselheiros e ministros do rei)
levaram eventualmente a uma nova situação política.
Us prefeitos austrasianos, descendentes do bispo Arnulfo
de Metz (m. 641) e de “epino de Landen (m. 639),
triunfaram sobre seus rivais e, nas pessoas de Pepino II
às Heristal (m. 715) e seu filho ilegítimo, Carlos (cognominado
“Martelo”), gover-
=sram o reino franco através de uma série de
obscuros reis merovíngias. Tanto Pepi-
=2 como Carlos, como os reis em cujos
nomes eles governavam, foram cristãos
fiéis ástilo de sua época, dotando igrejas e mosteiros.
A grande preocupação deles,
268 MISSÓBIA BA JEREJA CRISTÃ

entretanto, foi a reunificação de seu domínio e a defesa de


suas fronteiras, que esta-vam ameaçadas do norte e do leste
por tribos germânicas pagás e, nos dias de Carlos,
por saqueadores árabes e berberes da Espanha, onde o reino
visigodo havia sido finalmente derrotado pelas
forças do Islã. Nestes empreendimentos eles
foram, em
grande medida, bem sucedidos. Carlos em particular tornou-se
famoso na história e na lenda da mesma forma pot sua vitória
perto de Poitiers sobre os sarracenos (732)
- uma vitória que não meramente preservou o reino franca mas
também assegurou o futuro daquilo que logo seria
chamado Enropa, para o que o domínio
franco forne-
ceu o fundamento, Estas preocupações imilitares,
entretanto, colocaram a casa de Arolfo
em seus
primeiros dias em uma relação ambígua para
com a igreja. Por um lado, Pepino e, em
uma medida muito maior, Carlos
regularmente, confiscavam
propriedades eclesiásticas para financiar suas guerras,
Esta política foi virtualmente
imposta sobre eles pela erosão do domínio real merovíngio
devido às doações e bene-fícios. Por outro Jado,
como parte de seus esforços para a
pacificação de suas frontei-ras, ambos os
líderes encorajaram e apoiaram
empreendimentos missionários ingle-
ses em suas fronteiras setentrional « oriental -
empreendimentos que os mantiveram em íncima relação
com o papado, com conseguências
significativas para o futuro
Assim, Pepino I%, e Carlos depois dele,
apoiaram os labores evangelísticos de São
Willibrordo (658-739), um monge inglés
educado em Ripon e na Irlanda, que em
690, com doze associados, iniciou sua obra entre os frísios onde
é hoje a Holanda. Ordenado bispo em 695 pelo papa
Sérgio 1, Willibrordo estabeleceu a sé de
Utrecht,
embora tenha sido somente quando da conquista franca dos
vizinhos saxões nas últimas décadas do oitavo século, que os
frísios foram finalmente convertidos. À obra de Willibrordo foi
continuada por um dos mais notáveis homens dessa era: Wynfrith,
ou, como ele passou a ser chamado, Bonifácio (680-754). Nascido
em Crediton, Devonshire, esse monge foi para a Frísia em 716,
onde trabalhou na mis-
são de Willibrordo. Desencorajado por sua falta de
sucesso, ele revornou à Inglaterra mas foi para Roma
em 718. Lá o papa Gregório Il comissionou-o
como missionário
à Alemanha, e ele assumiu o nome de Bonifácio, mártir romano.
Seu sucesso na Turíngia e Hesse foi tamanho que em 722 ele foi
convocado de volta a Roma, onde fez um voto ao apóstolo Pedro
e foi ordenado bispo para a Alemanha. Durante os dez anos
seguintes, com o apoio direto de Carlos Martelo, a missão
de Bonifácio
desfrutou sucesso ainda maior em Hesse e na Turíngia.
Eventualmente, ele estabele-ceu bispados para
as
igrejas não apenas de Hesse e da Yuríngia
mas também

TIORCToTocoT Oo TT TM
Pesiona ny A DADE MÉDIA E 0 ENSERAMENTO DA
CONTROVÉRSIA DA INVESTIDURA 269

Baviera, introduzindoa regra beneditina para os monges e


estabelecendo, sob a auto-ridade papal, sua
própria sé arquiepiscopal em Mainz (ca.
747). Em 744, ele auxi-
tou seu discípulo, Sturm, na fundação do grande centro monástico
de Pulda, que
recebeu doação de terras de Carlomano, filho de Carlos
Martelo, e tornou-se um centro de erudiçãoe de
educação sacerdotal para o centro-oeste da
Alemanha. Em todos esses empreendimentos,
Bonifácio agiu, no espírito do novo
cristianismo in-glês, como servidor do bispo
romano e importou para o mundo franco
idéias roma
nas de ordem e disciplina eclesiástica. Pouco depois de 747,
sua sé em Mainz e retornou para
Bonifácio abdicou de
a Frísia como missionário, e fá, após alguns
anos de labor, foi martitizado.
Esta obra missionária não traduz a rotalidade das contribuições de
Bonifácio ao
cristianismo do mundo franco. Em 741, Carlos Martelo morreu. Sua
autoridade como prefeito do palácio foi herdada, seguindo a
tradição franca, por seus dois fi-lhos, o mais velho,
Carlomano (741-747) da Austrásia, e o mais jovem, Pepino NI
(741.768) da Nêustria. Desde o início do governo deles, ambos os irmãos
ram-se mais de Bonifício e, através
aproxima-
dele, do papado. O espírito no qual eles
lidaram
com os assuntos eclesiásticos está refletido no cânone
número um de um sínodo convocado por Carlomano em 742
(conhecido como o Concilinm germanicum):
Pelo conselho de meu clero e de grandes homens, eu [i.e,,
Carlomano] tenho forecido o sustento para bispos
nas cidades e tenho colocado sobre eles
Bonifácio,
coma arcebispo - ele que é o enviado de São
Pedro. E tenho ordenado a convocação
anual de um concílio no qual, na minha
presença, possam ser restaurados os
decretos canônicos e as leis da igreja e a
religião cristã rerificada. Ademais, cenho
restaurado e
devolvido às igrejas rendimentos tomados delas indevidamente;
e tenho removido, degredado cforçado penitência
sobre falsos sacerdotes e diáconos e
clérigos adúlte-105!
Em uma série de tais sínodos, realizados sob a liderança de
Bonifácio, a mundanidade de muitos clérigos foi
repreendida, bispos perambulantes foram
cen-
surados, q celibato sacerdotal foi defendido, e, no geral, foi
imposta uma disciplina
clerical mais estrita. Assim, através da cooperação entre o inglês
de Carlos Martelo,a igreja
Bonifácio e os filhos
franca foi crazida a uma aliança moral com
o papado - e, de faro, os bispos francos, reunidos
em sfnodo em 747, explicitamente reconhece-
ram a jurisdição do bispo tomano sobre seus assuntos, Dessa
maneira, foi pavimen-

J. M. Wallace-Hadrill, The Barbarian West, 400-1000 (Lo ndres, 1952). pp. 95-96 (levemente
alcerado)
270 HISTÓRIA DA IGREJA CRISTA

tado o caminho para uma aliança do reino franco com a


autoridade papal que ttans-cendeu em muito o nível
da preocupação comum com a reforma da
igreja.

Capítulo 3

Oriente e Ocidente na Controvérsia Iconoclasta

O governo de Carlos Martelo e Pepino III,


no reino franco - e portanto também a carreira de
São Bonifácio - foi praticamente contemporâneo com os reinados do
imperador Leão HI (717-740) e seu filho Constantino V Oriente
(741-775) no Após o quase colapso do império . o
romano-bizantino no sétimo século sob ataqu
e
furioso do Islã, esses fundadores da dinastia isáuria
restauraram as fronteiras de seus domínios e suas fortunas.
Repelindo as forças do califa Omar II (717-720) dos pró-
prios portões de Constantinopla, Leão e seu filho depois
dele reafirmaram o controle
romano da Ásia Menor. Ao mesmo tempo, eles instituíram
e impuseram uma políti-ca religiosa que demandava
a abolição da venetação de cones - retratos
pintados ou entalhados de Cristo, da Virgem
Maria, dos anjos e dos santos. Os conflitos
teológi-cos e políticos, intensas e
extensos, que essa política ocasionou
tiveram conseguênci-as duradouras para a
vida das igrejas tanto no Oriente como no
Ocidente. No Orien-
te, eles resultaram não apenas em uma restauração das também no
imagens, mas consenso teológico que via da
na veneração dos ícones uma afirmação doutrin
a
calcedoniana da completa e distinta natureza humana de
Cristo. No Ocidente, a disputa entre os
imperadores iconoclastas e os sucessivos
bispos de Roma levou a uma ruptura política
final entre o papado e o império, e assim a
uma nova aliança dos papas com os herdeiros
de Carlos Martelo e a um passo crucial na
crescence
separação entre as igrejas latina e grega,
Foi no ano 726 que Leão HI - cujos motivos,
embora não seus compromissos,
permanecem um cema de debate - tornou sua oposição aos
Ícones conhecida publi-camente e notificou os
líderes eclesiásticos de sua política. Ele
prosseguiu com essa ação, com o gesto
simbólico de destruir uma imagem de Cristo
que havia estado
sobre uma das entradas do palácio imperial de Constantinopla.
Tais acos não apenas
PERGORIV A IDADE MÉDIA E O ENCERAMENTO DA CONTROVÉRSIA DA INVESTHURA
274

provocaram distúrbios na capital mas também despertaram a


condenação do patri-
arca Germano de Constantinopla, para não mencionar uma
reação hostil e algumas vezes violenta entre a
população do império e, acima de tudo, dos
monges. Sem
abrandar sua política em nenhum momento, e forcalecido
devido ao apoio entusiás-rico de suas tropas,
Leão prosseguiu em 730 convocando um
concílio que reiterou à proibição de imagens
sagradas e resultou na deposição e exílio de
Germano e sua
substituição por Anastásio, um patriarca mais complacente.
Na Itália, a oposição às ações de Leão foi igualmente
cra menos poderoso.
forte, porém o imperador
Certamente, pedaços significativos do
território italiano ainda eram governados pelas
autoridades bizantinas, No sul, havia a Sicília e a
Calábria.
No norte, o império controlava uma faixa de território alcançando o
sul e o oeste de
Ravena (a sede do exarca imperial) no Adriático até a região ao
assim chamado “patrimônio de
redor de Roma (o
Pedro”), que estava sob o comando militar
de um
dux romano. Tanto ao norte como ao sul, entretanto, essa faixa
estava sitiadaestados lombardos. Em tais
por
circunstâncias, os imperadores orientais,
cujo poderio militar estava necessariamente
concentrado na Ásia Menor, faziam tudo o que podi-
am para manter suas possessões italianas. Ademais, era no
bispo romano, e não nos governadores algo ineficazes
enviados de Constantinopla a Ravena, que o povo da
Itália via o verdadeiro representante da tradição romana.
Quando, portanto, o patro-cinador de São
Bonifácio, o papa Gregório II (715-731),
resistiu e condenou a polí-tica
iconoclasta do imperador - tanto mediante
o fundamento de que ela excedia a
autoridade de um governante leigo como sob a alegação de
que o iconoclasmo repre-sentava na verdade uma negação da
realidade da encarnação - Leão foi incapaz de se
fivrar do papa, como tinha feito com o patriarca Germano.
As tentativas para subs-tituir e mesmo assassinar
Gregório foram frustradas por causa do apoio
não apenas
do povo comum de Roma e Ravena mas também dos exércitos bizantinos e
até
mesmo dos duques tombardos de Spoleto e Beneventum.
Outra voz crítica que Leão não conseguia
silenciar vinha do próprio cotação do
império islâmico. Esta era a voz de João de Damasco (ca.
675-ca. 749), que quando jovem herdara de seu pai cristão
uma alta posição no serviço civil dos califas. Com-
pelido subsegiientemente a desistir de seu cargo, João
passou a maior parte de sua vida adulta como monge
do mosteiro de São Sabas, nos arredores de
Jerusalém. Ali
ele eventualmente escreveu a grande obra tripartite, A
Fonte do Conhecimento, cuja última divisão,
intitulada “Sobre a Fé Ortodoxa”, é uma
apresentação geral e siste-
272 BISTÓRIA DA IGREJA CRISTÁ

mática da crença cristã sobre Deus e a Trindade, a criação, e


a encarnação. Nesta
obra, ele se vale da totalidade da tradição grega, mas
especialmente dos país capadócios, do pseudo-
Dionísio o areopagita (ver II-10), e, para
sua cristologia, do neo-
calcedonianismo de Leôncio de Jerusalém (ver 11:10). João influenciou
a teologia
escolástica ocidental através de uma tradução latina medieval
de sua principal obra. Em 1890 o papa Leão XIII
declarou-o “Doutor da Igreja” Ademais, os
teólogos
ortodoxos arientais têm apelado regularmente à sua
autoridade. Sua contribuição à
controvérsia iconoclasta foi feita nos uma série de
respondiam à
anos de 726-730 em discursos que
acusação de idolatria em primeiro
diversas áreas. Em lugar, João
insis-
tiu em que deve ser feita uma distinção entre a veneração
imagens e a adoração
(praskunesis) oferecida às
(Iatreia) que é oferecida propriamente a
Deus, unicamente, Ao mesmo tempo, ele defendeu que
um ícone não pretende ser um equivalente, e pot-
tanto um substituto, para aquilo que retrata, mas é uma
semelhança que eleva a mente para seu original. Tanto ele
como - em um estágio posterior da controvérsia -o
reformador monástico Teodoro de Studios (759-826)
identificaram a questão fun-
damental na controvérsia iconoclasta como sendo cristológica.
Cristo, que em princípio pode
Se a humanidade de
ser retratada, é real, concreta, e
histórica; e se, ao mesmo tempo, cla é
verdadeiramente uma com a hipóstase do Logos divino, então
a veneração de uma imagem de Cuisto é análoga à
veneração dos evangelhos, que “re-
tratam” Cristo em palavras, Tanto o ícone como o
evangelho são testemunhos do ingresso do divino no mundo da
natureza e da história, e ambos são meios de acesso a Deus.
No teinado de Constantino V, sucessor de Leão, a política
iconoclasta tomou a forma de uma tentativa sistemática de
destruir imagens e uma perseguição sistermáti-ca daqueles
- os monges em particular, mas também amplos setores da
população em
geral - que apoiavam sua veneração. Em 754, Constantino
reunin um concílio que não apenas reafirmou a
condenação de Leão das obras dos
pintores, mas também tornou aqueles que
violavam esse decreto sujeitos à punição
sob as leis do estado. Em
conformidade com esse decreto, os Ícones nas igrejas
foram desfigurados, repintados
e substituídos com rerratos de temas não sacros. O destino de
muitos cultuadores de imagens foi a prisão, a
tortura e o exílio. Estas medidas foram
acompanhadas por
críticas severas aos monges, que eram ridicularizados e em
alguns casos forçados a se
casarem contra sua vontade, também com ações contra os mosteiros,
comofrequentemente que eram dispostos para o uso
desapropriados e secular e suas
propriedades
emo A IBADE MEDIA E D ERGERAMENTO DA
EONFRAVÊRSIA DA INVESTIRMAR 273

confiscadas. Houve em consegiiência uma grande emigração de


refugiados monás
cos dos territórios controlados pelo império no Oriente,
muitos dos quais foram para o sul da Itália,
Foi somente no reinado da imperatriz Itene que a maré se
voltou contra o iconoclasmo. Irene primeiramente governou
como regente de seu filho Constantino VI (780-797) e depois
como única soberana (797-802), após destituí-lo, cegá-lo e matá-lo,
Burlando a oposição do exército, que havia sempre
favorecido a política de
Leão III, Irene reuniu um concílio em Nicéia em 787, para o qual
representantes do papa Adsiano 1
foram convidadas
(772-795). Este concílio, o sétimo e último
dos comumente denominados “ecuménicos”, restaurou a
veneração de imagens e negou
que os ícones eram ídolos ou que os fiéis os adoravam como a Deus,
Ele também
decretou a restituição das terras e edifícios monásticos que
haviam sido expropriados sob as políticas de
ConstantinV.o No início do século nono,
entretanto, sob o impe-
rador Leão V (813-820), as políticas iconoclastas foram
reacendidas. Um concílio tealizado em Santa Sofia em
Constantinopla (815) reiterou a postura do concílio de 754
promovido por Constantino V, e a repressão ao culto de
imagens contintou pelos reinados de Miguel [1 (820-829) c
Teófilo (829-842). A imperatriz Teodora,
reinando durante a menoridade de seu filho Miguel IM (842-867),
conduziu o mo-vimento iconoclasta a um término
em 843, quando convocou um sínodo para
reviver
os cânones do concílio de Nicéia e restaurar a veneração de ícones.
A interpretação dessa “controvérsia
iconoclasta” tem sido ocasião de muito
deba-1e entre os historiadores, em parte porque muitas das
fontes originais para sua histó-ria foram suprimidas na
época. Quanto à importância de seus efeitos pode haver
pouca dúvida; a questão, entretanto, do significado e
iconoelasta na vida das
motivação do movimento
igrejas orientais é mais difícil. Não pode
haver nenhuma
dúvida de que a veneração de retratos sagrados havia-se
tornado uma parte vital e corriqueira da piedade
cristã durante e após o quarto século. Nem
há qualquer dúvi-de que a prática havia
regularmente encontrado oposição de muicos
pensadores c Jideres cristãos proeminentes,
e tal oposição havia persistido em certas
áreas do Ori-
te. onde muitos percebiam essa prárica como uma reversão ao
paganismo. O
oclasmo, portanto, tinha raízes na tradição cristã e pode
ser entendido, pelo -e2os de um ponto de vista,
como uma reação religiosamente motivada a uma
de piedade popular dominante. Os
historiadores têm ressaltado, ademais,
que ds de or do qual os impesadores
isáurios - e o grosso de seus exércitos
274 BISTÓRIA DA IGREMÁ CRISTÃ

- eram provenientes, eram áreas onde atitudes iconoclastas


podem ter sido estimula-
das pela presença de judeus e muçulmanos, para quem a
veneração de imagens era simples idolatria.
Infelizmente, quase não há dados para apoiar
esta hipótese, ainda que ela seja plausível. Pode
ser, também, que o movimento tenha sido influenciado por
correntes de pensamento gnósticas ou
maniqueístas; os iconoclastas parecem às vezes
ter estado à beixa de uma espécie de dualismo, opondo
“adoração em espírito e
em verdade” ao uso de representações materiais de Cristo e dos
santos. Os monofisitas, também, evidentemente tendiam para o
ponto de vista iconoclasta, uma vez que para cles qualquer
retrato de Cristo era na realidade uma tentativa,
simultaneamente impossível e idólatra, de serrarar a segunda
pessoa da Trindade.
“Tais atitudes e motivações religiosas, entretanto, têm sido
minimizadas por al guns intérpretes das políticas
iconoclastas dos imperadores isáurios.
Muitos eruditos têm visto no iconoclasmo uma
atitude política disfarçada. Como evidência
para esse ponto de vista, eles apontam para o fato
de que as principais vítimas do iconoclasmo eram as
instituições monásticas, cujo número,
tamanho e independência faziam de-
las um fardo na vida do estado e um obstáculo para a autoridade
imperial absolura. Ao mesmo tempo, é evidente que
os iconoclastas defendiam uma visão do
papel do imperador em uma sociedade cristã
que fazia dele a autoridade religiosa
suprema, e
um elemento na polêmica dos defensores de imagens era um
protesto contra a inter- ferência indevida do
imperador em assuntos que deveriam ficar
reservados aos líde-res eclesiásticos.
Certamente, esse era um elemento
proeminente na atitude do papa Gregório II,
para quem 6 iconoclasmo, como temos visto,
representava um duplo
mal; uma negação teológica do ingresso de Deus na
ordem natural e histórica, c uma falsa percepção da
autoridade do chefe-de-estado em questões religiosas.

Capítulo 4

Os Francos e o Papado

A oposição de Gregório II às políticas iconoclastas de Leão


IIL e Constantino V
foi continuada por seus sucessores na sé romana, com
consegiiências que dificilmen-te alguém poderia
prever. Foi o destino de Gregório NI (731-
741), em um concílio
eloa AIDARE MÉDIA E R ENCERAMENTE DA CENTRAVERSIA UA INVESTIDURA
274

reunido em Roma apenas oito meses após sua


ascensão, proclamar a excomunhão de
qualquer que profanasse imagens sagradas. Esta atitude, ama
reação ao concílio de 730 promovido por Leão HI,
produziu uma resposta imperial imediata, O
impera-dor confiscou as propriedades da
igreja romana no sul da Itália e na
Sicília e removeu
da jurisdição eclesiástica papal as igrejas daquelas regiões, como
também dos Bálcãs.
Contudo, ele não poderia ir, e não foi, além disso. Não foi feita
nenhuma tentativa pasa impor políticas iconoclastas
sobre a própria igreja de Roma,
presumivelmente porque Leão tinha sido
convencido por eventos anteriores que ele
não poderia im-
por sua vontade contra os papas nos territórios bizantinos na
Itália central. Assim, as regiões de Ravena, a
Pentápolis, e Roma foram deixadas na
prática a seus próprios
dispositivos, embora os papas continuassem, até 772, a
reconhecer formalmente a soberania dos
imperadores orientais.
A independência desses territórios, entretanto, era
essencial para o papado, So-mente se garantissem
sua integridade os bispos de Roma poderiam
evitar a possibili-dade de trocar a dominação do
imperador em Constantinopla pela dos reis lombardos em
Pavia, Consegientemente, em 739, apés
alguns anos jogando com o balanço de
poder entre os dugues lombardos ao sul e o reino lombardo ao
Ve Gregório de Touis, História dos Franos 1, ara uma
norte, Gregório III buscou o auxílio de Carlos Martelo contra
alusão à estória.
tbid.p
seus inimigos. Ademais, por volta da metade do século, o
,.
secretariado
172. papal produziu uma das mais influentes
falsifica-
çães na história: a assim chamada Deação de Constantino. Este
documento, utilizan-do a lenda bem conhecida de
que o papa Silvestre havia curado o
imperador Constantino de lepra,!
pretendia ser uma carta de agradecimento
do próprio impe-
rador, Ele atribuía aos bispos de Roma jurisdição sobre os
quatro patriarcados de Antioquia, Alexandria,
Constantinopla e Jerusalém e - ainda mais
do que isso - de-
cretava que “a sagrada Sé do bem-aventurado Pedro deve ser
gloriosamente exaltada
sobre todo o nosso império e trono terreno.”? De interesse
mais específico, alegava-se que Constantino havia
legado aos papas “todas as províncias,
palácios e distritos da cidade de Roma e
da Itália e das regiões do Ocidente.”* Em
outras palavras, esse
documento (cujo conteúdo não fazia mais do que declarar o
que a corte papal da época honestamente
acreditava ser verdade) não apenas
reiterava a reivindicação pa-
pal tradicional a uma autoridade universal na igreja e a crença
papal tradicional de

r c 2.3 p
H. Bettenson, cd., Documedna Itgroejsa Cristã, 3º cá. (São
Paulo, 1998).p. 171.
276 BISTÓRIA NA IGREJA CRISTÃ

que 2 autoridade do sacerdote é superior àquela dos


governantes seculares, mas tam-bém lidava com a
questão pasticular € corrente do direito
dos papas de governar e dispor de Roma e
de outros territórios bizantinos na Itália.
O apelo de Gregório II a Carlos Martelo não foi bem
sucedido, mas nos dias de Pepino IT a situação
havia-se modificado significativamente, e
Pepino tinha tanto a ganhar de uma aliança
com os papas quanto estes tinham a ganhar de
sua proteção contra os lombardos. Em 743,
ele e seu irmão Carlomano, para legitimarem
seus
governos como prefeitos do palácio, haviam clevado o
último dos merovíngios, Childerico TII, ao trono de seus
antepassados. Quatro anos mais tarde, entretanto, Carlomano
volumariamente retirou-se de seu ofício para se tornar (em
750) monge em Monte Cassino na Itália. Assim, Pepino ficou o
único soberano efetivo do reino franco e buscou desfrutar
do título real bem como da substância do poder. Para
depor o último da linhagem merovíngia, entretanto, ele
necessitava da poderosa sanção do papado. Ele
portanto apelou para o papa Zacarias (741-
752), que deu ptonto consentimento à
deposição de Childerico e à coroação de
Pepino como rei
dos francos. À coroação ocorreu em 751 em Soissons e foi
conduzida pelo próprio São Bonifácio, que ungiu
Pepino para sua nova vocação e assim
concedeu sanção divina à mudança de
governantes. Cerca de três anos mais tarde,
em 754, quando os
lombardos, que sob o rei Astolfo (749-756) já haviam ocupado os
territórios bizantinos
ao redor de Ravena, estavam pressionando a própria Roma, o
papa Estêvão (752-757) viajou para a França,
onde coroou e ungiu novamente Pepino e scus
filhos na igreja de São Dionísio em Paris,
Pepino saudou o papa a pé e conduziu seu
cavalo,
enquanto Estêvão conferiu ao rei franco o tírulo de “Parrício dos
isso indica que Pepino tinha sido informado,
Romanos” - tudo i
e pelo menos aceito em algum sentido
vago, a doutrina da Doação de Constantino.
Estevão também conseguiu de Pepino
um pacto para à proteção do papado na possessão dos
territórios bizantinos na Itália central, e na
realidade ele deixou evidente que 20
ungir o novo rei franco ele o havia
constituído, e a seus sucessores, como guardiães dos
direitos do apóstolo Pedro.
Correspondentemente,em 754 ou 755, Pepino conduziu seu exército
à Itália e for-çou Astolfo a devolver suas
conquistas ao papa. Assim começou a
história dos “Esta-dos da Tgreja” -
aquela soberania temporal do papado que
iria durar até 1870 e então ser renovada,
embora em uma escala bem menor, pela
criação do estado da Cidade
do Vaticano.
Essa transação sem dúvida pareceu
inteiramente normal e natural na época.
Ela
EU A IDADE MÉDIA E | ENGERAMENTO DA CONTROVÉRSIA BA INVESTIDURA 277

reconhecia uma situação de coisas que os eventos dos séculos sete e


oito haviam
silenciosa mas inexoravelmente produzido. A casa de
Pepino II e Carlos Martelo, através de suas
negociações com Bonifácio e o papado,
havia-se estabelecido como
fíder secular de uma cristandade latina renovada e
vigorosa, Ao mesmo tempo, os papas, não sem as pressões da
controvérsia iconoclasta e das ambições lombardas na
Itália, haviam reconhecido que sua esfera de autoridade
real e efetiva era a nova Europa cristã e
católica, que as missões inglesas e o
poder merovíngio haviam criado.
Contudo, os dois partidos dessa combinação inevitavelmente a viam sob
luzes dife-
rentes. Para Estêvão e seus sucessores, ela significava, sem
dúvida, a realização visível dos princípios da
Doação de Constantino. Para Pepino e os
seus, entretanto, ela signi-
ficava que eles haviam assumido, com a benção papal, o
fardo do bem-estar da cri tandade ocidental. Nessa situação
houve um anúncio, ainda que tênue, da disputa posterior no
Ocidente medieval entre as autoridades papais e seculares
pela liderança da cristandade latina.

Capítulo 5

Carlos Magno

Pepino, o Breve, morreu cm 768. Seguindo a


tradição franca, ele dividiu seu
reino entre seus dois filhos, Carlos c Carlomano. Os dois
irmãos (que, como seu pai, haviam sido ungidos reis
pelo papa Estêvão em 754) eram propensos
adisputas, mas
o conflito entre eles terminou em 771] com a morre de
Carlomano. Dessa data até sua morte em 814, Carlos
- cujo título “Magno” ficou eventualmente
tecido no
próprio nome pelo qual a história o tem mais frequentemente
denominado, “Carlos
Magno” - governou, reformou c expandiu o reino cristão
dos francos, sobre o qual, como ele assim
compreendia, graça e vocação divinas haviam-
no estabelecido.
Carlos era um homem de muitas facetas. Um grande guerreiro, na
tradição fran-
ca, suas campanhas militares anuais mais do que duplicaram
sua herança, e quando ele morreu era o único
soberano de tudo o que são hoje França,
Bélgica, Holanda e Áustria, e grande
parte da Alemanhae da Itália, e um
pedaço do nordeste da Espanha.
278 EISTÓRIA BA IGREJA CRISTA

Sua destreza militar, porém, não


representava nada mais do que parte de
suas habili-
dades. Governando sobre um mundo escassamente povoado, pobre e
no qual as comunicações eram
semibárbaro,
lentas, o comércio quase inexistente e as
lealdades
tênues, Carlos instalou um sistema administrarivo que o
possibilitou - e mesmo, por certo tempo, a seus
sucessores - dar coesão religiosa é uma
certa medida de unidade política a uma
sociedade que ainda não havia atingido seu
potencial para desintegra-
ção. Ao mesmo tempo, ele considerava-se o rei ungido de um
povo cristão, como o guardião da igreja, cujo bem-estar,
material e espiritual, ele procurou fortalecer. Fi-
nalmente, Carlos era, evidentemente, um homem que gostava
de erudição. Embora só com muita dificuldade ele conseguia
formar as letras de seu nome (escrever não era coisa para
reis), ele falava latim e mesmo um pouco de grego,
ccrcou-se de conse-
Iheiros eruditos, e fez tudo o que pôde para estender os
benefícios da educação a todas as partes de seu
reino.
Uma das primeiras campanhas militares de Carlos foi
efetuada para forçar o novo rei lombardo,
Desidério, a respeitar a independência dos
territórios papais na Irália.
A pedído do papa Adriano 1 (772-795), que, diante da tremenda
pressão exercida pelas tropas de Desidério já
estava preparando Roma para um possível
cerco, Carlos conduziu duas campanhas na
Itália, que resultaram na extinção da
independência lombarda. Em 774, portanto,
Carlos assumiu um novo tírulo: “pela graça
de Deus
rei dos francos e dos lombardos e parrício dos romanos.”
Este último título mencio-nado havia sido
conferido pelo agradecido papa Adriano em
Roma, quando Carlos renovara a promessa de Pepino de
garantir aos papas à posse de seus territórios na
Itália central. Na realidade, entretanto,
com o desaparecimento do estado tampão
Jombardo, o papado achou-se, de fato, um
cliente político do reino franco, cuja
reverência pelo sucessor de Pedro era inteiramente verdadeira mas não
sensação de considerar-se em última
suplantava a

instância responsável, como rei “pela graça


de Deus”, pelo bem-estar espiritual do povo cristão sob
sua responsabilidade. A tendên-
cia de Carlos, consegiiência natural de seu ideal herdado de
realeza sagrada, era ver o papa como e principal sacerdote
de seu reino - uma percepção que, ironicamente, era mais
afinada com os princípios dos imperadores bizantinos do
que com os da Doação de Constantino.
A conquista dos saxões, que ocupavam o que hoje é o
noroeste da Alemanha,
entre o Elba e a desembocadura do Reno, por Carlos foi de
importância crucial tanto
para a integridade de seu próprio reino
como para a extensão do cristianismo.
Este
Penais A OABEMÉBIA EO ENCERAMENTO BA GOMIROVÉRSIA BA
INVESTHIUBA 279

resultado fai alcançado somente após uma


série de campanhas sangrentas que dura- ram
de 772 até 804, durante as quais os francos impuseram
forçosamente o cristia-nismo sobre seus inimigos e
confirmaram essa conversão implantando mosteiros é
bispados por todo o território. Essas campanhas entre os
saxões também alcançaram a cristianização final da Frísia,
onde Santo Willibrordo havia trabalhado no início do século,
Carlos também subjugou o rebelde duque da Baviera,
Tassilo, e esse
empreedimento conduziu não apenas à absorção das igrejas da
Baviera no sistema franco, mas também à guerras
bem sucedidas contra os ávaros e à
expansão do cris-tianismo à Áustria, a
“Pronteita Leste” do reino de Carlos. Desta
maneira, o reino
franco foi posto em contato com os povos balcânicos,
predominantementeeslavos, cujos territórios se limitavam com a
fronteira serentrional do império bizantino.
Além de líder militar e conquistador, Carlos também foi
reformador da igreja e da sociedade, empregando
conscientemente as melhores e mais eruditas
mentes de sua época, para promover ordem e
cultura em um mundo cuja imaginação
coletiva somente com muita dificuldade
poderia ter uma pequena noção do que isso
repre-
sentava. O mais proeminente entre seus assistentes foi
Alcuíno, monge e diácono inglês, que se juntou à corte de
Carlos Magno em 781, após servir como mestre da escola da
cavedral em sua cidade naúva, York, Um homem erudito e
inquiridor, embora de forma alguma um pensador original ou
profundo, Alcuíno era produto da tradição de Beda, o
Venerável, e do mosteiro em Jarrow. Na corte de Carlos ele
encontrou uma companhia de eruditos cam a mesma inclinação
de mente. Lá estava Paulo, o Diácono (m. 799), um monge de
Monte Cassino e autor de A História da
Nação das Lombardos, a quem Carlos mais tarde comissionou para escrever
um gru-
po de homilias para serem lidas nas igrejas por todo seu
reino, Lá também estavam o
erudito clássico Pedro de Pisa, e Paufino,
posteriormente arcebispo de Aquiléia e
principal agente e representante de Carlos no
norte da Isália. Tais clérigos, que esta-
vam familiarizados com as tradições da lei canônica e romana
como também com as Escrituras e os escritos de
Agostinho, Gregório Magno, Cassiodoro e
Isidoro de
Sevilha, auxiliaram Carlos em uma multiplicidade de funções.
Alcuíno dirigiu uma escola informal das artes liberais no
palácio, a qual o próprio Carlos frequentava.
Nomeado abade do mosteiro de São Marsinho em Tours,
ele começou um processo de fundação e expansão
de escolas monásticas, bibliotecas e
scriproria por todo o
seino de Carlos. Seu objetivo não era meramente difundir a
alfabetização e a educa-ção, mas também coletar e copiar os
documentos que continham a herança do pas-
280 PISTÓRIA DA IBREJA GRISIA

sado; é aas mosteiros dos reinados de Carlos e seus


sucessores que devemos a
vação de grande número de textos clássicos e parrísticos,
todos escritos na elegar:< grafia chamada
minúscula carolíngia. Ademais, Alcuí no e
seus associados orient:
ram Carlos em suas relações com o papado e o império
bizantino e em seus esforç
sistemáticos para reformar à administração de seu reinoe a
vida da igreja. Foram. eles, ainda mais, e
Alcuíno em particular, quem ensinaram
Carlos a imaginar seu
reino como a verdadeira “Cidade de Deus”, a comunidade cris!
, da qual Agostinho
de Hipona havia falado (segundo a interpretação deles) quase
quarro séculos atrás. O interesse de Carlos nas
igrejas, e sua autoridade sobre elas,
estenderam-se a
cada área da vida das igrejas. Carlos
indicava os bispos das igrejas e
convocava seus
concílios, cuja função na prática passou a ser aquela de
oferecer-lhe conselhos. Sob seu comando, Alcuíno teformon e
unificou as confusas e diversas práticas litúrgicas de seu
reino, após estudo cuidadoso de modelos romanos
tradicionais - portanto
tornando-se responsável, entre outras coisas, pelo emprego
universal do assim cha-mado Credo dos Apóstolos
no Ocidente. Foi a ação firme de Carlos
que assegurou aos bispos seu direito de
ordenar, sapervisionar e disciplinar o
clero empregado em
igrejas nas vilas ou nas fazendas, mesmo naqueles casos
frequentes, onde eram os patrões leigos quem tinham o
poder de indicar tais sacerdotes para seus deveres pas-
torais. Dessa maneira, o crescente sistema paroquial foi
integrado nas estruturas go-
vernamentais da igreja. Ao mesmo tempo, Carlos reinscituiu
o antigo sistema de sés merropolitanas, cujos
ocupantes, agora denominados arcebispos,
exerciam jurisdi-
são sobre os outros bispos dentro de suas “províncias.” Ademais,
pela vida daquele clero - diáconos e
ele se interessou
presbíteros - que constituíam a equipe imediata
ou familia do bispo. No caso deles, Carlos favoreceu e
encorajou a adoção de um sistema que tinha sido
projerado por Crodegango, bispo de Metz,
no dias de Pepino,
o Breve, Crodegango havia imposto sabre seu clero uma
disciplina semimoníástica, a
assim chamada vita canostica (“vida de acordo com uma regra”), que
os vinculava a
uma vida comum e à recitação comum dos ofícios
diários (ver 11:13), mas que também lhes
permitia possuir propriedades e executar
deveres incompatíveis com
uma vocação monástica estrita. Foi a disseminação desse
sistema que levou ao costu-me de se referir ao
clero da catedral e de igrejas colegiadas
como “cônegos.” Acima de tudo, entretanto,
Carlos estava preocupada com o trabalho do clero em
estabeleci-mentos locais. Era seu ideal, que
ele estava longe de atingir, ter um
presbítero educa-do em cada localidade -
alguém que pudesse não apenas instruir o
povo no cristianis-
emu ABADE MÉDIA E O ENCERAMENTO DA CONTROVÉRSIA
DA INVESTIDURA 257

mo mas também agir, efetivamente, como mestre-escola,


trazendo os benefícios da alfabetização a todos
sob sua responsabilidade.
É desnecessário dizer que essa preocupação pela
igreja se estendeu ao próprio papado, o qual sob
Adriano ! (772-795) finalmente encerrou com
o reconhecimento
apenas formal da soberania do imperador de Constantinopla
e efetivamente tratou o próprio Carlos como o
líder leigo da cristandade, um papel que
suas conquistas e seu
zelo pela extensão e reforma da igreja pareciam justificar para
ele. O sucessor de
Adriano, Leão III (795-816), teve motivos tanto para gratidão como
diante da autoridade que Carlos
para desânimo,
assim carregava. Leão, eleivo papa acima
das obje-
ções da voraz nobreza romana, que aspitava a controlar o
cargo papal, em 25 de abril de 799 foi atacado,
sequestrado e agredido por bandidos de
aluguel. Resgarado por
dois clérigos franceses, ele fugiu 20 encontro de Carlos
em Paderborn, onde foi rece-bido com honra. Pouco tempo
após sua chegada, entretanto, o rei recebeu cartas -
das próprias pessoas que haviam tramadoo ataque - acusando
crimes sérios, Convencido de
Ecão de imoralidade e
que nenhum sucessor do apóstolo Pedro poderia
man-ter seu ofício sagrado com tais acusações pendendo
contra si, Carlos, com um grupo
de bispos francos, viajou a Roma, onde, em uma assembléia na
basílica de Sãoexigiu que Leão se
Pedro,
livrasse das acusações jurando sua
inocência diante de Deus. Dois dias mais
tarde, no dia de natal do ano 800, quando
Carlos, após assistir ao papa
celebrar a missa da natividade de Cristo, estava orando diante
do santuário de São Pedro, Leão colocou um diadema em sua
cabeça e o povo reunido aclamou-o como “Carlos Augusto,
coroado por Deus como o grande e pacífico imperador.” Pela
ação
do papa, Carlos não era mais simplesmente rei dos francos e
lombardos mas também o sucessor de Constantino,
o imperador cristão dos romanos.
A interpretação deste evento tem ocasionado um amplo debate
entre os historia-
dores, Einhard, um biógrafo de Carlos Magno, escreveu que
o novo imperador pro-clamou sua insatisfação com
esse gesto papal e insistiu em que ele jamais
teria ido à
catedral de São Pedro se soubesse que o papa iria fazer aquilo.
Esta afirmação tem
ievado muitos historiadores a ver no gesto de Leão uma tentativa
princípio da Doação de
de reafirmar o
Constantino. Ao criar Carlos imperador,
assim é argumenta-do, Leão - humilhado diante de sua
necessidade do apoio de Carlos e pela exigência
do rei de um juramento de inocência - estava na verdade
reafirmando sua própria toridade superior ao dar a Carlos
aquilo que, pelo testamento do próprio Constantino, apenas o
papa poderia conceder: o status e autoridade de imperador
282 MISTÁRIA DA HERFA CRISTÃ

dos romanos. Outros historiadores se opõem a esta


interpretação do assunto. Eles vêem na ação de Leão
nada mais do que uma continuação da política
de Adriano 1.
que, ao rejeitar abertamente a soberania dos imperadores
bizantinos, parece ter pre-tendido uma transferência do
ofício imperial para o Ocidente - e ao mesmo tempo uma
confirmação da ideologia daqueles intelectuais francos
que, como Alcuíno, vi-nham já por alguns anos saudando
Carlos como um novo Davi e como imperador da cristandade
latina, que eles agora denominavam Europa. O fato de Leão
ter apro-
veitado aquela ocasião específica pata a coroação de
Carlos seria, na perspectiva de-les,
suficientemente explicada pela intervenção
do rei franco em favor do papa e pelo fato de
que o “imperador” oriental era não apenas uma mulher,
Irene, mas uma
mulher que havia chocado até mesmo os francos com o
assassinato de seu filho, o
monarca legítimo,
A escolha entre essas intespretações do
assunto é difícil à medida que requer um
juízo dos motivos de Leão, para os quais há pouca evidência
explícita e que em qualquer caso pode muito bem ter sido
corrompida. O que parece evidente, entre-tanto, é que Carlos
não esperava o gesto de Leão; de fato, o imperador pode
muito
bem ter achado seu novo status embaraçados, uma vez que isso q
envolveu imediata-mente em conflito diplomático e
militar com o império bizantino. Os líderes
daque-le estado, apesar de tudo, em princípio (por mais
que fossem pressionados pelas circunstâncias à
concederam na prática) nunca poderiam
desistir de sua crença de
que o mundo cristão tinha, e poderia ter, apenas um líder,
o imperador romano entronizado em
Constantinopla. Ademais, Carlos e seus
assistentes parecem ter tido uma percepção do
ofício imperial diferente, tanto da do papa como daquela
das
autotidades bizantinas. Carlos via a si mesmo não como
imperador dos romanos mas como imperador daquela
cristandade latina (Le., franca e
lombarda) que consti-
tuía a Europa. O fato é, portanto, que a coroação
provavelmente teve diferentes
significados para as diferentes partes nela envolvidas, De
qualquer forma, ela atesta o surgimento de uma
nova unidade religiosa e cultural cristã e
latina sob a responsabi-lidade conjunta dos
papas como guardiães do cristianismo
apostólico e da monar-
quia franca - esta última agora transmutada,
temporariamente, em uma pálida ima- gem do império
constantiniano.

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