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Dis Ppgcs 2018 Kaercher Karen
Dis Ppgcs 2018 Kaercher Karen
Santa Maria, RS
2018
Karen Ambrozi Käercher
Santa Maria, RS
2018
Ficha catalográfica elaborada através do Programa de Geração Automática
da Biblioteca Central da UFSM, com os dados fornecidos pela autora.
__________________________________________________________________________
© 2018
Todos os direitos autorais reservados a Karen Ambrozi Käercher. A reprodução de partes ou
do todo deste trabalho só poderá ser feita mediante a citação da fonte.
E-mail: kakaercher@gmail.com
Especialmente para a minha mãe, mulher forte e destemida que
dedicou sua vida ao cuidado dos outros e ao trabalho do lar,
mas que nem sempre recebeu todo o amor e reconhecimento que
deveria.
À minha família que me incentivou a estudar desde criança, mesmo que eles
mesmos não tivessem conseguido, num primeiro momento, terminar os estudos ou
adentrar em uma universidade. Um agradecimento especial ao meu pai, Nilson. E aos
sobrinhos, primas, tias e tios, irmãs e irmãos (Nilsinho, Daniela, Cristiane, Luciano e
em memória de minha irmã Débora). Mas, especialmente, às minhas amoras, Marina e
Pietra. Vocês duas são pontinhos de esperança em um mundo melhor e mais igualitário.
À minha principal inspiração para esta dissertação, Dona Nilza Tereza, minha
mãe. Mulher forte a quem admiro muito, sem ela nada disso seria possível.
A todas as minhas amigas e amigos queridos, mas em especial à Fabiane Dalla
Nora, Alisson Machado, Jennifer Karoline, Laura Cassol, Andressa Tatiara, Júlia
Feliciano, Rosana Lindorfer, Raíra Borher, Willian Nunes, Natália Schneider e André
Comin. Sem vocês, a vida se tornaria solitária.
À Rita, Remédios, Kimbra, Matilda e Mérida. Vocês são as minhas não humanas
preferidas. As felinas, Rita e Remédios, vez ou outra ainda escrevem algumas frases em
arquivos abertos no meu computador.
Sou muito grata a todas e todos que de alguma forma contribuíram com o meu
processo de escrita e/ou defesa da dissertação. Foram tantas e tantos amigos e colegas -
passantes ou residentes em minha vida - que nem tenho como listar aqui! Como diria
Gonzaguinha, “é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente onde
quer que a gente vá, e é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por
mais que pense estar.”
EPÍGRAFE
PENSO NA MINHA AVÓ MATERNA que trabalhava numa repartição pública o dia
todo e passava as noites bordando para sustentar a casa, um casal de filhos e minha
bisavó, que ficava com as crianças para que ela pudesse trabalhar. A noite era o
momento de arrumar a casa, organizar as roupas e refeições para o dia seguinte.
Penso também na minha avó paterna, jovem viúva de cinco filhos homens, pequenos,
costurando e cozinhando para fora num dia onde se somavam muito mais de 24 horas
de trabalho ininterrupto e outras horas de solidão e cansaço. Penso também em minha
mãe, professora, costureira, cozinheira, hábil em mil e uma utilidades e afazeres que
constroem a existência mais comum e mais vital das pessoas num trabalho que
magicamente não aparece e que, por isso, não existe. E, mesmo antes de pensar na
divisão deste espaço - o dentro e o fora de casa - e o trabalho, fico sentindo nesta
viagem das lembranças, o cheiro do corpo e do calor destas mulheres, o cheiro das
linhas e fazendas, dos doces de frutas da época, das roupas engomadas, as lãs, as
comidas, e o bater contínuo da máquina de costura ou da máquina de escrever de
minha mãe, a professora, alternadamente durante as noites. Foram todas mulheres sós
na maior parte de suas vidas, os maridos ausentes, e a casa se transformava, assim, em
seus reinos absolutos. Essas algumas das impressões da menina que eu era. A
impressão forte de que aquelas mulheres e suas tarefas ininterruptas, constantes,
permanentes, eram o que garantia a minha vida, a alegria e a sobrevivência. É a
impressão de que o trabalho doméstico, ou o trabalho realizado dentro de casa (bordar
ou preparar aulas, por exemplo), é um trabalho inseparável do corpo feminino.
O presente estudo versa sobre o universo dos saberes e fazeres femininos, das linhas e
agulhas, dos panos e das máquinas de costura que empiricamente eram e, de algum
modo, continuam sendo passados de geração em geração de mulheres. Dentre os saberes
e fazeres que circundam o mundo feminino, é no saber fazer da costura que reside o
foco desta dissertação que possui como protagonistas as trabalhadoras a domicílio. Para
tanto, meu lócus de pesquisa se concentra em maior parte na cidade de Santa Maria/RS,
apesar de também ter trabalhado com duas interlocutoras que residem em outras cidades
e que desempenharam um papel relevante para o desenvolvimento da pesquisa. A partir
das memórias de nove mulheres costureiras acerca de suas trajetórias no mundo do
trabalho, busco compreender como a prática da costura perdura enquanto saber fazer em
seus cotidianos, tendo em vista as mudanças tecnológicas, demográficas e do próprio
mundo do trabalho contemporaneamente. Diante de narrativas do trabalho, entrevistas,
observação participante, croquis, trechos de obras literárias e memórias aliadas também
às fotografias, intento “costurar”, nesta dissertação, o método etnográfico de duração e a
etnografia de rua. Assim, o trabalho de campo foi realizado no ambiente da rua, dos
armarinhos e no âmbito doméstico, ou seja, nas salas de costura. Ao situar a costura
como um elemento de duração sempre em transformação, busquei evidenciar que a
costura persiste ao longo do tempo mesmo frente às mudanças no modo de vestir e
produzir roupas na nossa sociedade. Observei que a costura perdura como um trabalho
predominantemente feminino e continua sendo realizado no lar considerando a
possibilidade de conciliá-lo com o trabalho de cuidado de pessoas e do próprio ambiente
doméstico. A costura também se preserva como um saber fazer transmitido entre
mulheres de diferentes gerações. Além disso, o contexto de Santa Maria que se
apresenta como uma cidade universitária e militar, favorece a permanência das práticas
de costura tendo em vista a demanda de serviços por esse público como, por exemplo, a
confecção de vestidos de festa e fardas militares. Essas circunstâncias revelam como a
costura reverbera nas práticas, na cidade, nos corpos e na vida das mulheres costureiras.
ABSTRACT
The present study discourse about the universe of women's knowledge and practices, of
threads and needles, cloths and sewing machines that were empirically and, somehow,
continue to be passed on from generation to generation. Among the knowledges and
doings that surround the feminine world, it is in the know-how of sewing that resides
the focus of this dissertation that has as protagonists the home workers. To that end, my
research locus is concentrated mostly in the city of Santa Maria/ RS, although I have
also interacted with two interlocutors who live in other cities and who played a relevant
role in the development of the research. From the memories of nine women
seamstresses about their trajectories in the work world, I’ve try to understand how the
practice of sewing endures while knowing how to do in their daily lives, taking into
account the technological, demographic changes and the world of work itself. Through
work narratives, interviews, participant observation, sketches, excerpts from literary
works and memories allied to photographs, I try to "sew", in this dissertation, the
ethnographic method of duration and street ethnography. Thus, fieldwork was carried
out in the street environment, in the dressing rooms and in the domestic environment,
that is, in the sewing rooms. By situating the seam as an ever-changing element of life, I
sought to show that sewing persists over time even in the face of changes in the way we
dress and produce clothing in our society. I have observed that sewing remains as a
predominantly feminine work and continues to be performed in the home considering
the possibility of reconciling it with the work of caring for people and the home
environment. The sewing is also preserved as a know-how transmitted between women
of different generations. In addition, the context of Santa Maria that presents itself as a
university and military city, favors the permanence of sewing practices in view of the
demand for services by this public, such as the making of party dresses and military
uniforms. These circumstances reveal how sewing reverberates in practices, in the city,
in the bodies, and in the lives of seamstress women.
RÉSUMÉ
La présente étude examine sur l'univers des connaissances et des pratiques féminines,
des fils et des aiguilles, des tissus et des machines à coudre qui ont été empiriquement
et, d'une certaine manière, continuent à être transmises de génération en génération des
femmes. Parmi les savoirs et les pratiques qui entourent le monde féminin, c'est dans le
savoir-faire de la couture que réside l'objet de cette dissertation qui a comme
protagonistes les travailleuses à la maison.À cette fin, mon terrain de recherche se
concentre particulièrement dans la ville de Santa Maria/RS, bien que j'ai également
travaillé avec deux interlocutrices qui habitent dans d'autres villes et qui ont joué un rôle
important dans le développement de la recherche.Sur des mémoires de neuf femmes
couturières sur leurs trajectoires dans le monde du travail, j'essaie de comprendre
comment la pratique de la couture prolonge comment un savoir-faire dans la vie
quotidienne, en tenant compte des changements technologiques, démographiques et du
monde du travail contemporain. Devant des récits du travail, des interviews,
del’observation participante, des croquis, des extraits d'œuvres littéraires et des
mémoires alliés à des photographies, j'essaie de «coudre», dans cette dissertation, la
méthode ethnographique de la durée et de l'ethnographie de rue. Ainsi, l’étude sur le
terrain a été effectué dans l'environnement de la rue, dans les merceries et dans
l'ambiance domestique, c'est-à-dire, dans les salles de couture.En se trouvant la couture
comme un élément de la vie en perpétuel changement, j'ai cherché à souligner que la
couture persiste au fil du temps, même face à des changements dans la façon dont nous
nous habillons et produisons des vêtements dans notre société. J’ai remarqué que la
couture perdure comme un métier à prédominance féminine et est toujours réalisée dans
la maison en raison de la concilier avec les prises en soins des personnes et l’ambiance
chez elles. La couture est également préservée comme un savoir-faire transmis entre
femmes de différentes générations. En d’autres termes, le contexte de Santa Maria qui
se présente comme une ville universitaire et militaire, favorise la permanence des
pratiques de couture en vue de la demande de services par ce public, comme la
fabrication de robes de soirée et d'uniformes militaires. Ces circonstances montrent
comment la couture réverbèredans les pratiques, dans la ville, dans les corps et dans la
vie des femmes couturières.
Figura 19 – Croqui dos bairros de Santa Maria (confeccionado com a ajuda de Mariane
Gomes Farias) ................................................................................................................. 106
Figura 27 – Diego e Seu Miro em frente à fábrica de móveis, onde costumava ser a
estação ............................................................................................................................ 122
Figura 34 – Caminhos percorridos pela cadeira e postura de Dona Chita ..................... 159
Figura 36 – Cetim e seus gestos impressos na confecção de um casaco masculino ...... 162
PL – Projeto de Lei
SUMÁRIO
descrever as nove costureiras que colaboraram com esta pesquisa. Estabeleço uma
comparação com o próprio universo da costura, onde utilizo os tecidos como eventuais
fatores de representação por meio de codinomes para cada uma delas.
O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira chamou atenção para o fato de que
as(os) antropólogas(os) estão o tempo inteiro negociando sua permanência em campo
durante o processo de pesquisa. Não somente pelo fato de que para desenvolver a
pesquisa é fundamental que o uso dos dados e a convivência com fins de observação
participante sejam consentidos, mas também porque a pesquisadora e o pesquisador se
relacionam com os nativos enquanto atriz ou ator social. Ou seja, as pesquisadoras e os
pesquisadores participam e compartilham experiências com o seu grupo pesquisado
(OLIVEIRA, 2004). Por isso, torna-se importante atentar para o diálogo e a negociação
ética estabelecida entre mim e as costureiras. Concordamos que os seus nomes
verdadeiros seriam explicitados, como uma forma de reconhecer os trabalhos por elas
realizados. Vale ressaltar que outras mulheres também fizeram parte desta pesquisa,
embora, não se configurem como interlocutoras diretas. São mulheres que fazem parte
das minhas relações familiares e afetivas e as suas vivências contribuíram com a minha
reflexão sobre o universo da costura. Utilizo, como mencionado anteriormente, os
tecidos como aportes descritivos no decorrer do texto.
Já no terceiro capítulo, procuro descrever o lugar onde estão situadas as
mulheres costureiras na cidade. Para tanto, um entrelaçamento de autoras e autores é
utilizado com fins de dar vida a uma etnografia de rua, onde descrevo uma parcela da
vida social em Santa Maria através da busca pelos chamados armarinhos de costura. O
resultado dessa experiência é a “costura” destes retalhos e fragmentos encontrados pela
cidade que quando apresentados no capítulo revelam muito acerca das permanências e
mudanças no universo da costura e do pronto para vestir.
Finalmente, no quarto capítulo, deixo o espaço das ruas e dos bairros para
adentrar no ambiente de trabalho das costureiras, mais especificamente nas salas de
costura. Aqui, tornou-se significativo atentar para as suas maneiras de saber, fazer e
aprender, que juntas descortinam um fazer disciplinador das mentes e corpos para o
trabalho. Assim, ao mesclar a minúcia dos fazeres artesanais e o esforço diário
desenvolvido frente às máquinas de costura, o trabalho da agulha vai marcando e
“cerzindo” os corpos das mulheres.
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De início, é preciso frisar que não são numerosos os estudos sobre o saber fazer
da costura no âmbito doméstico. Na busca por referenciais bibliográficos sobre o
universo da costura, a moda apresenta-se enquanto sinônimo. São diversas as
abordagens sobre as transformações das roupas e da moda que vão desde a “História do
vestuário no ocidente” (2010), de François Boucher, até as teóricas com perspectivas
em maior grau no universo social como “A cidade e a moda” (2002), de Maria do
Carmo Rainho, “A moda e seu papel social” (2006), de Diana Crane e “O espírito das
roupas” (1987), de Gilda de Mello e Souza. Tais estudos contribuem para compreender
as mais diversas práticas de distinção nas sociedades, partindo de um mesmo ponto: o
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Assim, as roupas do mesmo modo que ocultam podem revelar muito sobre os
corpos ou sobre nós mesmas(os). No entanto, considero importante investigar não
somente o desenvolvimento das roupas, mas o fazer daquelas e daqueles que as
produzem e, em certa medida, a autora me ajudará a desenvolver uma parcela da
história da costura no segundo capítulo, no qual retomo esta discussão.
Retornando à busca por bibliografias sobre costura, um grande número de
“manuais para moças”, que se destinam ao aprendizado da costura também foi
encontrado, mas eles acabam por enfatizar preferencialmente o corte, a modelagem e as
técnicas. No entanto, caso sejam tomados como objetos de estudos, configuram-se
como fontes documentais e históricas para pesquisadoras e pesquisadores que desejam
entender o trabalho feminino nos espaços domésticos. Saliento aqui a análise realizada
pelas pesquisadoras Alves e Cunha (2009), intitulada “Livro de costura Singer: fonte
documental para os estudos de trabalho e gênero”, que traz considerações a respeito do
aprendizado da costura no ambiente doméstico e a sua relação com a divisão sexual do
trabalho.
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possuem uma função quase que ritual de “font la coutume”, de fazer o costume ou fazer
o hábito.
As funções tradicionais destinadas às mulheres, segundo esta autora, conferem a
elas algo que se tornou um destino feminino que é o de estabelecer o ritmo do tempo e
da vida em comunidade, fator determinante para o bom funcionamento das relações
cotidianas. Dessa forma, quando atento para o cotidiano, interessa-me encontrar aquilo
que é invisível aos olhos dos demais (CERTEAU, 1994). Por isso, este trabalho busca
apreender pelo menos parte daquilo que trouxe Verdier em seus estudos, mulheres em
seus trabalhos cotidianos da costura, em seus comportamentos, aspirações, sonhos e
histórias percorridas pelas minhas inquietações intelectuais e aspirações antropológicas.
Todos estes estudos são importantes para entendermos de maneiras diferentes
algumas das parcelas que compõem o universo da costura. Saliento apenas que o foco
desta pesquisa não recairá predominantemente sobre estes recortes discutidos até o
momento. Procuro pelos avessos das histórias que já vem sendo contadas1 e não
somente pelo avesso da moda como o importante estudo de Abreu (1985) nos conta.
Portanto, o que pretendo alinhavar aqui faz parte daquilo que sinto falta ao ler sobre a
costura, ou seja, sobre as histórias das mulheres que costuram, sobre as suas memórias e
os seus saberes que, empiricamente, eram – e em alguns casos ainda são – passados de
geração em geração para as demais mulheres da família, vizinhas ou conhecidas.
Quero pensar sobre as mulheres comuns e sobre os seus cotidianos nas salas de
costura, espaços estes que antes do saber fazer da atividade costureira eram
configuradas apenas como salas de estar. Quero falar daquilo que já foi costumeiro e
que atualmente se transformou em algo excepcional, as mulheres comuns e suas
costuras cotidianas. Quero investigar as mudanças e as permanências não apenas no
modo de vestir ou do maquinário da indústria da confecção como venho encontrando
nas produções mais recentes. Mas isso também não significa que alguns dos recortes
citados acima não perpassem as trajetórias das mulheres integrantes desta pesquisa.
1
Na procura por artigos que contemplassem as temáticas dos saberes e fazeres femininos, costura e
domesticidade no banco de dados do Scielo, obtive os seguintes resultados a partir de determinadas
palavras-chaves: saberes femininos (2 artigos); fazeres femininos (0 artigos); gênero e saber feminino (1
artigo); gênero e costura (3 artigos); domesticidade (20 artigos); costura (79 artigos); costura doméstica (1
artigo); costura a domicílio (3 artigos); costureira (4 artigos); costura e trabalho (41 artigos); costura e
trabalho doméstico (1 artigo); história da costura (1 artigo); história das costureiras (0 artigos); cotidiano
(3533 artigos); cotidiano doméstico (14 artigos); cuidado (11730 artigos); cuidado feminino (269 artigos);
cuidado e costura (0 artigos). Diante disso, a referida busca vem apenas reforçar a relevância de estudar
temas como estes em nossa área de conhecimento, dando ênfase para as narrativas e memórias sobre a
costura e demais saberes e fazeres que circundam o ambiente doméstico das mulheres comuns.
38
2
Retomo, especificamente, a discussão sobre os processos de duração mais adiante no texto, no subtópico
1.2.1 Tempo entre costuras, onde utilizarei as ideias das autoras Eckert e Rocha (2010) para desenvolver
a metodologia da duração.
3
Na graduação, meu trabalho de conclusão de curso intitulado “Tecendo Narrativas: Gênero e Trabalho
no Aprendizado da Costura” (KÄERCHER, 2016) versou sobre as narrativas do trabalho de costureiras e
alfaiates. No próximo tópico, retomo meu TCC a fim de explicitar melhor a minha rede de interlocutoras,
tecida desde o meu primeiro trabalho envolvendo a temática da costura.
39
passado de geração em geração junto com outros saberes que circundam o ambiente
doméstico; o fazer aqui é puramente experiencial, baseado no “aprendi fazendo” e que
juntos promovem a obtenção de lucros para complementar a renda delas ou da família.
Portanto, nem todas as mulheres possuem a profissão de costureira, mas todas possuem
em comum – embora com diferentes configurações – a atividade da costura em seus
cotidianos.
De acordo com Maleronka (2007), as historiadoras encontraram poucos
vestígios das atividades femininas através dos séculos, acredita-se que tenha sido por
causa da invisibilidade dos seus afazeres, tendo em vista que os tipos de trabalhos
desenvolvidos pelas mulheres nem sempre foram vistos como atividades que possuem
valor. Para as mulheres terem garantido o seu lugar na história dos trabalhadores do
mundo não bastou exercer uma atividade produtiva, ou reprodutiva4 seria necessário que
as atividades desenvolvidas fossem devidamente reconhecidas. Pensemos que mesmo
nos dias atuais, certas atividades femininas ainda não são reconhecidas como
propriamente laborais. Portanto, o que restaria para as mulheres de outrora? De qualquer
forma, as produções acadêmicas atentas ao cotidiano, aos saberes e fazeres que
circundam o interior dos lares vem renovando e delineando uma história das mulheres.
Outro fator a ser considerado, com a ajuda da autora Elizabeth Bortolaia Silva
(1998), é o desenvolvimento dos eletrodomésticos, principalmente os pertencentes à
linha branca5. A máquina de lavar roupa, a geladeira, o fogão a gás, o forno microondas,
e etc., são fundamentais nas tecnologias do lar e nas mudanças dos saberes e fazeres que
circundam o ambiente doméstico, por isso, torna-se relevante mencioná-los nesta
pesquisa, sobretudo quando falo de trabalho feminino.
As transformações relacionadas ao ambiente doméstico vêm modificando a
relação das mulheres com a atividade da costura. Especialmente, as transformações
tecnológicas (da invenção do fogão elétrico até a invenção do forno microondas ou da
dispensa da máquina de costura para a essencialidade da máquina de lavar),
demográficas (alteração no tamanho das famílias e composição do grupo doméstico), da
organização do mundo do trabalho (entrada da mulher no mercado de trabalho e efetiva
4
Atividades reprodutivas ou trabalhos reprodutivos é uma resposta originada pela leitura crítica feminista
sobre o questionamento se o trabalho doméstico seria ou não um trabalho produtivo. Segundo inúmeras
autoras, o trabalho doméstico não é produtivo, nem improdutivo, ele é reprodutivo da vida. Não produz
mercadorias. Reproduz a vida, por isso este trabalho está no centro da existência (BRITES, 2013; SOLÍS,
2009; COLEN, 1995).
5
Historicamente são os eletrodomésticos destinados em geral para atender as necessidades básicas de
uma residência.
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Durante todas as manhãs, visitava a loja de Cetim, que era também o seu local
de trabalho. Eu costumava chegar à loja antes de começar o seu expediente, no
momento em que ela tomava o seu café da manhã na pequena sala dos fundos, que
funcionava como estoque e também cozinha. Nestes primeiros encontros, a nossa
interação era mais formalizada, onde eu dirigia minhas perguntas organizadas em forma
de entrevistas semi-estruturadas e abertas. Com o passar do tempo, este momento
deixou o aspecto formal de lado e passou a ser o momento em que tomávamos café
juntas e conversávamos sobre o dia-a-dia. Depois do café, ajudava nas demandas da
loja. Comecei com as planilhas de vendas e faturamentos, depois passei a auxiliar com
uma parcela da limpeza do local. Como a confecção e o ajuste de roupas geram muito
resíduo de tecidos, a loja precisava estar sendo constantemente varrida e arrumada,
então nem sempre Cetim dava conta de mantê-la da forma como gostaria, por isso
passei ajudá-la. Também arrumava as vitrines com as bijuterias e confecções que ali
eram vendidas. Neste momento, ganhei confiança suficiente para mexer nas costuras, e
assim passei a desmanchar roupas que chegavam à loja para consertos. Após a
realização de tantas tarefas, estava apta para riscar e cortar moldes para depois passar a
ferro para vincar as dobras de camisas e fardas de quartéis. Raramente tinha coragem
para colocar as peças na máquina de costura, apesar do constante incentivo de Cetim.
Em algumas ocasiões, a costureira Dona Paetê era chamada à loja de Cetim para ajudar
nas costuras, assim eu pude estabelecer contato com uma nova interlocutora e perceber
as relações entre as costureiras.
No entanto, com algumas das outras interlocutoras, o processo de acompanhar os
seus cotidianos nas salas de costura configurou-se de forma diferente em relação ao
cotidiano de Cetim e Dona Paetê. Pois, as costureiras Dona Algodão, Dona Lã e Dona
Renda já estão aposentadas e, atualmente, recorrem às costuras apenas por lazer. Ainda
assim, passei muitas tardes visitando e conversando em rodas de chimarrão,
principalmente, com as Donas Lã e Renda. Os seus cotidianos foram reconstruídos a
partir de suas memórias e narrativas sobre o trabalho da costura, o cuidado, os afazeres
do lar e a vida.
Com as interlocutoras Jeans e Linho, o contato se deu de forma ainda mais
distinta. Ambas possuem o aspecto geracional como uma diferença entre as demais
interlocutoras, não obstante, as suas relações com a costura também se diferem entre si.
Jeans é neta de Dona Algodão e a sua relação com a costura é parcialmente afetiva e
parcialmente ligada ao mundo da moda e dos brechós. E apesar de Linho também ser
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adepta dos brechós, ela possui na costura o seu fator rentável e de sustento, ao contrário
de Jeans, que projeta na costura um “hobbie” ou “estilo de vida”. Conheci ambas
através de meu círculo de amizades na cidade, pois estamos todas na mesma faixa
etária, o que acabou tornando as nossas conversas mais informais e descompromissadas.
Cheguei até a casa de Dona Filó e Dona Chita através de dois colegas da
faculdade – Diego e Mateus – que me indicaram os seus serviços. Dona Chita a
propósito, é mãe de um deles. No início, ela achava que eu desejava aprender a costurar,
por isso a visitava. Depois de explicar o meu propósito com a ajuda de seu filho,
também formado em Ciências Sociais, Dona Chita pode compreender não somente a
minha pesquisa, mas a de seu filho. Diego outrora pesquisara as “técnicas de si”
desenvolvidas por pessoas frequentadoras de academias ao ar livre e academias de
musculação (OLIVEIRA, 2016). Contudo, sua mãe até aquele momento não
compreendia ao certo o que seu filho ia lá fazer, por isso concluiu que ele fazia
ginástica. A nova descoberta gerou muitas risadas entre nós três. Na realidade, as
risadas podem definir o meu trabalho de campo na residência de Dona Chita, pois, em
quase todos os momentos em que estive em sua casa, fui cativada pela simplicidade e
meiguice de Dona Chita. Sempre que possuía uma costura que considerava mais
ousada, a costureira Dona Chita me convidava para estar presente e observar a
confecção, caso eu não pudesse comparecer, ela me enviava fotos da “obra criada”, com
muito orgulho de suas habilidades.
Sucessivamente, descrevo minha inserção no cotidiano da costureira Dona Filó.
A minha primeira visita a sua casa foi acompanhada do meu colega de mestrado
Mateus, que crescera frequentando a casa da costureira, pois é amigo de longa data do
neto que Dona filó criou como seu próprio filho. Nesta ocasião tive liberdade para
observar livremente, tirar fotos e conversar com uma mulher acolhedora. Já nas outras
vezes que a visitei, sem a companhia de meu colega, tive contato com uma mulher mais
apreensiva. Apesar de eu ter sentido certa diferença no ambiente resultante da ausência
de meu “Doc”6, as conversas com Dona Filó foram muito promissoras. Consegui
observar muito de seu trabalho contratando eu mesma os seus serviços para um reparo
ali e outro acolá de minhas roupas.
Delineado alguns dos aspectos da minha inserção em campo com as costureiras,
chamo a atenção para o fato de que não haveria problemas em utilizar seus nomes
6
Faço alusão aqui ao informante chave de William Foote Whyte na sua pesquisa que resultou no livro
Sociedade de Esquina (2005).
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Pode-se dizer que a presente pesquisa está dividida em dois momentos diferentes
de trabalho de campo, o de usual convívio com as pessoas inseridas no tema da pesquisa
e no segundo momento, o de escrita etnográfica. Segundo a antropóloga Marilyn
Strathern (2014), é neste segundo momento o qual não estamos acostumadas(os) a
pensar como fazendo parte também do trabalho de campo. Para a autora, o “efeito
etnográfico” compreende a conciliação desses dois trabalhos de campo, trilhando
percursos no ir e vir das convivências e do escrever. Visa valorizar as relações que
estabelecemos no trabalho de campo por elas mesmas, num processo de imersão, para
somente depois refletir e construir alguma forma de conhecimento a respeito delas.
Desta forma, inspirada pelas reflexões de Strathern, eu poderia descrever o meu
primeiro momento de trabalho de campo como o período em que pesquisei na Internet,
recurso que se mostrou uma ferramenta promissora ao permitir o acesso a outras
mulheres costureiras do Brasil e também como um recurso localizador dos armarinhos
(lojas de aviamentos); o mapeamento e o frequentar dos armarinhos seguido de
caminhadas etnográficas que acabaram por me possibilitar redescobrir a cidade de Santa
Maria. Por último e talvez mais importante, o acompanhamento presencial do cotidiano
de nove costureiras da cidade conhecida e afetuosamente chamada de “Coração do Rio
Grande”. Sem esquecer, é claro, das experiências com o registro audiovisual que
perpassam todas as demais instâncias desta pesquisa.
O meu segundo momento seria a ocasião em que me “retiro” deste universo para
absorver e processar o que fora vivido, com o objetivo de exercer a descrição
etnográfica produzida a partir dos materiais coletados no primeiro momento de trabalho
de campo. Mas, não existe uma separação tão demarcada assim entre esses dois
44
momentos de trabalho de campo, porque realizo minha pesquisa dentro da cidade onde
resido, o que acaba tornando o ir e vir mais descomplicado e os encontros mais
habituais. Além do mais, num mundo onde nos tornamos conectados em tempo
integral7, torna-se inevitável não manter contato com o nosso objeto de pesquisa e,
principalmente, com as pessoas que o integram.
No que se refere às interações virtuais, atualmente, é possível afirmar que as
fronteiras entre o on-line e o off-line estão cada vez mais dissolvidas, isto é, o
ciberespaço não é mais entendido como um universo paralelo constituído por coisas que
não são reais, mas sim como
[...] uma dimensão das práticas e experiências cotidianas que compõe a cena
social contemporânea; uma dimensão que se constrói na fronteira entre o
“on-line” e o “off-line” ou, ainda, num trânsito e interação permanente entre
estes dois domínios. (MAXIMO; et al, 2008, p.3).
Desta forma, refletindo sobre uma lógica que desmistifica a relação que separa e
distancia do eu on-line e do eu off-line, somado aos dados do Comitê Gestor da Internet
no Brasil, citado em nota, podemos inferir que a Internet tornou-se parte do cotidiano
das pessoas. Um cotidiano vivenciado por meio do ciberespaço e que se transforma
numa instância característica da nossa sociedade.
Na rede social Facebook, não só mantenho contato, mas me atualizo sobre o
cotidiano de minhas interlocutoras e de outras costureiras do Brasil via o grupo “Clube
da Costureira” presente na plataforma, como explicarei mais detalhadamente no
próximo subtópico. O movimento de navegar pela Internet, mais especificamente no
grupo “Clube da Costureira”, trouxe-me novas demandas para o trabalho de campo
antropológico. Débora Leitão e Laura Graziela Gomes (2013), antropólogas e
pesquisadoras das realidades digitais e da Internet, afirmam que o número de pesquisas
realizadas na ou sobre a Internet na área das Ciências Sociais aumentou
demasiadamente na última década, com abordagens diversas, principalmente quando se
trata da Antropologia Social. Isso quer dizer que cada pesquisadora e pesquisador, a sua
maneira, vêm reinventando o fazer etnográfico quando se trata da Internet, como
discutirei mais adiante.
A partir da perspectiva da antropologia clássica, entende-se o método
etnográfico como um projeto que requer que as etnógrafas e etnógrafos se desloquem
7
De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil, o acesso à internet atingiu regularmente 51% das
residências brasileiras no ano de 2015, o equivalente em números absolutos, a 34,1 milhões de domicílios.
Para ver mais acesse em: http://cetic.br/publicacao/pesquisa-sobre-o-uso-das-tecnologias-de-informacao-
e-comunicacao-nos-domicilios-brasileiros-tic-domicilios-2015/
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geograficamente, uma vez que, o projeto etnográfico foi tradicionalmente pensado como
um intenso trabalho de campo que pressupunha “viver numa aldeia”:
Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas do seu equipamento, numa praia
tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe
afastar-se no mar até desaparecer de vista. Suponhamos, além disso, que você
seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem
ninguém que o possa auxiliar. Isso descreve exatamente a minha iniciação na
pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné. (MALINOWSKI, 1978,
p.19).
8
A diferença entre um historiador e um historiador etnográfico está no fato de que enquanto o historiador
das ideias esboça a conexão do pensamento formal, de um pensador para outro, o historiador etnográfico
estuda a forma como as pessoas comuns entendem o mundo, como organizam suas realidades, etc., a fim
de perceber que a vida comum exige uma estratégia. (DARNTON, 1986)
47
personagens. Personagens que transitam pelas ruas e bairros, que sofrem imprevistos do
cotidiano, personagens que cortam, alinhavam e costuram. O caminhar potencializou,
assim, uma experiência sensorial do cotidiano na cidade, pois ele,
[...] desafia o medo da cidade e as gestões políticas desse medo, impondo
passo a passo, o direito de transgredir fronteiras sociais e simbólicas,
acabando com as cidades interditas, os bairros do estigma, as separações
'naturais', 'puras' e 'fixas', as abstrações do outro como excluído e marginal, a
descoincidência, tantas vezes demonstrada, entre a (in)segurança subjectiva e
a (in)segurança objectivamente medida. Aliás, é pela transgressão de
fronteiras e pelo mover-se na fronteira que as legitimidades dominantes vão
sendo, a diversos níveis, questionadas. (LOPES, 2008, p.142).
A proposta é situar a costura como objeto temporal que dura pela sobreposição
do tempo no mundo, das práticas e das memórias. Mas, apesar desse estilo de etnografia
enfatizar a dialética temporal e imaginativa como duração das cidades, no caso
específico da minha pesquisa, passo a enfatizar o imaginário da costura. É preciso
atentar para as mudanças, pois a costura é um elemento de duração sempre em
48
9
O bordado, no atual contexto de emergência dos novos feminismos, passou por uma ressignificação no
Brasil. Se antes ele era visto como um mantedor de estereótipos de feminilidade, hoje ele atua como um
fator de resistência, onde mulheres bordam com linhas coloridas seus desenhos, mensagens e ideias de
cunho feministas nos bastidores, “patches” e outros materiais. Algumas mulheres promovem cursos a
fim de resgatar o valor dos trabalhos manuais femininos deixados para trás por gerações de mulheres
anteriores. Os cursos intuem empoderar mulheres através de seus bordados que expressam a liberdade
sexual e o amor próprio. Para mais informações, consulte em http://bordadoempoderado.com.br/ ou
http://www.oclubedobordado.com/.
10
O saber fazer do bordado e o saber fazer da costura, de certa forma, configuram-se como contrastantes.
Embora ambos estejam ligados principalmente ao público feminino através dos tempos, o bordado abarca
a questão da técnica rigorosa, do avesso perfeito e igual ao lado direito/certo, etc. Diferente do saber fazer
da costureira, como tenho observado, que certamente por precisar sobreviver somente com esta renda,
acaba por trabalhar numa quantidade de peças muito maior do que gostaria, costurando possibilidades
onde antes não havia, fazendo o que consegue no tempo que possui. Certa vez, Dona Paetê dissera-me, “-
Eu enxergo os defeitos, mas às vezes fico quieta, pois, tem aquela costura que a gente faz correndo e tem
aquelas outras que a gente faz com todo cuidado”. Tudo isso pode ser contrastado com a perícia
desempenhada pelos alfaiates diferenciada do saber fazer das costureiras e que remonta uma parcela da
minha pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso.
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antropólogo, “Para interpretar este choro é preciso conhecer bem a sociedade de onde
ela vem, dos padrões residenciais e normas de herança até das atitudes corporais e os
critérios estéticos e morais.” Essas interpretações só são possíveis de serem realizadas a
partir da observação participante, que se distingue da observação comum e,
posteriormente, do registro em diário de campo. Os registros em diário de campo, por
sua vez, tratam-se de anotações diárias do que vi, ouvi, senti, observei e participei
quando estava inserida entre as costureiras e demais pessoas com quem compartilhei
certo tempo de suas vidas cotidianas.
Referente às entrevistas, elas foram realizadas de forma aberta e semi-
estruturada com o propósito de completarem elementos surgidos durante a observação
participante. As entrevistas abertas tinham como finalidade deixar as interlocutoras
mais livres para discorrerem sobre proposições sugeridas por mim para explorar
amplamente os aspectos de suas trajetórias no universo da costura. As perguntas foram
sendo respondidas numa conversação informal, na hora do chimarrão ou entre os
intervalos “da novela das seis”. Espaço de tempo no qual as interlocutoras usavam
como “intervalo”, “descanso”, “paradinha” entre costuras e as sempre inevitáveis lidas
da casa. Neste processo, assumi, principalmente, uma postura de ouvinte, interferindo o
mínimo possível nas histórias tecidas por elas a partir de um estímulo inicial.
Já para as entrevistas semi-estuturadas, elaborei um roteiro prévio de perguntas
as quais me interessava tomar conhecimento e as quais suas respostas não haviam sido
atingidas na primeira fase de entrevista. Também fui realizando perguntas adicionais
para esclarecer alguma questão que porventura não tivesse ficado clara. Além disso,
como exemplificam as sociólogas Valdete Boni e Jurema Quaresma,
[...] a interação entre o entrevistador e o entrevistado favorece as respostas
espontâneas. Elas também são possibilitadoras de uma abertura e
proximidade maior entre entrevistador e entrevistado, o que permite ao
entrevistador tocar em assuntos mais complexos e delicados, ou seja, quanto
menos estruturada a entrevista maior será o favorecimento de uma troca mais
afetiva entre as duas partes. (BONI; QUARESMA, 2005, p.75).
11
É interessante ressaltar que em menos de três meses a quantidade de membras aumentou
significativamente. Na primeira versão deste texto eram aproximadamente 153.188 costureiras. Ou seja,
foram adicionadas 59.977 novas membras no grupo desde então.
12
A rede social do Facebook não faz distinção de gênero quando se refere à quantidade de pessoas
presentes em um grupo. Logo, em concordância com a linguagem formal, faz-se a concordância com o
gênero masculino, mesmo que a maioria incontestavelmente alarmante de participantes do grupo sejam
mulheres. Como venho trabalhando ao longo desta dissertação, a costura é caracterizada como uma
atividade, em geral, feminina. Como o grupo demonstra, e diante dos fatores mencionados que tomo a
decisão política de utilizar o termo “membras” para fazer a concordância com a maioria de mulheres lá
presentes. Assim como farei em todo o decorrer do texto quando conveniente. Aliás, é interessante
perceber que prefiro incluir ambas as flexões de gêneros quando a proposta textual for contemplar tanto
homens quanto mulheres.
13
“Conceito ‘guarda-chuva’ que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi
determinado quando de seu nascimento”. (JESUS, 2012, p.25).
52
Apesar do grupo não ser o meu foco nesta dissertação, ele se tornou relevante na
medida em que configura ao universo da costura uma dimensão mais abrangente.
Dimensão que extrapola as investigações no âmbito da cidade de Santa Maria/RS,
movendo comparações do âmbito local da cidade para o âmbito geral do Brasil. No
grupo, observei postagens de diversas costureiras sobre os mais variados assuntos do
cotidiano como, por exemplo, as suas jornadas de trabalho, o orgulho das confecções
criadas, de como se tornaram costureiras, além de dicas e sugestões para as mais novas
iniciadas no batente da costura.
De acordo com o cientista social Alexander Halavais (2011), no prefácio que
escreve para a coletânea “Métodos de Pesquisa para a Internet”, a pesquisa no ambiente
on-line requer novas formas de observação que levam os cientistas sociais a buscarem
outras lentes para enxergar aquilo que se torna invisível aos olhos. Ainda de acordo com
o autor, temos que forjar nossas próprias lentes tal qual foi a invenção telescópica e
microscópica de Galileu, em razão de que
A análise de redes sociais [...] tem provado ser um instrumento
particularmente apto para a compreensão de uma sociedade que se encontra
cada vez mais estruturada como uma rede e que utiliza novas ferramentas de
rede, e já era utilizada por antropologistas e sociólogos há décadas, sem que
isso implicasse a necessidade de reduzir as relações sociais a causalidades
simples. Mesmo nas humanidades, as abordagens computacionais têm aberto
caminho e, enquanto as “humanidades digitais” eram um campo
relativamente marginal no final do século XX, muitos agora as consideram
parte essencial do conhecimento humanístico contemporâneo. (HALAVAIS,
2011, p.15).
14
Interlocutoras que permitiram o uso de imagem.
54
15
O som das máquinas de costura está presente no cotidiano das mulheres costureiras, nas memórias das
filhas e das netas que tinham na figura de suas mães e avós, a construção da mulher dona de casa que
costurava as roupas de toda a família. O bater contínuo no pedal e o rangido linear da agulha perfurando
rapidamente o tecido são alguns dos sons mais comuns em uma sala de costura. As sonoridades quando
levadas em consideração nas pesquisas etnográficas, tratam-se de “intervenção metodológica e científica
inspirada na abordagem de uma antropologia das formas sensíveis, de observações dos sons, do
minúsculo, do banal e do ordinário das nossas vidas”. (VEDANA, 2008, p.70). O modo como as pessoas
se relacionam com a sonoridade das máquinas de costura poderia, certamente, configurar-se num outro
tema de pesquisa. Nesta dissertação, faço apenas experimentos, à luz desta intervenção metodológica,
com gravações dos sons emitidos das máquinas e provenientes das salas de costura. Intento a ser
desenvolvido mais satisfatoriamente em pesquisas futuras.
55
“imageries”16 foram sendo construídas a partir do frequente convívio neste meio. Tais
como, as pré-noções de que as mulheres de classes mais baixas estão mais propensas à
violência doméstica, são destituídas de agência, possuem poucas oportunidades de
emprego e trabalham apenas para complementar a renda familiar. Por fim, de que
estariam relegadas ao universo doméstico, no qual se reforçam estereótipos do papel
tradicional feminino e onde o masculino se tornaria a figura central e provedora.
Mais tarde, diante de um amadurecimento acadêmico advindo de orientações de
algumas professoras e professores do Departamento de Ciências Sociais da UFSM e
enriquecido pela leitura de monografias já produzidas no âmbito dos estudos de gênero,
pude compreender que posturas fundadas no princípio abstrato da igualdade e liberdade
(como era a minha inicialmente) não levam em conta o fato de que as mulheres estão
situadas socialmente também em função de suas características culturais (políticas,
econômicas, sexuais, étnico-raciais, etc.). Sem deixar de lembrar que “a nossa relação
com o outro, que também é sujeito portador de um conhecimento, não deve ser marcada
pela intenção de fornecer uma direção, segundo um projeto político que é nosso.”
(MARTINS, 2004, p.296). Por isso, ressalto a necessidade de pensar com as mulheres
que participam da pesquisa, ao invés de pensar sobre elas, fazendo alusão a máxima de
Clifford Geertz (1989).
Logo, uma das tensões que constituem o meu trabalho de campo antropológico
está no fato de que enquanto mulher e militante feminista possuo empatia com tal
intensidade, a ponto de haver algumas identificações com o universo social das
mulheres com as quais trabalho em minha pesquisa. Em especial, pelo fato de que
minhas bisavós, avós, tias e minha mãe costuram/costuravam e são/foram donas de
casa. Ou seja, minhas vivências em relações de parentesco já apontavam para este saber
fazer feminino que com o tempo foi se constituindo em objeto de pesquisa. Para
destacar este saber fazer, busquei na pesquisa agregar o conhecimento de outras
interlocutoras mulheres que costuram “para fora”, e ainda outras mulheres que tomam a
costura como mais um de seus rotineiros afazeres domésticos.
Perceber que este trabalho é pouco estudado, e que também constitui parte do
trabalho de vestir rotineiramente as pessoas, implica necessariamente em associar as
lembranças infantis vividas no meu próprio ambiente doméstico com as inquietações
que as leituras feministas, antropológicas e sociológicas me trouxeram.
16
De acordo com o autor, as “imageries” seriam as representações imaginadas que criamos sobre os
nossos objetos num período anterior a realização da pesquisa.
57
17
Segundo Walter D. Mignolo (2008), pensar descolonialmente significa também “o fazer descolonial”; a
expansão implacável do conhecimento do ocidente (epistemologia) afirma-se como identidade superior e
constrói identidades inferiores (construtos raciais, religiosos, sexuais e de gênero) e expele-os para fora
do real, o caminho para o futuro da antropologia é a linha epistêmica, ou seja, a oferta do pensamento
descolonial como a opção dada pelas comunidades que foram privadas de suas “almas” e que já
alimentaram tanto o saber antropológico.
61
18
É preciso considerar que o autor José Jorge de Carvalho se aproxima de uma vertente pós-colonial.
Existe uma diferença entre os estudos pós e descoloniais. Ainda que, aparentemente, ambos busquem
notabilizar as vozes das subalternas e subalternos. Os estudos descoloniais surgem, então, como uma
crítica aos fundamentos colonialistas de autores ocidentais que perpassavam inclusive os estudos pós-
coloniais. Nessa medida, pela perspectiva descolonial é preciso descolonizar também o saber pós-
colonial.
62
Concordo com Claudia Fonseca que em sua fala na palestra sobre “A antropologia
através das antropologias”, nas Jornadas Antropológicas ocorridas no âmbito da
Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 2015, salientou que o lugar da(o)
antropóloga(o) será sempre pleiteando ao lado das(os) subalternas(os).
Desta forma, entendo que a pluralidade metodológica e a reciprocidade entre
pesquisadora e interlocutoras requer um significativo engajamento com aquelas pessoas
que dialogamos. Isso implica ocasionalmente que viremos o olhar crítico em nossa
direção no intento de criar alguma possibilidade de sermos mudadas(os) através do
encontro com o “Outro”, e que não necessariamente este “Outro” seja tão diferente do
“Eu”, tal qual sugeriam os antropólogos clássicos. Pois, o fato da Antropologia estudar
a humanidade em termos tão amplos e, ao mesmo tempo tão básicos, exige que a(o)
pesquisadora(o) inclua a si mesmo e inclua seu próprio modo de vida em seu objeto de
estudo (WAGNER, 2010).
Estando postas as considerações, acredito que devemos sempre ter em mente
uma compreensão sobre a responsabilidade que temos com as pessoas a quem nos
dedicamos conhecer e, assim, “abraçar a habilidosa tarefa de reconstruir as fronteiras da
vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em comunicação com todas as nossas
partes” (HARAWAY, 1991, p.99), no compromisso da criação de dívidas que é
etnografar. E de quem sabe, ajudar na construção de espaços que permitam uma autora
que não fala por todas as mulheres, que deixa em aberto a eventualidade de ser mudada
através do encontro, que deixa livre a possibilidade das certezas políticas e analíticas
serem transformadas no decorrer do trabalho de campo. E de que, principalmente, as
vidas das mulheres possam ensinar a todas e todos nós “algo para além do exercício
científico de compreender e traduzir”. (MAHMOOD, 2006, p.154).
As próximas páginas deste texto mantêm um pouco do tom analítico e de
transcrição das experiências geradas no exercício etnográfico. Contudo, os
ensinamentos e aquilo que fora vivido, eu venho guardando e levando comigo para além
das paredes acadêmicas. E outros ensinamentos, eu tenho trazido para dentro das ditas
paredes, haja vista, pôster, croquis e fotografias alinhavadas, costuradas e penduradas
em tecidos de chitas e algodão, nada usuais nos âmbitos de pesquisas19. Ensinamentos
19
As leitoras e os leitores encontrarão no terceiro capítulo, “croquis” das ruas de Santa Maria que
indicam a localização dos armarinhos de costura, e os bairros por onde trilhei minhas caminhadas
etnográficas. Eles são confeccionados à mão, sobre tecidos floridos e papel de gramatura 128 g/m² e
foram feitos com a ajuda imprescindível da minha arquiteta preferida, Mariane Farias. Já na 32ª Jornada
63
condizentes aos saberes apreendidos a partir dos fazeres das mulheres que costuram que
venho trazendo ao longo de minha pesquisa. Às leitoras e aos leitores, felizmente,
considero que escrevo melhor do que costuro. De qualquer forma, os primeiros pontos
foram dados ou será que costurados?
Acadêmica Integrada da UFSM (2017), teci minha pesquisa em um pôster feito de chita e costurado por
mim.
64
tempos. Vale ressaltar que não será possível retomar cada período histórico desde a pré-
história até os dias de hoje, por isso alguns saltos temporais serão efetuados com o
intuito de elucidar algumas partes da história da costura. Segundo Barber, na Dinamarca
do século XX, por volta da década de 1940, as mulheres não precisavam mais fazer seus
próprios fios, mas ainda precisavam tecer o pano para as suas famílias. Na Grécia rural,
na década de 1960, mesmo com o advento da Revolução Industrial e a instalação da
indústria “pronta para vestir”, todas as lãs e roupas para festivais tradicionais eram feitas
a partir do zero. Estes espaços de fiação, tecelagem e costura foram constituídos como
geralmente femininos, o porquê desta circunstância é o que move a escrita do capítulo
“A Tradition with a Reason: Why textiles were traditionally women's work”20, do livro
“Women’s work” de Barber. Segundo a autora, durante muitos milênios as mulheres
sentaram juntas para fiar, tecer e costurar. Barber questiona, então, o porquê da
produção de roupas estar diretamente vinculada ao universo feminino, e não ao
masculino. A autora afirma que dificilmente a criação dos filhos é a responsabilidade
principal dos homens, desta forma, o trabalho desempenhado pelas mulheres depende
da compatibilidade com as exigências da assistência infantil. Por isso, os trabalhos
destinados às mulheres são aqueles extremamente repetitivos, intermitentes e facilmente
retomados uma vez que interrompidos. Não por acaso, fiar, tecer e costurar são
trabalhos que podem ser feitos em casa e podem conciliar o cuidado das crianças. A
discussão sobre o cuidado de crianças será retomado no decorrer deste capítulo.
Mesmo que, atualmente, seja fácil e cômodo comprar roupas prontas para vestir
nos estabelecimentos da cidade, não imaginamos o quão difícil costumava ser a tarefa
de fiar as fibras, tecer os panos e costurar as roupas para a família. De acordo com
ABREU (1986), a vida familiar e o trabalho estavam diretamente relacionados durante
os séculos XVI e XVII,
Marido, mulher e filhos, em geral, trabalhavam juntos na própria casa,
usando algum tipo de maquinaria rudimentar para fabricar tecidos de algodão
ou lã, rendas, calçados, cordas, pregos e correntes de ferro, e um sem-número
de outros artigos que eram parte comercializados e parte utilizados para o
próprio consumo doméstico. Nessa época, no entanto, essa indústria
domiciliar fazia parte de um sistema mais amplo, que pressupunha uma
economia camponesa e o artesanato urbano independente. A família era,
então, uma unidade produtiva. Seus membros detinham certa igualdade na
responsabilidade face ao processo produtivo e, também, restrita, ainda que
precária, independência econômica enquanto grupo. (ABREU, 1986, p.37).
20
“Uma tradição com um motivo: por que a tecelagem foi tradicionalmente trabalho de mulheres”,
tradução livre da autora.
66
Vale destacar que para uma mulher que viveu sua juventude até, pelo menos, os
anos 1960 no Brasil, era esperado que a mesma produzisse enxovais de casamento. Os
conjuntos de panos de prato, toalhas de mesa, toalhas de banho e rosto, lençóis e
camisolas eram costuradas e bordadas a mão. As camisolas podiam apresentar delicadas
aplicações de renda e, às vezes, as mulheres mais velhas da família possuíam a tarefa de
ajudar as mais novas no acabamento do enxoval. Como numa espécie de ritual,
mulheres de diferentes idades se sentavam juntas para costurar e bordar mais do que os
tecidos, mas as suas histórias. Fábio Cerqueira e Denise Santos referem-se a esta
situação nos seguintes termos,
21
De acordo com britânica Rosemary Hawthorne (2009) as famílias menos abastadas tinham a prática de
utilizar os sacos de algodão que as mercearias usavam para embrulhar farinha, açúcar ou arroz para a
confecção de roupas íntimas. Esta foi uma prática que perdurou até o final da Segunda Guerra Mundial,
os sacos precisavam ser fervidos e alvejados e logo depois já podiam ser usados para fazer roupas de
baixo, segundo a autora, “muitas vezes nem toda a fervura conseguia apagar completamente os carimbos
do tecido. Pobres das moças (e rapazes) que tinham que andar com inscrições como ‘12kg – Farinha de
Confeiteiro’ nos traseiros!” (HAWTHORNE, 2009, p.44). Além disso, as mulheres costuravam os
lençóis, as cobertas e até mesmo os travesseiros e colchões.
67
22
O livro é um repositório de conhecimentos sobre têxteis e a costura para aquelas mulheres que desejam
seguir o ofício da costureira. Quase como num manual de etiquetas, Maria Vitorina de Freitas explica
como selecionar os tecidos, tirar as medidas de crianças, homens e mulheres, com os exemplos do que
nunca fazer em cada caso.
68
Dona Lã, as pessoas de uma família costumavam ter duas ou três peças de roupa, uma
para uso no cotidiano e outra para ir a Igreja aos domingos ou em ocasiões especiais.
Acostumadas a ficar em casa, cuidando dos filhos ou irmãos, dos afazeres domésticos,
das hortas e dos animais, as mulheres ainda possuíam o trabalho de fiar a roca, fazer a
malha, tratar das lãs, bordar, tricotar, costurar e, vez ou outra, juntavam-se para fazer
trabalhos manuais fora de casa, num passeio ou piquenique.
Assim, começamos a visualizar um ambiente doméstico onde nem só o
tradicional trabalho reprodutivo do lar e todos os demais cuidados faziam parte. Mas,
que também a costura era resultado contínuo do trabalho feminino, entre tantos outros
fazeres manuais como os bordados, os crochês e os tricôs. Termos oriundos do francês e
que designam lavores sofisticados, miúdos, detalhados e trabalhosos. De acordo com a
escritora Ana Maria Machado, numa oportuna aproximação entre têxteis e textos,
escreve,
Podíamos ainda recordar que lavor (bordado, elaboração de fios) tem a ver
com trabalho e é primo de lavrar e lavoura, de lavra e laboratório, diferentes
instâncias em que o trabalho transforma a natureza e gera riqueza. Ou
lembrar que a essência, o estofo de que somos feitos é irmão de étoffe, em
francês (palavra que designa tecido). Mas também a língua nos mostra que,
se toda essa atividade era tão valorizada durante tantos séculos, assim que
surgiu a máquina que substituiu a prática artesanal da fiação, as mulheres que
se dedicavam a essa atividade foram desvalorizadas e sua imagem tão
positiva foi rapidamente destruída. Em inglês, a palavra que designa
solteirona é spinster, originalmente fiandeira. A mesma idéia, de mulher que
trabalhou muito fiando e não casou, é designada em francês como vieille fille,
mas para alguns estudiosos (como Zipes) esse termo não tem a ver com
"filha", mas vem de uma corruptela de filer, "fiar", como ocorreu em alemão
com a expressão equivalente, eine alte Spinne. (MACHADO, 2013, p.183-
184).
Figuras 2 e 3: Anúncios veiculados no dia 6 de outubro de 1940 no jornal “O Estado de São Paulo”.
23
De acordo com ABREU (1986), a máquina de costura se constituiu como um dos pioneiros bens de
consumo “duráveis” fabricados em grande escala. Originalmente produzida de forma modesta pelo
inventor Elias Howe nos EUA em 1846, mas, patenteada com uma forma mais aprimorada e eficiente
pelo também americano Issac Singer no ano de 1851. “A máquina Singer já possuía todas as
características principais da máquina de costura moderna, permitindo efetuar costuras simples de maneira
muito rápida. Seu baixo preço facilitou sua utilização...” (ABREU, 1986, p. 90-91).
70
24
As máquinas de costura em sua sequência geracional são as de manivela, pedal, motor ou programáveis
e podem realizar diversas operações como a costura reta, curva, entre outras. Mas, é interessante atentar
para o fato de que, em geral, as máquinas de costura apresentam as mesmas características básicas até os
dias de hoje.
25
São os eletrodomésticos que historicamente foram desenvolvidos para atender as necessidades
primordiais de uma residência. Exemplos, geladeira, fogão a gás, freezer, etc..
71
comida se tornou, assim, uma tarefa que pode ser realizada por qualquer membro da
família, embora, o serviço “sério” de cozinha ainda seja realizado majoritariamente
pelas mulheres.
De acordo com a historiadora Flávia Pinho (2007), ainda nos primórdios do
século XX, a cozinha brasileira sofreu transformações radicais com o advento e
popularização da eletricidade. A partir disso, um arsenal de eletrodomésticos adentrou
nos lares. O liquidificador, segundo a autora, é um eletrodoméstico antiquado, noventa
anos depois de sua invenção, ele continua praticamente o mesmo. A batedeira chegou
ao Brasil em 1936. Já o microondas se configura como o divisor de águas na história da
cozinha e da culinária, foi considerado uma das maiores invenções do século. Mas só
chegou à casa das brasileiras no ano de 1985. É claro que a inserção das tecnologias do
lar não aconteceu de forma acelerada e igualitária nas residências de todo o Brasil, pois,
a grande maioria de trabalhadoras e trabalhadores não possuía o capital necessário para
adquirir os produtos que o mercado estava oferecendo. Ou seja, existiam e ainda
existem certas disparidades econômicas e sociais entre as regiões do país que dificultam
tal inserção. Um exemplo disso acontece com a máquina de lavar, nas palavras das
arquitetas Rosana Vasques e Maristela Ono (2010),
De acordo com a PNAD de 2007, a máquina de lavar roupa está presente em
39,5% dos lares brasileiros, em média. No entanto, há variações
consideráveis entre as regiões, encontrando-se médias elevadas nas regiões
mais ricas – 53 e 54,9% nas regiões Sudeste e Sul, respectivamente -, e
menores em regiões mais pobres – 12, 8 e 24% nas regiões Nordeste e Norte,
respectivamente (IBGE, 2008). (VASQUES; ONO, 2010, p.6).
Uma alternativa para a lavagem das roupas das camadas mais desfavorecidas
da população brasileira é o chamado “tanquinho”. Uma máquina semi-automática que
esfrega a roupa, mas possui a desvantagem de não centrifugá-la, dependendo ainda da
força braçal da mulher que necessita torcer a roupa à mão. Apesar disso, as tecnologias
incentivam o consumo e alteram o hábito de fazer as atividades no ambiente doméstico,
ora complexificando, ora facilitando o dia a dia de quem desempenha as atividades do
lar26.
26
“O tempo passa e o progresso facilita a vida. O engenho humano tem apresentado um mundo de
inovações. Nos cuidados domésticos, outrora tão trabalhosos, tão pouco agradáveis...”, enunciava a
propaganda da enceradeira elétrica da marca EPEL no ano de 1951, atualmente a imagem é veiculada na
internet sem a fonte. A partir do enunciado desta propaganda, torna-se visível que as novas tecnologias
visavam, ou pelo menos intentavam visar, a praticidade no desenvolvimento diário das atividades
domésticas. Mas, existem controvérsias quanto a isso, um exemplo é o fogão a gás que possibilitou o
cozimento de quatro ou seis variedades (alguns modelos de três “bocas”) de comida para uma só refeição.
Quando anteriormente, com o fogão à lenha, era comum cozinhar grandes quantidades de poucos
72
“pratos”. De certa forma, isso acabou complexificando o trabalho de quem provê a alimentação da
família.
73
Figura 5: "As alunas do Curso Rolantense (1960)". Fonte: Acervo pessoal de Dona Lã.
74
Figura 6: Na primeira fileira, de baixo para cima e da esquerda para a direita, a primeira mulher é Dona
Lã, ao lado de seu marido no curso de corte e costura. O ano em que a foto foi tirada está perdido em sua
memória, o local é no salão de festas da Igreja e todas as roupas penduradas no varal foram
confeccionadas pelas alunas. Fonte: Acervo pessoal de Dona Lã.
costureiras, em maior quantidade e até mesmo em menos tempo. Partindo dos fatos
históricos que influenciaram a opção das consumidoras e consumidores ao “prêt-a-
porter”, o saber fazer feminino da costura passado de mãe para filha foi se esmaecendo
por entre os dedos das novas gerações, fazendo com que o trabalho da costureira a
domicílio declinasse de forma substancial.
A indústria da confecção alterou o cotidiano, o tempo e a vida das pessoas. Ao
mesmo passo em que os grandes estilistas também começaram a surgir com “uma
produção diversificada de discursos sobre moda” (RAINHO, 2002, p. 19). Segundo o
historiador E. P. THOMPSON (1998), não há desenvolvimento econômico sem que
haja também desenvolvimento da cultura. No caso da costura, podemos inferir que os
novos modos de vestir e produzir mudaram significativamente a nossa forma de se
relacionar e viver em sociedade, tendo em vista o fascinante consumo da moda nos dias
de hoje.
Mas, embora Elis Regina27 cante para os amantes do passado o lembrete de “que
o novo sempre vem”, vale considerar que ele não simplesmente surge e substitui o
“velho”. De modo que as costureiras não deixaram de existir e o saber fazer da costura
artesanal se configura como um sobrevivente. Abreu (1986) já havia classificado com
base em seu estudo as formas que a costura poderia assumir,
A costura enquanto saber pode assumir várias formas: desde uma forma
exclusivamente doméstica, quando se torna apenas uma faceta adicional do
trabalho doméstico de responsabilidade da dona de casa; uma forma
artesanal, no caso das costureiras que tem freguesia particular; até formas
mais diretamente ligadas ao capital, quer numa relação de assalariamento
típica, numa grande fábrica ou em pequenas confecções, quer sob a forma do
trabalho industrial a domicilio. (ABREU, 1986, p. 213).
27
Elis Regina foi uma importante e inspiradora cantora popular brasileira dos anos 1960 ao início dos
anos 1980. A música referida, “Como nossos pais”, foi originalmente composta pelo cantor e compositor
cearense Belchior em 1976.
76
28
Esta classificação lembra a divisão do tempo das Corporações de Ofício – que remontam desde a
Idade Média – instituições que regulamentavam as profissões como a alfaiataria e que dividia seus
trabalhadores na ordem hierárquica de: mestres, oficiais de peça, meios oficiais e aprendizes.
(SAUTCHUK et AL, 2009).
78
29
Uso aqui o substantivo feminino, devido ao desconhecimento de homens que trabalhem neste segmento
que se constituiu historicamente como um lugar de trabalho feminino. Exceto que sejam mencionados os
alfaiates, contudo, devido à escassez do ofício no mundo moderno atual, optei por trazer à tona apenas a
questão das costureiras residenciais, que apesar de terem diminuído consideravelmente, ainda são muito
requisitadas.
79
30
Usado para confeccionar vestidos de debutantes e noivas, o tecido chamado de “organza” é leve,
transparente e “armado”. Muito parecido com o tule ou filó, contudo, possui a diferença de dar volume
para as vestimentas. Escolhi este codinome para a mulher chamada Dona Etelvina em meu cotidiano. Para
ela, este tecido marcou a sua adolescência e, por isso, compõe o imaginário do vestir-se bem como era
“antigamente”.
84
31
Tradução livre do original, "Dirty, dangerous and degrading".
85
32
Sendo o trabalho da costureira um saber feminino, passado de mãe para filha numa relação afetiva, bem
como um labor corporal pesado que se mescla com as lidas domésticas, entendo o universo afetivo como
de extrema relevância para compreensão do universo social daquelas mulheres que busco como
interlocutoras da minha pesquisa.
86
Tomando consciência das reflexões acerca desta discussão, podemos inferir que
os trabalhos de cuidar se fazem sempre se não com afeto, pelo menos com trabalho
87
emocional. O trabalho “com açúcar e com afeto”, para mencionar a música de Chico
Buarque33 “Logo vou esquentar seu prato/ Dou um beijo em seu retrato/ E abro os meus
braços pra você”, que retrata aquela mulher que faz de sua vida o cuidado da casa e a
espera do marido com seu doce predileto, incluindo em seus afazeres incessantes um
“qual o quê” de afetividade, embora seja bastante lembrada na literatura, na poesia e na
melodia, necessita agora que seu trabalho seja reconhecido para além de um gesto
intrínseco de amor.
Já dizia Gonzaguinha que “toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de
outras tantas pessoas”34, e no caso das pesquisas acadêmicas, cada pesquisador é a
marca das experiências empíricas que o campo proporciona e também de pesquisas
publicadas que nos inspiram e nos motivam. É evidente que diversos trabalhos e outras
tantas inquietações pessoais agiram como impulsionadoras desta investigação. Mas,
neste momento, faz-se necessário mencionar que a dissertação de mestrado de Alzira da
Silva (2005) que ocupa um lugar importante na sequência de texto que se segue.
33
Francisco Buarque de Hollanda é músico, dramaturgo e escritor brasileiro. Ficou conhecido por ser um
dos maiores nomes da música popular brasileira (MPB). Sua música, “Com açúcar, com afeto” faz parte
do álbum intitulado, “Chico Buarque de Hollanda - Volume 2”.
34
Este trecho compõe a letra da música “Caminhos do coração” do cantor e compositor brasileiro, Luiz
Gonzaga do Nascimento Júnior, mais conhecido como Gonzaguinha.
88
Aqui está presente a mulher “simples” na forma de viver. Ela vive no bairro
Divina Providência e é viúva há 13 anos. Seu marido era mecânico, nunca foram
abastados, mas desde a morte dele assumiu oficialmente o sustento da casa e, apesar das
dificuldades financeiras encontradas, tem lutado bastante para possibilitar os estudos
universitários do filho e da filha. Seu filho, que tive oportunidade de conhecer na
universidade, reflete em sua fisionomia o modo de ser de Dona Chita: ambos possuem o
mesmo sorriso doce. Ela não gosta muito das lidas domésticas, mas por falta de outras
opções, já precisou encarar o trabalho doméstico remunerado. Aprendeu a costurar com
a patroa para quem trabalhara fazendo faxinas quando tinha apenas 18 anos de idade.
Em sua trajetória de costureira, trabalhou nas fábricas de confecção e já teve parte da
escala produtiva terceirizada em sua própria casa35. Atualmente, trabalha conforme sua
saúde permite, fazendo costurinhas em casa (com máquinas de confecção que ganhou
de sua falecida irmã, a qual também era costureira) para clientes mais ou menos fixos.
Têm em seu corpo as marcas negativas que as longas horas de trabalho na costura
podem acarretar: artrite, desgaste do fêmur, entre outras enfermidades. Como acontece
com boa parte das mulheres, o cuidado dos filhos e do marido está muito marcado em
suas narrativas de vida. Tem sempre um sorriso bonito no rosto e uma pré-disposição
para ajudar e contar histórias.
35
Dentre as formas que o trabalho fabril pode assumir está a possibilidade de contratação de costureiras
domiciliares que trabalham para os empregadores no interior de seus próprios lares. Este tipo de serviço
se configura como precarizado, pois, além de dificultar a regulação do tempo de trabalho entre as lidas
domésticas (não remuneradas) e o trabalho da costura (remunerado) para cumprir as metas estabelecidas
pelo empregador, não garante direitos trabalhistas para as costureiras.
90
Figuras 7,8, 9 e 10: Dona Renda e Dona Chita, respectivamente, com seus olhares atentos ora na
costura, ora na rua.
91
papel de mães e cuidadoras de crianças. Hoje em dia, Dona Renda tenta ocupar o tempo
demasiado livre e inquietante que dispõe, visto que não conheceu descanso quando
jovem. Ela faz ginástica duas vezes por semana com o grupo da terceira idade, mas
confessa que gostaria de fazer exercícios mais vezes durante a semana, pois se sente
entediada em sua casa. Não perde uma novela e, assim como Dona Chita, Dona Renda
posiciona sua máquina de costura na janela de frente para a rua. Desse modo, ambas não
perdem nenhum dos movimentos que acontecem em suas vizinhanças.
antigas máquinas Singer. Nestes 57 Figura 11: Cetim na vitrine de sua loja
Paetê costura há mais de 63 anos. Isso porque ela começou a costurar quando
tinha apenas 12 anos em meio às costuras maternas. Hoje em dia já é aposentada, mas
não deixa de fazer aquilo que gosta e por conta disso segue na lida. Sua mãe era
conhecida na comunidade pela confecção primorosa de vestidos para noivas. Nesse
ambiente, Paetê cresceu, aprendeu e costurou com sua (linha)gem. Embora tenha saído
de casa ainda muito jovem, aos 17 anos quando se casou e migrou para a vida rural
junto com o marido, permaneceu costurando, fazendo bombachas para peões e vestidos
para prendas por mais 22 anos. Conta que nunca gostou de ser dona de casa como as
irmãs diziam ser, por isso, investiu seus esforços em diversos trabalhos para além da
costura: cortou cabelo e aparou a barba dos homens que moravam no interior, bem
como maquiou moças para as festas usando pó de arroz que ela mesma preparava.
Conta que não era incomum a contratarem para fazer o casamento completo, isto é,
confeccionar as roupas do noivo e da noiva, maquiar as mulheres da família da noiva
para o dia do casamento e, às vezes, até mesmo fazer o bolo do “buffet”. Depois que
voltou a morar na cidade, Paetê teve uma sucessão de empregos em fábricas de
confecção – sendo, inclusive, colega de Dona Chita durante um tempo – até ser
empregada no setor de costura do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) de
forma terceirizada. No HUSM, costurou roupas de cama, aventais, jalecos, propés, entre
outras costuras que precisam ser confeccionadas dentro de um hospital. O trabalho era
infindável e tomado por um esforço físico resultante em artrose nos ossos do joelho
direito (aquele mesmo que toca as máquinas de costura). Por conta da enfermidade,
precisou parar de trabalhar e se aposentou com ajuda do marido, que a auxiliou no
pagamento do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS)36. Como não consegue ficar
apenas em casa, Paetê auxilia nas costuras do ateliê de Cetim de tempos em tempos.
36
No Brasil o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) mantém uma política protetiva às trabalhadoras
e aos trabalhadores que tem problemas de continuidade na atividade de trabalho em função de uma
doença ou acidente. Para saber mais, acesse: https://www.inss.gov.br/beneficios/aposentadoria-por-
invalidez/.
95
Figura 12: Linho em "Keep Calm and Sey On" suporte financeiro e emocional
da avó, mulher que a criou e
com quem ainda divide a morada e os percalços cotidianos. Depois disso, transformou
seu próprio quarto em ateliê e recebe as suas clientes em casa. O interesse de Linho pela
costura passa pela vontade de vestir as pessoas com uma moda consciente (sem
exploração da mão de obra, com materiais mais biodiversos possíveis) e caminha até o
desejo de costurar roupas que não se vendem nas lojas de departamento: roupas que
96
vestem as personagens inspiradoras das películas de época e roupas “plus size” para
pessoas que não encontram suas medidas em qualquer arara comercial. Ela investe nas
plataformas digitais como a rede social Facebook e o site de compras Elo7 para
propagandear e vender seus produtos com a logomarca “Alinhavos”. É mais uma
amante dos brechós e tenta atender a todos os pedidos das clientes confeccionando, para
além de roupas, sapateiras e estofados (puffs). O seu compromisso com o meio-
ambiente também revela uma delicadeza para tratar as pessoas e os animais que a
cercam no dia-a-dia. Tem mãozinhas mágicas e uma misticidade que envolve até
mesmo o seu trabalho. Nas figuras abaixo, trago um pouco da delicadeza presente na
logomarca de Linho:
Vegas, EUA, no ano de 2015. Ela também costura tutus para as crianças bailarinas e as
saias de armação para as meninas prendas.
Ela é a única das interlocutoras desta pesquisa que não vive e nem visita a cidade
de Santa Maria. Outras circunstâncias me permitiram conviver e conhecê-la. Dona Lã é
viúva, mãe de quatro filhas, avó de oito netas(os) e bisavó de seis bisnetas(os). Seu
interesse pela costura despertou quando ela ainda era muito jovem, pois seu pai era
comerciante e dono de Armazém, onde antigamente costumavam-se vender os tecidos,
as agulhas e os demais materiais para a costura junto com diversos produtos como
materiais escolares e comida. Ela cresceu numa família tradicional que ensinava com
rigor as prendas domésticas para as mulheres, assim, sua mãe também costurava em
casa para o círculo familiar. Dona Lã assistia aulas da disciplina de “Economia
Doméstica” nos ensinos fundamental e médio da escola, mas, infelizmente, por conta de
uma grave infecção não conseguiu terminar o ensino médio. Diante destes fatores,
moveu esforços para se matricular em cursos oferecidos pela Igreja Católica local, os
quais conseguiu concluir. Dona Lã diz não ser costureira de profissão, pois nunca
trabalhou fora, mas, trabalhou excessivamente em casa, criando as filhas, ajudando na
criação das(os) netos e bisnetas(os), cuidando das(os) familiares adoentadas(os),
desempenhando o trabalho doméstico, costurando e fazendo tricô para vesti-las(os). Ela
só parou de costurar quando os olhos deixaram de acompanhar suas ágeis mãos. A
máquina de costura – a mesma que ganhara de presente do seu pai há incontáveis anos –
permanece em seu lugar de sempre: encostada na janela que fica de frente para o
canteiro de flores da sua casa. Dona Lã é uma anciã de muitos saberes e fazedora de
blusões de lã muito quentinhos.
99
37
Para surpresa de Cetim, o curso realizado para complementar o seu fazer na costura tinha como
professora uma moça mais jovem que já havia passado pela sua loja e aprendido com ela mesma o saber
fazer. Esse foi um dos motivos que levaram Cetim a não dar continuidade ao curso.
103
38
Na cidade de Pelotas/RS o Museu da Baronesa inaugurado em 1982, busca preservar artigos de bens
históricos e culturais representantes dos costumes das últimas décadas do séc. XIX até as primeiras
décadas do séc. XX, nele a sala de costura é retratada como um lugar localizado entre a escada do
segundo andar com teto baixo e sem ventilação, quase sufocante.
104
jardins ou da rua, para que observem a vida do bairro e da cidade acontecendo enquanto
costuram.
No princípio, pensava estar diante de mulheres comuns. E de alguma forma, elas
o são. E é visível que comecei a pesquisar este tema com o intuito de abordar a vida
cotidiana de mulheres comuns, contudo, no percurso de investigação percebi que as
costureiras ocupam algum tipo de lugar importante na cidade/comunidade onde vivem.
Esse lugar pode ser caracteristicamente afetivo, no meio familiar ou num outro lugar
que se torna invisível aos olhos dos demais, mas que é de trabalho pesado e importante
para o funcionamento da vida em sociedade. Pois, enquanto a vida cotidiana acontece,
toda a gente precisa vestir-se pela manhã para sair e desempenhar seus papéis sociais e
viver as suas relações. O que vestem sempre precisa passar pelas mãos das costureiras.
Sejam as de fábrica ou as que costuram a domicílio.
As máquinas não bastam para a produção de vestimentas. Elas ainda não se
tornaram suficientemente eficazes a ponto de fazerem todo o trabalho duro sozinhas. A
produção de vestimentas necessita ainda do esforço físico e repetitivo das pessoas, em
sua grande maioria mulheres. Em realidade, a nova geração de máquinas de costura,
apesar de oferecem mais facilidades, não alteram significativamente o tempo de
produção. (SCHERER E CAMPOS, 1995).
Em suma, a vida cotidiana das mulheres que costuram possui uma forte
afinidade com os fazeres de outras mulheres que perpassam por suas vidas. Em alguma
medida, elas têm em si um pouco das bruxas que fervem xaropes e fazem benzeções,
um tanto das donas de casa que faxinam e confeitam bolos merengados, sem esquecer
da parcela que remete às mulheres cuidadoras: das crianças, dos maridos e de quem
mais estiver precisando dos cuidados. Elas são também estudantes, bordadeiras e
contadoras de histórias, mães, filhas e netas. As nove diferentes mulheres que costuram
– apresentadas neste capítulo – possuem marcas dos seus contextos e dos seus tempos.
Elas produzem cultura (MALERONKA, 2007) e fazem o hábito (VERDIER, 1979) no
cotidiano do ato de costurar.
105
A fonte das costureiras para tantos aviamentos como botões, linhas, agulhas e
algumas variedades de tecidos está nos chamados armarinhos. Como mencionado
anteriormente, tratam-se de lojas que fornecem materiais e outras miudezas para
trabalhos manuais como bordados, costura e artesanatos em geral. Neste capítulo,
retrato uma parcela das ruas, bairros e pessoas da cidade de Santa Maria, conforme
apresento também os armarinhos. Através dos meus percursos pela cidade, busco
igualmente situar o lugar onde estão instaladas as máquinas de costura, ou seja, as
residências de algumas das costureiras que contribuíram para esta pesquisa. São elas,
106
Dona Chita, Dona Filó e Dona Renda.39 A seguir, pode-se conferir o croqui dos bairros
da cidade de Santa Maria. Aqueles que serão trabalhados ou mencionados ao longo do
texto estão destacados com tecidos coloridos ou estampados.
39
Apresento apenas os bairros onde vivem estas três interlocutoras pelos seguintes motivos: com Cetim e
Dona Paête não foi possível realizar visitações em suas casas, sendo o trabalho de campo realizado
somente na loja de Cetim. Dona Lã e Dona Algodão são residentes de outras cidades. Linho e Jeans são
moradoras da área central da cidade, a qual descrevo ao longo deste capítulo em meus percursos
etnográficos.
107
instalação da indústria “pronta para vestir”, de maneira distinta à costura como trabalho
doméstico. O resultado disso é um contexto que modifica igualmente a divisão sexual
do trabalho no interior dos lares e o trabalho da costura desenvolvido por algumas
mulheres. É interessante perceber que outros saberes e fazeres como os dos barbeiros e
dos sapateiros também vêm sofrendo mudanças significativas nas cidades (SOARES,
2012; ROCHA, 2014). Mas, isso não significa que não existam permanências destes
saberes e fazeres. O trabalho da costureira não exatamente está em crise na cidade de
Santa Maria, tendo em vista a grande demanda de costuras para as pomposas festas de
formatura realizadas pelas formandas das sete40 Instituições de Ensino Superior
instaladas na cidade, sem esquecer da demanda de costuras e reparos de fardas advindas
de um número expressivo de unidades militares situadas na cidade.
Inicio a apresentação pelo centro de Santa Maria que – como em outras cidades
– representa a efervescência e a movimentação urbana da cidade, onde os armarinhos
dividem lugar com estabelecimentos que vão de “Boutiques” de roupas às lojas “Tudo
por R$10 reais”, chaveiros, barbearias, salões de beleza, estúdios fotográficos, praça,
teatro, shopping popular, bancos, galerias, cafés, ferragens, restaurantes, farmácias,
brechós, floriculturas e o comércio em geral. Todavia, o centro da cidade não se
caracteriza como um grande centro, considerando que Santa Maria também não se
configura como uma cidade de grande porte, mas sim de médio porte. Segundo os dados
do IBGE, a cidade em 2015 contava com 276.108 habitantes, destes, 30.341 são alunas
e alunos regulares da UFSM, e 6.400 regulares da UFN 41. Apesar de ter o segundo
maior contingente militar do país e constituir-se como uma cidade universitária,
apresenta um centro comercial pequeno, mas com grandes bairros que se expandem
cada vez mais nos sentidos geográficos leste e oeste. Com uma rotineira e orientada
caminhada pelo centro de Santa Maria, rapidamente pude localizar a maioria dos
armarinhos.
Prontamente, com o intento de mapear os armarinhos, utilizei da ferramenta
Google Maps para localizá-los. Em seguida, realizei caminhadas pelo centro da cidade
com o intuito de encontrar os estabelecimentos anteriormente identificados com a ajuda
da ferramenta on-line. Entretanto, o Google Maps on-line não identificou todos os
40
UFSM, UFN, ULBRA, FAMES, FISMA, FADISMA e FAPAS.
41
Os dados referentes às alunas e alunos matriculados está disponível em
http://www.universidadefranciscana.edu.br/site/institucional. A fonte de alunas e alunos da UFSM é do
Programa de Indicadores da UFSM (2018), disponível em: https://portal.ufsm.br/ufsm-em-
numeros/publico/index.html.
108
armarinhos. Na prática, muitos deles foram localizados por indicações das pessoas que
costumam frequentá-los, como as próprias costureiras e demais pessoas de meu
convívio. Como discutido anteriormente no capítulo metodológico, tal roteiro de
caminhada, observação, registro fotográfico e em diário de campo configura-se como
uma etnografia de rua (ROCHA; ECKERT, 2003). Chamo atenção, a seguir, para o
croqui (figura 19) que aliado a descrição possui o objetivo de demonstrar o percurso
etnográfico percorrido por mim no centro de Santa Maria. O percurso está destacado na
cor verde e as figuras de objetos como linhas e botões identificam onde eles estão
localizados. A ideia inicial era trazer um print screen do próprio Google Maps.
Contudo, a ferramenta não permite que a(o) usuária(o) remova marcações de outros
estabelecimentos, fazendo com que todos os estabelecimentos comerciais cadastrados
na plataforma do Google se destaquem. O que acaba por tornar a figura muito poluída.
Por este motivo, intentei confeccionar o meu próprio mapa do local.
O antropólogo Magnani, em seu texto “De perto e de dentro: notas para uma
antropologia urbana”, sugere que a estratégia de acompanhar certos indivíduos em seus
caminhos habituais pela cidade é capaz de desvelar os deslocamentos que assinalam
importantes relações sociais de trabalho, lazer, religiosas, entre outras. É neste sentido,
que a experiência narrada neste trabalho não se trata de uma visão de fora e de longe,
mas sim de uma inserção de perto e de dentro (MAGNANI, 2006), visto que sou
residente da cidade, frequentadora de seu centro e alguns de seus bairros. Além do mais,
com a perspectiva de perto e de dentro, o intento de compreender certas rotinas, trajetos,
pontos de referência e padrões de comportamentos dos indivíduos em suas vidas
cotidianas na paisagem da cidade acaba por se tornar um propósito mais plausível.
Durante a experiência itinerante, vivencio a rua junto com os praticantes
cotidianos da urbe, pois compreendo que o empreendimento de descrever a cidade
requer (re)conhecê-la como um “lócus de interações sociais e trajetórias singulares de
grupos e/ou indivíduos cujas rotinas estão referidas a uma tradição cultural que as
transcende.” (ROCHA; ECKERT, 2003, p.02). Portanto, proponho uma narrativa de
minhas caminhadas etnográficas pelo centro e pelos bairros Divina Providência,
Juscelino Kubistchek e Camobi da cidade de Santa Maria com o intuito de familiarizar
as leitoras e leitores com os armarinhos mapeados, assim como, com a própria
ambiência citadina.
Proponho uma narrativa do caminhar pela cidade inspirada naqueles que a
experimentam aos passos de tartarugas e que foram elogiados por Paola Jacques (2012)
em “Elogio aos Errantes”. Passos que, somados ao olhar do cineasta Dziga Vertov,
procuram cenas da vida cotidiana de pessoas comuns. Pois, como bem assinalou a
autora Silvana Olivieri (2011) no livro “Quando o cinema vira urbanismo”, Vertov
buscava captar a vida no improviso, utilizando uma câmera que não apenas observava,
mas uma câmera que adentrava no cotidiano, uma câmera que observava e participava
fazendo jus à tão consagrada técnica antropológica, a observação participante. Refiro-
me ao caminhar, fotografar e filmar “ao lado daqueles que correm, fazem, acodem e se
empurram, colocando-se ao movimento do mundo e da cidade.” (OLIVIERI, 2011,
p.76). Minha narrativa do caminhar é motivada pelos errantes de Paola Jacques, pelos
flâneurs de Baudalaire e Benjamin (1989) e pelos praticantes ordinários das cidades de
Michel de Certeau (1994) que se referia ao ato de caminhar como um molde que tece os
lugares, que formam um sistema e que efetivamente constrói as cidades.
110
Convido a seguirem este caminho comigo pelo centro da cidade de Santa Maria.
Convido para ouvirmos além dos sons que comumente a caracterizam, como o apito do
trem e o som estridente causado pelo sobrevoo constante de “caças” e aeronaves da
Base Aérea, para mover nossa atenção para os sons das ruas, das pessoas, das máquinas
de costura e dos interiores dos armarinhos. Para olhar além do céu indicado pela estátua
de Ícaro na Avenida Nossa Senhora das Dores, para a sua gente, o trânsito das pessoas,
para seres humanos e não humanos, as construções da cidade e o seu impacto nos
passantes. Para observar que uma grande massa de trabalhadoras e trabalhadores,
militares, estudantes, aposentadas e aposentados caracterizam a diversidade humana
dessa cidade que existe através de nós mesmos e que está em nós, “que é uma narrativa
que se transforma no jogo da memória de seus habitantes tanto quanto do etnógrafo que
reinterpreta as interpretações dos habitantes que pesquisa em suas trajetórias.”
(ROCHA; ECKERT, 2010, p.122). E, por fim, como cantam os jovens da banda
brasileira “Francisco, el hombre”, convido leitoras e leitores a sentirem o calor da rua42.
42
Música “Calor da Rua”, do álbum “SOLTASBRUXA”, lançado pela banda em 2016.
111
Partindo de minha casa na Rua Tuiuti, caminho por ela em direção ao centro da
cidade. Depois de passar pelas esquinas das ruas Serafim Valandro e Floriano Peixoto,
encontro a esquina da Rua Professor Braga, viro à esquerda e caminho até o fim de
mesma. Passo pela Casa do Estudante Universitário e pela Cooperativa dos Estudantes
de Santa Maria (CESMA). Depois de uma quadra percorrida, chego a Rua Astrogildo de
Azevedo, pois um de meus destinos se encontra exatamente entre o final de uma
pequena rua (Professor Braga) e o quase final de outra (Astrogildo de Azevedo). No
prédio antigo, de três brancos andares, encontra-se o Armarinho da Praça. De cor branca
com letreiros marrons, a placa indica os materiais que são vendidos na loja: lãs, linhas,
aviamentos, tecidos, “patchwork” e acessórios. Sempre me pareceu um estabelecimento
um pouco deslocado neste lugar, pois o que mais desperta a atenção nesta rua são as três
lojas que antigamente eram chamadas de “Lojas até 1,99”, mas que hoje – muito
possivelmente pelo motivo de seus preços terem aumentado – levam o nome de lojas de
utilidades domésticas. Outros estabelecimentos pelos quais a rua se torna conhecida são
as salas de Xerox, o chaveiro e as lojas de doces.
Voltando ao itinerário dos armarinhos, escolho a ladeira da Astrogildo para
rapidamente chegar à Rua do Acampamento. Este nome remonta ao acampamento
militar de portugueses no ano de 1789 que marca o início do povoamento da cidade,
onde foram erguidos ranchos de moradores, quartel, capela, escritório e depósito de
materiais em 1797 (RECHIA, 1999). Hoje, a Rua do Acampamento é uma das vias mais
importantes da cidade formada pelo comércio de móveis, eletrodomésticos e roupas. Ao
percorrer sua extensão, observa-se a região mais movimentada da cidade, do trânsito de
ônibus e carros até as massas de pessoas em suas calçadas apertadas, o que exige certo
nível de paciência para os transeuntes apressados. A Rua do Acampamento expressa o
ritmo acelerado e agitado da vida cotidiana. O seu início é marcado pelo Viaduto
Evandro Behr que une o Calçadão de Santa Maria e a Praça Saldanha Marinho, assim
como a Avenida Rio Branco e a Rua do Acampamento. Em uma das quadras da Rua do
Acampamento, pode-se encontrar a “Galeria do Frizzo”, onde “se esconde” minha
próxima parada, o armarinho Napoleão Aviamentos. Com uma pequena entrada,
perdida em meio às outras lojas do comércio da rua e de uma luz fraca em seu interior, a
Galeria Frizzo conta com comércios diversos, desde a sua entrada com a lojinha de
artigos religiosos e esotéricos até a sua saída com uma loja de aluguel de vestidos de
noivas. Ao lado da loja de vestidos para noivas, quiçá estratégia ou coincidência,
encontra-se o estabelecimento que procuro. Suas vitrines são cheias de informação tanto
112
pela transparência do vidro que revela o seu interior apinhado de mercadorias, quanto
pelos cartazes de promoção escritos em papel ofício branco com canetas hidrocor.
Dentro dele os aviamentos preenchem a parede até o seu pé direito e as estantes ocupam
boa parte do piso de azulejos em xadrez preto e branco. O movimento de clientes dentro
dele é pequeno, quase nenhum.
Ao sair da galeria, retorno pela Rua do Acampamento, mas dessa vez pelo outro
lado, para facilitar a minha ida ao próximo armarinho. Chego novamente a Rua
Astrogildo de Azevedo, no sentido contrário de onde estava inicialmente. Passo em
frente de onde costumava ser outro Armarinho e que, atualmente, são apenas portas de
rolar em aço fechadas que compõe o cenário da urbe junto com os pixos. Ao atravessar
e dobrar a rua, o armarinho Entre Linhas pode ser avistado na Rua Roque Calage. Na
mesma rua encontram-se duas casas do artesão43 e um chaveiro, onde costumava estar
outro armarinho. A vitrine do Entre Linhas é organizada para mostrar os materiais
vendidos na loja, além de aviamentos, vendem-se artesanatos como panos de prato,
bordados e bonecos de pano e feltro em guirlandas para decoração. Na vitrine, encontro
fixadas as folhas de papel ofício brancas promocionais, mas desta vez com as letras
impressas. O nome da loja está adesivado no vidro e data sua origem de atendimento ao
público desde o ano de 1985. O seu interior é confuso, tão movimentado que
dependendo do horário em que se está lá dentro, pode-se levar facilmente quinze
minutos para ser atendida(o). Este armarinho, mais do que os outros, conta com um
grande estoque de linhas e tecidos, por isso é tão procurado pelo seu fiel público.
Procuro sair da Rua Roque Calage em direção a Praça Saldanha Marinho.
Caminho pela praça menos apressadamente44 em comparação com os muitos passantes
que a atravessam em meio aos senhores velhos que ocupam os bancos para conversar,
como também em meio às meninas e meninos mais jovens que ocupam o coreto da
praça para fazer batalhas de “Rap” e o grande chafariz azul para tirar “selfies”. Chego
ao turbilhão de pessoas da cidade, mais conhecido como Calçadão Salvador Isaia e
caminho até encontrar a primeira das galerias que dão acesso a Rua Venâncio Aires.
Aqui é necessário mais uma vez atravessar a movimentada rua para chegar ao meu
destino, o Armarinho Nacional – ou aquele perto dos Correios, como as pessoas
43
São pequenos estabelecimentos onde se comercializam materiais para a confecção de artesanatos, como
tintas, pincéis, colas, vernizes, e etc.
44
Guiada por Colette Pétonnet em suas flanâncias pelo cemitério parisiense “Père-Lachais” e o seu
método de “observação flutuante”, desenvolvido através da “necessidade de movimento que o sedentário
experimenta.” (PÉTONNET, 2008, p. 102)
113
No momento em que estive nos armarinhos foi possível observar que as clientes
e suas paradas momentâneas para observar algum objeto que lhes chama atenção nas
prateleiras, os encontros e as conversas no interior dos armarinhos apontam para um
espaço lúdico de sociabilidade em que frequentá-lo representa também um momento de
lazer.
Convém ressaltar que busquei os armarinhos como possíveis locais de
observação e estabelecimento de redes para que eu pudesse me aproximar e de novas
interlocutoras para a minha pesquisa. Inicialmente, é preciso dizer que eu possuía
algumas hipóteses sobre a relação entre as costureiras e esses espaços. E que estas
hipóteses não foram confirmadas, pois, pensava que iria encontrar diferentes mulheres
costureiras, interagindo com comerciantes e suas clientes nos estabelecimentos que
fornecem os materiais para a realização de seus trabalhos.
Imaginem o quão perfeito seria para a pesquisadora, encontrar estes lugares ao
lado de casa, oferecendo tudo o que eu acreditava que me faltava para realizar esta
pesquisa. Acontece que nem tudo funciona da maneira como idealizamos, e eu não
dispunha de tempo necessário para frequentar diariamente estes estabelecimentos,
intentando estabelecer contatos e vínculos para realizar a pesquisa que gostaria.
Num segundo momento, pensei em acompanhar e tracejar o percurso das casas
das costureiras aos armarinhos e vice-versa. Sucedeu que as costureiras com quem
trabalhei não perdem os seus tempos de trabalho ou lazer para realizar tão
frequentemente tais deslocamentos. O que em realidade ocorre é que a maioria delas
possui um grande estoque de materiais para costura em suas casas. Logo, quando
precisam de algo que não possuem, pedem para o filho buscar. Ou aproveitam o dia em
que recebem seus pagamentos, o sétimo dia útil, para se deslocarem até o centro da
cidade. Tendo em vista que neste caso o deslocamento é necessário, aproveitam para
renovar os seus estoques de materiais. São os casos de Dona Chita e Dona Renda.
Outras como Cetim sempre pedem para que as clientes tragam aqueles materiais
necessários para a nova confecção. Algumas como Linho, Jeans e Dona Algodão
residem próximas ao centro, assim, resolvem suas idas aos armarinhos num “pulo”, uma
visita rápida.
Em suma, as mulheres com quem trabalhei pouco fazem parte dessa rede de
sociabilidades presente nos armarinhos de costura. Embora a rede exista e seja
importante para elas, visto que, geralmente, são os lugares onde todas se conhecem. O
que torna corriqueira a seguinte pergunta de atendentes, “Quem é a sua costureira?”. E
115
bem, se você ainda não possui uma costureira, os armarinhos são os lugares certos para
informar-se sobre elas. Contudo, preciso reiterar que buscar pelos armarinhos me foi útil
num primeiro momento, pois, caso não houvesse a intenção, talvez eu não tivesse
descido do ônibus em um ponto diferente do qual costumava descer para me locomover
até a casa de Dona Chita. E conhecer com o andar das minhas próprias pernas e o
descobrir de meus próprios olhos, o universo que rodeava sua casa. Ou seja, mesmo que
minhas hipóteses sobre os armarinhos não tenham se confirmado, a investigação em
torno deles me permitiu descobrir outros locais da cidade, com itinerários diferentes dos
iniciais. O que me levou a conhecer seus “habitués” e atentar não apenas para as
mudanças, mas, de outro modo, para algumas permanências dos saberes e fazeres das
pessoas comuns em seus cotidianos.
Ademais, retornando aos itinerários, em alguns bairros adjacentes ao centro não
foram encontrados armarinhos, embora tenha ouvido menção da existência destes
estabelecimentos outrora nos bairros Itararé, Divina Providência e Juscelino
Kubistchek. O primeiro bairro citado acima teve um crescimento inicial acelerado
devido a Gare da Estação Férrea, que no ano de 1895 a 1900 acabou movimentando os
empregos na cidade e a habitação do, então, nascente bairro Itararé, bem como da
famosa e turística Vila Belga nos anos de 1901 a 1903 (RECHIA, 1999). Faz parte da
memória das moradoras e moradores mais antigos da cidade que na Vila Belga
habitavam os trabalhadores de mais prestígio como, por exemplo, os engenheiros. Já os
operários, instalaram-se no bairro Itararé, que após a decadência da ferrovia estagnou o
seu crescimento ao lado norte da cidade. Conforme os dados da Agência de
Desenvolvimento de Santa Maria (ADESM)45, no ano de 2006, o Itararé teve o seu
território dividido para a criação de outro bairro, o Campestre do Menino Deus. Através
de uma despretensiosa caminhada pelo bairro Itararé e, ao conversar com moradoras e
moradores locais, ainda se pode vivenciar a experiência de ouvir o apito do trem, bem
como de levar um bebê recém-nascido que sofre de cólicas para as mãos de uma
benzedeira tradicional, ou ainda de tirar as medidas para um terno na Alfaiataria
Daronco. Mas, não se pode mais comprar aviamentos para costura, dado que o pequeno
armarinho que costumava funcionar ao lado da grande e amarela Igreja Santa Catarina
fechou suas portas e guardou suas linhas.
45
Para informações sobre os bairros, ver http://santamariaemdados.com.br/1-aspectos-gerais/1-4-bairros-
distritos-e-regioes-administrativas/
116
No bairro Divina Providência reside a costureira Dona Chita e seu filho Diego.
Para chegar a sua casa, preciso caminhar até o centro da cidade, mais precisamente até a
Rua dos Andradas entre a Rua Floriano Peixoto e a Avenida Rio Branco para pegar o
ônibus que indica “São João” em seu visor. Os horários de ônibus para esta região da
cidade não são frequentes, visto que foram longas as esperas nas paradas, tanto no
sentido centro/bairro quanto o inverso. Depois de pegar o ônibus, observo a rápida
descida na Rua dos Andradas. O ônibus continua a descer até encontrar a Avenida
Borges de Medeiros onde dobra à direita e prossegue com o percurso em linha reta. Esta
parte da cidade é uma descoberta para mim, pois até o momento da primeira visita à
casa de Dona Chita, nunca havia passado por este caminho. Observo o comércio ao
longo da rua, mercadinhos, ferragens, bares, agropecuárias, sapatarias, farmácias e uma
construção antiga e imponente chamada de “Pão dos Pobres”, que logo depois descobri
ser uma escola.46
Adiante reconheço uma das estações da viação férrea, aparentemente esquecida
pela prefeitura e por muitas pessoas da cidade, exceto por algumas moradoras e
moradores da Vila Km2 que organizam a “Associação de Catadores e Reciclagem
Noêmia Lazzarini” no local. Onde também a escola de samba “Vila Brasil” (a escola
mais antiga de Santa Maria) realizava ensaios abertos para o carnaval que costumava
existir na cidade.47 Mais para
frente, seguindo o percurso do
ônibus, dobramos a esquerda e
depois de duas quadras consigo
avistar a casa de madeira cor
laranja de Dona Chita,
localizada na esquina da Rua
Helmuth Knies. A rua passou a
Figura 21: Vizinhança de Dona Chita no bairro Divina levar esse nome difícil depois
Providência
46
Também descobri que logo atrás do Pão dos Pobres, visualiza-se uma segunda escola, mas dessa vez de
ensino privado e chamada de “Divina Providência”. O bairro passou a levar também este nome em função
da escola ser uma referência na região. Embora, quando se menciona tal região na cidade, o mais comum
é que as pessoas se lembrem da primeira escola.
47
Hoje em dia, a escola de samba Vila Brasil ainda promove no local da antiga estação algumas oficinas
de batucada com alunos e alunas da Escola de Educação Infantil Pão dos Pobres.
117
48
Como é uma rua localizada na Vila Brenner, região mais antiga do bairro Divina Providência, residem
nela moradoras mais velhas que já perderam seus companheiros de vida, por isso ficou conhecida como a
Rua das Viúvas. Este fato solidifica o entendimento de que as mulheres em idade avançada, em geral, são
mais numerosas do que os homens em idade avançada. Que, aliás, podem-se observar nos gráficos
indicadores da faixa etária para homens e mulheres de cada bairro.
118
Figura 23: Pirâmide etária do bairro Divina Providência. Fonte: elaborado pela autora a partir dos dados
adicionais do programa de sinopse por setores do censo do IBGE de 2010
os lugares tiveram suas áreas ocupadas por moradoras e moradores de baixa renda.49
Nessas regiões, o que aparentemente está abandonado para aquelas(es) que olham de
fora e de ônibus – como eu inicialmente olhava – é ocupado e ressignificado pelas
pessoas.
Ao caminhar pelo bairro Divina Providência, as moradoras e moradores não
sabem ao certo informar se uma determinada rua de divisa faz parte da Vila Brenner ou
da Vila São João Batista, mas com toda certeza identificam qualquer rua do Km2. Isso
porque não é somente a pavimentação das ruas (de uma pavimentação asfáltica, o lugar
passa a ser de chão batido) que se difere das demais vilas. É visível a diferença
estrutural das casas (as casas de alvenaria são substituídas em maior número pelas casas
de madeira) e a quantidade de resíduos presentes em frente a elas, devido ao fato de
uma grande quantidade de moradoras e moradores do local serem recicladoras(es) de
materiais reutilizáveis.
Depois de sair com meu colega Diego para uma caminhada etnográfica que
visava conhecer um pouco mais da região em que residem ele e sua mãe Dona Chita,
obtive a oportunidade de conversar com moradoras(es) que nos contaram suas vivências
e versões sobre a história do bairro. Dentre as pessoas com quem conversamos naquele
dia, dois grupos distintos nos detiveram mais tempo e atenção, o primeiro deles foi um
grupo de crianças (doze no total) que brincavam numa rua próxima a antiga estação.
Entre uma maioria de meninos e duas meninas, de idades aproximadamente entre 6 e 12
anos brincavam de empinar pipa, tocar pandeiro e jogar futebol. Era uma cena bonita e
de fato um retrato admirável, não obstante meu colega quis fotografar e eu quis
perguntar para eles se poderia fazê-lo também. O resultado dessa aproximação foi um
longo período em que ficamos conversando com as crianças. Elas nos contaram seus
nomes, onde moravam, suas idades e respectivas séries na escola. Contamos o que
fazíamos e de onde éramos, mas o que eles entenderam é que eu era uma fotógrafa e
prontamente quiseram fotografar. Assim, as crianças usaram da máquina fotográfica
49
É válido ressaltar que no ano de 2015, a ocupação batizada de “Estação dos Ventos” (Km3) realizou
protestos na cidade se referindo às obras do PAC até então estagnadas pela prefeitura. Jornais locais
alternativos conjuntamente com apoiadoras(es) realizaram a cobertura dos protestos e de uma segunda
ocupação, desta vez no centro da cidade no edifício “Galeria Rio Branco” que estagnou suas obras há 44
anos. Esta segunda ocupação não visava moradias, mas sim obter visibilidade para os problemas
enfrentados pela população do Km3. A reportagem do jornal “O Viés” está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=opsqblAKLI0. Pode-se conferir outra reportagem do jornal em
http://www.revistaovies.com/reportagens/2011/04/o-mau-vizinho/. Nesta última, busca sanar a
curiosidade das e dos leitores sobre o caso do “Mau vizinho”, o prédio abandonado na Avenida Rio
Branco.
120
para enquadrar suas brincadeiras.50 Este fato só revela o quanto a câmera abre portas e
diálogos com interlocutores diversos e o quanto a “etnografia de rua e câmera na mão”
(ROCHA; ECKERT, 2002) pode ser algo inspirador.
Chegando à estação, encontramos dois homens que conversavam em frente à
antiga construção. Aproximamo-nos e na medida em que conversávamos, descobrimos
que os dois homens eram irmãos. Eles nos contaram sobre os causos que presenciaram
na região desde que instalaram uma fábrica de móveis sob medidas na estrutura da
antiga estação, logo depois que o ponto deixou de ser um armazém de carga e descarga
da Rede de Viação Férrea. Desde a instalação da fábrica “Móveis Rio Branco”, já se
passaram 41 anos. Um dos irmãos, Seu Miro, relata que nos primórdios da fábrica
podiam contar com 21 funcionários e outras duas lojas no centro da cidade, mas com o
passar dos anos essa realidade foi mudando.
A decadência da Viação Férrea e também a posterior estigmatização do Km2,
logo ao lado, mudaram o cenário ao redor da fábrica e o tipo de sociabilidade que
passou a acontecer por ali. Seu Miro lamentou bastante a situação de muitas pessoas
dependentes químicas usarem o local para pedirem dinheiro e consumirem tais tipos de
substâncias. Contou-nos que tiveram muitas invasões no lugar de trabalho, mas que a
frequência das ocorrências também depende da época em que se está vivendo. Uma vez
que houveram muitos móveis furtados em épocas de crises financeiras, outra vez que já
tiveram os estoques de colas de sapateiro zerados devido ao alto consumo psicoativo da
substância. Sobre a decadência da Viação Férrea, seu Miro lamenta, “hoje em dia, a
empresa que assumiu isso daí, não quer saber de terra, das pessoas e da cidade, eles só
querem saber da carga”. Frente a estes fatores, a “Móveis Rio Branco” não possui mais
funcionários em seu interior, contudo, os dois irmãos continuam firmes em seus
trabalhos.
50
Algumas fotografias deste dia acompanham o texto, contudo, somente aquelas em que não aparece o
rosto das crianças. Isso se configura numa questão ética em que escolho não utilizar as outras fotos,
devido ao fato de não ter acontecido um contato com todas(os) as(os) responsáveis pelas crianças, sendo
assim, eu não tenho a devida permissão para utilizá-las.
121
relevo do local, característico de Santa Maria (com áreas altas e baixas) e a urbanização
da região concentrada na parte mais alta, as casas de Dona Renda e seu filho estão
sempre excessivamente úmidas e sujeitas a alagações em períodos de chuvas. Isso se
deve ao aumento das casas com terrenos “aterrados” e também da pavimentação das
ruas que as tornam impermeáveis, sem que a água da chuva tenha por onde desembocar,
com exceção dos bueiros, que não dão conta. Próximo ao local encontra-se o Arroio
Cadena, principal curso de água que atravessa a cidade e contribui para esta situação.
Isso não sugere que Dona Renda deseje uma rua sem pavimentação, todavia, a partir do
momento em que os automóveis atingiram seu auge, habitar a cidade moderna significa
habitar um ambiente que foi antecipadamente construído, projetado para motoristas.
Poucas são as pessoas privilegiadas que podem alterá-lo de maneira significativa, e
Dona Renda não faz parte deste grupo de pessoas.
Penso que a discussão acima possui um tanto dos dilemas do antropólogo
britânico Tim Ingold em seu texto “A cultura do chão: o mundo percebido através dos
pés” presente na obra “Estar vivo: Ensaios sobre Movimento, Conhecimento e
Descrição” (2015). O autor, ao costurar a mecanização dos pés humanos através da
bota para caminhadas com o surgimento das viagens orientadas por destinos pré-
estabelecidos e a proliferação de fabricação de cadeiras para sentar/descansar, irá tecer a
chamada redução da experiência pedestre. Tal redução estaria impedindo que
sentíssemos o mundo com nossos pés, culminando na sobreposição das mãos em
relação aos pés. O que de certa forma está ligado com o seu conceito de “carne no
mundo” e com o “paradigma da corporeidade” de Csordas (1994). Dessa forma, os pés
que ainda arriscam caminhar e calçados por botas não deixam rastros na superfície que é
pavimentada, “as pessoas, em suas vidas diárias, apenas roçam a superfície de um
mundo que foi previamente mapeado e construído para elas ocuparem, em vez de
contribuírem através dos seus movimentos para a sua contínua formação.” (INGOLD,
2015, p.86). Qualquer alteração nas ruas, das intervenções urbanas ao exemplo de Tim
Ingold sobre os pedestres que tomam atalhos através de gramados, é considerada uma
ameaça à ordem e a cidade estabelecida. Ou seja, “as superfícies sobre as quais você
pode andar são aquelas que permanecem intocadas e imaculadas pela sua presença.”
(INGOLD, 2015, p.86)
Sucessivamente, convém aqui sublinhar que as divisões das ruas e bairros
podem ser ditas arbitrárias, ou seja, configuram-se a partir da vontade daqueles que as
dividiram, neste caso, da prefeitura da cidade. Isso porque, assim como em outros
125
Figura 30: Pirâmide etária do bairro Juscelino Kubitschek. Fonte: elaborado pela autora a partir dos dados
adicionais do programa de sinopse por setores do censo do IBGE de 2010
bairro. Segundo minha interlocutora e moradora, a costura feita em casa não tem mais
valor, isto quer dizer que existe um desaparecimento das costureiras na região. Em
razão de que muitas das mulheres mais velhas que costuravam faleceram e as mulheres
mais novas não têm interesse por este tipo de serviço. Em contrapartida, outros dois
bairros adjacentes ao centro da cidade me foram apontados como portadores deste saber
em aparente extinção. Nestes bairros, foram localizados armarinhos de costura, são eles
os bairros Camobi e Tancredo Neves. Entrarei em mais detalhes nos próximos
subtópicos.
Localizado ao leste da
cidade, o bairro conta
com um aumento de
condomínios
residenciais, comércio e
restaurantes. Possui a
maior área geográfica
da cidade com 20, 3463
km² e o maior número
de habitantes, 21.822.
Figura 31: Entardecer na UFSM, localizada no bairro Camobi Um dos fatores
responsáveis pelo
crescimento do bairro é a Base Aérea (BASM) inaugurada em 1970, que faz com que
muitos militares sejam transferidos de outros estados para a cidade de Santa Maria.
Neste cenário de um alto contingente militar, configura-se também uma propicia fonte
rentável para as costureiras, visto que a maioria de minhas interlocutoras já trabalhou –
Dona Filó e Cetim ainda trabalham – com a confecção e reparos de fardas militares. Na
casa de Dona Filó podem-se encontrar montes de fardas para ajustes, na loja de Cetim
existe uma procura até mesmo para a confecção de pequenas fardas para os filhos de
militares. Dona Renda e Dona Chita não trabalham mais com esse tipo de serviço
devido ao excesso de trabalho que demanda. Mas, de uma forma ou de outra, a procura
pelas costureiras por parte dos militares da cidade, acaba sempre garantindo que uma
renda esteja circulando na casa das mulheres que trabalham com a costura. Usando os
termos êmicos, chama-se esta renda de “ganha pão” ou “dinheirinho” das costureiras.
Outro fator que deve ser considerado para entendermos o crescimento do bairro
Camobi é a expansão da Universidade Federal de Santa Maria que data sua instalação
no ano de 1960. A universidade acaba atraindo muitas pessoas jovens de outras cidades
para cursarem não somente o ensino superior, mas também o ensino médio e técnico.
No gráfico (Figura 31), pode-se notar o número elevado de pessoas jovens que habitam
o bairro, é claro que nem todos os jovens estão na universidade ou no serviço militar,
mas existe uma parcela significativa que não pode ser ignorada. Torna-se relevante,
evidenciar que não é apenas o bairro Camobi que sofre influencia em decorrência do
crescimento da universidade. É evidente que o sistema imobiliário e o comércio se
solidificam mediante o crescimento da UFSM e de outras universidades particulares,
128
Figura 32: Pirâmide etária do bairro Camobi. Fonte: elaborado pela autora a partir dos dados adicionais
do programa de sinopse por setores do censo do IBGE de 2010
igualmente grandes e coloridos indica a venda de lãs, linhas, barbantes e demais artigos
de bazar. Apesar disso, não é incomum que o armarinho passe despercebido em meio ao
comércio da faixa velha. Próximos ao “Ofertão” ficam os outros três armarinhos. O
estabelecimento “Miucha: Arte e Costura”, no outro lado da faixa, no sentindo de quem
se dirige ao centro da cidade, é também um ateliê de costura. Este, um pouco mais
atrativo, possui grandes placas em cor rosa que indicam os serviços prestados, como a
venda de produtos e cursos de corte e costura. Para chegar aos outros dois, é preciso
deslocar-se da faixa e entrar nas “ruazinhas” do bairro. O armarinho “Pense Leve” é o
mais antigo e conhecido, está localizado na Rua João da Fontoura e Souza no térreo de
um prédio residencial cor terra. O “Armazém das Linhas” me foi indicado por Dona
Filó. Na maioria das vezes, a costureira pede para as clientes trazerem os aviamentos
extras necessários para a confecção da roupa. Pois, Dona Filó possui uma grande
quantidade de materiais como linhas e agulhas estocadas em sua sala de costura.
Contudo, quando não possui o material e nem a cliente o leva junto com a roupa que
precisa ser ajustada ou confeccionada, Dona Filó usufrui dos serviços de “tele-moto”
para buscá-lo, geralmente no armarinho “Armazém das Linhas”. Este armarinho está
localizado na Rua Padre João Bosco Penido Burnier numa casa branca, residencial na
parte dos fundos e comercial na parte da frente, onde o armarinho divide seu espaço
com um escritório de advocacia e como um ateliê de costura.
A seguir, pode-se conferir o croqui que localiza os quatro armarinhos mapeados
por mim no bairro Camobi:
A presença de vários armarinhos, assim como a frequência com que ouço falar
da quantidade de costureiras que ainda trabalham no bairro Camobi, indicam como o
saber fazer da costura ainda permanece e se sustenta por motivos que passam pelas
demandas de serviços da Universidade Federal de Santa Maria e da Base Aérea.
É importante ainda ressaltar que o bairro Tancredo Neves me foi indicado como
uma localidade que mantém um armarinho em seu comércio. Estabelecido no sentido
oeste da cidade, o bairro é relativamente novo, pois teve a sua área demarcada no ano de
2006 quando a prefeitura do município alterou as divisões territoriais dos bairros.
Contudo, uma Cohab51 já existia no local desde 1986. “T Neves” como é referido pelos
viventes da cidade, é um bairro conhecido por constituir uma parcela da cidade muito
diferente das demais. Uma parcela mais nova e popular. De fato, todos os bairros de
Santa Maria constituem uma identidade singular que poderia ser caracterizada por sua
localização geográfica, relevo e história.
Ao costurar os retalhos que possuo da cidade, posso afirmar que o bairro Itararé
é rodeado pelos verdes morros que caracterizam não só a região, mas a cidade de Santa
Maria como um todo. É o mais antigo e recheado de histórias populares que circulam
pela boca de suas moradoras e moradores. Camobi é o bairro mais distante em relação
ao centro da cidade. Suas ruas se diferem por serem planas, mas sem perder de vista os
morros de Santa Maria. Suas moradoras e moradores possuem o orgulho e slogan “Sou
mais Camobi” - alguns até compartilham da ideia de emancipação do bairro em relação
à cidade. O bairro Divina Providência é fortemente marcado pelo estigma da Vila Km2
e assombrado pelos fantasmas da antiga estação férrea, de uma maneira menos atrativa e
turística do que a Gare da Estação e a Vila Belga próximas ao Itararé. O bairro Juscelino
Kubitschek, assim como o T. Neves, é um bairro relativamente novo e marcado também
pelos verdes morros.
Torna-se importante frisar que não tive a oportunidade de acompanhar o
cotidiano de nenhuma costureira no bairro Tancredo Neves. Portanto, não trabalharei
51
Os Conjuntos Habitacionais foram parte da política de habitação entre as décadas de 1960 e 1980 no
Brasil. As Companhias Estaduais de Habitação com recursos do Banco Nacional de Habitação (LEI
4380/64) buscaram responder a forte crise habitacional que o país atravessava devido a crescente e rápida
urbanização das cidades. Em Santa Maria, destacam-se os conjuntos habitacionais da COHAB Tancredo
Neves, Santa Marta e Fernando Ferrari (RUBIN, 2013).
131
com um mapeamento e uma descrição detalhada do bairro, mas não mencioná-lo aqui
seria uma negligência com o exercício de mapear os armarinhos e com o universo
laboral da costura em si.
Contudo, vale ressaltar novamente que este capítulo não possui o objetivo de
auxiliar quem procura por estes estabelecimentos. Ele não é uma espécie de lista para
consulta de informações sobre os armarinhos de costura, muito menos de grandes lojas
de tecidos que podem eventualmente comercializar aviamentos. Em razão de que não
pretendia mapear todos os estabelecimentos existentes na cidade, sendo assim é possível
que alguns não estejam citados aqui, pois podem ter passado despercebidos.
Além disso, não foi minha intenção descrever todos os bairros da cidade de
Santa Maria. O que busquei mostrar neste capítulo foi que apesar das inevitáveis
mudanças que envolvem o desenvolvimento da cidade e das coisas, a costura enquanto
saber fazer continua a existir nestes pequenos estabelecimentos, por vezes
imperceptíveis. A costura ainda sobrevive nos domicílios, garantindo o sustento de
mulheres como Dona Chita e Dona Filó e como outrora garantiu o sustento de Dona
Renda. Sem deixar de existir, a costura domiciliar, em realidade, coexiste com a costura
da fábrica, com a alta costura, com o “prêt-à-porter” e, infelizmente, com a realidade
atual do trabalho escravo.
Em suma, posso afirmar que Santa Maria é uma cidade em eminente
transformação. A cada nova ou novo estudante ou a cada nova ou novo morador, a
cidade se transforma com as ideias novas que chegam. E se transforma ainda com a
partida de pessoas que carregam para longe ideias que aqui se iniciaram. O fechamento
de alguns armarinhos poderia dizer a respeito de mudanças no mercado e no consumo
das cidades. Afinal de contas, fazer a sua própria roupa ou encomendar de uma
costureira não é mais tão corriqueiro como outrora foi.
Todavia, neste instante pude perceber que outros elementos, como o ato de
brincar na rua ou o apito do trem, continuam a perdurar e a resistir às mudanças
drásticas causadas pelo sucateamento da Viação Férrea. Além de que a cada nova
caminhada pela cidade, observo algum outro estabelecimento, como as pequenas salas
de costura que não havia notado antes. Desta forma, houve um redescobrimento da
cidade. De uma cidade que é vivida pelas costureiras em seus bairros, e que através de
suas janelas observam e conversam com os transeuntes da rua. Uma cidade onde
crianças ainda podem brincar empinando pipa. Uma cidade que não parou no tempo sob
132
a sombra da antiga Estação, mas que também não abandonou a sua memória, utilizando
da ressignificação a base para o seu presente.
Atentar para como as mulheres costureiras vivenciam a cidade de Santa Maria se
tornou importante, pois, ao traçar os caminhos entre os armarinhos e suas casas, pude
perceber que elas não frequentam os armarinhos tanto quanto eu acreditava que
frequentassem. Isso tem relação direta com outros fatores que foram discutidos no
segundo capítulo desta dissertação, entre eles, o cuidado. As mulheres não dispõem de
tempo para irem atrás de materiais para a costura, porque elas necessitam desempenhar,
na maioria das vezes, todos os tipos de cuidados, como o da casa e o das pessoas, além
do trabalho da costura. As costureiras que entrevistei, batem mais pé para tocar a
máquina de costura do que para caminhar pela cidade em busca dos aviamentos nos
armarinhos.
Por fim, a partir do momento em que utilizei das conversas com minhas
interlocutoras e outras(os) moradoras(es) locais como formas de retratar o bairro e a rua,
da câmera fotográfica, dos croquis e gráficos, deixo este espaço e o caminhar no estilo
de uma “flâneuse” para adentrar – no capítulo que se segue – nas residências das
interlocutoras ou em outros lugares onde desempenham os trabalhos, os gestos, os
saberes e os fazeres.
133
assim, o mundo dos saberes comuns, da medicina natural, dos florais, do cuidado, dos
ritos, etc., estaria mais próximo do “saber feminino” construído no cotidiano. Isso
significa que, na medida em que se afasta da ciência inicialmente produzida somente
pelos homens, torna-se um saber que constitui compreensões que escapam às
racionalidades da ciência cartesiana.
Ao recorrer a Perrot (1988), Federici (2017) e Perurena (1997), procurei mostrar
que os saberes e fazeres construídos pelas mulheres dentro dos ambientes domésticos
não envolvem apenas um mundo que é considerado racionalizado e objetivo. Mas,
envolvem, sobretudo, um universo que é afetivo e corporal. E que por conta disso, acaba
por se constituírem como saberes e fazeres pouco reconhecidos, mas centrais para o
desenvolvimento da vida social. Contemporaneamente, estes saberes podem ser
identificados como tradicionais ou “coisas de vovó”, em razão de que muitas pessoas
trazem na memória as características tarefas manuais desempenhadas pelas mulheres da
família, em geral as mais velhas, principalmente, as avós. São saberes e fazeres que
“não foram aprendidos formalmente, mas transferidos de mulher para mulher no jogo de
reprodução de papéis sociais” (SAPIEZINSKAS, 2012, p.147). A maioria destes
saberes como, bordar, costurar, lavar, limpar, cozinhar, partejar, fazer remédios caseiros
produzidos a base de plantas e ervas estão relacionados com a reprodução e o cuidado
da vida. Incluí-se também nestes saberes, a tarefa de ministrar o cotidiano e as relações
sociais da família.
Ademais, as corporeidades identificadas nas atividades cotidianas das mulheres
(como cuidar, costurar, limpar, cozinhar, etc.), “denunciam” aquilo que Pierre Bourdieu
(2006) denomina como “habitus”. Segundo o autor em seu texto “O camponês e o seu
corpo” (2006), as técnicas corporais – baseadas nos estudos de Marcel Mauss (1974) –
constituem um sistema que correlaciona o jeito, as expressões, a forma de se vestir e de
se portar. Neste sentido, posso afirmar que as costureiras aprendem através das suas
vivências, de modo que os saberes e ensinamentos passados corporal e verbalmente por
outras mulheres são incorporados na prática dos fazeres. É desta forma que saberes e
fazeres se conectam. No cotidiano das mulheres costureiras, um não pode existir sem o
outro, de maneira que estão até mesmo sobrepostos. Só se pode aprender a costurar,
costurando. Saberes e fazeres se personificam, assim, no “habitus” (BOURDIEU, 2006)
e se materializam nas práticas de costurar e não menos em limpar, cozinhar, cuidar e
viver.
137
Por sua vez, “la cousinière”, possuía a função de preparar as refeições para
celebrar o batismo, a comunhão e com um enfoque maior, o casamento. Era comum na
região de Minot que a cozinheira preparasse também a bebida do “pot de chambre”53.
Tal como aconteceria de outras maneiras num “chá de casamento” brasileiro, o ritual de
beber deste elixir preparado especialmente pela cozinheira é recheado de brincadeiras
que possuem como objetivo presentear a noiva e o noivo. Contudo, de acordo com
Verdier, a bebida era destinada principalmente às noivas, e misturava temperos e
elementos associados à fertilidade feminina como, por exemplo, o repolho. A fim de
evocar o processo de maturidade da mulher, o ritual de quebra do “pot de chambre”
assemelhasse ao ritual grego da quebra de pratos. Logo, a quebra de um “pot de
chambre” significava também a quebra da fertilidade da mãe passada agora para a sua
filha. Portanto, a função culinária estaria aqui intimamente ligada ao papel das mulheres
enquanto genitoras.
53
Caso as leitoras e os leitores tenham dúvida, é isso mesmo, uma bebida preparada no “penico”.
138
54
O tecido de poliéster normalmente mescla fibras naturais com fibras sintéticas. São práticos de lidar,
pois não amassam facilmente. Aqui, o tecido encaixa-se perfeitamente no codinome desta mulher, pois
além dela ser considerada uma pessoa “fácil de lidar”, sua casa de costura era fresquinha como o tecido
que também deu forma as nossas roupinhas de criança, bordadas de flores, leves e macias.
140
meias e calças. Todas as peças bordadas e cuidadosamente combinadas entre si. Desta
forma, penso nas mulheres costureiras como as mulheres que também “fazem os bebês”.
Numa comparação com as mulheres descritas por Verdier (1979), posso afirmar
que as costureiras desta pesquisa ultrapassam o arquétipo de “fazer as meninas” e “fazer
o casamento”. Neste caso, elas “fazem” a costura da vida. Estão presentes nos
preparativos do ritual de passagem que, na nossa sociedade, transformam meninas em
jovens mulheres, como as celebradas festas de quinze anos. Estão presentes,
posteriormente, em seus casamentos, sem esquecer, das formaturas de ensino médio e
superior. Nestas útlimas, o papel da costureira concentra considerável importância na
cidade de Santa Maria já apresentada as leitoras e leitores no terceiro capítulo. São elas
que costuram e seguem costurando os principais vestidos dessas noites e também os
outros vestidos que estarão presentes nos corpos de madrinhas e convidadas. Dona
Paetê, por exemplo, no período de sua vida em que morou no meio rural, ficava
responsável por costurar os vestidos das noivas, fazer penteados em seus cabelos e
também maquiá-las. Anteriormente, sem acesso a produtos de beleza, ela improvisava o
cuidado da pele, muitas vezes, com pó de arroz. Um dia de casamento, para ela,
costumava ser um dia de muito trabalho, visto que atendia não somente a noiva, mas
todas as outras mulheres das famílias envolvidas no casamento. Assim, as costureiras
vão “fazendo” as jovens mulheres no decorrer de seus “rituais de passagem” (GENNEP,
2011)55. Mas, o fazem em outros momentos, incluindo até certo modo os homens,
mesmo que com menor frequência.
Ainda inspirada por Verdier (1979), pode-se dizer que as costureira também
“fazem os mortos”. Quando Paetê voltou a morar na cidade, empregou-se no setor de
costuras de um hospital em Santa Maria. Neste emprego, costurava as roupas
55
O antropólogo holandês Van Gennep dedicou-se em seus estudos a análise e classificação dos ritos de
passagens, “é o próprio fato de viver que exige as passagens sucessivas de uma sociedade especial a outra
e de uma situação especial a outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas,
tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza.” (GENNEP, 2011, p. 24). De acordo com o
autor, seria possível agrupar um grande número de rituais – que possuem certos padrões cerimoniais
recorrentes – ao conjunto de ritos de passagens, tendo em vista que todo rito de passagem passa por outras
três cerimônias nominadas por separação, margem e agregação. De acordo com cada ritual, uma ou outra
cerimônia acaba possuindo maior ênfase como, por exemplo, no ritual de nascimento, quando se
prevalece o momento ritual de agregação ao mundo. Embora o ritual de separação também seja bastante
significativo, pois simboliza a ocasião do corte do cordão umbilical e do primeiro banho que além de
representarem um ritual de purificação, separam o filho de sua mãe. Desta forma, ficará para pesquisas e
textos futuros desenvolver análises frente aos rituais de passagem que marcam a vida das mulheres que
costuram, pois, como o próprio Van Gennep afirmou, “para os grupos, assim como para os indivíduos,
viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer.”
(GENNEP, 2011, p. 160).
141
parte pela domesticidade onde está inserida a costura feminina. Nas linhas que se
seguem, faço uma tentativa de aproximar à leitora e o leitor deste cenário das salas de
costura, a partir de minha observação e convívio no cotidiano das máquinas, das
costuras e das mulheres que contribuíram com esta pesquisa.
4.2.1 Maneiras de fazer e aprender: o cotidiano e a sala de costura
56
Anteriormente, neste mesmo lugar, costumava ficar outro retrato seu. Era uma das fotos que eu havia
tirado dias antes, quando intentava retratar o seu cotidiano. A mesma foto foi substituída, então, por este
novo retrato, tirado mais recentemente, quando propus fazer o registro da mãe e de seu filho. Dona Chita
adorou a ideia e, apesar da timidez de seu filho, a foto hoje ocupa um lugar de destaque em sua casa. Este
acontecimento remete a circunstância de restituição às costureiras, tendo em vista que as fotografias
foram cuidadosamente trabalhadas, reveladas e devolvidas às interlocutoras.
57
A máquina overlock é uma máquina de costura industrial. Ela faz acabamentos em tecidos planos
desde que sejam tecidos de malha ou elásticos. Exige o uso de três a quatro linhas a serem arrumadas e
transpassadas pelos devidos lugares ao redor e por entre a máquina, além de exigir uma ou duas agulhas
para a formação da corrente que auxiliará na costura. É de grande porte e ocupa um espaço maior do que
as outras máquinas nas salas de costura. Na descrição, refiro-me aos retalhos que a máquina “joga” ou
“lança” através de um escorregador para uma lixeira ou outro recipiente posicionado pela costureira. Isso
ocorre porque a máquina “overlock” ao mesmo tempo em que costura, corta um pedaço do tecido.
144
58
A máquina de costura reta executa o ponto reto comum formado por duas linhas, uma superior e outra
inferior, na qual vão sendo entrelaçadas ao longo da costura. A linha inferior está localizada numa bobina
embaixo da região onde fica a agulha. Já a linha superior está entrelaçada pela máquina, passando pela
agulha. A máquina reta pode ser industrial ou doméstica, geralmente, as costureiras utilizam as máquinas
industriais mesmo quando trabalham em casa. Pois, as máquinas domésticas costumam ser de pequeno
porte e não costuram tecidos muito grossos, além de superaquecer quando demasiado utilizadas.
145
(ESQUIVEL, 2009, p.10), revelam para além das memórias produzidas no livro de
receitas de Tita, um saber fazer que inclui um universo de técnicas (les sugiero ponerse)
e medidas (trozo) que desviam das precisões delimitadas pelas revistas ou pela
matemática. Este acúmulo de saberes pressupõe uma série de tentativas com erros e
acertos para chegar numa receita final. Mas, que ainda não pode ser tomada como a
receita definitiva, tendo em vista que não está livre de futuras modificações. Podemos
pensar neste dia a dia marcado por tentativas, erros e acertos como a experiência prática.
E é assim que a vida imita a arte, mas no caso do objeto desta dissertação, não
mais na cozinha, e sim nas salas de costura. Nelas, as mãos ágeis cortam os tecidos,
desenham os moldes, alinhavam a costura, passam o tecido rapidamente a ferro só para
não se perder de vista as dobras da veste, costuram na máquina reta, alternam para a
máquina “overlock” e assim, sucessivamente, até finalizar aquela peça e reiniciar o
processo novamente. Caso o processo dê errado, “puxa um fiozinho ali, outro lá” (mas,
precisam ser os fios certos), desmancha e refaz até acertar a nova peça no corpo da
cliente durante a prova.
Cetim, certa vez, contara-me que logo que abrira a sua loja próxima ao centro da
cidade, uma nova cliente apareceu com a ideia de fazer uma saia parecida com a da
cantora de “Jazz”, Amy Winehouse. Empolgada e nervosa com a encomenda, Cetim
anotou todos os detalhes com a exceção de um muito importante: as medidas da cliente.
O suspense feito por Cetim enquanto me contava a história fez-me acreditar que algo
muito errado e desastroso poderia ter acontecido no final. Contudo, a experiência de
Cetim na costura, como já descrita no segundo capítulo desta dissertação, acompanha
sua trajetória desde quando era muito jovem. Ela resolveu este “detalhe” – que para nós,
pessoas que não costuram, consideraríamos imprescindível para realizar o trabalho –
comparando o tipo físico da cliente com outra jovem que conhecia e julgava ser mais ou
menos parecida e, “voilà”, deu certo.
Dona Paetê, assim como tantas mulheres – inclusive outras interlocutoras nesta
pesquisa – aprendera a costurar com a sua mãe que também foi costureira. A senhora
simpática e descontraída que é Dona Paetê contou-me como era rigorosa a inspeção que
sua mãe realizava nas costuras. Em seu processo de aprendizado, era comum que sua
mãe lhe pedisse para desmanchar uma peça já pronta três ou quatro vezes para “pegar o
jeito” e “fazer bem feito”. Uma de suas maneiras de fazer indispensáveis era o processo
de alinhavar, pois, fazer a costura logo “de olho” poderia dar errado. Por isso, ela dava
atenção milimetricamente aos detalhes. O que a mãe de Paetê desejava era que a filha
146
Os saberes sobre o costurar das jovens Luzia e Emília trazidas por Peebles em
seu romance, revelam-se como habilidades inscritas num corpo que sabe fazer, porque é
um corpo que desenvolveu essas habilidades na prática à base de intensas repetições. O
uso de certos instrumentos como as fitas métricas e as etapas da costura como os
alinhavos, eventualmente, tornam-se desnecessários para uma costureira experiente.
Visto que são tomados como processos que precisam ser realizados para o adestramento
do corpo, que uma vez adestrado, os dispensa. As habilidades a serem desempenhadas
funcionam como mapas inscritos em suas mãos, pernas, olhos e no corpo como um
todo. A interlocutora, Dona Filó, em umas das vezes que estive em sua casa, quando
questionada sobre o seu aprendizado da costura, contou-me o seguinte:
Eu aprendi olhando minha mãe fazer aqui, e quando eu tava com 15 anos, eu
fiz a primeira roupa por medida. E até hoje a mulher vem aqui em casa, é
minha freguesa até hoje. A primeira roupa que eu fiz pra fora foi pra ela. As
pessoas dizem assim, ‘ai me ensina’, eu não sei ensinar, eu sei fazer. E tanto
assim, quando não uso a trena, e depois a cliente vem fazer a prova, não tem
nem um centímetro pra lá nem pra cá, é exato. É o tempo da gente né,
cinquenta anos costurando!
59
“A costureira e o cangaceiro” é o título da tradução original para o romance de Peebles. Recentemente,
o título foi alterado para “Entre Irmãs”, na nova edição brasileira publicada no ano de 2017, lançado pela
Editora Arqueiro.
147
Enquanto me contava sobre o seu processo de aprendizado, Dona Filó usava sua
fita métrica (trena) para elucidar suas medidas perfeitas. Expressões como “é o tempo
da gente”, observada na narrativa de Filó, somadas a história contada por Peebles
(2017) e a saída que Cetim desenhou para contornar a situação em que não havia tirado
as medidas da cliente revelam muito acerca do saber fazer da costura. No passado
algumas mulheres se tornaram portadoras do saber e fazer da costura, que aliás, até a
primeira metade do século XX ainda era esperado que elas os portassem. Consagrada
num ambiente feminino, por meio também das relações familiares, a costura como saber
fazer já foi demasiadamente procurada pelas mulheres que desejavam ter um trabalho
rentável. Hoje em dia, apesar das mudanças do mercado de trabalho para as mulheres,
algumas continuam buscando nos antigos saberes femininos um apoio para o sustento
próprio e da família. O modo como elas aprendem a costura não mudou muito desde
então. Pois, por mais que existam ressignificações nos cursos oferecidos por empresas
privadas ou mesmo por grupos colaborativos, o saber fazer de uma avó continua sendo
buscado e valorizado.
Como venho demonstrando ao longo desta dissertação, este aprendizado tem
sido descrito na literatura e saliento, além da história de Peebles, o livro “O tempo entre
costuras” (2010), de María Dueñas. A escritora espanhola ao descrever a vida de Sira
Quiroga, sua personagem principal, detalha pormenorizadamente as etapas do processo
de aprendizado da jovem que se inicia no mesmo trabalho de sua mãe:
Depois de dois anos no ateliê decidiram que havia chegado o momento de eu
aprender a costurar. Aos catorze anos comecei com os mais simples:
ganchinhos, chuleados, alinhavos. Depois, vieram as casas de botão, os
pespontos e as bainhas. Trabalhávamos sentadas em pequenas cadeiras de
junco, encurvadas sobre tábuas apoiadas nos joelhos; nelas apoiávamos nosso
trabalho. Dona Manuela atendia as clientes, cortava, provava e ajustava.
Minha mãe tirava as medidas e se encarregava do resto: costurava o mais
delicado e distribuía as demais tarefas, supervisionava sua execução e
impunha o ritmo e a disciplina a um pequeno batalhão formado por meia
dúzia de costureiras maduras, quatro ou cinco mulheres jovens e algumas
aprendizes tagarelas, sempre com mais vontade de rir e fofocar que de
trabalhar. (DUENÃS, 2010, p.12 e 13).
60
Para a construção de tal proposta, Csordas (2008) recorre ao conceito de “percepção” proposto pelo
filósofo Merleau-Ponty e também ao conceito de “habitus” trazido pelo teórico da prática Pierre
Bourdieu. No primeiro caso, referente ao conceito de percepção, a discussão caminha para uma
descontinuidade acerca do dualismo entre sujeito e objeto. É desta forma que o autor rompe com a
unidade fenomenológica do homem, cuja existência corporal diz respeito a um o corpo que é um meio
geral de estar no mundo. Grosso modo, seria através do corpo que percebemos o mundo em nossa volta.
Já no segundo caso, referente ao conceito de “habitus”, Csordas destaca-o como pré-objetivo ou pré-
reflexivo. Isso quer dizer que a prática corporal precede a cognição. Entretanto, devemos estar atentas(os)
para não tomarmos a prática corporal como pré-cultural. Pois, ela é, antes de tudo, um fator cultural que
determina as formas como os seres humanos percebem, intuem, sentem, etc..
149
61
Os presentes, na maioria das vezes, eram objetos, bens valiosos que fazem parte de um ritual de
circulação social e em níveis econômicos, religiosos e morais. No sistema polinésio, os objetos trocados
são chamados de “taonga” e possuem uma forte ligação com o “mana”, que seria uma força espiritual
pertencente aos indivíduos. O “mana” está estritamente relacionado ao “hau”, outro tipo de força
espiritual, que por sua vez, está relacionada aos eventos naturais e aos próprios “taongas”. Já no sistema
melanésio, Mauss (1974) analisa o cerimonial do “potlatch” como um característico sistema de trocas que
se constitui para além do intercâmbio de objetos, mas nas trocas de mulheres, crianças e serviços
militares, por exemplo. O autor ainda nos remete ao ritual do “Kula”, estudado por Bronislaw
Malinowski (1984), como um “potlach”, estando veiculado a um grande comércio intertribal.
150
62
Tim Ingold (2015) vem sendo considerado um antropólogo inovador em suas teorias, pois, o mesmo
afirma que a missão da antropologia é mover a sua atenção para os “fluxos” e “percursos da vida” no
mundo. Nas palavras do próprio autor, a antropologia na qual está interessado em construir poderia ser
entendida como uma “filosofia com gente dentro”. Para tanto, com a finalidade de construí-la, o
empreendimento epistemológico do autor será o de buscar bases nas experiências do vivido. Essa guinada
epistemológica diz respeito a uma crítica aos modelos da teoria representacional nas Ciências Sociais e
aos modelos cognitivos da psicologia, que possuem a acepção de que as estruturas mentais são anteriores
à ação. Pode-se dizer, a partir do diálogo proposto por Steil e Carvalho (2012) entre Thomas Csordas
(2008) e Tim Ingold (2015), que os dois autores contemporâneos se aproximam na medida em que ambos
possuem como base filosófica a fenomenologia como um viés possível de compreender a experiência de
ser e estar no mundo.
152
de acordo com a nossa experiência. No que tange a costura, caso o manual indique para
que se tirem as medidas e, em seguida, as reproduzam nos moldes, as dadas instruções
só poderão ser efetuadas caso dialoguem com a experiência de costurar adquirida num
período anterior. Esta experiência também prevê que a costureira conheça os materiais
necessários para tais tarefas. Logo, o manual de costura não se configura ele mesmo no
conhecimento, mas é um caminho para que se possa obtê-lo baseado nas experiências e
também nas habilidades.
De acordo com Ingold, a informação do livro de receitas, ou no caso desta
pesquisa no manual de costura, “especifica uma rota compreensível, que pode ser
seguida na prática, e apenas uma rota assim especificada pode levar ao conhecimento. É
neste sentido que todo conhecimento está baseado em habilidade.” (INGOLD, 2010, p.
19). Isso explica o motivo pelo qual as instruções dos manuais de costura são pouco
recorridas pelas costureiras, pois não se tratam de conhecimento ou de saber fazer. Estes
são construídos a partir dos caminhos percorridos pelas costureiras mais antigas que
orientam a prática de novas costureiras. Não se trata de uma simples transmissão de
informação, mas, nos termos do autor, de uma “redescoberta orientada”. Ainda de
acordo com o antropólogo, a noção de “mostrar” também se torna importante neste
processo de conhecer e aprender, visto que,
Mostrar alguma coisa a alguém é fazer esta coisa se tornar presente para esta
pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando,
ouvindo ou sentindo. Aqui, o papel do tutor é criar situações nas quais o
iniciante é instruído a cuidar especialmente deste ou daquele aspecto do que
pode ser visto, tocado ou ouvido, para poder assim ‘pegar o jeito’ da coisa.
Aprender, neste sentido, é equivalente a uma ‘educação da atenção’.
(INGOLD, 2010, p.21).
depende de técnicas corporais que marcam gestos e trejeitos a serem seguidos por
determinados repertórios.
63
Em meu TCC, ao observar as diferentes técnicas utilizadas por homens alfaiates e mulheres costureiras,
pude perceber que no ofício da alfaiataria uma das técnicas mais difíceis de executar é exercer de forma
correta o uso do dedal. Os dedais permitem que a costura seja realizada num período de tempo menor sem
comprometer a qualidade do trabalho e também auxiliam na costura de tecidos mais resistentes, sem
expor o dedo a indesejáveis picadas de agulhas. Desde que este esteja curvado corretamente em todos os
momentos. A fim de acostumar o dedo a técnica, os alfaiates costumavam dormir com o dedo médio
amarrado à mão para condicionar e empunhar corretamente a agulha ao dedal, aos iniciantes ainda
recomendava-se o uso de um pedaço de pano amarrado através do dedal durante as costuras. Mais tarde,
ao observar o grupo de costureiras, visto que algumas também faziam uso do dedal, pude perceber que
elas o utilizavam de maneira diferente. Ao invés de costurarem empurrando a partir do lado, de modo que
as extremidades do dedal estivessem sempre abertas, como fazem os alfaiates, as costureiras trazem
sempre a ponta da agulha em direção ao corpo. É o topo do dedal que deve ser usado e não as laterais, por
155
também o ferro de passar roupas. Todos esses objetos, juntos, compõem a prática de
costurar e resultam numa série de técnicas e gestos.
De acordo com o estudo clássico de Leroi-Gourhan (1965) desenvolvido nas
áreas da arqueologia, etnologia e paleontologia, existem gestos que caracterizam as
técnicas e que se repetem em diferentes culturas. Segundo o autor, “o martelar exige
percussões lançadas, enquanto a serração ou raspagem exigem percussões oblíquas
deitadas que, até os nossos dias e em todas as culturas, constituíram uma parte essencial
das técnicas.” (LEROI-GOURHAN, 1965, p.118). Deste modo, no caso das técnicas da
costura, as formas de costurar operam a partir de princípios semelhantes. São gestos
técnicos que imprimem movimentos repetitivos sobre a matéria, que agilmente as
costureiras manuseiam, possibilitando a criação de ritmos.
Entretanto, as técnicas não estão impressas apenas nos gestos e nos materiais
manuseados pelas costureiras, elas estão impressas também em seus corpos. Pois, a
costura é uma atividade corporificada e que envolve a experiência, posto que “o corpo
mediatiza a aquisição de um saber, esse saber inscreve-se no corpo.” (CLASTRES,
1979, p.168). Assim, podemos visualizar a relação do corpo com a costura nos esforços
despendidos para a realização das tarefas e no cansaço resultante de desempenhá-las.
Essa relação também pode ser visualizada, especialmente, no aprendizado das técnicas.
É um aprendizado que leva tempo para ser assimilado e necessita de uma adequação do
corpo. Assim, as técnicas são construções sociais em torno do corpo.
De acordo com Mauss (1974, p.407), “o corpo é o primeiro e o mais natural
instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o
mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é o seu
corpo.” Para o autor, as técnicas corporais são transmitidas por imitação e adestramento
através de uma série de ritos habituais e antigos pertencentes a cada sociedade. A
atividade da costura compreende, assim, o disciplinamento do corpo que é necessário ao
processo do saber fazer. De acordo com os estudos de Thaís Brito (2010) sobre a
produção de bordados em Caiacó/RN, ao recorrermos à língua inglesa, podemos
perceber que o saber fazer está relacionado conjuntamente à palavra “craft”.
Craft é também a palavra usada para designar o artesão, aquele que sabe
fazer, tem destreza e hábito. Esse hábito cria as formas de vida, as maneiras
de agir e a feição do que se produz. Modela o corpo, estabelece a técnicas e
este motivo o dedal usado por mulheres é fechado nas pontas e o dos alfaiates é aberto. (KÄERCHER,
2016).
156
Mas nem todo corpo adestrado para saber fazer, efetivamente, quer fazer. E a
resposta para esta afirmação está na confusão social que julga como naturais certas
habilidades baseadas em delicadezas e finos tratos supostamente pertencentes ao
universo feminino. Contrariando o adestramento para a costura feminina encontram-se
várias mulheres. Dentre elas posso me incluir, visto que
sempre neguei tais aprendizados que outrora entendia como
uma “conformação” das mulheres ao universo doméstico.
Neste mesmo grupo de mulheres rebeldes, encontra-se minha
mãe, Dona Veludo64. O corpo de minha mãe foi considerado
como um corpo inadequado para os trabalhos manuais, segundo a leitura de minha avó
materna. Ao ajudar a sua família, Dona Veludo precisou trabalhar em plantações no
meio rural e, por isso suas mãos que já eram grandes se tornaram mãos fortes de quem
“pegou” diariamente na lida pesada. Seu corpo, então, adaptou-se ao trabalho braçal
necessário às lidas do campo e, consecutivamente, segundo minha avó, não desenvolveu
a “delicadeza” da costura. As pequenas agulhas e espessas linhas tornam-se difíceis de
segurar em suas mãos, já os minúsculos dedais femininos nem sequer cabem em seus
dedos. Ela contara-me, a título de exemplo, que no momento em que precisou
confeccionar o seu enxoval de casamento, trocou com sua mãe as tarefas de costura e
bordado pelo trabalho da colheita na lavoura.
Diante dos fatos narrados, podemos pressupor o que os discursos hegemônicos
diriam sobre estes corpos. Diriam que, certamente, o corpo de minha avó era delicado
em oposição à forte. E também que o corpo de minha mãe é forte ao contrário de
delicado. A verdade é que conhecendo a complexidade de suas vidas, torna-se
equivocado atribuir o perfil de delicadeza para a pessoa que gestou e criou onze filhos e
filhas como a minha avó fez. Além, é claro, de todos os outros trabalhos pesados que ela
desenvolveu ao longo de sua vida. E que nem por isso foram menos delicados os
trabalhos manuais que minha mãe desempenhou e desempenha hoje em dia, dentre eles,
a costura doméstica de almofadas e travesseiros para a sua família. Intento com estes
exemplos reforçar alguns dos argumentos os quais venho trazendo ao longo desta
64
Veludo é o tecido que escolhi para ser o codinome de minha mãe. Pois, a maneira de tratar as pessoas
que a rodeiam remete maciez, como é o tecido de veludo. Mas que também pode revelar o seu outro lado
mais cerrado, severo e resistente quando necessário. Também escolhi este tecido porque entendo que ela
gostaria desta escolha macia e sofisticada.
157
encerradas devido à idade avançada, mas que ainda assim, revelam em seus corpos, os
desgastes causados pelo trabalho. Dona Chita, a título de exemplo, aguarda a
possibilidade de colocar uma nova prótese no fêmur por conta de um desgaste na perna
causado pelo movimento repetitivo na máquina de costura. Em seu braço, resulta uma
lesão causada por uma queda que teve num momento de muita dor na perna.
Linho, uma das costureiras mais novas, também já apresenta fortes dores nas
costas, devido a sua postura frente à máquina de costura. Dona Filó que possui 63 anos
de idade apresenta vários problemas de coluna, como hérnia de disco e osteofitose,
popularmente conhecida como “bico de papagaio”, uma doença que não tem cura e
causa muita dor. Segundo Settimi e Silvestre (1995), certas doenças como Lesões por
Esforços Repetitivos (LER) e as chamadas Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao
Trabalho (DORT) não são problemas individuais e sim da sociedade, pois dizem
161
trabalho, destaco que nem sempre elas se configuram da mesma forma. A costureira
Linho, por exemplo, enquanto contava-me sobre as demandas das costuras, mencionou
que costuma deixar as costuras acumularem e depois precisa fazer tudo num único dia
exaustivo de trabalho. Por outro lado, Cetim estabelece bem os seus horários de
trabalho, seu estabelecimento comercial funciona de segunda a sábado e ela não leva
suas costuras para casa. Pois, como ela decidiu alugar uma peça próxima ao centro da
cidade, conseguiu separar em partes a costura das outras atividades que desempenha.
Mas nem sempre o trabalho de casa se ausenta do seu trabalho na costura, como
apresentado no capítulo dois. As jornadas de trabalho são discutidas também no grupo
do Facebook “Clube da Costureira”. Publicações sobre as jornadas de trabalho e tempo
de produção costumam desencadear muitos comentários de costureiras presentes em
todo o Brasil, que desejam compartilhar suas experiências pessoais sobre o trabalho da
agulha. A partir destas observações e buscando traçar recorrências, passo a identificar
várias situações e narrativas acerca do trabalho que se repete tanto no grupo quanto no
cotidiano de minhas interlocutoras, dentre elas, os problemas de saúde relativos aos
gestos repetitivos, como os problemas de visão, tendinites nos ombros e nas mãos,
artrite, artrose e espondilose na coluna. As jornadas de trabalho também costumam
variar de costureira para costureira, algumas tendem a delimitar horários, outras são
consumidas por suas demandas. Uma costureira do grupo recentemente comentou em
uma publicação que a sua jornada de trabalho começava as 4h30 da madrugada, por
isso, ela chegava a produzir cerca de oitenta calças jeans por dia. Outra costureira
comentou na mesma publicação que dificilmente consegue terminar uma peça no dia,
pois necessita que a cliente prove antes. E, assim, somam-se costureiras dos dois lados
do time, mas isso depende do tipo de costura que cada uma desenvolve. Os fatores que
efetivamente as unem num grupo são os gestos, as técnicas e, por fim, o trabalho
informal no qual estão inseridas.
163
66
Neste apólogo, linha e agulha embarcam num debate a fim de concluir qual das duas possuía o maior
prestígio no mundo da costura. Discutiam elas, quando chegou a costureira na casa da baronesa, “[...]
pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra
iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira,
ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética.” (MACHADO DE ASSIS, 1946, p.47).
No final do apólogo, o escritor parece ter feito uma alusão às classes sociais e às discrepâncias em que
estavam inseridas as pessoas entre uma e outra classe, utilizando de um lado os objetos presentes nos
“bastidores” e no trabalho, como as agulhas e alfinetes. E por outro lado, os objetos mais sofisticados
presentes ao universo dos “salões de festas”, como a linha.
164
técnico de quem costura há mais tempo. As máquinas de costura, assim como outras
máquinas utilizadas em diferentes serviços, a exemplo das máquinas de fazer a barba
(SOARES, 2012), não conhecem as assimetrias corporais, as falhas e os desníveis, os
quais as profissionais estão mais acostumadas a lidar.
Além disso, a costura na máquina ainda exige que a costureira desempenhe
algumas tarefas manuais antes e depois de trabalhadas. Dentre tantas, destaco aqui o
movimento de transpassar as linhas nas máquinas de costura. Esse movimento acaba por
revelar alguns caminhos interessantes a serem percorridos. Na passagem da linha
superior, o movimento acontece quase da mesma forma em praticamente todas as
máquinas de costura, já a passagem da linha inferior ocorre de maneira diferente. Como
num circuito, as linhas precisam sair dos carretéis e passar por determinados pontos
exatos da máquina, primeiro para encher a bobina que ficará em baixo, auxiliando como
linha inferior. E depois com a linha superior que sairá direto do carretel, passando pelo
circuito e culminando na agulha.
Alguns detalhes podem ser
percebidos durante essa
passagem, por exemplo, o pé da
costureira junto com o joelho
está sempre acionando o pedal da
máquina para garantir que a linha
passe entre discos tensores. É
também preciso pressionar
constantemente o pedal para
encher a bobina de linha. Esta
tarefa é umas das principais a
serem realizadas antes de
começar a costura e, se forem
feitas incorretamente,
comprometem a confecção das
novas peças.
Pensando na proposta de
Ingold (2012) para “trazer as
coisas de volta à vida”, considero
Figura 38: “Teias de aranha”
165
a máquina como uma coisa ao invés de um objeto. De acordo ainda com o autor, a
“coisa” é um acontecer onde vários outros aconteceres vão se entrelaçando e formando
nós, “as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam
temporariamente (INGOLD, 2012, p.29). Enquanto os objetos, conceitualmente, nos
são colocados como fatos fechados e consumados. Em suas teorias, Ingold defende a
ideia de que todos nós vivemos no que chamou de Ambiente Sem Objetos (ASO).
Assim, inspirada por este pensamento do autor, vejo a máquina de costura como uma
coisa, tal como é a cadeira, o assoalho de madeira, as linhas ou fios e por aí adiante.
Porque essas “coisas” não são entidades fechadas para o mundo, elas estão em constante
formação no mundo e também por causa dele. Elas constituem um conjunto de nós,
cujos fios desenham caminhos em suas trajetórias, devido ao constante fluxo das
“coisas” e da vida, “assim, como a planta cresce a partir de sua semente, a linha cresce a
partir de um ponto que foi posto em movimento.” (INGOLD, 2012, p. 26). Tenho
consciência que Ingold não se referia a linha de costura e sim aos fios da vida quando
afirmou tal compreensão. Contudo, ao pensarmos nas linhas das costureiras a partir
deste ponto de vista, talvez possamos entender como elas formam caminhos e se
constituem em outras coisas novas no decorrer de suas trajetórias.
Com ares de conclusão, afirmo que os caminhos por onde as linhas percorrem
passam a formar continuamente as “coisas”. A linha que sai do carretel que é o seu
ponto inicial perpassa pela máquina de costura. Juntas, linha e máquina imprimem
caminhos no tecido e no corpo da mulher que costura. A cadeira, por sua vez, sofre
reações do contato do corpo que juntos desenham novos caminhos no assoalho de
madeira de Dona Chita descrito no início deste capítulo. O assoalho, as paredes, os
móveis, as máquinas e todo o restante da sala da costura também estão conectados com
o universo de acontecimentos ao lado de fora da sala e da casa. A janela se conecta com
a máquina de costura em frente dela posicionada, a poeira densa advinda da rua e
levantada pelo peso do ônibus que por ali trafega soma-se a luz. Juntas, luz e poeira
entram pela janela e moldam desenhos empoeirados na sala de costura que é
constantemente formada pelos nós que vão conectando e desenhando sala, casa, rua,
cidade, mulher e mundo. Portanto, nesta análise, especialmente a sala de costura,
constitui-se enquanto um emaranhado de coisas num sentido literal, “não uma rede de
conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento.”
(INGOLD, 2012, p.27).
166
Emaranhados que lembram teias de aranhas, com fios que são dispostos a partir
dos movimentos que a própria aranha desempenha. Pois, os fios que desenham a teia
são como “extensões do próprio ser da aranha” na mesma medida em que ela vai
tecendo o seu ambiente e conduzindo a sua percepção do mundo, mesmo que este
mundo seja uma sala de costura. “A aranha vive do que tece, vê se não esquece” 67.
67
Parte da música “Oriente” do cantor e compositor brasileiro, Gilberto Gil. A música compõe o álbum
“Expresso 2222” lançado em 1972.
167
portadoras dos muitos saberes e fazeres empíricos, saberes estes que por séculos foram
passados de forma hereditária. Situações e transformações que culminam ou
culminaram num processo gradual de esmaecimento do saber fazer da costura que foi se
mostrando um saber fazer “facultativo” ao cotidiano das mulheres num mundo de
intensa industrialização.
Embora seja consenso que o cenário da costura domiciliar é um cenário em
desmonte, ou seja, que parece fora de lugar no contexto atual, o meu intento nesta
dissertação foi o de compreender outros cenários. Procurei voltar o olhar para as
mulheres que optaram pela costura dentre um cenário de possibilidades, como nos casos
de Jeans, Linho e, em certa medida, Cetim. Busquei também voltar o olhar para as
mulheres que inseridas num determinado tempo histórico fizeram da costura uma
atividade geradora de renda. A costura, neste segundo caso, tornou-se referência cultural
de uma época em que os afazeres constitutivos da vida das mulheres eram, em geral,
domésticos. Portanto, a partir de um “leque de possibilidades” para ocupações
femininas não restavam muitas opções. Assim, as mulheres que costuram ainda hoje se
apropriam da costura – outrora lhes destinada como uma forma de confinamento ao
mundo doméstico – e a transformam num saber fazer profissionalizado que acaba
provendo o sustendo da casa e da família, como acorre com todas as interlocutoras deste
estudo.
Desta forma, um ponto de convergência entre elas é que ocupam espaços de
provedoras da família mesmo que de forma “não oficial” num primeiro momento de
suas vidas. Mas, que em casos de adoecimento, falecimento ou separação dos maridos
assumem, de uma só vez, toda a responsabilidade do cuidado de gerir a casa e as filhas e
filhos. Elas se desdobram com engenhosidade para encontrar meios de sobreviver em
tempos de trabalho escasso, nos dias difíceis que podem, inclusive, equivaler a meses
sem serviço. Elas conhecem a vizinhança e sabem das permutas que podem ser feitas a
partir de seus trabalhos. Uma camisa costurada pode lhes render o guisado do almoço
num trato com o açougueiro e o vestido ontem costurado pode garantir o pão ou a
farinha de trigo para amanhã. Essas são algumas das engenhosidades ou “táticas de
resistência”, para usar os termos de Certeau (1994), empregadas pelas mulheres com o
intuito de garantir o seu “pão de cada dia”.
Um dos aspectos importantes da discussão realizada ao longo do texto diz
respeito a como o trabalho domiciliar e informal da costura nos dias atuais tende a se
confundir com o próprio trabalho doméstico. Por isso, a relação das mulheres com o
169
percebendo referências diretas a certos lugares como, por exemplo, o antigo armazém
da estação férrea localizado no bairro Divina Providência, onde reside Dona Chita.
Neste bairro, também encontrei personagens que se encaixavam perfeitamente na
categoria de “habitués”.
No instante em que intentei desvendar a cidade de Santa Maria, percebi alguns
outros elementos que perduram e resistem. A cada nova caminhada pelo centro da
cidade, passei a observar algum outro estabelecimento, como pequenas salas de costura
que não havia notado antes. Por isso, torno a ressaltar que nem todas as coisas são
mudanças, e muitas outras coisas ainda permanecem. O apito do trem, a brincadeira de
empinar a pipa na rua e o costurar são práticas e saberes que tem relação com o durar.
Eles estão inseridos num tempo e num espaço. Num tempo que é agora, mas que
também já foi o de antigamente e num espaço que é a cidade. Uma cidade vivida pelas
costureiras em seus bairros, que através de suas janelas observam e conversam com os
transeuntes da rua. Tudo ao mesmo tempo, enquanto costuram. Atualizam-se das
novidades nas conversas com a vizinha que vem toda manhã ajudar nas costuras da loja.
Ou enquanto assistem ao telejornal ou escutam em seus rádios as notícias de sua cidade.
Retornando aos lugares de pesquisa, por último e talvez mais importante, observei o
espaço das casas e/ou das salas de costura das mulheres.
Situando, portanto, a costura como um objeto temporal que perdura pela
sobreposição do tempo no mundo das práticas e das memórias, almejei demonstrar
como a costura é um elemento de duração. A costura está sempre em transformação e
persiste ao longo do tempo mesmo com as mudanças no modo de vestir e produzir
roupas. Compreendi que a costura por vezes está dentro dos lares, por vezes está fora.
Ela pode aparecer como um trabalho rentável ou como uma “prenda” doméstica,
realizada em meio a outros afazeres como lavar, cozinhar, cuidar de pessoas, animais e
objetos. Em determinada situação a máquina de costura ocupa o centro das casas,
indicando como auxiliam no sustento das famílias. Ocasionalmente, não é a máquina de
costura, mas, a mulher que se desloca para outro espaço, vendendo o seu saber fazer
dentro de um escala produtiva mais ampla.
À guisa de conclusão, saliento que a presente dissertação teve como objetivo
compreender de que modo a prática da costura perdurou e ainda perdura no cotidiano
das mulheres. Para tanto, o método etnográfico da duração (ECKERT; ROCHA, 2010)
e também a etnografia de rua (ECKERT; ROCHA, 2003) foram de grande importância
171
para perceber a dinâmica temporal em que a costura enquanto saber fazer ainda se situa
no cotidiano feminino.
Ao longo da pesquisa, observei que a costura permanece sendo um trabalho
majoritariamente desenvolvido por mulheres. Tendo em vista que ainda continua sendo
um trabalho que pode ser realizado no ambiente doméstico, compatível com as tarefas
de cuidado (de crianças, pessoas idosas, doentes e dos animais). A costura, portanto,
preserva-se como um saber fazer transmitido entre mulheres e, na maioria das vezes,
entre diferentes gerações de uma mesma família. A costura tanto reverbera que se
tornou, atualmente, uma escolha de aprendizado para jovens mulheres que buscam a
valorização dos antigos saberes femininos como uma forma de empoderamento. Da
mesma maneira, configura-se como um propósito de sustentabilidade nos modos de
produzir vestimentas em contraposição com a produção em largas escalas da indústria
do pronto para vestir.
Além disso, constatei nesta pesquisa que o contexto militar e universitário da
cidade de Santa Maria favorece a manutenção das práticas de costura. Uma vez que o
referido público demanda uma considerável quantidade de serviços para as costureiras
como, a produção e os ajustes de fardas militares e a confecção de vestidos para as
festas de formatura. Na opinião de uma de minhas interlocutoras, Dona Chita, “a costura
nunca vai deixar de assistir”. Esta sua afirmação remete à noção de que a costura
sempre será um saber fazer e, nesse sentido, uma possível fonte de renda para as
mulheres, tendo em vista a necessidade de nos vestirmos e nos adequarmos aos nossos
contextos sociais.
Por fim, esta dissertação foi “costurada” tal como a “colcha de retalhos” tecida
na imagem que ilustra a capa deste trabalho. Imagem que remete ao saber fazer da
costura sendo transmitido de avó para mãe e, posteriormente, para a filha. Reuni, ao
longo da pesquisa, narrativas sobre o trabalho, observações do cotidiano, trechos de
literatura, fotografias, discussões e desenhos dispostos como pequenos quadradinhos
coloridos e costurados ao longo de uma grande colcha de retalhos. Esta colcha de
retalhos contou as histórias e os legados de mulheres costureiras, de mulheres comuns.
172
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