You are on page 1of 182

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Karen Ambrozi Käercher

“FEITO À MÃO E COM AMOR”: ALINHAVOS ETNOGRÁFICOS


ACERCA DE SABERES E FAZERES DE COSTUREIRAS NA
CIDADE DE SANTA MARIA/RS

Santa Maria, RS
2018
Karen Ambrozi Käercher

“FEITO À MÃO E COM AMOR”: ALINHAVOS ETNOGRÁFICOS ACERCA


DE SABERES E FAZERES DE COSTUREIRAS NA CIDADE DE SANTA
MARIA/RS

Dissertação apresentada ao Curso de


Pós-Graduação em Ciências Sociais, da
Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM, RS), como requisito parcial para
obtenção do título de Mestra em
Ciências Sociais.

Orientadora: Profª. Dra. Jurema Gorski Brites


Coorientadora: Profª. Monalisa Dias de Siqueira

Santa Maria, RS

2018
Ficha catalográfica elaborada através do Programa de Geração Automática
da Biblioteca Central da UFSM, com os dados fornecidos pela autora.

Käercher, Karen Ambrozi


“Feito com à mão e com amor”: alinhavos etnográficos
acerca de saberes e fazeres de costureiras na cidade de
Santa Maria/RS / Karen Ambrozi Käercher.- 2018.
182 p.; 30 cm

Orientadora: Jurema Gorski Brites


Coorientadora: Monalisa Dias de Siqueira
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa
Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais, RS, 2018

1. Costura 2. Costureiras 3. Saberes e Fazeres


4.Trabalho 5. Duração I. Brites, Jurema Gorski II. de
Siqueira, Monalisa Dias III. Título.

__________________________________________________________________________

© 2018
Todos os direitos autorais reservados a Karen Ambrozi Käercher. A reprodução de partes ou
do todo deste trabalho só poderá ser feita mediante a citação da fonte.
E-mail: kakaercher@gmail.com
Especialmente para a minha mãe, mulher forte e destemida que
dedicou sua vida ao cuidado dos outros e ao trabalho do lar,
mas que nem sempre recebeu todo o amor e reconhecimento que
deveria.

E para todas as costureiras que vêm silenciosamente


construindo a história do cotidiano feminino.
AGRADECIMENTOS

A todos humanos e não humanos que me acompanharam e me deram suporte


neste novo degrau alcançado em minha trajetória acadêmica.

À Capes pela concessão da bolsa que permitiu o desenvolvimento desta


pesquisa.

Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de


Santa Maria como um todo. Especialmente à Jane, pela eficiência e empenho.

Às professoras e avaliadoras Cornélia Eckert, Débora Krischke Leitão e Nikelen


Witter pela gentileza de aceitarem compor a banca, ler e contribuir para o
aperfeiçoamento desta pesquisa.

À Jussara Brites que, solicitamente, auxiliou-me com o francês rebuscado de


Yvonne Verdier.

À minha orientadora Jurema Brites que me acompanha desde os primórdios do


ano de 2012 em minha trajetória acadêmica e de vida. Obrigada pelos ensinamentos,
principalmente, àqueles que transgridem as fronteiras da academia e que dizem respeito
ao universo afetivo das amizades.

À minha co-orientadora Monalisa Dias de Siqueira, obrigada por aceitar esta


parceria, pela paciência e pelo apoio nos momentos mais difíceis de construção desta
dissertação. Obrigada pelos momentos de voz cantada (passando por Belchior,
Gonzaguinha e Ekena), pelo riso fácil e pelo aprendizado que sempre carregarei
comigo. Um agradecimento também ao professor Francis de Almeida, pelas ocasiões
distrativas - mais do que necessárias - que envolviam jogos de tabuleiro, cafés e jantares
muito bem elaborados entre uma orientação e outra na casa dos dois.

Às mulheres que aceitaram me receber em seus cotidianos e partilhar um pouco


de suas memórias e vidas. São elas, Dona Gessi, Dona Anilda, Dona Jussara, Dona
Doce, Dona Georgina, Rosani, Taci, Fernanda e em memória de Dona Clara.

Preciso muito agradecer ao colega Diego Marafiga que, gentilmente, apresentou-


me a sua querida mãe Dona Gessi. E que, posteriormente, acompanhou-me e auxiliou-
me nas caminhadas etnográficas percorridas pelo bairro Divina Providência.

À minha família que me incentivou a estudar desde criança, mesmo que eles
mesmos não tivessem conseguido, num primeiro momento, terminar os estudos ou
adentrar em uma universidade. Um agradecimento especial ao meu pai, Nilson. E aos
sobrinhos, primas, tias e tios, irmãs e irmãos (Nilsinho, Daniela, Cristiane, Luciano e
em memória de minha irmã Débora). Mas, especialmente, às minhas amoras, Marina e
Pietra. Vocês duas são pontinhos de esperança em um mundo melhor e mais igualitário.

À minha principal inspiração para esta dissertação, Dona Nilza Tereza, minha
mãe. Mulher forte a quem admiro muito, sem ela nada disso seria possível.
A todas as minhas amigas e amigos queridos, mas em especial à Fabiane Dalla
Nora, Alisson Machado, Jennifer Karoline, Laura Cassol, Andressa Tatiara, Júlia
Feliciano, Rosana Lindorfer, Raíra Borher, Willian Nunes, Natália Schneider e André
Comin. Sem vocês, a vida se tornaria solitária.

À minha turma de mestrado, mas principalmente à Letícia Ortiz e ao Mateus


Bonez. Parcerias de orientação, eventos, viagens e dos “madrugadões antropológicos”.

À Mariane Farias, pessoa que extrapola as minhas definições de amor. Amo-te


do tamanho do universo em expansão. E um universo infinito é muito grande. Obrigada
pelo apoio nas horas difíceis e pelo companheirismo de todas as horas.

À Rita, Remédios, Kimbra, Matilda e Mérida. Vocês são as minhas não humanas
preferidas. As felinas, Rita e Remédios, vez ou outra ainda escrevem algumas frases em
arquivos abertos no meu computador.

Sou muito grata a todas e todos que de alguma forma contribuíram com o meu
processo de escrita e/ou defesa da dissertação. Foram tantas e tantos amigos e colegas -
passantes ou residentes em minha vida - que nem tenho como listar aqui! Como diria
Gonzaguinha, “é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente onde
quer que a gente vá, e é tão bonito quando a gente sente que nunca está sozinho por
mais que pense estar.”
EPÍGRAFE

PENSO NA MINHA AVÓ MATERNA que trabalhava numa repartição pública o dia
todo e passava as noites bordando para sustentar a casa, um casal de filhos e minha
bisavó, que ficava com as crianças para que ela pudesse trabalhar. A noite era o
momento de arrumar a casa, organizar as roupas e refeições para o dia seguinte.
Penso também na minha avó paterna, jovem viúva de cinco filhos homens, pequenos,
costurando e cozinhando para fora num dia onde se somavam muito mais de 24 horas
de trabalho ininterrupto e outras horas de solidão e cansaço. Penso também em minha
mãe, professora, costureira, cozinheira, hábil em mil e uma utilidades e afazeres que
constroem a existência mais comum e mais vital das pessoas num trabalho que
magicamente não aparece e que, por isso, não existe. E, mesmo antes de pensar na
divisão deste espaço - o dentro e o fora de casa - e o trabalho, fico sentindo nesta
viagem das lembranças, o cheiro do corpo e do calor destas mulheres, o cheiro das
linhas e fazendas, dos doces de frutas da época, das roupas engomadas, as lãs, as
comidas, e o bater contínuo da máquina de costura ou da máquina de escrever de
minha mãe, a professora, alternadamente durante as noites. Foram todas mulheres sós
na maior parte de suas vidas, os maridos ausentes, e a casa se transformava, assim, em
seus reinos absolutos. Essas algumas das impressões da menina que eu era. A
impressão forte de que aquelas mulheres e suas tarefas ininterruptas, constantes,
permanentes, eram o que garantia a minha vida, a alegria e a sobrevivência. É a
impressão de que o trabalho doméstico, ou o trabalho realizado dentro de casa (bordar
ou preparar aulas, por exemplo), é um trabalho inseparável do corpo feminino.

Lélia Almeida, em “50 ml de Cabochard”


“FEITO À MÃO E COM AMOR”: ALINHAVOS ETNOGRÁFICOS ACERCA DE
SABERES E FAZERES DE COSTUREIRAS NA CIDADE DE SANTA MARIA/RS
RESUMO

“FEITO À MÃO E COM AMOR”: ALINHAVOS ETNOGRÁFICOS ACERCA


DE SABERES E FAZERES DE COSTUREIRAS NA CIDADE DE SANTA
MARIA/RS

AUTORA: Karen Ambrozi Käercher


ORIENTADORA: Jurema Gorski Brites
COORIENTADORA: Monalisa Dias de Siqueira
Data e local da Defesa: Santa Maria, 30 de maio de 2018.

O presente estudo versa sobre o universo dos saberes e fazeres femininos, das linhas e
agulhas, dos panos e das máquinas de costura que empiricamente eram e, de algum
modo, continuam sendo passados de geração em geração de mulheres. Dentre os saberes
e fazeres que circundam o mundo feminino, é no saber fazer da costura que reside o
foco desta dissertação que possui como protagonistas as trabalhadoras a domicílio. Para
tanto, meu lócus de pesquisa se concentra em maior parte na cidade de Santa Maria/RS,
apesar de também ter trabalhado com duas interlocutoras que residem em outras cidades
e que desempenharam um papel relevante para o desenvolvimento da pesquisa. A partir
das memórias de nove mulheres costureiras acerca de suas trajetórias no mundo do
trabalho, busco compreender como a prática da costura perdura enquanto saber fazer em
seus cotidianos, tendo em vista as mudanças tecnológicas, demográficas e do próprio
mundo do trabalho contemporaneamente. Diante de narrativas do trabalho, entrevistas,
observação participante, croquis, trechos de obras literárias e memórias aliadas também
às fotografias, intento “costurar”, nesta dissertação, o método etnográfico de duração e a
etnografia de rua. Assim, o trabalho de campo foi realizado no ambiente da rua, dos
armarinhos e no âmbito doméstico, ou seja, nas salas de costura. Ao situar a costura
como um elemento de duração sempre em transformação, busquei evidenciar que a
costura persiste ao longo do tempo mesmo frente às mudanças no modo de vestir e
produzir roupas na nossa sociedade. Observei que a costura perdura como um trabalho
predominantemente feminino e continua sendo realizado no lar considerando a
possibilidade de conciliá-lo com o trabalho de cuidado de pessoas e do próprio ambiente
doméstico. A costura também se preserva como um saber fazer transmitido entre
mulheres de diferentes gerações. Além disso, o contexto de Santa Maria que se
apresenta como uma cidade universitária e militar, favorece a permanência das práticas
de costura tendo em vista a demanda de serviços por esse público como, por exemplo, a
confecção de vestidos de festa e fardas militares. Essas circunstâncias revelam como a
costura reverbera nas práticas, na cidade, nos corpos e na vida das mulheres costureiras.

Palavras-chave: Costura. Costureiras. Saberes e fazeres. Trabalho. Duração.


17

ABSTRACT

"HAND MADE WITH LOVE": SEWING THE ETHNOGRAPHIC


KNOWLEDGE AND WORK OF SEWINGS IN THE CITY OF SANTA
MARIA/RS

AUTHOR: Karen Ambrozi Käercher


ADVISER: Jurema Gorski Brites
COADVISER: Monalisa Dias de Siqueira
Place and Date of Defense: Santa Maria, May 30th, 2018.

The present study discourse about the universe of women's knowledge and practices, of
threads and needles, cloths and sewing machines that were empirically and, somehow,
continue to be passed on from generation to generation. Among the knowledges and
doings that surround the feminine world, it is in the know-how of sewing that resides
the focus of this dissertation that has as protagonists the home workers. To that end, my
research locus is concentrated mostly in the city of Santa Maria/ RS, although I have
also interacted with two interlocutors who live in other cities and who played a relevant
role in the development of the research. From the memories of nine women
seamstresses about their trajectories in the work world, I’ve try to understand how the
practice of sewing endures while knowing how to do in their daily lives, taking into
account the technological, demographic changes and the world of work itself. Through
work narratives, interviews, participant observation, sketches, excerpts from literary
works and memories allied to photographs, I try to "sew", in this dissertation, the
ethnographic method of duration and street ethnography. Thus, fieldwork was carried
out in the street environment, in the dressing rooms and in the domestic environment,
that is, in the sewing rooms. By situating the seam as an ever-changing element of life, I
sought to show that sewing persists over time even in the face of changes in the way we
dress and produce clothing in our society. I have observed that sewing remains as a
predominantly feminine work and continues to be performed in the home considering
the possibility of reconciling it with the work of caring for people and the home
environment. The sewing is also preserved as a know-how transmitted between women
of different generations. In addition, the context of Santa Maria that presents itself as a
university and military city, favors the permanence of sewing practices in view of the
demand for services by this public, such as the making of party dresses and military
uniforms. These circumstances reveal how sewing reverberates in practices, in the city,
in the bodies, and in the lives of seamstress women.

Keywords: Sewing. Seamstresses. Know-how. Work. Duration.


18
19

RÉSUMÉ

FAIT À LA MAIN ET AVEC AMOUR:FAUFILSETHNOGRAPHIQUES SUR


LE SAVOIR ET PRATIQUES DE COUTURIÈRES DE LA VILLE DE SANTA
MARIA / RS

AUTEURE: Karen Ambrozi Käercher


DIRÉCTRICE: Jurema Gorski Brites
CO-DIRÉCTRICE: Monalisa Dias de Siqueira
Date et lieu de la défense: Santa Maria, le 30 mai 2018.

La présente étude examine sur l'univers des connaissances et des pratiques féminines,
des fils et des aiguilles, des tissus et des machines à coudre qui ont été empiriquement
et, d'une certaine manière, continuent à être transmises de génération en génération des
femmes. Parmi les savoirs et les pratiques qui entourent le monde féminin, c'est dans le
savoir-faire de la couture que réside l'objet de cette dissertation qui a comme
protagonistes les travailleuses à la maison.À cette fin, mon terrain de recherche se
concentre particulièrement dans la ville de Santa Maria/RS, bien que j'ai également
travaillé avec deux interlocutrices qui habitent dans d'autres villes et qui ont joué un rôle
important dans le développement de la recherche.Sur des mémoires de neuf femmes
couturières sur leurs trajectoires dans le monde du travail, j'essaie de comprendre
comment la pratique de la couture prolonge comment un savoir-faire dans la vie
quotidienne, en tenant compte des changements technologiques, démographiques et du
monde du travail contemporain. Devant des récits du travail, des interviews,
del’observation participante, des croquis, des extraits d'œuvres littéraires et des
mémoires alliés à des photographies, j'essaie de «coudre», dans cette dissertation, la
méthode ethnographique de la durée et de l'ethnographie de rue. Ainsi, l’étude sur le
terrain a été effectué dans l'environnement de la rue, dans les merceries et dans
l'ambiance domestique, c'est-à-dire, dans les salles de couture.En se trouvant la couture
comme un élément de la vie en perpétuel changement, j'ai cherché à souligner que la
couture persiste au fil du temps, même face à des changements dans la façon dont nous
nous habillons et produisons des vêtements dans notre société. J’ai remarqué que la
couture perdure comme un métier à prédominance féminine et est toujours réalisée dans
la maison en raison de la concilier avec les prises en soins des personnes et l’ambiance
chez elles. La couture est également préservée comme un savoir-faire transmis entre
femmes de différentes générations. En d’autres termes, le contexte de Santa Maria qui
se présente comme une ville universitaire et militaire, favorise la permanence des
pratiques de couture en vue de la demande de services par ce public, comme la
fabrication de robes de soirée et d'uniformes militaires. Ces circonstances montrent
comment la couture réverbèredans les pratiques, dans la ville, dans les corps et dans la
vie des femmes couturières.

Mots-clés: Couture. Couturières. Savoirs et pratiques. Travail. Durée


20
21

LISTA DE FIGURAS, ILUSTRAÇÕES E IMAGENS

Figura 1 – Arte de Georgia Valentina Zampiere ............................................................. 13

Figura 2 e 3 – Anúncios veiculados no dia 6 de outubro de 1940 no jornal “O Estado de


São Paulo” ....................................................................................................................... 69

Figura 4 – Anúncio veiculado no dia 20 de outubro de 1940 no jornal “O Estado de São


Paulo” .............................................................................................................................. 70

Figura 5 – “As alunas do Curso Rolantense (1960)” ....................................................... 73

Figura 6 – Curso de corte e costura ................................................................................. 74

Figuras 7, 8, 9 e 10 – Dona Renda e Dona Chita, respectivamente, com seus olhares


atentos ora na costura, ora na rua .................................................................................... 90

Figura 11 – Cetim na vitrine de sua loja .......................................................................... 91

Figura 12 – Linho em "Keep Calm and Sey On" ............................................................. 95

Figura 13 – Alinhavos no Facebook ................................................................................ 96

Figura 14 – Alinhavos no “Elo7” .................................................................................... 96

Figura 15 – Dona Filó, costureira .................................................................................... 97

Figura 16, 17 e 18 – Dona Lã e suas mãos marcadas pelo tempo ................................... 99

Figura 19 – Croqui dos bairros de Santa Maria (confeccionado com a ajuda de Mariane
Gomes Farias) ................................................................................................................. 106

Figura 20 – Croqui dos armarinhos localizados no centro da cidade (confeccionado com


a ajuda de Mariane Gomes Farias) ................................................................................. 108

Figura 21 – Vizinhança de Dona Chita no bairro Divina Providência ........................... 116

Figura 22 – Dona Chita e seu filho Diego ...................................................................... 117

Figura 23 – Pirâmide etária do bairro Divina Providência ............................................. 118

Figura 24 e 25 – Crianças brincam no Km2 ................................................................... 121

Figura 26 – Antiga Estação da Viação Férrea localizada no Km2 ................................. 122

Figura 27 – Diego e Seu Miro em frente à fábrica de móveis, onde costumava ser a
estação ............................................................................................................................ 122

Figura 28 – A fábrica de móveis em seu interior ............................................................ 122


22

Figura 29 – Rua onde reside Dona Renda ...................................................................... 123

Figura 30 – Pirâmide etária do bairro Juscelino Kubitschek .......................................... 126

Figura 31 – Entardecer na UFSM, localizada no bairro Camobi ................................... 127

Figura 32 – Pirâmide etária do bairro Camobi ............................................................... 128

Figura 33 – Croqui dos armarinhos localizados no Bairro Camobi (confeccionado com a


ajuda de Mariane Gomes Farias) .................................................................................... 129

Figura 34 – Caminhos percorridos pela cadeira e postura de Dona Chita ..................... 159

Figura 35 – Gestos e técnicas desempenhados por Dona Chita ..................................... 160

Figura 36 – Cetim e seus gestos impressos na confecção de um casaco masculino ...... 162

Figura 37 – “Entre Linhas” ............................................................................................. 163

Figura 38 – “Teias de aranha” ........................................................................................ 164


23

LISTA DE QUADROS E TABELAS

Quadro 1 – Perfil das Mulheres Costureiras 01 .............................................................. 100

Quadro 2 – Perfil das Mulheres Costureiras 02 .............................................................. 101


24
25

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

SENAC – Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial

SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

PL – Projeto de Lei

PEC – Proposta de Emenda Constitucional

Abit – Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção

STIC/GO – Sindicato dos Trabalhadores em Confecção de Goiânia

SOAC/BH – Sindicato dos Oficiais Alfaiates, Costureiras e Trabalhadores nas


Indústrias de Confecções de Roupa, Cama, Mesa e Banho de Belo Horizonte e Região
Metropolitana

SOACTICRGA/RN – Entidade Sindical do Rio Grande do Norte SOACTICRGA/RN

CACC – Centro de Apoio a Criança com Câncer

HUSM – Hospital Universitário de Santa Maria

INSS – Instituto Nacional do Seguro Social

IBGE – Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

UFSM – Universidade Federal de Santa Maria

UFN – Universidade Franciscana

ULBRA – Universidade Luterana do Brasil

FAMES – Faculdade Metodista de Santa Maria

FISMA – Faculdade Integrada de Santa Maria

FADISMA– Faculdade de Direito de Santa Maria

FAPAS – Faculdade Palotina de Santa Maria

ADESM – Agência de Desenvolvimento de Santa Maria

PAC – Programa de Aceleramento da Economia

BASM – Base Aérea de Santa Maria

LER – Lesões por Esforços Repetitivos

DORT – Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho


26

ASO – Ambiente Sem Objetos


27

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO: “Tirando as medidas” ......................................................................... 29


1 ALINHAVANDO TEXTOS E METODOLOGIAS ................................................ 32
1.1 A PROCURA PELOS AVESSOS: O DESAFIO E AS DESCOBERTAS
BIBLIOGRÁFICAS ACERCA DA COSTURA COMO SABER FAZER .................... 32
1.2 SABERES E FAZERES METODOLÓGICOS: DA INSERÇÃO AO CAMPO ÀS
TÉCNICAS DE PESQUISA ........................................................................................... 40
1.2.1 “Tempo entre costuras”: a costura vista sob a perspectiva da etnografia da
duração ........................................................................................................................... 43
1.2.2 Sobre costuras e técnicas de pesquisa ................................................................. 49
1.3 DESCOSTURANDO “IMAGERIES”, OU DE COMO OS ESTUDOS
FEMINISTAS E DESCOLONIAIS ME AJUDARAM A PENSAR O CAMPO DE
PESQUISA COM MULHERES COSTUREIRAS ......................................................... 55
2 TECENDO HISTÓRIAS E RECONHECIMENTOS DO TRABALHO DA
AGULHA ........................................................................................................................ 64
2.1 DA COSTURA A MÃO AO DESENVOLVIMENTO DAS MÁQUINAS: A
COSTURA DOMICILIAR COMO UMA OCUPAÇÃO COTIDIANA DAS
MULHERES .................................................................................................................... 64
2.2 ENTRE COSTURAS E RECONHECIMENTOS: UM DIÁLOGO COM A
SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES ............................................................................... 76
2.2.1 Sobre afetos: costura e cuidado na vida das mulheres ...................................... 81
2.3 APRESENTANDO AS MULHERES COSTUREIRAS EM TEXTOS, IMAGENS
E TECIDOS ..................................................................................................................... 87
2.3.1 Chita: Dona Gessi ................................................................................................. 89
2.3.2 Renda: Dona Anilda ............................................................................................. 90
2.3.3 Algodão: Dona Georgina ..................................................................................... 91
2.3.4 Jeans: Taci ............................................................................................................. 92
2.3.5 Cetim: Dona Rosani .............................................................................................. 92
2.3.6 Paête: Dona Jussara ............................................................................................. 94
2.3.7 Linho: Fernanda ................................................................................................... 95
2.3.8 Filó: Dona Docelina .............................................................................................. 97
2.3.9 Lã: Dona Clara ..................................................................................................... 98
3 COSTURANDO OS RETALHOS DE UMA CIDADE ......................................... 105
28

3.1 RUA, SOCIABILIDADES E AVIAMENTOS: A CIDADE DE SANTA MARIA


ATRAVÉS DOS ARMARINHOS DE COSTURA ....................................................... 105
3.2 CAMINHADAS ETNOGRÁFICAS: A RUA ......................................................... 110
3.3 SOBRE SOCIABILIDADES NOS ARMARINHOS E MUDANÇAS E
PERMANÊNCIAS NA COSTURA ............................................................................... 113
3.3.1 O bairro de origens divinas (Divina Providência) ............................................ 116
3.3.2 O bairro de origens presidenciais (Juscelino Kubitschek) ............................... 123
3.3.3 O bairro de origens guaranis (Camobi) ............................................................. 126
3.4 COSTURANDO OS RETALHOS DE UMA CIDADE .......................................... 130
4 VIDAS E CORPOS “CERZIDOS” PELO TRABALHO DA AGULHA ............ 123
4.1 O QUE ENCONTREI POR ENTRE COSTURAS: SABERES E FAZERES
FEMININOS .................................................................................................................. 133
4.1.1 Uma contextualização acerca dos saberes e fazeres ......................................... 134
4.2 MANEIRAS DE FAZER E APRENDER ................................................................ 139
4.2.1 Maneiras de fazer e aprender: o cotidiano e a sala de costura ....................... 143
4.3 CORPOS, GESTOS, TÉCNICAS E COISAS ......................................................... 153
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: “Arremates” ............................................................. 167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: “Aviamentos” ............................................ 173
29

INTRODUÇÃO: “Tirando as medidas”

O momento atual em que vivemos é marcado pelo consumo exacerbado. É


tempo de gigantescos “outdoors” anunciando grandes marcas, é tempo do “fashion” e
das lojas de departamento. E para aquelas e aqueles que não possuem condições
econômicas para este tipo de consumo, resta apenas às lojas de menos prestígio que
tentam seguir a tendência da moda com as chamadas “imitações” de grandes marcas.
Aparentemente, parece que o tempo de escolher tecidos, folhear revistas e visitar uma
costureira para tirar as medidas e encomendar uma nova roupa já não coincide com o
momento em que vivemos. As pessoas estão sempre correndo em seus cotidianos,
apressadas para dar conta dos afazeres domésticos, do trabalho, dos estudos, das filhas e
filhos e também dos animais domésticos, do universo público e do privado. Assim,
parece mais justo e rápido aderir ao consumo de roupas prontas para vestir. Neste
contexto, eis a pergunta: o tempo de antigamente, aquele em que nossas avós e avôs se
referem, já seria mesmo tempo passado? E o tempo de ir à costureira teria lá ficado?
É interessante ressaltar que a presente dissertação é fruto de uma pesquisa que
venho desenvolvendo desde a graduação. Pois, em meu trabalho de conclusão de curso,
buscava investigar o trabalho da costura com homens e mulheres (KÄERCHER, 2016).
Assim, pude observar que o trabalho feminino era visto ora apenas como “ajuda” para
os alfaiates, ora apenas como um “hobby” para as “moças”. Ou seja, em questões
profissionais, configurava-se como um trabalho que possuía menos rigor técnico e que
por isso acabava sendo menos qualificado que o trabalho dos homens.
Um dos motivos mais evidentes durante a pesquisa e que me fez perceber o
porquê do trabalho feminino equivaler como um trabalho “menor” está relacionado à
divisão sexual do trabalho. Pois, enquanto os homens alfaiates exercem – ou exerciam,
frente à atual escassez da profissão de alfaiate – o seu ofício fora das casas, ou pelo
menos sem o compromisso com as atividades domésticas, as mulheres fazem em suas
próprias casas o seu ambiente de trabalho rentável: as salas de estar se transformam em
pequenos ateliês de costura, onde os retalhos jogados no chão formam novos tapetes e o
som da máquina de costura se mistura com o áudio da novela das oito. Desta forma, a
atividade de costura acaba por se confundir e mesclar com o trabalho doméstico e de
cuidado, paulatinamente relegados ao universo feminino. A partir deste cenário, passei a
compreender o ambiente doméstico como um importante gerador de saberes e fazeres
constituídos, geralmente, numa rede de transmissão feminina.
30

Neste momento, com a pesquisa atual de mestrado busquei mostrar como


mesmo no universo do pronto para vestir, as costureiras r(existem). Elas nunca “saíram
de moda” e ainda se fazem muito presentes na confecção doméstica de roupas na nossa
sociedade, especialmente na cidade de Santa Maria/RS. É também a cidade onde a
costura se reinventa e garante o sustento de muitas mulheres a partir das festas de
formatura que ocorrem devido ao grande número de universidades e escolas.
A costura se faz presente ainda no comércio central, onde embora escondidos
entre fachadas discretas e portas estreitas se encontram os armarinhos de costura.
Lugares que fornecem todo o tipo de materiais necessários para que os tecidos possam
ser trabalhados nas máquinas de costura. Os armarinhos, lojas, ateliês ou salas de
costura instaladas no comércio ou nas próprias residências das mulheres são espaços de
intenso trânsito de clientes e sociabilidades, onde a costura se reinventa e encontra
meios por onde durar.
Dessa forma, com uma metodologia etnográfica voltada para a duração, lanço
mão do seguinte problema de pesquisa: como a prática da costura perdura enquanto
saber no cotidiano das mulheres? Pode-se afirmar que a costura fez parte – e ainda faz –
do cotidiano das mulheres. Este cotidiano já foi retratado na poesia, na literatura e em
outras pesquisas acadêmicas. Procuro, então, olhar para ele a partir destes materiais,
somados dia a dia de nove interlocutoras, apreendido por meio da observação
participante, de fotografias, de entrevistas abertas e semi-estruturadas e da Internet, mais
precisamente do grupo “Clube da Costureira” na rede social Facebook.
Para tanto, a dissertação encontra-se estruturada em quatro capítulos. No
primeiro capítulo, estabeleço uma apresentação do tema de pesquisa por meio de uma
revisão bibliográfica, onde elucido minha busca pelos avessos das histórias que vem
sendo contadas sobre a costura. Além de descrever alguns dos aspectos da minha
inserção em campo com as costureiras, discorro sobre os caminhos metodológicos
percorridos, enfatizando as escolhas das técnicas de pesquisa e de minha posição frente
aos dilemas epistemológicos, feministas e descoloniais enfrentados ao longo do
percurso etnográfico.
O segundo capítulo configura-se como o momento em que busco tecer as
mudanças e permanências da costura no cotidiano das mulheres, baseadas nas narrativas
das interlocutoras e também nas referências bibliográficas sobre o tema. Neste capítulo,
discorro sobre a regulamentação da profissão de costureira num diálogo com as teorias
desenvolvidas no âmbito sociológico das profissões. Mas, principalmente, intento
31

descrever as nove costureiras que colaboraram com esta pesquisa. Estabeleço uma
comparação com o próprio universo da costura, onde utilizo os tecidos como eventuais
fatores de representação por meio de codinomes para cada uma delas.
O antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira chamou atenção para o fato de que
as(os) antropólogas(os) estão o tempo inteiro negociando sua permanência em campo
durante o processo de pesquisa. Não somente pelo fato de que para desenvolver a
pesquisa é fundamental que o uso dos dados e a convivência com fins de observação
participante sejam consentidos, mas também porque a pesquisadora e o pesquisador se
relacionam com os nativos enquanto atriz ou ator social. Ou seja, as pesquisadoras e os
pesquisadores participam e compartilham experiências com o seu grupo pesquisado
(OLIVEIRA, 2004). Por isso, torna-se importante atentar para o diálogo e a negociação
ética estabelecida entre mim e as costureiras. Concordamos que os seus nomes
verdadeiros seriam explicitados, como uma forma de reconhecer os trabalhos por elas
realizados. Vale ressaltar que outras mulheres também fizeram parte desta pesquisa,
embora, não se configurem como interlocutoras diretas. São mulheres que fazem parte
das minhas relações familiares e afetivas e as suas vivências contribuíram com a minha
reflexão sobre o universo da costura. Utilizo, como mencionado anteriormente, os
tecidos como aportes descritivos no decorrer do texto.
Já no terceiro capítulo, procuro descrever o lugar onde estão situadas as
mulheres costureiras na cidade. Para tanto, um entrelaçamento de autoras e autores é
utilizado com fins de dar vida a uma etnografia de rua, onde descrevo uma parcela da
vida social em Santa Maria através da busca pelos chamados armarinhos de costura. O
resultado dessa experiência é a “costura” destes retalhos e fragmentos encontrados pela
cidade que quando apresentados no capítulo revelam muito acerca das permanências e
mudanças no universo da costura e do pronto para vestir.
Finalmente, no quarto capítulo, deixo o espaço das ruas e dos bairros para
adentrar no ambiente de trabalho das costureiras, mais especificamente nas salas de
costura. Aqui, tornou-se significativo atentar para as suas maneiras de saber, fazer e
aprender, que juntas descortinam um fazer disciplinador das mentes e corpos para o
trabalho. Assim, ao mesclar a minúcia dos fazeres artesanais e o esforço diário
desenvolvido frente às máquinas de costura, o trabalho da agulha vai marcando e
“cerzindo” os corpos das mulheres.
32

CAPÍTULO 1: “Alinhavando” textos e metodologias

Este primeiro capítulo possui o objetivo de apresentar o tema de pesquisa para as


leitoras e leitores. Bem como, elucidar meus percursos e escolhas teórico-
metodológicas, de modo a oferecer subsídios para a compreensão do próximo capítulo,
no qual efetivamente apresentarei as interlocutoras desta pesquisa, as costureiras. Para
tanto, este capítulo divide-se em três tópicos. No primeiro deles, através de uma revisão
bibliográfica, viso elucidar minha procura pelos avessos, ou seja, a busca por
bibliografias que contemplam o saber fazer da costura na perspectiva específica que
almejei pesquisar. No segundo tópico, especifico a metodologia de pesquisa e, relato
minha inserção no trabalho de campo, as técnicas e os procedimentos conduzidos
durante a investigação nos locais onde foi realizada a etnografia. No terceiro e último
tópico deste capítulo, trago algumas reflexões e tensionamentos epistemológicos a
respeito da construção feminista e descolonial de minha dissertação.

1.1 A PROCURA PELOS AVESSOS: O DESAFIO E AS DESCOBERTAS


BIBLIOGRÁFICAS ACERCA DA COSTURA COMO SABER FAZER
“Essa história de idealismo, de pesquisa
pura, da busca pela verdade em todas as
suas formas, está tudo muito bem, mas chega
uma hora que você começa a desconfiar,
que, se existe uma verdade realmente
verdadeira, é o fato de que toda a infinidade
multidimensional do Universo é, com
certeza quase absoluta, governada por
loucos varridos.” (Adams Douglas em, O
Guia do Mochileiro das Galáxias, 2009, p.
190).

De início, é preciso frisar que não são numerosos os estudos sobre o saber fazer
da costura no âmbito doméstico. Na busca por referenciais bibliográficos sobre o
universo da costura, a moda apresenta-se enquanto sinônimo. São diversas as
abordagens sobre as transformações das roupas e da moda que vão desde a “História do
vestuário no ocidente” (2010), de François Boucher, até as teóricas com perspectivas
em maior grau no universo social como “A cidade e a moda” (2002), de Maria do
Carmo Rainho, “A moda e seu papel social” (2006), de Diana Crane e “O espírito das
roupas” (1987), de Gilda de Mello e Souza. Tais estudos contribuem para compreender
as mais diversas práticas de distinção nas sociedades, partindo de um mesmo ponto: o
33

modo de vestir. Afinal, mudanças no vestuário são também sinais de mudanças do


modo de viver nas sociedades. Entretanto, acerca do trabalho das mulheres costureiras e
suas vivências cotidianas a bibliografia vai se tornando mais rarefeita.
Dos estudos sobre a moda, destaco aqui o trabalho da historiadora americana
Anne Hollander, intitulado “O sexo e as roupas: a evolução do traje moderno” (1996).
Neste livro, a autora estabelece uma relação entre roupas e sexualidade a partir da
alfaiataria masculina moderna. Para isso, Hollander descreve o terno como um traje que
desenha as linhas do corpo masculino tais quais elas o são, quase como uma segunda
pele num ideal de esculturas gregas. Já os longos vestidos e saias faziam do corpo
feminino um grande mistério, onde não só escondiam, mas alteravam partes destes
corpos, a exemplo dos corpetes acoplados aos vestidos. Ao longo da história, as vestes
masculinas forneceram um padrão estético ao qual a moda feminina respondeu. Logo,
após os anos 1960, a moda feminina passou a ser uma analogia das roupas dos homens,
vestindo mulheres com uma aparente semelhança. Moda também é sexualidade, afirma
a autora, pois trabalha com imagens projetáveis nos corpos. Corpos que se vestem para
se sentirem atraentes e parecerem comuns na sociedade. Anne Hollander trabalha
[...] com a ideia de que a sexualidade e a imaginação são o que originalmente
produzem a extraordinária coleção de imagens que podem fazer com que o
dinheiro e o poder estejam refletidos nas roupas junto com outras coisas
refletidas por elas. (HOLLANDER, 1996, p.25).

Assim, as roupas do mesmo modo que ocultam podem revelar muito sobre os
corpos ou sobre nós mesmas(os). No entanto, considero importante investigar não
somente o desenvolvimento das roupas, mas o fazer daquelas e daqueles que as
produzem e, em certa medida, a autora me ajudará a desenvolver uma parcela da
história da costura no segundo capítulo, no qual retomo esta discussão.
Retornando à busca por bibliografias sobre costura, um grande número de
“manuais para moças”, que se destinam ao aprendizado da costura também foi
encontrado, mas eles acabam por enfatizar preferencialmente o corte, a modelagem e as
técnicas. No entanto, caso sejam tomados como objetos de estudos, configuram-se
como fontes documentais e históricas para pesquisadoras e pesquisadores que desejam
entender o trabalho feminino nos espaços domésticos. Saliento aqui a análise realizada
pelas pesquisadoras Alves e Cunha (2009), intitulada “Livro de costura Singer: fonte
documental para os estudos de trabalho e gênero”, que traz considerações a respeito do
aprendizado da costura no ambiente doméstico e a sua relação com a divisão sexual do
trabalho.
34

Ao mudar a chave de pesquisa, alterando o foco do fazer para quem o


desempenha, ou seja, para as pessoas que costuram, encontrei trabalhos sobre os antigos
rigores técnicos dos mestres alfaiates, o envelhecimento dos trabalhadores e o
desaparecimento da profissão no mundo atual (SAUTCHUK; et al, 2009; PIMENTA,
2008). Existem também as pesquisas que se referem às más condições de trabalho em
que estão submetidas às trabalhadoras imigrantes na indústria da confecção de roupas
no Brasil (COUTINHO, 2011). Porém, é, majoritariamente, nos estudos sobre o
processo de terceirização realizado pela indústria de roupas que se concentram os
maiores esforços para se pensar o trabalho da costura. Uma vez que o processo de
trabalho a domicílio convoca um grande número de costureiras brasileiras e imigrantes
Entre aproximadamente os anos 1980 e 2010, os estudos sobre reestruturação
produtiva destacam a produção têxtil no trabalho a domicílio das costureiras. Em vista
disso, destaco o trabalho das sociólogas Magda Neves e Célia Maria Pedrosa (2007) que
analisam a precarização do trabalho de costureiras domiciliares no processo de
terceirização numa cidade de porte médio em Minas Gerais. Segundo as autoras, de um
lado existem muitas mulheres que abandonam o trabalho formal da fábrica devido à
necessidade de cuidar dos filhos e das tarefas domésticas e, de outro lado, existe o
empregador buscando flexibilidade e transferência de riscos, o que resulta numa
redução de custos muito significativa no atual contexto competitivo do mercado. Nesse
tipo de inserção de trabalho, não existem formas de se regular o tempo, o trabalho
rentável se mistura com outros tipos de trabalho como o doméstico e o de cuidado dos
filhos, de modo que a jornada laboral se estende de forma perversamente contínua. Isso
significa que as trabalhadoras continuam fazendo serviços para as fábricas dentro de
suas casas, mas não possuem o seu tempo de trabalho regulado, com ausência de férias
e sem garantia trabalhista alguma.
Em “O avesso da moda: o trabalho a domicílio na indústria da confecção no
Rio de Janeiro” (1985), a cientista social Alice Rangel de Paiva Abreu busca
compreender a situação em que estavam situadas as costureiras que trabalhavam para a
indústria de confecção dentro de suas próprias casas, conciliando trabalho doméstico e
trabalho remunerado. Segundo a autora, a transformação dos processos de produção
capitalista aconteceu de forma mais tardia na indústria têxtil quando comparada a outras
indústrias na primeira fase da Revolução Industrial no Brasil. Isso acarretou no
crescimento de trabalhadoras que supriam parte da demanda de trabalho fabril em
condições muito mais precárias do que estavam inseridas as “internas” da fábrica. Pois,
35

sendo um trabalho realizado no ambiente doméstico, não estava sujeito a


regulamentação laboral. Ou seja, as mulheres situadas no trabalho a domicílio estavam
diante de uma invisibilidade, mesmo que as roupas produzidas por elas fossem
posteriormente levadas para vitrines de “boutiques” do Rio de Janeiro. Em síntese,
Abreu (1985) percorre a evolução do trabalho a domicílio para, então, levar leitora e
leitor para a década de 1980 no Rio de Janeiro, onde o trabalho a domicílio continuava
cada vez mais crescente ao longo de sua pesquisa.
É importante perceber que a autora aponta para o fato de que o trabalho a
domicílio sempre acompanhou a vida das mulheres, portanto ele não efetivamente
surgiu para suprir as necessidades do capitalismo em ascensão, mas este último, em
realidade, apropriou-se do saber tradicionalmente feminino da costura para transformá-
lo em valor de troca. Nas palavras da socióloga Heleieth Saffioti no prefácio do livro de
Abreu, "a demolição dos saberes femininos por parte do capital revela-se mais grave, na
medida em que afeta o cotidiano de todos os membros da família. Lembre-se, a título de
ilustração, a destruição do saber feminino no campo da Medicina". (SAFFIOTI, 1985,
p.23). Assim, o trabalho tradicional da costura sofreu readequações, mas não foi extinto
durante a revolução industrial e no momento de consolidação do capitalismo. O estudo
realizado por Abreu se aproxima, neste sentido, do estudo de Wanda Maleronka (2007),
pois, ambos reforçam a relevância de se pesquisar a costura realizada no ambiente
doméstico, mesmo que não exclusivamente para a indústria da confecção, como venho
propondo em minha pesquisa.
O livro “Fazer roupa virou moda: um figurino de ocupação da mulher” é a
publicação da tese de doutorado da historiadora Wanda Maleronka e, apesar de se
referir ao mundo da moda, a autora perpassa anos do ofício feminino da costura
domiciliar em sua escrita. Para começar, o livro publicado pela editora SENAC São
Paulo no ano de 2007, têm ilustrado em sua capa a obra “Costureiras” (1950) de Tarsila
do Amaral. As quinze costureiras de Tarsila direcionam seus olhares para os afazeres
que desempenham. Algumas costuram a mão, poucas na máquina de costura, outras
ainda contemplam os seus feitos criados e vestidos por manequins. Costureiras jovens e
pertencentes ao trabalho informal e reprodutivo do ambiente doméstico que está
marcado pela presença de um gato no canto esquerdo do quadro. Há quem diga que a
obra representa o demorado processo de industrialização do Brasil. Deveras, a obra
“Costureiras” está repleta de detalhes que dizem respeito ao universo do popular e dos
saberes femininos delineados e preenchidos pelas cores tarsilianas.
36

Logo, a partir da capa do livro já podemos pressupor que a escrita de Maleronka


retratará o cotidiano das mulheres costureiras. Aliás, efetivamente, retrata o cotidiano e
as trajetórias de vida de costureiras e modistas da grande São Paulo na primeira metade
do século XX. Mediante uma pesquisa que combina fontes literárias, almanaques,
anúncios publicitários, depoimentos de costureiras e modistas, o Boletim do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio de 1934 e a documentação da Escola Profissional
Feminina SENAI no Brás, a autora desenvolve uma pesquisa pioneira sobre o universo
da costura. Descreve a costura das trabalhadoras do universo da moda como um meio
por onde estas mulheres garantiam suas sobrevivências, tendo em vista a situação de
vulnerabilidade em que antes estavam colocadas.
Considero como de grande relevância no livro de Maleronka a colocação de que
o consumo da moda proporcionou não somente o desenvolvimento da grande indústria
de confecção, mas também o desenvolvimento das pequenas oficinas de costura na
medida em que o universo da moda transforma constantemente os modos de vestir, os
estilos de vida e a economia. Assim, torna-se possível afirmar que o rápido
desenvolvimento da indústria têxtil não tornou as costureiras domiciliares extintas em
relação às costureiras operárias. Mas ambas, as “trabalhadoras da agulha”, acabaram
coexistindo neste período. Mostrarei ao longo de meu trabalho como as costureiras
domiciliares ainda coexistem e resistem num mundo onde o vestir-se com tantas opções
de compra de roupas confeccionadas aparenta grande facilidade. No mais, o valioso
trabalho de Maleronka me acompanhará ao longo dos próximos capítulos, pois o mesmo
é de leitura obrigatória para aquelas e aqueles que desejam compreender o universo
feminino das linhas e agulhas.
Posteriormente, depois de compreender a costura propriamente como um saber
fazer que permeava o universo das mulheres desde muito tempo, encontrei quiçá a mais
necessária e complexa referência bibliográfica para a minha pesquisa, o livro “Façons
de Dire, Façons de Faire: la laveuse, la couturière, la cuisinière” (1979) da etnóloga
francesa Yvonne Verdier. O livro oferece uma descrição precisa acerca dos saberes e
fazeres das mulheres viventes na vila francesa de “Minot” (Côte d’Or). Segundo
Verdier, os saberes da lavagem, da costura e da cozinha fazem parte de uma cultura
feminina e organizam cosmologias, ou seja, contribuem para uma ordenação do mundo
que não é escrita em lugar nenhum, mas costumeira. Isso quer dizer que essas atividades
técnicas que as mulheres desempenham em grande maioria dentro de seus próprios lares
37

possuem uma função quase que ritual de “font la coutume”, de fazer o costume ou fazer
o hábito.
As funções tradicionais destinadas às mulheres, segundo esta autora, conferem a
elas algo que se tornou um destino feminino que é o de estabelecer o ritmo do tempo e
da vida em comunidade, fator determinante para o bom funcionamento das relações
cotidianas. Dessa forma, quando atento para o cotidiano, interessa-me encontrar aquilo
que é invisível aos olhos dos demais (CERTEAU, 1994). Por isso, este trabalho busca
apreender pelo menos parte daquilo que trouxe Verdier em seus estudos, mulheres em
seus trabalhos cotidianos da costura, em seus comportamentos, aspirações, sonhos e
histórias percorridas pelas minhas inquietações intelectuais e aspirações antropológicas.
Todos estes estudos são importantes para entendermos de maneiras diferentes
algumas das parcelas que compõem o universo da costura. Saliento apenas que o foco
desta pesquisa não recairá predominantemente sobre estes recortes discutidos até o
momento. Procuro pelos avessos das histórias que já vem sendo contadas1 e não
somente pelo avesso da moda como o importante estudo de Abreu (1985) nos conta.
Portanto, o que pretendo alinhavar aqui faz parte daquilo que sinto falta ao ler sobre a
costura, ou seja, sobre as histórias das mulheres que costuram, sobre as suas memórias e
os seus saberes que, empiricamente, eram – e em alguns casos ainda são – passados de
geração em geração para as demais mulheres da família, vizinhas ou conhecidas.
Quero pensar sobre as mulheres comuns e sobre os seus cotidianos nas salas de
costura, espaços estes que antes do saber fazer da atividade costureira eram
configuradas apenas como salas de estar. Quero falar daquilo que já foi costumeiro e
que atualmente se transformou em algo excepcional, as mulheres comuns e suas
costuras cotidianas. Quero investigar as mudanças e as permanências não apenas no
modo de vestir ou do maquinário da indústria da confecção como venho encontrando
nas produções mais recentes. Mas isso também não significa que alguns dos recortes
citados acima não perpassem as trajetórias das mulheres integrantes desta pesquisa.

1
Na procura por artigos que contemplassem as temáticas dos saberes e fazeres femininos, costura e
domesticidade no banco de dados do Scielo, obtive os seguintes resultados a partir de determinadas
palavras-chaves: saberes femininos (2 artigos); fazeres femininos (0 artigos); gênero e saber feminino (1
artigo); gênero e costura (3 artigos); domesticidade (20 artigos); costura (79 artigos); costura doméstica (1
artigo); costura a domicílio (3 artigos); costureira (4 artigos); costura e trabalho (41 artigos); costura e
trabalho doméstico (1 artigo); história da costura (1 artigo); história das costureiras (0 artigos); cotidiano
(3533 artigos); cotidiano doméstico (14 artigos); cuidado (11730 artigos); cuidado feminino (269 artigos);
cuidado e costura (0 artigos). Diante disso, a referida busca vem apenas reforçar a relevância de estudar
temas como estes em nossa área de conhecimento, dando ênfase para as narrativas e memórias sobre a
costura e demais saberes e fazeres que circundam o ambiente doméstico das mulheres comuns.
38

Afinal, a vida social é assim mesmo, possuidora de maior complexidade do que os


nossos axiomas científicos e metodológicos conseguem contemplar.
Este é um estudo com mulheres de diferentes estratos sociais, gerações, poderes
aquisitivos, graus de escolaridade e de diferentes estilos de vida, mas também é um
estudo com mulheres que falam o idioma comum da costura e de outros saberes que
permeiam o universo feminino, como o cuidado e os afazeres domésticos. Dedico-me
em atentar para este universo feminino dos saberes e fazeres e as suas transformações e
permanências no mundo contemporâneo. Interessa-me compreender, principalmente, os
processos de duração2 do saber fazer da costura nos cotidianos do lar.
Dito isso, ao pensarmos sobre este outro ângulo ou avesso da costura, teremos
como sujeitos transmissores do saber de costurar, geralmente, as mulheres mais velhas
que aprenderam as técnicas desta atividade com suas mães, avós e/ou tias e que
transmitem estes saberes para suas filhas, netas, sobrinhas e/ou vizinhas. Essa imagem
da mulher sábia, “grand-mère” e transmissora de saberes é configurada na maioria das
vezes dentro do ambiente doméstico, e mesmo que esse seja julgado por muitos estudos
como um tradicional ambiente de confinamento para as mulheres, é nele que elas
acabam por desenvolver as estratégias que a vida comum exige. Quer dizer, o cotidiano
se dá no espaço doméstico, lugar onde ocorrem contínuas produções de significados,
onde busco as narrativas das práticas comuns e encontro as artes de fazer das
costureiras.
Desde já, é de extrema importância esclarecer que quando me reporto no
decorrer do texto, às “mulheres costureiras” ou as “mulheres que costuram”, não
restrinjo o universo da pesquisa apenas àquelas mulheres que trabalham a domicílio, tão
pouco me refiro as mulheres que somente trabalham nas fábricas de confecção. O grupo
de mulheres que abordo faz parte de uma rede de contatos que vim construindo desde o
meu trabalho de graduação3. Nesta rede, algumas das interlocutoras se conhecem ou até
trabalham/trabalhavam juntas em algum momento de suas vidas. Outras fazem parte da
mesma família, como avós e netas. Elas são mulheres que, na maioria das vezes,
aprenderam a costurar com outras mulheres, de maneira informal. O saber destas foi

2
Retomo, especificamente, a discussão sobre os processos de duração mais adiante no texto, no subtópico
1.2.1 Tempo entre costuras, onde utilizarei as ideias das autoras Eckert e Rocha (2010) para desenvolver
a metodologia da duração.
3
Na graduação, meu trabalho de conclusão de curso intitulado “Tecendo Narrativas: Gênero e Trabalho
no Aprendizado da Costura” (KÄERCHER, 2016) versou sobre as narrativas do trabalho de costureiras e
alfaiates. No próximo tópico, retomo meu TCC a fim de explicitar melhor a minha rede de interlocutoras,
tecida desde o meu primeiro trabalho envolvendo a temática da costura.
39

passado de geração em geração junto com outros saberes que circundam o ambiente
doméstico; o fazer aqui é puramente experiencial, baseado no “aprendi fazendo” e que
juntos promovem a obtenção de lucros para complementar a renda delas ou da família.
Portanto, nem todas as mulheres possuem a profissão de costureira, mas todas possuem
em comum – embora com diferentes configurações – a atividade da costura em seus
cotidianos.
De acordo com Maleronka (2007), as historiadoras encontraram poucos
vestígios das atividades femininas através dos séculos, acredita-se que tenha sido por
causa da invisibilidade dos seus afazeres, tendo em vista que os tipos de trabalhos
desenvolvidos pelas mulheres nem sempre foram vistos como atividades que possuem
valor. Para as mulheres terem garantido o seu lugar na história dos trabalhadores do
mundo não bastou exercer uma atividade produtiva, ou reprodutiva4 seria necessário que
as atividades desenvolvidas fossem devidamente reconhecidas. Pensemos que mesmo
nos dias atuais, certas atividades femininas ainda não são reconhecidas como
propriamente laborais. Portanto, o que restaria para as mulheres de outrora? De qualquer
forma, as produções acadêmicas atentas ao cotidiano, aos saberes e fazeres que
circundam o interior dos lares vem renovando e delineando uma história das mulheres.
Outro fator a ser considerado, com a ajuda da autora Elizabeth Bortolaia Silva
(1998), é o desenvolvimento dos eletrodomésticos, principalmente os pertencentes à
linha branca5. A máquina de lavar roupa, a geladeira, o fogão a gás, o forno microondas,
e etc., são fundamentais nas tecnologias do lar e nas mudanças dos saberes e fazeres que
circundam o ambiente doméstico, por isso, torna-se relevante mencioná-los nesta
pesquisa, sobretudo quando falo de trabalho feminino.
As transformações relacionadas ao ambiente doméstico vêm modificando a
relação das mulheres com a atividade da costura. Especialmente, as transformações
tecnológicas (da invenção do fogão elétrico até a invenção do forno microondas ou da
dispensa da máquina de costura para a essencialidade da máquina de lavar),
demográficas (alteração no tamanho das famílias e composição do grupo doméstico), da
organização do mundo do trabalho (entrada da mulher no mercado de trabalho e efetiva

4
Atividades reprodutivas ou trabalhos reprodutivos é uma resposta originada pela leitura crítica feminista
sobre o questionamento se o trabalho doméstico seria ou não um trabalho produtivo. Segundo inúmeras
autoras, o trabalho doméstico não é produtivo, nem improdutivo, ele é reprodutivo da vida. Não produz
mercadorias. Reproduz a vida, por isso este trabalho está no centro da existência (BRITES, 2013; SOLÍS,
2009; COLEN, 1995).
5
Historicamente são os eletrodomésticos destinados em geral para atender as necessidades básicas de
uma residência.
40

instalação da indústria de confecção de roupas). Compreendendo o espaço doméstico


como um importante gerador de saberes e fazeres constituídos numa rede de
transmissão feminina, e diante das transformações que o afetam, como a prática da
costura perdura enquanto saber no cotidiano das mulheres que costuram?

1.2 SABERES E FAZERES METODOLÓGICOS: DA INSERÇÃO AO CAMPO ÀS


TÉCNICAS DE PESQUISA

As questões mencionadas no tópico anterior são algumas das interrogações que


vem ocupando meu pensamento desde a graduação em Ciências Sociais, visto que a
presente pesquisa se trata de uma continuidade do caminho trilhado desde então.
As minhas primeiras investidas em pesquisa de campo retomam ainda ao ano de
2015, com fins de dar início ao meu trabalho de conclusão de curso. Neste momento,
buscava analisar as permanências e mudanças no universo da costura ligadas aos ofícios
de alfaiates, costureiras e donas de casa que viveram e trabalharam antes e depois da
entrada da indústria da confecção no Rio Grande do Sul. A partir desta experiência,
pude obter diálogos e dados de campo muito ricos e favoráveis para dar seguimento a
pesquisas e escritas futuras.
Desta forma, quando ingressei no mestrado em Ciências Sociais pelo
PPGCS/UFSM, retornei ao trabalho de campo com as costureiras. Foram dois meses de
visitas diárias, nos turnos da manhã e tarde, com exceção dos finais de semana. O
diálogo com as interlocutoras não cessou com a pausa das minhas visitas, pois, interajo
com muitas delas através da Internet, via a rede social Facebook. E mesmo que algumas
delas não tenham acesso à Internet, duas interlocutoras, por exemplo, me enviaram
notícias pelos seus filhos. Dona Chita, vez ou outra pedia para seu filho enviar-me fotos
das suas costuras e Dona Renda me enviou também pelo seu filho uma muda de hortelã
como agrado.
Logo, a pesquisa de campo foi realizada mais intensamente no período de
janeiro a fevereiro de 2017, pois, neste momento não cursava as disciplinas necessárias
para o mestrado, então pude me dedicar quase que inteiramente a pesquisa. Desta forma,
mantive contato com nove costureiras que nominei da seguinte forma, Cetim, Paetê,
Chita, Renda, Filó, Algodão, Jeans, Linho e Lã. Os contatos e a minha inserção em
campo com as costureiras deram-se nas formas que descreverei a seguir.
41

Durante todas as manhãs, visitava a loja de Cetim, que era também o seu local
de trabalho. Eu costumava chegar à loja antes de começar o seu expediente, no
momento em que ela tomava o seu café da manhã na pequena sala dos fundos, que
funcionava como estoque e também cozinha. Nestes primeiros encontros, a nossa
interação era mais formalizada, onde eu dirigia minhas perguntas organizadas em forma
de entrevistas semi-estruturadas e abertas. Com o passar do tempo, este momento
deixou o aspecto formal de lado e passou a ser o momento em que tomávamos café
juntas e conversávamos sobre o dia-a-dia. Depois do café, ajudava nas demandas da
loja. Comecei com as planilhas de vendas e faturamentos, depois passei a auxiliar com
uma parcela da limpeza do local. Como a confecção e o ajuste de roupas geram muito
resíduo de tecidos, a loja precisava estar sendo constantemente varrida e arrumada,
então nem sempre Cetim dava conta de mantê-la da forma como gostaria, por isso
passei ajudá-la. Também arrumava as vitrines com as bijuterias e confecções que ali
eram vendidas. Neste momento, ganhei confiança suficiente para mexer nas costuras, e
assim passei a desmanchar roupas que chegavam à loja para consertos. Após a
realização de tantas tarefas, estava apta para riscar e cortar moldes para depois passar a
ferro para vincar as dobras de camisas e fardas de quartéis. Raramente tinha coragem
para colocar as peças na máquina de costura, apesar do constante incentivo de Cetim.
Em algumas ocasiões, a costureira Dona Paetê era chamada à loja de Cetim para ajudar
nas costuras, assim eu pude estabelecer contato com uma nova interlocutora e perceber
as relações entre as costureiras.
No entanto, com algumas das outras interlocutoras, o processo de acompanhar os
seus cotidianos nas salas de costura configurou-se de forma diferente em relação ao
cotidiano de Cetim e Dona Paetê. Pois, as costureiras Dona Algodão, Dona Lã e Dona
Renda já estão aposentadas e, atualmente, recorrem às costuras apenas por lazer. Ainda
assim, passei muitas tardes visitando e conversando em rodas de chimarrão,
principalmente, com as Donas Lã e Renda. Os seus cotidianos foram reconstruídos a
partir de suas memórias e narrativas sobre o trabalho da costura, o cuidado, os afazeres
do lar e a vida.
Com as interlocutoras Jeans e Linho, o contato se deu de forma ainda mais
distinta. Ambas possuem o aspecto geracional como uma diferença entre as demais
interlocutoras, não obstante, as suas relações com a costura também se diferem entre si.
Jeans é neta de Dona Algodão e a sua relação com a costura é parcialmente afetiva e
parcialmente ligada ao mundo da moda e dos brechós. E apesar de Linho também ser
42

adepta dos brechós, ela possui na costura o seu fator rentável e de sustento, ao contrário
de Jeans, que projeta na costura um “hobbie” ou “estilo de vida”. Conheci ambas
através de meu círculo de amizades na cidade, pois estamos todas na mesma faixa
etária, o que acabou tornando as nossas conversas mais informais e descompromissadas.
Cheguei até a casa de Dona Filó e Dona Chita através de dois colegas da
faculdade – Diego e Mateus – que me indicaram os seus serviços. Dona Chita a
propósito, é mãe de um deles. No início, ela achava que eu desejava aprender a costurar,
por isso a visitava. Depois de explicar o meu propósito com a ajuda de seu filho,
também formado em Ciências Sociais, Dona Chita pode compreender não somente a
minha pesquisa, mas a de seu filho. Diego outrora pesquisara as “técnicas de si”
desenvolvidas por pessoas frequentadoras de academias ao ar livre e academias de
musculação (OLIVEIRA, 2016). Contudo, sua mãe até aquele momento não
compreendia ao certo o que seu filho ia lá fazer, por isso concluiu que ele fazia
ginástica. A nova descoberta gerou muitas risadas entre nós três. Na realidade, as
risadas podem definir o meu trabalho de campo na residência de Dona Chita, pois, em
quase todos os momentos em que estive em sua casa, fui cativada pela simplicidade e
meiguice de Dona Chita. Sempre que possuía uma costura que considerava mais
ousada, a costureira Dona Chita me convidava para estar presente e observar a
confecção, caso eu não pudesse comparecer, ela me enviava fotos da “obra criada”, com
muito orgulho de suas habilidades.
Sucessivamente, descrevo minha inserção no cotidiano da costureira Dona Filó.
A minha primeira visita a sua casa foi acompanhada do meu colega de mestrado
Mateus, que crescera frequentando a casa da costureira, pois é amigo de longa data do
neto que Dona filó criou como seu próprio filho. Nesta ocasião tive liberdade para
observar livremente, tirar fotos e conversar com uma mulher acolhedora. Já nas outras
vezes que a visitei, sem a companhia de meu colega, tive contato com uma mulher mais
apreensiva. Apesar de eu ter sentido certa diferença no ambiente resultante da ausência
de meu “Doc”6, as conversas com Dona Filó foram muito promissoras. Consegui
observar muito de seu trabalho contratando eu mesma os seus serviços para um reparo
ali e outro acolá de minhas roupas.
Delineado alguns dos aspectos da minha inserção em campo com as costureiras,
chamo a atenção para o fato de que não haveria problemas em utilizar seus nomes

6
Faço alusão aqui ao informante chave de William Foote Whyte na sua pesquisa que resultou no livro
Sociedade de Esquina (2005).
43

verdadeiros no decorrer do texto, pois, explicitá-los torna-se também uma forma de


reconhecimento aos trabalhos realizados por estas mulheres. De qualquer forma, no
segundo capítulo irei dar mais evidência para as interlocutoras da pesquisa e descreverei
os motivos pelos quais prefiro utilizar os codinomes derivados dos tecidos de chitas a
cetins. Na sequência, no subtópico “Tempo entre costuras”, explicarei mais
especificamente as discussões metodológicas relacionadas à etnografia que me propus
construir ou “costurar”, a etnografia da duração.

1.2.1 “Tempo entre costuras”: a costura vista sob a perspectiva da etnografia da


duração

Pode-se dizer que a presente pesquisa está dividida em dois momentos diferentes
de trabalho de campo, o de usual convívio com as pessoas inseridas no tema da pesquisa
e no segundo momento, o de escrita etnográfica. Segundo a antropóloga Marilyn
Strathern (2014), é neste segundo momento o qual não estamos acostumadas(os) a
pensar como fazendo parte também do trabalho de campo. Para a autora, o “efeito
etnográfico” compreende a conciliação desses dois trabalhos de campo, trilhando
percursos no ir e vir das convivências e do escrever. Visa valorizar as relações que
estabelecemos no trabalho de campo por elas mesmas, num processo de imersão, para
somente depois refletir e construir alguma forma de conhecimento a respeito delas.
Desta forma, inspirada pelas reflexões de Strathern, eu poderia descrever o meu
primeiro momento de trabalho de campo como o período em que pesquisei na Internet,
recurso que se mostrou uma ferramenta promissora ao permitir o acesso a outras
mulheres costureiras do Brasil e também como um recurso localizador dos armarinhos
(lojas de aviamentos); o mapeamento e o frequentar dos armarinhos seguido de
caminhadas etnográficas que acabaram por me possibilitar redescobrir a cidade de Santa
Maria. Por último e talvez mais importante, o acompanhamento presencial do cotidiano
de nove costureiras da cidade conhecida e afetuosamente chamada de “Coração do Rio
Grande”. Sem esquecer, é claro, das experiências com o registro audiovisual que
perpassam todas as demais instâncias desta pesquisa.
O meu segundo momento seria a ocasião em que me “retiro” deste universo para
absorver e processar o que fora vivido, com o objetivo de exercer a descrição
etnográfica produzida a partir dos materiais coletados no primeiro momento de trabalho
de campo. Mas, não existe uma separação tão demarcada assim entre esses dois
44

momentos de trabalho de campo, porque realizo minha pesquisa dentro da cidade onde
resido, o que acaba tornando o ir e vir mais descomplicado e os encontros mais
habituais. Além do mais, num mundo onde nos tornamos conectados em tempo
integral7, torna-se inevitável não manter contato com o nosso objeto de pesquisa e,
principalmente, com as pessoas que o integram.
No que se refere às interações virtuais, atualmente, é possível afirmar que as
fronteiras entre o on-line e o off-line estão cada vez mais dissolvidas, isto é, o
ciberespaço não é mais entendido como um universo paralelo constituído por coisas que
não são reais, mas sim como
[...] uma dimensão das práticas e experiências cotidianas que compõe a cena
social contemporânea; uma dimensão que se constrói na fronteira entre o
“on-line” e o “off-line” ou, ainda, num trânsito e interação permanente entre
estes dois domínios. (MAXIMO; et al, 2008, p.3).

Desta forma, refletindo sobre uma lógica que desmistifica a relação que separa e
distancia do eu on-line e do eu off-line, somado aos dados do Comitê Gestor da Internet
no Brasil, citado em nota, podemos inferir que a Internet tornou-se parte do cotidiano
das pessoas. Um cotidiano vivenciado por meio do ciberespaço e que se transforma
numa instância característica da nossa sociedade.
Na rede social Facebook, não só mantenho contato, mas me atualizo sobre o
cotidiano de minhas interlocutoras e de outras costureiras do Brasil via o grupo “Clube
da Costureira” presente na plataforma, como explicarei mais detalhadamente no
próximo subtópico. O movimento de navegar pela Internet, mais especificamente no
grupo “Clube da Costureira”, trouxe-me novas demandas para o trabalho de campo
antropológico. Débora Leitão e Laura Graziela Gomes (2013), antropólogas e
pesquisadoras das realidades digitais e da Internet, afirmam que o número de pesquisas
realizadas na ou sobre a Internet na área das Ciências Sociais aumentou
demasiadamente na última década, com abordagens diversas, principalmente quando se
trata da Antropologia Social. Isso quer dizer que cada pesquisadora e pesquisador, a sua
maneira, vêm reinventando o fazer etnográfico quando se trata da Internet, como
discutirei mais adiante.
A partir da perspectiva da antropologia clássica, entende-se o método
etnográfico como um projeto que requer que as etnógrafas e etnógrafos se desloquem

7
De acordo com o Comitê Gestor da Internet no Brasil, o acesso à internet atingiu regularmente 51% das
residências brasileiras no ano de 2015, o equivalente em números absolutos, a 34,1 milhões de domicílios.
Para ver mais acesse em: http://cetic.br/publicacao/pesquisa-sobre-o-uso-das-tecnologias-de-informacao-
e-comunicacao-nos-domicilios-brasileiros-tic-domicilios-2015/
45

geograficamente, uma vez que, o projeto etnográfico foi tradicionalmente pensado como
um intenso trabalho de campo que pressupunha “viver numa aldeia”:
Imagine-se o leitor sozinho, rodeado apenas do seu equipamento, numa praia
tropical próxima a uma aldeia nativa, vendo a lancha ou o barco que o trouxe
afastar-se no mar até desaparecer de vista. Suponhamos, além disso, que você
seja apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem
ninguém que o possa auxiliar. Isso descreve exatamente a minha iniciação na
pesquisa de campo, no litoral sul da Nova Guiné. (MALINOWSKI, 1978,
p.19).

É consenso em antropologia que para chegarmos onde queremos ir é preciso


viajar. Mas, isso não quer dizer que seja preciso sempre deslocar-se geograficamente
para desempenhar um proveitoso trabalho de campo e, consequentemente, uma boa
etnografia como tem sido discutido por autoras e autores contemporâneos. No texto
“Nós/Não Nós: As viagens de Benedict” (2006), de Clifford Geertz, o autor descreve sua
antecessora nos estudos culturais, a antropóloga americana Ruth Benedict. E, apesar de
descrevê-la como impedida de “estar lá” por causa da segunda guerra mundial que a
impossibilitara de deslocar-se até o Japão para desenvolver a sua obra “O Crisântemo e
a Espada” (1997), Geertz retrata aquilo que Benedict dispõe com primazia: a sua
escrita. “A proeza decorre quase que inteiramente de um poderoso estilo expositivo há
um tempo parcimonioso, seguro, lapidar, e, acima de tudo, resoluto: ideias claras,
definidas com clareza.” (GEERTZ, 2006, p.143).
As “viagens” em Benedict referem-se mais a experiência de observar e de
escrever sobre o “Outro”, exercício que é também um olhar sobre si, visto que a autora
possui aquilo que Geertz chama de “nativização de si mesmo”. A antropóloga
reconhece no “Nós” as diferenças – para não falar abismos – de valores que são
definidos desde que se estabelece a premissa de estranhar o “Não Nós”. Com o
relativismo cultural corre-se o risco de voltarmos o olhar e as moralidades para nós
mesmas(os). Além do mais, a antropologia cultural americana, de onde deriva Benedict,
teve um papel histórico “relativizador” muito importante no contexto em que atuava,
pois, o conceito de relativismo cultural é uma forma de descrever os modos de agir e
pensar dos seres humanos dentro de parâmetros próprios da sua variante cultural.
Tal qual aprendemos em “Quando cada caso não é um caso” com Claudia
Fonseca (1999), uma etnografia exige sempre um processo de imersão com o grupo
estudado, imersão esta que não é somente realizada pela viagem literal. Mas, também
pela leitura de monografias sobre sociedades longínquas (FONSECA, 1999), pelo
acesso aos romances literários, ou nos papéis de antiquários e programas de rádio, como
46

antigamente Ruth Benedict já fazia. E porque não acessando também a Internet


inspiradas e inspirados em Débora Leitão e Laura Gomes (2013)? A etnografia pode
assumir variadas formas, principalmente de “estar lá”, como no caso das pesquisas na
Internet. Mas, dentre as formas que o trabalho de campo pode assumir, aquelas que
dizem respeito à etnografia da duração e a etnografia de rua foram mais importantes
para o desenvolvimento do meu trabalho de campo.
Por um lado, com a finalidade de poder perceber as diferentes características dos
saberes e fazeres femininos, atento para a utilização de uma investigação também
histórica. Uma vez que, segundo Mariza Peirano (1995), a história faz parte do presente
trazendo consigo alguns elementos de permanência que se atualizam através de tensões
do fluxo temporal que nunca para de fluir. Desta forma, a metodologia etnográfica
aliada ao recurso histórico traceja uma problematização dos elementos que a cultura do
campo etnográfico põe em disposição8.
De outro lado, o estudo das memórias e narrativas orais, por mais íntimas que
sejam, mostram como as vivências dos indivíduos podem revelar um pouco dos
contextos sociais aos quais pertencem. Lançarei mão delas sem a pretensão de
confirmar a autenticidade dos fatos narrados ou buscar uma ordem cronológica nos
acontecimentos das vidas das mulheres, mas proponho-me a deixá-las livres para que
elas construam de seus diversos modos a forma de contar suas histórias. O efeito deste
recurso é justamente tentar compreender as suas histórias como são relatadas por elas
próprias, procurando representar “aquela parcela da vida do sujeito que diz respeito ao
tema da pesquisa, sem esgotar as várias facetas de uma biografia.” (KOFES, 1994,
pág.118).
Especialmente para os propósitos desta dissertação, desenvolvo e retomo no
terceiro capítulo uma discussão sobre a cidade e o saber fazer da costura que nela
permanece e se transforma no interior dos armarinhos e das casas de costureiras. Para
tanto, o intento etnográfico, neste instante, “[...] começa ao rés do chão, com passos.
São eles o número, mas um número que não constitui uma série. Não se pode contá-lo,
porque cada uma de suas unidades é algo qualitativo.” (CERTEAU, 1994, p.176).
Começa com os passos, com as caminhadas etnográficas que abrem horizontes para a
etnografia de e na rua, que por sua vez, descreve os cenários onde (sobre)vivem as

8
A diferença entre um historiador e um historiador etnográfico está no fato de que enquanto o historiador
das ideias esboça a conexão do pensamento formal, de um pensador para outro, o historiador etnográfico
estuda a forma como as pessoas comuns entendem o mundo, como organizam suas realidades, etc., a fim
de perceber que a vida comum exige uma estratégia. (DARNTON, 1986)
47

personagens. Personagens que transitam pelas ruas e bairros, que sofrem imprevistos do
cotidiano, personagens que cortam, alinhavam e costuram. O caminhar potencializou,
assim, uma experiência sensorial do cotidiano na cidade, pois ele,
[...] desafia o medo da cidade e as gestões políticas desse medo, impondo
passo a passo, o direito de transgredir fronteiras sociais e simbólicas,
acabando com as cidades interditas, os bairros do estigma, as separações
'naturais', 'puras' e 'fixas', as abstrações do outro como excluído e marginal, a
descoincidência, tantas vezes demonstrada, entre a (in)segurança subjectiva e
a (in)segurança objectivamente medida. Aliás, é pela transgressão de
fronteiras e pelo mover-se na fronteira que as legitimidades dominantes vão
sendo, a diversos níveis, questionadas. (LOPES, 2008, p.142).

Dessa maneira, ao desafiar o medo como propôs o sociólogo João Teixeira


Lopes (2008) e ao seguir os passos dados pelas antropólogas Cornélia Eckert e Ana
Luiza Carvalho da Rocha (2003), aventurei-me na etnografia de rua. Atravessei e
vivenciei as ruas e a cidade, buscando encontrar os armarinhos de costura e as mulheres
costureiras no interior deles e no interior de suas casas, ao mesmo tempo em que almejei
apresentar a cidade de Santa Maria as leitoras e leitores, através destes trajetos.
Portanto, diante dos fatores já elencados como história, memória, etnografia e
cidade o método proposto aqui, delineia-se como um método etnográfico de duração. É
através, novamente, das autoras Eckert e Rocha (2013) que alicerço essa metodologia
pautada numa dinâmica temporal em que as narrativas, as fotografias, as formas de
sociabilidade no cotidiano, os arranjos de vida, etc., constituem memórias que quando
se encontram, constroem incessantemente as identidades da pesquisadora e das
interlocutoras no local de pesquisa (no caso da pesquisa que desenvolvi, nos espaços
domésticos, nas salas de costura e nos armarinhos).
[...] A etnografia da duração realizada pelo antropólogo é, assim, devedora
das histórias vividas que lhe foram transmitidas e das quais nós,
antropólogos, nos apropriamos para produzir teorias e conceitos desde nossa
matriz disciplinar. Narramos histórias vividas quando produzimos descrições
etnográficas e, com isso, evocamos essas reminiscências seja por meio da
escrita, de fotografias, de vídeos ou de filmes. (ROCHA; ECKERT, 2010,
p.133).

A proposta é situar a costura como objeto temporal que dura pela sobreposição
do tempo no mundo, das práticas e das memórias. Mas, apesar desse estilo de etnografia
enfatizar a dialética temporal e imaginativa como duração das cidades, no caso
específico da minha pesquisa, passo a enfatizar o imaginário da costura. É preciso
atentar para as mudanças, pois a costura é um elemento de duração sempre em
48

transformação. Ou seja, a costura persiste ao longo do tempo, mas de maneiras


diferentes de acordo com cada momento histórico.
Nesta pesquisa observei que, ora a costura possui centralidade na vida das
mulheres, ora as máquinas de costura são deslocadas do centro das casas e o saber fazer
se esmaece por gerações até que alguma mulher da família demonstre atenção pela
velha máquina. No ambiente do lar, a costura assume a dimensão reprodutiva do
trabalho, na medida em que é tomada como uma atividade doméstica. Ou seja, a costura
se torna mais uma das atividades que foram paulatinamente relegadas ao universo
feminino como acontece também com o cuidado e o serviço doméstico. Em outros
momentos, a costura pode também ser aproveitada como uma oportunidade de trabalho
que complementa a renda ou até mesmo como fator central de sustento da casa, sendo
realizada a domicílio ou nas grandes fábricas de confecções. Quando realizada a
domicílio, ela se mescla e se confunde com os outros afazeres domésticos demandados
pela vida cotidiana de todas as pessoas, mas que, geralmente, apenas as mulheres o
desempenham.
A costura, às vezes, pode também ser retomada em outros panoramas, como
“estilo de vida”, estética e perícia. Como nos tempos atuais, quando os bordados têm
sido retomados como uma forma de subversão feminista9, em que as mulheres
ressignificam uma atividade que por muito tempo foi tomada como mantedora de
estereótipos de feminilidade.10 Sem esquecer-me de mencionar a alta costura no mundo
da moda, passando pela primeira estilista mulher Rose Bertin, costureira de Maria
Antonieta, e pela revolucionária dos trajes femininos Coco Chanel. Como podemos
observar, algumas dessas transformações acontecem em decorrência da profunda

9
O bordado, no atual contexto de emergência dos novos feminismos, passou por uma ressignificação no
Brasil. Se antes ele era visto como um mantedor de estereótipos de feminilidade, hoje ele atua como um
fator de resistência, onde mulheres bordam com linhas coloridas seus desenhos, mensagens e ideias de
cunho feministas nos bastidores, “patches” e outros materiais. Algumas mulheres promovem cursos a
fim de resgatar o valor dos trabalhos manuais femininos deixados para trás por gerações de mulheres
anteriores. Os cursos intuem empoderar mulheres através de seus bordados que expressam a liberdade
sexual e o amor próprio. Para mais informações, consulte em http://bordadoempoderado.com.br/ ou
http://www.oclubedobordado.com/.
10
O saber fazer do bordado e o saber fazer da costura, de certa forma, configuram-se como contrastantes.
Embora ambos estejam ligados principalmente ao público feminino através dos tempos, o bordado abarca
a questão da técnica rigorosa, do avesso perfeito e igual ao lado direito/certo, etc. Diferente do saber fazer
da costureira, como tenho observado, que certamente por precisar sobreviver somente com esta renda,
acaba por trabalhar numa quantidade de peças muito maior do que gostaria, costurando possibilidades
onde antes não havia, fazendo o que consegue no tempo que possui. Certa vez, Dona Paetê dissera-me, “-
Eu enxergo os defeitos, mas às vezes fico quieta, pois, tem aquela costura que a gente faz correndo e tem
aquelas outras que a gente faz com todo cuidado”. Tudo isso pode ser contrastado com a perícia
desempenhada pelos alfaiates diferenciada do saber fazer das costureiras e que remonta uma parcela da
minha pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso.
49

industrialização, ou dizem respeito a oscilações nos “estilos de vida” e na mudança de


ideias que vão sendo incorporadas nas narrativas das mulheres pesquisadas.
Adiante, no decorrer da pesquisa, questionei-me e enfrentei a todo instante um
processo de reconhecimento que não se refere apenas à leitora e o leitor, mas que
também é próprio da pesquisadora em compreender a costura como um trabalho
relevante e importante em nossa sociedade. Entender também que cada etnografia
escrita se converte em um testemunho de fatos vividos, e que é neste ponto que reside
um de seus significados. O cotidiano das mulheres que costuram ou costuraram é
importante em si, não importa se foram mulheres renomadas no grupo social em que
convivem ou conviveram. O que almejo, então, parafraseando Peirano (2014), é
destacar a “eficácia social” de um saber fazer que mesmo não sendo hegemônico como
outrora, percorreu fortemente a vida das mulheres como uma habilidade “natural” e que
apesar das transformações industriais ainda perdura no tempo.

1.2.2 Sobre costuras e técnicas de pesquisa

Nesta pesquisa, lancei mão, concomitantemente, de várias técnicas de pesquisa a


serem detalhadas a seguir. Inicialmente, trago aqui dois habituais e importantes
instrumentos para a realização desta etnografia, a observação participante e a entrevista.
Existem muitos elementos que não podem ser apreendidos por meio da fala e é nesta
lacuna que a observação participante se apresenta com a possibilidade de
preenchimento. A observação participante não se baseia apenas no que é dito, mas
também no não dito, não apenas nas entrevistas, mas nas entrelinhas, não somente na
observação, mas no participar/interagir. A pesquisa do campo etnográfica consiste em
estudar o “Outro” e, é justamente na observação que o(a) conhecemos e o(a)
estranhamos para assim, quem sabe, estranharmos a nós próprias(os).
A observação participante enquadrou-se aqui para tentar dar conta do ambiente
em que estive inserida durante a pesquisa, das coisas que não foram ditas, mas
performadas e da ordem temporal em que os eventos aconteceram. Para entender a
importância desta técnica, lembremos do exemplo da viúva que “chora por encomenda”,
do texto clássico “A expressão obrigatória de sentimentos” (1979), do antropólogo
Marcel Mauss. Para interpretar este choro não convém perguntar por que a viúva chora.
Como nos recorda Claudia Fonseca (1999, p.63), ao analisar o texto do referido
50

antropólogo, “Para interpretar este choro é preciso conhecer bem a sociedade de onde
ela vem, dos padrões residenciais e normas de herança até das atitudes corporais e os
critérios estéticos e morais.” Essas interpretações só são possíveis de serem realizadas a
partir da observação participante, que se distingue da observação comum e,
posteriormente, do registro em diário de campo. Os registros em diário de campo, por
sua vez, tratam-se de anotações diárias do que vi, ouvi, senti, observei e participei
quando estava inserida entre as costureiras e demais pessoas com quem compartilhei
certo tempo de suas vidas cotidianas.
Referente às entrevistas, elas foram realizadas de forma aberta e semi-
estruturada com o propósito de completarem elementos surgidos durante a observação
participante. As entrevistas abertas tinham como finalidade deixar as interlocutoras
mais livres para discorrerem sobre proposições sugeridas por mim para explorar
amplamente os aspectos de suas trajetórias no universo da costura. As perguntas foram
sendo respondidas numa conversação informal, na hora do chimarrão ou entre os
intervalos “da novela das seis”. Espaço de tempo no qual as interlocutoras usavam
como “intervalo”, “descanso”, “paradinha” entre costuras e as sempre inevitáveis lidas
da casa. Neste processo, assumi, principalmente, uma postura de ouvinte, interferindo o
mínimo possível nas histórias tecidas por elas a partir de um estímulo inicial.
Já para as entrevistas semi-estuturadas, elaborei um roteiro prévio de perguntas
as quais me interessava tomar conhecimento e as quais suas respostas não haviam sido
atingidas na primeira fase de entrevista. Também fui realizando perguntas adicionais
para esclarecer alguma questão que porventura não tivesse ficado clara. Além disso,
como exemplificam as sociólogas Valdete Boni e Jurema Quaresma,
[...] a interação entre o entrevistador e o entrevistado favorece as respostas
espontâneas. Elas também são possibilitadoras de uma abertura e
proximidade maior entre entrevistador e entrevistado, o que permite ao
entrevistador tocar em assuntos mais complexos e delicados, ou seja, quanto
menos estruturada a entrevista maior será o favorecimento de uma troca mais
afetiva entre as duas partes. (BONI; QUARESMA, 2005, p.75).

Assim, utilizando as entrevistas dos tipos aberta e semi-estruturada, busquei


proporcionar um melhor entendimento e uma interação mais próxima com as pessoas as
quais propus dialogar. E, de acordo com Rocha e Eckert, a interação deve ser a condição
da pesquisa,
Não se trata de um encontro fortuito, mas de uma relação que se prolonga no
fluxo do tempo e na pluralidade dos espaços sociais vividos cotidianamente
por pessoas no contexto urbano, no mundo rural, nas terras indígenas, nos
territórios quilombolas, enfim, nas casas, nas ruas, na roça, etc, que abrangem
51

o mundo público e o mundo privado da sociedade em geral. (ROCHA;


ECKERT, 2008, p.3)

Para desenvolver a pesquisa e escrever esta dissertação, outras técnicas e


diferentes materiais foram desenvolvidos e analisados, tais como, o texto do Projeto de
Lei Nº 7.806-A que visa regulamentar a profissão de costureiras(os), que será
problematizado no segundo capítulo. E ainda que de form breve a Lei Municipal
Complementar de nº42/2006 que altera a divisão urbana da cidade de Santa Maria, a ser
referida no terceiro capítulo.
A análise do grupo presente na rede social Facebook intitulado “Clube da
Costureira” e os perfis de minhas interlocutoras, Dona Chita, Dona Filó, Cetim e Linho
na referida rede social, acessados por intermédio da Internet, foi um instrumento muito
importante para obtenção de dados. Como é comum nesta rede social, ela também é
usada pelas interlocutoras como um espaço de sociabilidade, reunindo o partilhar de
ideias, momentos, serviços e práticas por meio das interações sociais.
O grupo “Clube da Costureira” manteve até o meu último acesso11, 213.165
membras12, em sua maioria mulheres costureiras, algumas de longa data e outras que
estão iniciando no ofício. Contudo, o administrador do grupo é uma pessoa identificada
como do gênero masculino cis13 e na publicação fixada, descreve o espaço como
destinado aos amantes da costura e da moda sob medida. Logo na foto de capa do
grupo, também já podemos observar que este é patrocinado por uma loja de tecidos que
oferece “descontos especiais” para aquelas que quiserem fazer parte do “clube”.
Segundo o administrador, o grupo possui cinco objetivos que listo aqui:

1. Trocar conhecimento com profissionais de todo Brasil;


2. Anunciar máquinas de costura e demais utensílios;

11
É interessante ressaltar que em menos de três meses a quantidade de membras aumentou
significativamente. Na primeira versão deste texto eram aproximadamente 153.188 costureiras. Ou seja,
foram adicionadas 59.977 novas membras no grupo desde então.
12
A rede social do Facebook não faz distinção de gênero quando se refere à quantidade de pessoas
presentes em um grupo. Logo, em concordância com a linguagem formal, faz-se a concordância com o
gênero masculino, mesmo que a maioria incontestavelmente alarmante de participantes do grupo sejam
mulheres. Como venho trabalhando ao longo desta dissertação, a costura é caracterizada como uma
atividade, em geral, feminina. Como o grupo demonstra, e diante dos fatores mencionados que tomo a
decisão política de utilizar o termo “membras” para fazer a concordância com a maioria de mulheres lá
presentes. Assim como farei em todo o decorrer do texto quando conveniente. Aliás, é interessante
perceber que prefiro incluir ambas as flexões de gêneros quando a proposta textual for contemplar tanto
homens quanto mulheres.
13
“Conceito ‘guarda-chuva’ que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi
determinado quando de seu nascimento”. (JESUS, 2012, p.25).
52

3. Discutir tópicos sobre corte, costura e desenho de moda;


4. Compartilhar cursos, artigos em blogs, vídeos e tutoriais;
5. Anunciar seu trabalho e criar parcerias com marcas e profissionais.

Apesar do grupo não ser o meu foco nesta dissertação, ele se tornou relevante na
medida em que configura ao universo da costura uma dimensão mais abrangente.
Dimensão que extrapola as investigações no âmbito da cidade de Santa Maria/RS,
movendo comparações do âmbito local da cidade para o âmbito geral do Brasil. No
grupo, observei postagens de diversas costureiras sobre os mais variados assuntos do
cotidiano como, por exemplo, as suas jornadas de trabalho, o orgulho das confecções
criadas, de como se tornaram costureiras, além de dicas e sugestões para as mais novas
iniciadas no batente da costura.
De acordo com o cientista social Alexander Halavais (2011), no prefácio que
escreve para a coletânea “Métodos de Pesquisa para a Internet”, a pesquisa no ambiente
on-line requer novas formas de observação que levam os cientistas sociais a buscarem
outras lentes para enxergar aquilo que se torna invisível aos olhos. Ainda de acordo com
o autor, temos que forjar nossas próprias lentes tal qual foi a invenção telescópica e
microscópica de Galileu, em razão de que
A análise de redes sociais [...] tem provado ser um instrumento
particularmente apto para a compreensão de uma sociedade que se encontra
cada vez mais estruturada como uma rede e que utiliza novas ferramentas de
rede, e já era utilizada por antropologistas e sociólogos há décadas, sem que
isso implicasse a necessidade de reduzir as relações sociais a causalidades
simples. Mesmo nas humanidades, as abordagens computacionais têm aberto
caminho e, enquanto as “humanidades digitais” eram um campo
relativamente marginal no final do século XX, muitos agora as consideram
parte essencial do conhecimento humanístico contemporâneo. (HALAVAIS,
2011, p.15).

Nesta pesquisa, busquei ainda mapear os armarinhos de costura através das já


mencionadas caminhadas etnográficas de rua/bairro. Utilizei da ferramenta Google
Maps acessada na Internet com o intuito de primeiramente localizar os armarinhos.
Logo em seguida, construí croquis – desenho sem refinamento gráfico e sem grande
precisão – para ajudar a localizar a leitora e o leitor na cidade de Santa Maria, nos
bairros Divina Providência, Juscelino Kubitschek, Itararé, Camobi, Tancredo Neves e
Centro. Além de localizar os cinco armarinhos centrais e os quatro armarinhos presentes
no bairro Camobi, que serão detalhadamente trabalhados no terceiro capítulo que trata
da etnografia de rua. No geral, este exercício de coleta de dados se aproxima da
53

ordenação de imagens ao longo do texto, a saber: os croquis, os gráficos e as


fotografias. Os gráficos dizem respeito aos dados secundários e estatísticos (mais
especificamente, a pirâmide de faixa etária em anos para cada um dos bairros citados),
elaborados a partir do programa de sinopse por setores do censo do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2010.
Finalmente, as imagens fotográficas. “Eu fotografo para que não se percam nos
vãos da minha memória”, disse a cineasta belga Agnès Varda no documentário
“Visages, Villages” (2017), o último de sua carreira. No cotidiano, as coisas, pessoas e
gestos podem ser substituídos logo depois de observadas por outras impressões que se
sobressaem em relação à primeira que tivemos. Para o fotógrafo e etnólogo francês
Pierre Verger, a fotografia atua neste cenário com um papel de destaque, ela
[...] tem a vantagem de parar as coisas... e desta maneira permitir que se veja
o que só tinha sido entrevisto e imediatamente esquecido, porque uma nova
impressão veio apagar a precedente, e assim por diante, e o visto vira uma
coisa esquecida." (VERGER apud GURAN, 2000, p.3).

Varda e Verger parecem dialogar sobre o entrelaçamento da memória e das


fotografias. O que perdura agora são as memórias enquadradas e materializadas em
fotografias que inspiram com o seu preto e branco esteticamente cuidadoso.
Eu trago neste trabalho a minha memória materializada em imagens, tornando
público aquilo que retratei nas salas de costura, nas casas, nas ruas. Para que as leitoras
e os leitores conheçam Dona Chita, Dona Renda, Cetim, Dona Lã e Linho14 e que não
se percam também os retratos delas em vossas memórias. Bem como, para que
conheçam o entorno e as pessoas que eu não imaginava encontrar nos percursos, os
chamados “habitués” do cotidiano da cidade. São esses os ambientes de observação
participante e diálogo, mas principalmente de muita escuta e troca de saberes entre
pesquisadora e interlocutoras que tento descrever e “retratar”, no sentido mais próximo
ao visual que essa palavra pode nos apresentar.
A câmera ou máquina fotográfica carrega consigo as qualidades e linguagens do
saber fazer etnográfico, que muitas vezes pode até mesmo superar o discurso verbal que
pouco tem a dizer sobre cores, movimentos, sons, formas e texturas. Uma vez que a
fotografia desafia o olhar antropológico, ela “permite mudar o foco – do verbo para o
comportamento, o corpo, os gestos, os detalhes sobre os quais nem sempre é possível
falar”. (NOVAES, 2014, p.61).

14
Interlocutoras que permitiram o uso de imagem.
54

Fotografar implica igualmente um tipo de conhecimento que não passa pela


palavra, mas muito mais pela sensibilidade do olhar, pela intuição, pela
capacidade de estar no lugar certo na hora certa, pela sensibilidade de colocar
o corpo (e a câmera a ela acoplada) na correta distância. (NOVAES, 2014,
p.64).

Além das fotografias “representarem um recurso de aproximação e legitimação


da pesquisa frente aos sujeitos” (HARTMANN, 2004, p.70), elas também serviram
como uma forma de restituição às costureiras que me receberam em suas casas e em
seus cotidianos. As fotografias foram reveladas e entregues a elas, como uma forma de
retorno e gratidão pela colaboração com a pesquisa.
Considerei uma tarefa difícil organizar as fotografias. Além da ferramenta de
escrita (“Word”) não ser a mais apropriada e funcional para a utilização de imagens,
quais imagens seriam mais relevantes evidenciar ao longo desta dissertação? Somente
da parcela de imagens que me foram autorizadas a publicação, de acordo é claro com os
acordos éticos realizados ainda durante a pesquisa. De fato, escolhi imagens que
considero repletas de palavras não ditas, significados, gestos, técnicas, sons15, suor, dor,
felicidade e sonhos. E apesar da porção de coisas, todas elas aparentam ser necessárias
para compreender o cotidiano daquelas mulheres que trabalham com a costura.
Assim sendo, o uso das imagens nesta etnografia, almejou ser mais do que um
mero registro do “estar lá” (GEERTZ, 2006), mas buscou ser também um mecanismo
de descrição interpretativa acerca do saber fazer da costura expresso nos corpos das
mulheres e acerca de seus cotidianos e de vivências que os constituem.
Por último, afirmo que é preciso aventurar-se em direção ao diálogo, nem
sempre expressado na forma de palavras. As fotografias me acompanham desde o início
desta jornada e, foi também por causa delas, que decidi tornar-me antropóloga. Não
obstante, “a vida seguirá assim: como uma gangorra antropológica, pontilhada ora de
espanto, ora do aconchego bom de se saber parte de uma comunidade, uma aldeia, a dos
antropólogos” (PIRES, 2011, p.147) e antropólogas.

15
O som das máquinas de costura está presente no cotidiano das mulheres costureiras, nas memórias das
filhas e das netas que tinham na figura de suas mães e avós, a construção da mulher dona de casa que
costurava as roupas de toda a família. O bater contínuo no pedal e o rangido linear da agulha perfurando
rapidamente o tecido são alguns dos sons mais comuns em uma sala de costura. As sonoridades quando
levadas em consideração nas pesquisas etnográficas, tratam-se de “intervenção metodológica e científica
inspirada na abordagem de uma antropologia das formas sensíveis, de observações dos sons, do
minúsculo, do banal e do ordinário das nossas vidas”. (VEDANA, 2008, p.70). O modo como as pessoas
se relacionam com a sonoridade das máquinas de costura poderia, certamente, configurar-se num outro
tema de pesquisa. Nesta dissertação, faço apenas experimentos, à luz desta intervenção metodológica,
com gravações dos sons emitidos das máquinas e provenientes das salas de costura. Intento a ser
desenvolvido mais satisfatoriamente em pesquisas futuras.
55

1.3 DESCOSTURANDO IMAGERIES, OU DE COMO OS ESTUDOS


FEMINISTAS E DESCOLONIAIS ME AJUDARAM A PENSAR O CAMPO DE
PESQUISA COM MULHERES COSTUREIRAS

Este tópico possui o propósito de reunir e tensionar algumas reflexões a respeito


da construção epistemológica feminista e descolonial da presente dissertação através de
algumas leituras e discussões realizadas durante a minha trajetória acadêmica. De
acordo com o sociólogo brasileiro Richard Miskolci (2010), na maior parte do mundo, o
feminismo e os estudos de gênero não constituem áreas de pesquisa institucionalizadas.
Dito isso e somado ao contexto de ofensiva a tais estudos no Brasil, destaca-se a
importância de se discutir seriamente sobre os temas nos âmbitos acadêmicos e
escolares.
É importante frisar que meu tema de pesquisa destoa das discussões centradas
nos atuais e necessários estudos de gênero, contudo, em minha trajetória enquanto
pesquisadora feminista e também no que concerne a construção da pesquisa, faz-se
necessário refletir sobre algumas questões que perpassam os estudos de gênero. Logo,
com a pretensão de explicitar as escolhas epistemológicas que permeiam a construção
desta pesquisa, é preciso também levar em conta que o conhecimento científico trabalha
com uma realidade construída, e para usar das palavras das antropólogas e dos
antropólogos sociais,
[...] esta construção é determinada pelo seu recorte disciplinar, pelas características do
campo científico da época, pela trajetória acadêmica e pessoal do pesquisador, pela
conjuntura político-econômica e social, enfim, por um conjunto de fatores que
ultrapassam a ciência propriamente dita. (VÍCTORA, et AL, 2000, p.47).

Pensando que este exercício de situar-se contextualmente representa o fazer


científico do qual compartilho, saliento que algumas leituras de cunho feminista
colocaram a situação da mulher como uma urgência para pensar a minha própria
sociedade. E, necessariamente, levaram-me a pensar acerca da situação da mulher no
mundo ocidental. Inicialmente tendo como pressuposto que toda e qualquer mulher
precisava do feminismo para se libertar de amarras opressoras instituídas pela entidade
do patriarcado, posso afirmar que algumas das chamadas por Howard Becker (2007)
56

“imageries”16 foram sendo construídas a partir do frequente convívio neste meio. Tais
como, as pré-noções de que as mulheres de classes mais baixas estão mais propensas à
violência doméstica, são destituídas de agência, possuem poucas oportunidades de
emprego e trabalham apenas para complementar a renda familiar. Por fim, de que
estariam relegadas ao universo doméstico, no qual se reforçam estereótipos do papel
tradicional feminino e onde o masculino se tornaria a figura central e provedora.
Mais tarde, diante de um amadurecimento acadêmico advindo de orientações de
algumas professoras e professores do Departamento de Ciências Sociais da UFSM e
enriquecido pela leitura de monografias já produzidas no âmbito dos estudos de gênero,
pude compreender que posturas fundadas no princípio abstrato da igualdade e liberdade
(como era a minha inicialmente) não levam em conta o fato de que as mulheres estão
situadas socialmente também em função de suas características culturais (políticas,
econômicas, sexuais, étnico-raciais, etc.). Sem deixar de lembrar que “a nossa relação
com o outro, que também é sujeito portador de um conhecimento, não deve ser marcada
pela intenção de fornecer uma direção, segundo um projeto político que é nosso.”
(MARTINS, 2004, p.296). Por isso, ressalto a necessidade de pensar com as mulheres
que participam da pesquisa, ao invés de pensar sobre elas, fazendo alusão a máxima de
Clifford Geertz (1989).
Logo, uma das tensões que constituem o meu trabalho de campo antropológico
está no fato de que enquanto mulher e militante feminista possuo empatia com tal
intensidade, a ponto de haver algumas identificações com o universo social das
mulheres com as quais trabalho em minha pesquisa. Em especial, pelo fato de que
minhas bisavós, avós, tias e minha mãe costuram/costuravam e são/foram donas de
casa. Ou seja, minhas vivências em relações de parentesco já apontavam para este saber
fazer feminino que com o tempo foi se constituindo em objeto de pesquisa. Para
destacar este saber fazer, busquei na pesquisa agregar o conhecimento de outras
interlocutoras mulheres que costuram “para fora”, e ainda outras mulheres que tomam a
costura como mais um de seus rotineiros afazeres domésticos.
Perceber que este trabalho é pouco estudado, e que também constitui parte do
trabalho de vestir rotineiramente as pessoas, implica necessariamente em associar as
lembranças infantis vividas no meu próprio ambiente doméstico com as inquietações
que as leituras feministas, antropológicas e sociológicas me trouxeram.

16
De acordo com o autor, as “imageries” seriam as representações imaginadas que criamos sobre os
nossos objetos num período anterior a realização da pesquisa.
57

Por conseguinte, na busca por solucionar este impasse instaurado pela


proximidade com as mulheres que me propus trabalhar, encontro em AnneMarie Mol
(2008) a chave para tal questão. Mol procura na metodologia de seus trabalhos colocar-
se também como agente de estudo devido ao fato de sempre existirem considerações
pessoais sobre o tema escolhido. Dessa forma, mostra como autoras e autores, ao invés
de se esconderem, devem se colocar. Assim, Mol torna plausível a ideia de que as
pesquisas podem sim serem movidas por interesses pessoais e explicitá-los não
empobrece a cientificidade das mesmas, mas acaba por adicionar pertinência. Isso
remete também ao fato de que, mesmo com toda a metodologia implicada na pesquisa,
existe certa subjetividade que não deve ser ignorada, mas assumida, problematizada e
politizada. Essa é uma questão colocada pelos emergentes estudos feministas e que
consiste numa ruptura epistemológica, “na medida em que represente um momento a
partir do qual tudo muda e nada pode ter exatamente o mesmo sentindo de antes”
(ADELMAN, 2009, p.182).
Por isso, assumo meu estudo como situado e comprometido com determinadas
propostas políticas de cunho igualitário. Procuro além de reconhecer e me fazer
reconhecer no campo acadêmico, mostrar que as reflexões acadêmicas não são imunes a
propósitos políticos e ideológicos e que foi justamente minha participação nos círculos
acadêmicos que me instigou a situar minha escrita na direção de uma antropologia
feminista. Foram construções que me levaram a compreender melhor o que o meu
campo empírico, as leituras políticas e feministas aliados aos estudos de gênero
poderiam contribuir a um só tempo para destacar os saberes e fazeres das mulheres
costureiras que investigo. E também produzir uma proposta acadêmica generada.
Outro ponto importante da minha perspectiva é trazido pela autora Joana Maria
Pedro em “Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica”
(2005), ao retomar as diferentes ondas do feminismo, atenta para o reconhecimento da
nova categoria “mulheres” em relação à categoria “mulher”. Pois, considerando as
diversas formas de opressão nas sociedades, só a semelhança relativa ao sexo não seria
suficiente para unir as especificidades de todas as mulheres em torno de uma mesma
busca por igualdade entre os gêneros.
Isto fez com que a categoria ‘mulher’ passasse a ser substituída, em várias
reivindicações, pela categoria ‘mulheres’, respeitando então o pressuposto
das múltiplas diferenças que se observavam dentro da diferença. (PEDRO,
2005, p. 82).
58

Por isso reforço a pretensão de centralizar meu estudo com as mulheres – no


plural – costureiras. Considero este tipo de escolha de ordem textual e científica, ou
seja, como as autoridades etnográficas (CLIFFORD, 1998) que com base na experiência
vêm sendo construídas e reforçadas nas monografias antropológicas; e também de
ordem política, que tenta mover esforços para reconhecer a alteridade e superar a dita
autoridade. No mesmo viés, torna-se importante ressaltar que não é somente no âmbito
antropológico e pós-moderno, onde os paradigmas canônicos estão sendo contestados e
preteridos em relação ao diálogo e a polifonia de vozes (CLIFFORD, 1998). A
socióloga Raewyn Connell (2016) em sua obra “Gênero em termos reais”, mais
especificamente no capítulo sobre a colonialidade do gênero, nos traz uma valiosa
revisão bibliográfica de autoras e autores que fornecem os meios por onde se
possibilitam investigações dos problemas causados pelo imperialismo global – as
teorias desenvolvidas a partir delas(es) são chamadas de teorias do sul. Dentre os
estudos, destaco o trabalho de Maria Lugones (2014), filósofa argentina e feminista.
Maria Lugones no seu texto “Rumo ao feminismo descolonial” (2014) parte de
uma crítica a modernidade organizada ontologicamente em termos categoriais (homem,
mulher, branco e negro, etc.) para passar a criticar também o feminismo que se pretende
universal e não atenta para as especificidades culturais, sociais e econômicas das
mulheres negras, latino-americanas, indígenas e de outras etnias. De modo que as
intersecções de raça, classe, sexualidade e gênero precisariam ir além dessas categorias
geradas pela modernidade. Um dos exemplos dados pela autora está na intersecção dos
termos homogêneos e atomicamente separáveis “mulher” e “negro” que não
reconheceriam a existência das mulheres negras. Para conseguirmos olhar para a
existência delas, precisaríamos ir além desta lógica categorial e deste feminismo. Além
do mais, a lógica categorial seria central para o pensamento capitalista e colonial
presente na modernidade.
O exercício de Lugones acima citado se assemelha e se aproxima ao debate
sobre interseccionalidades, o qual Kimberlé Crenshaw (2002) talvez seja uma das
referências mais destacadas até os dias atuais. Outras autoras, tal como a socióloga
Avtar Brah, continuaram pautando e complexificando. Segundo Brah,
Seria muito mais útil compreender como relações patriarcais se articulam
com outras formas de relações sociais num contexto histórico determinado.
Estruturas de classe, racismo, gênero e sexualidade não podem ser tratadas
como “variáveis independentes” porque a opressão de cada uma está inscrita
dentro da outra – é constituída pela outra e é constitutiva dela. (Brah, 2006, p.
351).
59

Retornando ao debate descolonial, Maria Lugones tornou-se uma importante


referência para Connell (2016), pois mostrará como a colonialidade e o gênero estão
relacionados a partir de uma missão civilizatória da meta colonial. Contudo, são muitas
as colonialidades trazidas também por Lugones, tais como a colonialidade do ser, saber
e poder. É importante perceber como a colonialidade se mantém ativa nos saberes, nas
culturas e no senso comum, perpassando gerações através de gerações. A colonialidade
não se limita apenas ao encontro colonial de dois territórios nações, mas se refere aos
padrões de comportamento, de crenças que existem de acordo com situações que se
estendem para os nossos dias atuais.
Assim sendo, não é incoerente propor que a colonialidade também tenha feito
parte da construção do conhecimento, incluindo o das Ciências Sociais. É um pouco
dessa discussão que Connell traz em seu outro texto, “O Império e a criação de uma
Ciência Social” (2012), onde a Sociologia teria nascido em berço metropolitano,
urbanizado, poderoso e imperial. Segundo a autora, os intelectuais criadores da Ciência
Social estariam muito cientes de tais privilégios. “A sociologia era formada dentro da
cultura do imperialismo e incorporou uma resposta intelectual ao mundo colonizado”
(CONNELL, 2012, p.316). Dessa forma, seria tarefa das novas pesquisadoras e
pesquisadores fazer um melhor uso dos contatos e diálogos com pensadoras e
pensadores fora do eixo “mainstream” da Sociologia. O recado torna-se pertinente e é
dado também pela antropóloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí.
Oyěwùmí, em seu texto “Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos
dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas” (2004), aponta para
o fato de que as categorias de gênero articuladas no âmbito ocidental e operadas de
forma dicotômica e binária são alienígenas a muitas culturas africanas. Isso porque, as
categorias sociais africanas são fluídas, ou seja, a organização social da comunidade
“Yorùbá” não opera com sistemas familiares iguais aos eurocêntricos. Como bem
assinalou a autora, “a linguagem do casamento, que é utilizada para classificação social,
frequentemente não é, a princípio, sobre gênero, como interpretações feministas da
ideologia e organização familiar poderiam sugerir” (OYĚWÙMÍ, 2004, p. 9). Desta
forma, os três conceitos mais importantes para a construção do movimento feminista no
ocidente, isto é, “mulher, gênero e sororidade, são apenas inteligíveis com atenção
cautelosa à família nuclear da qual emergiram” (OYĚWÙMÍ, 2004, p. 3). Estes
exemplos nos fazem atentar para os desafios trazidos pelo espinhoso universalismo do
60

discurso de gênero/feminista. A partir do texto de Oyèrónkẹ Oyěwùmí, fica evidente


que devemos atentar para os contextos culturais e locais específicos a partir deles
mesmos, para somente depois sermos capazes de interpretar suas organizações e
relações sociais.
Diante destas leituras, saliento que me cabe aqui, não apenas descrever saberes e
fazeres que o senso comum julgaria “ameaçados de extinção”, assim como também não
possuo a pretensão de “tapar furos” na escrita da história das mulheres comuns, mas
estou disposta a ouvir as vozes das mulheres. Vozes por vezes ausentes na construção
das Ciências Sociais como um todo, e diretamente na Antropologia, área em que
concentro meus esforços intelectuais.
Reconheço que este é um exercício difícil, pelo fato de que não existem receitas,
e tudo o que temos por enquanto são boas teorias que tem patinado na prática. Mas
escolho um caminho a seguir. São experimentações, afinal, não é mesmo nisso que os
métodos científicos se baseiam? Erros fazem parte do processo. No caminho que
escolho percorrer, tenho consciência a partir das leituras de cunho descolonial que é
preciso atentar para a agência das mulheres, agência essa que se constitui de forma
muito mais complexa do que é sugerida em algumas narrativas canônicas e
imperialistas17. “A agência não é simplesmente um sinônimo de resistência a relações
de dominação, mas também uma capacidade para a ação facultada por relações de
subordinação específicas.” (MAHMOOD, 2006, p. 123). Ao citar a antropóloga Saba
Mahmood, pretendo estabelecer uma ligação entre a sua conceitualização de agência
para as mulheres islâmicas com a agência das mulheres costureiras que pesquiso.
A agência entendida aqui é, segundo Mahmood (2006), a capacidade que cada
pessoa desenvolve e elabora em oposição ao “peso do costume”. Entro nesta questão
porque, em minha pesquisa, as mulheres costureiras, ao se apropriarem da costura – que
foi designada conjuntamente com o trabalho doméstico como um papel a ser
desempenhado por mulheres – parecem reinscrever os instrumentos da sua própria
opressão. Ao passo que não apenas se submetem a um sistema que as oprime, mas o
subvertem (mesmo que inconscientemente) na medida em que começam a costurar
como uma alternativa de complementação da renda. De modo que, o que era antes um

17
Segundo Walter D. Mignolo (2008), pensar descolonialmente significa também “o fazer descolonial”; a
expansão implacável do conhecimento do ocidente (epistemologia) afirma-se como identidade superior e
constrói identidades inferiores (construtos raciais, religiosos, sexuais e de gênero) e expele-os para fora
do real, o caminho para o futuro da antropologia é a linha epistêmica, ou seja, a oferta do pensamento
descolonial como a opção dada pelas comunidades que foram privadas de suas “almas” e que já
alimentaram tanto o saber antropológico.
61

saber ou afazer relegado ao universo feminino, torna-se um saber profissionalizado e


que, por vezes, acaba provendo a sustentabilidade da casa e/ou família.
Com a pretensão de centralizar o estudo com as mulheres costureiras, penso
também na importância de desenvolver um texto que volte o olhar para as suas
agências, uma vez que o lugar do feminino sempre se mostrou rico em potencialidades.
Bem como que atente para as vozes destas mulheres – vozes que, segundo José Jorge de
Carvalho (2001), ainda não estão inscritas nos cânones da literatura comparada18 –
buscando dar visibilidade as suas narrativas. A partir de tais perspectivas, o que me
permito aqui é principalmente uma tentativa de expressar as experiências entre
pesquisadora e interlocutoras que eventualmente podem se convergir.
Em suma, venho aprendendo com o exercício da prática antropológica que,
enquanto pesquisadora, devo distanciar-me das perspectivas universalistas, evitando
postulados que inferem ao feminismo uma categoria generalizável a todas as mulheres e
em todos os lugares. Isso acontece porque a Antropologia, “vizinha em conflito” com o
feminismo (STRATHERN, 2009), mostra-se como uma importante ferramenta para
enfrentar os postulados generalizantes em que num momento ou outro as análises
feministas podem recair. Não obstante tenham sido as matrizes feministas a possibilitar
que outras vozes (das subalternizadas) fossem incorporadas no pensamento acadêmico.
Sobretudo, porque o movimento da prática antropológica de estranhamento do
familiar requer que escutemos as noções e explicações do “Outro” sobre o universo do
qual ela ou ele fazem parte. Requer também que reconheçamos o seu discurso como um
saber, mesmo que implique num saber totalmente oposto ao nosso e daquilo que
achamos correto. Nesse sentido, posso concluir que meus postulados estão inspirados
em princípios considerados feministas, os quais minha formação antropológica propõe
concomitantemente dimensionar, refletir e contextualizar como qualquer outro saber
que se pretenda universal.
Este movimento exigiu, de minha parte, durante o decorrer da pesquisa para que
existisse um constante diálogo/negociação entre pesquisadora e interlocutoras. E
também, que as minhas concepções enquanto mulher e feminista não fossem impostas
às mulheres que não possuem as mesmas referências e visões de mundo que eu.

18
É preciso considerar que o autor José Jorge de Carvalho se aproxima de uma vertente pós-colonial.
Existe uma diferença entre os estudos pós e descoloniais. Ainda que, aparentemente, ambos busquem
notabilizar as vozes das subalternas e subalternos. Os estudos descoloniais surgem, então, como uma
crítica aos fundamentos colonialistas de autores ocidentais que perpassavam inclusive os estudos pós-
coloniais. Nessa medida, pela perspectiva descolonial é preciso descolonizar também o saber pós-
colonial.
62

Concordo com Claudia Fonseca que em sua fala na palestra sobre “A antropologia
através das antropologias”, nas Jornadas Antropológicas ocorridas no âmbito da
Universidade Federal de Santa Catarina, no ano de 2015, salientou que o lugar da(o)
antropóloga(o) será sempre pleiteando ao lado das(os) subalternas(os).
Desta forma, entendo que a pluralidade metodológica e a reciprocidade entre
pesquisadora e interlocutoras requer um significativo engajamento com aquelas pessoas
que dialogamos. Isso implica ocasionalmente que viremos o olhar crítico em nossa
direção no intento de criar alguma possibilidade de sermos mudadas(os) através do
encontro com o “Outro”, e que não necessariamente este “Outro” seja tão diferente do
“Eu”, tal qual sugeriam os antropólogos clássicos. Pois, o fato da Antropologia estudar
a humanidade em termos tão amplos e, ao mesmo tempo tão básicos, exige que a(o)
pesquisadora(o) inclua a si mesmo e inclua seu próprio modo de vida em seu objeto de
estudo (WAGNER, 2010).
Estando postas as considerações, acredito que devemos sempre ter em mente
uma compreensão sobre a responsabilidade que temos com as pessoas a quem nos
dedicamos conhecer e, assim, “abraçar a habilidosa tarefa de reconstruir as fronteiras da
vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em comunicação com todas as nossas
partes” (HARAWAY, 1991, p.99), no compromisso da criação de dívidas que é
etnografar. E de quem sabe, ajudar na construção de espaços que permitam uma autora
que não fala por todas as mulheres, que deixa em aberto a eventualidade de ser mudada
através do encontro, que deixa livre a possibilidade das certezas políticas e analíticas
serem transformadas no decorrer do trabalho de campo. E de que, principalmente, as
vidas das mulheres possam ensinar a todas e todos nós “algo para além do exercício
científico de compreender e traduzir”. (MAHMOOD, 2006, p.154).
As próximas páginas deste texto mantêm um pouco do tom analítico e de
transcrição das experiências geradas no exercício etnográfico. Contudo, os
ensinamentos e aquilo que fora vivido, eu venho guardando e levando comigo para além
das paredes acadêmicas. E outros ensinamentos, eu tenho trazido para dentro das ditas
paredes, haja vista, pôster, croquis e fotografias alinhavadas, costuradas e penduradas
em tecidos de chitas e algodão, nada usuais nos âmbitos de pesquisas19. Ensinamentos

19
As leitoras e os leitores encontrarão no terceiro capítulo, “croquis” das ruas de Santa Maria que
indicam a localização dos armarinhos de costura, e os bairros por onde trilhei minhas caminhadas
etnográficas. Eles são confeccionados à mão, sobre tecidos floridos e papel de gramatura 128 g/m² e
foram feitos com a ajuda imprescindível da minha arquiteta preferida, Mariane Farias. Já na 32ª Jornada
63

condizentes aos saberes apreendidos a partir dos fazeres das mulheres que costuram que
venho trazendo ao longo de minha pesquisa. Às leitoras e aos leitores, felizmente,
considero que escrevo melhor do que costuro. De qualquer forma, os primeiros pontos
foram dados ou será que costurados?

Acadêmica Integrada da UFSM (2017), teci minha pesquisa em um pôster feito de chita e costurado por
mim.
64

CAPÍTULO 2: “Tecendo” histórias e reconhecimentos do trabalho da


agulha

Este segundo capítulo configura-se como um texto de apresentação, não do tema


e nem ao menos da pesquisa em si, visto que estes já foram apresentados anteriormente.
Neste capítulo, apresento efetivamente o universo das linhas e das agulhas e também as
mulheres costureiras para as leitoras e leitores. Para tanto, este capítulo divide-se em
três tópicos: no primeiro deles, busco tecer as mudanças e permanências da costura no
cotidiano das mulheres, baseada nas narrativas das costureiras e através também da
revisão bibliográfica apresentada brevemente no primeiro capítulo. No segundo tópico,
discorro à luz do debate sobre ofícios e profissões acerca do trabalho da costura e a sua
desproteção legal. No terceiro e último tópico, disponho de poesia, imagens, tecidos,
tabelas e textos para tentar dar conta da tarefa de escrever sobre essas mulheres
invisibilizadas e de difícil descrição, as trabalhadoras da agulha.

2.1 DA COSTURA A MÃO AO DESENVOLVIMENTO DAS MÁQUINAS: A


COSTURA DOMICILIAR COMO UMA OCUPAÇÃO COTIDIANA DAS
MULHERES

A costura fez parte do mundo, desde os tempos pré-históricos, quando


supostamente nossos ancestrais conviveram com instrumentos feitos de marfim e hastes
de ossos. Dentre os utensílios criados, já se encontravam as agulhas. As rudimentares
agulhas uniam partes das peles de animais abatidos uma as outras, pregando também
botões feitos a partir de chifres (HALFPAP, et AL, 2007). O historiador inglês James
Laver (1989) considerou o invento da agulha de mão um dos maiores avanços
tecnológicos da humanidade, comparável em nível de importância à invenção da roda e
à descoberta do fogo. E mesmo apesar das posteriores mudanças tecnológicas relativas
ao universo da costura, na maquinaria e nos materiais, nos tecidos e na moda, a agulha
se mantém, com algumas exceções, muito preservada em sua forma inicial de inserção
na sociedade.
De acordo com os estudos da arqueóloga Elizabeth Barber (1995), torna-se
possível afirmar que formas primárias de fiação e tecelagem de fibras surgiram no
período paleolítico superior e foram se modificando e se aperfeiçoando ao longo dos
65

tempos. Vale ressaltar que não será possível retomar cada período histórico desde a pré-
história até os dias de hoje, por isso alguns saltos temporais serão efetuados com o
intuito de elucidar algumas partes da história da costura. Segundo Barber, na Dinamarca
do século XX, por volta da década de 1940, as mulheres não precisavam mais fazer seus
próprios fios, mas ainda precisavam tecer o pano para as suas famílias. Na Grécia rural,
na década de 1960, mesmo com o advento da Revolução Industrial e a instalação da
indústria “pronta para vestir”, todas as lãs e roupas para festivais tradicionais eram feitas
a partir do zero. Estes espaços de fiação, tecelagem e costura foram constituídos como
geralmente femininos, o porquê desta circunstância é o que move a escrita do capítulo
“A Tradition with a Reason: Why textiles were traditionally women's work”20, do livro
“Women’s work” de Barber. Segundo a autora, durante muitos milênios as mulheres
sentaram juntas para fiar, tecer e costurar. Barber questiona, então, o porquê da
produção de roupas estar diretamente vinculada ao universo feminino, e não ao
masculino. A autora afirma que dificilmente a criação dos filhos é a responsabilidade
principal dos homens, desta forma, o trabalho desempenhado pelas mulheres depende
da compatibilidade com as exigências da assistência infantil. Por isso, os trabalhos
destinados às mulheres são aqueles extremamente repetitivos, intermitentes e facilmente
retomados uma vez que interrompidos. Não por acaso, fiar, tecer e costurar são
trabalhos que podem ser feitos em casa e podem conciliar o cuidado das crianças. A
discussão sobre o cuidado de crianças será retomado no decorrer deste capítulo.
Mesmo que, atualmente, seja fácil e cômodo comprar roupas prontas para vestir
nos estabelecimentos da cidade, não imaginamos o quão difícil costumava ser a tarefa
de fiar as fibras, tecer os panos e costurar as roupas para a família. De acordo com
ABREU (1986), a vida familiar e o trabalho estavam diretamente relacionados durante
os séculos XVI e XVII,
Marido, mulher e filhos, em geral, trabalhavam juntos na própria casa,
usando algum tipo de maquinaria rudimentar para fabricar tecidos de algodão
ou lã, rendas, calçados, cordas, pregos e correntes de ferro, e um sem-número
de outros artigos que eram parte comercializados e parte utilizados para o
próprio consumo doméstico. Nessa época, no entanto, essa indústria
domiciliar fazia parte de um sistema mais amplo, que pressupunha uma
economia camponesa e o artesanato urbano independente. A família era,
então, uma unidade produtiva. Seus membros detinham certa igualdade na
responsabilidade face ao processo produtivo e, também, restrita, ainda que
precária, independência econômica enquanto grupo. (ABREU, 1986, p.37).

20
“Uma tradição com um motivo: por que a tecelagem foi tradicionalmente trabalho de mulheres”,
tradução livre da autora.
66

De acordo com a literatura e também com as narrativas de minhas interlocutoras,


pode-se depreender que no mundo interiorizado das casas, a costura costumava fazer
parte dos saberes e fazeres femininos essenciais. O saber fazer da costura estava
expresso até mesmo no universo representativo das fábulas infantis, onde Cinderela
costurou seu próprio vestido para ir ao baile. Outro exemplo é a história da Bela
Adormecida, na qual Aurora espetou seu dedo no fuso da roca de fiar e também a mãe
de Branca de Neve que “costurava sentada à janela, junto de sua caixa de costura”
(MALERONKA, 2007, p.55). A costura estava expressa nos anúncios dos jornais –
como veremos logo em seguida – nos contos, nas poesias e no cotidiano. Isso porque,
roupas íntimas21, roupas de cama, mesa e banho, vestes sociais e de festa eram todas
confeccionadas pelas mulheres no âmbito do lar. Uma “moça bem educada”, ou seja,
“pronta para casar”, deveria incluir a costura em suas prendas domésticas. De acordo
com Anne Hollander,
O que não era feito sob medida era feito em casa ou então era de segunda
mão. De fato as mulheres ricas ou pobres sabiam como costurar ou
entendiam de costura – um número grande delas ganhava a vida com isto.
[...] As roupas e sua confecção, para a maioria das mulheres, eram uma
questão doméstica íntima. Elas poderiam costurar interminavelmente para o
lar, fazendo o acabamento de lençóis e toalhas e confeccionando roupas de
baixo junto com todos os outros tipos de costura. O bordado era feito na
presença de visitas; todo o resto era trabalho comum de uma mulher.
(HOLLANDER, 1996, p. 149 e 150)

Vale destacar que para uma mulher que viveu sua juventude até, pelo menos, os
anos 1960 no Brasil, era esperado que a mesma produzisse enxovais de casamento. Os
conjuntos de panos de prato, toalhas de mesa, toalhas de banho e rosto, lençóis e
camisolas eram costuradas e bordadas a mão. As camisolas podiam apresentar delicadas
aplicações de renda e, às vezes, as mulheres mais velhas da família possuíam a tarefa de
ajudar as mais novas no acabamento do enxoval. Como numa espécie de ritual,
mulheres de diferentes idades se sentavam juntas para costurar e bordar mais do que os
tecidos, mas as suas histórias. Fábio Cerqueira e Denise Santos referem-se a esta
situação nos seguintes termos,

21
De acordo com britânica Rosemary Hawthorne (2009) as famílias menos abastadas tinham a prática de
utilizar os sacos de algodão que as mercearias usavam para embrulhar farinha, açúcar ou arroz para a
confecção de roupas íntimas. Esta foi uma prática que perdurou até o final da Segunda Guerra Mundial,
os sacos precisavam ser fervidos e alvejados e logo depois já podiam ser usados para fazer roupas de
baixo, segundo a autora, “muitas vezes nem toda a fervura conseguia apagar completamente os carimbos
do tecido. Pobres das moças (e rapazes) que tinham que andar com inscrições como ‘12kg – Farinha de
Confeiteiro’ nos traseiros!” (HAWTHORNE, 2009, p.44). Além disso, as mulheres costuravam os
lençóis, as cobertas e até mesmo os travesseiros e colchões.
67

De certo modo, essa valorização do bordar e costurar a mão, e em casa, pode


ser considerada uma sorte de resiliência social da sociedade pré-industrial,
em que o fabrico doméstico e manual das peças do vestuário estava enraizado
como uma ocupação feminina, em que o conhecimento dos tecidos e o saber
fazer associado era um domínio cotidiano das mulheres. (CERQUEIRA e
SANTOS, 2011, p.315).

Em “Artes e ofícios femininos”, a professora de costura Maria Vitorina de


Freitas (1948)22, traz uma ressalva direcionada às mulheres para que não esquecessem
que durante a “execução do enxoval deve entrar o gosto e o bom senso para não fazer
coisas supérfluas que muitas vezes não se enquadram com a instalação do lar”.
(FREITAS, 1948, p.320). Podemos concluir que os enxovais constituem uma das
marcas do tempo, no qual as mulheres precisavam obrigatoriamente recorrer ao
casamento para serem alguma coisa na vida. Atualmente, eles fazem parte da cultura
material de uma época em que esses saberes e fazeres ainda eram demasiadamente
passados de geração em geração. Algumas de minhas interlocutoras de mais idade ainda
guardam peças que fizeram parte de seus enxovais de casamento como, por exemplo, as
camisolas.
Outra produção recorrente na vida dessas mulheres estava relacionada aos
períodos menstruais. Embora o velho e conhecido absorvente da marca “modess” tenha
sido lançado oficialmente em 1933 no Brasil, por volta de 1960 ele ainda não era
popular entre as mulheres do interior ou de baixa renda. Na ausência de absorventes,
elas precisavam resolver seus problemas periódicos de outras formas. Usualmente, as
mulheres costuravam pequenas toalhas higiênicas de pano que eram lavadas e
reaproveitadas. No caso das famílias com numerosas mulheres, compravam-se metros
de tecido de algodão ou flanela para cortar e fazer “trouxinhas de pano” para os
períodos menstruais.
As maneiras de vestir também variam de acordo com os costumes e a moda de
cada época, fazendo com que se modifique também a relação com a costura. De acordo
com minhas interlocutoras, outrora, as mulheres costumavam usar vestidos e saias
chamadas de “godê”, “evasé” ou franzidas e não era plausível que mostrassem os
joelhos. Os tecidos e outros objetos para costura (de agulhas, linhas às próprias
máquinas de costura) eram comprados nos armazéns, estabelecimentos anteriores aos
armarinhos, onde se vendiam também alimentos e materiais de construção. Segundo

22
O livro é um repositório de conhecimentos sobre têxteis e a costura para aquelas mulheres que desejam
seguir o ofício da costureira. Quase como num manual de etiquetas, Maria Vitorina de Freitas explica
como selecionar os tecidos, tirar as medidas de crianças, homens e mulheres, com os exemplos do que
nunca fazer em cada caso.
68

Dona Lã, as pessoas de uma família costumavam ter duas ou três peças de roupa, uma
para uso no cotidiano e outra para ir a Igreja aos domingos ou em ocasiões especiais.
Acostumadas a ficar em casa, cuidando dos filhos ou irmãos, dos afazeres domésticos,
das hortas e dos animais, as mulheres ainda possuíam o trabalho de fiar a roca, fazer a
malha, tratar das lãs, bordar, tricotar, costurar e, vez ou outra, juntavam-se para fazer
trabalhos manuais fora de casa, num passeio ou piquenique.
Assim, começamos a visualizar um ambiente doméstico onde nem só o
tradicional trabalho reprodutivo do lar e todos os demais cuidados faziam parte. Mas,
que também a costura era resultado contínuo do trabalho feminino, entre tantos outros
fazeres manuais como os bordados, os crochês e os tricôs. Termos oriundos do francês e
que designam lavores sofisticados, miúdos, detalhados e trabalhosos. De acordo com a
escritora Ana Maria Machado, numa oportuna aproximação entre têxteis e textos,
escreve,
Podíamos ainda recordar que lavor (bordado, elaboração de fios) tem a ver
com trabalho e é primo de lavrar e lavoura, de lavra e laboratório, diferentes
instâncias em que o trabalho transforma a natureza e gera riqueza. Ou
lembrar que a essência, o estofo de que somos feitos é irmão de étoffe, em
francês (palavra que designa tecido). Mas também a língua nos mostra que,
se toda essa atividade era tão valorizada durante tantos séculos, assim que
surgiu a máquina que substituiu a prática artesanal da fiação, as mulheres que
se dedicavam a essa atividade foram desvalorizadas e sua imagem tão
positiva foi rapidamente destruída. Em inglês, a palavra que designa
solteirona é spinster, originalmente fiandeira. A mesma idéia, de mulher que
trabalhou muito fiando e não casou, é designada em francês como vieille fille,
mas para alguns estudiosos (como Zipes) esse termo não tem a ver com
"filha", mas vem de uma corruptela de filer, "fiar", como ocorreu em alemão
com a expressão equivalente, eine alte Spinne. (MACHADO, 2013, p.183-
184).

Embora MACHADO (2013) refira-se ao período da máquina como aquele em


que substituiu o trabalho e o valor da fiandeira, o mesmo não pode ser atribuído no caso
específico da costura. É claro que o advento da Revolução Industrial no final do século
XVIII surtiu significantes impactos no trabalho realizado pelas mulheres no ambiente
doméstico. Mas, é curioso o fato de que em um primeiro momento as famosas máquinas
de costura irão surgir como utensílios direcionados ao público feminino em que “cada
família poderia ter a sua própria máquina e fazer a sua própria costura”
(MONTELEONE, 2012, p. 10).
69

Figuras 2 e 3: Anúncios veiculados no dia 6 de outubro de 1940 no jornal “O Estado de São Paulo”.

As máquinas de costura eram, portanto, ideais para serem usadas em casa ou em


pequenos ateliês de costura, no caso dos homens alfaiates. Na figura 3 veiculada no
jornal impresso “O Estado de São Paulo”, podemos ler a chamada da conhecida marca
Singer23, "Sem sair de casa, a senhora poderá ter um meio de vida seguro e
independente. Famosa há 89 anos, a máquina de costura Singer, leve, veloz e de fácil
manejo, cose, embainha, franze e debrua com perfeição. E pode ser adquirida em
suaves condições. Assegure o sustento dos seus, com a moderna e duradoura máquina
de costura Singer." Já a segunda figura anunciada no jornal, é a publicidade de outra
marca comercializada na época, concorrente das máquinas Singer. De acordo com o
anúncio, as inováveis “Máquinas de Costura Brasil” representam “o ideal da mulher
brasileira” (Figura 2).

23
De acordo com ABREU (1986), a máquina de costura se constituiu como um dos pioneiros bens de
consumo “duráveis” fabricados em grande escala. Originalmente produzida de forma modesta pelo
inventor Elias Howe nos EUA em 1846, mas, patenteada com uma forma mais aprimorada e eficiente
pelo também americano Issac Singer no ano de 1851. “A máquina Singer já possuía todas as
características principais da máquina de costura moderna, permitindo efetuar costuras simples de maneira
muito rápida. Seu baixo preço facilitou sua utilização...” (ABREU, 1986, p. 90-91).
70

A figura 4 abaixo nos remete a fala de uma personagem costureira: “Esta


máquina assegurou a educação de meus filhos!”. O anuncio completa, “Milhares de
lares têm sido erguidos sobre o trabalho de mães heróicas manejando uma máquina de
costura Singer...”. Diante da publicidade que envolvia as máquinas de costura nos anos
194024, podemos perceber que a costura era uma atividade recorrente na vida das
mulheres.
Também na década de
1940, a indústria de
eletrodomésticos pertencentes à
“linha branca”25 instalou-se no
Brasil. Desta forma, não só a
máquina de costura transformou o
cotidiano e a vida das mulheres
no ambiente doméstico, mas
também a máquina de lavar, o
fogão a gás, o forno microondas,
a geladeira, dentre outros. De
acordo com Elizabeth Bortolaia
Silva (1998), é possível analisar a
vida doméstica por meio das
relações cotidianas das pessoas,
das atividades desenvolvidas e
dos objetos, equipamentos ou
Figura 4: Anúncio veiculado no dia 20 de outubro de 1940 no
jornal “O Estado de São Paulo”. máquinas que auxiliam no
desenvolvimento das atividades
já mencionadas. Em “Tecnologia e vida doméstica nos lares” (1998), a autora
desenvolve uma discussão acerca das tecnologias domésticas e suas relações com a
construção do ambiente doméstico no final do século XX no Brasil. Conforme a autora,
os modos de vida das famílias foram afetados pela praticidade de armazenar comidas
congeladas e posteriormente descongelar usando o forno microondas. Requentar a

24
As máquinas de costura em sua sequência geracional são as de manivela, pedal, motor ou programáveis
e podem realizar diversas operações como a costura reta, curva, entre outras. Mas, é interessante atentar
para o fato de que, em geral, as máquinas de costura apresentam as mesmas características básicas até os
dias de hoje.
25
São os eletrodomésticos que historicamente foram desenvolvidos para atender as necessidades
primordiais de uma residência. Exemplos, geladeira, fogão a gás, freezer, etc..
71

comida se tornou, assim, uma tarefa que pode ser realizada por qualquer membro da
família, embora, o serviço “sério” de cozinha ainda seja realizado majoritariamente
pelas mulheres.
De acordo com a historiadora Flávia Pinho (2007), ainda nos primórdios do
século XX, a cozinha brasileira sofreu transformações radicais com o advento e
popularização da eletricidade. A partir disso, um arsenal de eletrodomésticos adentrou
nos lares. O liquidificador, segundo a autora, é um eletrodoméstico antiquado, noventa
anos depois de sua invenção, ele continua praticamente o mesmo. A batedeira chegou
ao Brasil em 1936. Já o microondas se configura como o divisor de águas na história da
cozinha e da culinária, foi considerado uma das maiores invenções do século. Mas só
chegou à casa das brasileiras no ano de 1985. É claro que a inserção das tecnologias do
lar não aconteceu de forma acelerada e igualitária nas residências de todo o Brasil, pois,
a grande maioria de trabalhadoras e trabalhadores não possuía o capital necessário para
adquirir os produtos que o mercado estava oferecendo. Ou seja, existiam e ainda
existem certas disparidades econômicas e sociais entre as regiões do país que dificultam
tal inserção. Um exemplo disso acontece com a máquina de lavar, nas palavras das
arquitetas Rosana Vasques e Maristela Ono (2010),
De acordo com a PNAD de 2007, a máquina de lavar roupa está presente em
39,5% dos lares brasileiros, em média. No entanto, há variações
consideráveis entre as regiões, encontrando-se médias elevadas nas regiões
mais ricas – 53 e 54,9% nas regiões Sudeste e Sul, respectivamente -, e
menores em regiões mais pobres – 12, 8 e 24% nas regiões Nordeste e Norte,
respectivamente (IBGE, 2008). (VASQUES; ONO, 2010, p.6).

Uma alternativa para a lavagem das roupas das camadas mais desfavorecidas
da população brasileira é o chamado “tanquinho”. Uma máquina semi-automática que
esfrega a roupa, mas possui a desvantagem de não centrifugá-la, dependendo ainda da
força braçal da mulher que necessita torcer a roupa à mão. Apesar disso, as tecnologias
incentivam o consumo e alteram o hábito de fazer as atividades no ambiente doméstico,
ora complexificando, ora facilitando o dia a dia de quem desempenha as atividades do
lar26.

26
“O tempo passa e o progresso facilita a vida. O engenho humano tem apresentado um mundo de
inovações. Nos cuidados domésticos, outrora tão trabalhosos, tão pouco agradáveis...”, enunciava a
propaganda da enceradeira elétrica da marca EPEL no ano de 1951, atualmente a imagem é veiculada na
internet sem a fonte. A partir do enunciado desta propaganda, torna-se visível que as novas tecnologias
visavam, ou pelo menos intentavam visar, a praticidade no desenvolvimento diário das atividades
domésticas. Mas, existem controvérsias quanto a isso, um exemplo é o fogão a gás que possibilitou o
cozimento de quatro ou seis variedades (alguns modelos de três “bocas”) de comida para uma só refeição.
Quando anteriormente, com o fogão à lenha, era comum cozinhar grandes quantidades de poucos
72

Conduzindo novamente a discussão para as máquinas de costura, pode-se ainda


ressaltar que o saber fazer da costura era, geralmente, ensinado por outras mulheres ou
passado de mãe para filha, fato observável nas próprias propagandas das máquinas de
costura como demonstrou a antropóloga Alice Silva (1989). Em sua análise sobre o
“Jornal Feminino” dos anos 50, a autora, atenta para o fato que de a mensagem
transmitida para as leitoras do jornal era a de uma perpetuação da domesticidade e do
papel tradicionalmente desempenhado pelo feminino, que poderia ser resumido na
propaganda das máquinas de costura da marca Minerva, “Hoje para a Senhora...
Amanhã para a sua filha... Depois para a sua netinha...” (SILVA, 1989, p. 146).
Em conformidade com Maleronka (2007), o conhecimento da costura era
valorizado e trazia consigo o atendimento às necessidades imediatas da família ou da
comunidade em geral. Por isso, de geração em geração de mulheres era necessário que o
domínio deste saber fazer passasse para as descendentes. As mulheres poderiam ainda
ser influenciadas pela convivência com outras mulheres da vizinhança “que ajudavam a
aflorar a sensibilidade e o refinamento”. (MALERONKA, 2007, p.50).
Ocasionalmente, alguns cursos de corte e costura poderiam ser feitos para
aprimorar os conhecimentos sobre a ocupação, ou mesmo para iniciar jovens mulheres
que não tiveram a oportunidade de aprender em suas casas. Este tipo de aprendizado
também era viabilizado por outras mulheres. Dona Lã, a título de exemplo, dedicou-se a
alguns destes cursos. Na sua cidade, Rolante (interior do Rio Grande do Sul), eles eram
organizados e oferecidos pela comunidade da Igreja Católica.
Nesses cursos, fomentava-se o desenvolvimento de atividades rentáveis que
poderiam ser feitas sem que a mulher precisasse sair de sua casa para trabalhar.
Tornando a costura uma profissão feminina exemplar, os cursos reforçavam os
estereótipos de vocação feminina natural, mas também proporcionavam meios para as
mulheres possuírem a sua própria renda ou complementarem a renda familiar. De
acordo com Maleronka (2007), entre 1930 e 1940, a costura como profissão foi
fortemente estimulada pelo Estado Novo no Brasil. Atualmente, ainda podemos
encontrar cursos de corte e costura oferecidos por instituições de educação
profissionalizante e também pelas próprias costureiras.

“pratos”. De certa forma, isso acabou complexificando o trabalho de quem provê a alimentação da
família.
73

Além disto, o investimento numa máquina de costura poderia na época de Dona


Lã, por exemplo, configurar-se na forma de garantir o próprio sustento e o de seus
filhos. Entretanto, como vimos, estando às mulheres destinadas ao ambiente doméstico,
por consequência, os seus trabalhos também estavam circunscritos no grupo familiar. E,
independente do quanto pudessem contribuir para o sustento da casa, as mulheres não
poderiam se destacar, de fato, como trabalhadoras autônomas (ABREU, 1986).
Entretanto, não podemos deixar de reconhecer que nos primórdios do século
XX, a máquina de costura talvez tenha sido o aparelho doméstico que mais afetou a vida
e o trabalho das mulheres, pois, não teve como efeito imediato a transferência para as
indústrias de vestuário. O que resultou num importante papel desempenhado pelas
mulheres na produção manufatureira, mesmo que não de forma independente.

Figura 5: "As alunas do Curso Rolantense (1960)". Fonte: Acervo pessoal de Dona Lã.
74

Figura 6: Na primeira fileira, de baixo para cima e da esquerda para a direita, a primeira mulher é Dona
Lã, ao lado de seu marido no curso de corte e costura. O ano em que a foto foi tirada está perdido em sua
memória, o local é no salão de festas da Igreja e todas as roupas penduradas no varal foram
confeccionadas pelas alunas. Fonte: Acervo pessoal de Dona Lã.

Somente mais tarde, quando houve a inserção de novas máquinas de costura


especialmente adaptadas e destinadas ao uso industrial é que o custo benefício da
fábrica passou a ser mais procurado, competindo com o trabalho manufatureiro da
costureira que passou rapidamente a ser desvalorizado. A efetiva instalação da indústria
da confecção “prêt-à-porter” no século XIX mudou drasticamente este cenário da
costura doméstica: o vestuário e os modos de produção organizam-se agora sob novas
bases. As máquinas de costura deslocam-se da residência familiar para as fábricas.
Segundo François Boucher,
O domínio da indústria dita de “confecção” é essencialmente caracterizado
pelo trabalho em série, sem execuções especiais sobre medidas pessoais do
indivíduo e com a utilização predominante da máquina. O corte é feito em
série: ou a roupa é prêt-à-porter, oferecendo um amplo leque de modelos
estudados entre os quais o cliente escolhe o que lhe convém, ou a roupa é
executada em demi-mesure ou seguindo os padrões de medidas industriais,
num tecido escolhido e um corte mais preciso. (BOUCHER, 2010, p. 406).

Em suma, o progresso da indústria têxtil revolucionou o modo de vestir com o


desenvolvimento de roupas prontas para o mercado, tornando assim possível produzir
roupas em largas escalas industriais, com preços mais acessíveis que os das mulheres
75

costureiras, em maior quantidade e até mesmo em menos tempo. Partindo dos fatos
históricos que influenciaram a opção das consumidoras e consumidores ao “prêt-a-
porter”, o saber fazer feminino da costura passado de mãe para filha foi se esmaecendo
por entre os dedos das novas gerações, fazendo com que o trabalho da costureira a
domicílio declinasse de forma substancial.
A indústria da confecção alterou o cotidiano, o tempo e a vida das pessoas. Ao
mesmo passo em que os grandes estilistas também começaram a surgir com “uma
produção diversificada de discursos sobre moda” (RAINHO, 2002, p. 19). Segundo o
historiador E. P. THOMPSON (1998), não há desenvolvimento econômico sem que
haja também desenvolvimento da cultura. No caso da costura, podemos inferir que os
novos modos de vestir e produzir mudaram significativamente a nossa forma de se
relacionar e viver em sociedade, tendo em vista o fascinante consumo da moda nos dias
de hoje.
Mas, embora Elis Regina27 cante para os amantes do passado o lembrete de “que
o novo sempre vem”, vale considerar que ele não simplesmente surge e substitui o
“velho”. De modo que as costureiras não deixaram de existir e o saber fazer da costura
artesanal se configura como um sobrevivente. Abreu (1986) já havia classificado com
base em seu estudo as formas que a costura poderia assumir,
A costura enquanto saber pode assumir várias formas: desde uma forma
exclusivamente doméstica, quando se torna apenas uma faceta adicional do
trabalho doméstico de responsabilidade da dona de casa; uma forma
artesanal, no caso das costureiras que tem freguesia particular; até formas
mais diretamente ligadas ao capital, quer numa relação de assalariamento
típica, numa grande fábrica ou em pequenas confecções, quer sob a forma do
trabalho industrial a domicilio. (ABREU, 1986, p. 213).

Contudo, a realidade das costureiras não é assim tão milimetricamente dividida


entre costura de fábrica e costura de casa, como nos mostra o próprio estudo de ABREU
(1986) quando investiga o trabalho a domicílio na indústria da confecção. Assim,
podemos perceber que nas suas trajetórias de costureiras os cenários dos quais elas
fazem parte estão mesclados entre fábrica, casa, loja e ateliês de costura. O mundo do
trabalho está em constante transformação, mas ser costureira é ainda hoje uma estratégia
de sobrevivência na qual elas se ajustam às novas formas de produção e resistem
enquanto mulheres costureiras. Como, certa vez, relatou-me Dona Chita, “ser

27
Elis Regina foi uma importante e inspiradora cantora popular brasileira dos anos 1960 ao início dos
anos 1980. A música referida, “Como nossos pais”, foi originalmente composta pelo cantor e compositor
cearense Belchior em 1976.
76

costureira é sempre garantir um dinheirinho”, pois, “o trabalho da costura é aquele


que as pessoas vão precisar sempre, não importa os tempos”.
Por fim, refletir sobre as narrativas do trabalho das mulheres que costuram
significa necessariamente voltarmos ao tempo enquanto ouvimos suas histórias. A
tentativa de reconstrução do saber fazer da costura ao longo dos tempos é fruto de
revisões bibliográficas exaustivas acerca do tema. Junta-se um pedaço aqui e outro lá de
informações que poderiam passar despercebidas por investigadoras e investigadores que
não tivessem o devido interesse por este saber fazer. Mas acima de tudo, é fruto das
conversas com minhas interlocutoras. A partir de suas narrativas, pude remontar o
cenário em que a costura era realizada. As costureiras desta pesquisa compartilham uma
memória coletiva no tempo (HALBWACHS, 2006) que se forma ao redor da costura.
As memórias individuais de cada costureira e também as memórias coletivas se
entrelaçam a partir do instante em que “o funcionamento da memória individual não é
possível sem esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não
inventou, mas que toma emprestado de seu ambiente”. (HALBWACHS, 2006, p. 72).
Por isso, entre conversas sobre “os tempos de antigamente”, entre as pausas
silenciosas ou chorosas, as omissões e as narrativas de orgulho da profissão, vou
intentando remontar nesta dissertação a história da costura contada pelas mulheres.

2.2 ENTRE COSTURAS E RECONHECIMENTOS: UM DIÁLOGO COM A


SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES

A respeito do reconhecimento do trabalho das costureiras, um dos fatores em


comum relativo às minhas interlocutoras que se intitularam como tal é o fato de não ser
oferecida uma profissão regulamentada e consequentemente reconhecida em termos
jurídicos. Em junho do ano de 2016, a Comissão de Desenvolvimento Econômico,
Indústria e Comércio da Câmara de Deputados rejeitou o projeto de lei (PL) que visa
regulamentar a profissão de costureira(o), ainda que o mesmo projeto no ano vigente
siga em trâmite para as comissões de Trabalho, de Administração e Serviço Público, de
Constituição, de Justiça e de Cidadania antes de retornar para o plenário.
O texto do Projeto de Lei Nº 7.806-A prevê jornada limitada de seis horas de
trabalho diário em trinta horas semanais, sendo que as horas excedentes seriam
consideradas horas extras pagas com a razão de cem por cento, devido ao alto grau de
77

esforço repetitivo, desgastante, fator de doenças e problemas posturais. Veta a


contratação de profissionais estrangeiras(os) para os setores técnicos e operacionais
quando houver mão de obra brasileira qualificada para tal. Aponta para a
obrigatoriedade do pagamento de adicional de insalubridade de vinte por cento sobre os
salários, sendo dispensado o laudo técnico para a comprovação. Visa o fornecimento de
cestas básicas a serem providas pelo(a) empregador(a), bem como a garantia dos planos
de saúde capazes de atender as necessidades das(os) trabalhadoras(es). Assegura o piso
nacional de dois salários mínimos e delimita que todas(os) as(os) costureiras(os)
deverão possuir certificado em curso oficial de costura.
O projeto ainda classifica as(os) profissionais em sete divisões: costureira(o)
chefe: profissional capacitada(o) em todas as modalidades da costura (tirar moldes,
cortar, confeccionar, etc.) em curso reconhecido; costureira(o) sub-chefe: auxilia e
substitui a(o) costureira(o) chefe em caso de ausência; oficial costureira(o):
profissional que corta os tecidos, tendo responsabilidade das peças a rigor ou mais
complexas; costureira(o) de fila ou costureira(o) 3: trabalhadora(o) que opera as
máquinas da fábrica; costureira(o) aprendiz: é a(o) iniciante que chuleia, acolchoa
entretelas, faz bolsos etc.; costureira(o) acabadora ou acabador: faz reparos em geral;
costureira(o) passadora ou passador: fica encarregada(o) de passar à ferro todas as
peças do vestuário.28
A justificativa para a rejeição da PL por parte da Comissão de Desenvolvimento
Econômico, Indústria e Comércio refere-se, sobretudo, ao fato de que algumas das
questões presentes no texto da lei poderiam prejudicar parte da categoria, tal qual a
exigência de curso específico para capacitação da(o) profissional, visto que muitas(os)
delas(es) adquiriram o conhecimento da costura com suas familiares ou conhecidas de
maneira informal e, portanto, desenvolveram suas habilidades de maneira estritamente
empírica.
Neste ponto, outro fator importante deve ser elencado na discussão, pois, como
já podemos perceber, a categoria de costureira(o) está sub-dividida em outras duas
categorias: existem as(os) costureiras(os) da produção industrial que confeccionam

28
Esta classificação lembra a divisão do tempo das Corporações de Ofício – que remontam desde a
Idade Média – instituições que regulamentavam as profissões como a alfaiataria e que dividia seus
trabalhadores na ordem hierárquica de: mestres, oficiais de peça, meios oficiais e aprendizes.
(SAUTCHUK et AL, 2009).
78

vestuário massivo em série e as costureiras29 que trabalham em casa e que realizam um


serviço mais artesanal. Sendo assim, o projeto, como vem sendo redigido, pode causar
conflitos trabalhistas entre as diferentes partes que compõem essas categorias. São
recorrentes, na prática, situações em que determinações legais criam fronteiras que são
mais complexas de serem delimitadas na realidade social, o que acaba por resultar em
direitos para alguns e ausência deles para outros. Refiro-me, particularmente, a
PEC72/13 que visava dar isonomia para as trabalhadoras domésticas em vista de outros
trabalhadoras(es) que ofereciam serviços gerais. Contudo, uma alteração no corpo do
texto da lei terminou por isentar as trabalhadoras diaristas de terem os seus direitos
garantidos. Desta forma, a lei contemplou apenas as trabalhadoras consideradas
mensalistas e que ofereciam serviço de natureza contínua na residência de seus patrões.
Portanto, mesmo que a PL Nº 7.806-A fosse aprovada, muitas(os) trabalhadoras(es)
permaneceriam desprotegidas(os) pela lei.
Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção
(Abit), existem 1,3 milhões de pessoas empregadas na indústria têxtil no Brasil – sem
contabilizar as(os) costureiras(os) autônomas(os) – concentradas principalmente nos
Estados de São Paulo, Paraná, Goiás, Pernambuco e Minas Gerais. Cerca de oitenta e
sete por cento são mulheres e setenta e oito por cento possuem apenas o ensino
fundamental. Esses números colocam nosso país como o quinto maior produtor têxtil do
mundo e o quarto maior segmento de vestuário, ficando logo atrás de países como a
China, Índia, Estados Unidos e Paquistão. Embora exista um acompanhamento da
Organização Internacional do Trabalho, diversas pesquisas, como as realizadas por
NEVES e PEDROSA (2007), vem revelando a precariedade do trabalho no setor têxtil.
Muitas associações sindicais como o Sindicato das Costureiras de São Paulo e
Osasco, o Sindicato dos Trabalhadores em Confecção de Goiânia (STIC/GO), a
Entidade Sindical do Rio Grande do Norte (SOACTICRGA/RN) mais conhecida como
Sindcostureiras, o Sindicato dos Oficiais Alfaiates, Costureiras e Trabalhadores nas
Indústrias de Confecções de Roupa, Cama, Mesa e Banho de Belo Horizonte e Região
Metropolitana (SOAC/BH) e o Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias do Vestuário
em Porto Alegre/RS, entre outros, atuam para a conquista de direitos para as(os)

29
Uso aqui o substantivo feminino, devido ao desconhecimento de homens que trabalhem neste segmento
que se constituiu historicamente como um lugar de trabalho feminino. Exceto que sejam mencionados os
alfaiates, contudo, devido à escassez do ofício no mundo moderno atual, optei por trazer à tona apenas a
questão das costureiras residenciais, que apesar de terem diminuído consideravelmente, ainda são muito
requisitadas.
79

trabalhadoras(es) da agulha. Assim, alfaiates, costureiras e demais trabalhadoras(es) da


indústria da confecção aliam-se na busca por reconhecimento da profissão, melhorias
salariais, melhores condições de trabalho e bem estar social. Os dados iniciais e as
associações das(os) trabalhadoras(es) apenas reafirmam que existe um grande
contingente de mão de obra de costureiras que necessitam ter seus direitos legais
reconhecidos e garantidos dentro de suas especificidades. Portanto, torna-se necessário
reconhecer a importância que deve ser dada para a produção de vestuário e as pessoas
que nela deixam o seu suor e esforço.
Outra abordagem acerca da regulamentação da profissão – desta vez não do
universo das leis, mas sociológica – distancia as(os) trabalhadoras(es) da costura de sua
conquista para a obtenção de reconhecimento profissional. Isso se deve ao antigo
interesse por parte da Sociologia ao mundo do trabalho e as suas classificações das
atividades trabalhistas entre profissões (conhecimento científico) e ofícios
(conhecimento técnico). Ou seja, a profissão estaria ligada ao intelecto e ao uso da
mente, enquanto o ofício estaria mais voltado para as mãos e o uso do corpo. Para o
sociólogo Eliot L. Freidson, essa distinção entre trabalho manual e trabalho mental é
antiga e capta as distinções entre um e outro de maneira equivocada, pois o trabalho das
profissões se distinguiria do trabalho de ofícios por ser uma “especialização criteriosa
teoricamente fundamentada.” (FREIDSON, 1996, p.02).
Tradicionalmente, na Sociologia das Profissões, abordam-se duas correntes de
pensamentos: a corrente funcionalista e a corrente interacionista. Na corrente
sociológica funcionalista americana, alguns autores tomam as profissões como modelos
superiores aos ofícios, desenvolvendo uma série de características que dividem ambas
as atividades. Sendo assim, o desenvolvimento de certa atividade só pode se caracterizar
enquanto profissão se atender certas demandas como,
[...] a existência de um corpo de conhecimento suficientemente abstrato e
complexo para requerer um aprendizado formal prolongado; uma cultura
profissional sustentada por associações profissionais; uma orientação para as
necessidades da clientela e um código de ética. (DINIZ, 2001, p.20).

Diferentemente pensam alguns sociólogos interacionistas simbólicos como, por


exemplo, Becker (2007). Na perspectiva abordada pelo autor, essa divisão dos trabalhos
é apenas o resultado das interações e processos sociais. Dessa forma, contesta-se a
corrente anterior, alegando que todas as atividades laborais conseguiriam ocupar o posto
de profissão. Isso seria possível caso tivessem um tipo de socialização que viabilizasse
80

um reconhecimento social e monetário de todos que exercem e usufruem aquela


determinada atividade. Para o sociólogo francês Claude Dubar (2012),
A questão da profissionalização é assim redefinida pelos interacionistas como
um processo geral, e não reservado a certas atividades, a partir do postulado
de que todo trabalhador deseja ser reconhecido e protegido por um estatuto e
da constatação de que toda “ocupação” tende a se organizar e lutar para se
tornar “profissão”. (DUBAR, 2012, p. 356).

Caso tomemos como premissa a ideia arbitrária de profissão correspondente a


corrente funcionalista de pensamento, somente um grupo de trabalhadores beneficiados
pela legislação poderia ser identificado como profissional. A partir do que vimos acima,
em relação à tramitação do projeto de lei recém estar entrando em um processo de
regulamentação, o trabalho das costureiras estaria muito longe de se configurar
enquanto profissão. Nesse sentido, continuaria sendo relegado a um mero status de
ofício, em que o corpo trabalha mais do que a mente.
Por este motivo, reconheço que seria mais apropriado tomar como premissa a
ideia interacionista atribuída à profissão. Pode-se relacionar outros atributos, delegando
importância à busca por profissionalização de grupos que mantém um reconhecimento
de si. A partir das organizações dos sindicatos, percebe-se que o grupo profissional das
costureiras configura-se em situações de trabalho marcadas por trajetórias de vida,
divisão do trabalho (de classe, gênero e etnia), continuidades e rupturas, relações
patronais, hierarquizações. Além disso, o grupo vem há muito tempo lutando por
reconhecimento legal, tendo em vista que o reconhecimento social, de algum modo,
apresenta-se quando referente à profissão de costureira.
Um exemplo que demonstra certo reconhecimento social das costureiras no
Brasil é a comemoração o “Dia da Costureira”. A data varia de acordo com os estados,
visto que cada região sancionou a lei para comemoração em dias diferentes. Assim,
existem oscilações do dia vinte e sete de março, passando por vinte e dois e vinte e
cinco de maio. Recentemente, os Correios investiram na iniciativa de registrar
profissões que fazem parte do contexto histórico e sociocultural do povo brasileiro em
formas de selos e a costureira foi uma das profissões escolhidas. Com traços coloridos e
leves, os valores inerentes ao seu trabalho são retratados no desenho que desde então
estampa correspondências por todo o território nacional.
Homenageada por algumas instituições, invisibilizadas e precarizadas por outras,
a costura é um tipo de trabalho que é realizado em grande parte dentro das casas das
mulheres que residem em comunidades, e uma quantidade significativa deste trabalho
81

não é reconhecido como propriamente trabalho e, por conseguinte, profissão. Ora


porque não é totalmente recompensado, ora porque não se realiza em tempo integral.
Sem esquecer-me de mencionar os trabalhos de costura que são realizados em tempo
integral, mas beiram a exploração à margem da informalidade. O inverso disso tudo? As
profissões listadas em tipos especiais de ocupações, certificadas e regulamentadas.
Entretanto, não adianta teorizar sobre as profissões oficializadas sem considerar também
aquilo que por ventura ainda não é reconhecido.
Acredito que boa parte da população de uma cidade, ao menos no Brasil, já
tenha tido contato com pelo menos uma costureira de bairro a qual precisou recorrer em
algum momento. Ao observarmos o seu fazer, fica evidente o esforço físico corporal
despendido no serviço diário, mas existe também o esforço que se configura como
mental em outras instâncias: ela planeja, organiza e gerencia seu trabalho remunerado e
o não remunerado (doméstico). Algumas teóricas feministas chamam este trabalho de
carga mental, outras de trabalho emocional ou reprodutivo, como discutirei mais
precisamente no próximo subtópico.
Dito tudo isso, saliento que não farei distinção ou recortes de hierarquias entre
ofícios e profissões. Seguirei a linha analítica das antropólogas Fernanda Nummer e
Maria C. França (2015), levando em consideração os projetos de vidas e percursos das
trabalhadoras associados ao trabalho da costura que permeiam uma complexificação
diferente destas noções de ofícios e profissões organizadas pelos teóricos discutidos
anteriormente.
Os ofícios e profissões têm sido estudados na Antropologia de maneira distinta à
disciplina sociológica. Nestes trabalhos tem se enfatizado e se observado os significados
de rituais de iniciação, performances, estilo de vida, memória e relações geracionais
ligadas ao mundo do trabalho. Sendo assim, voltarei o olhar para as práticas, para os
saberes e fazeres que se configuram como maneiras de saber (sobre)viver.

2.2.1 Sobre afetos: costura e cuidado na vida das mulheres

Ao pensar sobre as narrativas acerca do trabalho das costureiras, não posso


deixar de atentar para outras particularidades que vão além do costurar e que se
sobressaem nos momentos em que as mulheres falam sobre as suas jornadas de
trabalho. Como já referido no tópico anterior, um dos fatores que perpassa a vida de
todas as mulheres com quem trabalhei é o cuidado.
82

Novamente ressalto que o trabalho das costureiras em questão se desenvolve


muitas vezes no ambiente doméstico e por isso também acaba se mesclando com o
trabalho que a casa demanda. É incessante, intermitente, maternal e exclusivamente
feminino. Observei tantas mulheres como Chita, Renda, Filó, entre outras, em suas
tarefas domésticas ininterruptas na vida diária e que por anos e mais anos são
aprendidas e realizadas de forma hereditária. Tarefas que são, em geral, o suporte
emocional e logístico necessário para que as famílias se mantenham e se sustentem
como tal. Dedicar-se ao cuidado da casa e da família é um trabalho que dura 24 horas
diárias, em todos os 365 dias no ano, com férias inexistentes e sem nenhum tipo de
remuneração. Elas limpam a casa, cozinham, cuidam dos filhos, dos animais de
estimação, do marido e uma das outras quando precisam. Costuram, tricotam e, algumas
como Linho, bordam histórias com linhas coloridas por entre bastidores. Os bastidores
de um trabalho invisível e que não cessa.
Perceber que os trabalhos domésticos e de cuidado são pertencentes ao mundo
dos bastidores porque não são valorados pode parecer contraditório se reconhecermos
que eles fazem parte do ato de reproduzir a força de trabalho e a vida humana. O
trabalho da costura, não na mesma medida, pode ser pensado como um trabalho
essencial para a manutenção da nossa sociedade (visto que todos precisam vestir algo,
até mesmo para dormir) e que também é desempenhado na maioria das vezes por
mulheres. Desta forma, tal reflexão implica, necessariamente, que se percorram as
nuances dos trabalhos realizados por estas mulheres a fim de não apenas reconhecer que
são pouco valorizados, mas também para buscar compreender o porquê desta
circunstância.
A costura não constitui o cuidado, mas tendo em vista que, ambos se configuram
como diferentes saberes femininos, o cuidado termina por constituir a vida das mulheres
que costuram. Vale ainda ressaltar que nunca foi de minha intenção focar na categoria
de cuidado, mas no momento em que este se sobressaiu, tornou-se inevitável não olhar
para o que o trabalho de campo me mostrava. Por isso, tentei aqui, evidenciar como
ambos estão presentes na vida de algumas mulheres. São trabalhos pesados, afetivos e
essenciais para a manutenção e organização da vida em sociedade. Desenvolverei
melhor o argumento a partir das linhas que se seguem.
Começo relembrando o que a psicóloga social Pascale Molinier (2012) nos traz
em seu texto “Ética e trabalho do care”. Nele, ela busca nos apresentar o “care”
(cuidado) como um “savoir-faire” (saber-fazer) discreto, no sentido de explicitar a
83

problemática deste trabalho invisibilizado. Molinier apresenta o argumento de que


quando um trabalho é bem feito, ele não se torna visível, “seu sucesso depende em
grande parte de sua discrição, ou seja, da supressão de seus rastros” (MOLINIER, 2012,
p.33). Os “savoir-faire discretos”, neste sentido, são tratados pelo universo ordinário
como meras gentilezas, simpatias, etc. A autora prossegue nos fazendo pensar que todas
as pessoas em alguma época de suas vidas já foram “servidas” (cuidadas) por alguma
mulher geralmente da família. Isso significa dizer que mesmo que não sejam
diretamente solicitadas, algumas mulheres vem desempenhando o papel de nutrir e
cuidar das demais pessoas. A partir disso, a autora traça uma inteligente comparação do
“care” com as cenas do filme “La Belle et La Bête” (1946) dirigido pelo surrealista
Jean Cocteau. No filme não existem serviçais para desempenharem o trabalho de pôr a
mesa e servir as pessoas, assim, candelabros, bules, xícaras e bandejas ganham vida
através de feitiços, o trabalho é magicamente realizado por alguém fantasmagórico, ou
seja, que não aparece, é reduzido ao seu “órgão-função” e que por isso não existe.
De uma maneira associativa, quando pensamos em cuidado, imaginamos quase
que imediatamente as cuidadoras e/ou enfermeiras que, literalmente, cuidam de pessoas
idosas e enfermas. Entretanto, mesmo que estas sejam ocupações feminilizadas no
mercado de trabalho, o cuidado percorre a vida das mulheres em todas as instâncias,
sejam elas manifestas na esfera profissional, no cuidado materno ou no cuidado
doméstico (ato de cuidar da casa ou até mesmo da confecção de roupas para a família e
para o restante da sociedade). Tomando minha família como
exemplo, minha madrinha e tia-avó que nomeei aqui de Dona
Organza30, contara-me que ainda quando criança costurava
roupinhas para as suas bonecas e que mais tarde, cumprindo o
seu “destino feminino”, passou a costurar o mesmo estilo de
roupinhas para os seus filhos com a finalidade do cuidado materno. Tal exemplo se
aproxima da discussão realizada no início deste capítulo, quando recordo os escritos de
Barber (1995). Os trabalhos realizados com agulhas e/ou fios são trabalhos femininos,
pois, são compatíveis com o cuidado infantil que tradicional e historicamente também
foi algo relegado ao universo das mulheres.

30
Usado para confeccionar vestidos de debutantes e noivas, o tecido chamado de “organza” é leve,
transparente e “armado”. Muito parecido com o tule ou filó, contudo, possui a diferença de dar volume
para as vestimentas. Escolhi este codinome para a mulher chamada Dona Etelvina em meu cotidiano. Para
ela, este tecido marcou a sua adolescência e, por isso, compõe o imaginário do vestir-se bem como era
“antigamente”.
84

Deve-se salientar que, apesar da costura parecer comportar apenas delicadeza,


ela carrega em cada ponto um aprendizado cheio de significados, cuidados, saberes
femininos e geracionais. Compreender, portanto, o trabalho das mulheres que costuram,
envolve análises complexas, que num exercício de reflexão poderíamos comparar com a
categoria de cuidado, a qual a professora de Ciência Política Joan Tronto nos leva a
tomá-la como uma carga de trabalho pesada e afetiva (TRONTO, 1997, p.188).
Inspirada em Tronto (1997), discorrerei primeiro sobre a carga de trabalho
pesado da costureira e, em seguida, sobre os aspectos afetivos desse trabalho. Conforme
já mencionei nesta dissertação, em meu trabalho de conclusão de curso, pesquisei
narrativas sobre o trabalho de homens alfaiates e mulheres costureiras. Em suma,
diferentemente das narrativas masculinas (que eram majoritariamente centradas no
mundo do trabalho fora de casa), as mulheres com quem conversei mesclavam suas
experiências profissionais a sentimentos e emoções que envolviam o universo familiar.
Em cada bordado, uma história, amores e desamores, biografias anônimas de mulheres
comuns, lembranças da juventude e experiências cotidianas do cansaço causado pelas
demandas do trabalho no lar. Isso porque o seu trabalho rentável se dá de maneira
informal, sem os atributos necessários para se garantir qualquer direito trabalhista. E é,
dessa forma, que o trabalho da costura entrelaça-se com os afazeres domésticos.
Como é sabido de outras literaturas, o trabalho doméstico pode ser traduzido
como o trabalho “sujo, perigoso e degradante” 31
(PAI, 2004). No caso das costureiras,
o trabalho pesado se desenvolve na maioria das vezes quando estas mulheres se
encontram sentadas em frente as suas máquinas de costura, as atividades manuais são
executadas com minuciosidade e acabam por exigir um acompanhamento visual
aguçado, é a partir daí que os problemas de visão começam a aparecer. Devido aos
longos períodos de trabalho numa posição de repetição, o pescoço e as costas ficam
comprometidos com tensões. As mãos (calejadas pelas tesouras e agulhas) também
podem estar sujeitas a dores, assim como as pernas estão mais suscetíveis ao
aparecimento de varizes. Sem esquecer-me de mencionar a tensão das horas que passam
e das entregas urgentes que necessitam ser efetuadas, do pouco ou nenhum tempo para
repouso e as poucas horas de sono que resultam desta tensão.
O valor do trabalho despendido para cuidar e criar uma criança e de todo o
âmbito familiar – incluindo os afazeres da casa, portanto, o trabalho da costura

31
Tradução livre do original, "Dirty, dangerous and degrading".
85

doméstica32 – sempre foi um valor inferior ou inexistente se comparado com outros


tipos de trabalho. De acordo com a socióloga Arlie Hochschild, isso não acontece
porque o trabalho de cuidado é mais simples, ou se constitui um labor facilitado, ou
ainda que exista pouca necessidade dele na sociedade, “mas resulta de uma política
cultural baseada na desigualdade” (HOCHSCHILD, 2008, p.283, tradução livre). Ainda
segundo a autora, “o escasso valor que se atribui ao trabalho de cuidar pessoas mantém
baixo o status das mulheres que o fazem e em última instância, o valor de todas as
mulheres.” (HOCHSCHILD, 2008, p.284, tradução livre)
Quando a pesquisadora espanhola Cristina Vega Solís (2009), no texto “Culturas
Del cuidado em transición” refere-se à categoria do cuidado como uma atividade que
sempre esteve, apesar de sua aparente invisibilidade, no centro de nossa existência, a
autora quis dizer que o cuidado está em tudo. E os slogans comerciais presentes em
nosso cotidiano, que observei ao longo da pesquisa, nos lembremos disso, como nas
linhas “baby care”, “com uma proteção segura, suave e eficaz, com todo o carinho que
o seu bebê merece”; “transforme a hora do banho do seu bebê num momento de
cuidado e hidratação com o sabonete x,y,z” ou mesmo com os produtos de limpeza da
casa “clean care”, amaciantes “soft care”, etc., e se formos ainda mais longe, podemos
pensar no cuidado de si com alguns produtos de higiene pessoal. Em suma, o cuidado
nos circunda e nos constitui, está entre o assalariado e o não assalariado, o público e o
privado, a família e o Estado, o formal e o informal e é, sobretudo, uma forma de
trabalho que envolve uma dinâmica de afetos.
Semelhante às análises do “care savoir-faire” de Molinier (2012), Hochschild
(2008) retrata criticamente o cuidado do modelo tradicional de pensar da sociedade
como algo que não requer esforço, que funciona naturalmente bem. Por funcionar tão
bem, acaba por evocar um determinado ideal, aquele que atribui o cuidado ao feminino.
Por outro lado, a autora também afirma que este trabalho feminino tem ganhado cada
vez mais importância nos dias atuais, uma vez que o amor e o cuidado passaram a ser o
“novo ouro” extraído dos países mais pobres e transportado para os países mais ricos, a
exemplo do movimento de migração das mulheres que cuidam.

32
Sendo o trabalho da costureira um saber feminino, passado de mãe para filha numa relação afetiva, bem
como um labor corporal pesado que se mescla com as lidas domésticas, entendo o universo afetivo como
de extrema relevância para compreensão do universo social daquelas mulheres que busco como
interlocutoras da minha pesquisa.
86

Esta noção de que o cuidado da casa e da família deve ser realizado


exclusivamente pela mulher produz também certa afetividade, em consequência de que
a natureza do cuidado é a de um trabalho emocional (que envolve afetos, emoções e
amores). Ao chegar neste ponto da discussão, convém salientar que o autor Angelo
Soares (2012) analisa o trabalho do cuidado enfatizando justamente as emoções.
Conforme o autor, as emoções possuem uma duração com começo e fim, bem como se
manifestam por meio do corpo com sintomas físicos de mal ou bem estar. Ou seja, as
emoções são corporalizadas (embodied), além disso, “vale assinalar que nem todo
trabalho emocional é, necessariamente, trabalho de cuidados, mas todo trabalho de
cuidados envolve, sempre, o trabalho emocional” (SOARES, 2012, p. 49).
Explorado nas relações que ocorrem entre a mulher que cuida e aquelas ou
aqueles que recebem o seu cuidado, o trabalho emocional gasto para o cuidado pode
passar despercebido. Consequentemente, não é reconhecido como um trabalho que
possui valor e precisa de remuneração, embora a literatura que venho discutindo aqui
assinale para o cuidado como um tipo de trabalho emocional que precisa ser gerido no
cotidiano laboral.
O sociólogo brasileiro Joaze Bernardino-Costa em resenha do livro “Migration,
Domestic Work and Affect: a decolonial approach on value and the feminization of
labor” (2012), de Encarnación Gutiérrez-Rodríguez, escreve que o trabalho realizado
pelas donas de casa é um tipo de trabalho afetivo justamente por estar envolvido com a
produção de bem estar do conviver. Por este motivo, o cuidado (e por consequência, o
afeto) com outras pessoas é um atributo inerente do trabalho doméstico. Em seu texto, o
autor traz ainda a importante reflexão de Gutiérrez-Rodríguez sobre o contraste
existente entre afeto e emoções. Segundo ele, a autora busca no filósofo neerlandês
Baruch Spinoza a conceitualização de afeto, que está ligado à mobilização, ação,
ímpeto, etc. Já as emoções estariam mais relacionadas com a intenção de ser simpático e
atento com outras pessoas, portanto, seria um exercício de produzir o bem estar.
Como a palavra latina sugere, affectus remete ao impacto que sentimentos de
tristeza e de alegria, por exemplo, deixam sobre nossos corpos e
pensamentos. Consequentemente, nossa energia cresce ou diminui conforme
esses sentimentos. Portanto, os afetos são pré-linguais e pré-cognitivos. [...]
Afeto tem um lado menos cognitivo e racional, emerge nas reações corporais
e nas transmissões de sentimentos, deixando e/ou sentindo as energias dos
corpos dos sujeitos e do ambiente. (BERNARDINO-COSTA, 2012, p.451).

Tomando consciência das reflexões acerca desta discussão, podemos inferir que
os trabalhos de cuidar se fazem sempre se não com afeto, pelo menos com trabalho
87

emocional. O trabalho “com açúcar e com afeto”, para mencionar a música de Chico
Buarque33 “Logo vou esquentar seu prato/ Dou um beijo em seu retrato/ E abro os meus
braços pra você”, que retrata aquela mulher que faz de sua vida o cuidado da casa e a
espera do marido com seu doce predileto, incluindo em seus afazeres incessantes um
“qual o quê” de afetividade, embora seja bastante lembrada na literatura, na poesia e na
melodia, necessita agora que seu trabalho seja reconhecido para além de um gesto
intrínseco de amor.

2.3 APRESENTANDO AS MULHERES COSTUREIRAS EM TEXTOS,


IMAGENS E TECIDOS

“[...] Eram mãos cansadas, laboriosas


que buscavam as pontas dos fios
destinadas à costura.
Eram os consertos nos tecidos rasgados.
Eram as mãos das Terezas e das Joanas
As trêmulas mãos das Marias e das Anas.
Calejadas mãos de Sebastiana.
Miradas com os olhos cansados.
Que não confundiam cores e nem manhãs.
Agora, por onde andam as linhas
Que não tem trem e nem guias
procuradas por todos estes dias.
Linhas dos tricôs e dos crochês
dos abrolhos e dos bordados
linhas que as mãos
costuraram o passado.”
(Crisjoli Fingal)

Já dizia Gonzaguinha que “toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de
outras tantas pessoas”34, e no caso das pesquisas acadêmicas, cada pesquisador é a
marca das experiências empíricas que o campo proporciona e também de pesquisas
publicadas que nos inspiram e nos motivam. É evidente que diversos trabalhos e outras
tantas inquietações pessoais agiram como impulsionadoras desta investigação. Mas,
neste momento, faz-se necessário mencionar que a dissertação de mestrado de Alzira da
Silva (2005) que ocupa um lugar importante na sequência de texto que se segue.

33
Francisco Buarque de Hollanda é músico, dramaturgo e escritor brasileiro. Ficou conhecido por ser um
dos maiores nomes da música popular brasileira (MPB). Sua música, “Com açúcar, com afeto” faz parte
do álbum intitulado, “Chico Buarque de Hollanda - Volume 2”.
34
Este trecho compõe a letra da música “Caminhos do coração” do cantor e compositor brasileiro, Luiz
Gonzaga do Nascimento Júnior, mais conhecido como Gonzaguinha.
88

Alzira da Silva, em seu trajeto para a obtenção do título de Mestra em Sociologia


pela Universidade Federal do Ceará, escreveu a dissertação intitulada “Pegando vida nas
mãos: um olhar etnográfico sobre saberes e práticas das parteiras tradicionais nos
circuitos do Amapá em mudanças”. A autora buscou compreender os saberes e as
práticas partilhadas por mulheres parteiras viventes nas comunidades tradicionais. Ao
apresentar habilidosamente suas interlocutoras, a autora usou das ervas medicinais
oriundas da flora amazônica como um aporte descritivo. Desta forma, sua escrita e
criatividade moveram-me a buscar inspiração nos mundos dos tecidos para desenvolver
a afamada descrição etnográfica tão presente nas discussões metodológicas da
disciplina.
Sendo assim, a apresentação das mulheres costureiras é o ponto introdutório do
percurso etnográfico presente. Procurei conhecê-las para desvendar os seus universos
simbólicos, embora tivesse também em mente a ideia de que isso poderia se constituir
numa pretensão passível de não concretização. Mas, procurei manter disponível a
possibilidade de trabalhar com a ausência de respostas para as perguntas que levei
comigo a campo.
Dito isso, torno a ressaltar que pensar sobre o saber fazer da costura significa
percorrer as narrativas orais – ou para além da oralidade, corporais – de mulheres que
constituíram este universo em algum momento de suas vidas, ou que ainda o constituem
de forma ativa. Isso quer dizer que as experiências de cada uma dessas mulheres são
muito diferentes entre si, tal qual elas mesmas o são. Neste intento, gostaria mais do que
apenas tentar transcrever seus cotidianos e suas formas de vida ou apenas reproduzir
suas narrativas. Gostaria de tornar vivo e sensível o texto como um retrato. Por isso,
busquei na escrita, descrições figurativas que pudessem retratar as características de
cada uma das personagens cotidianas que, além de nome, possuem personalidades e
vozes. Optei por criar-lhes um codinome baseado nas texturas e nos usos dos tecidos
que se fazem presentes em suas vidas através do trabalho da costura.
Nas linhas que se seguem, tracejei representações das mulheres costureiras a
partir das características particulares dos tecidos que ornam o universo da costura. Para
cada interlocutora, escolhi, precisamente, o tecido mais relacionado às características
que evocam sua maneira de ser. Assim, tecidos populares, floridos, aveludados,
delicados, clássicos, brilhantes ou rústicos vão dando forma ao texto que é também
tecido em linha reta, ou que pelo menos tento assim descrever as ranhuras e os detalhes
destas vidas que transbordam os limites da escrita. São nove mulheres costureiras que
89

constituíram o grupo de interlocutoras e que, através de suas narrativas, permitiram-me


aprofundar no tema de pesquisa e adentrar neste universo, analisando os saberes e as
práticas da atividade costureira.

2.3.1 Chita - Dona Gessi


(Chintz, orig. Índia) A Chita é um leve tecido de algodão cardado,
feito com trama simples e geralmente estampado com flores
coloridas. Em algumas regiões do Brasil, a chita tornou-se ícone
de identidade cultural e suas cores representam o festejo popular.

Aqui está presente a mulher “simples” na forma de viver. Ela vive no bairro
Divina Providência e é viúva há 13 anos. Seu marido era mecânico, nunca foram
abastados, mas desde a morte dele assumiu oficialmente o sustento da casa e, apesar das
dificuldades financeiras encontradas, tem lutado bastante para possibilitar os estudos
universitários do filho e da filha. Seu filho, que tive oportunidade de conhecer na
universidade, reflete em sua fisionomia o modo de ser de Dona Chita: ambos possuem o
mesmo sorriso doce. Ela não gosta muito das lidas domésticas, mas por falta de outras
opções, já precisou encarar o trabalho doméstico remunerado. Aprendeu a costurar com
a patroa para quem trabalhara fazendo faxinas quando tinha apenas 18 anos de idade.
Em sua trajetória de costureira, trabalhou nas fábricas de confecção e já teve parte da
escala produtiva terceirizada em sua própria casa35. Atualmente, trabalha conforme sua
saúde permite, fazendo costurinhas em casa (com máquinas de confecção que ganhou
de sua falecida irmã, a qual também era costureira) para clientes mais ou menos fixos.
Têm em seu corpo as marcas negativas que as longas horas de trabalho na costura
podem acarretar: artrite, desgaste do fêmur, entre outras enfermidades. Como acontece
com boa parte das mulheres, o cuidado dos filhos e do marido está muito marcado em
suas narrativas de vida. Tem sempre um sorriso bonito no rosto e uma pré-disposição
para ajudar e contar histórias.

35
Dentre as formas que o trabalho fabril pode assumir está a possibilidade de contratação de costureiras
domiciliares que trabalham para os empregadores no interior de seus próprios lares. Este tipo de serviço
se configura como precarizado, pois, além de dificultar a regulação do tempo de trabalho entre as lidas
domésticas (não remuneradas) e o trabalho da costura (remunerado) para cumprir as metas estabelecidas
pelo empregador, não garante direitos trabalhistas para as costureiras.
90

2.3.2 Renda – Dona Anilda

(Origem desconhecida) De agulha ou de Bilros, as rendas são


delicados tecidos compostos de algodão ou poliéster bordados
sobre tules e telas.

Costureira idosa, delicada e ao mesmo tempo forte. Aposentada como costureira


autônoma desde os 67 anos de idade, agora só costura vestidos rendados para suas netas
e as suas bonecas. Sonhava em ser cabeleireira, mas por falta de recursos, sua mãe a
colocou como aprendiz de uma costureira do bairro. Viúva há quase dois anos, ocupou
o lugar de cuidadora em tempo integral da casa, dos dois filhos e do marido que
trabalhava como florista, mas acabou adoecendo gravemente em vários momentos da
vida, necessitando do apoio e dedicação de Dona Renda. Ferimentos advindos de brigas
e jogatinas, infecção aguda por tétano e câncer nos pulmões são alguns exemplos das
enfermidades contraídas pelo marido a quem Renda precisou cuidar. Nestes casos, o uso
abusivo de bebidas alcoólicas e do tabaco somado ao desafio encorajado pela
masculinidade se configuram como características dos bairros populares e se tornam
frequentes nas narrativas das mulheres sobre os seus companheiros. Por isso, as
circunstâncias de cuidado a homens enfermos também posicionam as mulheres na papel
de cuidadoras dos maridos e em situações de vulnerabilidade financeira, para além da

Figuras 7,8, 9 e 10: Dona Renda e Dona Chita, respectivamente, com seus olhares atentos ora na
costura, ora na rua.
91

papel de mães e cuidadoras de crianças. Hoje em dia, Dona Renda tenta ocupar o tempo
demasiado livre e inquietante que dispõe, visto que não conheceu descanso quando
jovem. Ela faz ginástica duas vezes por semana com o grupo da terceira idade, mas
confessa que gostaria de fazer exercícios mais vezes durante a semana, pois se sente
entediada em sua casa. Não perde uma novela e, assim como Dona Chita, Dona Renda
posiciona sua máquina de costura na janela de frente para a rua. Desse modo, ambas não
perdem nenhum dos movimentos que acontecem em suas vizinhanças.

2.3.3 Algodão - Dona Georgina


(Al-quTum, orig. Arábia) O algodão compõe grande parte de
outros tecidos e já era utilizado em épocas remotas da
humanidade. É derivado de fibras brancas obtidas dos frutos de
plantas da espécie Gossypium. Por isso, na atual transformação
dos modos de produzir e vestir, o algodão vem sendo produzido
organicamente, sem a utilização de agrotóxicos e adubos
químicos que podem fazer mal à saúde dos seres humanos, dos
animais e do meio ambiente.

Versátil, resistente e ao mesmo tempo leve como a fibra de algodão é esta


interlocutora a qual “batizei” nesta dissertação como Dona Algodão. Uma mulher idosa,
casada há 47 anos, aposentada como autônoma e de poucas palavras. Aprendeu o seu
saber fazer desde cedo com outras mulheres, mas principalmente com sua mãe, que teve
oito filhas e usou a costura como sua forma de “ganha pão”. Quando a costura não ia
bem, Dona Algodão buscava empregos temporários em açougues, lancherias e
mercados. Na costura, sua trajetória profissional já passou por malharias, embora tenha
trabalhado a maior parte de sua vida em casa. Numa pequena – mas significativa parcela
desse tempo – costurou apenas à mão, visto que sua primeira máquina de costura foi um
presente de seu marido, quando ela já era mulher de 25 anos de idade. Hoje em dia,
trabalha pouco, fazendo apenas costurinhas que lhe apetecem, mas o que gosta mesmo
de fazer é acompanhar a jovialidade de sua neta. Dona Algodão participa vigorosamente
das atividades que a neta desempenha, seja na customização de peças advindas de
brechós, seja nos trabalhos voluntários que envolvem o mundo da costura ou na
transmissão do saber fazer da costura passado para a geração seguinte, tão internalizado
como trabalho de mulher que até parecer um simples fazer. Aqui, a avó não representa
apenas os saberes de outrora, representa a mulher batalhadora que aperfeiçoa os seus
saberes conforme recicla as roupas dos brechós, oferecendo o melhor para a sua
linhagem familiar.
92

2.3.4 Jeans - Taci


(Nimes ou Denim, orig. França) Familiarizado com o algodão
sarjado e o corante índigo, o jeans era um tecido utilizado
inicialmente em barracas. Fez parte do vestuário de trabalhadores
operários e marinheiros antes de se popularizar com os hippies e
na moda cotidiana pós Calvin Klein. Econômico, atemporal e de
grande durabilidade faz parte do guarda-roupa de muitas pessoas
pelo mundo.

Jeans é formada em Publicidade e Propaganda e neta de Dona Algodão. Já


trabalhou como modelo profissional e, por conta disso, aproximou-se do mundo da
moda. Contudo, o seu interesse pela costura é anterior a esta fase de sua vida. Jeans
conta que desde pequena gostava de ficar observando sua avó na sala de costura e, por
vezes, ajudava em pequenas tarefas (ou mesmo atrapalhava, segundo a versão de Dona
Algodão). Quando criança iniciou um processo de fabricação de rabicós (laços usados
para amarrar os cabelos) confeccionados com retalhos de tecido que sobravam das
costuras. Auxiliava sua avó na confecção e depois os vendia para suas colegas na
escola. Desde então, o seu olhar tornou-se atento para os excedentes. Jeans é amante de
brechós: compra, desfaz, (re)utiliza, customiza, economiza e (re)inventa sua moda. Foi
voluntária no Brechó do Centro de Apoio a Criança com Câncer (CACC) e no momento
presente é voluntária no projeto “Fashion Revolution” que, através de questionamentos
como “Quem fez as minhas roupas?”, procura conscientizar o mundo da moda sobre
tudo aquilo que permaneceu por muito tempo embaixo dos bastidores: exploração da
mão de obra e demais prejuízos causados pela indústria têxtil no mundo. Recentemente,
comprou uma máquina de costura usada e igual à de sua avó e, assim como o jeans, ela
é símbolo de juventude e mudança.

2.3.5 Cetim - Rosani

(Zaitu, orig. China) O cetim é conhecido por possuir uma


superfície lisa, macia e brilhante com um avesso fosco e rugoso.
Feito na maioria das vezes de poliéster ou viscose. Já foi e, em
alguns casos ainda é, muito utilizado pelas classes mais nobres
pelo mundo.
93

Cetim já costurava desde


muito nova. Coisa de família:
nasceu em meio ao universo da
costura, no qual ela e mais três
irmãs trilharam suas vidas.
Contudo, a trajetória de Cetim não
andou apenas em linha reta como as

antigas máquinas Singer. Nestes 57 Figura 11: Cetim na vitrine de sua loja

anos, ela trabalhou em lancherias,


foi cuidadora de idosos, trabalhou em malharias e fábricas de confecção, passando para
o trabalho autônomo residencial e terminando pelo trabalho empreendedor comercial.
Hoje, Cetim tem sua própria loja de costura próxima ao centro da cidade, num lugar
intermediário entre bairros de classe média e outros mais populares. É um
estabelecimento simples frequentado por estudantes, idosas e outras mulheres que
moram nas proximidades. Como são tempos difíceis até para os corajosos sonhadores,
Cetim teve dificuldades financeiras para manter o aluguel no ponto comercial, logo,
acabou por dividir a loja. Deixou metade para as suas costuras e locou a outra metade
para um salão de beleza. Assim, a loja nomeada “D’etalhe” teve seu piso de parquet
redesenhado por fios que fazem roupas e cabeças. A clientela da costureira e a clientela
do salão de beleza acabam somando-se e se confundindo naquele espaço que é de
muitas trocas, afetos e conversas. Referente ao saber fazer de Cetim que também advém
de uma (linha)gem materna, devido ao fato dela ter aprendido a costurar o básico com
sua mãe e sua tia. Muito curiosa, não se contentava e “fuçava” nas roupas,
desmanchando as costuras e refazendo-as até, por conseguinte, compreender as
estruturas dos moldes. Ela é dedicada ao trabalho, cortês com as/os clientes e
pacienciosa com as costuras. Tal qual o tecido cetim, ela possui dois lados. Seu tom de
voz remete maciez, mas quando necessário também entoa o tom áspero a fim de se
impor com aqueles que porventura tentem lhe passar na conversa. Trabalha com um
sorriso no rosto, salto alto, uma roupa bonita e, geralmente, confeccionada por ela
mesma.
94

2.3.6 Paetê - Dona Jussara

(Pailleté, orig. França) O paetê é um tecido de tule ou malha


coberto com lantejoulas brilhantes confeccionadas com plástico
ou vinil. Já foi um tecido utilizado por reis e rainhas, mas no
mundo contemporâneo tornou-se popular em festejos como o
Carnaval.

Paetê costura há mais de 63 anos. Isso porque ela começou a costurar quando
tinha apenas 12 anos em meio às costuras maternas. Hoje em dia já é aposentada, mas
não deixa de fazer aquilo que gosta e por conta disso segue na lida. Sua mãe era
conhecida na comunidade pela confecção primorosa de vestidos para noivas. Nesse
ambiente, Paetê cresceu, aprendeu e costurou com sua (linha)gem. Embora tenha saído
de casa ainda muito jovem, aos 17 anos quando se casou e migrou para a vida rural
junto com o marido, permaneceu costurando, fazendo bombachas para peões e vestidos
para prendas por mais 22 anos. Conta que nunca gostou de ser dona de casa como as
irmãs diziam ser, por isso, investiu seus esforços em diversos trabalhos para além da
costura: cortou cabelo e aparou a barba dos homens que moravam no interior, bem
como maquiou moças para as festas usando pó de arroz que ela mesma preparava.
Conta que não era incomum a contratarem para fazer o casamento completo, isto é,
confeccionar as roupas do noivo e da noiva, maquiar as mulheres da família da noiva
para o dia do casamento e, às vezes, até mesmo fazer o bolo do “buffet”. Depois que
voltou a morar na cidade, Paetê teve uma sucessão de empregos em fábricas de
confecção – sendo, inclusive, colega de Dona Chita durante um tempo – até ser
empregada no setor de costura do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) de
forma terceirizada. No HUSM, costurou roupas de cama, aventais, jalecos, propés, entre
outras costuras que precisam ser confeccionadas dentro de um hospital. O trabalho era
infindável e tomado por um esforço físico resultante em artrose nos ossos do joelho
direito (aquele mesmo que toca as máquinas de costura). Por conta da enfermidade,
precisou parar de trabalhar e se aposentou com ajuda do marido, que a auxiliou no
pagamento do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS)36. Como não consegue ficar
apenas em casa, Paetê auxilia nas costuras do ateliê de Cetim de tempos em tempos.

36
No Brasil o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) mantém uma política protetiva às trabalhadoras
e aos trabalhadores que tem problemas de continuidade na atividade de trabalho em função de uma
doença ou acidente. Para saber mais, acesse: https://www.inss.gov.br/beneficios/aposentadoria-por-
invalidez/.
95

Adoradora dos brilhos e vestidos decotados, Ju – como é chamada pelas amigas – é


festeira e gosta de se arrumar bonita para ir aos bailes dançar.

2.3.7 Linho- Fernanda


(LinumUsitatissimu, orig. mais provável: Egito) O tecido de
linho é um dos tecidos mais antigos existentes na humanidade.
Derivado herbáceo da família das lináceas, os primeiros registros
históricos sobre esse tecido estão enrolados em múmias egípcias.
Diz-se também que vestia sacerdotes e mágicos na antiguidade,
assim como se encontra ligado a alguns contos místicos
envolvendo fadas e anões.

Faz aproximadamente dez anos desde a primeira costura de Linho. Ela é


formada em Serviço Social, mas não conseguiu se encontrar na profissão, preferindo
investir seus esforços em cursos de costura. O primeiro deles cursou na cidade de Santa
Maria com uma senhora protestante que os oferecia em sua casa de maneira particular,
com números limitados de moças por turma. Linho não conseguia lidar com a rigidez da
senhora, que lhe dava sermões caso fizesse algo de maneira errada, por isso buscou
cursos fora da cidade e acabou conhecendo o Instituto Orbitato. Este, por sua vez,
configura-se como um centro de criatividade e linguagem, preocupado em combinar
conhecimento técnico e visão
crítica para aqueles que fazem
os seus cursos denominados de
“livres de curta ou longa
duração”. Somando os saberes
absorvidos e reinventados,
Linho teve incentivo artístico de
sua mãe, que lhe ensinou a fazer
tricô e a pintar. Teve também

Figura 12: Linho em "Keep Calm and Sey On" suporte financeiro e emocional
da avó, mulher que a criou e
com quem ainda divide a morada e os percalços cotidianos. Depois disso, transformou
seu próprio quarto em ateliê e recebe as suas clientes em casa. O interesse de Linho pela
costura passa pela vontade de vestir as pessoas com uma moda consciente (sem
exploração da mão de obra, com materiais mais biodiversos possíveis) e caminha até o
desejo de costurar roupas que não se vendem nas lojas de departamento: roupas que
96

vestem as personagens inspiradoras das películas de época e roupas “plus size” para
pessoas que não encontram suas medidas em qualquer arara comercial. Ela investe nas
plataformas digitais como a rede social Facebook e o site de compras Elo7 para
propagandear e vender seus produtos com a logomarca “Alinhavos”. É mais uma
amante dos brechós e tenta atender a todos os pedidos das clientes confeccionando, para
além de roupas, sapateiras e estofados (puffs). O seu compromisso com o meio-
ambiente também revela uma delicadeza para tratar as pessoas e os animais que a
cercam no dia-a-dia. Tem mãozinhas mágicas e uma misticidade que envolve até
mesmo o seu trabalho. Nas figuras abaixo, trago um pouco da delicadeza presente na
logomarca de Linho:

Figura 13: Alinhavos no Facebook

Figura 14: Alinhavos no “Elo7”


97

2.3.8 Filó – Dona Docelina


(Orig. França) O tecido filó, como ficou popularmente conhecido
aqui no Brasil, é o mesmo tecido chamado de tule. Ele teve sua
origem na cidade de Tulle no séc. XVIII e, por isso, leva o mesmo
nome. Composto na maioria das vezes de algodão, nylon ou
poliéster, a trama do tecido é feita em forma de tela transparente
branca ou colorida. É muito usado para confeccionar mosquiteiros,
saquinhos para decorar e embalar, tutus de ballet ou véus e vestidos
para noivas. Nestes últimos casos, é comum o uso da goma de amido
de milho para dar volume ao tecido.

Aquelas pessoas que procuram


um diferencial em suas roupas devem
procurar a costureira Filó. Dona Doce,
como é chamada pelas(os) amigas(os),
aprendeu a costurar com 15 anos de
idade observando sua mãe
confeccionar as roupas da família. Por
este motivo, Dona Filó aprendeu “no
olho” e nunca fez nenhum curso de Figura 15: Dona Filó, costureira

corte e costura. Moradora característica


dos bairros populares, Dona Filó conhece toda a vizinhança mais próximos. É viúva e
faz jus ao seu apelido afetuosamente açucarado. Ela trabalha rapidamente em suas
máquinas de costura, ao mesmo tempo em que assiste às novelas. Tem muitas
encomendas para remendos e ajustes de clientes. Durante muito tempo a sua sala de
estar era transformada em sala de costura, mas, atualmente, construiu um quartinho
anexado a sua casa a fim de separar as “bagunças da costura” de seu ambiente de lazer e
descanso. No período de formaturas na cidade universitária, chega a fazer dois ou três
vestidos de festa por dia. Quando as roupas exigem minuciosidade e perícia, como é o
caso dos bordados nos vestidos, quem realiza este trabalho é a sua filha que está
iniciando no mesmo ofício da mãe. Dona Filó não aprendeu a bordar quando jovem e
diz não possuir mais tempo para cobrir esse tipo de demanda que eventualmente aparece
no trabalho. Mas, não é somente das vestimentas clássicas que Dona Filó sobrevive, ela
também costura camisas country para o neto e fantasias “pin up” para a namorada dele.
Uma destas fantasias confeccionada por Dona Filó, e vestida num concurso de Miss
pela sua nora, foi premiada em primeiro lugar na categoria de melhor vestimenta no
festival “Viva las Vegas Rockabilly Weekend”, ocorrido no The Orleans Hotel em Las
98

Vegas, EUA, no ano de 2015. Ela também costura tutus para as crianças bailarinas e as
saias de armação para as meninas prendas.

2.3.9 Lã – Dona Clara Terezinha


Estima-se que a origem da lã esteja marcada historicamente na
Mesopotâmia, devido ao pioneirismo deste povo com a domesticação
das ovelhas e carneiros, animais de onde se extrai a fibra natural para
fazer a malha. Contudo, há registros mais antigos de sua utilização na
Idade da Pedra. As lãs são extremamente confortáveis e excelentes
isolantes térmicos.

Ela é a única das interlocutoras desta pesquisa que não vive e nem visita a cidade
de Santa Maria. Outras circunstâncias me permitiram conviver e conhecê-la. Dona Lã é
viúva, mãe de quatro filhas, avó de oito netas(os) e bisavó de seis bisnetas(os). Seu
interesse pela costura despertou quando ela ainda era muito jovem, pois seu pai era
comerciante e dono de Armazém, onde antigamente costumavam-se vender os tecidos,
as agulhas e os demais materiais para a costura junto com diversos produtos como
materiais escolares e comida. Ela cresceu numa família tradicional que ensinava com
rigor as prendas domésticas para as mulheres, assim, sua mãe também costurava em
casa para o círculo familiar. Dona Lã assistia aulas da disciplina de “Economia
Doméstica” nos ensinos fundamental e médio da escola, mas, infelizmente, por conta de
uma grave infecção não conseguiu terminar o ensino médio. Diante destes fatores,
moveu esforços para se matricular em cursos oferecidos pela Igreja Católica local, os
quais conseguiu concluir. Dona Lã diz não ser costureira de profissão, pois nunca
trabalhou fora, mas, trabalhou excessivamente em casa, criando as filhas, ajudando na
criação das(os) netos e bisnetas(os), cuidando das(os) familiares adoentadas(os),
desempenhando o trabalho doméstico, costurando e fazendo tricô para vesti-las(os). Ela
só parou de costurar quando os olhos deixaram de acompanhar suas ágeis mãos. A
máquina de costura – a mesma que ganhara de presente do seu pai há incontáveis anos –
permanece em seu lugar de sempre: encostada na janela que fica de frente para o
canteiro de flores da sua casa. Dona Lã é uma anciã de muitos saberes e fazedora de
blusões de lã muito quentinhos.
99

Figuras 16, 17 e 18 – Dona Lã e suas mãos marcadas pelo tempo

Com a finalidade de complementar e sintetizar a descrição, apresento


sinteticamente algumas questões acerca do perfil das mulheres costureiras nos quadros
abaixo:
100

Perfil das Mulheres Costureiras – Quadro 01


101

Perfil das Mulheres Costureiras – Quadro 02


102

Como os quadros acima indicam, primeiramente busquei elencar algumas


questões mais gerais a respeito da idade, escolaridade, naturalidade e onde moram as
costureiras. Apenas uma das costureiras que entrevistei é negra, Dona Paête. E apenas
duas não vivem na cidade de Santa Maria, Dona Lã e Dona Algodão, esta última visita
com frequência a sua neta que vive na cidade, ao contrário de Dona Lã que já se
encontra numa idade muito avançada para viajar. Seis das interlocutoras já possuem
mais de 60 anos de idade, Dona Paête, Dona Chita, Dona Filó, Dona Algodão, Dona
Renda e Dona Lã. E uma interlocutora de 57 anos, Cetim. Duas interlocutoras são mais
jovens, uma na faixa dos vinte anos de idade, Jeans, e outra na faixa dos trinta anos de
idade, Linho. Quanto à escolaridade, apenas as mais jovens possuem nível superior.
Cetim possui experiência com o ensino técnico. Dona Filó e Dona Algodão possuem o
ensino médio completo. Dona Lã e Dona Paête não conseguiram terminar o ensino
médio. Já Dona Chita e Dona Renda não conseguiram terminar o ensino fundamental.
Num segundo momento, elegi algumas questões que dizem respeito as suas
relações com a costura como, por exemplo, a maneira que aprenderam a costurar, onde
trabalham e quanto tempo estão trabalhando na costura. A partir dos dados, posso
afirmar que todas as interlocutoras aprenderam a costurar com outras mulheres, sejam
elas da família ou da vizinhança. Mesmo aquelas costureiras que buscaram aperfeiçoar
o fazer da costura com cursos oferecidos por instituições profissionalizantes, como
Cetim37 e Linho, as suas professoras eram mulheres. Dona Lã, Dona Paête e Dona
Renda fizeram cursos oferecidos pela comunidade que tinham como objetivo ensinar
para as mulheres uma profissão que pudesse ser realizada em casa e que ajudasse nas
despesas da família.
Todas as costureiras desempenham o seu trabalho rentável beirando a
informalidade, realizado em suas casas, com exceção de Cetim. Seu trabalho na costura
difere-se das demais pelo fato de que objetivou separar o trabalho rentável do trabalho
doméstico, alugando uma peça para alocar sua loja fora de casa. Assim, os afazeres
domésticos não competiriam com o trabalho da costura, as clientes e o excedente do
trabalho na costura não tomaria seu tempo de lazer e descanso em casa. Contudo, na
prática, Cetim consegue controlar seu tempo de trabalho na medida em que não leva
costuras para sua casa, mas não consegue separar seu trabalho da sua função de esposa e

37
Para surpresa de Cetim, o curso realizado para complementar o seu fazer na costura tinha como
professora uma moça mais jovem que já havia passado pela sua loja e aprendido com ela mesma o saber
fazer. Esse foi um dos motivos que levaram Cetim a não dar continuidade ao curso.
103

mãe quando no intervalo do almoço recebe diariamente as(os) filhas(os), netas(os) e


marido na cozinha de apoio da loja para as refeições. Dona Algodão, Dona Chita e
Dona Paête já estão aposentadas, mas continuam trabalhando na costura. Dona Lã e
Dona Renda cansaram do ofício e do desgaste causado pelo mesmo. Embora Dona
Renda ainda costure vestidos para as suas netas, vez ou outra. Apenas Jeans e Linho são
iniciantes na costura, as outras interlocutoras trabalham há pelo menos 40 anos como
costureiras.
E por último, é importante atentar para os seus núcleos domésticos que revelam
um cotidiano marcado pela dimensão do cuidado. Todas as interlocutoras cuidam ou
cuidaram de crianças, idosos ou companheiros durante as suas vidas. Mesmo as mais
jovens desempenham papéis de cuidados das(os) irmãs e irmãos mais novos, das avós e
avôs. Linho, a título de exemplo, cuida de sua avó que possui a guarda do neto, por
consequência, os cuidados da criança também ficam por conta de Linho.
É importante também ressaltar que entre todas as interlocutoras, apenas duas
delas não se estabeleceram como costureiras de profissão (Jeans e Dona Lã), ou seja, a
costura perdura na vida delas de uma forma diferente das outras sete interlocutoras. Isso
não quer dizer que, de alguma outra forma, elas não se aproximem entre si. O que deve
ser levado em consideração nestes casos é que a costura é geralmente um saber
transmitido entre mulheres.
Ao delinear os perfis das mulheres costureiras, estabelecendo a relação entre elas
e os tecidos que compõem o mundo do trabalho da costura, pretendo familiarizar a
leitora e o leitor com as suas personalidades e as suas formas de trabalho. Dois fatores
que considero relevantes para a pesquisa e, consequentemente, para o entendimento dos
saberes e fazeres dessas mulheres.
É visível a importância da costura na vida delas. Nada de cantos confinados e
apagados, como se observava no passado quando a costura se constituía não como uma
atividade profissional38, mas apenas como mais um afazer doméstico a ser
desempenhado no dia a dia. A máquina de costura, para estas mulheres, ocupa um
espaço de centralidade em suas casas. Elas são decoradas quando não estão em uso, são
limpas com frequência, posicionadas em frente as suas camas, próximas das janelas dos

38
Na cidade de Pelotas/RS o Museu da Baronesa inaugurado em 1982, busca preservar artigos de bens
históricos e culturais representantes dos costumes das últimas décadas do séc. XIX até as primeiras
décadas do séc. XX, nele a sala de costura é retratada como um lugar localizado entre a escada do
segundo andar com teto baixo e sem ventilação, quase sufocante.
104

jardins ou da rua, para que observem a vida do bairro e da cidade acontecendo enquanto
costuram.
No princípio, pensava estar diante de mulheres comuns. E de alguma forma, elas
o são. E é visível que comecei a pesquisar este tema com o intuito de abordar a vida
cotidiana de mulheres comuns, contudo, no percurso de investigação percebi que as
costureiras ocupam algum tipo de lugar importante na cidade/comunidade onde vivem.
Esse lugar pode ser caracteristicamente afetivo, no meio familiar ou num outro lugar
que se torna invisível aos olhos dos demais, mas que é de trabalho pesado e importante
para o funcionamento da vida em sociedade. Pois, enquanto a vida cotidiana acontece,
toda a gente precisa vestir-se pela manhã para sair e desempenhar seus papéis sociais e
viver as suas relações. O que vestem sempre precisa passar pelas mãos das costureiras.
Sejam as de fábrica ou as que costuram a domicílio.
As máquinas não bastam para a produção de vestimentas. Elas ainda não se
tornaram suficientemente eficazes a ponto de fazerem todo o trabalho duro sozinhas. A
produção de vestimentas necessita ainda do esforço físico e repetitivo das pessoas, em
sua grande maioria mulheres. Em realidade, a nova geração de máquinas de costura,
apesar de oferecem mais facilidades, não alteram significativamente o tempo de
produção. (SCHERER E CAMPOS, 1995).
Em suma, a vida cotidiana das mulheres que costuram possui uma forte
afinidade com os fazeres de outras mulheres que perpassam por suas vidas. Em alguma
medida, elas têm em si um pouco das bruxas que fervem xaropes e fazem benzeções,
um tanto das donas de casa que faxinam e confeitam bolos merengados, sem esquecer
da parcela que remete às mulheres cuidadoras: das crianças, dos maridos e de quem
mais estiver precisando dos cuidados. Elas são também estudantes, bordadeiras e
contadoras de histórias, mães, filhas e netas. As nove diferentes mulheres que costuram
– apresentadas neste capítulo – possuem marcas dos seus contextos e dos seus tempos.
Elas produzem cultura (MALERONKA, 2007) e fazem o hábito (VERDIER, 1979) no
cotidiano do ato de costurar.
105

CAPÍTULO 3: “Costurando” os retalhos de uma cidade

Retalhos/sm. 1. Parte que se tira ou se corta de uma coisa, especialmente de um


tecido; pedaço; fragmento. Chamo de retalhos o capítulo em que busquei reunir os
fragmentos encontrados ao acaso quando escolhi sair flanando pela cidade, centro e
bairros em busca dos armarinhos de costura. O exercício de flanar me possibilitou
perceber que apesar das mudanças na cidade de Santa Maria, a costura ainda é um saber
fazer que perdura no cotidiano. O capítulo se divide em quatro tópicos: no primeiro
deles, faço uma discussão inicial sobre a rua e os armarinhos na cidade de Santa Maria.
Durante o segundo tópico, caminho com as leitoras e leitores pelo centro da cidade,
mapeando estes estabelecimentos. No terceiro tópico trago a discussão de sociabilidades
e algumas considerações sobre as hipóteses iniciais que possuía sobre os armarinhos e
que não foram confirmadas. Mas, que me permitiram pensar acerca das permanências
no universo da costura. Este tópico se divide em mais três subtópicos, onde descrevo os
bairros por onde andei. Eles se configuram como os destinos ou paradas finais para
onde os armarinhos me levaram. São os bairros, Divina Providência, Juscelino
Kubitschek e Camobi. No quarto, breve e último tópico, concluo o capítulo que se
desenvolveu como uma etnografia de rua.

3.1 RUA, SOCIABILIDADES E AVIAMENTOS: A CIDADE DE SANTA MARIA


ATRAVÉS DOS ARMARINHOS DE COSTURA
“Os séculos passam, deslizam, levando as
coisas fúteis e os acontecimentos notáveis.
Só persiste e fica o legado das gerações
cada vez maior, o amor da rua.” (João do
Rio, em A alma Encantadora das Ruas,
2008, p.28).

A fonte das costureiras para tantos aviamentos como botões, linhas, agulhas e
algumas variedades de tecidos está nos chamados armarinhos. Como mencionado
anteriormente, tratam-se de lojas que fornecem materiais e outras miudezas para
trabalhos manuais como bordados, costura e artesanatos em geral. Neste capítulo,
retrato uma parcela das ruas, bairros e pessoas da cidade de Santa Maria, conforme
apresento também os armarinhos. Através dos meus percursos pela cidade, busco
igualmente situar o lugar onde estão instaladas as máquinas de costura, ou seja, as
residências de algumas das costureiras que contribuíram para esta pesquisa. São elas,
106

Dona Chita, Dona Filó e Dona Renda.39 A seguir, pode-se conferir o croqui dos bairros
da cidade de Santa Maria. Aqueles que serão trabalhados ou mencionados ao longo do
texto estão destacados com tecidos coloridos ou estampados.

Figura 19: Croqui dos bairros de Santa Maria.

Apesar dos armarinhos remeterem a pequenos armários – porque possuem


fachadas discretas, portas pequenas e salas apertadas – costumam estar localizados em
maior número nos centros das cidades e constituem-se como lugares de sociabilidade de
algumas trabalhadoras e de suas redes de clientela. Assim como existe um decréscimo
de costureiras domiciliares, há uma notável diminuição destes estabelecimentos na
cidade de Santa Maria. Isso está relacionado com o processo de duração dos saberes e
fazeres nas cidades, visto que a costura vem se configurando, ao menos desde a

39
Apresento apenas os bairros onde vivem estas três interlocutoras pelos seguintes motivos: com Cetim e
Dona Paête não foi possível realizar visitações em suas casas, sendo o trabalho de campo realizado
somente na loja de Cetim. Dona Lã e Dona Algodão são residentes de outras cidades. Linho e Jeans são
moradoras da área central da cidade, a qual descrevo ao longo deste capítulo em meus percursos
etnográficos.
107

instalação da indústria “pronta para vestir”, de maneira distinta à costura como trabalho
doméstico. O resultado disso é um contexto que modifica igualmente a divisão sexual
do trabalho no interior dos lares e o trabalho da costura desenvolvido por algumas
mulheres. É interessante perceber que outros saberes e fazeres como os dos barbeiros e
dos sapateiros também vêm sofrendo mudanças significativas nas cidades (SOARES,
2012; ROCHA, 2014). Mas, isso não significa que não existam permanências destes
saberes e fazeres. O trabalho da costureira não exatamente está em crise na cidade de
Santa Maria, tendo em vista a grande demanda de costuras para as pomposas festas de
formatura realizadas pelas formandas das sete40 Instituições de Ensino Superior
instaladas na cidade, sem esquecer da demanda de costuras e reparos de fardas advindas
de um número expressivo de unidades militares situadas na cidade.
Inicio a apresentação pelo centro de Santa Maria que – como em outras cidades
– representa a efervescência e a movimentação urbana da cidade, onde os armarinhos
dividem lugar com estabelecimentos que vão de “Boutiques” de roupas às lojas “Tudo
por R$10 reais”, chaveiros, barbearias, salões de beleza, estúdios fotográficos, praça,
teatro, shopping popular, bancos, galerias, cafés, ferragens, restaurantes, farmácias,
brechós, floriculturas e o comércio em geral. Todavia, o centro da cidade não se
caracteriza como um grande centro, considerando que Santa Maria também não se
configura como uma cidade de grande porte, mas sim de médio porte. Segundo os dados
do IBGE, a cidade em 2015 contava com 276.108 habitantes, destes, 30.341 são alunas
e alunos regulares da UFSM, e 6.400 regulares da UFN 41. Apesar de ter o segundo
maior contingente militar do país e constituir-se como uma cidade universitária,
apresenta um centro comercial pequeno, mas com grandes bairros que se expandem
cada vez mais nos sentidos geográficos leste e oeste. Com uma rotineira e orientada
caminhada pelo centro de Santa Maria, rapidamente pude localizar a maioria dos
armarinhos.
Prontamente, com o intento de mapear os armarinhos, utilizei da ferramenta
Google Maps para localizá-los. Em seguida, realizei caminhadas pelo centro da cidade
com o intuito de encontrar os estabelecimentos anteriormente identificados com a ajuda
da ferramenta on-line. Entretanto, o Google Maps on-line não identificou todos os

40
UFSM, UFN, ULBRA, FAMES, FISMA, FADISMA e FAPAS.
41
Os dados referentes às alunas e alunos matriculados está disponível em
http://www.universidadefranciscana.edu.br/site/institucional. A fonte de alunas e alunos da UFSM é do
Programa de Indicadores da UFSM (2018), disponível em: https://portal.ufsm.br/ufsm-em-
numeros/publico/index.html.
108

armarinhos. Na prática, muitos deles foram localizados por indicações das pessoas que
costumam frequentá-los, como as próprias costureiras e demais pessoas de meu
convívio. Como discutido anteriormente no capítulo metodológico, tal roteiro de
caminhada, observação, registro fotográfico e em diário de campo configura-se como
uma etnografia de rua (ROCHA; ECKERT, 2003). Chamo atenção, a seguir, para o
croqui (figura 19) que aliado a descrição possui o objetivo de demonstrar o percurso
etnográfico percorrido por mim no centro de Santa Maria. O percurso está destacado na
cor verde e as figuras de objetos como linhas e botões identificam onde eles estão
localizados. A ideia inicial era trazer um print screen do próprio Google Maps.
Contudo, a ferramenta não permite que a(o) usuária(o) remova marcações de outros
estabelecimentos, fazendo com que todos os estabelecimentos comerciais cadastrados
na plataforma do Google se destaquem. O que acaba por tornar a figura muito poluída.
Por este motivo, intentei confeccionar o meu próprio mapa do local.

Figura 20: Croqui dos armarinhos localizados no centro da cidade.


109

O antropólogo Magnani, em seu texto “De perto e de dentro: notas para uma
antropologia urbana”, sugere que a estratégia de acompanhar certos indivíduos em seus
caminhos habituais pela cidade é capaz de desvelar os deslocamentos que assinalam
importantes relações sociais de trabalho, lazer, religiosas, entre outras. É neste sentido,
que a experiência narrada neste trabalho não se trata de uma visão de fora e de longe,
mas sim de uma inserção de perto e de dentro (MAGNANI, 2006), visto que sou
residente da cidade, frequentadora de seu centro e alguns de seus bairros. Além do mais,
com a perspectiva de perto e de dentro, o intento de compreender certas rotinas, trajetos,
pontos de referência e padrões de comportamentos dos indivíduos em suas vidas
cotidianas na paisagem da cidade acaba por se tornar um propósito mais plausível.
Durante a experiência itinerante, vivencio a rua junto com os praticantes
cotidianos da urbe, pois compreendo que o empreendimento de descrever a cidade
requer (re)conhecê-la como um “lócus de interações sociais e trajetórias singulares de
grupos e/ou indivíduos cujas rotinas estão referidas a uma tradição cultural que as
transcende.” (ROCHA; ECKERT, 2003, p.02). Portanto, proponho uma narrativa de
minhas caminhadas etnográficas pelo centro e pelos bairros Divina Providência,
Juscelino Kubistchek e Camobi da cidade de Santa Maria com o intuito de familiarizar
as leitoras e leitores com os armarinhos mapeados, assim como, com a própria
ambiência citadina.
Proponho uma narrativa do caminhar pela cidade inspirada naqueles que a
experimentam aos passos de tartarugas e que foram elogiados por Paola Jacques (2012)
em “Elogio aos Errantes”. Passos que, somados ao olhar do cineasta Dziga Vertov,
procuram cenas da vida cotidiana de pessoas comuns. Pois, como bem assinalou a
autora Silvana Olivieri (2011) no livro “Quando o cinema vira urbanismo”, Vertov
buscava captar a vida no improviso, utilizando uma câmera que não apenas observava,
mas uma câmera que adentrava no cotidiano, uma câmera que observava e participava
fazendo jus à tão consagrada técnica antropológica, a observação participante. Refiro-
me ao caminhar, fotografar e filmar “ao lado daqueles que correm, fazem, acodem e se
empurram, colocando-se ao movimento do mundo e da cidade.” (OLIVIERI, 2011,
p.76). Minha narrativa do caminhar é motivada pelos errantes de Paola Jacques, pelos
flâneurs de Baudalaire e Benjamin (1989) e pelos praticantes ordinários das cidades de
Michel de Certeau (1994) que se referia ao ato de caminhar como um molde que tece os
lugares, que formam um sistema e que efetivamente constrói as cidades.
110

Convido a seguirem este caminho comigo pelo centro da cidade de Santa Maria.
Convido para ouvirmos além dos sons que comumente a caracterizam, como o apito do
trem e o som estridente causado pelo sobrevoo constante de “caças” e aeronaves da
Base Aérea, para mover nossa atenção para os sons das ruas, das pessoas, das máquinas
de costura e dos interiores dos armarinhos. Para olhar além do céu indicado pela estátua
de Ícaro na Avenida Nossa Senhora das Dores, para a sua gente, o trânsito das pessoas,
para seres humanos e não humanos, as construções da cidade e o seu impacto nos
passantes. Para observar que uma grande massa de trabalhadoras e trabalhadores,
militares, estudantes, aposentadas e aposentados caracterizam a diversidade humana
dessa cidade que existe através de nós mesmos e que está em nós, “que é uma narrativa
que se transforma no jogo da memória de seus habitantes tanto quanto do etnógrafo que
reinterpreta as interpretações dos habitantes que pesquisa em suas trajetórias.”
(ROCHA; ECKERT, 2010, p.122). E, por fim, como cantam os jovens da banda
brasileira “Francisco, el hombre”, convido leitoras e leitores a sentirem o calor da rua42.

3.2 CAMINHADAS ETNOGRÁFICAS: A RUA

As portas dos armarinhos podem se tornar despercebidas pelas(os) caminhantes


apressadas(os) no centro da cidade. Na realidade, a não ser que você procure por este
tipo de serviço, não saberá ao certo onde encontrá-los. Um deles, o “Armarinho
Nacional” – possivelmente o mais conhecido de todos os armarinhos – é apenas um
corredor extenso em meio a outras lojas na Rua Venâncio Aires. O Armarinho “Entre
Linhas” talvez seja tão conhecido quanto o anterior, mas, principalmente, por vender
também tecidos e lãs. Ele “se esconde” entre a Rua Astrogildo de Azevedo e a Praça
Saldanha Marinho, na Rua Roque Calage. Outro leva o nome de “Armarinho da Praça”,
mas tampouco se localiza numa praça; o antigo “Rei dos aviamentos” agora é
“Napoleão aviamentos”, mas continua localizado numa galeria muito discreta na Rua do
Acampamento. O “Armarinho Pinheiro” é o preferido de algumas costureiras pela
variedade de aviamentos que oferece. Entretanto, assim como os outros, possui uma
fachada simples e se não fosse a indicação delas próprias, eu nunca teria percebido a
pequena loja na Rua Coronel Niderauer.

42
Música “Calor da Rua”, do álbum “SOLTASBRUXA”, lançado pela banda em 2016.
111

Partindo de minha casa na Rua Tuiuti, caminho por ela em direção ao centro da
cidade. Depois de passar pelas esquinas das ruas Serafim Valandro e Floriano Peixoto,
encontro a esquina da Rua Professor Braga, viro à esquerda e caminho até o fim de
mesma. Passo pela Casa do Estudante Universitário e pela Cooperativa dos Estudantes
de Santa Maria (CESMA). Depois de uma quadra percorrida, chego a Rua Astrogildo de
Azevedo, pois um de meus destinos se encontra exatamente entre o final de uma
pequena rua (Professor Braga) e o quase final de outra (Astrogildo de Azevedo). No
prédio antigo, de três brancos andares, encontra-se o Armarinho da Praça. De cor branca
com letreiros marrons, a placa indica os materiais que são vendidos na loja: lãs, linhas,
aviamentos, tecidos, “patchwork” e acessórios. Sempre me pareceu um estabelecimento
um pouco deslocado neste lugar, pois o que mais desperta a atenção nesta rua são as três
lojas que antigamente eram chamadas de “Lojas até 1,99”, mas que hoje – muito
possivelmente pelo motivo de seus preços terem aumentado – levam o nome de lojas de
utilidades domésticas. Outros estabelecimentos pelos quais a rua se torna conhecida são
as salas de Xerox, o chaveiro e as lojas de doces.
Voltando ao itinerário dos armarinhos, escolho a ladeira da Astrogildo para
rapidamente chegar à Rua do Acampamento. Este nome remonta ao acampamento
militar de portugueses no ano de 1789 que marca o início do povoamento da cidade,
onde foram erguidos ranchos de moradores, quartel, capela, escritório e depósito de
materiais em 1797 (RECHIA, 1999). Hoje, a Rua do Acampamento é uma das vias mais
importantes da cidade formada pelo comércio de móveis, eletrodomésticos e roupas. Ao
percorrer sua extensão, observa-se a região mais movimentada da cidade, do trânsito de
ônibus e carros até as massas de pessoas em suas calçadas apertadas, o que exige certo
nível de paciência para os transeuntes apressados. A Rua do Acampamento expressa o
ritmo acelerado e agitado da vida cotidiana. O seu início é marcado pelo Viaduto
Evandro Behr que une o Calçadão de Santa Maria e a Praça Saldanha Marinho, assim
como a Avenida Rio Branco e a Rua do Acampamento. Em uma das quadras da Rua do
Acampamento, pode-se encontrar a “Galeria do Frizzo”, onde “se esconde” minha
próxima parada, o armarinho Napoleão Aviamentos. Com uma pequena entrada,
perdida em meio às outras lojas do comércio da rua e de uma luz fraca em seu interior, a
Galeria Frizzo conta com comércios diversos, desde a sua entrada com a lojinha de
artigos religiosos e esotéricos até a sua saída com uma loja de aluguel de vestidos de
noivas. Ao lado da loja de vestidos para noivas, quiçá estratégia ou coincidência,
encontra-se o estabelecimento que procuro. Suas vitrines são cheias de informação tanto
112

pela transparência do vidro que revela o seu interior apinhado de mercadorias, quanto
pelos cartazes de promoção escritos em papel ofício branco com canetas hidrocor.
Dentro dele os aviamentos preenchem a parede até o seu pé direito e as estantes ocupam
boa parte do piso de azulejos em xadrez preto e branco. O movimento de clientes dentro
dele é pequeno, quase nenhum.
Ao sair da galeria, retorno pela Rua do Acampamento, mas dessa vez pelo outro
lado, para facilitar a minha ida ao próximo armarinho. Chego novamente a Rua
Astrogildo de Azevedo, no sentido contrário de onde estava inicialmente. Passo em
frente de onde costumava ser outro Armarinho e que, atualmente, são apenas portas de
rolar em aço fechadas que compõe o cenário da urbe junto com os pixos. Ao atravessar
e dobrar a rua, o armarinho Entre Linhas pode ser avistado na Rua Roque Calage. Na
mesma rua encontram-se duas casas do artesão43 e um chaveiro, onde costumava estar
outro armarinho. A vitrine do Entre Linhas é organizada para mostrar os materiais
vendidos na loja, além de aviamentos, vendem-se artesanatos como panos de prato,
bordados e bonecos de pano e feltro em guirlandas para decoração. Na vitrine, encontro
fixadas as folhas de papel ofício brancas promocionais, mas desta vez com as letras
impressas. O nome da loja está adesivado no vidro e data sua origem de atendimento ao
público desde o ano de 1985. O seu interior é confuso, tão movimentado que
dependendo do horário em que se está lá dentro, pode-se levar facilmente quinze
minutos para ser atendida(o). Este armarinho, mais do que os outros, conta com um
grande estoque de linhas e tecidos, por isso é tão procurado pelo seu fiel público.
Procuro sair da Rua Roque Calage em direção a Praça Saldanha Marinho.
Caminho pela praça menos apressadamente44 em comparação com os muitos passantes
que a atravessam em meio aos senhores velhos que ocupam os bancos para conversar,
como também em meio às meninas e meninos mais jovens que ocupam o coreto da
praça para fazer batalhas de “Rap” e o grande chafariz azul para tirar “selfies”. Chego
ao turbilhão de pessoas da cidade, mais conhecido como Calçadão Salvador Isaia e
caminho até encontrar a primeira das galerias que dão acesso a Rua Venâncio Aires.
Aqui é necessário mais uma vez atravessar a movimentada rua para chegar ao meu
destino, o Armarinho Nacional – ou aquele perto dos Correios, como as pessoas

43
São pequenos estabelecimentos onde se comercializam materiais para a confecção de artesanatos, como
tintas, pincéis, colas, vernizes, e etc.
44
Guiada por Colette Pétonnet em suas flanâncias pelo cemitério parisiense “Père-Lachais” e o seu
método de “observação flutuante”, desenvolvido através da “necessidade de movimento que o sedentário
experimenta.” (PÉTONNET, 2008, p. 102)
113

costumam identificá-lo. Seu tamanho espacial não é diretamente proporcional ao


número de pessoas que nele circulam. O armarinho é apenas um corredor de porta
estreita e discreta na Rua Venâncio Aires. As atendentes trabalham com auxílio de
escadas que lhes permitem ter acesso aos produtos da loja que se encontram elevados
até o limite do teto. A localização mais central do estabelecimento facilita o trânsito de
clientes em seu interior, mas o diferencial do Armarinho Nacional está no final do
corredor ocupado por mesas e máquinas de costuras operadas por nove mulheres
costureiras. Naquele apertado espaço elas trabalham em reparos rápidos, como a troca
de fechos e a costura de bainhas com materiais advindos da loja para clientes que
também frequentam o estabelecimento. Retornarei, em breve, ao Armarinho Nacional.
Meu próximo destino é o Armarinho Pinheiro. Ao sair do Armarinho Nacional,
caminho até a esquina da quadra no sentido de chegar a Rua Floriano Peixoto, a rua que
“fecha” o Calçadão Salvador Isaia. Percorro duas quadras até chegar a Rua Coronel
Niederauer, depois de dois prédios, a terceira e amarela estrutura me indica o ponto de
chegada. Mesmo estando localizado mais próximo de minha residência (em relação aos
outros estabelecimentos), eu nunca o havia notado. Este foi indicado por algumas de
minhas interlocutoras como o predileto. A placa comercial indica venda por atacado e
varejo, pressupondo uma grande variedade de aviamentos e outros materiais para
costura.

3.3 SOBRE SOCIABILIDADES NOS ARMARINHOS E MUDANÇAS E


PERMANÊNCIAS NA COSTURA

Torna-se importante considerar que no circuito entre casa, armarinhos e salas de


costura, clientes e costureiras participam das dinâmicas urbanas, de mercado, de espaços
de trocas e sociabilidades. O conceito de sociabilidade que uso foi tradicionalmente
elaborado pelo sociólogo alemão Georg Simmel (1983), que pensou a sociabilidade
como um fator relevante para se compreender as formas pelas quais a sociedade se
encontra estruturada. O sociólogo discute que os indivíduos são determinados pela
interação com os seus pares. Nesse sentido, a sociedade estaria concebida num jogo de
interações, e seria possível de existir somente a partir das relações recíprocas de uma
coletividade.
114

No momento em que estive nos armarinhos foi possível observar que as clientes
e suas paradas momentâneas para observar algum objeto que lhes chama atenção nas
prateleiras, os encontros e as conversas no interior dos armarinhos apontam para um
espaço lúdico de sociabilidade em que frequentá-lo representa também um momento de
lazer.
Convém ressaltar que busquei os armarinhos como possíveis locais de
observação e estabelecimento de redes para que eu pudesse me aproximar e de novas
interlocutoras para a minha pesquisa. Inicialmente, é preciso dizer que eu possuía
algumas hipóteses sobre a relação entre as costureiras e esses espaços. E que estas
hipóteses não foram confirmadas, pois, pensava que iria encontrar diferentes mulheres
costureiras, interagindo com comerciantes e suas clientes nos estabelecimentos que
fornecem os materiais para a realização de seus trabalhos.
Imaginem o quão perfeito seria para a pesquisadora, encontrar estes lugares ao
lado de casa, oferecendo tudo o que eu acreditava que me faltava para realizar esta
pesquisa. Acontece que nem tudo funciona da maneira como idealizamos, e eu não
dispunha de tempo necessário para frequentar diariamente estes estabelecimentos,
intentando estabelecer contatos e vínculos para realizar a pesquisa que gostaria.
Num segundo momento, pensei em acompanhar e tracejar o percurso das casas
das costureiras aos armarinhos e vice-versa. Sucedeu que as costureiras com quem
trabalhei não perdem os seus tempos de trabalho ou lazer para realizar tão
frequentemente tais deslocamentos. O que em realidade ocorre é que a maioria delas
possui um grande estoque de materiais para costura em suas casas. Logo, quando
precisam de algo que não possuem, pedem para o filho buscar. Ou aproveitam o dia em
que recebem seus pagamentos, o sétimo dia útil, para se deslocarem até o centro da
cidade. Tendo em vista que neste caso o deslocamento é necessário, aproveitam para
renovar os seus estoques de materiais. São os casos de Dona Chita e Dona Renda.
Outras como Cetim sempre pedem para que as clientes tragam aqueles materiais
necessários para a nova confecção. Algumas como Linho, Jeans e Dona Algodão
residem próximas ao centro, assim, resolvem suas idas aos armarinhos num “pulo”, uma
visita rápida.
Em suma, as mulheres com quem trabalhei pouco fazem parte dessa rede de
sociabilidades presente nos armarinhos de costura. Embora a rede exista e seja
importante para elas, visto que, geralmente, são os lugares onde todas se conhecem. O
que torna corriqueira a seguinte pergunta de atendentes, “Quem é a sua costureira?”. E
115

bem, se você ainda não possui uma costureira, os armarinhos são os lugares certos para
informar-se sobre elas. Contudo, preciso reiterar que buscar pelos armarinhos me foi útil
num primeiro momento, pois, caso não houvesse a intenção, talvez eu não tivesse
descido do ônibus em um ponto diferente do qual costumava descer para me locomover
até a casa de Dona Chita. E conhecer com o andar das minhas próprias pernas e o
descobrir de meus próprios olhos, o universo que rodeava sua casa. Ou seja, mesmo que
minhas hipóteses sobre os armarinhos não tenham se confirmado, a investigação em
torno deles me permitiu descobrir outros locais da cidade, com itinerários diferentes dos
iniciais. O que me levou a conhecer seus “habitués” e atentar não apenas para as
mudanças, mas, de outro modo, para algumas permanências dos saberes e fazeres das
pessoas comuns em seus cotidianos.
Ademais, retornando aos itinerários, em alguns bairros adjacentes ao centro não
foram encontrados armarinhos, embora tenha ouvido menção da existência destes
estabelecimentos outrora nos bairros Itararé, Divina Providência e Juscelino
Kubistchek. O primeiro bairro citado acima teve um crescimento inicial acelerado
devido a Gare da Estação Férrea, que no ano de 1895 a 1900 acabou movimentando os
empregos na cidade e a habitação do, então, nascente bairro Itararé, bem como da
famosa e turística Vila Belga nos anos de 1901 a 1903 (RECHIA, 1999). Faz parte da
memória das moradoras e moradores mais antigos da cidade que na Vila Belga
habitavam os trabalhadores de mais prestígio como, por exemplo, os engenheiros. Já os
operários, instalaram-se no bairro Itararé, que após a decadência da ferrovia estagnou o
seu crescimento ao lado norte da cidade. Conforme os dados da Agência de
Desenvolvimento de Santa Maria (ADESM)45, no ano de 2006, o Itararé teve o seu
território dividido para a criação de outro bairro, o Campestre do Menino Deus. Através
de uma despretensiosa caminhada pelo bairro Itararé e, ao conversar com moradoras e
moradores locais, ainda se pode vivenciar a experiência de ouvir o apito do trem, bem
como de levar um bebê recém-nascido que sofre de cólicas para as mãos de uma
benzedeira tradicional, ou ainda de tirar as medidas para um terno na Alfaiataria
Daronco. Mas, não se pode mais comprar aviamentos para costura, dado que o pequeno
armarinho que costumava funcionar ao lado da grande e amarela Igreja Santa Catarina
fechou suas portas e guardou suas linhas.

45
Para informações sobre os bairros, ver http://santamariaemdados.com.br/1-aspectos-gerais/1-4-bairros-
distritos-e-regioes-administrativas/
116

3.3.1 O bairro de origens divinas (Divina Providência)

No bairro Divina Providência reside a costureira Dona Chita e seu filho Diego.
Para chegar a sua casa, preciso caminhar até o centro da cidade, mais precisamente até a
Rua dos Andradas entre a Rua Floriano Peixoto e a Avenida Rio Branco para pegar o
ônibus que indica “São João” em seu visor. Os horários de ônibus para esta região da
cidade não são frequentes, visto que foram longas as esperas nas paradas, tanto no
sentido centro/bairro quanto o inverso. Depois de pegar o ônibus, observo a rápida
descida na Rua dos Andradas. O ônibus continua a descer até encontrar a Avenida
Borges de Medeiros onde dobra à direita e prossegue com o percurso em linha reta. Esta
parte da cidade é uma descoberta para mim, pois até o momento da primeira visita à
casa de Dona Chita, nunca havia passado por este caminho. Observo o comércio ao
longo da rua, mercadinhos, ferragens, bares, agropecuárias, sapatarias, farmácias e uma
construção antiga e imponente chamada de “Pão dos Pobres”, que logo depois descobri
ser uma escola.46
Adiante reconheço uma das estações da viação férrea, aparentemente esquecida
pela prefeitura e por muitas pessoas da cidade, exceto por algumas moradoras e
moradores da Vila Km2 que organizam a “Associação de Catadores e Reciclagem
Noêmia Lazzarini” no local. Onde também a escola de samba “Vila Brasil” (a escola
mais antiga de Santa Maria) realizava ensaios abertos para o carnaval que costumava
existir na cidade.47 Mais para
frente, seguindo o percurso do
ônibus, dobramos a esquerda e
depois de duas quadras consigo
avistar a casa de madeira cor
laranja de Dona Chita,
localizada na esquina da Rua
Helmuth Knies. A rua passou a

Figura 21: Vizinhança de Dona Chita no bairro Divina levar esse nome difícil depois
Providência

46
Também descobri que logo atrás do Pão dos Pobres, visualiza-se uma segunda escola, mas dessa vez de
ensino privado e chamada de “Divina Providência”. O bairro passou a levar também este nome em função
da escola ser uma referência na região. Embora, quando se menciona tal região na cidade, o mais comum
é que as pessoas se lembrem da primeira escola.
47
Hoje em dia, a escola de samba Vila Brasil ainda promove no local da antiga estação algumas oficinas
de batucada com alunos e alunas da Escola de Educação Infantil Pão dos Pobres.
117

que o morador mais antigo faleceu, de “A Número 3” o nome da rua passa a


homenagear aquele que fundou a associação da vila em 1985. A fonte da informação é
segundo outra moradora antiga da vila, a Dona Chita. O novo nome da rua ainda não
consta em dispositivos on-line como o Google Maps.
A zona urbana de
Santa Maria está
dividida em 41 bairros,
os quais, por sua vez,
são formados por 226
unidades residenciais.
Anteriormente a divisão
se dava em bairros/vilas
pela Lei Municipal

Figura 22: Dona Chita e seu filho Diego nº2770/1986, mas


atualmente a Lei
Municipal Complementar de nº42/2006 altera a divisão urbana e, por consequência, as
unidades residenciais passam a existir e abranger as vilas, os loteamentos e os parques,
dentre outras unidades. Sendo assim, Dona Chita reside na Vila Brenner que está
localizada no bairro Divina Providência, que é composto por outras duas unidades
residenciais, as vilas Km2 e São João Batista. O bairro nasceu no ano 2006, a partir de
uma desagregação do bairro Salgado Filho. Segundo os dados da ADESM, o bairro
delimita uma área de 0, 8409 km² e conta com 1, 346 moradoras(es). Segundo o gráfico
(Figura 22), o bairro apresenta um crescimento da população entre 15 e 19 anos, sendo a
população mais velha, a partir dos 60 anos, reduzida. Na faixa etária dos 90 anos, nota-
se apenas um grupo pequeno de mulheres. Este pode ser apontado como o motivo pelo
qual a rua onde reside Dona Chita ser conhecida pelas e pelos residentes do bairro como
a “Rua das Viúvas”48.

48
Como é uma rua localizada na Vila Brenner, região mais antiga do bairro Divina Providência, residem
nela moradoras mais velhas que já perderam seus companheiros de vida, por isso ficou conhecida como a
Rua das Viúvas. Este fato solidifica o entendimento de que as mulheres em idade avançada, em geral, são
mais numerosas do que os homens em idade avançada. Que, aliás, podem-se observar nos gráficos
indicadores da faixa etária para homens e mulheres de cada bairro.
118

Figura 23: Pirâmide etária do bairro Divina Providência. Fonte: elaborado pela autora a partir dos dados
adicionais do programa de sinopse por setores do censo do IBGE de 2010

Conforme o filho de Dona Chita, o cientista social Diego Marafiga (2016), a


separação da área condizente ao atual bairro Divina Providência do território total do
bairro Salgado Filho se deve ao fato de ter havido uma “invasão” do loteamento km2,
ou seja, uma ocupação do lugar por famílias de baixa renda nos anos 2000. A ocupação
ficou conhecida pelo termo pejorativo de invasão por meio da comunidade mais antiga
que reside próxima ao local. Existe um forte estigma carregado pelas famílias de baixa
renda que é somado a um discurso de aumento da criminalidade na região, mesmo que a
situação das famílias tenha sido regularizada através do Programa Minha Casa, Minha
Vida e do Programa de Aceleramento da Economia (PAC). Algo semelhante ocorre
com a ocupação do Km3, bairro localizado no sentido leste da cidade, mais próximo aos
bairros Pés-de-Plátano e Camobi. São chamados pelas unidades de medidas,
quilômetros (Km), devido às antigas estações férreas localizadas nestes locais. Ambos
119

os lugares tiveram suas áreas ocupadas por moradoras e moradores de baixa renda.49
Nessas regiões, o que aparentemente está abandonado para aquelas(es) que olham de
fora e de ônibus – como eu inicialmente olhava – é ocupado e ressignificado pelas
pessoas.
Ao caminhar pelo bairro Divina Providência, as moradoras e moradores não
sabem ao certo informar se uma determinada rua de divisa faz parte da Vila Brenner ou
da Vila São João Batista, mas com toda certeza identificam qualquer rua do Km2. Isso
porque não é somente a pavimentação das ruas (de uma pavimentação asfáltica, o lugar
passa a ser de chão batido) que se difere das demais vilas. É visível a diferença
estrutural das casas (as casas de alvenaria são substituídas em maior número pelas casas
de madeira) e a quantidade de resíduos presentes em frente a elas, devido ao fato de
uma grande quantidade de moradoras e moradores do local serem recicladoras(es) de
materiais reutilizáveis.
Depois de sair com meu colega Diego para uma caminhada etnográfica que
visava conhecer um pouco mais da região em que residem ele e sua mãe Dona Chita,
obtive a oportunidade de conversar com moradoras(es) que nos contaram suas vivências
e versões sobre a história do bairro. Dentre as pessoas com quem conversamos naquele
dia, dois grupos distintos nos detiveram mais tempo e atenção, o primeiro deles foi um
grupo de crianças (doze no total) que brincavam numa rua próxima a antiga estação.
Entre uma maioria de meninos e duas meninas, de idades aproximadamente entre 6 e 12
anos brincavam de empinar pipa, tocar pandeiro e jogar futebol. Era uma cena bonita e
de fato um retrato admirável, não obstante meu colega quis fotografar e eu quis
perguntar para eles se poderia fazê-lo também. O resultado dessa aproximação foi um
longo período em que ficamos conversando com as crianças. Elas nos contaram seus
nomes, onde moravam, suas idades e respectivas séries na escola. Contamos o que
fazíamos e de onde éramos, mas o que eles entenderam é que eu era uma fotógrafa e
prontamente quiseram fotografar. Assim, as crianças usaram da máquina fotográfica

49
É válido ressaltar que no ano de 2015, a ocupação batizada de “Estação dos Ventos” (Km3) realizou
protestos na cidade se referindo às obras do PAC até então estagnadas pela prefeitura. Jornais locais
alternativos conjuntamente com apoiadoras(es) realizaram a cobertura dos protestos e de uma segunda
ocupação, desta vez no centro da cidade no edifício “Galeria Rio Branco” que estagnou suas obras há 44
anos. Esta segunda ocupação não visava moradias, mas sim obter visibilidade para os problemas
enfrentados pela população do Km3. A reportagem do jornal “O Viés” está disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=opsqblAKLI0. Pode-se conferir outra reportagem do jornal em
http://www.revistaovies.com/reportagens/2011/04/o-mau-vizinho/. Nesta última, busca sanar a
curiosidade das e dos leitores sobre o caso do “Mau vizinho”, o prédio abandonado na Avenida Rio
Branco.
120

para enquadrar suas brincadeiras.50 Este fato só revela o quanto a câmera abre portas e
diálogos com interlocutores diversos e o quanto a “etnografia de rua e câmera na mão”
(ROCHA; ECKERT, 2002) pode ser algo inspirador.
Chegando à estação, encontramos dois homens que conversavam em frente à
antiga construção. Aproximamo-nos e na medida em que conversávamos, descobrimos
que os dois homens eram irmãos. Eles nos contaram sobre os causos que presenciaram
na região desde que instalaram uma fábrica de móveis sob medidas na estrutura da
antiga estação, logo depois que o ponto deixou de ser um armazém de carga e descarga
da Rede de Viação Férrea. Desde a instalação da fábrica “Móveis Rio Branco”, já se
passaram 41 anos. Um dos irmãos, Seu Miro, relata que nos primórdios da fábrica
podiam contar com 21 funcionários e outras duas lojas no centro da cidade, mas com o
passar dos anos essa realidade foi mudando.
A decadência da Viação Férrea e também a posterior estigmatização do Km2,
logo ao lado, mudaram o cenário ao redor da fábrica e o tipo de sociabilidade que
passou a acontecer por ali. Seu Miro lamentou bastante a situação de muitas pessoas
dependentes químicas usarem o local para pedirem dinheiro e consumirem tais tipos de
substâncias. Contou-nos que tiveram muitas invasões no lugar de trabalho, mas que a
frequência das ocorrências também depende da época em que se está vivendo. Uma vez
que houveram muitos móveis furtados em épocas de crises financeiras, outra vez que já
tiveram os estoques de colas de sapateiro zerados devido ao alto consumo psicoativo da
substância. Sobre a decadência da Viação Férrea, seu Miro lamenta, “hoje em dia, a
empresa que assumiu isso daí, não quer saber de terra, das pessoas e da cidade, eles só
querem saber da carga”. Frente a estes fatores, a “Móveis Rio Branco” não possui mais
funcionários em seu interior, contudo, os dois irmãos continuam firmes em seus
trabalhos.

50
Algumas fotografias deste dia acompanham o texto, contudo, somente aquelas em que não aparece o
rosto das crianças. Isso se configura numa questão ética em que escolho não utilizar as outras fotos,
devido ao fato de não ter acontecido um contato com todas(os) as(os) responsáveis pelas crianças, sendo
assim, eu não tenho a devida permissão para utilizá-las.
121

Figuras 24 e 25: Crianças brincam no Km2

Em suma, o mais importante de frisar é que no bairro Divina Providência, a


referida ocupação de moradoras e moradores na Vila Km2 junto com o abandono da
estrutura da antiga Viação Férrea por parte das autoridades configuram um importante
122

fator para compreendermos a história e a estigmatização da vila, do bairro e de toda a


região conhecida como zona norte.

Figura 26: Antiga Estação da


Viação Férrea localizada no
Km2, onde acontecem as
oficinas de batucada da
escola de samba Vila Brasil
e também onde está a
Associação de Recicladores
da vila. Fonte: Street view do
Google Maps.

Figura 27: Diego e Seu Miro em frente à


fábrica de móveis, onde costumava ser a
estação

Figura 28: A fábrica de móveis em seu


interior
123

3.3.2 O bairro de origens presidenciais (Juscelino Kubitschek)

No bairro que leva o


nome do ex-presidente do Brasil,
Juscelino Kubitschek, vive a
costureira aposentada, Dona
Renda. O bairro existe
oficialmente desde o ano de
1986 e segundo informações da
ADESM, não teve nenhuma
alteração significativa em seu
território em 2006. Conta com
uma área de 2.4580 km² e 13.730
moradoras e moradores. É
dividido em seis unidades
residenciais, o Conjunto
Habitacional Santa Marta, as
Vilas Prado, Rigão, Martelet,
Joquei Clube e Caramelo.
Nesta última vila/unidade
residencial está localizada a
Figura 29: Rua onde reside Dona Renda
moradia de Dona Renda.
Nascida na zona rural do município de São Pedro, Dona Renda mudou-se para Santa
Maria e habitou primeiramente a Vila Prado. Há aproximadamente 20 anos, mudou-se
para a Vila Caramelo com seu marido e dois filhos. Seu filho mais velho, atualmente,
mora no terreno ao lado para cuidar da mãe viúva e envelhecida. Quando se mudaram
para a localidade, construíram suas casas no que costumava ser uma chácara. Nos dias
de hoje, ainda posso vislumbrar um restante da paisagem verde ao lado esquerdo da
casa de Dona Renda em contraste com o lado direito, cada vez mais cimentado e
tomado por outras casas.
Um dos principais problemas enfrentados por Dona Renda e outras(os)
moradoras(es) está relacionado com a falta de planejamento urbano da cidade. Devido o
124

relevo do local, característico de Santa Maria (com áreas altas e baixas) e a urbanização
da região concentrada na parte mais alta, as casas de Dona Renda e seu filho estão
sempre excessivamente úmidas e sujeitas a alagações em períodos de chuvas. Isso se
deve ao aumento das casas com terrenos “aterrados” e também da pavimentação das
ruas que as tornam impermeáveis, sem que a água da chuva tenha por onde desembocar,
com exceção dos bueiros, que não dão conta. Próximo ao local encontra-se o Arroio
Cadena, principal curso de água que atravessa a cidade e contribui para esta situação.
Isso não sugere que Dona Renda deseje uma rua sem pavimentação, todavia, a partir do
momento em que os automóveis atingiram seu auge, habitar a cidade moderna significa
habitar um ambiente que foi antecipadamente construído, projetado para motoristas.
Poucas são as pessoas privilegiadas que podem alterá-lo de maneira significativa, e
Dona Renda não faz parte deste grupo de pessoas.
Penso que a discussão acima possui um tanto dos dilemas do antropólogo
britânico Tim Ingold em seu texto “A cultura do chão: o mundo percebido através dos
pés” presente na obra “Estar vivo: Ensaios sobre Movimento, Conhecimento e
Descrição” (2015). O autor, ao costurar a mecanização dos pés humanos através da
bota para caminhadas com o surgimento das viagens orientadas por destinos pré-
estabelecidos e a proliferação de fabricação de cadeiras para sentar/descansar, irá tecer a
chamada redução da experiência pedestre. Tal redução estaria impedindo que
sentíssemos o mundo com nossos pés, culminando na sobreposição das mãos em
relação aos pés. O que de certa forma está ligado com o seu conceito de “carne no
mundo” e com o “paradigma da corporeidade” de Csordas (1994). Dessa forma, os pés
que ainda arriscam caminhar e calçados por botas não deixam rastros na superfície que é
pavimentada, “as pessoas, em suas vidas diárias, apenas roçam a superfície de um
mundo que foi previamente mapeado e construído para elas ocuparem, em vez de
contribuírem através dos seus movimentos para a sua contínua formação.” (INGOLD,
2015, p.86). Qualquer alteração nas ruas, das intervenções urbanas ao exemplo de Tim
Ingold sobre os pedestres que tomam atalhos através de gramados, é considerada uma
ameaça à ordem e a cidade estabelecida. Ou seja, “as superfícies sobre as quais você
pode andar são aquelas que permanecem intocadas e imaculadas pela sua presença.”
(INGOLD, 2015, p.86)
Sucessivamente, convém aqui sublinhar que as divisões das ruas e bairros
podem ser ditas arbitrárias, ou seja, configuram-se a partir da vontade daqueles que as
dividiram, neste caso, da prefeitura da cidade. Isso porque, assim como em outros
125

bairros, as pessoas transeuntes e habitantes – para orientação e localização – continuam


a usar divisões de território anteriores à lei complementar de 2006. Além de que é muito
comum a confusão do que se configura como bairro ou vila. Como, por exemplo, Prado,
que para as moradoras e moradores pode ser considerado tanto como bairro, quanto vila.
É frequente que moradoras e moradores não saibam quais são as vilas pertencentes a
cada bairro. A título de exemplo, Dona Renda, certa vez, falava-me do quanto era
perigoso caminhar nas vilas Lídia e Arco-Íris, pois as mesmas eram nascentes de
“invasões” e abrigavam muitos criminosos e traficantes de drogas. As referidas vilas
localizam-se proximamente da Vila Caramelo e parecem fazer parte – tanto discurso
quanto geograficamente – da mesma região, mesmo não fazendo parte do Juscelino
Kubitschek, e sim do bairro Noal. Em outro diálogo com a senhora Renda fica evidente
a confusão (confusão esta que pode ser da prefeitura e também da senhora Renda) entre
as divisões territoriais dos bairros e vilas. Divisões que acabam, de forma burocrática, se
distanciando das experiências das moradoras e moradores.
Dona Renda, atenciosamente, me falava que as ruas da Vila Rigão possuem
nomes de pássaros, tais como Canários, Bem-Te-Vi, Arapongas e Pardais. E que na Vila
Prado, os nomes são de árvores, Cerejeiras, Palmas, Bergamoteiras, Laranjeiras, etc. Na
vila Caramelo, nomes de pessoas. Na São João, de cidades. Na Pinheiro Machado,
nomes de árvores de novo. Apesar das vilas Rigão, Prado e Caramelo possuírem uma
área territorial pequena, são tomadas como bairros pelas pessoas, tal qual Pinheiro
Machado e São João. Um último exemplo de fácil apreensão está nas seguintes pergunta
e resposta, “Qual bairro é aqui?”, “Aqui é Caramelo”.
Quando estou na parada à espera de ônibus na Avenida Presidente Vargas, perto
de minha residência, pego aquele que indica “Prado” em seu visor, almejando chegar ao
bairro Juscelino Kubitschek. Com o passar do tempo e a aproximação do referido
bairro, posso ter uma visão ampla ao longe dos prédios construídos no centro da cidade.
Nos “horários de pico”, são muitas as pessoas que lotam os ônibus para voltar do centro,
de trabalhos e das escolas. Visto que o bairro se configura quase como estritamente
residencial, fazendo com que o pequeno comércio ali existente não supra as
necessidades das moradoras e moradores.
No gráfico (Figura 29) pode-se notar um número maior de pessoas residentes
entre 25 e 29 anos, sendo reduzido o número de habitantes entre 75 e 79 anos, faixa
etária de Dona Renda. Número mais reduzido ainda se comparado a homens e mulheres
nesta idade. É importante ressaltar que não foram encontrados armarinhos de costura no
126

Figura 30: Pirâmide etária do bairro Juscelino Kubitschek. Fonte: elaborado pela autora a partir dos dados
adicionais do programa de sinopse por setores do censo do IBGE de 2010

bairro. Segundo minha interlocutora e moradora, a costura feita em casa não tem mais
valor, isto quer dizer que existe um desaparecimento das costureiras na região. Em
razão de que muitas das mulheres mais velhas que costuravam faleceram e as mulheres
mais novas não têm interesse por este tipo de serviço. Em contrapartida, outros dois
bairros adjacentes ao centro da cidade me foram apontados como portadores deste saber
em aparente extinção. Nestes bairros, foram localizados armarinhos de costura, são eles
os bairros Camobi e Tancredo Neves. Entrarei em mais detalhes nos próximos
subtópicos.

3.3.3 O bairro de origens guaranis (Camobi)

De acordo com a etimologia, o nome do bairro é a mesma palavra que em


guarani possui o significado para “seios de moça”, provavelmente por ser uma região da
cidade marcada pelo relevo dos morros arredondados. Camobi, ao contrário do bairro
Itararé e conforme o bairro Divina Providência, vem se desenvolvendo cada vez mais.
127

Localizado ao leste da
cidade, o bairro conta
com um aumento de
condomínios
residenciais, comércio e
restaurantes. Possui a
maior área geográfica
da cidade com 20, 3463
km² e o maior número
de habitantes, 21.822.
Figura 31: Entardecer na UFSM, localizada no bairro Camobi Um dos fatores
responsáveis pelo
crescimento do bairro é a Base Aérea (BASM) inaugurada em 1970, que faz com que
muitos militares sejam transferidos de outros estados para a cidade de Santa Maria.
Neste cenário de um alto contingente militar, configura-se também uma propicia fonte
rentável para as costureiras, visto que a maioria de minhas interlocutoras já trabalhou –
Dona Filó e Cetim ainda trabalham – com a confecção e reparos de fardas militares. Na
casa de Dona Filó podem-se encontrar montes de fardas para ajustes, na loja de Cetim
existe uma procura até mesmo para a confecção de pequenas fardas para os filhos de
militares. Dona Renda e Dona Chita não trabalham mais com esse tipo de serviço
devido ao excesso de trabalho que demanda. Mas, de uma forma ou de outra, a procura
pelas costureiras por parte dos militares da cidade, acaba sempre garantindo que uma
renda esteja circulando na casa das mulheres que trabalham com a costura. Usando os
termos êmicos, chama-se esta renda de “ganha pão” ou “dinheirinho” das costureiras.
Outro fator que deve ser considerado para entendermos o crescimento do bairro
Camobi é a expansão da Universidade Federal de Santa Maria que data sua instalação
no ano de 1960. A universidade acaba atraindo muitas pessoas jovens de outras cidades
para cursarem não somente o ensino superior, mas também o ensino médio e técnico.
No gráfico (Figura 31), pode-se notar o número elevado de pessoas jovens que habitam
o bairro, é claro que nem todos os jovens estão na universidade ou no serviço militar,
mas existe uma parcela significativa que não pode ser ignorada. Torna-se relevante,
evidenciar que não é apenas o bairro Camobi que sofre influencia em decorrência do
crescimento da universidade. É evidente que o sistema imobiliário e o comércio se
solidificam mediante o crescimento da UFSM e de outras universidades particulares,
128

fazendo com que cresça também a procura e o mercado de produção de formaturas. As


formaturas na cidade de Santa Maria vêm tomando proporções gigantescas, desde a
cerimônia até a festa particular de cada formanda ou formando.

Figura 32: Pirâmide etária do bairro Camobi. Fonte: elaborado pela autora a partir dos dados adicionais
do programa de sinopse por setores do censo do IBGE de 2010

Alunas e alunos entram nos primeiros semestres do seu curso pagando as


primeiras parcelas de sua festa, nas conversas de corredor e intervalo de aulas muitas
vezes falam do desejo de se ter uma formatura dos sonhos. Não me cabe aqui falar das
empresas que produzem tal evento e muitos menos das festas em si, mas sim ressaltar
que este contexto configura para as costureiras um papel importante. Existe uma grande
procura às costureiras por parte de quem move intenções de realizar uma festa de
formatura, na verdade, principalmente por parte das mulheres que buscam o feitio de
vestidos para essas festas.
Retornando aos armarinhos, o bairro Camobi – até onde me consta – conta com
quatro destes estabelecimentos. Na Avenida Prefeito Evandro Behr, (mais conhecida
como “faixa velha”) no sentindo de quem se dirige até a UFSM, encontra-se o
estabelecimento “Ofertão Camobi”. Uma placa branca, simples, com letreiros
129

igualmente grandes e coloridos indica a venda de lãs, linhas, barbantes e demais artigos
de bazar. Apesar disso, não é incomum que o armarinho passe despercebido em meio ao
comércio da faixa velha. Próximos ao “Ofertão” ficam os outros três armarinhos. O
estabelecimento “Miucha: Arte e Costura”, no outro lado da faixa, no sentindo de quem
se dirige ao centro da cidade, é também um ateliê de costura. Este, um pouco mais
atrativo, possui grandes placas em cor rosa que indicam os serviços prestados, como a
venda de produtos e cursos de corte e costura. Para chegar aos outros dois, é preciso
deslocar-se da faixa e entrar nas “ruazinhas” do bairro. O armarinho “Pense Leve” é o
mais antigo e conhecido, está localizado na Rua João da Fontoura e Souza no térreo de
um prédio residencial cor terra. O “Armazém das Linhas” me foi indicado por Dona
Filó. Na maioria das vezes, a costureira pede para as clientes trazerem os aviamentos
extras necessários para a confecção da roupa. Pois, Dona Filó possui uma grande
quantidade de materiais como linhas e agulhas estocadas em sua sala de costura.
Contudo, quando não possui o material e nem a cliente o leva junto com a roupa que
precisa ser ajustada ou confeccionada, Dona Filó usufrui dos serviços de “tele-moto”
para buscá-lo, geralmente no armarinho “Armazém das Linhas”. Este armarinho está
localizado na Rua Padre João Bosco Penido Burnier numa casa branca, residencial na
parte dos fundos e comercial na parte da frente, onde o armarinho divide seu espaço
com um escritório de advocacia e como um ateliê de costura.
A seguir, pode-se conferir o croqui que localiza os quatro armarinhos mapeados
por mim no bairro Camobi:

Figura 33: Croqui dos armarinhos localizados no Bairro Camobi


130

A presença de vários armarinhos, assim como a frequência com que ouço falar
da quantidade de costureiras que ainda trabalham no bairro Camobi, indicam como o
saber fazer da costura ainda permanece e se sustenta por motivos que passam pelas
demandas de serviços da Universidade Federal de Santa Maria e da Base Aérea.

3.4 COSTURANDO OS RETALHOS DE UMA CIDADE

É importante ainda ressaltar que o bairro Tancredo Neves me foi indicado como
uma localidade que mantém um armarinho em seu comércio. Estabelecido no sentido
oeste da cidade, o bairro é relativamente novo, pois teve a sua área demarcada no ano de
2006 quando a prefeitura do município alterou as divisões territoriais dos bairros.
Contudo, uma Cohab51 já existia no local desde 1986. “T Neves” como é referido pelos
viventes da cidade, é um bairro conhecido por constituir uma parcela da cidade muito
diferente das demais. Uma parcela mais nova e popular. De fato, todos os bairros de
Santa Maria constituem uma identidade singular que poderia ser caracterizada por sua
localização geográfica, relevo e história.
Ao costurar os retalhos que possuo da cidade, posso afirmar que o bairro Itararé
é rodeado pelos verdes morros que caracterizam não só a região, mas a cidade de Santa
Maria como um todo. É o mais antigo e recheado de histórias populares que circulam
pela boca de suas moradoras e moradores. Camobi é o bairro mais distante em relação
ao centro da cidade. Suas ruas se diferem por serem planas, mas sem perder de vista os
morros de Santa Maria. Suas moradoras e moradores possuem o orgulho e slogan “Sou
mais Camobi” - alguns até compartilham da ideia de emancipação do bairro em relação
à cidade. O bairro Divina Providência é fortemente marcado pelo estigma da Vila Km2
e assombrado pelos fantasmas da antiga estação férrea, de uma maneira menos atrativa e
turística do que a Gare da Estação e a Vila Belga próximas ao Itararé. O bairro Juscelino
Kubitschek, assim como o T. Neves, é um bairro relativamente novo e marcado também
pelos verdes morros.
Torna-se importante frisar que não tive a oportunidade de acompanhar o
cotidiano de nenhuma costureira no bairro Tancredo Neves. Portanto, não trabalharei

51
Os Conjuntos Habitacionais foram parte da política de habitação entre as décadas de 1960 e 1980 no
Brasil. As Companhias Estaduais de Habitação com recursos do Banco Nacional de Habitação (LEI
4380/64) buscaram responder a forte crise habitacional que o país atravessava devido a crescente e rápida
urbanização das cidades. Em Santa Maria, destacam-se os conjuntos habitacionais da COHAB Tancredo
Neves, Santa Marta e Fernando Ferrari (RUBIN, 2013).
131

com um mapeamento e uma descrição detalhada do bairro, mas não mencioná-lo aqui
seria uma negligência com o exercício de mapear os armarinhos e com o universo
laboral da costura em si.
Contudo, vale ressaltar novamente que este capítulo não possui o objetivo de
auxiliar quem procura por estes estabelecimentos. Ele não é uma espécie de lista para
consulta de informações sobre os armarinhos de costura, muito menos de grandes lojas
de tecidos que podem eventualmente comercializar aviamentos. Em razão de que não
pretendia mapear todos os estabelecimentos existentes na cidade, sendo assim é possível
que alguns não estejam citados aqui, pois podem ter passado despercebidos.
Além disso, não foi minha intenção descrever todos os bairros da cidade de
Santa Maria. O que busquei mostrar neste capítulo foi que apesar das inevitáveis
mudanças que envolvem o desenvolvimento da cidade e das coisas, a costura enquanto
saber fazer continua a existir nestes pequenos estabelecimentos, por vezes
imperceptíveis. A costura ainda sobrevive nos domicílios, garantindo o sustento de
mulheres como Dona Chita e Dona Filó e como outrora garantiu o sustento de Dona
Renda. Sem deixar de existir, a costura domiciliar, em realidade, coexiste com a costura
da fábrica, com a alta costura, com o “prêt-à-porter” e, infelizmente, com a realidade
atual do trabalho escravo.
Em suma, posso afirmar que Santa Maria é uma cidade em eminente
transformação. A cada nova ou novo estudante ou a cada nova ou novo morador, a
cidade se transforma com as ideias novas que chegam. E se transforma ainda com a
partida de pessoas que carregam para longe ideias que aqui se iniciaram. O fechamento
de alguns armarinhos poderia dizer a respeito de mudanças no mercado e no consumo
das cidades. Afinal de contas, fazer a sua própria roupa ou encomendar de uma
costureira não é mais tão corriqueiro como outrora foi.
Todavia, neste instante pude perceber que outros elementos, como o ato de
brincar na rua ou o apito do trem, continuam a perdurar e a resistir às mudanças
drásticas causadas pelo sucateamento da Viação Férrea. Além de que a cada nova
caminhada pela cidade, observo algum outro estabelecimento, como as pequenas salas
de costura que não havia notado antes. Desta forma, houve um redescobrimento da
cidade. De uma cidade que é vivida pelas costureiras em seus bairros, e que através de
suas janelas observam e conversam com os transeuntes da rua. Uma cidade onde
crianças ainda podem brincar empinando pipa. Uma cidade que não parou no tempo sob
132

a sombra da antiga Estação, mas que também não abandonou a sua memória, utilizando
da ressignificação a base para o seu presente.
Atentar para como as mulheres costureiras vivenciam a cidade de Santa Maria se
tornou importante, pois, ao traçar os caminhos entre os armarinhos e suas casas, pude
perceber que elas não frequentam os armarinhos tanto quanto eu acreditava que
frequentassem. Isso tem relação direta com outros fatores que foram discutidos no
segundo capítulo desta dissertação, entre eles, o cuidado. As mulheres não dispõem de
tempo para irem atrás de materiais para a costura, porque elas necessitam desempenhar,
na maioria das vezes, todos os tipos de cuidados, como o da casa e o das pessoas, além
do trabalho da costura. As costureiras que entrevistei, batem mais pé para tocar a
máquina de costura do que para caminhar pela cidade em busca dos aviamentos nos
armarinhos.
Por fim, a partir do momento em que utilizei das conversas com minhas
interlocutoras e outras(os) moradoras(es) locais como formas de retratar o bairro e a rua,
da câmera fotográfica, dos croquis e gráficos, deixo este espaço e o caminhar no estilo
de uma “flâneuse” para adentrar – no capítulo que se segue – nas residências das
interlocutoras ou em outros lugares onde desempenham os trabalhos, os gestos, os
saberes e os fazeres.
133

CAPÍTULO 4: Vidas e corpos “cerzidos” pelo trabalho da agulha

Cerzir/sm. 1. Coser, remendar com pontos miúdos, quase imperceptíveis. Utilizo


do termo “cerzir” para nomear o capítulo em que falo dos saberes e fazeres das
mulheres costureiras. Primeiramente, porque cerzir é uma técnica deste saber fazer e,
por conseguinte, porque essa mesma técnica diz muito sobre as suas vidas e os seus
corpos. Cerzir o tecido de uma roupa que sofreu algum rasgo ou foi puído significa
precisar disfarçar um defeito. Embora o dicionário descreva cerzir como algo que ficará
quase imperceptível, na prática isto não ocorre. Por mais experiente que a costureira
seja, é improvável que as marcas de uso e os danos surgidos na superfície do tecido se
tornem imperceptíveis. Mas, isso não quer dizer que a roupa vá ser jogada fora, por isso
recorre-se a criatividade. Algo semelhante ocorre com os corpos das costureiras. Eles
são constantemente marcados pelo trabalho duro nas máquinas de costura. Não
raramente precisam ser remendados os rasgos que o trabalho e também a vida insistem
em fazer. Mas, com criatividade e persistência, as mulheres vão costurando suas
histórias e remendando as feridas, superando as dores com a maestria de quem já
“pegou o jeito” de remendar. O último capítulo desta dissertação divide-se em três
tópicos: no primeiro deles, intento fazer uma contextualização dos saberes e fazeres
femininos; já no segundo tópico, discorro sobre as maneiras de fazer e as maneiras de
aprender das costureiras. O terceiro e último tópico, a partir das observações do
cotidiano das costureiras, volto o olhar mais precisamente para os corpos, os gestos e as
técnicas de trabalho.

4.1 O QUE ENCONTREI POR ENTRE COSTURAS: SABERES E FAZERES


FEMININOS
“Nossos destinos poderiam ser esses ou
outros totalmente diferentes, porque o fim
que levamos não ficou registrado em nenhum
lugar. Talvez nem sequer tenhamos chegado
a existir. Ou talvez sim, mas ninguém
percebeu nossa presença. Afinal de contas,
sempre estivemos por trás da história,
ativamente invisíveis naquele tempo em que
vivemos entre costuras.” (María Dueñas em,
O tempo entre costuras, 2010, p. 471).

Até o presente capítulo, procurei afirmar o quanto a costura ainda reverbera na


vida de algumas mulheres, revelando aspectos de permanências e resistências da
134

profissão de costureira. De permanências no que tange os saberes e fazeres (VERDIER,


1979), os gestos (LEROI-GOURHAN, 1965) e as técnicas corporais (MAUSS, 1974).
De resistências num mundo contemporâneo que é de rápido e fácil consumo às roupas
prontas para vestir. Por consequência, a feitura da costura revela um fazer prático
transmitido entre gerações e mais gerações de mulheres por meio da cultura comum que
se adapta conforme o contexto de se vestir na sociedade, como já venho discutindo
nesta dissertação. Desse modo, assemelha-se a outros processos da duração de saberes
e fazeres, como na culinária, na medicina feminina, entre outros. A costura depende,
então, do domínio de algumas técnicas e procedimentos (saberes) transmitidos por
mulheres e incorporados por meio da prática (fazeres), o que envolve trabalho duro e
repetições ao decorrer do aprendizado e da “educação da atenção” (INGOLD, 2010).
Reúno, neste capítulo, tudo aquilo que enxerguei como propício para que leitora e leitor
possam (re)descobrir também o cotidiano laborioso das costureiras. Por isso, além da
observação do cotidiano das costureiras nas salas de costura, recorri tanto a fragmentos
de textos retirados de literaturas52 que possuem como pano de fundo o trabalho da
costura quanto a registros fotográficos realizados ao longo da pesquisa. Imagens daquilo
que as palavras não conseguem dar conta, dos gestos, das técnicas, dos movimentos e
dos olhares. Materiais que somados descortinam o trabalho e se conectam com as
próprias autoras do cotidiano, as mulheres costureiras.

4.1.1 Uma contextualização acerca dos saberes e fazeres

Os estudos sobre os saberes e fazeres não são novidades em nosso meio


acadêmico, pode-se dizer que essas categorias começaram a ser investigadas em dois
momentos históricos distintos. Primeiramente, na escola antropológica francesa com
Marcel Mauss (1974), onde o autor se preocupou em estudar a vida do homem comum,
suas técnicas e seus hábitos. E, mais tarde, com os estudos feministas, onde
historiadoras pertencentes à tradição da escola dos “Annales” procuraram desviar das
perspectivas tradicionais vigentes em suas épocas. Perspectivas essas que tendiam a
52
É importante destacar que frente à parca bibliografia teórica publicada sobre o tema, investi em todas as
produções que abordassem a costura das quais tomei conhecimento. Sejam estas, poemas, músicas ou
livros ficcionais de literatura. Evidentemente, não tenho a pretensão de tornar os trechos citados ao longo
da dissertação como fatos etnográficos, mas é pensando em enriquecer o seu conteúdo descritivo e
analítico que recorro a Jules Renard (1992) e Manoel de Barros (2006) para justificar tal uso. O escritor
francês disse “Quando uma verdade ultrapassa cinco linhas, é um romance”, e o poeta brasileiro
completou, “Tudo que não invento é falso”. Neste sentido, lá se vão 182 páginas de puro romance. Se a
vida imita a arte, o contrário não é menos incomum, nem ao menos no campo acadêmico.
135

excluir as mulheres do percurso da história. Uma das maiores expoentes pesquisadoras


dessa tradição é a historiadora francesa Michelle Perrot (1988), que centrou seus
esforços num resgate da história das mulheres através do cotidiano, pois, por mais reais
que sejam a opressão e a dominação dos homens através dos séculos, esses fatores não
seriam suficientes para contar a história das mulheres,
Elas [as mulheres] estão presentes aqui e além. Elas são diferentes. Elas se
afirmam por outras palavras, outros gestos. Na cidade, na própria fábrica,
elas têm outras práticas cotidianas, formas concretas de resistência – à
hierarquia, à disciplina – que derrotam a racionalidade do poder, enxertadas
sobre seu uso próprio do tempo e do espaço. Elas traçam um caminho que é
preciso reencontrar. Uma história outra. Uma outra história. (PERROT, 1988,
p.212).

Segundo a autora, as mulheres comuns possuem outros saberes concentrados,


principalmente entre as medicinas naturais, as religiões ou mesmo entre a cultura.
Saberes estes que seriam tomados no decorrer dos séculos como pertencentes ao senso
comum, ou seja, conhecimentos ordinários ou até mesmo conhecimentos vulgares.
Diversos fatores poderiam ser explorados para analisar os porquês desta transformação
no imaginário social relativo aos saberes e fazeres femininos. Contudo, um dos motivos
mais debatidos e conhecidos está relacionado ao período de “caça as bruxas” que se
inicia no século XV, atingindo o seu ápice nos séculos XVI e XVIII, cujos efeitos são
sentidos até os dias de hoje. De acordo com a historiadora italo-estadounidense Silvia
Federici (2017), um dos resultados da perseguição das curandeiras populares sucedeu,
por exemplo, no fato de que as mulheres foram “expropriadas de um patrimônio de
saber empírico relativo a ervas e remédios curativos, que haviam acumulado e
transmitido de geração em geração” (FEDERICI, 2017, p.364). Para a autora, isto se
configura numa perda que acabou abrindo caminho para que a medicina profissional
surgisse. Assim, a medicina construiu um muro de conhecimento inalcançável para as
“classes baixas” e, especificamente, para as mulheres portadoras dos saberes e fazeres
da cura. (FEDERICI, 2017).
Já os estudos de Fátima Perurena (1997), ao discorrerem acerca dos saberes
femininos pouco reconhecidos em nossa sociedade, escolhem caminhar pelos viesses
epistemológicos a fim de remontar a divisão “corpo e mente” estabelecida por
Descartes. Esta divisão se estabeleceu como um paradigma que atingiu em maior grau o
universo de saberes e fazeres das mulheres em oposição ao universo de saberes dos
homens. Isso quer dizer que a construção da ciência configurou-se de forma gendrada,
tal como a sociedade que é claramente delimitada pelas diferenças de gênero. Sendo
136

assim, o mundo dos saberes comuns, da medicina natural, dos florais, do cuidado, dos
ritos, etc., estaria mais próximo do “saber feminino” construído no cotidiano. Isso
significa que, na medida em que se afasta da ciência inicialmente produzida somente
pelos homens, torna-se um saber que constitui compreensões que escapam às
racionalidades da ciência cartesiana.
Ao recorrer a Perrot (1988), Federici (2017) e Perurena (1997), procurei mostrar
que os saberes e fazeres construídos pelas mulheres dentro dos ambientes domésticos
não envolvem apenas um mundo que é considerado racionalizado e objetivo. Mas,
envolvem, sobretudo, um universo que é afetivo e corporal. E que por conta disso, acaba
por se constituírem como saberes e fazeres pouco reconhecidos, mas centrais para o
desenvolvimento da vida social. Contemporaneamente, estes saberes podem ser
identificados como tradicionais ou “coisas de vovó”, em razão de que muitas pessoas
trazem na memória as características tarefas manuais desempenhadas pelas mulheres da
família, em geral as mais velhas, principalmente, as avós. São saberes e fazeres que
“não foram aprendidos formalmente, mas transferidos de mulher para mulher no jogo de
reprodução de papéis sociais” (SAPIEZINSKAS, 2012, p.147). A maioria destes
saberes como, bordar, costurar, lavar, limpar, cozinhar, partejar, fazer remédios caseiros
produzidos a base de plantas e ervas estão relacionados com a reprodução e o cuidado
da vida. Incluí-se também nestes saberes, a tarefa de ministrar o cotidiano e as relações
sociais da família.
Ademais, as corporeidades identificadas nas atividades cotidianas das mulheres
(como cuidar, costurar, limpar, cozinhar, etc.), “denunciam” aquilo que Pierre Bourdieu
(2006) denomina como “habitus”. Segundo o autor em seu texto “O camponês e o seu
corpo” (2006), as técnicas corporais – baseadas nos estudos de Marcel Mauss (1974) –
constituem um sistema que correlaciona o jeito, as expressões, a forma de se vestir e de
se portar. Neste sentido, posso afirmar que as costureiras aprendem através das suas
vivências, de modo que os saberes e ensinamentos passados corporal e verbalmente por
outras mulheres são incorporados na prática dos fazeres. É desta forma que saberes e
fazeres se conectam. No cotidiano das mulheres costureiras, um não pode existir sem o
outro, de maneira que estão até mesmo sobrepostos. Só se pode aprender a costurar,
costurando. Saberes e fazeres se personificam, assim, no “habitus” (BOURDIEU, 2006)
e se materializam nas práticas de costurar e não menos em limpar, cozinhar, cuidar e
viver.
137

As mulheres fazem o hábito ou o costume, diria a étnologa francesa Yvonne


Verdier (1979) já apresentada brevemente no primeiro capítulo. Pois, ao descrever com
precisão os saberes e fazeres das mulheres na vila de Minot, a autora nos apresenta
arquétipos de três diferentes mulheres que possuem funções específicas no cotidiano.
São elas a costureira (la couturière), a cozinheira (la cuisinière) e a mulher que ajuda
(la femme-qui-aide). Para esta última estavam destinadas as funções de dois momentos
distintos da vida, “faire les bébés” e “faire les morts”, que significa respectivamente,
“fazer os bebês” e “fazer os mortos”. Para desempenhar tais funções, “la femme-qui-
aide” deveria deslocar-se de casa em casa ajudando nos nascimentos das crianças e nas
mortes. Nesta primeira ocasião, geralmente, acompanhada das parteiras (sages-femmes)
e, na segunda ocasião, ajudando na preparação dos mortos para o sepultamento. “La
femme-qui-aide” pode ser chamada também de “lavadeira” (laveuse) devido ao seu
fazer estar fortemente marcado pela água e pelas técnicas de lavagem. Isso significa que
em dois momentos um vivente de Minot seria lavado, a primeira vez em seu nascimento
e uma segunda vez em sua morte, assim, o tempo garante o se próprio retorno,
Le bain, la lessive, le grand ménage renouent ainsi avec une phase de temps
antérieure, font revenir les choses à leur point de départ, du sale au propre, de
Ia mort à Ia vie. Le temps, ainsi relancé, repart à zéro. La bui s'intêgre et
s'associe à ces puissantes métamorphoses calendaires, le printemps et
l'automne. Peut-être faut-illà que le temps retourne justement sur lui-même,
et Ia grande lessive en serait Ia démonstration spectaculaire, riche de sens et
garante de l'avenir, un éternel retour. (VERDIER, 1979, p.121).

Por sua vez, “la cousinière”, possuía a função de preparar as refeições para
celebrar o batismo, a comunhão e com um enfoque maior, o casamento. Era comum na
região de Minot que a cozinheira preparasse também a bebida do “pot de chambre”53.
Tal como aconteceria de outras maneiras num “chá de casamento” brasileiro, o ritual de
beber deste elixir preparado especialmente pela cozinheira é recheado de brincadeiras
que possuem como objetivo presentear a noiva e o noivo. Contudo, de acordo com
Verdier, a bebida era destinada principalmente às noivas, e misturava temperos e
elementos associados à fertilidade feminina como, por exemplo, o repolho. A fim de
evocar o processo de maturidade da mulher, o ritual de quebra do “pot de chambre”
assemelhasse ao ritual grego da quebra de pratos. Logo, a quebra de um “pot de
chambre” significava também a quebra da fertilidade da mãe passada agora para a sua
filha. Portanto, a função culinária estaria aqui intimamente ligada ao papel das mulheres
enquanto genitoras.

53
Caso as leitoras e os leitores tenham dúvida, é isso mesmo, uma bebida preparada no “penico”.
138

A terceira figura chave na organização do universo feminino de Minot é a


costureira que, por sua vez, possui como função “faire la jeune-fille” e “faire le
mariée”, ou seja, “fazer as meninas” e “fazer o casamento”. Nesse contexto, está
presente uma técnica, a costura, e um estágio da vida, a juventude. Era comum que as
meninas, ao atingirem quinze anos de idade, fossem passar um inverno na casa de uma
costureira com o objetivo de aprender as técnicas da costura e, principalmente, com a
finalidade de se transformarem em potenciais noivas. Assim, o saber fazer da costura
estaria associado à função de moldar as jovens. Tornando a costureira uma figura muito
próxima a de “tia-madrinha”, aquela mulher que oferece conselhos sobre a vida
doméstica, sentimental e sexual para as menos experientes. Embora também, em Minot,
as costureiras carregassem um forte estigma de má índole, tendo em vista a mobilidade
que a profissão exigia na época e também o fato de muitas delas serem “jovens mães
solteiras”.
Três mulheres para três funções, “fazer as meninas” para então torná-las noivas,
“fazer o casamento” e “fazer os bebês” e, posteriormente, “fazer os mortos”. Com três
técnicas, costurar, cozinhar e lavar. Para três momentos distintos da vida, a juventude, a
maturidade e a velhice. Pode-se afirmar que, nestas representações, a medida do tempo
se encontra marcada nos corpos das mulheres. Filhas, mães e avós representam a fluidez
do tempo. Maneiras de saber e fazer vão desenhando práticas que pertencem
unicamente a este universo feminino. Saberes e fazeres adquiridos através dos
aprendizados que perpassam as gerações dessas mulheres que lavam, cozinham e
costuram para fazer o hábito e a cultura.
As funções das mulheres conferem a elas algo que se tornou o destino feminino
em Minot. Funções que estabelecem o ritmo do tempo e da vida em comunidade,
fatores que determinam a fluidez das relações cotidianas. Mas, o destino não seria aqui
algo que não pode ser mudado. Em “Destinos e Costumes” (Destins et coutumes),
capítulo do referido livro (VERDIER, 1979), a autora aprofunda sua ideia de pertença
do destino ao indivíduo, ou seja, pertencente às mulheres. Que o costume é aquilo que
pertence à sociedade. E, por fim, que é rompendo com estes costumes que os indivíduos
podem criar os seus próprios destinos.
Interessou-me encontrar, quando atenta ao cotidiano das mulheres costureiras na
cidade de Santa Maria, aquilo que é “invisível aos olhos” dos demais (CERTEAU,
1994). E pelo menos uma parte daquilo que trouxe Verdier (1979) em seus estudos:
mulheres em seus trabalhos cotidianos da costura, com seus comportamentos,
139

aspirações, sonhos e histórias percorridas pelas minhas inquietações intelectuais e


aspirações antropológicas.
Contudo, devo chamar a atenção para o fato de que os saberes e fazeres
femininos são frequentemente confundidos como habilidades inerentes à natureza
feminina, como se as mulheres tivessem uma predisposição natural para tarefas com
agulhas, plantas, alimentos e crianças. No entanto, é preciso ter em mente que os lugares
de trabalho onde estão inseridos homens e mulheres são lugares que só podem ser
entendidos mediante termos sociais, históricos e culturais. Que dizem respeito às
construções sociais que um determinado contexto cultural produz para cada um dos
gêneros. Ou seja, cada contexto espera certos papéis a serem desempenhados pelos
respectivos gêneros. Vários estudos já foram produzidos a respeito destas condições.
Estudos de referência que vão desde a pioneira pesquisa realizada pela antropóloga
Margareth Mead (2009) – que desenhou as bases para que posteriormente pudessem ser
desenvolvidos os estudos sobre gênero – e caminha até os mais recentes que abordam a
divisão sexual do trabalho, como a pesquisa das autoras Hirata e Kergoat (2007). É
importante ressaltar que estes saberes e fazeres não são inatos e naturais ao universo
feminino, mas construídos ao longo dos anos diante de reproduções sociais relacionadas
aos papéis de gênero. A partir disso, subjetividades também vão sendo construídas na
mesma medida em que as mulheres transmitem e recebem estes saberes e fazeres. Como
já é de conhecimento das leitoras e leitores, interessa-me destacar, especificamente, o
saber fazer da costura.

4.2 MANEIRAS DE FAZER E APRENDER

Puxando de minha memória, lembro da costureira Dona Poliéster54, amiga de


minha mãe dos tempos em que ambas moravam e trabalhavam no campo. Poliéster foi
responsável pela confecção e bordados de todas as roupinhas de
bebê que tínhamos em casa. Elas passaram de meus irmãos
para mim e, posteriormente, vestiram outras crianças da
família. Babadores, casaquinhos, toalhinhas, macacões, mini

54
O tecido de poliéster normalmente mescla fibras naturais com fibras sintéticas. São práticos de lidar,
pois não amassam facilmente. Aqui, o tecido encaixa-se perfeitamente no codinome desta mulher, pois
além dela ser considerada uma pessoa “fácil de lidar”, sua casa de costura era fresquinha como o tecido
que também deu forma as nossas roupinhas de criança, bordadas de flores, leves e macias.
140

meias e calças. Todas as peças bordadas e cuidadosamente combinadas entre si. Desta
forma, penso nas mulheres costureiras como as mulheres que também “fazem os bebês”.
Numa comparação com as mulheres descritas por Verdier (1979), posso afirmar
que as costureiras desta pesquisa ultrapassam o arquétipo de “fazer as meninas” e “fazer
o casamento”. Neste caso, elas “fazem” a costura da vida. Estão presentes nos
preparativos do ritual de passagem que, na nossa sociedade, transformam meninas em
jovens mulheres, como as celebradas festas de quinze anos. Estão presentes,
posteriormente, em seus casamentos, sem esquecer, das formaturas de ensino médio e
superior. Nestas útlimas, o papel da costureira concentra considerável importância na
cidade de Santa Maria já apresentada as leitoras e leitores no terceiro capítulo. São elas
que costuram e seguem costurando os principais vestidos dessas noites e também os
outros vestidos que estarão presentes nos corpos de madrinhas e convidadas. Dona
Paetê, por exemplo, no período de sua vida em que morou no meio rural, ficava
responsável por costurar os vestidos das noivas, fazer penteados em seus cabelos e
também maquiá-las. Anteriormente, sem acesso a produtos de beleza, ela improvisava o
cuidado da pele, muitas vezes, com pó de arroz. Um dia de casamento, para ela,
costumava ser um dia de muito trabalho, visto que atendia não somente a noiva, mas
todas as outras mulheres das famílias envolvidas no casamento. Assim, as costureiras
vão “fazendo” as jovens mulheres no decorrer de seus “rituais de passagem” (GENNEP,
2011)55. Mas, o fazem em outros momentos, incluindo até certo modo os homens,
mesmo que com menor frequência.
Ainda inspirada por Verdier (1979), pode-se dizer que as costureira também
“fazem os mortos”. Quando Paetê voltou a morar na cidade, empregou-se no setor de
costuras de um hospital em Santa Maria. Neste emprego, costurava as roupas

55
O antropólogo holandês Van Gennep dedicou-se em seus estudos a análise e classificação dos ritos de
passagens, “é o próprio fato de viver que exige as passagens sucessivas de uma sociedade especial a outra
e de uma situação especial a outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas,
tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza.” (GENNEP, 2011, p. 24). De acordo com o
autor, seria possível agrupar um grande número de rituais – que possuem certos padrões cerimoniais
recorrentes – ao conjunto de ritos de passagens, tendo em vista que todo rito de passagem passa por outras
três cerimônias nominadas por separação, margem e agregação. De acordo com cada ritual, uma ou outra
cerimônia acaba possuindo maior ênfase como, por exemplo, no ritual de nascimento, quando se
prevalece o momento ritual de agregação ao mundo. Embora o ritual de separação também seja bastante
significativo, pois simboliza a ocasião do corte do cordão umbilical e do primeiro banho que além de
representarem um ritual de purificação, separam o filho de sua mãe. Desta forma, ficará para pesquisas e
textos futuros desenvolver análises frente aos rituais de passagem que marcam a vida das mulheres que
costuram, pois, como o próprio Van Gennep afirmou, “para os grupos, assim como para os indivíduos,
viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer.”
(GENNEP, 2011, p. 160).
141

hospitalares confeccionadas para os pacientes, além de roupas de cama e banho. Deste


modo, as costureiras fazem/costuram aquilo que aloja e veste os pacientes enfermos que
precisam de cuidados paliativos, além também dos pacientes que podem estar à beira da
morte. “Faire les bébés”, “faire la jeune-fille", “faire le mariée” e “faire les morts”.
Assim, as mulheres vão costurando a temporalidade, fazendo-se presentes em todos os
estágios da vida de mulheres e homens, mesmo que aparentemente não sejam presenças
visíveis.
As mulheres estabelecem o ritmo temporal de viver na sociedade, fator que
determina a fluidez das relações cotidianas. No caso de Dona Chita, isso pode ser
observado na forma como atende e recebe a clientela em sua casa no interior da
comunidade onde vive. Chita sobrevive como costureira de profissão há pelo menos
cinquenta anos. Ela sustentou a casa, o filho e a filha sozinha a base de suas costuras.
Mas, para isso, precisou usar para além da força de trabalho, sua criatividade. Segundo a
costureira, muitos de seus serviços foram usados como um meio de trocas ou permutas
entre ela e o restante da comunidade. Como uma espécie de escambo, onde a costureira
presta um serviço para receber outros serviços ou bens em troca. Assim, Dona Chita
trocou e ainda troca serviços de costura por alimentos no mercadinho local ou por carne
no açougueiro e assim por diante. Se, por um acaso, a costureira não precisa de algo
imediato no momento em que as roupas estão prontas, as(os) clientes costumam creditar
em sua conta possibilidades para retirar mercadorias em outros momentos que ela esteja
precisando.
Ao contornar o mercado tradicional de compra e venda de produtos, Chita e
suas/seus clientes se aproximam daquilo que Michel de Certeau (1994) definiu como “o
homem ordinário”, e que neste caso prefiro chamar de “pessoas ordinárias”, incluindo
as mulheres na história e invenção do cotidiano. Segundo o autor, as pessoas em seus
cotidianos realizam diversas formas de “caça não autorizada” a fim de contornar de
maneira silenciosa a organização da sociedade seja ela econômica ou cultural. É este
contorno, esta volta que as pessoas dão para chegar onde desejam que Certeau (1994)
chamou de “artes de fazer” e “táticas de resistência”. A partir das quais, as pessoas
possam abrir os seus próprios caminhos e se (re)apropriarem dos espaços, dos usos e
dos meios da maneira como podem.
Esse mercado informal de trocas presente na vida de Chita também tem um
pouco do que Marcel Mauss (1974) chamou de dádiva onde, “misturam-se as coisas nas
almas. Misturam-se as vidas. E é assim que as pessoas e as coisas misturadas saem cada
142

qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente contrato e troca.” (MAUSS,


1974, p.71). Deste modo, são estabelecidas teias de relações sociais que constituem o
tecido e o ritmo da vida na Vila Brenner, onde reside a costureira Chita. Retornarei no
próximo tópico, à relação da costura com as teorias de Mauss (1974).
Apesar disso, o trabalho das costureiras também se caracteriza como um
trabalho “por baixo dos panos”, isto é, por baixo dos tecidos esplendorosos de festas
que contrastam com os seus lugares de trabalho nos bastidores. Elas fazem parte das
histórias que não estão nos álbuns de fotografias quando se tratam dos rituais de
passagem. No livro “Balzac e a costureirinha chinesa”, o autor Sijie (2011) descreve o
local de trabalho da costureira como um lugar bagunçado onde, “reinavam a desordem,
a falta de senso estético e uma total descontração” (SIJIE, 2011, p.25). A partir da minha
observação, compartilho a percepção do referido autor a respeito do lugar de trabalho
das costureiras que entrevistei. Os bastidores da costura são de uma aparente bagunça e
se configuram como ambientes descontraídos, onde existe muita conversa “jogada
fora”, sociabilidades, trocas, histórias compartilhadas entre clientes, costureiras e
pesquisadora. É de se considerar ainda que, esses lugares compartilham de uma estética
característica dos grupos populares identificada por flores de plástico, “bibelôs”,
“fuxicos”, “patchworks” e demais artesanatos.
Outros fatores contribuem para a aparência desordenada do local de trabalho das
costureiras, situações como peças de roupas não retiradas pelas(os) clientes, e que
permanecem entulhadas no local, juntam-se com retalhos e restos de fios pelo chão e
acabam por contribuir para a aparência de desorganização do ambiente. Mas, tudo
naquelas salas está disposto de forma a facilitar os seus trabalhos, visto que as
costureiras estão completamente conectadas com os objetos no local onde costuram.
Tesouras e linhas estão sempre perto das máquinas para estarem próximas de suas
mãos. Embora algumas sejam mais preocupadas do que outras em causarem uma boa
aparência da sala de costura para a clientela que chega, também é verdade que com
tantos afazeres no dia a dia, os aspectos causados por estas situações não constituem a
maior das preocupações de nenhuma das costureiras desta pesquisa.
Dona filó contara-me que antes de possuir condições para construir uma nova
sala para as costuras em sua casa, trabalhava onde costumava ser sua cozinha, sala e
quarto. De modo que não conseguia nem separar direito as atividades diárias e nem a
desordem causada por essa aglutinação de ambientes. Logo, os cenários onde costuram
assemelham-se entre si porque estão conectados pelo ritmo de trabalho e em grande
143

parte pela domesticidade onde está inserida a costura feminina. Nas linhas que se
seguem, faço uma tentativa de aproximar à leitora e o leitor deste cenário das salas de
costura, a partir de minha observação e convívio no cotidiano das máquinas, das
costuras e das mulheres que contribuíram com esta pesquisa.
4.2.1 Maneiras de fazer e aprender: o cotidiano e a sala de costura

Ao descer do ônibus na Rua Helmuth Knies no bairro Divina Providência, já é


possível avistar as máquinas de costura pela janela da casa de Dona Chita, visto que a
parada do ônibus fica logo em frente a sua casa. Ao me receber com um sorriso no
rosto, Dona Chita me acompanha até a sala de costura. Entro em sua casa pela primeira
sala, a de estar. Assim, reparo que em cima de sua televisão está um novo retrato, uma
foto sua e de seu filho56. A sala de costura de Dona Chita é preenchida por três grandes
máquinas de costura, dois sofás, tecidos, linhas e movimentos. Com paredes de
madeiras azuis e assoalhos de madeiras marrons a sala de costura desenha com cores de
Frida Kahlo um ambiente florido apenas pelas estampas de roupas que passam por lá.
Os assoalhos – já cedidos pelo tempo, peso e som das máquinas – revelam os caminhos
percorridos pelo corpo da costureira em sua cadeira que arrasta pela sala entre uma
máquina e outra. Os assoalhos de madeira também revelam o som estridente causado
pelas máquinas de costura industriais de Dona Chita, pois estes, assim como as paredes
de madeira, estremecem devido à intensidade do som emitido pelas máquinas.
Ao adentrar mais profundamente à sala de costura, reparo nos montes de roupas
entulhados pelo decorrer da sala. Consigo identificar que são montes para ajustes, pois,
sei que aqueles que aguardam para serem entregues para as(os) clientes já se encontram
dobrados dentro de sacolinhas plásticas advindas de lojas da cidade. Os retalhos dos
tecidos vão sendo jogados pela máquina “overlock”57 em baldes de cores fluorescentes

56
Anteriormente, neste mesmo lugar, costumava ficar outro retrato seu. Era uma das fotos que eu havia
tirado dias antes, quando intentava retratar o seu cotidiano. A mesma foto foi substituída, então, por este
novo retrato, tirado mais recentemente, quando propus fazer o registro da mãe e de seu filho. Dona Chita
adorou a ideia e, apesar da timidez de seu filho, a foto hoje ocupa um lugar de destaque em sua casa. Este
acontecimento remete a circunstância de restituição às costureiras, tendo em vista que as fotografias
foram cuidadosamente trabalhadas, reveladas e devolvidas às interlocutoras.
57
A máquina overlock é uma máquina de costura industrial. Ela faz acabamentos em tecidos planos
desde que sejam tecidos de malha ou elásticos. Exige o uso de três a quatro linhas a serem arrumadas e
transpassadas pelos devidos lugares ao redor e por entre a máquina, além de exigir uma ou duas agulhas
para a formação da corrente que auxiliará na costura. É de grande porte e ocupa um espaço maior do que
as outras máquinas nas salas de costura. Na descrição, refiro-me aos retalhos que a máquina “joga” ou
“lança” através de um escorregador para uma lixeira ou outro recipiente posicionado pela costureira. Isso
ocorre porque a máquina “overlock” ao mesmo tempo em que costura, corta um pedaço do tecido.
144

que, quando cheios, transbordam no chão os pequenos, às vezes longos e estreitos,


tecidos puídos.
Chama a atenção uma pequena televisão de tubo disposta no fim da sala,
estrategicamente posicionada ao lado da máquina de costura reta58, a mais utilizada por
Dona Chita. A televisão está ali, portanto, para entretê-la enquanto trabalha solitária nas
suas costuras. Quando nada na TV a contenta, recorre para à rua na esperança de
encontrar vidas passantes pela sua janela. Desta vez, a máquina de costura é quem se
encontra estrategicamente posicionada. Dona Chita me contou que tentou reorganizar a
sala e mudar a máquina reta de lugar, sem colocá-la em frente à janela, mas outras
posições da máquina não lhe agradam e a deixam deprimida.
Aos poucos, adentro o universo de trabalho doméstico de Dona Chita. O passar
do tempo entre as costuras descortina um cotidiano de saberes e fazeres, de gestos e
técnicas a serem descritas neste capítulo. Mesmo que para outras costureiras desta
pesquisa o cenário se configure de maneiras diferentes – como é o caso de Cetim que
trabalha num estabelecimento comercial – poucas coisas se diferem de fato do ambiente
que acabei de descrever. Dentre aquilo que se difere, posso pensar nas cores e no lugar
onde estão situadas as mulheres na cidade e no trabalho (no meio familiar ou no meio
comercial), contudo, elementos como a posição das máquinas de costuras, geralmente
perto das janelas, as atitudes corporais e os retalhos formando tapetes em seus arredores
tendem a se repetir. Existem, então, certos aspectos os quais estive interessada em
investigar nesta pesquisa, dentre eles, as maneiras de fazer e aprender são centrais neste
tópico e subtópico.
A escritora mexicana Laura Esquivel nomeou o início de cada capítulo do seu
livro “Como água para chocolate” (2009) com o título “maneira de fazer”, dado que a
autora traz em cada capítulo uma nova receita descrita. Não sabemos ao certo quem a
escreveu, mas suspeitamos que provavelmente tenha sido a personagem principal da
história: Tita, a tia avó daquela que nos narra os acontecimentos. Logo nos primeiros
parágrafos, pode-se perceber que a narradora traz uma série de conhecimentos reunidos
e conservados pelas mulheres de sua família. Sentenças como, “Les sugiero ponerse un
pequeño trozo de cebolla en la mollera con el fin de evitar el molesto lagrimeo”

58
A máquina de costura reta executa o ponto reto comum formado por duas linhas, uma superior e outra
inferior, na qual vão sendo entrelaçadas ao longo da costura. A linha inferior está localizada numa bobina
embaixo da região onde fica a agulha. Já a linha superior está entrelaçada pela máquina, passando pela
agulha. A máquina reta pode ser industrial ou doméstica, geralmente, as costureiras utilizam as máquinas
industriais mesmo quando trabalham em casa. Pois, as máquinas domésticas costumam ser de pequeno
porte e não costuram tecidos muito grossos, além de superaquecer quando demasiado utilizadas.
145

(ESQUIVEL, 2009, p.10), revelam para além das memórias produzidas no livro de
receitas de Tita, um saber fazer que inclui um universo de técnicas (les sugiero ponerse)
e medidas (trozo) que desviam das precisões delimitadas pelas revistas ou pela
matemática. Este acúmulo de saberes pressupõe uma série de tentativas com erros e
acertos para chegar numa receita final. Mas, que ainda não pode ser tomada como a
receita definitiva, tendo em vista que não está livre de futuras modificações. Podemos
pensar neste dia a dia marcado por tentativas, erros e acertos como a experiência prática.
E é assim que a vida imita a arte, mas no caso do objeto desta dissertação, não
mais na cozinha, e sim nas salas de costura. Nelas, as mãos ágeis cortam os tecidos,
desenham os moldes, alinhavam a costura, passam o tecido rapidamente a ferro só para
não se perder de vista as dobras da veste, costuram na máquina reta, alternam para a
máquina “overlock” e assim, sucessivamente, até finalizar aquela peça e reiniciar o
processo novamente. Caso o processo dê errado, “puxa um fiozinho ali, outro lá” (mas,
precisam ser os fios certos), desmancha e refaz até acertar a nova peça no corpo da
cliente durante a prova.
Cetim, certa vez, contara-me que logo que abrira a sua loja próxima ao centro da
cidade, uma nova cliente apareceu com a ideia de fazer uma saia parecida com a da
cantora de “Jazz”, Amy Winehouse. Empolgada e nervosa com a encomenda, Cetim
anotou todos os detalhes com a exceção de um muito importante: as medidas da cliente.
O suspense feito por Cetim enquanto me contava a história fez-me acreditar que algo
muito errado e desastroso poderia ter acontecido no final. Contudo, a experiência de
Cetim na costura, como já descrita no segundo capítulo desta dissertação, acompanha
sua trajetória desde quando era muito jovem. Ela resolveu este “detalhe” – que para nós,
pessoas que não costuram, consideraríamos imprescindível para realizar o trabalho –
comparando o tipo físico da cliente com outra jovem que conhecia e julgava ser mais ou
menos parecida e, “voilà”, deu certo.
Dona Paetê, assim como tantas mulheres – inclusive outras interlocutoras nesta
pesquisa – aprendera a costurar com a sua mãe que também foi costureira. A senhora
simpática e descontraída que é Dona Paetê contou-me como era rigorosa a inspeção que
sua mãe realizava nas costuras. Em seu processo de aprendizado, era comum que sua
mãe lhe pedisse para desmanchar uma peça já pronta três ou quatro vezes para “pegar o
jeito” e “fazer bem feito”. Uma de suas maneiras de fazer indispensáveis era o processo
de alinhavar, pois, fazer a costura logo “de olho” poderia dar errado. Por isso, ela dava
atenção milimetricamente aos detalhes. O que a mãe de Paetê desejava era que a filha
146

não fizesse a costura definitiva sem primeiramente fazer um alinhavo no tecido. O


alinhavo é uma costura temporária e o seu uso facilita o processo para que a costura
permanente fique com a angulação adequada. Fazendo um nó na ponta de uma linha, o
processo de alinhavar consiste em fazer vários pontos com espaçamentos entre um e
outro até completar toda a área que se deseja costurar. Mas, nem sempre as costureiras
cumprem esta etapa, dado que depois de certo tempo de trabalho elas se tornam seguras
o suficiente para começar a costura sem um alinhavo inicial.
Os escritos de Frances de Pontes Peebles no romance “A costureira e o
Cangaceiro”59 fornecem os detalhes mais autênticos possíveis sobre o cotidiano dos
fazeres e a maneira como as mulheres conduziam a costura sem receitas a seguir,
confiando em suas habilidades e em seus olhos treinados para o trabalho,
Luzia era ótima para tirar as medidas das pessoas. Sabia exatamente em que
ponto passar a fita em torno de braços ou cinturas para conseguir as
dimensões mais acuradas. Mas a sua habilidade não dependia de exatidão;
Luzia era capaz de ver para além dos números. Sabia que estes podem
mentir. Tia Sofia tinha lhes ensinado que o corpo humano não tinha linhas
retas. A fita métrica podia errar o traçado de costas encurvadas, no arco de
um ombro, na curva de uma cintura, na dobra de um cotovelo. Luzia e Emília
aprenderam a desconfiar da fita métrica. "Nunca confie numa fita de um
estranho!", exclamava tia Sofia. 'Confiem nos seus próprios olhos!”
(PEEBLES, 2017, p.13 e 14).

Os saberes sobre o costurar das jovens Luzia e Emília trazidas por Peebles em
seu romance, revelam-se como habilidades inscritas num corpo que sabe fazer, porque é
um corpo que desenvolveu essas habilidades na prática à base de intensas repetições. O
uso de certos instrumentos como as fitas métricas e as etapas da costura como os
alinhavos, eventualmente, tornam-se desnecessários para uma costureira experiente.
Visto que são tomados como processos que precisam ser realizados para o adestramento
do corpo, que uma vez adestrado, os dispensa. As habilidades a serem desempenhadas
funcionam como mapas inscritos em suas mãos, pernas, olhos e no corpo como um
todo. A interlocutora, Dona Filó, em umas das vezes que estive em sua casa, quando
questionada sobre o seu aprendizado da costura, contou-me o seguinte:
Eu aprendi olhando minha mãe fazer aqui, e quando eu tava com 15 anos, eu
fiz a primeira roupa por medida. E até hoje a mulher vem aqui em casa, é
minha freguesa até hoje. A primeira roupa que eu fiz pra fora foi pra ela. As
pessoas dizem assim, ‘ai me ensina’, eu não sei ensinar, eu sei fazer. E tanto
assim, quando não uso a trena, e depois a cliente vem fazer a prova, não tem
nem um centímetro pra lá nem pra cá, é exato. É o tempo da gente né,
cinquenta anos costurando!

59
“A costureira e o cangaceiro” é o título da tradução original para o romance de Peebles. Recentemente,
o título foi alterado para “Entre Irmãs”, na nova edição brasileira publicada no ano de 2017, lançado pela
Editora Arqueiro.
147

Enquanto me contava sobre o seu processo de aprendizado, Dona Filó usava sua
fita métrica (trena) para elucidar suas medidas perfeitas. Expressões como “é o tempo
da gente”, observada na narrativa de Filó, somadas a história contada por Peebles
(2017) e a saída que Cetim desenhou para contornar a situação em que não havia tirado
as medidas da cliente revelam muito acerca do saber fazer da costura. No passado
algumas mulheres se tornaram portadoras do saber e fazer da costura, que aliás, até a
primeira metade do século XX ainda era esperado que elas os portassem. Consagrada
num ambiente feminino, por meio também das relações familiares, a costura como saber
fazer já foi demasiadamente procurada pelas mulheres que desejavam ter um trabalho
rentável. Hoje em dia, apesar das mudanças do mercado de trabalho para as mulheres,
algumas continuam buscando nos antigos saberes femininos um apoio para o sustento
próprio e da família. O modo como elas aprendem a costura não mudou muito desde
então. Pois, por mais que existam ressignificações nos cursos oferecidos por empresas
privadas ou mesmo por grupos colaborativos, o saber fazer de uma avó continua sendo
buscado e valorizado.
Como venho demonstrando ao longo desta dissertação, este aprendizado tem
sido descrito na literatura e saliento, além da história de Peebles, o livro “O tempo entre
costuras” (2010), de María Dueñas. A escritora espanhola ao descrever a vida de Sira
Quiroga, sua personagem principal, detalha pormenorizadamente as etapas do processo
de aprendizado da jovem que se inicia no mesmo trabalho de sua mãe:
Depois de dois anos no ateliê decidiram que havia chegado o momento de eu
aprender a costurar. Aos catorze anos comecei com os mais simples:
ganchinhos, chuleados, alinhavos. Depois, vieram as casas de botão, os
pespontos e as bainhas. Trabalhávamos sentadas em pequenas cadeiras de
junco, encurvadas sobre tábuas apoiadas nos joelhos; nelas apoiávamos nosso
trabalho. Dona Manuela atendia as clientes, cortava, provava e ajustava.
Minha mãe tirava as medidas e se encarregava do resto: costurava o mais
delicado e distribuía as demais tarefas, supervisionava sua execução e
impunha o ritmo e a disciplina a um pequeno batalhão formado por meia
dúzia de costureiras maduras, quatro ou cinco mulheres jovens e algumas
aprendizes tagarelas, sempre com mais vontade de rir e fofocar que de
trabalhar. (DUENÃS, 2010, p.12 e 13).

O desenvolvimento das habilidades do costurar das interlocutoras como


podemos observar é descrito por elas quando elencam expressões como “aprendi
fazendo” ou “aprendi olhando”. É neste sentido que posso afirmar que saberes e fazeres
também são processos de aprendizagem. São igualmente saberes que se constroem
através do olhar, do fazer na prática e da experiência. Nesta perspectiva, vou ao
148

encontro do autor Thomas Csordas (2008) quando o mesmo vincula os conceitos de


“percepção” e “prática” num novo paradigma chamado de “corporeidade”
(embodiment).60 Csordas (2008) quis demonstrar como o corpo pode ser o ponto de
partida para se analisar a cultura e o sujeito, pois, “quando o corpo é reconhecido pelo
que ele é em termos vivenciais, não como um objeto, mas como um sujeito, a distinção
mente-corpo se torna muito mais incerta.” (CSORDAS, 2008, p.142).
Assim, podemos compreender o corpo enquanto um campo de percepção e
prática. No caso desta pesquisa, as mulheres apreendem o mundo de saberes e fazeres
através do corpo e da experiência. Suas práticas corporais pressupõem determinados
objetos, procedimentos, gestos e técnicas a serem executadas no próprio costurar. No
trecho a seguir, podemos conhecer alguns dos gestos e materiais da costura presentes na
descrição cuidadosamente detalhada de Dueñas (2010),
[...] Aprendi rápido, eu tinha dedos ágeis que logo se adaptaram ao contorno
das agulhas e ao contato dos tecidos, às medidas, às peças e aos volumes.
Molde dianteiro, contorno do peito, comprimento da perna. Cava, boca de
calça, viés. Aos dezesseis anos aprendi a distinguir os tecidos aos dezessete, a
apreciar suas qualidades e a calibrar seu potencial. Crepe da China, musselina
de seda, georgette, chantilly. [...] Completei dezoito anos, dezenove. Iniciei-
me pouco a pouco no manejo do corte e na confecção das partes mais
delicadas. Aprendi a montar gola e colarinhos, a prever caimentos e antecipar
acabamentos. Eu gostava do meu trabalho, era feliz com ele. Dona Manuela e
minha mãe me pediam opinião às vezes, começavam a confiar em mim. “A
menina tem mão e olho, Dolores”, dizia dona Manuela. “É boa, e vai ser
ainda melhor se não desviar. Melhor que você, se bobear.” E minha mãe
continuava trabalhando, como se não a ouvisse. Eu também não levantava a
cabeça do meu tablado, fingia não ter ouvido nada. Mas, disfarçadamente,
olhava para ela de soslaio e via em sua boca cheia de alfinetes aflorar um
levíssimo sorriso. (DUEÑAS, 2010, p.12-13).

Conforme observado pelo etnólogo francês Denis Chevalier (1991), os saberes e


fazeres (savoir-faire) nunca são transmitidos sozinhos porque consistem na
aprendizagem, principalmente, de saber viver e saber sentir. Para o autor, os saberes e
fazeres mobilizam todos os sentidos humanos. O ferreiro, por exemplo, precisaria ter
uma “boa orelha” para que lhe permita julgar o som emitido pelos produtos que fabrica.
Para desempenhar os saberes e fazeres seria preciso recorrer a uma série de práticas que

60
Para a construção de tal proposta, Csordas (2008) recorre ao conceito de “percepção” proposto pelo
filósofo Merleau-Ponty e também ao conceito de “habitus” trazido pelo teórico da prática Pierre
Bourdieu. No primeiro caso, referente ao conceito de percepção, a discussão caminha para uma
descontinuidade acerca do dualismo entre sujeito e objeto. É desta forma que o autor rompe com a
unidade fenomenológica do homem, cuja existência corporal diz respeito a um o corpo que é um meio
geral de estar no mundo. Grosso modo, seria através do corpo que percebemos o mundo em nossa volta.
Já no segundo caso, referente ao conceito de “habitus”, Csordas destaca-o como pré-objetivo ou pré-
reflexivo. Isso quer dizer que a prática corporal precede a cognição. Entretanto, devemos estar atentas(os)
para não tomarmos a prática corporal como pré-cultural. Pois, ela é, antes de tudo, um fator cultural que
determina as formas como os seres humanos percebem, intuem, sentem, etc..
149

envolvem percepções visuais, auditivas, olfativas, gustativas e tácteis que permitem ao


profissional diagnosticar o bom ou o mau uso das técnicas aplicadas no trabalho
manual. Logo, a seguinte sentença na citação de Dueñas (2010), “A menina tem mão e
olho” comunicada por Dona Manuela na história da personagem Sira, pode destacar
alguns fatores importantes quando analisadas. Pois, obviamente, ter mãos e olhos são
características naturais de cada ser humano nascido sem deficiências. Mas, naquele
contexto, ter mãos e olhos significa “ter jeito”, ou como sinônimo de “ser cuidadosa”,
habilidade requerente do mundo social para todas as mulheres. Ou ainda, como tenho
observado no grupo “Clube da Costureira” no Facebook, “ter jeito para a coisa” pode
significar até mesmo um dom divino.
O discurso sobre a costura como um presente (dom) concedido por Deus às
mulheres, era frequente nos anos 1940, como apareceu em “Artes e Ofícios Femininos”
(1948). Mas, que ainda hoje é recorrente entre algumas costureiras como, por exemplo,
as costureiras do grupo “Clube da Costureira” no Facebook. A partir deste discurso que
compreende a costura enquanto um dom é conveniente recorrer ao conceito da “dádiva”
ou “dom”, do antropólogo Marcel Mauss (1974), no conhecido “Ensaio sobre a
dádiva”. Neste texto, o autor analisou dois diferentes sistemas de trocas: o polinésio
(maoris da Nova Zelândia) e o “potlatch” (povos do noroeste da América do Norte),
trazendo ao debate a noção de que a reciprocidade é um modelo universal de relações,
mesmo que elas, eventualmente, configurem-se de forma distinta em cada sociedade.
O dom assume, nos contextos discutidos pelo o autor, um caráter de “presente”
repleto de valores simbólicos, mais do que econômicos. Desta forma, o dom é passado
por meio dos presentes61 aparentemente de maneira despretensiosa de um indivíduo a
outro. Contudo, três obrigatoriedades – “dar, receber e retribuir” – constituem
prestações a serem cumpridas e que não estão inscritas em nenhum outro lugar, senão
no costume. São as dádivas que o autor coloca como responsáveis pela união em
sociedade, em outras palavras, são elas que amarram os laços sociais. Caso as trocas

61
Os presentes, na maioria das vezes, eram objetos, bens valiosos que fazem parte de um ritual de
circulação social e em níveis econômicos, religiosos e morais. No sistema polinésio, os objetos trocados
são chamados de “taonga” e possuem uma forte ligação com o “mana”, que seria uma força espiritual
pertencente aos indivíduos. O “mana” está estritamente relacionado ao “hau”, outro tipo de força
espiritual, que por sua vez, está relacionada aos eventos naturais e aos próprios “taongas”. Já no sistema
melanésio, Mauss (1974) analisa o cerimonial do “potlatch” como um característico sistema de trocas que
se constitui para além do intercâmbio de objetos, mas nas trocas de mulheres, crianças e serviços
militares, por exemplo. O autor ainda nos remete ao ritual do “Kula”, estudado por Bronislaw
Malinowski (1984), como um “potlach”, estando veiculado a um grande comércio intertribal.
150

sejam burladas durante a circulação de bens, indivíduos ou grupos correm o risco de


provocar graves divergências ou sofrer com rompimentos de laços sociais.
Para meu argumento, o interessante é perceber que no caso das costureiras o que
está sendo trocado é o saber da costura, circulam também as máquinas de costura
outrora utilizada pelas mulheres mais velhas de uma família. As mulheres passam o
saber para outras mulheres realizando, assim, a primeira das obrigatoriedades da dádiva.
As que recebem, possuem não somente a obrigação de receber, mas de compreender
que esse ensinamento ou dom deve ser passado adiante em algum momento de suas
vidas.
Trocas, dádivas ou dons possuem aqui uma estreita relação com um cenário de
possibilidades dentro de certo contexto cultural de uma época, onde era necessário que
as mulheres desempenhassem a costura como uma tarefa doméstica com a finalidade de
suprir as necessidades sociais do vestir-se. Ou ainda, quando as únicas opções de
ocupações rentáveis para as mulheres, como me contara Dona Renda, eram as de
cabeleireira ou costureira. Ela desejava a primeira opção, mas não teve a oportunidade
de aprender com outras mulheres que exerciam a ocupação, por isso precisou “optar”
pela costura. É claro que, atualmente, não é mais esperado que as mulheres saibam
costurar. Sendo assim, as circularizações do saber da costura transmitido de geração em
geração têm declinado de forma substancial e, de certo modo, vêm rompendo um antigo
“destino feminino”, onde as mulheres precisavam saber fazer mesmo que não gostassem
de fazer.
Neste contexto, Dona Lã, Dona Algodão, Dona Chita, Dona Renda, Dona Filó
fazem parte de uma geração de mulheres que não tiveram um vasto leque de opções
laborais. Para crescer nesse universo feminino era indispensável aprender a costurar,
porém, entre elas existem controvérsias em relação ao trabalho da agulha. Algumas,
como Dona Filó, adoram o que fazem e afirmam que nunca conseguiriam viver sem as
costuras. Para outras, como Dona Chita, o trabalho se configura como penoso, ele é
apenas mais um dos meios para sobreviver num cenário que reproduzia nas
oportunidades de emprego para as mulheres os seus “antigos destinos femininos” no
interior dos lares. O que não acontece com Jeans e Linho, nos dias de hoje, pois elas
estão inseridas num contexto de trabalho que se encontra diversificado para as
mulheres. Nestes casos, pode-se dizer que trabalhar com a costura se configurou, de
fato, como uma escolha dentre outras possíveis.
151

Quando as costureiras desta pesquisa receberam ou resgataram o saber fazer da


costura que foi outrora passado para as suas mães ou avós, o saber fazer tal como o
dom, passa a representar um novo fator rentável em suas vidas. Ou seja, o saber
tradicional feminino passa a ser, neste instante, uma oportunidade de trabalho. Sendo
assim, a costura, anteriormente tomada apenas como mais um dos saberes femininos
atribuídos às mulheres, torna-se um saber profissionalizado. E que, como veremos no
próximo subtópico, possui um processo de aprendizado que adestra os olhos, as mãos e
o corpo feminino ao trabalho da costura.
Por conseguinte, sem adentrar nos méritos referentes aos dons concedidos por
divindades, posso afirmar que o saber fazer da costura não é uma habilidade natural. As
observações durante o trabalho de campo e as discussões teóricas que venho realizando
ao longo da dissertação mostram que o saber da costura não nasce com as mulheres
apesar de ser transmitido de uma mulher para outra. Essa transmissão é social e cultural,
o saber não pode ser efetivado sem o fazer, ou como venho afirmando, sem a
experiência prática. A título de exemplo, interlocutoras como Dona Lã e Cetim possuem
coleções de revistas e manuais sobre corte e costura armazenadas em suas gavetas. Não
raras vezes, essas revistas são esquecidas e empoeiradas, devido à predominância
prática e corporal do aprendizado da costura.
No artigo intitulado “Da transmissão de representações à educação da atenção”
(2010), o antropólogo britânico Tim Ingold62 discute como ocorre a transmissão de
geração em geração dos modos pelos quais os seres humanos conhecem e participam da
cultura. Considerando que um livro de costuras, tal como Ingold considerou o livro de
receitas, possui muitas informações sobre como se deve começar e terminar uma peça
de roupa, o mesmo pode ser tomado como uma fonte de conhecimento. No entanto, nem
sequer o livro de culinária e nem o livro de costuras são suficientes para determinar o
comportamento que a cozinheira(o) e a costureira devem ter ao desempenhar suas
funções. Conforme o autor, só conseguiremos prosseguir com uma receita se ela estiver

62
Tim Ingold (2015) vem sendo considerado um antropólogo inovador em suas teorias, pois, o mesmo
afirma que a missão da antropologia é mover a sua atenção para os “fluxos” e “percursos da vida” no
mundo. Nas palavras do próprio autor, a antropologia na qual está interessado em construir poderia ser
entendida como uma “filosofia com gente dentro”. Para tanto, com a finalidade de construí-la, o
empreendimento epistemológico do autor será o de buscar bases nas experiências do vivido. Essa guinada
epistemológica diz respeito a uma crítica aos modelos da teoria representacional nas Ciências Sociais e
aos modelos cognitivos da psicologia, que possuem a acepção de que as estruturas mentais são anteriores
à ação. Pode-se dizer, a partir do diálogo proposto por Steil e Carvalho (2012) entre Thomas Csordas
(2008) e Tim Ingold (2015), que os dois autores contemporâneos se aproximam na medida em que ambos
possuem como base filosófica a fenomenologia como um viés possível de compreender a experiência de
ser e estar no mundo.
152

de acordo com a nossa experiência. No que tange a costura, caso o manual indique para
que se tirem as medidas e, em seguida, as reproduzam nos moldes, as dadas instruções
só poderão ser efetuadas caso dialoguem com a experiência de costurar adquirida num
período anterior. Esta experiência também prevê que a costureira conheça os materiais
necessários para tais tarefas. Logo, o manual de costura não se configura ele mesmo no
conhecimento, mas é um caminho para que se possa obtê-lo baseado nas experiências e
também nas habilidades.
De acordo com Ingold, a informação do livro de receitas, ou no caso desta
pesquisa no manual de costura, “especifica uma rota compreensível, que pode ser
seguida na prática, e apenas uma rota assim especificada pode levar ao conhecimento. É
neste sentido que todo conhecimento está baseado em habilidade.” (INGOLD, 2010, p.
19). Isso explica o motivo pelo qual as instruções dos manuais de costura são pouco
recorridas pelas costureiras, pois não se tratam de conhecimento ou de saber fazer. Estes
são construídos a partir dos caminhos percorridos pelas costureiras mais antigas que
orientam a prática de novas costureiras. Não se trata de uma simples transmissão de
informação, mas, nos termos do autor, de uma “redescoberta orientada”. Ainda de
acordo com o antropólogo, a noção de “mostrar” também se torna importante neste
processo de conhecer e aprender, visto que,
Mostrar alguma coisa a alguém é fazer esta coisa se tornar presente para esta
pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando,
ouvindo ou sentindo. Aqui, o papel do tutor é criar situações nas quais o
iniciante é instruído a cuidar especialmente deste ou daquele aspecto do que
pode ser visto, tocado ou ouvido, para poder assim ‘pegar o jeito’ da coisa.
Aprender, neste sentido, é equivalente a uma ‘educação da atenção’.
(INGOLD, 2010, p.21).

Ao recorrer aos dados coletados durante a pesquisa de campo etnográfica,


percebo que não existem palavras das mulheres costureiras que expliquem diretamente
as suas maneiras de saber fazer e aprender. Penso que seja justamente pelo conceito de
“mostrar”, trazido por Ingold (2010). Não tenho registros de suas palavras acerca disso,
o que se pode encontrar são os gestos e as técnicas mostradas por elas. Portanto, as
costureiras “mostram como fazer”, ao invés de “dizer como fazer”, pois, a forma como
lhes mostraram foi, precisamente, a maneira como aprenderam a fazer. Deste modo,
podemos concluir que a costura é uma atividade que envolve processos de aprendizado,
que são corporificados e se dão por intermédio da experiência prática. A atividade da
costura e os seus produtos finais tem sido, ao longo dos anos, parte da educação e do
cotidiano de muitas mulheres. E como veremos no próximo tópico, a costura também
153

depende de técnicas corporais que marcam gestos e trejeitos a serem seguidos por
determinados repertórios.

4.3 CORPOS, GESTOS, TÉCNICAS E COISAS

Numa certa manhã de trabalho de campo e em mais um dia de trabalho na casa


de Dona Chita com costuras a serem feitas e entregues urgentemente para a clientela, o
bater das máquinas somado ao ruído que delas ecoam ao serem ligadas à eletricidade
ressoam na esquina da Rua Helmuth Knies. Dona Chita é uma senhora de baixa
estatura, possui cabelos pretos e cacheados, embora os mantenha curtos e penteados
para trás com o desejo de esconder as marcas do tempo que agem sobre os seus cabelos.
Mas os sons, voltemos aos sons. Quando me recordo deles, lembro também dos odores
exalados nas casas das demais costureiras e nas suas respectivas salas de costura.
Cheiros de linhas, dos tecidos, de mofo, cheiro de sol que entra pela janela junto com a
poeira que a rua traz, óleo de máquina, “comidas de meio dia”, frutas da época,
especialmente o cheiro advindo da goiabeira de Dona Renda, que insistentemente fazia-
me carregar goiabas em minha mochila sempre que eu retornava para casa. Os cheiros
advindos da casa e os cheiros provenientes das costuras são, assim, misturados da
mesma forma como se misturam os trabalhos realizados pelas mulheres no interior dos
lares.
Como já foi frisado em outros momentos desta dissertação, o trabalho realizado
na casa prevê, no mínimo, o cuidado de crianças, animais, alimentação, limpeza,
gestação, entre outros. É com base nestes fatos que posso afirmar que o trabalho não é
estranho ao corpo feminino. Quero dizer de outro modo que, mesmo antes da entrada da
mulher burguesa no mercado de trabalho, as mulheres já desempenhavam tarefas
laborais dentro dos lares, isto é, trabalho doméstico, passando pelo trabalho da costura,
sem esquecer-me do trabalho de cuidado. O diferencial é que essas tarefas são
dificilmente consideradas como sendo verdadeiramente trabalho. Aliás, mesmo nos dias
de hoje, ainda se encontram opositores ao reconhecimento de certos trabalhos realizados
no âmbito doméstico e que ignoram a vasta dimensão que estes trabalhos comportam.
É desta forma que as mulheres se tornaram e ainda se tornam hábeis em muitos
afazeres indispensáveis para a reprodução do cotidiano e da vida de todas as pessoas.
Tarefas que numa esmagadora maioria de vezes são realizadas somente por elas. Logo,
não é à toa que quando nos recordamos dos cheiros de casa, evoquemos a presença
154

feminina de nossas mães, irmãs, tias e, no caso da pesquisadora, também das


costureiras. O serviço da casa não tem fim, ele é contínuo e aumenta cada vez mais
como se estivesse enfeitiçado. A cada coisa limpa e costurada, surgem mais duas tarefas
para serem realizadas. E assim, a lista de cheiros também continua a crescer. Cheiros de
produtos de limpeza, água sanitária, detergente, o cheiro de alho, cebola e carne
impregnado nos dedos daquelas que interromperam as costuras para fazer o almoço. O
cheiro de suor dos corpos que lidam de forma incessante e intermitente. Corpos que se
fortaleceram e que também se debilitaram no trabalho e no adestramento necessário
para se realizar os afazeres da casa e o saber fazer da costura.
Como discutido anteriormente, embora a costura seja um trabalho visto como
delicado, ela exige muito trabalho pesado quando se configura, sobretudo, num trabalho
constante. Pois, como já descrito, as mulheres com quem venho trabalhando nesta
pesquisa não garantem o mês de sustento costurando uma, duas ou três peças. O que
coloca “a comida na mesa” e paga as contas é a uma quantidade muito maior produzida
por elas semanalmente ou mensalmente. Este trabalho constante é inscrito no corpo. A
facilidade com que as costureiras passam o fio de linha no pequeníssimo furo da agulha,
por exemplo, revela outro lado do trabalho o qual chamarei de adestramento, que é
igualmente inscrito no corpo, mas também nos gestos e nas técnicas.
A etnografia realizada na cidade de Santa Maria/RS revelou que nos contextos
das salas de costura, as mulheres utilizam técnicas, gestos e materiais semelhantes para
desenvolverem seus trabalhos. São muitos os gestos específicos que as costureiras
desenvolvem ao longo da confecção de uma nova peça ou até mesmo no reparo de outra
peça já existente. Elas tiram as medidas, fazem os moldes, desenham e cortam o tecido.
Alinhavam usando agulhas de mão, para depois empurrar os tecidos por entre as
máquinas. Desmancham costuras com o auxílio de um “abridor de casa”, ou ainda,
“desmanchador”. Tesouras, alfinetes, fitas métricas, dedais63, linhas, máquinas e

63
Em meu TCC, ao observar as diferentes técnicas utilizadas por homens alfaiates e mulheres costureiras,
pude perceber que no ofício da alfaiataria uma das técnicas mais difíceis de executar é exercer de forma
correta o uso do dedal. Os dedais permitem que a costura seja realizada num período de tempo menor sem
comprometer a qualidade do trabalho e também auxiliam na costura de tecidos mais resistentes, sem
expor o dedo a indesejáveis picadas de agulhas. Desde que este esteja curvado corretamente em todos os
momentos. A fim de acostumar o dedo a técnica, os alfaiates costumavam dormir com o dedo médio
amarrado à mão para condicionar e empunhar corretamente a agulha ao dedal, aos iniciantes ainda
recomendava-se o uso de um pedaço de pano amarrado através do dedal durante as costuras. Mais tarde,
ao observar o grupo de costureiras, visto que algumas também faziam uso do dedal, pude perceber que
elas o utilizavam de maneira diferente. Ao invés de costurarem empurrando a partir do lado, de modo que
as extremidades do dedal estivessem sempre abertas, como fazem os alfaiates, as costureiras trazem
sempre a ponta da agulha em direção ao corpo. É o topo do dedal que deve ser usado e não as laterais, por
155

também o ferro de passar roupas. Todos esses objetos, juntos, compõem a prática de
costurar e resultam numa série de técnicas e gestos.
De acordo com o estudo clássico de Leroi-Gourhan (1965) desenvolvido nas
áreas da arqueologia, etnologia e paleontologia, existem gestos que caracterizam as
técnicas e que se repetem em diferentes culturas. Segundo o autor, “o martelar exige
percussões lançadas, enquanto a serração ou raspagem exigem percussões oblíquas
deitadas que, até os nossos dias e em todas as culturas, constituíram uma parte essencial
das técnicas.” (LEROI-GOURHAN, 1965, p.118). Deste modo, no caso das técnicas da
costura, as formas de costurar operam a partir de princípios semelhantes. São gestos
técnicos que imprimem movimentos repetitivos sobre a matéria, que agilmente as
costureiras manuseiam, possibilitando a criação de ritmos.
Entretanto, as técnicas não estão impressas apenas nos gestos e nos materiais
manuseados pelas costureiras, elas estão impressas também em seus corpos. Pois, a
costura é uma atividade corporificada e que envolve a experiência, posto que “o corpo
mediatiza a aquisição de um saber, esse saber inscreve-se no corpo.” (CLASTRES,
1979, p.168). Assim, podemos visualizar a relação do corpo com a costura nos esforços
despendidos para a realização das tarefas e no cansaço resultante de desempenhá-las.
Essa relação também pode ser visualizada, especialmente, no aprendizado das técnicas.
É um aprendizado que leva tempo para ser assimilado e necessita de uma adequação do
corpo. Assim, as técnicas são construções sociais em torno do corpo.
De acordo com Mauss (1974, p.407), “o corpo é o primeiro e o mais natural
instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o
mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é o seu
corpo.” Para o autor, as técnicas corporais são transmitidas por imitação e adestramento
através de uma série de ritos habituais e antigos pertencentes a cada sociedade. A
atividade da costura compreende, assim, o disciplinamento do corpo que é necessário ao
processo do saber fazer. De acordo com os estudos de Thaís Brito (2010) sobre a
produção de bordados em Caiacó/RN, ao recorrermos à língua inglesa, podemos
perceber que o saber fazer está relacionado conjuntamente à palavra “craft”.
Craft é também a palavra usada para designar o artesão, aquele que sabe
fazer, tem destreza e hábito. Esse hábito cria as formas de vida, as maneiras
de agir e a feição do que se produz. Modela o corpo, estabelece a técnicas e

este motivo o dedal usado por mulheres é fechado nas pontas e o dos alfaiates é aberto. (KÄERCHER,
2016).
156

cria o indivíduo, uma vez que, pelos detalhes compõe a educação e as


tradições que se impõe nos movimentos. (BRITO, 2010, p.216).

Mas nem todo corpo adestrado para saber fazer, efetivamente, quer fazer. E a
resposta para esta afirmação está na confusão social que julga como naturais certas
habilidades baseadas em delicadezas e finos tratos supostamente pertencentes ao
universo feminino. Contrariando o adestramento para a costura feminina encontram-se
várias mulheres. Dentre elas posso me incluir, visto que
sempre neguei tais aprendizados que outrora entendia como
uma “conformação” das mulheres ao universo doméstico.
Neste mesmo grupo de mulheres rebeldes, encontra-se minha
mãe, Dona Veludo64. O corpo de minha mãe foi considerado
como um corpo inadequado para os trabalhos manuais, segundo a leitura de minha avó
materna. Ao ajudar a sua família, Dona Veludo precisou trabalhar em plantações no
meio rural e, por isso suas mãos que já eram grandes se tornaram mãos fortes de quem
“pegou” diariamente na lida pesada. Seu corpo, então, adaptou-se ao trabalho braçal
necessário às lidas do campo e, consecutivamente, segundo minha avó, não desenvolveu
a “delicadeza” da costura. As pequenas agulhas e espessas linhas tornam-se difíceis de
segurar em suas mãos, já os minúsculos dedais femininos nem sequer cabem em seus
dedos. Ela contara-me, a título de exemplo, que no momento em que precisou
confeccionar o seu enxoval de casamento, trocou com sua mãe as tarefas de costura e
bordado pelo trabalho da colheita na lavoura.
Diante dos fatos narrados, podemos pressupor o que os discursos hegemônicos
diriam sobre estes corpos. Diriam que, certamente, o corpo de minha avó era delicado
em oposição à forte. E também que o corpo de minha mãe é forte ao contrário de
delicado. A verdade é que conhecendo a complexidade de suas vidas, torna-se
equivocado atribuir o perfil de delicadeza para a pessoa que gestou e criou onze filhos e
filhas como a minha avó fez. Além, é claro, de todos os outros trabalhos pesados que ela
desenvolveu ao longo de sua vida. E que nem por isso foram menos delicados os
trabalhos manuais que minha mãe desempenhou e desempenha hoje em dia, dentre eles,
a costura doméstica de almofadas e travesseiros para a sua família. Intento com estes
exemplos reforçar alguns dos argumentos os quais venho trazendo ao longo desta
64
Veludo é o tecido que escolhi para ser o codinome de minha mãe. Pois, a maneira de tratar as pessoas
que a rodeiam remete maciez, como é o tecido de veludo. Mas que também pode revelar o seu outro lado
mais cerrado, severo e resistente quando necessário. Também escolhi este tecido porque entendo que ela
gostaria desta escolha macia e sofisticada.
157

dissertação. Mas, principalmente, que a costura é um saber fazer passado de mulheres


para mulheres da mesma família ou vizinhança e, sobretudo, que é um saber inscrito no
corpo que foi adestrado por meio da repetição das técnicas e dos gestos.
É interessante ressaltar que apesar de serem técnicas e gestos repetitivos,
passados de forma geracional, isso não torna o saber fazer da costura menos criativo e
individual. O próprio Marcel Mauss afirmou que seria preciso “ver técnicas e a obra da
razão prática coletiva individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e suas
faculdades de repetição” (MAUSS, 1974, p.214). No momento em que o autor define
“técnica” como um “ato tradicional eficaz” não quer dizer respeito a um número de
práticas tradicionais que permaneceram as mesmas apesar do passar do tempo. Mas sim,
relativo à noção de que tais saberes sobre maneiras de fazer são inseparáveis do corpo e
que, sobretudo, agem sobre ele, são maneiras de fazer transmitidas dentro de um
contexto cultural.
De modo que cada costureira imprime a sua singularidade, exercitando
criatividades e agregando novas técnicas e expressões ao saber fazer. É o que acontece
com Linho, que na falta de espaços para guardar os seus próprios sapatos, desenvolveu a
costura de sapateiras de tecido para serem penduradas na parede. Atualmente, a venda
destas sapateiras lidera as suas encomendas pelo site de compra “Elo 7”. Por isso, Linho
cogita a hipótese de trabalhar apenas com a confecção destas sapateiras e, inclusive, já
parou de receber roupas para ajuste. Entretanto, continua bordando colares e bolsas,
além de confeccionar algumas peças diferentes como, por exemplo, roupas íntimas
“plus size”. Também Cetim que, a pedido de uma nova cliente, começou a produzir
lenços para o cabelo feitos de tecido, como os que Simone de Beauvoir aparece usando
em suas históricas fotos. Sem esquecer-me de Dona Algodão e Jeans que juntas, elas
reutilizam velhas roupas de brechós, customizando e (re)fazendo o que for possível para
dar uma nova vida útil para aquelas roupas que foram descartadas. Desde criança, Jeans
dava uma nova vida útil para os retalhos das costuras de sua avó Algodão, fazendo
“rabicós” (elásticos para cabelo) para vender.
Desta forma, apesar de ser consenso que um artesanato é aquele tipo de trabalho
que não envolve a produção em série, o fazer das costureiras não deve ser limitado nas
máquinas do trabalho industrial. Pois, mesmo que elas produzam uniformes e outras
vestimentas em série, exercem da mesma maneira as suas habilidades de criação. Estão
sempre testando e treinando novas maneiras de fazer. Construindo novas peças,
expressando e comunicando suas subjetividades e também mesclando as suas
158

subjetividades com as das(os) clientes na confecção de algo totalmente novo. Todo o


caminho percorrido para uma nova confecção busca, inevitavelmente, um processo de
reconhecimento e valorização por parte de suas e seus clientes com as confecções
trabalhadas. E, igualmente, o reconhecimento das pessoas que verão as(os) clientes bem
vestidos socialmente. Pois, a “boa aparência” causada pelo uso de uma peça
confeccionada pelas costureiras, pode levar até elas novas(os) clientes e a garantia de
um retorno que não é apenas financeiro, mas prestigioso.
O processo de valorização na criação das confecções sejam elas, sapateiras,
lenços, elásticos para cabelo, vestidos de festa e outras roupas possuem significados
para a costureira que dedicou naquela peça seus conhecimentos, seu esforço, seu corpo
e sua subjetividade. Já diria a tia de Luzia e Emília no romance de Peebles, “a costura
era uma linguagem, dizia a tia. A linguagem das formas” (PEEBLES, 2017, p.14). Uma
roupa feita sob medida com uma costureira garante variadas personalizações, fator que
atrai muitas(os) clientes jovens que buscam se diferenciar num mundo tão cheio de
informações. Além do mais, as costureiras possuem um saber de alteridade quando
compreendem “o outro” e interpretam seus gostos pessoais, ao observar as
características mais sutis das(os) clientes para, posteriormente, incorporar nas
vestimentas.
As confecções realizadas pelas costureiras também atendem a certas
preocupações que o mercado e a indústria têxtil não estão interessados ou não
conseguem atender. Pois, com as mudanças trazidas pela modernização dos modos de
produzir, o modo de vestir também é influenciado e, mesmo que existam produções de
modelos e tamanhos variados, as roupas padronizadas não vestem corpos considerados
fora do padrão. Aliás, entendendo que a sociedade é composta por pessoas plurais e
heterogêneas, são muitas as roupas produzidas pela indústria que necessitam passar pelo
ajuste das costureiras para contemplar estes diversos corpos. Desta forma, o olhar da
costureira funciona como um espelho que reproduz na roupa, as formas e as dimensões
de suas e seus clientes tais quais elas são. A roupa se ajusta às marcas e assimetrias dos
corpos que podem ser mais altos ou baixos do que o considerado padrão, que podem ter
braços ou pernas mais longas ou curtas do que o esperado e assim por diante. Em suma,
ao contratar o trabalho de uma costureira, as pessoas não ficam reféns da indústria. E é
assim que o trabalho da costureira se aproxima do trabalho artesanal, que é também o
seu “ganha pão” e o diferencial frente ao pronto para vestir, que garante a sobrevivência
de muitas costureiras a domicílio.
159

Cabe ressaltar que, conforme foi explicitado na parte metodológica desta


dissertação, a fotografia e os seus enquadramentos permitiram que as técnicas e os
gestos do saber fazer da costura pudessem ser melhor incorporados neste texto. Pois,
costurar não é um fazer puramente objetivo e por mais que eu tente explicar de forma
fidedigna os movimentos que as mãos, os pés e o corpo das costureiras como um todo
desempenham, eu não conseguirei fazê-lo da mesma forma que as imagens o fazem. Ou
seja, os saberes e fazeres que as mulheres desempenham na costura do dia a dia são
difíceis de traduzir para a linguagem verbal e escrita, mas se tornam melhor descritos
quando representados visualmente. Um exemplo disso é a forma como caminham por
suas salas de costuras, sentam em suas cadeiras, aliás, cadeiras muitas vezes nada
adequadas ao trabalho que desenvolvem. A forma como se comunicam com as
máquinas, como costuram, cortam, alinhavam e como empunham o pedal 65 da máquina
de costura são técnicas que tento “retratar” no sentido mais visual que essa palavra
possa conter.
Os variados ritmos do caminhar e também do sentar-se das interlocutoras
demonstram certo esforço físico causado pelo cansaço do corpo fruto das jornadas de
trabalho, em alguns casos, acumuladas e incessantes. E, em outros casos, jornadas já

Figura 34: Caminhos percorridos pela cadeira e postura de Dona Chita


65
O pedal é uma parte da máquina de costura que possui como função controlar a agulha e realizar a
costura. Ele é acoplado à parte de baixo da mesinha da máquina e funciona com a utilização do pé que
precisa se movimentar quase como quem dirige um automóvel.
160

encerradas devido à idade avançada, mas que ainda assim, revelam em seus corpos, os
desgastes causados pelo trabalho. Dona Chita, a título de exemplo, aguarda a
possibilidade de colocar uma nova prótese no fêmur por conta de um desgaste na perna
causado pelo movimento repetitivo na máquina de costura. Em seu braço, resulta uma
lesão causada por uma queda que teve num momento de muita dor na perna.

Figura 35: Gestos e técnicas desempenhados por Dona Chita

Linho, uma das costureiras mais novas, também já apresenta fortes dores nas
costas, devido a sua postura frente à máquina de costura. Dona Filó que possui 63 anos
de idade apresenta vários problemas de coluna, como hérnia de disco e osteofitose,
popularmente conhecida como “bico de papagaio”, uma doença que não tem cura e
causa muita dor. Segundo Settimi e Silvestre (1995), certas doenças como Lesões por
Esforços Repetitivos (LER) e as chamadas Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao
Trabalho (DORT) não são problemas individuais e sim da sociedade, pois dizem
161

respeito a doenças originadas das sobrecargas de trabalho que exigem do corpo


movimentos articulares intensos. Atingindo, entre outras categorias profissionais, as
costureiras. Dona Filó relata que sente muita dor ao limpar a casa e fazer comida, mas
que a dor passa na mesma hora em que adentra sua “peça” das costuras, “aqui, na
minha peça, de tanto que eu gosto da minha costura, eu não tenho dor.” Nas palavras
dela,
Para 50 anos de costura era para eu estar bem mais arcada, até porque se
eu fizer isso aqui ó (Dona Filó se curva frente a máquina de costura), me
dói. Porque eu acostumei a trabalhar sempre reta, eu não fico assim ó
(curva-se novamente), eu acho que isso aí me ajudou a não ter problema na
coluna, ter, mas não atacar, entendeu? Eu gosto de costurar em cadeira alta,
então acho que isso não me atrapalha. Ter eu tenho, desgaste na coluna e um
monte de coisa, mas nada que diga assim ‘ai que dor’, não, isso não tenho.
Geralmente tu vê as costureiras tudo arcadinha né, mas eu não arquei. Tudo
depende da costura, da maneira né.

Embora Dona Filó demonstre frequentemente o seu amor ao trabalho da costura,


o cansaço do corpo não lhe escapa. Em suas narrativas sobre o trabalho, são frequentes
as queixas sobre o cansaço e as jornadas intermináveis, onde a demanda precisa ser
cumprida para que a casa possa ser sustentada. Na realidade, a maioria das costureiras
desta pesquisa relata situações semelhantes a essas. Em que as demandas precisam ser
cumpridas e o corpo meramente humano em conjunto com as máquinas que também
não são invencíveis, não conseguem dar conta de todo o trabalho que precisa ser feito.
Algumas costumam trabalhar de segunda a domingo, quando necessário. Passam as
madrugadas em frente às máquinas de costura. Não possuem horários fixados para
almoçar, tomar banho e dormir. Dona Filó se refere a esta situação nos seguintes
termos,
Eu sempre tive a segunda feira pro meu dia de folga. Sexta feira tu quase
morre, sábado também. Tem dias que eu te digo de fonte segura, teve fim de
semana que eu tive medo de morrer. De tanto trabalho acumulado. E daí é o
que eu te disse, as máquinas cansam, e não dão vencimento. E dá uma
bobeira, troca de máquina. Fim de ano, de eu virar natal e ano novo
fedorenta, sentada na máquina costurando. Se eu te disser que isso, de eu
passar sem tomar banho, costurando direto, acho que faz uns cinco anos que
acabou, quando passou a esticar o dinheiro. Às vezes eu tomo banho de
manhã, e passo o dia inteiro na máquina e não tenho mais tempo para fazer
nada. Sete e meia da manhã eu to aqui, e quando é duas e meia da
madrugada eu to saindo.

Em outra situação, usando o seu perfil pessoal do Facebook, Dona Filó


desabafou na rede social, “Terminando as minhas costuras, já estou me sentindo
cansada”, disse ela. Quase véspera de natal e tarde da noite, ela continuava fazendo
aquilo que é o seu compromisso e sustento. Ao focar na discussão das jornadas de
162

trabalho, destaco que nem sempre elas se configuram da mesma forma. A costureira
Linho, por exemplo, enquanto contava-me sobre as demandas das costuras, mencionou
que costuma deixar as costuras acumularem e depois precisa fazer tudo num único dia
exaustivo de trabalho. Por outro lado, Cetim estabelece bem os seus horários de
trabalho, seu estabelecimento comercial funciona de segunda a sábado e ela não leva
suas costuras para casa. Pois, como ela decidiu alugar uma peça próxima ao centro da
cidade, conseguiu separar em partes a costura das outras atividades que desempenha.

Figura 36: Cetim e seus gestos impressos na confecção de um casaco masculino

Mas nem sempre o trabalho de casa se ausenta do seu trabalho na costura, como
apresentado no capítulo dois. As jornadas de trabalho são discutidas também no grupo
do Facebook “Clube da Costureira”. Publicações sobre as jornadas de trabalho e tempo
de produção costumam desencadear muitos comentários de costureiras presentes em
todo o Brasil, que desejam compartilhar suas experiências pessoais sobre o trabalho da
agulha. A partir destas observações e buscando traçar recorrências, passo a identificar
várias situações e narrativas acerca do trabalho que se repete tanto no grupo quanto no
cotidiano de minhas interlocutoras, dentre elas, os problemas de saúde relativos aos
gestos repetitivos, como os problemas de visão, tendinites nos ombros e nas mãos,
artrite, artrose e espondilose na coluna. As jornadas de trabalho também costumam
variar de costureira para costureira, algumas tendem a delimitar horários, outras são
consumidas por suas demandas. Uma costureira do grupo recentemente comentou em
uma publicação que a sua jornada de trabalho começava as 4h30 da madrugada, por
isso, ela chegava a produzir cerca de oitenta calças jeans por dia. Outra costureira
comentou na mesma publicação que dificilmente consegue terminar uma peça no dia,
pois necessita que a cliente prove antes. E, assim, somam-se costureiras dos dois lados
do time, mas isso depende do tipo de costura que cada uma desenvolve. Os fatores que
efetivamente as unem num grupo são os gestos, as técnicas e, por fim, o trabalho
informal no qual estão inseridas.
163

Outro fator interessante de se observar está contido na fala referida


anteriormente da costureira Dona Filó, na qual menciona a seguinte questão acerca de
sua máquina de costura, “E daí é o que eu te disse, as máquinas cansam, e não dão
vencimento. E dá uma bobeira, troca de máquina”. As máquinas utilizadas para o
trabalho da costureira Filó são máquinas de costura doméstica, ou seja, são de menor
porte se comparadas com as industriais e tendem a superaquecer ou apresentar outros
problemas quando utilizadas com muita frequência. Mas, como também já foi colocado
no segundo capítulo desta dissertação, a evolução das máquinas de costura industriais
não alteram significativamente o tempo de produção (SCHERER E CAMPOS, 1995),
apesar de apresentarem vantagens que as máquinas domésticas não comportam. Logo, a
diferença de produção comparando ambas as costureiras, isto é, a costureira que faz uso
de máquina doméstica e aquela que faz uso da máquina industrial, não seria tão
discrepante assim, não fosse o fato das máquinas domésticas “cansarem”. Uma segunda
desvantagem das máquinas de costura, em geral, é que elas não conhecem os corpos
das(os) clientes.
A máquina de costura é tal qual a agulha que o escritor brasileiro Machado de
Assis descreveu em “Um apólogo” (1946). A agulha, neste diálogo moral do apólogo,
apesar de participar
ativamente da confecção
das roupas, não veste e não
acompanha a baronesa à sua
ida ao baile.66 Assim é a
máquina de costura, uma
facilitadora do trabalho da
costureira, mas que não se
sobressai quando

Figura 37: “Entre Linhas” comparada ao “olho”

66
Neste apólogo, linha e agulha embarcam num debate a fim de concluir qual das duas possuía o maior
prestígio no mundo da costura. Discutiam elas, quando chegou a costureira na casa da baronesa, “[...]
pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra
iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira,
ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética.” (MACHADO DE ASSIS, 1946, p.47).
No final do apólogo, o escritor parece ter feito uma alusão às classes sociais e às discrepâncias em que
estavam inseridas as pessoas entre uma e outra classe, utilizando de um lado os objetos presentes nos
“bastidores” e no trabalho, como as agulhas e alfinetes. E por outro lado, os objetos mais sofisticados
presentes ao universo dos “salões de festas”, como a linha.
164

técnico de quem costura há mais tempo. As máquinas de costura, assim como outras
máquinas utilizadas em diferentes serviços, a exemplo das máquinas de fazer a barba
(SOARES, 2012), não conhecem as assimetrias corporais, as falhas e os desníveis, os
quais as profissionais estão mais acostumadas a lidar.
Além disso, a costura na máquina ainda exige que a costureira desempenhe
algumas tarefas manuais antes e depois de trabalhadas. Dentre tantas, destaco aqui o
movimento de transpassar as linhas nas máquinas de costura. Esse movimento acaba por
revelar alguns caminhos interessantes a serem percorridos. Na passagem da linha
superior, o movimento acontece quase da mesma forma em praticamente todas as
máquinas de costura, já a passagem da linha inferior ocorre de maneira diferente. Como
num circuito, as linhas precisam sair dos carretéis e passar por determinados pontos
exatos da máquina, primeiro para encher a bobina que ficará em baixo, auxiliando como
linha inferior. E depois com a linha superior que sairá direto do carretel, passando pelo
circuito e culminando na agulha.
Alguns detalhes podem ser
percebidos durante essa
passagem, por exemplo, o pé da
costureira junto com o joelho
está sempre acionando o pedal da
máquina para garantir que a linha
passe entre discos tensores. É
também preciso pressionar
constantemente o pedal para
encher a bobina de linha. Esta
tarefa é umas das principais a
serem realizadas antes de
começar a costura e, se forem
feitas incorretamente,
comprometem a confecção das
novas peças.
Pensando na proposta de
Ingold (2012) para “trazer as
coisas de volta à vida”, considero
Figura 38: “Teias de aranha”
165

a máquina como uma coisa ao invés de um objeto. De acordo ainda com o autor, a
“coisa” é um acontecer onde vários outros aconteceres vão se entrelaçando e formando
nós, “as coisas vazam, sempre transbordando das superfícies que se formam
temporariamente (INGOLD, 2012, p.29). Enquanto os objetos, conceitualmente, nos
são colocados como fatos fechados e consumados. Em suas teorias, Ingold defende a
ideia de que todos nós vivemos no que chamou de Ambiente Sem Objetos (ASO).
Assim, inspirada por este pensamento do autor, vejo a máquina de costura como uma
coisa, tal como é a cadeira, o assoalho de madeira, as linhas ou fios e por aí adiante.
Porque essas “coisas” não são entidades fechadas para o mundo, elas estão em constante
formação no mundo e também por causa dele. Elas constituem um conjunto de nós,
cujos fios desenham caminhos em suas trajetórias, devido ao constante fluxo das
“coisas” e da vida, “assim, como a planta cresce a partir de sua semente, a linha cresce a
partir de um ponto que foi posto em movimento.” (INGOLD, 2012, p. 26). Tenho
consciência que Ingold não se referia a linha de costura e sim aos fios da vida quando
afirmou tal compreensão. Contudo, ao pensarmos nas linhas das costureiras a partir
deste ponto de vista, talvez possamos entender como elas formam caminhos e se
constituem em outras coisas novas no decorrer de suas trajetórias.
Com ares de conclusão, afirmo que os caminhos por onde as linhas percorrem
passam a formar continuamente as “coisas”. A linha que sai do carretel que é o seu
ponto inicial perpassa pela máquina de costura. Juntas, linha e máquina imprimem
caminhos no tecido e no corpo da mulher que costura. A cadeira, por sua vez, sofre
reações do contato do corpo que juntos desenham novos caminhos no assoalho de
madeira de Dona Chita descrito no início deste capítulo. O assoalho, as paredes, os
móveis, as máquinas e todo o restante da sala da costura também estão conectados com
o universo de acontecimentos ao lado de fora da sala e da casa. A janela se conecta com
a máquina de costura em frente dela posicionada, a poeira densa advinda da rua e
levantada pelo peso do ônibus que por ali trafega soma-se a luz. Juntas, luz e poeira
entram pela janela e moldam desenhos empoeirados na sala de costura que é
constantemente formada pelos nós que vão conectando e desenhando sala, casa, rua,
cidade, mulher e mundo. Portanto, nesta análise, especialmente a sala de costura,
constitui-se enquanto um emaranhado de coisas num sentido literal, “não uma rede de
conexões, mas uma malha de linhas entrelaçadas de crescimento e movimento.”
(INGOLD, 2012, p.27).
166

Emaranhados que lembram teias de aranhas, com fios que são dispostos a partir
dos movimentos que a própria aranha desempenha. Pois, os fios que desenham a teia
são como “extensões do próprio ser da aranha” na mesma medida em que ela vai
tecendo o seu ambiente e conduzindo a sua percepção do mundo, mesmo que este
mundo seja uma sala de costura. “A aranha vive do que tece, vê se não esquece” 67.

67
Parte da música “Oriente” do cantor e compositor brasileiro, Gilberto Gil. A música compõe o álbum
“Expresso 2222” lançado em 1972.
167

Considerações finais: “Arremates”

Enquanto pensava em como sintetizar as conclusões desta dissertação, recebi a


triste notícia de que uma de minhas interlocutoras, Dona Lã, cessara as suas costuras e a
sua caminhada de vida. Com ela partiram os saberes e os fazeres da costura que
aprendera com uma “grand-mère”, sua mãe. Mais tarde, ela mesma viria a se tornar
uma anciã portadora de muitos saberes da nova geração de sua família. No entanto, não
tenho registros de mulheres ou até mesmo homens que tenham se interessado em
aprender o saber fazer da costura com Dona Lã. Talvez em sua antiga casa ainda
permaneça acomodada na cozinha a velha máquina de costura. Talvez sua neta a
mantenha guardada junto com os objetos de costura até que alguma pessoa manifeste
interesse em resgatar tais saberes de unir tecidos para produzir vestimentas “à moda
antiga”. Enquanto isso, a circularidade da máquina de costura e do saber fazer terá
rompido o seu ciclo no meio familiar de Dona Lã.
Igualmente, chegara até a mim a notícia de que um incidente teria feito com que
Dona Chita fraturasse a mão direita e, devido à gravidade da lesão, precisasse realizar
uma cirurgia. Diante do acontecimento, as recomendações médicas incluem que ela não
retome mais o trabalho com as costuras. Sendo este o único meio de sustento que
desenvolveu durante a vida e apresentando um corpo fragilizado em decorrência dos
anos de trabalho e da idade mais avançada que possui, a costureira se preocupa agora
em como conseguirá pagar as contas e como ajudará o filho que ainda depende de seus
cuidados. Nem a filha e nem o filho aprenderam o saber fazer da costura, embora ele
tivesse o interesse de aprender o trabalho com a mãe. Contudo, ela teve receio de
ensinar para um menino aquilo que deveria ser, unicamente, uma atividade feminina. Já
sua filha, sempre passou longe das costuras e nunca sequer cogitou a possibilidade de
investir na mesma profissão da mãe.
O falecimento de Dona Lã e o adoecimento de Dona Chita dizem respeito,
como diria Ingold (2012), à fluidez da vida num mundo em que estamos constantemente
sendo afetados pelo “parlamento de fios”, pelas transformações das coisas e pelas
matérias em fluxos. Em ambos os casos, o saber fazer da costura parece não ter sido um
sobrevivente, pois, as situações indeterminadas do cotidiano afetam as mulheres
168

portadoras dos muitos saberes e fazeres empíricos, saberes estes que por séculos foram
passados de forma hereditária. Situações e transformações que culminam ou
culminaram num processo gradual de esmaecimento do saber fazer da costura que foi se
mostrando um saber fazer “facultativo” ao cotidiano das mulheres num mundo de
intensa industrialização.
Embora seja consenso que o cenário da costura domiciliar é um cenário em
desmonte, ou seja, que parece fora de lugar no contexto atual, o meu intento nesta
dissertação foi o de compreender outros cenários. Procurei voltar o olhar para as
mulheres que optaram pela costura dentre um cenário de possibilidades, como nos casos
de Jeans, Linho e, em certa medida, Cetim. Busquei também voltar o olhar para as
mulheres que inseridas num determinado tempo histórico fizeram da costura uma
atividade geradora de renda. A costura, neste segundo caso, tornou-se referência cultural
de uma época em que os afazeres constitutivos da vida das mulheres eram, em geral,
domésticos. Portanto, a partir de um “leque de possibilidades” para ocupações
femininas não restavam muitas opções. Assim, as mulheres que costuram ainda hoje se
apropriam da costura – outrora lhes destinada como uma forma de confinamento ao
mundo doméstico – e a transformam num saber fazer profissionalizado que acaba
provendo o sustendo da casa e da família, como acorre com todas as interlocutoras deste
estudo.
Desta forma, um ponto de convergência entre elas é que ocupam espaços de
provedoras da família mesmo que de forma “não oficial” num primeiro momento de
suas vidas. Mas, que em casos de adoecimento, falecimento ou separação dos maridos
assumem, de uma só vez, toda a responsabilidade do cuidado de gerir a casa e as filhas e
filhos. Elas se desdobram com engenhosidade para encontrar meios de sobreviver em
tempos de trabalho escasso, nos dias difíceis que podem, inclusive, equivaler a meses
sem serviço. Elas conhecem a vizinhança e sabem das permutas que podem ser feitas a
partir de seus trabalhos. Uma camisa costurada pode lhes render o guisado do almoço
num trato com o açougueiro e o vestido ontem costurado pode garantir o pão ou a
farinha de trigo para amanhã. Essas são algumas das engenhosidades ou “táticas de
resistência”, para usar os termos de Certeau (1994), empregadas pelas mulheres com o
intuito de garantir o seu “pão de cada dia”.
Um dos aspectos importantes da discussão realizada ao longo do texto diz
respeito a como o trabalho domiciliar e informal da costura nos dias atuais tende a se
confundir com o próprio trabalho doméstico. Por isso, a relação das mulheres com o
169

espaço e o tempo é uma relação fragmentada e fluída. Numa comparação com as


mulheres de Minot descritas por Verdier (1979), afirmei que as interlocutoras desta
pesquisa, “fazem” a costura da vida. No sentido de que as atividades que as costureiras
desempenham no lar, tais como “fazer os bebês”, “fazer as meninas”, “fazer o
casamento” e “fazer os mortos” são fazeres que também estabelecem o ritmo do tempo
e da vida em comunidade. Neste sentido, que o tempo “escorre” da vida das mulheres e
marca o lar onde as gerações de mulheres circulam e se mantém como provedoras.
Desta forma, mesmo não sendo presenças visíveis, elas costuram a temporalidade e se
fazem presentes em todos os momentos da vida de mulheres e homens, marcando
espaços e constituindo os seus próprios lugares, costumes e hábitos.
Inspirada também pelas reflexões da antropóloga Strathern (2014) apontei para
dois momentos distintos de trabalho de campo. Fazendo a ordem inversa, o segundo
momento foi quando exerci a descrição etnográfica e o entrelaçamento de autores que
resultaram na discussão e no argumento dessa dissertação ao longo de seus quatros
capítulos. De acordo com Strathern (2014), não estamos acostumadas(os) a pensar a
escrita etnográfica como uma parte do trabalho de campo.
O primeiro momento foi o de convívio com as mulheres costureiras e se
constituiu como um período habitual de trabalho de campo. Neste período, somaram-se
diferentes técnicas e lugares de pesquisa. Alusivo às técnicas de pesquisa, aponto para o
uso da observação participante, entrevistas abertas e semi-estruturadas, bem como o uso
de trechos literários e registros audiovisuais.
Referente aos lugares de pesquisa, atentei para o ciberespaço que me permitiu ter
acesso ao grupo “Clube da Costureira” na plataforma da rede social Facebook. Em
seguida, o espaço da rua foi importante para localizar e, posteriormente, frequentar um
terceiro espaço, os armarinhos de costura. Estes me possibilitaram o (re)descobrimento
da cidade de Santa Maria, mesmo que não tenham confirmado algumas de minhas
hipóteses sobre as sociabilidades e percursos trilhados pelas minhas interlocutoras.
Os armarinhos se mostraram relevantes para que eu seguisse em direção a outras
permanências de saberes e fazeres das pessoas que habitam a vida citadina em Santa
Maria e, principalmente, nos bairros onde residem Dona Chita, Dona Renda e Dona
Filó. Por isso, os meus itinerários nas caminhadas etnográficas foram guiados por
minhas interlocutoras e suas referências da cidade. Quando almejei descrever o bairro
em que moravam, intentei igualmente localizar o lugar na cidade onde estavam situadas
algumas costureiras que participaram desta pesquisa. E a partir das narrativas delas, fui
170

percebendo referências diretas a certos lugares como, por exemplo, o antigo armazém
da estação férrea localizado no bairro Divina Providência, onde reside Dona Chita.
Neste bairro, também encontrei personagens que se encaixavam perfeitamente na
categoria de “habitués”.
No instante em que intentei desvendar a cidade de Santa Maria, percebi alguns
outros elementos que perduram e resistem. A cada nova caminhada pelo centro da
cidade, passei a observar algum outro estabelecimento, como pequenas salas de costura
que não havia notado antes. Por isso, torno a ressaltar que nem todas as coisas são
mudanças, e muitas outras coisas ainda permanecem. O apito do trem, a brincadeira de
empinar a pipa na rua e o costurar são práticas e saberes que tem relação com o durar.
Eles estão inseridos num tempo e num espaço. Num tempo que é agora, mas que
também já foi o de antigamente e num espaço que é a cidade. Uma cidade vivida pelas
costureiras em seus bairros, que através de suas janelas observam e conversam com os
transeuntes da rua. Tudo ao mesmo tempo, enquanto costuram. Atualizam-se das
novidades nas conversas com a vizinha que vem toda manhã ajudar nas costuras da loja.
Ou enquanto assistem ao telejornal ou escutam em seus rádios as notícias de sua cidade.
Retornando aos lugares de pesquisa, por último e talvez mais importante, observei o
espaço das casas e/ou das salas de costura das mulheres.
Situando, portanto, a costura como um objeto temporal que perdura pela
sobreposição do tempo no mundo das práticas e das memórias, almejei demonstrar
como a costura é um elemento de duração. A costura está sempre em transformação e
persiste ao longo do tempo mesmo com as mudanças no modo de vestir e produzir
roupas. Compreendi que a costura por vezes está dentro dos lares, por vezes está fora.
Ela pode aparecer como um trabalho rentável ou como uma “prenda” doméstica,
realizada em meio a outros afazeres como lavar, cozinhar, cuidar de pessoas, animais e
objetos. Em determinada situação a máquina de costura ocupa o centro das casas,
indicando como auxiliam no sustento das famílias. Ocasionalmente, não é a máquina de
costura, mas, a mulher que se desloca para outro espaço, vendendo o seu saber fazer
dentro de um escala produtiva mais ampla.
À guisa de conclusão, saliento que a presente dissertação teve como objetivo
compreender de que modo a prática da costura perdurou e ainda perdura no cotidiano
das mulheres. Para tanto, o método etnográfico da duração (ECKERT; ROCHA, 2010)
e também a etnografia de rua (ECKERT; ROCHA, 2003) foram de grande importância
171

para perceber a dinâmica temporal em que a costura enquanto saber fazer ainda se situa
no cotidiano feminino.
Ao longo da pesquisa, observei que a costura permanece sendo um trabalho
majoritariamente desenvolvido por mulheres. Tendo em vista que ainda continua sendo
um trabalho que pode ser realizado no ambiente doméstico, compatível com as tarefas
de cuidado (de crianças, pessoas idosas, doentes e dos animais). A costura, portanto,
preserva-se como um saber fazer transmitido entre mulheres e, na maioria das vezes,
entre diferentes gerações de uma mesma família. A costura tanto reverbera que se
tornou, atualmente, uma escolha de aprendizado para jovens mulheres que buscam a
valorização dos antigos saberes femininos como uma forma de empoderamento. Da
mesma maneira, configura-se como um propósito de sustentabilidade nos modos de
produzir vestimentas em contraposição com a produção em largas escalas da indústria
do pronto para vestir.
Além disso, constatei nesta pesquisa que o contexto militar e universitário da
cidade de Santa Maria favorece a manutenção das práticas de costura. Uma vez que o
referido público demanda uma considerável quantidade de serviços para as costureiras
como, a produção e os ajustes de fardas militares e a confecção de vestidos para as
festas de formatura. Na opinião de uma de minhas interlocutoras, Dona Chita, “a costura
nunca vai deixar de assistir”. Esta sua afirmação remete à noção de que a costura
sempre será um saber fazer e, nesse sentido, uma possível fonte de renda para as
mulheres, tendo em vista a necessidade de nos vestirmos e nos adequarmos aos nossos
contextos sociais.
Por fim, esta dissertação foi “costurada” tal como a “colcha de retalhos” tecida
na imagem que ilustra a capa deste trabalho. Imagem que remete ao saber fazer da
costura sendo transmitido de avó para mãe e, posteriormente, para a filha. Reuni, ao
longo da pesquisa, narrativas sobre o trabalho, observações do cotidiano, trechos de
literatura, fotografias, discussões e desenhos dispostos como pequenos quadradinhos
coloridos e costurados ao longo de uma grande colcha de retalhos. Esta colcha de
retalhos contou as histórias e os legados de mulheres costureiras, de mulheres comuns.
172
173

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: “Aviamentos”

ABREU, Alice Rangel de Paiva. O avesso da moda: trabalho a domicílio na indústria


de confecção. Editora Hucitec, 1985.

ADAMS, Douglas. O guia do mochileiro das galáxias, v. 1. São Paulo: Arqueiro,


2009.

ADELMAN, Miriam. Reformulando narrativas. In: A Voz e a Escuta: encontros e


desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea. Curitiba: Blucher,
2009.

ALMEIDA, Lélia. 50ml de Cabochard: crônicas sobre mulher e literatura. Santa Cruz:
EdUniSC, 1995.

ALVES, Ana Elizabeth Santos; CUNHA, Tânia Rocha Andrade. “Livro de Costura
Singer”: Fonte documental para os estudos sobre trabalho e gênero. Revista
HISTEDBR On-Line, v. 9, n. 33e, 2009.

BARBER, Elizabeth Wayland. Women's Work: The First 20,000 Years Women,
Cloth, and Society in Early Times. WW Norton & Company, 1995.

BECKER, Howard S. Segredos e truques da pesquisa. Zahar, 2007.

BENEDICT, Ruth. O Crisântemo e a Espada. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Perspectiva,


1997.

BENJAMIN, Walter. O Flâneur In Obras escolhidas III. São Paulo: Ed. Brasiliense,
1989.

BERNARDINO-COSTA, JOAZE. Migração, trabalho doméstico e afeto. Cadernos


Pagu, n. 39, p. 447-459, 2012.

BONI, Valdete; QUARESMA, Sílvia Jurema. Aprendendo a entrevistar: como fazer


entrevistas em Ciências Sociais. Em Tese, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005.

BOUCHER, François. História do vestuário no Ocidente. São Paulo: Cosac Naify,


2010.

BOURDIEU, Pierre. O camponês e seu corpo. Revista de sociologia e política, n. 26,


2006.

BRAH, Avtar. Diferença, Diversidade, Diferenciação. In: Cadernos Pagu. Campinas,


Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, n. 26. p. 329-376, 2006.
174

BRITES, Jurema Gorski. Trabalho doméstico: questões, leituras e políticas. Cadernos


de Pesquisa, v. 43, n. 149, p. 422-451, 2013.

BRITO, Thaís Fernandes Sales de. Bordados e bordadeiras: Um estudo sobre a


produção artesanal de bordados em Caicó. RN. São Paulo, 2010.

CARLIER, Robert (Ed.). Dictionnaire des citations françaises et étrangères. Librairie


Larousse, 1982.

CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes


Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, n. 15, p. 107-147, julho de 2001.

CERQUEIRA, Fábio Vergara; SANTOS, Denise Ondina Marroni dos. A Camisola do


Dia. Patrimônio têxtil da cultura material nupcial (Rio Grande do Sul, do início a
meados do século XX). Rio de Janeiro: Est. Hist., vol. 24, nº. 48, julho – dezembro de
2011, pág. 305 – 330.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: vol. 1 Artes de fazer. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Vozes, 1994.

CHEVALIER, Denis. Des savoirs efficaces. Terrain, Paris, n.16, p. 5-11, março de
1991.

CLASTRES, Pierre. Da tortura nas sociedades primitivas. In: A sociedade contra o


Estado: investigações de antropologia política. Porto: Edições Anfrontamento, p. 173-
182, 1979.

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica. Rio de Janeiro: EdUFRJ, 1998.

COLEN, Shellee. Like a mother to them: stratified reproduction and West Indian
childcare workers and employers in New York. In: GINSBURG, Faye D.; RAPP,
Rayna (Org.). Conceiving the new world order: the global politics of reproduction.
Berkeley: University of California Press, 1995. p. 78-102.

CONNELL, Raewyn. A colonialidade do gênero. In: Gênero em termos reais. São


Paulo: nVersos, 2016.

CONNELL, Raewyn. O Império e a Criação de Uma Ciência Social. In:


Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar v.2 n.2 Disponível on-line em:
http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/85/50

COUTINHO, Beatriz Isola. Imigração laboral e o setor têxtil-vestuário de São


Paulo: notas sobre a presença boliviana nas confecções de costura. REDD–Revista
Espaço de Diálogo e Desconexão, v. 4, n. 1, 2011

CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas.
Editorial Senac Sao Paulo, 2006.
175

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos


da discriminação racial relativos ao gênero. Revista estudos feministas, v. 10, n. 1,
2002.

CSORDAS, Thomas. A corporeidade como paradigma. In: Corpo/significado/cura.


Porto Alegre: Editora UFRGS, 2008.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos: e outros episódios da história


cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

DE BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a segunda infância. Planeta, 2006.

DINIZ, Marli. Os donos do saber: profissões e monopólios profissionais. Rio de


Janeiro: Revan,2001.

DUBAR, Claude. A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização


profissional. Cadernos de pesquisa. São Paulo, v42, n.146 maio-agosto de 2012 pp.351-
367.

DUEÑAS, María. O tempo entre costuras. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

ECKERT, Cornelia. ROCHA; Ana Luisa Carvalho da. Etnografia da duração:


antropologia das memórias coletivas em coleções etnográficas. Porto Alegre: Marca
visual, 2013.
_____________________________________________. Etnografia: saberes e práticas.
Iluminuras: série de publicações eletrônicas do Banco de Imagens e Efeitos Visuais,
LAS, PPGAS, IFCH e ILEA, UFRGS. Porto Alegre,. N. 21 (2008), 23 p., 2008.

_____________________________________________. Etnografia de rua e câmera


na mão. Revista Eletrônica, 2002.

_____________________________________________. Cidade narrada, tempo


vivido: estudos de etnografias da duração. RUA, v. 16, n. 1, p. 121-145, 2010.

_____________________________________________. Etnografia de rua: estudo de


antropologia urbana. Iluminuras: série de publicações eletrônicas do Banco de Imagens
e Efeitos Visuais, LAS, PPGAS, IFCH e ILEA, UFRGS. Porto Alegre,. N. 7 (2003), 22
p., 2003.

ESPÍRITO SANTO, Wecisley Ribeiro do. Etnografia, Corpo e Imagem: reflexões a


partir de uma experiência de registro audiovisual entre costureiras domiciliares de Nova
Friburgo-RJ. Enfoques, v. 11, n. 2, 2012.

ESQUIVEL, Laura. Como agua para chocolate. 14. ed. Buenos Aires: Debolsillo,
2009.

FEDERICI, Silvia. O calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São


Paulo: Elefante, 2017.
176

FONSECA, Claudia. Quando cada caso não é um caso: pesquisa etnográfica e


educação. In. Revista Brasileiro de Educação. No. 10, Jan 1999.

FREIDSON, E. Para uma análise comparativa das profissões: a institucionalização


do discurso e do conhecimento formais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São
Paulo, n.31, ano 11, jun. pp.141-154, 1996.

FREITAS, Maria Vitorina de. Artes e ofícios femininos. São Paulo: Linografica, 1948.

GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem: estudo sistemático dos ritos da porta e da
soleira, da hospitalidade, da adoção, da gravidez e parto, nascimento, infância,
puberdade, iniciação, coroação, noivado, casamento, funerais, estações, etc.; Petrópolis,
Vozes, 2011.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

_______________. Nós/não-nós: as viagens de Benedict. in Obras e Vidas. Rio de


Janeiro: EdUFRJ, 2006.

GURAN, Milton. Fotografar para descobrir, fotografar para contar. Cadernos de


antropologia e imagem, v. 10, n. 1, p. 155-165, 2000.

HALAVAIS, Alexander. Prefácio. In: FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel;


AMARAL, Adriana. Métodos de Pesquisa para Internet. Porto Alegre: Sulina, v. 1,
2011.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2006.

HALFPAP, Dulce Maria; SOUZA, Gilberto Corrêa de; DA MOTA ALVES, João
Bosco. Robôs como artefatos. Ciências & Cognição, v. 12, p. 203-213, 2007.

HAWTHORNE, Rosemary. Por baixo do pano: a história da calcinha. Tradução de


Daniela P. B. Dias. São Paulo: Matrix, 2009.

HARAWAY, Donna. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia, e feminismo –


socialista no final do século XX. In: Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-
humano. Org. e tradução Tomaz Tadeu -2.ed. – Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2009.

HARTMANN, Luciana. “Revelando” Histórias: os usos do audiovisual na pesquisa


com narradores da fronteira entre Argentina, Brasil e Uruguai. Campos 5(2): 65-86,
2004.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do


trabalho. Cadernos de pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, 2007.

HOCHSCHILD, ARLIE RUSSEL. La mercantilización de la vida íntima: Apuntes de


la casa y el trabajo. Katz editores, 2008.
177

HOLLANDER, Anne; TORT, Alexandre. O sexo e as roupas: a evolução do traje


moderno. Rocco, 1996.

INGOLD, Tim. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição.


Editora Vozes Limitada, 2015.

INGOLD, Tim. A cultura do chão: o mundo percebido através dos pés. In: Estar
vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Editora Vozes Limitada, pp.
70 - 94 2015.

_____________. Da transmissão de representações à educação da atenção.


Educação, v. 33, n. 1, 2010.

____________. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num


mundo de materiais. Horizontes antropológicos, v. 18, n. 37, p. 25-44, 2012.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. EDUFBA, 2012.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e


termos. 2ed. Brasília, 2012.

KÄERCHER, KAREN AMBROZI. Tecendo narrativas: gênero e trabalho no


aprendizado da costura. 29 f. Monografia (Graduação) – Curso de Ciências Sociais.
Universidade Federal de Santa Maria: Santa Maria, 2016.

KOFES, Suely. Experiências sociais, interpretações individuais: histórias de vida,


suas possibilidades e limites. Cadernos Pagu, v. 3, p. 117-41, 1994.

LAVER, James. De 1850 a 1900. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.

LEITÃO, Débora Krischke; GOMES, Laura Graziela. Estar e não estar lá, eis a
questão: pesquisa etnográfica no Second Life. Revista Cronos, v. 12, n. 2, 2013.

LEROI-GOURHAN, André. O gesto e a palavra 2: Memória e Ritmos. Lisboa:


Edições 70, 1965.

LOPES, João Teixeira. Andante, andante: tempo para andar e descobrir o espaço
público. In: LEITE, Rogerio Proença (org.). Cultura e vida urbana: ensaios sobre a
cidade. São Cristóvão: Editora UFS, 2008. p. 129-144.

LORDE, Audre. The Transformation of Silence into Language and Action. In: Sister
Outsider. New York: Crossing Press, 1984.

LUGONES, María. Rumo a um Feminismo Descolonial. In: Revista Estudos


Feministas.v.22 n.3 2014 Disponível on-line em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2014000300013&ln
g=en&nrm=iso
178

MACHADO, Ana Maria. O Tao da teia: sobre textos e têxteis. Estudos avançados, v.
17, n. 49, p. 173-196, 2003.

MACHADO DE ASSIS. “Um Apólogo”. In: Várias histórias. Rio de Janeiro: Editores
W. M Jackson, 1946.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia
urbana. Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais, 2006.

MAHMOOD, Saba. Teoria feminista, agência e sujeito liberatório: algumas


reflexões sobre o revivalismo islâmico no Egipto.Etnográfica [on-line]. 2006, vol.10,
n.1, pp. 121-158. ISSN 0873-6561.

MALERONKA, Wanda. Fazer roupa virou moda: um figurino de ocupação da


mulher, São Paulo 1920-1950. Editora Senac Sao Paulo, 2007.

MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril


Cultural. (Coleção Os Pensadores), 1978.

MARTINS, Heloisa H. T. de S. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e


Pesquisa, São Paulo, v.30, n.2, p. 287-300, maio/ago. 2004.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de Marcel


Mauss, de Claude Lévi-Strauss; tradução de Lamberto Puccinelli. São Paulo: e.p.u,
1974.

_____________. “As técnicas corporais”. In: Sociologia e Antropologia, com uma


introdução à obra de Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss; tradução de Lamberto
Puccinelli. São Paulo: e.p.u, 1974.

_____________. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca em sociedades


arcaicas”. In: Sociologia e Antropologia, com uma introdução à obra de Marcel Mauss,
de Claude Lévi-Strauss; tradução de Lamberto Puccinelli. São Paulo: e.p.u, 1974.

_____________. A expressão obrigatória de sentimentos. In: OLIVEIRA, R. C. de


(org.). Mauss. São Paulo: Ática, 1979.

MAXIMO, M. E.; LACERDA, J. de S.; RIFIOTIS, T. Nas fronteiras entre o “on-line”


e o “off-line”: notas para um estudo etnográfico das formas de apropriação dos centros
públicos de acesso à internet. Intercom–Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação. In: IX Congresso de Ciências da Comunicação na
Região Sul. Anais. Guarapuava. 2008.

MEAD, Margareth. Sexo e Temperamento: em três sociedades primitivas. Coleção


Debates. 2009.

MIGNOLO, Walter D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado


de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF- Dossiê: Literatura, língua e
identidade, n.34, p. 287-324, 2008.
179

MISKOLCI, Richard. Feminismo y Derechos Humanos. In: Estevez, Ariadna y


Vásquez, Daniel. Los Derechos Humanos en las ciencias sociales. Cidade do México:
FLACSO-CISAN, 2010. P.167-190

MOL, Annemarie. The logic of care: Health and the problem of patient choice. New
York: Routledge, 2008.

MOLINIER, Pascale. Ética e Trabalho do Care. In: HIRATA e GUIMARÃES (org).


Cuidado e Cuidadoras. As várias faces do Trabalho do Care. São Paulo: Atlas, 2012.

MONTELEONE, Joana. A história das máquinas de costura: um anúncio brasileiro


vende uma máquina de costura americana. In: Conferência Internacional de História
Econômica, 2012.

NEVES, Magda de Almeida; PEDROSA, Célia Maria. Gênero, flexibilidade e


precarização: o trabalho a domicílio na indústria de confecções. Sociedade e Estado, v.
22, n. 1, p. 11-34, 2007.

NOVAES, Sylvia Caiuby. O silêncio eloqüente das imagens fotográficas e sua


importância na etnografia. São Paulo: Cadernos de Arte e Antropologia, vol. 3, n.2/-1,
p. 57 – 67. 2014.

NUMMER, Fernanda Valli; FRANÇA, Maria C. Caminha de Castilhos. Entre ofícios e


profissões: reflexões antropológicas. GAPTA/UFPA: Belém, 2015.

OLIVEIRA, Diego Marafiga de. Exercitar-se conversando ou treinar focado: estudo


sobre técnicas de si entre participantes de academia ao ar livre e academia de ginástica e
musculação em Santa Maria - RS. 120 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Ciências
Sociais. Universidade Federal de Santa Maria: Santa Maria, 2016.

OLIVEIRA, Ricardo Cardoso. Pesquisa em versus Pesquisas com seres humanos. In:
Víctora, C.; OLIVEN, R. G.; MACIEL, M. E.; ORO, A. P. (Orgs.). Antropologia e
Ética: O debate atual no Brasil. Niterói: EdUFF, 2004.

OLIVIERI, Silvana. Quando o cinema vira urbanismo: o documentário como


ferramenta de abordagem da cidade. SciELO-EDUFBA, 2011.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos eurocêntricos dos


conceitos feministas e o desafio das epistemologias africanas. Tradução para uso
didático de: OYĚWÙMÍ, Oyèrónké. Conceptualizing Gender: The Eurocentric
Foundations of Feminist Concepts and the challenge of African Epistemologies. African
Gender Scholarship: Concepts, Methodologies and Paradigms. CODESRIA Gender
Series. Volume 1, Dakar, CODESRIA, 2004, p. 1-8 por Juliana Araújo Lopes.

PAI, HSIAO-HUNG. An ethnography of global labour migration. Feminist Review,


v. 77, n. 1, p. 129-136, 2004.

PEEBLES, Frances de Pontes. Entre Irmãs. Original: A costureira e o Cangaceiro. São


Paulo: Arqueiro, 2017.
180

PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa


histórica. História, vol. 24, n. 1, 2005.

PEIRANO, Mariza. O poder da etnografia. Anuário Antropológico 94. Rio de


Janeiro:Tempo Brasileiro, 1995.

_________________. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos 20.42


(2014): 377-391.

PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, Mulheres e Prisioneiros.


Tradução de Denise Bottmann, Editora Paz e Terra, 1988.

PERURENA, Fátima Cristina Vieira. Relações entre gênero e representações holistas


de saúde–doença. Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 18, n. 2, p. 104, 1997.

PÉTONNET, Colette. Observação flutuante: o exemplo de um cemitério parisiense.


L’Homme, 1982.

PIMENTA, Marta Eugenia Fontenele et al. Memórias de alfaiates: significados de vida


e trabalho. 2008.

PINHO, Flavia. Da brasa ao microondas: a cozinha no Brasil. São Paulo, 2007.


Disponível em: < http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/brasa-
aomicroondas-cozinha-brasil-435532.shtml>. Acesso em 26 de fevereiro de 2018.

PIRES, Flávia Ferreira. Roteiro sentimental para o trabalho de campo. Cadernos de


Campo (São Paulo, 1991), v. 20, n. 20, p. 143-148, 2011.

RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas


distinções: Rio de Janeiro, século XIX. Editora UnB, 2002.

RECHIA, Aristilda. Santa Maria: panorama histórico-cultural. Santa Maria:


Associação Santa-mariense de Letras, 1999.

RIO, João. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ROCHA, Manoel Cláudio Mendes Gonçalves da. A memória coletiva e o ofício de


sapateiro em Belém-Pa: as narrativas de mestres e aprendizes da arte dos calçados. 113
f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Antropologia.Universidade Federal do Pará:
Belém, 2014.

RUBIN, Graziela Rossatto. Análise dos Programas Habitacionais em Santa Maria: o


caso do Conjunto Habitacional Tancredo Neves. 150 f. Dissertação (Mestrado) – Curso
de Geografia e Geociências. Universidade Federal de Santa Maria: Santa Maria, 2013.

SAFFIOTI, Heleieth. Prefácio. In: ABREU, Alice Rangel de Paiva. O avesso da moda:
trabalho a domicílio na indústria de confecção. Editora Hucitec, 1985.
181

SAPIEZINSKAS, Aline. Como se constrói um artesão: negociações de significado e


uma" cara nova" para as" coisas da vovó". Horizontes antropológicos, v. 18, n. 38, p.
133-158, 2012.

SAUTCHUK, Carlos Emanuel. SANTOS, Valéria; CORDOVA, Dayana Zdebsky de;


STOIEV, Fabiano; MACHADO, João Castelo Branco. 2009. Alfaiatarias em
Curitiba. Curitiba: Edição dos Autores, 100 p., ilustrado. CAMPOS-Revista de
Antropologia Social, v. 10, n. 1, 2009.

SCHERER, André; CAMPOS, Sílvia. Projeto Competitividade e Inovação na


Indústria Gaúcha: Cadeia Produtiva Têxtil-Vestuário. Porto Alegre, FEE, 1995.
SIJIE, Dai. Balzac e a costureirinha chinesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2011.

SILVA, Alice Inês de Oliveira e. Abelhinhas numa diligente colméia: domesticidade e


imaginário feminino na década de cinqüenta. Rebeldia e submissão. Estudos sobre a
condição feminina. São Paulo, Vértice, 1989.

SILVA, Alzira Nogueira da. Pegando vida nas mãos: um olhar etnográfico sobre
saberes e práticas das parteiras tradicionais nos circuitos do Amapá em mudanças. 2005.
189f. – Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-
graduação em Sociologia, Fortaleza (CE), 2005.

SILVA, Elizabeth Bortolaia. Tecnologia e vida doméstica nos lares. Cadernos Pagu,
n. 10, p. 21-52, 1998.

SIMMEL, Georg. Sociabilidade: um exemplo de sociologia pura ou formal. São Paulo:


Ática, p. 165-181, 1983.

SOARES, Angelo. As emoções do care. Em Cuidado e cuidadoras: As várias faces do


trabalho do care, Helena Hirata y Nadya Araujo Guimarães (Organizadoras) Editora
Atlas SA, São Pablo, p. 44-59, 2012.

SOARES, Pedro Paulo de Miranda Araújo. Etnografando as barbearias da cidade:


um estudo antropológico sobre o trabalho e memória no mundo urbano de Porto Alegre
(RS). 179 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Antropologia Social. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul: Porto Alegre, 2012.

SOLÍS, CRISTINA VEGA. Culturas del cuidado en transición: espacios, sujetos e


imaginarios en una sociedad de migración. Editorial UOC, 2009.

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.

STEIL, Carlos Alberto; CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Diferentes aportes no


âmbito da antropologia fenomenológica: diálogos com Tim Ingold. São Paulo:
Editora Terceiro Nome, p. 31-47, 2012.

STRATHERN, Marilyn. Uma relação incômoda: o caso do feminismo e da


antropologia. Mediações, Londrina, vol 14 jul-dez, n. 2, pp 83-104. 2009.
182

____________________. O efeito etnográfico e outros ensaios. São Paulo: Cosac


Naify, 2014.

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das


Letras, 1998.

TRONTO, Joan C. Mulheres e cuidados: o que as feministas podem aprender sobre a


moralidade a partir disso. Gênero, corpo, conhecimento, p. 186-203. Rio de Janeiro:
Record: Rosa dos Tempos, 1997.

VASQUES, Rosana Aparecida; ONO, Maristela Mitsuko. Design, Diversidade


Cultural e Uso Compartilhado: um estudo sobre artefatos para o cuidado com a roupa.
(2010) Disponível em: <
https://www.researchgate.net/publication/220001014_Design_Diversidade_Cultural_e_
Uso_Compartilhado_um_estudo_sobre_artefatos_para_o_cuidado_com_a_roupa>
Acesso em 26 de fevereiro de 2018.

VEDANA, Viviane. Gestos e Práticas: Experiência sensoriais – saberes, odores e sons.


No mercado tem tudo que a boca come. Estudo Antropológico da duração das práticas
cotidianas de mercado de rua no mundo urbano contemporâneo. 2008: 277f. Tese
(doutorado) – UFRGS. Porto Alegre – RS.

VERDIER, Yvonne. Façons de dire, façons de faire. La laveuse, la couturière, la


cuisinière. 1979.

VISAGES, Villages. Direção de Agnès Varda. Música: Matthieu Chedid. França, 2017.
(89 min.), son., color. Legendado.

VÍCTORA, Ceres Gomes; KNAUTH, Daniela Riva; HASSEN, Maria de Nazareth


Agra. Pesquisa qualitativa em saúde: uma introdução ao tema. Tomo Editorial, 2000.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina. Zahar, 2005.

You might also like