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Gestão de políticas de

segurança pública no Brasil:


Artigos

problemas, impasses
e desafios
Gestão de políticas de segurança pública no Brasil:
problemas, impasses e desafios
Paula Rodriguez Ballesteros

Paula Rodriguez Ballesteros


Mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas/SP. Graduada em Direito pela PUC/SP e em Ciências Sociais
pela USP. Foi pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência e assessora da Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública e da Comissão Na-
cional da Verdade. Atualmente é pesquisadora do Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça.
ballesterospr@gmail.com

Resumo
O artigo propõe-se a discutir as políticas de segurança pública pela perspectiva da gestão pública, destacando, para tanto, dois
importantes aspectos: o das relações intergovernamentais e o da intersetorialidade. O histórico institucional brasileiro exposto
no texto demonstra que a estrutura político-administrativa estatal e a dinâmica interorganizacional da segurança pública têm
importantes implicações para o sucesso das políticas do setor. As mudanças ocorridas neste cenário, apesar de não conso-
lidadas, apresentam grande potencial de transformação, mas dependem, sobretudo, de capacidade e vontade dos atores
envolvidos na área para serem fortalecidas e incorporadas de forma permanente à gestão da segurança pública no Brasil.

Palavras-Chave
Segurança pública; gestão pública; relações intergovernamentais; intersetorialidade

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A proposta deste artigo1 é apresentar a
dinâmica político-administrativa das
políticas de segurança pública no Brasil e pro-
retomada da ordem democrática, no fim dos
anos 1980, diferentemente do que aconteceu
com outros direitos respaldados e reformula-

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mover o debate a respeito dos desafios apresen- dos pela Constituição, o direito à segurança e
tados para seu fortalecimento e consolidação. à ordem, bem como a estrutura organizacional
Inicialmente apresenta-se o cenário configu- que deveria garanti-los, ficou restrito à listagem
rado pela estrutura federalista, passando-se, de algumas organizações policiais vinculadas ao
em seguida, a traçar um histórico da política capítulo da “defesa do Estado e das instituições
nacional de segurança pública, destacando as democráticas”, passando ao largo da caracterís-
consequências daquela estrutura para os al- tica cidadã atribuída às demais esferas da vida
cances e retrocessos no setor. Expõem-se tam- social brasileira que começava a se reconfigurar.
bém as peculiaridades de uma política pública
vinculada aos diferentes níveis e segmentos de A limitação constitucional no que tange à
poder e à pretensa dicotomia entre prevenção segurança pública é vista por muitos autores
e repressão, tratando de questões ideológicas e como resultado do trauma criado em relação
operacionais presentes no cotidiano das agên- ao tema, decorrente das violações e arbitrarie-
cias governamentais. dades cometidas durante os anos de chumbo.
Reduzir a discussão e esquivar-se dela na Cons-
O argumento central aqui apresentado tituinte teria permitido construir a negociação
funda-se na necessidade de uma gestão demo- necessária para a transição ao regime democrá-
crática, capaz de garantir legitimidade e efici- tico. Há quem assegure que a dedicação cons-
ências às políticas de segurança pública, consi- titucional reduzida seria, ao contrário, decor-
derando as diferentes competências dos atores rência de pressão explícita de alguns grupos
e órgãos, bem como a potencialidade das ações interessados em manter o status quo. Como
integradas entre eles. ressalta Gonçalves:
Diferentemente do que se verificava em rela-
Federalismo e relações intergoverna- ção a outras políticas públicas, não havia, à
mentais ou “a política da política de se- época, uma coalizão reformadora para que se
gurança pública” restabelecesse um novo modelo institucional
As políticas de segurança pública no Brasil para a segurança pública, o que não significa
têm sido, em regra, pensadas e implementadas dizer que não existissem atores com agendas
de forma fragmentada e pouco planejada. Na reformistas (GONÇALVES, 2009, p. 19).

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As continuidades organizacionais que correntes, por suposto, de um amplo processo
caracterizaram a segurança pública desde a de negociações (ARRETCHE, 2002).
promulgação da Constituição de 1988, so-
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madas à falta de indicação sobre diretrizes No sistema federativo brasileiro, as compe-


de coordenação ou articulação, bem como tências estatais estão divididas entre diferentes
à omissão com relação ao papel do governo esferas de governo, diferenciadas entre si no
federal e dos municípios neste setor, refor- que se refere às suas instituições, seus recursos
çam o entendimento de Abrucio (2005) a financeiros, humanos e políticos, e sua relação
respeito de um federalismo compartimen- com a sociedade civil. Isso torna o tema da se-
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talizado. Nesse contexto, os governos es- gurança pública ainda mais complexo. A dis-
taduais teriam tido seu poder fortalecido tribuição de poder entre os níveis de governo
diante do esgotamento do domínio federal, e o tipo de relação estabelecida entre eles são
estabelecendo, naquele momento pós-cons- decisivos para a definição das ações que serão
titucional, relações intergovernamentais adotadas na área de segurança pública, deter-
predatórias e não cooperativas. minando desde seus conteúdos até a maneira e
momento oportunos de executá-las.
Tradicionalmente, as implicações da estru-
tura federalista para a caracterização das polí- O federalismo como forma de organização
ticas públicas nacionais foram analisadas ape- político-territorial, segundo corrente majoritária
nas para as políticas sociais e fiscais. Em raras da doutrina, tem forte impacto na estrutura ad-
oportunidades as análises desta natureza foram ministrativa e no desenho e implementação das
estendidas às políticas de segurança pública. políticas públicas, e a interação que se dá entre
Isso porque, no entender de alguns analistas, o governo central e os governos subnacionais em
os vazios eram tão mais expressivos do que as uma federação é essencial para definir o modo e
ações empreendidas, que não haveria elemen- a qualidade com que o Estado proverá direitos
tos sobre os quais fazer considerações teóricas. fundamentais dos cidadãos (STEPAN, 1999).

Em diferentes medidas, áreas como, por Alguns autores (ADORNO, 1999; 2003;
exemplo, educação, saúde e assistência social 2008; SOARES, 2007; MESQUITA NETO,
já passaram por reformas que exigiram a su- 2008) identificam como um dos principais en-
peração ou relativização dos obstáculos legais traves ao desenvolvimento de reformas consis-
e político-administrativos e a reformulação do tentes no sistema de segurança pública o jogo
papel dos entes federativos a fim de constituir político estabelecido desde a época da consti-
políticas públicas nacionais integradas. Respei- tuinte, a partir do qual lobbies corporativistas
tada a autonomia política das entidades sub- e lideranças locais têm se mostrado poderosos
nacionais, a adesão às políticas federais deu-se nas negociações político-partidárias e nos ar-
primordialmente em razão dos incentivos ofe- ranjos federativos sobre área da segurança, re-
recidos pelo governo central, combinados ao tardando um deslocamento contundente no
consenso sobre o conteúdo das reformas, de- sentido da democratização.

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Para Sérgio Adorno, os constrangimentos do ças policiais sob o controle civil e, por conse-
pacto federativo para a área da segurança públi- guinte, de não conseguir produzir políticas de
ca poderiam ser descritos da seguinte maneira: segurança pública que fossem além do uso da

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Como se sabe, embora o governo federal de- repressão (ADORNO, 1999). Em um segun-
sempenhe uma posição estratégica na formu- do momento, o crescimento da criminalidade
lação e implementação de políticas de segu- e da violência ganhou visibilidade e entrou
rança e justiça criminal, a execução dessas po- para a agenda nacional. Diante disso, aquele
líticas está sob encargo dos governos estaduais primeiro movimento no sentido estadual, em
que, por sua vez, enfrentam problemas locais, decorrência do clamor popular, abriu espaço

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entre os quais o de ter que lidar com caracte- para que o governo federal assumisse seu pa-
rísticas peculiares e históricas de suas agências pel indutor e formulador de políticas públicas
de contenção do crime, particularmente as desde o final dos anos 1990, como “centro de
ligações entre polícias, Ministério Público, inteligência de novas práticas e abordagens”
Poder Judiciário e autoridades penitenciárias (SENTO-SÉ, 2011).
com o governo civil e com as elites políticas
locais. Trata-se de uma questão de vital im- Políticas nacionais de segurança pública
portância porque depende antes de tudo das e a busca por organicidade e articulação
alianças políticas entre governos estaduais e Para muitos autores (SENTO-SÉ, 2011;
governo federal, mediadas pelas ligações en- MESQUITA NETO, 2008; SOARES, 2007;
tre bancadas estaduais e federais que não raro ADORNO, 2003), o lançamento do primeiro
controlam lobbies muito poderosos como os Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP)
das corporações policiais e judiciais (ADOR- em 2000, justamente por ter sido apresentado
NO, 1999, p. 141). como resposta reativa a um episódio de violên-
cia de grande repercussão nacional,2 era muito
A trajetória dos planos nacionais de se- mais um documento político do que estratégi-
gurança pública é ilustrativa das resistências co. Apesar do propósito evidente de articula-
colocadas tanto pelos grupos de interesse ci- ção, seja do Executivo com o Legislativo, seja
tados por Adorno (1999), quanto pela com- das ações repressivas com as preventivas, o pla-
partimentalização administrativa referida no caracterizou-se pela sua “elevada capacidade
por Abrucio (2005). Esta trajetória, segundo de formulação de políticas e baixa capacidade
Sento-Sé (2011), iniciou-se com o próprio de implementação” (ADORNO, 2003, p.
processo de redemocratização, que repassou 130). Isso porque, além das lacunas operacio-
aos Estados a competência pelas políticas de nais e estruturais, o governo Fernando Henri-
segurança pública como forma de redefinição que Cardoso, mesmo tendo se elegido para seu
do pacto federativo. Porém, a pouca familiari- segundo mandato no primeiro turno – fator
dade dos Estados para lidar com o tema, em político favorável – não conseguiu superar os
algumas circunstâncias, e a falta de iniciativa desafios internos ao sistema, impostos por al-
em fazê-lo, em outras, gerou nos governos o gumas agências dos órgãos de segurança e seto-
problema de não conseguir reenquadrar as for- res da sociedade, na condução de um modelo

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que visasse à ruptura de uma lógica envelheci- ou seja, implicaria assumir a responsabilida-
da e pautada simplesmente pela norma penal e de pela segurança perante a opinião pública
pelo uso da força. Não obstante tais limitações, [...] O desgaste seria inevitável, uma vez que
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reconhece-se no PNSP a virtude de ter coloca- os efeitos práticos de uma reorganização ins-
do o tema da segurança na agenda nacional, titucional só se fariam sentir a longo prazo
sistematizando várias das contribuições sobre (SOARES, 2007, p. 88).
o tema, enfatizando seu caráter social e desta-
cando o governo federal como protagonista da O segundo mandato de Lula manteve a
coordenação federativa no setor (ADORNO, continuidade dos dois planos anteriores com
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2003; SOARES, 2007; SENTO-SÉ, 2011). relação ao tema da segurança pública, consti-
tuindo uma importante série histórica para o
No governo de Luiz Inácio Lula da Silva, tema no país (SOARES, 2007). Por meio do
reforçou-se o caráter articulador do governo Programa Nacional de Segurança com Cida-
federal, associando-o à ênfase dada às políti- dania4 (Pronasci), o governo Lula objetivou
cas preventivas e à valorização profissional dos estabelecer um “novo paradigma” para a se-
trabalhadores da área de segurança. A rearticu- gurança pública, ao promover a inclusão dos
lação federativa, entre outros temas, foi objeto municípios e da sociedade civil como atores
do Comitê de Articulação Federativa (CAF) fundamentais da ação estatal para o setor, rela-
do governo, que se propunha a “promover a ar- cionados principalmente às políticas preventi-
ticulação na formulação de estratégias e imple- vas destacadas no Programa.
mentação de ações coordenadas e cooperativas
entre esfera federal e municipal de governo, O Pronasci foi criado por Medida Provi-
para atendimento das demandas da socieda- sória e depois instituído por lei5 debatida no
de e aprimoramento das relações federativas” Congresso Nacional, e tinha previsão orça-
(BRASIL, 2007 apud GONÇALVES, 2009). mentária de médio prazo (seis anos, incluindo
metade do mandato do sucessor na Presidên-
No Projeto Segurança Pública para o Bra- cia), cujo gasto foi definido de acordo com os
sil , de 2002, elaborado com participação de
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projetos que constituíam o Programa em cada
alguns setores da sociedade, propuseram-se um dos Estados e municípios que a ele ade-
reformas estruturais abrangentes, inclusive no riram, características gerenciais que os planos
que toca às normas constitucionais. Entretan- anteriores não tinham.
to, segundo Soares,
O presidente reviu sua adesão ao Plano e Além destes projetos nacionais, em três ou-
desistiu de prosseguir no caminho previsto, tras oportunidades o governo federal se propôs
porque percebeu – na interlocução com a ins- a discutir a reforma do sistema de segurança
tância que, à época, se denominava “núcleo de forma integral e considerando os aspectos
duro do governo” – que fazê-lo significaria federativos da política de segurança, sem, con-
assumir o protagonismo maior da reforma tudo, lograr êxito. A primeira, em 1997, sob
institucional da segurança pública no país, coordenação da Secretaria de Direitos Huma-

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nos, quando se criou o Grupo de Trabalhos estariam articuladas entre as esferas federal, es-
de Avaliação do Sistema de Segurança Públi- tadual e municipal. O Susp operaria por meio
ca, mas cujas propostas foram obstaculizadas de um protocolo de intenções entre cada um

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por outro projeto apresentado pelo Ministro dos governos subnacionais e o Ministério da
de Justiça do mesmo governo, às vésperas de Justiça, via Secretaria Nacional de Segurança
eleições, que relegaram à segunda ordem tanto Pública (Senasp), cujo resultado implicaria a
uma proposta quanto a outra6. Já em 2001, o criação de um plano de segurança e um comitê
Ministério da Justiça, logo depois de lançado de gestão integrada para cada uma das entida-
o primeiro Plano Nacional de Segurança Pú- des governamentais.

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blica, constituiu o Comitê de Assessoramento
ao Núcleo de Ministros de Estado para a Re- Apesar de um documento formal denomi-
construção do Sistema Nacional de Segurança nado “Arquitetura Institucional do Sistema
Pública, que, entretanto, nem chegou a fun- Único de Segurança Pública” ter sido lançado
cionar em razão da sucessiva troca de titulares em 2004, e de dois Relatórios de Gestão te-
na pasta7. Logo em 2002, outro grupo de tra- rem sido publicados (um referente ao período
balho foi formado por representantes da Secre- 2003-2006, e outro somente sobre 2006), o
taria Nacional de Segurança Pública (Senasp), Susp em regra nunca chegou a ser implementa-
Secretaria Nacional de Justiça e Secretaria de do, a não ser por ações pontuais que remetem
Direitos Humanos, com o propósito de inte- ao conteúdo do sistema, mas não são geridas
grar as ações dos diferentes níveis de governo. de acordo com os princípios de integração e
Como resultado, desenvolveu-se o Programa articulação do mesmo. Da sua formatação ini-
Nacional de Apoio à Administração da Segu- cial em termos de gestão das políticas de segu-
rança Pública nos Estados e Municípios (Pe- rança pública restaram os Gabinetes de Gestão
naspem), mas que, ao que consta, não saiu do Integrada e a consolidação e reformulação do
papel (MESQUITA NETO, 2008). Fundo Nacional de Segurança Pública.

Uma alternativa a todas essas empreitadas Os Gabinetes de Gestão Integrada (GGI)


foi a idealização do Sistema Único de Seguran- tiveram origem em 2003, como objeto dos
ça Pública (Susp), que apesar de nunca ter sido “Protocolos de Intenções” firmados entre o
normatizado8, serviu como parâmetro para governo federal e todos os Estados, além do
algumas propostas de reformulação da estru- Distrito Federal, no bojo da tentativa de se
tura organizacional do setor e como referência instituir o Susp. Inicialmente pensados de for-
das temáticas prioritárias da área. As ações do ma a possibilitar a coordenação de ações de
projeto do Susp se dariam em sete eixos es- gerenciamento de crises e de forças-tarefa9, o
tratégicos, a saber: gestão do conhecimento; GGI passou a ser tratado como órgão delibe-
reorganização institucional; formação e valori- rativo e executivo, que operaria por consenso,
zação profissional; prevenção; estruturação da garantindo a manutenção de autonomia e a
perícia; controle externo e participação social; não hierarquização de seus integrantes. Coube
programas de redução da violência. Estas ações à secretaria estadual de segurança pública de

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cada localidade articular seus membros e or- Em uma oportunidade inédita na gestão da
ganizar as atividades iniciais consoantes com o segurança pública, profissionais da área repre-
II Plano Nacional de Segurança Pública (MI- sentando 26 unidades federativas foram con-
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NISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009). vidados pelo Ministério da Justiça a participar


de um seminário que serviria para elaborar
Deveriam integrar o GGI representantes de coletivamente o documento de referência para
órgãos nos níveis federal e estadual: membro a definição dos GGI. Os profissionais foram
da Senasp, Superintendentes da Polícia Federal divididos em três grupos temáticos – estrutu-
e da Polícia Rodoviária Federal, Secretário de ração, funcionamento e prioridades estratégi-
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Segurança Pública, Chefe da Polícia Civil, Co- cas – que, em plenária, validaram o Termo de
mandante Geral da Polícia Militar, e demais di- Referência base para a atuação dos Gabinetes.
rigentes dos órgãos subordinados à secretaria de Em sua introdução, o documento define:
segurança pública estadual. Ademais, deveriam
ser convidados integrantes das Secretarias Mu- Sem gestão não há política de segurança e políti-
nicipais relacionadas à pasta da segurança, bem ca de segurança implica articulação sistêmica das
como representantes das Guardas Municipais, instituições. Sendo assim, uma política de segu-
do Ministério Público e do Poder Judiciário. rança pública eficiente tem como pressupostos:

Figura 1 - Diagrama Conceitual do Gabinete de Gestão Integrada Municipal

Observatório da
Segurança Pública

Gestão do
Conhecimento

Deliberação e
Coordenação
Pleno GGI-M
I - Prefeito;
Disque II - Autoridades Municipais responsáveis pelas
Segurança Pública

PRONASCI
Gestão das Ações

ações sociais preventivas;


Comunicação da
Integradas de

Formação e da

Sala de
Mobilização

IV - Autoridades Policiais Estaduais que atuam TELE-CENTRO


Gestão da

Vídeo Situação e +
Monitoramento no município: Polícia Civil, Polícia Militar e KIT DE Comunicação
Operações Cortpo de Bombeiros;
Disque
Denúncia V - Representantes do Ministério da Justiça:
Coordenador Estadual do PRONASCI, Polícia
Federal e Polícia Rodoviária Federal;
VI - Secretário Executivo GGI-M

Gestão das Ações


Preventivas
Segurança
Território de Paz
- Gerentes e Convivência
- Equipes Multidisciplinares

Legenda
Integração do jovem Estrutura
e da família
Processo

Fonte: MJ, 2009, p. 98.

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• Articulação interinstitucional projetos de Estados e municípios voltados à
• Planejamento sistêmico área de segurança que estivessem articulados
• Reforma das polícias introduzindo meca- com o Plano Nacional de Segurança Pública.

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nismo de gestão – dados qualificados, diag-
nósticos rigorosos, planejamento sistêmico, Costa e Grossi (2007) caracterizam o
avaliação regular e monitoramento corretivo FNSP como importante ferramenta de indu-
(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009, p. 35). ção das políticas locais de segurança pública e
de cooperação intergovernamental, restringi-
Em 2004, o Conselho Gestor do Fundo do, porém, pela falta de maior empenho do

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Nacional de Segurança Pública (FNSP) esta- governo federal em assumir protagonismo na
beleceu que daria prioridade aos entes fede- coordenação e no planejamento estratégico das
rados que tivessem GGI instalado e em fun- políticas de segurança pública no Brasil. Se-
cionamento como critério para a distribuição gundo os autores, a criação do FNSP represen-
de recursos. A partir de 2007, os Gabinetes de tou aumento significativo dos investimentos
Gestão Integrada passaram a ser vinculados ao do governo federal no setor, bem como uma
Programa Nacional de Segurança com Cidada- centralização, e, portanto, melhor aplicação,
nia, momento no qual se incentivou a criação dos recursos destinados à área, agora a cargo
dos GGI em âmbito municipal. Os GGI-M, do Ministério da Justiça.
como ficaram conhecidos, foram estruturados
com base no “memorial descritivo” desenvol- O FNSP opera por meio de convênios,
vido pela Senasp, que estabelecia parâmetros cujas condicionalidades que inicialmente es-
para acompanhamento e auditoria da aplica- tabeleciam exigências não só com relação aos
ção dos recursos repassados pelo FNSP. O dia- elementos das políticas de segurança, mas a
grama conceitual do GGI-M elaborado pela outros aspectos relacionados com a estabili-
Assessoria de Assuntos Federativos do Minis- dade econômico-administrativa dos Estados e
tério da Justiça dá uma ideia da potencialidade municípios, foram revistas em 2003 no intuito
gestora do órgão (MINISTÉRIO DA JUSTI- de facilitar e qualificar o repasse de recursos.
ÇA, 2009). Estabeleceram-se, então, como critérios de
distribuição: o tamanho da população; o efe-
Atualmente, os Gabinetes de Gestão In- tivo de policiais civis e militares e o número
tegrada continuam ativos, mas pouco se sabe de homicídios (COSTA; GROSSI, 2007). En-
sobre suas ações, sobre os resultados delas de- tretanto, apesar dos 820 convênios firmados
rivados, ou sobre os avanços e retrocessos em entre 2000 e 2005, e de R$ 1,2 bilhão repas-
relação à proposta original10. sado para execução de projetos em segurança
pública, o Fundo acabou reiterando velhas
Por sua vez, também legatário do Susp, o práticas que, em vez de investir em reformas
Fundo Nacional de Segurança Pública, insti- estruturais, restringiram-se à aquisição de no-
tuído por lei em 2001 pelo governo Fernando vos equipamentos, como armas e viaturas, e
Henrique Cardoso, teve o objetivo de apoiar desconsideraram pontos importantes como

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a capacitação e a inovação (SOARES, 2007; uma política pública desta magnitude requer.
COSTA; GROSSI, 2007).
Os desafios intergovernamentais que ainda
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Na análise de Grossi, persistem no setor não são, contudo, os úni-


Apesar deste cenário altamente favorável, cos, e devem ser analisados em conjunto com
desde sua instituição, o Fundo passou a ser as questões intersetoriais que veremos adiante,
encarado mais como uma linha de recursos já que o sistema de segurança pública, correla-
de que cada Estado ou Município poderia cionado à garantia de direitos e promoção da
lançar mão, do que uma forma estruturada cidadania, deve agregar em sua concepção inú-
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e comandada pelo governo federal para uma meros atores e tipos de intervenção, de forma
política unificada de segurança pública. Na a assegurar uma abordagem democrática e efi-
formalização dos convênios com os Estados e ciente para os problemas causados pelo crime e
municípios, pode-se ter perdido uma oportu- pela insegurança no seio da população.
nidade única nesta relação “conflituosa” entre
os governos locais com o governo federal. Isto Um sistema com muitas peças e pouca
se deve basicamente às exigências ou condi- engrenagem
cionantes que a União poderia ter colocado Algumas iniciativas governamentais têm re-
àqueles que desejassem utilizar os recursos do presentado mudanças na forma – e, mormen-
Fundo (GROSSI, 2004, p. 51-52). te, no discurso – de como a segurança pública
vem sendo administrada nos últimos 25 anos
Apesar de não contar com recursos vincula- no Brasil. Ainda que o governo federal não te-
dos decorrentes de determinação constitucio- nha a competência legal para lidar com o tema,
nal, como são o caso da saúde e da educação, sua postura política apoiada em habilidades
os montantes dos gastos do Fundo Nacional que superam as restrições da normatividade
de Segurança Pública, bem como as demais tem servido para movimentar um ambiente
despesas da União com a função segurança pú- pautado pela inércia e ao mesmo tempo pela
blica, nunca foram desprezíveis e, ao contrário, reatividade. Mesmo não consolidadas, estas
na maior parte do período aqui analisado, ob- mudanças devem ser consideradas importantes
servaram tendência crescente. marcas na governança da segurança pública.

Contudo, assim como nos planos nacio- Todavia, é nos níveis estaduais e municipais
nais, tanto na experiência dos GGI como no desta política pública onde as modificações são
caso do FNSP, em que pesem suas potenciali- mais cogentes, o espaço onde elas mais cus-
dades, inclusive na integração entre essas duas tam a ocorrer. Em outras palavras, os maiores
últimas estratégias político-administrativas, gargalos da política de segurança pública bra-
é possível verificar que as relações intergover- sileira na atualidade surgem sob o pretexto de
namentais na área de segurança pública não que congregar ações de vários órgãos e de di-
constituíram a organicidade e densidade ne- ferentes naturezas, ainda que na mesma esfera
cessárias para consolidar o pacto federativo que de governo, teria, além de um custo político

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muito alto, uma ineficiência gerada pela sobre- legitimidade. Falta legitimidade porque a po-
posição e disputa de poderes e atribuições que lítica não se constrói com base no diagnóstico
mesmo o melhor e mais bem intencionado dos prévio e participativo, e sua implementação

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governos não conseguiria superar11. ocorre de forma seletiva e segmentada, a de-
pender dessas burocracias insuladas que fazem
Assim como em outras áreas sociais, o de- parte do sistema de segurança e, porque não
bate de ideologias e procedimentos está longe dizer, impulsionada pelos casos de violência de
de ser um passo imediato na direção das trans- grande repercussão nacional.
formações institucionais. No caso da seguran-

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ça, são inúmeras as organizações com lógicas Em outras palavras, ainda que na ordem
próprias de funcionamento que interferem na jurídico-institucional prevaleçam normas de-
conformação desta política pública que, “como mocráticas, Alvarez, Salla e Souza (s/d) susten-
instituições complexas capazes de acumular tam a ideia de que são os processos políticos
experiências”, acabariam por desenvolver uma restritos a um grupo de atores os que definem
“cultura autônoma” (ROLIM, 2007, p. 34) e, a agenda e as decisões da área, e que entre es-
portanto, de difícil articulação (ADORNO, tes atores estão instituições cujas configurações
2008; SAPORI, 2006; RATTON; TORRES; apresentam alto grau de autonomização em
BASTOS, 2011). relação aos interesses genuinamente públicos.
Consolidando este entendimento sobre o iso-
Segundo a perspectiva histórica proposta lamento institucional na área da segurança, os
por Alvarez, Salla e Souza, este cenário se ca- autores acrescentam:
racterizaria por: Em primeiro lugar, [a segurança pública] é
insulamento burocrático que se realimenta uma esfera na qual atuam de modo marcante
não apenas da capacidade de decidir sobre instituições pertencentes aos poderes da Re-
inúmeros procedimentos no âmbito da ges- pública; há necessidade de estreitas articula-
tão e funcionamento da própria instituição, ções “horizontais” entre os poderes executivo
como tece mecanismos de reprodução das e judiciário (e em menor escala o legislativo)
condições de permanência desse insulamento na própria viabilização das políticas públicas
(ALVAREZ; SALLA; SOUZA, s/d, p. 11). concebidas para o setor. No entanto, cada um
desses poderes e seus respectivos órgãos são
As experiências realizadas até hoje na área presididos por diferentes valores, interesses,
da segurança pública têm sido, em regra, pau- orientações políticas e procedimentos admi-
tadas por padrões top-down de concepção, de- nistrativos que nem sempre operam na mes-
cisão e execução, combinados, além disso, a fa- ma direção das políticas desejadas. [...] Ao
tores como a ausência de processos de avaliação mesmo tempo, na dimensão “vertical”, não
e a espaços limitados de negociação política. A são menores os desafios para que as análises
gestão na área da segurança pública é, pois, en- levem em consideração as diferentes atribui-
tendida como uma política centralizada e que ções das esferas do poder federal, estadual e
padece de fragilidade decisória, posto que sem municipal em relação ao setor de segurança

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pública, bem como as possibilidades de con- que apenas 9 das 22 secretarias analisadas12 se
flito, articulação e acomodação entre elas orientam por uma lei diretriz específica ou por
(ALVAREZ; SALLA; SOUZA, s/d, p. 10). um plano de segurança. Apenas oito das secre-
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tarias têm quadros próprios de concursados


Segundo afirma Sapori (2006; 2007), o sis- civis, sendo que a maioria conta com policiais
tema de justiça criminal brasileiro construído militares (17) e policiais civis (15) na admi-
nessas bases sofre de dupla falta de articulação: nistração da pasta, ainda que não se indique
a que se refere ao conflito entre as organizações quais são as funções desempenhadas por estes
que o compõem, e a que se verifica entre lei e profissionais. Apenas cinco das 22 secretarias
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problemas, impasses e desafios
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prática. Para o autor, estas organizações operam têm pessoal capacitado em políticas públicas e
por meio de uma “informalidade instituciona- somente sete em gestão financeira e de recur-
lizada” fundada em diferentes lógicas, muitas sos humanos; além disso, cinco secretarias não
vezes criando conflito entre as instituições – possuem profissionais capacitados em nenhu-
que, em tese, teriam um mesmo objetivo a ser ma das áreas estratégicas apontadas13.
compartilhado –, e causando, assim, a inefici-
ência do conjunto do sistema. O alto grau de Outro dado interessante em termos de
desconfiança e a diferença de “prestígio” entre composição é o que demonstra a elevada
os órgãos, associados à demanda por eficiência, prevalência dos membros policiais, em detri-
levaria o sistema de justiça criminal a funcionar mento de profissionais de outras áreas. Assis-
com base em “padrões cartoriais” (RATTON; tentes sociais e pedagogos estão presentes em
TORRES; BASTOS, 2011), que configurariam apenas 3 secretarias; profissionais de saúde,
uma “justiça de linha de montagem” (SAPORI, em 5 secretarias; administradores e gestores
2006) muito distante de responder às demandas públicos, em 4 secretarias; e estatísticos, em
substantivas da população diante do crime e de apenas 2 das 22 secretarias pesquisadas. No
outras formas de violências. âmbito específico da articulação, a pesquisa
mostra, ainda, que o relacionamento estreito
Pesquisa realizada por Costa (2011), por com as polícias civil, militar e técnico-cientí-
sua vez, aponta que também a administração fica se dá em mais de 80% das secretarias de
da segurança pública levada a cabo pelas secre- segurança, e com o poder judiciário, o minis-
tarias estaduais designadas para o setor, além tério público e o sistema penitenciário se dá
de pouco conhecida, é muito mal estruturada em em torno de 75% destas instituições. Em
e quase sempre incoerente, no que tange aos contrapartida, as relações com outros órgãos
aspectos de governança, ou seja, à capacida- públicos estaduais, com outras secretarias es-
de de formular e coordenar políticas públicas taduais de segurança pública e com as secreta-
em rede, principalmente em razão de valores, rias municipais dedicadas ao setor são muito
racionalidades e prioridades próprios de cada mais frágeis (respectivamente, 54,5%, 27,3%
ator integrante da rede. e 36,4%), superando apenas a relação estabe-
lecida com as organizações da sociedade civil
No contexto brasileiro, o estudo mostra (27,3%) e com as universidades (27,3%).

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Esta também é a conclusão de pesquisa re- potencializadoras. Ainda que não seja o objetivo
alizada pela Flacso-Chile, no bojo de um ex- deste trabalho aprofundar o debate sobre as po-
tenso projeto sobre o sistema de segurança dos líticas preventivas, uma vez que ampla gama de

Artigos
países da América Latina. Segundo a entidade, estudos e documentos oficiais já avançou nesse
El panorama de la seguridad pública en Bra- sentido, cumpre fazer algumas ponderações que
sil es muy complejo y a la vez problemático, se coadunam com a perspectiva de gestão da se-
pues todos los cuerpos policiales que funcio- gurança pública aqui proposta.
nan en el territorio llevan a cabo su misión de
manera separada, con organización y criterios O primeiro ponto relaciona-se ao fato de

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problemas, impasses e desafios
Paula Rodriguez Ballesteros
de trabajo, formación, gestión, control inter- que, apesar de não serem poucas, as experiên-
no y manejo de la información diferentes. cias e práticas preventivas não têm sido adota-
Si a esto se suman las particularidades de la das como prioritárias ou ao menos considera-
administración del gobierno, la cual define das com a devida atenção no que diz respeito
la orientación de la misma policía, y la mala aos problemas do crime e da violência. Seja
relación existente entre las fuerzas policiales porque a resposta repressiva ainda é a mais
que actúan en una misma jurisdicción (Po- imediata e evidente a ser apresentada como
licía Militar y Policía Civil) se puede señalar “política de segurança”, seja porque, na segu-
que la seguridad pública del país sufre de de- rança pública, os municípios ainda estão fora
sorganización, irracionalidad y crisis, agrava- da órbita definitiva de colaboração e articula-
da por la violencia, el crimen organizado y ção do federalismo brasileiro para as políticas
el narcotráfico que afecta el país (FLACSO, de segurança, diferentemente do que acontece
2006, p. 30-31). em outras áreas de políticas sociais.

Esses dados corroboram a ideia de que Isso ocorre muito mais por parte dos gover-
tanto as agências do poder Judiciário crimi- nos estaduais do que do governo federal, que
nal como também as estruturas do Executivo progressivamente, na linha de desenvolvimento
apresentam resistências e guardam relação com de uma reforma do Estado descentralizadora,
uma estrutura arcaica e pouco modificada, e conforme demonstrado anteriormente, impul-
padecem com obstáculos ideológicos e admi- sionou as esferas municipais a participarem desta
nistrativos que muitas vezes inviabilizam o seara, tanto por meio do resgate e reorganização
processo de governança democrática na área de suas guardas municipais, como do incentivo a
de segurança pública. projetos envolvendo jovens e comunidades terri-
torialmente identificadas como vulneráveis.
A escolha de Sofia
A ação do sistema de justiça criminal e dos O segundo ponto é que, como aponta So-
Executivos estaduais são, com as políticas de ares (2006), as práticas preventivas não são
prevenção, dimensões que compõem a rede de apenas aquelas estruturais, “destinadas a agir
políticas do sistema de segurança pública, e que sobre as macroestruturas socioeconômicas do
entre si são complementares e reciprocamente país”, mas também aquelas tópicas, que, por

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meio de projetos e intervenções imediatas, pelos seus atos, respondendo diante do sistema
“salvam vidas, reduzem danos e sofrimentos, de justiça criminal, cuja principal diretriz de
[...] instauram padrões de comportamento, atuação seria a adoção de medidas dissuasórias
Artigos

suscitam sentimentos e acionam percepções (aparelhamento da polícia, aperfeiçoamento da


coletivas que se convertem, elas mesmas, em máquina judicial, maior rigor na aplicação da
causas de situações menos permeáveis às pres- pena, incremento do encarceramento). Por ou-
sões dos fatores criminológicos” (SOARES, tro lado, associam-se os níveis de criminalidade
2006, p. 95). Na mesma linha, Beato Filho aos parâmetros de pobreza e desigualdade e, as-
aponta as “abordagens culturalistas” que até sim, sendo o criminoso fruto da injustiça social
Gestão de políticas de segurança pública no Brasil:
problemas, impasses e desafios
Paula Rodriguez Ballesteros

hoje têm sido usadas para a formulação de e da falta de oportunidades, adotam-se medi-
políticas públicas na área da segurança e que das humanitárias e de inclusão social (oportu-
acabam criando dissensos conceituais refleti- nidades de emprego, participação comunitária,
dos na elaboração dos projetos para o setor. valorização da educação, ressocialização do cri-
Para o autor, minoso), evitando que o crime aconteça e, para-
Parece que uma das razões do fracasso e da lelamente, atendendo aos preceitos basilares de
inexistência de políticas nessa área reside direitos humanos (SAPORI, 2007).
num plano puramente cognitivo. A pro-
posição de políticas públicas de segurança, A dicotomia entre políticas preventivas e
no Brasil, consiste num movimento pen- repressivas nas políticas de segurança pública é
dular, oscilando entre a reforma social e apresentada pelos governantes como “a escolha
a dissuasão individual. A ideia da reforma de Sofia”, figurando não só como uma ques-
decorre da crença de que o crime resul- tão ideológica, mas também sendo apresenta-
ta de fatores socioeconômicos que blo- da como uma decisão administrativa: seja pelo
queiam o acesso a meios legítimos de se argumento de que as verbas são limitadas e é
ganhar a vida. [...] preciso fazer opções nos dispêndios financeiros,
seja porque ainda não foram encontradas (ou
No outro extremo do movimento pendular não se propuseram a encontrar) estratégias que
estão aqueles que acreditam que o problema conciliem as duas vertentes de forma harmonio-
do crime é fundamentalmente uma questão sa e eficiente, optando-se, então, pela de maior
de polícia e de legislação mais repressivas. repercussão e familiaridade: o uso da força.
A dissuasão do comportamento crimino-
so, então, passaria necessariamente por uma Considerações finais
atuação mais intensiva do sistema de Justiça Na perspectiva da gestão de políticas de se-
Criminal (BEATO FILHO, 1999, p. 24-25). gurança pública, o que nos propusemos a dis-
cutir neste trabalho é a necessidade de analisar
Por um lado, entende-se que a punição é e administrar atores, estruturas, processos e re-
elemento fundamental para afirmação de valo- sultados, tanto do ponto de vista específico do
res socioculturais e que, sendo o criminoso um que cada um destes elementos representa para
ator racional, deve assumir a responsabilidade a segurança pública, como do ponto de vista

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integral de como estes elementos se relacionam recem de aperfeiçoamento e institucionalidade.
(ou não) entre si.
Estudo do Banco Interamericano de De-

Artigos
Uma visão menos monolítica e compacta do senvolvimento (BID) apontou, tomando como
Estado e, ao mesmo tempo, questionamentos exemplo o Estado de São Paulo, que muitos
mais ampliados sobre processos decisórios por são os obstáculos e desafios para uma gestão
ele coordenados permitem análises mais condi- governamental efetiva no setor de segurança
zentes com a realidade sociopolítica brasileira e pública (TUDELA, 2006). No que se refere ao
com sua governabilidade, importantes para o marco regulatório, o trabalho indica a ausência

Gestão de políticas de segurança pública no Brasil:


problemas, impasses e desafios
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debate sobre segurança pública no Brasil. de uma norma única que defina atribuições,
funções e responsabilidades entre os órgãos de
Como há muito se sabe, a eficácia do siste- segurança e que, por conseguinte, permita esta-
ma de segurança pública resulta justamente da belecer uma coordenação efetiva sob liderança
capacidade de articular intervenções multisseto- institucional integrada e intersetorial pautada
riais e interorganizacionais voltadas a prevenir o por objetivos e metas. Em termos de política
crime ou a superar suas consequências depois de pública, o BID reafirma a inexistência de uma
já ocorrido. Esta articulação está fundamental- política de Estado “explícita e consensuada” e,
mente pautada em uma gestão eficiente de re- assim sendo, a falta de institucionalização das
cursos, informações e estratégias, que privilegie estratégias públicas voltadas a combater a cri-
a formulação e implementação participativa e minalidade. O enfoque dominante não seria
que se ampare em instrumentos de monitora- integral nem vinculado às diretrizes modernas
mento e avaliação constantes e confiáveis, tanto da “segurança cidadã”, o que se traduz na falta
no intuito de corrigir o rumo das intervenções, de centralidade das tarefas de prevenção. Em
como para a tarefa de consolidar práticas bem- termos de resultados, por fim, o estudo revela
-sucedidas e socialmente legitimadas. que não se tem investido na gestão do conhe-
cimento, já que, apesar das informações dis-
A trajetória político-institucional brasileira poníveis – que, ainda que públicas, carecem
da segurança pública, diferentemente de outras de sistematicidade –, falta promover no setor
políticas públicas, não têm conseguido conso- avaliações sobre os resultados das ações de seus
lidar seus espaços de negociação, nem a cons- atores, que, por sua vez, fortaleçam o exercí-
trução coletiva de estratégias ou de objetivos a cio do controle externo e da accountability. Em
serem perseguidos. A despeito de impedimentos suma, o estudo indica que ainda não se dispõe
intergovernamentais e desarranjos organizacio- de “una actividad gubernamental suficiente y
nais, verificam-se deslocamentos significativos, orientada a reducir la brecha e inconsistencias
se não quando em comparação a outras áreas entre el sistema vigente, el fortalecimiento de
sociais, com certeza no que se refere à trajetória la democracia y las demandas ciudadanas del
da segurança pública, que, entretanto, ainda ca- sector” (TUDELA, 2006, p. 56).

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1. Os argumentos deste artigo são de cunho estritamente pessoal.

2. O episódio que ficou conhecido como “Ônibus 174”, em que um jovem sequestrou um ônibus na cidade do Rio de Janeiro e fez seus
Artigos

passageiros reféns. A história terminou com a morte de uma mulher e do próprio sequestrador.

3. Depois conhecido como II Plano Nacional de Segurança Pública.

4. Anunciado depois dos ataques da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), em São Paulo, em 2006.

5. Lei 1.530/2007.

6. À época, figurava como Secretário de Direitos Humanos José Gregori, e como Ministro de Justiça, Íris Rezende.

7. Durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso o Ministério da Justiça teve nove titulares.

8. Existe um projeto de lei, de 2007, do então Ministro da Justiça, Tarso Genro, e um de 2006, dos deputados federais Ricardo Santos
(PSDB-ES) e Carlos Humberto Manato (PDT-ES) Ver Ministério da Justiça (2006).

9. O fato gerador do funcionamento do GGI foi o episódio ocorrido no Espírito Santo, envolvendo a morte de um juiz, que estaria
Gestão de políticas de segurança pública no Brasil:
problemas, impasses e desafios
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desvelando o crime organizado no estado, cuja participação de altas autoridades políticas parecia estar sendo provada (MJ, 2009).

10. Para informações estruturais e administrativas sobre os GGI existentes, ver pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2013).

11. Para contraposição a este argumento, ver Cerqueira, Lobão e Carvalho (2005).

12. Não responderam ao questionário de pesquisa, desenvolvido em conjunto pela Universidade de Brasília e a Secretaria Nacional de
Segurança Pública do Ministério da Justiça, os Estados de Alagoas, Espírito Santo, Maranhão, Paraíba e Roraima.

13. As áreas abordadas foram: segurança no trabalho, saúde ocupacional, Renaesp, direitos humanos, gestão financeira, gestão de
recursos humanos, políticas públicas e análise criminal.

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Gestão de políticas de segurança pública no brasil:
problemas, impasses e desafios
Artigos

Paula Rodriguez Ballesteros

Resumen Abstract
Gestão de políticas de segurança pública no Brasil:
problemas, impasses e desafios
Paula Rodriguez Ballesteros

Gestión de políticas de seguridad pública en Brasil: Managing public safety policies in Brazil: problems,
problemas, impases y desafíos deadlocks and challenges
El artículo se propone discutir las políticas de seguridad This paper presents a discussion on public safety policies
pública desde la perspectiva de la gestión pública, from the standpoint of public management. Two important
destacando, para ello, dos importantes aspectos: el de las aspects were highlighted: intergovernmental relations
relaciones intergubernamentales y el de la intersectorialidad. and intersectorality. The survey on the history of Brazilian
El historial institucional brasileño expuesto en el texto institutions presented in this paper suggested that the
demuestra que la estructura político-administrativa estatal government’s political and administrative structure and the
y la dinámica interorganizacional de la seguridad pública public safety interorganizational dynamics are both crucial
tienen importantes implicaciones para el éxito de las políticas for successful policies in this sector. The changes that have
del sector. Los cambios acaecidos en este escenario, a pesar occurred in the realm of public safety remain unstable, but
de no haberse consolidado, presentan un gran potencial de they have a great transformative potential. This, however,
transformación, pero dependen, sobre todo, de la capacidad relies on the ability and will of all stakeholders to strengthen
y voluntad de los actores involucrados en el área para these changes and permanently integrate them into public
que estos se vean fortalecidos e incorporados de forma safety management in Brazil.
permanente a la gestión de la seguridad pública en Brasil.
Keywords: public safety; public management;
Palabras clave: seguridad pública; gestión pública; intergovernmental relations; intersectorality.
relaciones intergubernamentales; intersectorialidad.

Data de recebimento: 21/11/2013


Data de aprovação: 26/02/2014

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