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Ensinar:: Do Mal-Entendido Ao Inesperado Da Transmissão
Ensinar:: Do Mal-Entendido Ao Inesperado Da Transmissão
ENSINAR :
ENSINAR:
DISSERTAÇÃO APRESENTADA NO
CURSO DE MESTRADO DA FaE-UFMG
COMO REQUISITO PARCIAL Á
OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE
EM EDUCAÇÃO.
BELO HORIZONTE
1996
Dissertação apresentada ao curso de mestrado da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Educação.
Banca examinadora constituída pelos professores:
_________________________________________________________________
CÉLIO GARCIA
___________________________________________________________________
CYNTHIA GREIVE VEIGA
____________________________________________________________________
ELIANE MARTA SANTOS TEIXEIRA LOPES
Orientadora
João Batista de Mendonça Filho
Ensinar:
1996
MENDONÇA FILHO, João Batista
ENSINAR: DO MAL-ENTENDIDO AO INESPERADO
DATRANSMISSÃO.— Belo Horizonte : FaE / UFMG, 1996.
148 p.
CDD 370.15
As Primeiras Palavras - “Uma Simples Lembrança”
quem reconheço uma verdadeira filia no trabalho com o saber figurassem aqui como um
É por esse motivo que resolvi torná-los parte integrante do meu texto, mesmo porque
eles não poderiam ser situados de uma outra forma. Afinal, muito do que escrevi surgiu
após discussões, conversas, aulas, com esses “outros”, e, na realidade, perdi a conta de
escrita de uma dissertação é um ato solitário, mas, por oposição, a sua produção é um ato
conhecimento, como sendo a do ermitão que se trancafia em sua caverna com seus livros,
produção do conhecimento é algo que exige circulação — ou será que ainda existe quem
que falta ... uma nova obra a ser pesquisada, o conhecimento da posição de um outro
O subtítulo deste texto, “uma simples lembrança”, eu o retirei de uma dedicatória feita
para mim por uma professora do curso primário. Se não foi minha primeira professora,
também não foi a última daquele período de escolarização; na verdade foi a do segundo
ano, mas foi a que marcou. Para mim ela ficou como “Dona” Marília, pois não me
recordo do sobrenome. Quanto ao “Dona”, bem, era assim que nos anos sessenta nos
livros também — lá encontro uma autora chamada Vírginia Lefrève que escreveu um
livro intitulado “A Conquista do Mar Oceano”. Muito mais do que a obra em si, o que me
vem à lembrança é uma professora da rede pública que, por um motivo qualquer, que
nunca saberei muito bem precisar, resolveu presentear um ex-aluno em sua primeira
estudos.
palavras desta dissertação, o gesto de Marília não poderia passar desapercebido, mesmo
porque ele mostra de modo muito claro tudo aquilo que pode ser entendido como
transmissão, uma vez que se situa para além do informar. Dona Marília, é claro, não foi a
extensão, no universo do saber, mas é por seu intermédio que faço aqui uma justa
homenagem a todos aqueles que, em meu percurso escolar, ocuparam o lugar “d’aquele
que ensina”.
dizer deve ser levado às últimas conseqüências. Estudar, escrever, produzir, enfim, a
transmissão não é algo que tenha um lugar ou uma hora específica para acontecer.
Quantas vezes as idéias nos ocorrem nas horas e nos lugares mais inesperados? A escola
não pode sob nenhuma forma ser restringida a um espaço físico seja ele o do Grupo, o do
supetão, e invade-nos quando estamos vivendo uma situação que, a princípio, parece
cinema, ao teatro, a uma exposição, ou quando lemos uma boa obra da literatura. Porém,
para que isso ocorra, uma condição me parece essencial — além de obviamente ter
acesso a eles —, é preciso falar sobre esses eventos. Quando a fala e a interrogação se
fecham sob a justificativa de que não é nem o momento, nem o lugar, o que poderia ter
transmitir também tem a ver com essa irrupção da desobediência à ordem, com o ousar
propor uma nova interpretação para o que já se apresenta como totalmente significado.
Nesse aspecto, gostaria de agradecer à minha mãe pelo que ela me possibilitou, tanto em
dedicação, o incentivo e o empenho em relação aos meus estudos. Além do mais, como
uma mãe que espera o bem de seu filho, ela não deixou de figurar para mim como uma
lugar do inesperado, não tenho como deixar de agradecer a meus amigos e amigas, que
me dispenso aqui de citar, dada a confiança de que neste lugar eles e elas se reconheçam.
Esses outros e outras, alguns que me acompanham desde o início de minha vida escolar,
outros que chegaram mais tarde, com os quais compartilho sucessos e fracassos, e que me
ajudaram, muito, na produção desta dissertação. Cada um à sua maneira, com o seu jeito.
que tive de adiar ou a que faltei por dever me dedicar a esta escrita. A amizade é
por laços sangüíneos, e constrói esses mesmos laços com aqueles que não os possuem
desde o princípio. Quantas vezes esses “outros”, com formação muito diferente daquela a
melhor dizendo, amigos que produzem o ambiente para o trabalho. Aqueles que, na
realidade, possibilitaram, muitas vezes, que o texto fosse escrito, aqueles que
localizaram uma obra que, embora estritamente necessária, ou era inédita ou ainda não
tinha sido traduzida, e se dispunham a me emprestá-la. Há também aqueles que, em seus
“olha esse texto vai te interessar”. Outros, ainda permitiram que eu assistisse às suas
aulas: será possível maior intimidade do que compartilhar um momento em que alguém
expõe o seu saber? Neste momento quero agradecer, aqui nominalmente, ao Wellerson
Durães Alkmim, ao Jurandir Freire Costa, ao Francisco Paes Barreto, ao Antônio Pereira
dos Santos, ao Sérgio Augusto Chagas Laia, ao Ram Mandil, à Lícia M. Dias, à Jeanne
D’Arc Carvalho. De um modo muito especial, quero agradecer à Yara D’Alva Simão,
que além de partilhar dessa filia pelo saber, se dispôs a realizar a leitura dos originais,
contribuindo em muito na direção tomada pelo que veio a se constituir como esta
dissertação.
Um outro agradecimento nominal também deve ser registrado aqui, pois para que eu
daqueles que dirigiam e/ou dirigem as instituições em que trabalho. Produzir uma
dissertação requer uma dedicação que muitas vezes nos furta o tempo quando
deveríamos, por força de uma obrigação contratual, estar realizando um outro tipo de
atividade. O que posso dizer é que tive a sorte de encontrar diretores que nunca me
relação à Escola de Saúde de Minas Gerais, a Mariana Lúcia Tavares e Eunice Godoy
Quanto ao ambiente acadêmico, dizer que a transmissão não ocorre apenas nele é
sobretudo, reconhecer sua função de “pôr a trabalho”, sem isso não teríamos um ponto
em que todas essas idéias pudessem ser discutidas e avaliadas com o rigor que se faz
necessário. Sobre a relação da escola com a transmissão, ela me parece evidente;
contudo, tenho a impressão de que às vezes escapa à Educação que a verdadeira aula é da
ordem do único, ela se constitui não apenas naquele que designamos como professor,
mas também no modo como os alunos nela se situam. E não terei pudor em dizer que
muito aprendi com os outros, alunos como eu, nas chamadas conversas paralelas. Esse
que está sendo dito, convidar para dividir com todos o que está sendo falado, para que ele
seja totalmente dissipado. Creio que, às vezes, para apreender é necessário o segredo, o
compartilhar a cumplicidade de uma fala que ainda não está preparada para ser tornada
totalmente pública. A todos que participaram comigo dessa experiência, nas mais
posição d’aquele que ensina —, o contato com as teorias da educação foi para mim uma
novidade. Sentia isso quando da discussão com colegas que advinham da pedagogia; a
defasagem entre o meu conhecimento acumulado sobre educação e o deles era enorme.
por sua criteriosa e cuidadosa revisão de todo o texto, bem como, oportunas sugestões
de relações que constituem, na realidade, o traço sob o qual essa dissertação é desenhada.
A primeira delas é a relação com a minha orientadora. Orientar não é tarefa fácil. Existe
naquele que se dispõe a ocupar esse lugar uma disponibilidade que nem sempre é
reconhecida pelo orientando. A impressão que tenho — pois como esse lugar eu não o
ocupo, o que dele posso ter é uma impressão — é de que o orientador busca sustentar um
autor. Além disso, o orientando já chega com uma escolha, mesmo que ela seja
apresentada de uma forma meio dissimulada. Creio que todos nós, candidatos a
orientandos, chegamos com uma enunciação do tipo: “quero trabalhar tal assunto,
gostaria que você me orientasse”. Quer o orientador saiba ou não disso, ele já representa,
para nós orientandos, uma crença; a de que ele é capaz de tornar em pesquisa, em matéria
passar para o orientador esse anseio e, às vezes, esperamos que ele arque com o ônus da
Porém, minha relação com minha orientadora foi um espaço de construção, não
Escolástica, mas o da criação de uma relação de um para com o outro enlaçada pelo amor
psicanálise, a literatura, a música, e outros tantos temas que, não estando explícitos nesta
dissertação, são dela partes integrantes e sem os quais ela não teria sido concluída. Uma
relação que nos possibilitou a vivência da intimidade que só atingem aqueles que são
capazes de reconhecer a legitimidade do trabalho do outro, não sendo por acaso que ela é
Existe um ditado popular que denuncia como tolo aquele que empresta um livro. A
relação que tenho com minha orientadora faz dela uma exceção a esse dito, pois, afinal,
com todas as marcas de leitura já realizada. É podendo valer-me dessa intimidade que
posso aqui dizer, muito obrigado a você, Eliane Marta, e “como você sabe”, os motivos
de um agradecimento como este não são passíveis de serem totalmente enunciados em
uma escrita.
A segunda relação, a que finaliza estas primeiras palavras, é aquela que apresenta para
mim a verdade do amor, uma relação que contém fragmentos de todas as outras, mas que
se realiza como única. A você, Valéria Márcia, que nunca restringiu seu apoio a esta
concretização desta dissertação, explicito aqui o meu agradecimento, sabendo que mais
RESUMO 01
INTRODUÇÃO 02
ANEXO 126
BIBLIOGRAFIA 142
INTRODUÇÃO
que lhe deu origem, seja porque para escrever é preciso um motivo, seja porque gostaria
Assim, a temática principal que será desenvolvida, a transmissão, teve seu início em uma
em buscar, nas teorias psicológicas, uma base em que assentar a divisão entre
normalidade e anormalidade. Foi a partir de uma pergunta então colocada que, aos
poucos, fui tomando, meio que de viés, a direção de escrever sobre a transmissão.
Aquela pergunta foi meu motivo inicial e não aparece em nenhum outro lugar no
texto. Dedico um espaço aqui para refletir sobre ela. Mais do que isso, estou expondo a
observação de que, freqüentemente, muitos desses trabalhos acabavam por produzir uma
análise sobre as teorias psicológicas, fosse para validá-las, fosse para refutá-las.
campo que já fora apropriadamente definido como sendo “um espaço de dispersão do
saber”1 poderia servir para a educação definir os seus critérios de normalidade? A partir
desta pergunta eu fiz meu Memorial; um registro escrito em que articulava a minha
prática na educação com esse incômodo. Incômodo que era fortemente sustentado pela
Foi assim que, naquele primeiro instante, eu interroguei a educação, sendo que nela
encontrei muitas outras formas de produzir uma resposta para tal. Em especial, deparei
prática de exclusão viabilizada pela representação ideológica que essas mesmas teorias
Psicanálise que de início era apenas um ponto de sustentação para a minha pergunta
saber que, em seu íntimo, guardava uma relação qualquer com a educação.
De repente - e após concluída esta dissertação tenho bons motivos para dizer que a
transmissão é algo que só se opera na forma do repente -, uma outra questão emergiu.
Maior do que o interesse pelos modos que a educação possa assumir para fazer valer um
interesse pelo que, afinal, é verdadeiramente apreendido pelo aluno quando exposto à
1
Nesse sentido confira:
GARCIA-ROZA, Luiz A. Psicologia um espaço de dispersão do saber. In: RÁDICE, revista de psicologia,
Ano 1, n°4, pp.20-26
2
Nesse sentido confira:
BADIOU, Alain. A Respeito das Verdades. In: JORNAL DO PSICÓLOGO, CRP 04, Belo Horizonte,
n.43, setembro-outubro 1993. suplemento e
FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1991.
3
Nesse aspecto da análise da psicologia como procedimento ideológico da exclusão, confira:
Costa, Dóris Anita Freire. Fracasso Escolar: Diferença ou Deficiência, Porto Alegre, Kuarup, 1993
ação daquele que ensina. Esse deslizamento de uma pergunta a outra não é difícil de ser
explicado.
pouco, que antes mesmo de serem interpretados em um quadro de referência seja social,
de o aluno aprender e, especialmente, de muitas vezes ser capaz de apreender algo muito
diferente daquilo que lhe foi ensinado pelo professor. Ao deparar com a existência dessa
condição, que traduzi como “o mal-entendido na educação”, atinei que minha primeira
pergunta colocava em evidência o que na realidade era efeito, mantendo a causa fora de
uma relação entre a Educação e a Psicanálise. Esta última contudo, colocava-me em uma
situação, digamos ... de risco. Michel De Certeau escreveu, como prefácio a um livro que
põe em jogo Psicanálise e educação4, que se trata de brincar com fogo5. Como brincar
sozinho é coisa bem pouco divertida, era preciso que existisse um encontro que criasse a
possibilidade do que era em princípio pergunta, vir a ganhar um corpo escrito para se
realizar em dissertação. Foi sob a égide desse arriscar que encontrei com e em minha
orientadora o aceite que só pode vir daquele que “topa” brincar, mesmo sabendo, ambos,
a resposta que o dito popular fornece para aqueles que se dispõem a brincar com fogo.
Porém, esse arriscar entre a Psicanálise e a Educação, mesmo que em uma vertente
composição com o governar, no que Freud estabeleceu como sendo as três profissões
impossíveis.6 Pensar a educação como impossível; esse foi o primeiro passo que dei na
direção de buscar alcançar um outro saber para a educação sobre a transmissão. E dele fiz
4
Refiro-me ao livro de CIFALI, Mireille. Freud Pédagogue, Paris, InterÉditions, 1982.
5
no original: Jouer avec le feu
6
FREUD, S. Análise terminável e interminável, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976. p.282
A aprovação do projeto pelo colegiado da pós-graduação da FaE/UFMG acabou por
revelar-me duas reações que julgo necessário aqui apresentar. A primeira foi a de
espanto: como é possível produzir o que quer que seja se já se toma como premissa
inicial que é impossível? A segunda foi a de aceitação. Apesar do espanto, foi de bom
grado que o parecer favorável a essa proposta de articulação foi dado. Essas reações, até
modo de explanação sobre a teoria que a Psicanálise faz do impossível para a educação,
pois em nada me interessava uma escrita hermética que mantivesse de fora todo aquele
que na Psicanálise não fosse iniciado. Procurei nunca perder de vista o fato de estar
entretanto, requer para si uma cautela bem medida. Isso porque se por um lado havia a
acessíveis a um leitor que poderia presumir como leigo, por outro eu não poderia
banalizar esses mesmos conceitos, e retirar deles exatamente a sua condição de operação.
questão. Aliás, de modo geral, essa aplicabilidade quando tentada não resulta em outra
efeito, procurei demarcar ao longo de todo o meu texto que não se achará nele uma
a medicina, nem a Psicologia lhe serviram como modelo. A criação da associação livre
como o método de operação de uma clínica, para utilizar apenas um exemplo, não
servir como um ponto de referência para a reflexão da Educação sobre aquilo que nela
Assim, que não seja aguardada aqui, a elaboração ou a indicação de um novo método
Que tal certeza, entretanto, não desperte no leitor uma impressão de impotência. A
Psicanálise, nesse aspecto, é um bom exemplo, uma vez que estando exposta a essa
mesma condição, nunca fez dela justificativa para a recusa de sua validade ou de sua
veiculação da informação.
A admissão de que existe uma diferença entre o transmitir e o informar foi o ponto de
partida de todo este trabalho. Como já disse, se existe um axioma em Educação, este é a
7
Vale lembrar aqui que uma reta quando paralela a uma outra só terá em comum com esta um ponto no
infinito.
∗
É interessante observar que “o como ensinar” é, simultaneamente, o que mais se repete e o que jamais se
repete na educação.
constatação de que o aluno aprende com o professor. Mas afinal, o que é que o aluno
de dados? Creio que nenhum educador concorde com isso, pois a enorme importância
humanidade demonstra que ela é bem mais que um mero processo informativo. É claro
que todos sentem necessidade de deter certas informações que venham possibilitar a
interação com a sociedade, com a cultura, com o trabalho, etc. Mas, mesmo que a
Educação que pode ser sintetizado como sendo o de levar à produção de uma relação com
informar.
situação, e fazer com que a mensagem emitida pelo professor possa ser recebida pelo
aluno com a menor perda possível. Porém, quando essa situação ideal não se (re)produz
qual o “eu” nada sabe, não sujeito a controle, é ainda tomada como estranha no campo
inconsciência; algo que, em última instância, possa ser convertido em consciência. Tal
desvio mantém de fora toda e qualquer possibilidade de interlocução entre Psicanálise e
Educação, o que significa dizer que muito do que os educadores têm referido como
Educação diante da ocorrência de um saber que não sabe de si, um saber que, mesmo
sendo estranho ao eu, sustenta o verdadeiro desejo tanto de aprender quanto de ensinar.
Assim, mesmo que a educação consiga alcançar êxito sobre a aquisição do conhecimento
pelo viés da informação, escapa-lhe o pensar a transmissão pela via de um saber que não
se sabe.
Mas será o Inconsciente capaz de ensinar? A tentativa de construir uma resposta para
quando apresentada pela Psicanálise, ou pela teoria da comunicação. Para alcançar esse
do jogo que se estabelece entre um autor e seu leitor. A idéia em torno da qual a
do autor, em outras palavras, a de que o verdadeiro ensino é aquele que ensina com o ser.
Um caminho trilhado pela Psicanálise que teve nos poetas e nos escritores seus
Ao admitir que a transmissão é mais do que veicular informação e, além disso, que ela
ocorre por uma vertente que escapa ao saber consciente — o saber que sabe de si —,
pensado como um sujeito dividido, um sujeito que não corresponde ao que é estabelecido
acúmulo de saber por si só não torna ninguém menos ou mais apto para ensinar, já que a
transmissão pode ocorrer por uma via que escapa à própria consciência. Reapresento,
assim, o pensamento de Freud, exposto em O Interesse Científico da Psicanálise8, de
que só pode ensinar aquele que está capacitado a entrar na alma de seu aluno.
Ao desenvolver tal temática, fui tendo, paralelamente, minha atenção despertada para
a diversidade de nomes que utilizamos para designar aquele que ensina. Assim, fui
ficando intrigado sobre qual seria o motivo que nos leva a referir àquele que ensina como
mestre, professor, lente, tia, docente, preceptor e outras palavras, comportando-nos como
Entretanto, o uso cotidiano desses termos guarda uma diferença intrínseca. Diferença
expressa muitas vezes através de uma forma hierárquica, que coloca uma distancia entre
aquele que é professor e aquele que se limita a ser professor. Por outro lado, questionava
a dualidade existente entre aquele que ensina com o ser e aquele que ensina por ser
licenciado.
surgimento dessa prática não estaria de algum modo relacionada com a existência dos
diversos nomes daquele que ensina. A pesquisa realizada levou-me à Idade Média, à
Escolástica, deparei não apenas com uma outra formulação para o que é ensinar, mas
também encontrei uma série de fragmentos que permaneceram desde aquele período até a
forma de ensino Escolástica, e que continuam a habitar a educação, mesmo que esta
tenha assumido, nos últimos tempos, um caráter cada vez mais laico.
8
Confira: FREUD, S. O Interesse Científico da Psicanálise, Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de S. Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
Foi ao examinar essa herança que pude finalmente perceber que a variedade de nomes
para aquele que ensina está imbricada como uma mudança na forma como era percebida,
praticada e executada a função de ensinar. Mudança que atingirá seu ápice a partir do
muita facilidade. O fato é que a instauração das universidades, a partir do século XIII,
nessas instituições, ele já encontra pronto esse modelo do ensinar; com isso a estrutura
O mesmo, entretanto, não é possível ser dito em relação aos conteúdos que passam a
ser ensinados e à metodologia utilizada. Para estudar a relação desses conteúdos e dessa
nova metodologia com a transmissão, recorri a dois autores que podem ser considerados
dois autores. A modulação do ensinar vai desse modo ganhando um contorno que será
possibilidade de o aluno aprender como um errante vai sendo esquecida, já que o erro
nela pensada a idéia do ofício impossível. Assim, enquanto Freud leva a sério o bon mot
que diz ser o educar, o governar e o curar profissões impossíveis, acreditando estar aí um
pensamento sobre a transmissão ganha uma única versão: a de que transmitir é acumular
informações. As outras versões para o acontecimento da transmissão são atiradas fora, e
Por maior que tenha sido o esforço da educação em alcançar a aniquilação do mal-
produzir uma explicação racional para ele. A Educação torna-se cada vez mais técnica,
Uma vez realizado esse percurso ao longo das origens da moderna educação, comecei
independente do método de ensino. Essa idéia ficou clara quando, ao recuar um pouco
transmissão não apenas existia, como era teorizada de uma forma bastante diversa da
atual. Naquele modelo, o otium preparava para o aprender e o amor determinava a forma
Psicanálise, que fez dela “grado” para organizar o conjunto de analistas, resolvi
investigar sob quais formas a moderna educação vem tratando a relação entre o amor e o
O material que serviu de entrada para a discussão da relação acima citada foi a
seja em relação a seu aluno, seja em relação à sua profissão. De forma bastante diversa
da Psicanálise, que define a relação com o saber como uma relação amorosa, a Educação
dedicou toda uma forma de discurso amoroso, principalmente aquela que foi produzida
pela Escola Nova, para velar essa mesma relação, de modo que, tanto o discurso
religioso quanto o discurso científico acabaram por “executar” uma única função: a de
A relação entre o amor (Eros) e o saber é algo que escapa aos modernos preceitos do
educar, que do amor só se tem valido na versão banalizante que produz a equivalência
entre o amor e o sexo. A perda da função do amor na transmissão provoca efeitos para o
universo educacional, sendo um dos mais marcantes aquele que sustenta a manutenção da
idéia de que, sendo o ensinar uma dádiva divina, não é justo que por seu exercício seja
ponto de amarração, uma forma de exposição que fosse capaz de alcançar a interligação
ensinar; assim, a escolha da literatura não foi sem motivo. Nesse aspecto, o texto de
desvios, o percurso traçado pela ocorrência da transmissão. O impacto desse achado foi
tão forte que resolvi manter o conto na íntegra e reproduzi-lo como anexo; sem dúvida, o
conto fala por si. Mas, sobretudo, ele me permitiu construir um espaço de demonstração
sobre a relação entre o amor, o saber e a transmissão que não conduzisse à proposição de
um novo método de educar, ou à terrível hipótese da aplicabilidade da Psicanálise à
Educação.
Enfim, este trabalho sobre a transmissão é uma tentativa de dizer das possibilidades de
tem sido pouco comum na Educação. Juntamente com outros trabalhos, este visa marcar
que, pelo contraste com um campo habitado essencialmente pela diferença ao educar, é
viável encontrar uma contribuição que possa apontar para a necessidade de serem
inventadas novas estratégias que conduzam para além da repetição de uma única
pergunta: como ensinar a ensinar? É por isso que esta dissertação se inicia pelos
acontecimento da transmissão, mas também no de dar uma direção que permita pensar as
causas e os efeitos dessas idéias, indicando que existe toda uma obra na educação a ser
SOBRE A TRANSMISSÃO
com tesouros.”(...)
Clarice Lispector
1.1 - Aprender ... Informar ... Transmitir
crítico sagaz que aponta uma direção inesperada como se quisesse deixar de ser um
outro para assumir ele próprio a autoria do escrito. Em outros momentos é um crítico
avassalador que destrói as idéias antes mesmo que elas ganhem o direito à existência no
papel. É ainda, às vezes, o censor rígido e cruel que faz a borracha retroceder sobre o
texto, apagando o que antes tinha se apresentado como promissor. Esse leitor, que
preexiste à sua materialidade, nomeado às vezes como alter ego — um outro Eu —, faz
com que um texto não seja o produto de uma atividade solitária, mas sim o de uma
aspecto, vencedora de uma batalha, já que foi ela a escolhida diante de tantas outras que
Todo esse processo faz que um escrito público — o que significa que ele deixou de
pertencer a um autor para estar disponível a todos — seja sempre o resto das frases que
mesmo admitir que uma parte interessante de um texto nunca irá ao público, pois
permanecerá como reminiscência. Palavras borradas nos rascunhos que, após terem
cumprido sua função na gênese do escrito, foram deixadas à margem para que o "texto"
pudesse existir. Caso contrário, a escrita de um único texto seria um trabalho de Sísifo.
Os escritores, de tanto se pronunciarem sobre isso, tornaram gasta a metáfora que funde o
o ponto de basta do autor, o momento em que ele, não suportando mais a cumplicidade e
Michelangelo, ele espera que sua obra fale. Expectativa frustrada, pois que a escrita e a
fala ocupam posições distintas no uso que delas fazem escritores e falantes. Diferente dos
não admite ensaios e isso a torna sempre uma obra inacabada; "(...) a escrita começa
no ponto em que a fala se torna impossível (pode-se entender esta palavra: como
Por conter parte desse "inacabado", toda obra escrita é, desde o início de sua
produção, um "jogo" de ideais. Sem isso ela incorreria no risco de que seu entendimento
transforme em uma idiossincrasia, um autor nunca escreve para o seu leitor empírico,
mas para um leitor modelo, "uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê
como colaborador, mas ainda procura criar" ( ECO, 1994. p.15). Correspondendo,
ideal.
Assim, mesmo que escrita e fala ocupem "lugares" diferentes, elas possuem um ponto
proponho tomar a transmissão como objeto de dissertação é nesse topos que a localizo,
nesse entre um e outro e, sobretudo, no elemento que constrói a ligação desse entre: a
linguagem. Nada mais justo então ao iniciar uma primeira aproximação sobre a questão
da transmissão, que ela proceda, desde sua inauguração, apresentando como "enigma" a
nossa língua, com o significado de "mandar de um lugar para outro, ou de uma pessoa
para outra; expedir, enviar (grifo meu)9" O uso revela que uma simplificação é operada à
medida que fazemos equivaler transmitir a enviar, desprezando a existência desse para
além contido na montagem da palavra transmitir. Mas que sentido pode ser atribuído a
esse para além de? De que modo o transmitir se diferencia significativamente do enviar ?
deslocamento. Já transmitir não diz respeito a um objeto ou uma pessoa, mas a uma
operação de passagem de um para outro. A diferença entre transmitir e enviar fica nítida
se empregarmos as duas palavras em uma única frase, por exemplo: "O rei enviou seus
arautos a todas as cidades do reino para que eles transmitissem as boas novas ao povo"
Assim, enquanto o enviar refere-se aos arautos que são deslocados de cidade em cidade,
cumprindo as ordens reais, na transmissão é o rei que fala através da boca de seus
9
FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 2
ed., Nova Fronteira, 1986.
10
"(...) o fenômeno é o elemento material do fato, puro dado sensível anterior a qualquer intervenção do
eu,"(...) (LALANDE,1993.P.395)
Toda essa intrincada rede para buscar alcançar uma significação para o transmitir nada
mais faz do que demonstrar a maneira pela qual as palavras e as coisas se relacionam.
Essa questão irá encontrar em Ferdinand De Saussure11 uma resolução, que mesmo não
sendo original — ela já se encontrava no De Magistro de Santo Agostinho —, produziu
lingüística, após Saussure, romperá com a idéia de que cada coisa evoca apenas uma
palavra específica para significá-la12. O signo lingüístico, constituído por uma relação
Como foi exposto, a transmissão é um fenômeno e não um fato, isso significa que sua
apreensão não pode ser realizada de um modo direto. As teorias sobre a informação e a
comunicação se processa.
13
11
Confira: SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral, São Paulo, 20ª Ed., Editora Cultrix, 1995.
12
"(...) Nesse sentido, cada elemento lingüístico provoca imagens de outros elementos, tanto na pessoa que
fala, quanto na que ouve. A palavra 'ensino' por exemplo, desperta associações como 'ensinar' , 'educação' ,
'aprendizagem', etc. Saussure chama essas associações de 'relações in absentia', pois elas vêm à tona na
ausência dos signos evocados." (VOGT,1985. p IX, X)
13
Extraído do Livro: PETERFALVI, Jean-Michel. Introdução à Psicolingüistica, Ed Cultrix, São Paulo,
1970. p.26.
É interessante observar que o lugar dado por esses autores à transmissão é o da
aptos a serem enviados pelo canal apropriado; por exemplo: a conversão de imagens em
comunicação, mas é insuficiente no que diz respeito à comunicação entre dois seres
falantes. Coube então à Psicolingüística adaptar tal esquema para aplicá-lo aos
14
Nessa nova forma, o indivíduo funciona como uma "unidade de comunicação" que
transmissão é o produto daquilo que o sujeito quer dizer. Quanto à decodificação, esta
ocorrerá mediante a quantidade de informação necessária para que possa ser produzida.
Se alguém diz: go away, mas quem escuta não fala inglês, o imperativo de quem fala não
poderá ser entendido e, consequentemente, executado. A partir desse esquema básico, foi
desenvolvida uma série de outros, como o de Mowrer e Osgood, que explicam relações
sido, desde então, muito usados pela psicologia, educação, marketing, etc.
14
Idem, Ibidem, p.26
Esse esquema, porém, apresenta um problema crucial que deve ser abordado. É o fato
que a transmissão se realizaria — quase — em plenitude. Isso só seria possível sob duas
diz o que ele realmente quer), e segundo, que a significação fosse alcançada de modo
questionamento sobre a verdade. Verdade entendida aqui como o que está além dos
paradigmas, aquilo que tenta demonstrar o real. Mas será possível pensar a transmissão a
Para buscar essa outra possibilidade, a primeira alternativa que se apresenta é partir da
negação das duas condições previamente apresentadas, isto é: que o Eu não corresponda
à razão, e que a significação não se dê de modo pleno. Àqueles que possuem algum saber
nessa área não terão dificuldade em reconhecer que aí se adentra pelo viés da Psicanálise.
Dentre as várias formas possíveis de definir esse saber, recorro a uma que advém do
Freud, insere uma ruptura crucial no pensamento cartesiano, pois o Eu não tem mais a
15
Confira: FREUD, S. Uma Dificuldade No Caminho da Psicanálise, ESB das Obras Completas de S.
Freud, Vol XVII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
Assim, o pensar e o "eu" ocupam lugares dissimétricos, se penso onde não sou, por
não é uma sombra que repousando no inferno possa dele ser retirada, por um trabalho
A Psicanálise não apresenta o Eu como idêntico ao Ser, mas como cindido, posto que
possui uma parte que ele próprio não conhece. A razão de si não assegura nada mais além
significar. O saber de si então ganha novos contornos, uma vez que ele é construído a
e o sujeito não pode ser mais concebido a não ser como um sujeito cindido.
pleno, pois o Inconsciente não pode ser reduzido em sua totalidade à razão,
permanecendo sempre como um resto impossível de ser dito, mas que entretanto, quer
sempre dizer algo. Ponto de encontro entre a palavra e o ser que só pode ser caracterizado
16
No sentido de Logos
pela falta. A palavra não consegue dizer a totalidade da coisa, e o eu não consegue dizer a
totalidade do desejo. Essa lacuna levará ao enunciado de uma incessante significação que
"quer dizer" que nunca se realizará em sua essência, posto que esta é, para sempre,
vazia.17
O que dizer então da transmissão a partir da Psicanálise? A priori, diria que ela deve
pensa pela codificação. Enquanto o codificar implica a produção de um código que pode
ser restaurado em sua forma original desde que se possua o crivo adequado, a decifração
diferença entre uma e outra não seja tão aparente à primeira vista; nesse caso, é
importante que aqui se detenha um pouco mais para tentar explicitar mais essa
dessemelhança.
uma idéia. Por exemplo, podemos atribuir ao desenho de três linhas onduladas a idéia de
água, rio ou mar. Mesmo quando um código refere-se a letras, como o código Morse, é a
idéia da letra que os sinais expressam e não a letra em si; três sinais longos representam a
significa que o som da nota que está à sua direita será elevado em um semitom.
Podemos concluir então que enquanto o código busca manter intacta a possibilidade da
famosa Pedra Roseta, de imediato surge a expectativa de que os hieróglifos pudessem ser
com isso que a escrita egípcia não era ideográfica e sim fonética. Em síntese, só
conseguimos saber mais sobre o tempo dos faraós quando lhe restituímos, através de sua
Isso remete-nos a uma pergunta: Quando lemos um livro ou ouvimos uma aula,
por demais esse fenômeno, e a Psicanálise surge, então, como uma teoria para a qual a
transmissão não deve ser pensada fora da sua relação com a decifração ou, dito de outra
forma, da interpretação.
No início deste escrito marquei com certa insistência a existência de um outro que
referi que para a Psicanálise o Inconsciente se processa como um saber do qual o "eu"
consciente nada sabe. Tomando agora como ponto de partida que "não existe
manifesta como um Outro que, enviando cifras ao nosso consciente, nos remete,
próprio desejo.
O que daí podemos deduzir é que quando falamos para alguém não enviamos apenas
uma mensagem que esperamos esse outro possa decodificar, mas, sobretudo, enunciamos
uma demanda de que esse outro nos responda o que nós próprios desejamos. O cotidiano
— É sempre assim, você nunca tem uma idéia dessas. Agora eu não quero mais.
Mas de onde vem essa radical impossibilidade de expressar com precisão o que se
quer? Freud nos dá a resposta quando diz que o desejo é a tentativa de restabelecer a
situação de uma primeira satisfação. Entretanto, acrescenta que essa experiência não tem
como ser reconstituída. Tomemos o exemplo que Freud fornece para essa explicação:
Um bebê após nascer se vê invadido por uma desconfortável sensação da qual não possui
nenhuma vivência prévia, e a única forma possível de expressar esse desprazer é o choro.
a esse ruído um sentido. É o que ela faz à medida que o interpreta como fome. Sua ação
bem que poderá ser a de amamentar o infante que chora. Realizado esse ato, a criança
Entretanto, não há como repetir de modo idêntico um original. Qualquer tentativa que
aí se faça não produzirá outra coisa que não seja cópia. Mas, se como coloca Freud, "um
desejo"(Ibid. p.603), temos de concluir que o desejo visa a um objeto ao qual só somos
capazes de nos referir por sua ausência, dada a impossibilidade de reeditá-lo na condição
objeto real, mas a um objeto produzido pela ausência de semelhança, isto é, um vazio.
alguém. É por isso que a mulher do exemplo diz ao marido que ela espera que ele saiba e,
simultaneamente, nega o que ele lhe propõe. Com efeito, apenas ela poderá dizer de seu
próprio desejo, mas o toma como estranho a si, buscando no marido, nesse outro, uma
resposta que ele jamais lhe poderá dar. A esse amor que busca um saber do desejo, a
Psicanálise o nomeia como transferência. Fonte irredutível do equívoco, que faz cada um
pedir ao outro que lhe atenda, que lhe forneça esse algo de si sem o qual ele não pode
viver e que ele supõe ser possuído pelo outro. Pedido (demanda) que não se faz a não ser
relação se realiza no outro. Esse outro, tomado como o complemento, "a outra metade da
fruta", faz cessar a interrogação no sujeito, pois a substitui por um ponto de exclamação:
Eu sei o que você quer! Mas a relação de completude não se sustenta pela eternidade e
para além do amor há o desejo. A manutenção incessante de um enigma que por não se
completar faz com que o Inconsciente insista. A transmissão em Psicanálise deve então
ser procurada nesse percurso, nessa mudança de um amar o suposto saber de si no outro,
que não sabe de si, como fica então a consciência ? Qual o lugar do "Eu"? Essa dupla
pergunta já revela, por antecipação, que os dois não estão no mesmo lugar. O tão falado
lugar ao qual é necessário mais uma vez retornar, posto que é nele que está situada a
Aliás, em 1920 Freud já escrevia a O. Pfister sobre sua preocupação com "a diluição" da
Psicanálise,
"(...) C'est vrai, la cause progresse partout, mais vous semblez
surestimer la joie que j'en retire. La satisfaction personnelle que l'analyse
peut procurer, j'en ai joui au temps où j'étais seul; et depuis que d'autres
se sont joints à moi, j'ai eu plus de soucis que de joies. La manière dont
les gens admettent l'analyse et l'utilisent ne m'a a pas donné d'eux une
autre opinion que leur comportement, quand ils la récusaient sans la
comprendre. Il faut croire qu'à cette époque une brèche irréparable s'est
18
creusée entre les autres et moi." (FREUD,199. p.124)
Tais constatações não foram sem sentido. Infelizmente ainda existem aqueles que
querem impingir à Psicanálise o caráter de uma teoria do desocultamento, da
assimilação ao eu de uma parte estranha a ele. Professores que não se cansam em afirmar
Sobre essa questão, duas observações. Primeiro, os termos Ego, Id e Superego não são da
autoria de Freud, mas uma contingência da tradução das obras freudianas para a língua
inglesa — o que não é feito sem a ressalva do tradutor19. E segundo, a escolha de
pronomes de uma língua morta, o latim, em detrimento de suas formas mais semelhantes
em nosso idioma — Eu, Isso, SuperEu —, acabou por derivar uma supra-substância a
em Freud não mais é equivalente ao Ser. Essa equivalência é uma dedução imediata do
cogito cartesiano;
"(...) Mas logo após percebi que, quando pensava que tudo era falso,
necessário se tornava que eu — eu que pensava — era alguma cousa, e
notando que esta verdade — penso, logo existo — era tão firme e tão
certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram
capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la como primeiro princípio
da filosofia que procurava."(DESCARTES, 1990. p.86)
18
"É certo que a causa ganha terreno por toda a parte, mas você parece exagerar demasiado a alegria que
daí tiro. Toda a satisfação pessoal que a análise pode de fato proporcionar tive-a já no momento em que
estava só; a partir do momento em que outros se juntaram a mim, tive mais ocasiões de preocupação do que
de alegria. A forma de as pessoas assumirem a psicanálise e dela se servirem não me deu melhor opinião
delas do que o seu comportamento de outrora, quando a rejeitavam sem a compreender. Tenho razões para
acreditar que um fosso irreparável se cavou então entre os outros e eu."
19
Sobre a tradução desses três termos ver a Introdução do Editor Inglês, James Strachey, em "O Ego e o
Id", Edição Sandard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago Editora.
Portanto, para Descartes é a consciência que fornece ao Eu o sentido da existência,
Pensar o Inconsciente como algo que está fora da consciência ou como não
pertencente ao Eu, mas que deve ser reintegrado a ela ou a ele é manter intacta a premissa
de perder sua unicidade? Tal perda só se sustenta se pensarmos que o eu, a consciência,
está escrito: "WO ES WAR, SOLL ICH WERDEN ". A tradução inglesa, entretanto,
confere um caráter substantivo aos pronomes Es e Ich — "Where the id was, there the
ego shall be" (grifo meu). O que resulta na tradução brasileira — realizada a partir do
inglês — em " Onde estava o id, ali estará o ego." (FREUD,1976b. p.102) Diante
Psicoanálisis irá indagar sobre esse acréscimo da tradução que conduz ao entendimento
da alteração de substância — o id que se transforma em ego —, para retornar à idéia de
Inconsciente.
A inovação da Psicanálise é que a partir dela não há como identificar o eu com o lugar
da verdade, posto que ele não conhece o sujeito que a enuncia. É de um eu, produto da
imagem que se tem de si, que a Psicanálise se referencia quando diz de um ego. Não se
trata de uma dualidade entre o bem e o mal à maneira de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, mas da
relação de um eu construído a partir de uma imagem fornecida por um semelhante, um
outro (com "o" minúsculo), e um sujeito que o atropela com uma fala que lhe é estranha
e que aponta para o lugar de um Outro (com "o" maiúsculo); a ordem simbólica do
individuo, é que instaura a palavra como mediadora do desejo. O Inconsciente que aí está
subconsciente; ele instaura uma ordem do particular em que cada um está colocado diante
Mas, em que sentido a demarcação de uma ruptura entre o sujeito e o eu pode vir a
idéia fundamental de toda essa articulação requer, como condição "sine qua non", que um
receptor seja capaz de recompor na íntegra a mensagem que lhe é enviada. O que é,
evidentemente, verdadeiro. Se pergunto, em uma cidade estranha a mim, como faço para
chegar ao centro, espero uma resposta que me conduza ao lugar esperado. Quando um
professor de geografia, por exemplo, dá uma aula sobre os recursos minerais do Brasil,
ele transmite uma série de dados sobre o relevo, o clima, a população, as atividades
formas mais precisas ao emissor para que este possa atingir o receptor. Nesse espaço, a
condição essencial para que a transmissão possa ser processada, de modo que a ênfase da
Tal concepção tem sido, sobretudo na última década, o enfoque privilegiado para a
ideais que sustentam a teoria da comunicação desde seu inicio e, queiramos ou não, é
hoje uma realidade que não pode ser desprezada em seus efeitos. É interessante que nesse
momento sejam retomadas as teses de Hebert Marshall McLuhan, trinta e cinco anos
após sua divulgação. Se, por um lado, a idéia da aldeia global nunca esteve tão próxima
quanto nesse lustro final do século, por outro, encontramos no livro Mutações Em
seguinte comentário:
"Não basta, como supõem os devotos da comunicação de massa, saturar
o ambiente de informação: se o aluno não estiver mobilizado para recebê-
la é como se a informação não existisse... Um banquete não estimula o
apetite se o indivíduo não estiver com fome."(LIMA,1976. p.37)
que ultrapassam o limite dessas teorias. Assim, será que o professor do exemplo não diz
a seus alunos mais do que apenas os dados sobre recursos minerais? Afinal, o querer que
o aluno aprenda já é mais alguma coisa. Além disso, não desejaria ele também dizer
alguma coisa a mais, talvez expressar algo que nem mesmo o seu "eu" saiba?
Mas que efeito esse "algo" pode causar na transmissão? Certamente não seria da
ordem do ruído. Pois se assim fosse, tal acontecimento seria sujeito às normas de redução
utilização da linguagem de uma forma assertiva. Uma pista para a explicação desse efeito
Palavra interessante essa “quer” da nossa língua; às vezes é conjunção, outras vezes é
o verbo advindo do latim quaerere. No primeiro uso expressa uma condição alternativa,
ambos o "quer" se conjuga com o desejo, pois de modo simultâneo marca a necessidade
permanecerá não entendido — "quer dizer" diz sempre que algo em relação ao outro
sentido é demarcado pelo ouvinte, podemos concluir que a questão da transmissão não
nos faz dizer aos outros coisas que bem poderíamos estar sozinhos para dizê-las.
Todo o escrito até aqui realizado não teve por objeto outra questão que não fosse a de
demarcar a transmissão como um fenômeno que não pode ser pensado exclusivamente
plenitude tanto para quem fala, quanto para quem escuta. O percurso já realizado indica
que para tentar formalizar um dizer sobre ela é necessário que se recorra, mesmo que
Nesse sentido, tomarei aqui uma dessas oposições que apenas posteriormente se
revelam como tal. Refiro-me ao ato de ler e ao ato de aprender. Creio que em um
intitulado Sobre a Leitura, Roland Barthes escreve: "Não falo pois das leituras
aprender, os alunos dedicam horas, pelo menos isto é o esperado, na leitura de textos
didáticos e, quando finalmente apreendem, surge Barthes a nos dizer, sem a menor
cerimônia, que nesse processo o ato da leitura desapareceu! E pior! Ele não está só
Manzoni, e sugerir sua leitura, observa: "Quase todos os italianos odeiam esse livro
deixa de indicar que, apesar de ter sido lido por uma maioria, a obra literária quando
colegiais".
Mas em que sentido essa desconcertante afirmação pode acrescentar algo à idéia de
transmissão? A resposta, por mais óbvia que seja, é de que acrescenta a partir do
Tomemos como exemplo um texto, ou melhor uma carta, uma missiva. A etimologia
revela então, um radical que nos é familiar: missus, o particípio passado de mittere. trata-
se do mesmo enviar (mittere) ao qual aglutinamos o trans para poder dizer transmitir, e
que está presente em outras tantas palavras como missa, missão, missionário, míssil.
Aliás, missiva advém do francês lettre missive o que, se por um lado resulta em
idéia de como se processa a transmissão por um escrito: enviar a letra. Podendo ainda
revelar um sentido mais ousado para esse mesmo processo como em l'être missive20.
20
Em um texto intitulado: “A instância da letra no Inconsciente ou a razão desde Freud, Jacques Lacan se
vale da Homofonia entre “la lettre, l’être e l’autre” para dizer, respectivamente, da letra, do ser e do outro.
Para preservar a homofonia, os tradutores do texto para língua portuguesa optaram por sacrificar o sentido
traduzindo essa parte do texto por: O ponto, o onto, o outro (LACAN,J. Escritos, Ed. Perspectiva,1978.
p.254). Já para o espanhol o tradutores optaram pela manutenção do sentido, traduzindo por: La letra, el ser
y el outro (LACAN,J. Escritos, Ed.Siglo Veintiuno,1984.p.505). Optei por manter o termo em francês para
preservar a homofonia e simultaneamente expressar a duplicidade de sentido que permite L’être missive:
enviar a letra, o ser, ao outro.
A partir daí, imaginemos a seguinte situação: Alguém que vive sob um regime de
governo totalitário deseja enviar uma carta a um amigo dizendo sobre a situação política
em que vive. Evidentemente, o autor sabe que sua correspondência será censurada, que
sua carta será aberta e lida por rigorosos censores. Claro, ele poderá escrever em código,
mas essa solução apresenta dois grandes inconvenientes. Primeiro, é necessário que seu
interlocutor possua a chave para restituir ao código seu sentido original e, segundo, se o
censor não for um idiota, ele terá sua imaginação despertada pelo non sense do código e
saberá, mesmo sem ser capaz de descobrir o sentido, que ali está contido algo "proibido".
A alternativa que restaria a nosso escritor seria a de tentar dizer da situação em que
vive através de uma forma que o destinatário fosse capaz de compreendê-la e o censor
não. Isto é, atribuir à carta um lugar que não seja o da ordem do apreendido. Na história
série de composições que ilustram bem esse exemplo. Existe algo nas chamadas músicas
de protesto, que obtiveram êxito em burlar a censura, que só é transmitido pela leitura,
pela letra, algo que só é sensível à escuta. Pode-se então supor, a partir de Barthes e Eco,
por indução, que assim como o apreender exclui o ler por sobreposição, do mesmo modo
Censura dos Sonhos. Ao falar sobre interpretação dos sonhos, com a finalidade de
esclarecer de que forma a censura modifica o desejo produtor do sonho, ele escreve o
seguinte :
(...)"Nos dias atuais, não é preciso ir longe. Tomem qualquer jornal
político e verificarão que aqui e ali o texto está ausente e, em seu lugar,
não se vê nada mais que papel em branco. Isto, como sabem, é obra da
censura da imprensa. Nos espaços vazios havia algo que não agradou às
autoridades superiores da censura, e por este motivo foi removido (...)"
"Noutras ocasiões a censura não funcionou em uma passagem depois
de esta já estar pronta. O autor viu com antecedência quais as
passagens que se podia esperar suscitassem objeções da censura e, por
esta causa, antecipadamente moderou o tom das mesmas, modificou-as
ligeiramente ou se contentou com aproximações ou alusões àquilo que
originalmente teria fluído de sua pena."(...) (FREUD,1976a. pp 168-169)
Freud ainda ressalta a existência de uma terceira forma de ação da censura para a qual
essa analogia não é válida. Trata-se da produção de uma nova forma de agrupamento do
material onírico na qual a ênfase é retirada dos pontos essenciais e deslocada para outros
elementos de modo que "com esse novo agrupamento dos elementos de conteúdo,
o sonho manifesto ficou tão diferente dos pensamentos oníricos latentes, que
pelo "subjetivo" seria atenuado, ou mesmo excluído, desde que emissor e receptor se
"Eu". Dito de outra forma, o Inconsciente é o que o "Eu" censura para, por meio dessa
Em síntese, o "Eu" não conhece outra realidade, interna ou externa, que não aquela
21
(...) "Podemos definir trabalho de metabolização como a função pela qual um elemento
heterogêneo à estrutura celular é rejeitado ou, ao contrário, transformado num material que se
torna a ela homogêneo. Esta definição pode se aplicar rigorosamente ao trabalho que efetua a
pisque, com uma única diferença: neste caso, o elemento absorvido e metabolizado não é um
corpo físico, mas um elemento de informação."
AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação - do pictograma ao enunciado, Rio de Janeiro,
Imago editora, 1979. p.27
produzida dentro de seu próprio esquema relacional como inteligível. Tal condição
quer dizer. Tudo o que apreendemos é o que o "Eu" foi capaz de compreender de modo
inteligível a ele mesmo. Esse processo contudo deixa sempre um resto, uma falta presente
no enunciado que remete sempre à condição de querer dizer mais alguma coisa. Assim, a
idéia de ter apreendido a totalidade do objeto não passa de uma ilusão do Eu de ter
Inconsciente, e não é por acaso que ao seguir essas pegadas Freud estabeleceu as formas
por meio das quais o Inconsciente se manifesta: os sonhos, o sintoma, os chistes, os atos
o(O)utro texto do qual o "Eu" nada sabe porque não lhe é possível lê-lo. Esse o(O)utro
texto, entretanto, não cessa de se manifestar como um saber que não sabendo de si, exige
que se produza um sentido para ele; e quantos sentidos já não foram, e ainda são
É, então, esse o(O)utro texto, essa exigência da busca de significação que o "Eu"
também produz para o outro22, a expectativa de que este nos diga de nosso desejo; afinal,
um dia o outro nos impôs, não sem a necessária violência, o seu desejo como resposta à
uma tranqüilizante significação, pois o que o Inconsciente envia para o "Eu" são cifras,
como já foi dito. Não existindo um texto oculto a ser decifrado, o lugar dado ao
22
O sentido fornecido à palavra outro nesse parágrafo é o de outrem, semelhante.
23
"O efeito de antecipação da resposta materna está presente desde o inicio; o efeito antecipador de sua
palavra e do sentido que ela veicula, deverá ser, posteriormente, apreendido pela criança.(...) Para que o
psiquismo infantil entre em ação, é preciso que ao seu trabalho se acrescente o da função de prótese do
psiquismo materno, comparável à prótese que representa o seio, enquanto extensão do próprio corpo(...)"
(AULAGNIER, op. cit. p.38)
semelhante, para além da informação, é o da invenção. Lugar aliás que os analistas não
Não é difícil, então, compreender em que sentido o ato de apreender exclui o ato de
ler. Tomemos o exemplo de um aluno que "lê" um romance como tarefa de uma aula de
literatura. Sua leitura estará previamente condicionada pelas instruções fornecidas a ele;
toda a leitura tenderá à busca de algumas respostas corretas sobre questões formuladas
aluno não faz senão confirmar a palavra do mestre. Nesse sentido, o diálogo entre o texto
e o leitor será rompido, e as possíveis perguntas que o leitor se pudesse fazer serão
previamente silenciadas. Essa também pode ser uma boa explicação do porque a cada
para algo que sempre esteve no texto, mas que poderíamos jurar ter sido acrescentado no
A questão sobre o modo como se processa a transmissão pode agora ser recolocada da
seguinte forma: A transmissão está além do que podemos definir como o que é
apreendido, da mesma forma como ver, escutar, degustar e tocar estão além do que
Resta, pois, pensar em que sentido essa concepção pode acrescentar algo para aqueles
que ensinam.
24
NASIO, Juan David. La voz y la interpretacion, Ediciones Nueva Vision, Buenos Aires, 1980. Citado em
BORGES, Fábio. Transmissão: Uma Questão ? In: Reverso, Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas
Gerais, Nº 28, 1987.
1.5 - Educar, Psicanalisar ... Transmitir.
por Catherine Millot, em Freud Antipedagogo. No final de sua obra não lhe resta outra
condição a não ser a de concluir que: "A psicanálise fez com que ficassem caducas
plena." (MILLOT,1992. p.156) Conclusão essa ratificada por Maria Cristina Kupfer, em
Freud e a Educação, que ressalta as três perguntas diante das quais Millot responde com
um sonoro não:
1. Pode haver uma educação analítica no sentido de a educação ter uma
perspectiva profilática em relação às neuroses?
2. Pode haver uma educação analítica no sentido de visar aos mesmos fins de um
tratamento psicanalítico (resolução do complexo de Édipo e superação da
castração)?
3. Pode haver uma educação psicanalítica que se inspire no método psicanalítico
e o transponha para a relação pedagógica? (KUPFER,1989. p.73,74)
psicanalítica pode ser uma inspiração que sirva para a fundação de uma outra ética
pedagógica. Enquanto para Kupfer, a transferência seria o ponto chave para que
ideais de ensinar e de apreender. A observação essencial que faço é que ambas não se
Millot, que acredito exista na educação o espaço para trabalhar a transmissão tendo
Assim sendo, retorno a uma antiga concepção que sustenta que o saber é um dom
divino (Scientia donum Dei est), e, consequentemente, o ensinar está incluído na mesma
categoria. Alegação que serviu de base para que os Concílios III e IV de Latrão
deliberassem que o professor não deveria ser pago (unde vendi non potest).25 É evidente
que tal acontecimento se sujeita a uma análise sociológica, mas gostaria de demarcar nele
algo que de certa forma se tem perpetuado mesmo que o nome dom tenha sido
substituído, em diferentes épocas, por vocação, engajamento, interesse, amor, etc. Trata-
campo da didática.
Será que realmente desistimos da idéia de que a transmissão é algo que transcende ao
aluno em aprender — está vinculado a seu amor e interesse pelo ensinar e que isso não
se ensina? É bem provável que a resposta às duas últimas perguntas seja responder de
modo negativo a primeira, e se assim for, a Psicanálise poderá vir a dar alguma
contribuição, não por ser aplicável, mas por pensar o sujeito enquanto dividido.
chega mesmo a traçar, em linhas gerais, como se relacionariam professor e aluno a partir
professor de suportar tal destituição. Mas será que existe uma outra forma de o professor
ser conduzido a esse lugar que não seja por meio de sua própria análise? A resposta a
25
Confira: VEGER, J. As Universidades na Idade Média, São Paulo, UnESP, 1990.
A exclusão que estabelecem mutuamente, entre si, Psicanálise e Educação aponta para
a formulação de uma pergunta, isto é, se quem psicanalisa não educa e quem educa não
psicanalisa, como então se transmite a Psicanálise? Com efeito, não existe em nenhuma
universidade um curso que tenha por finalidade graduar o psicanalista. Além disso, toda
produção de um equívoco, seja para a prática, seja para a teoria psicanalítica. Tais
que o analisando sustente a proposta dele de se analisar, de nada adiantando, por si só, a
indicação de um analista, mesmo que de renome. Seria, então, uma utopia imaginar que
todo professor, para se tornar um bom professor, devesse antes proceder à sua análise.
Diferentemente do educador, ao analista não cabe contar com o acúmulo de saber para
sustentar sua prática, uma vez que o saber por ele operado se inscreve em um espaço que
é o avesso daquele do saber acadêmico. Isso significa que enquanto para o professor o
acúmulo de saber é o alicerce que sustenta sua prática, para o analista, em sua clínica, o
acúmulo de saber não é uma materialidade, mas uma suposição, sendo aí, nesse lugar de
suposto saber, que ele assentará os pilares que suportam a sua prática. Porém, se a análise
acontecer, terá resultado em seu final um novo analista. Disso se deduz que a
transmissão pode ocorrer em um espaço que não é mediado pelo saber (scientia),
discurso.
que é ao não existir enquanto si (eu) que ele colocará em jogo o objeto como causa do
desejo do analisando. Sem isso, sem a destituição do analista, não haverá análise e,
seus alunos, mais do que simplesmente repassar informações, adentrando pelo campo da
transmissão.
Considerando que é apenas na própria análise que se produz o analista, que o saber
A premissa inicial que apresento é a de que esse lugar não é determinado por um grau
idéia do dom persiste entre nós na atualidade como indica um agradecimento aos mestres
Acredito que o pensar de tal agradecimento não possa ser considerado um ato de
desrespeito ou um comportamento mal-educado. Também não creio que faça
trabalho, ou que o executam de uma forma mecânica. Tomo-o como um fragmento, uma
licencia docendi.
CAPÍTULO 2
ENSINA
Clarice Lispector
2.1 - As Dimensões Perdidas do Ensinar a Ensinar
ensinar a ensinar sempre foi tão premente que acabaram por criar um campo totalmente
assunto é ensinar a ensinar. Por outro lado, e, creio, é melhor dizer pelo avesso, o verbo
"ensinar", ao ser duplicado desse modo, potencializa aquilo que, por si só, já se apresenta
como uma fonte inesgotável de inquietação: o que é ensinar ? Se essa questão tem
proponho mais uma produção nesse campo, é justo que eu diga, desde o início, que não
viso a dissertar sobre o ensinar a ensinar, mas desacertar o ensinar a ensinar. Antes de
prosseguir é necessária mais uma advertência. Meu objetivo nesta dissertação é ampliar
tema se aproxima da produção do conhecimento de tal modo que fica difícil distinguir o
que pertence a um ou a outro. Tal fato torna inevitável que sejam apresentadas
Quando me refiro “a mais uma produção” estou considerando que o saber é produzido
a partir de uma série, da mesma forma que o conjunto dos números naturais é obtido
através da função “n + 1”. Assim, toda nova produção de saber confirma, retifica ou
mas, também, tende a segregar desse mesmo campo outros saberes (novos ou anteriores)
que não se alinham com o saber vigente. Dito de outro modo, um conceito quando
bem disso, já que a palavra Bildung — que pode ser traduzida imprecisamente por
Com isso fica estabelecido um meio de aproximação para tentar saber como a educação
desde a discussão sobre qual é sua verdadeira essência — o que é educação ? — até à
tentativa de definir qual é o saber que um sujeito necessita possuir — o que a educação
deve ensinar ? De um ponto a outro (da forma ao conteúdo) existe uma dispersão
viabilizada em uma produção que possa ser entendida como saber pertinente a esse
26
“Cada palavra que acrescento a uma palavra anterior é uma palavra que devo escolher entre as várias que
o contexto lingüístico e extralingüístico então nos permite utilizar: o eixo das palavras possíveis é o
paradigma.”
COELHO, Eduardo Prado. Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e
estruturalismos in COELHO, E. P.(org) Estruturalismo: Antologia de textos teóricos, São Paulo, Livraria
Martins Fontes Ed., 1968. p.XVII
27
Confira: HERMANN, Ulrich. Educación y formación durante la Ilustración en Alemania, in: DEBESSE,
M. e MIALARET, G. História da Pedagogia. Barcelona, Oikos Tau, 1974.
28
Sobre o uso da palavra "dimensões" é importante que se faça aqui um esclarecimento. Dimensão no
sentido matemático (número mínimo de variáveis necessárias para descrição de um conjunto) permite lidar
com o infinito sem produzir nele a contradição de sua redução ao mesmo tempo que cria a possibilidade
para o exame de sua textura. (Nesse sentido confira: GUILLEN, Michael. Dimensão: Um reino de muitas
possibilidades in: GUILLEN, M. Pontes Para o Infinito, Lisboa, Gradiva,1987
campo. Disso resulta que o saber que nesse espaço é construído o é sempre a partir de
uma interseção, seja com a filosofia, seja com a ciência ou mesmo com a religião. A
impressão causada em quem se propõe escrever sobre Educação é que a essência desta é
para sempre inefável, que ela pode ser apenas circunscrita e, mesmo assim, nunca será
da ordem do preciso.
Para iniciar, então, essa circunscrição, proponho a exame uma frase de Rousseau, que
existe em seu Emílio. Se a esta citação recorro, não é por afinidade à teoria de um
mestre, mas pelo efeito por ela produzido, já que é o debate com o efeito causado pelo
autor que, neste instante, me servirá de eixo para falar das dimensões em educação. A
anunciada frase é a seguinte: "Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das
colocada logo no início de uma obra que pretende ensinar a ensinar, possui um sentido
inevitável. É claro que alguém poderá replicar que estou atribuindo uma importância
respondo que independente da origem da intenção existe sempre uma perda, uma
degeneração, uma traição do leitor para com o autor. Afinal, a mensagem nunca chega
ao receptor na plena forma em que foi emitida. O que a frase de Rousseau me permite é
dizer que o homem produz um mal-entendido na natureza, que ele é frustrado em sua
saindo..." em um sentido crítico literário, tal como o propõe Roland Barthes, em Que é a
Crítica, (...) "a crítica não é uma 'homenagem' à verdade do passado ou à verdade
do 'outro', ela é a construção do inteligível do nosso tempo." (BARTHES,1967.
p365)
isso, trazer para um mesmo eixo Rousseau (1712-1778) e Comenius (1592-1670) . Este
Assim, é em sua forma científica, a Didática, que a educação deposita suas expectativas
que tais técnicas são engendradas. Possuindo, na atualidade, uma vasta literatura, é difícil
não reconhecer nela seu caráter científico, anunciado por sua capacidade de classificar e
prever fenômenos. Mesmo quando tratada em uma perspectiva crítica, sua condição
científica não é questionada, como pode ser observado no seguinte excerto, do livro A
Oliveira:
Entretanto, a representação não se realiza em sua totalidade, de modo que há sempre um real que sobra e
resiste a ser representado.
30
O estudo das formas e modos da cognição é feito pela psicologia. Além disso, não é possível considerar
que o ideal pansófico de Comenius esteja presente em toda Didática, mas não há como negar que está em
seu alicerce.
"(...) A construção da Didática à luz de seu compromisso com as
classes populares; o entendimento do objeto de estudo da Didática — o
ensino — como uma totalidade completa, produzida socialmente pelo
homem e que se atualiza na aula; e o tratamento do ensino em suas
dimensões histórica, antropológica, ideológica e epistemológica.
"(...) Dentro disso, o saber didático dever ser reconstruído num espaço
que leve em conta, de um lado, sua amplitude, para além do processo
ensino-aprendizagem de uma dada matéria curricular e de outro, seus
limites, no sentido de não-identificação com um método geral de ensino.
Esse saber didático, enquanto saber de mediação, trata de princípios,
essencialmente metodológicos, do processo pedagógico escolar —
ensino — entendidos à luz do estreito relacionamento entre conteúdo e
forma, no contexto das condições concretas do trabalho didático, o qual
possui sua expressão nuclear na sala de aula." (OLIVEIRA,1992. p.132-
133)
Mas afinal, mesmo com todo o avanço da ciência e da crítica do social deste final de
insuficiência da Didática, posto que novas metodologias do ensinar são geradas a cada
que até aqui tem sido pouco considerada pela educação. Contudo nem sempre foi assim,
"Ora, que absurdo maior do que crer ter sido instruído pelas minhas palavras
(Santo AGOSTINHO,1956.p.117) Que outra leitura fazer dessa citação a não ser a de
que Santo Agostinho já dizia aos mestres, no século IV, dessa impossibilidade?
Para dizer dos efeitos causados por esse desconhecimento, retorno mais uma vez a
Comenius e à concepção que ele fornece à Didática como sendo uma arte. Tal concepção
sobre a arte, mantendo com esta apenas o parentesco distante da habilidade contida no
artifício31. Existe um hiato entre Comenius e a atualidade que não pode ser explicado
apenas pelo intervalo de tempo. Aliás, sob muitos aspectos, Comenius pode ser
considerado um autor bastante atual para a Didática. O fato é que nesses três séculos e
meio a Didática migrou nitidamente da arte para a técnica, para o método. Claro,
devemos considerar que a própria palavra técnica não existia com sentido próximo ao
atual antes do final do século XVIII32, e que se ela já existisse como tal, era provável que
Comenius tivesse optado por escrever: "a técnica — ou a metodologia — de ensinar tudo
a todos". Entretanto, é necessário considerar que a escolha do termo arte implica uma
clara referência a artesão. Comenius produz sua Didática Magna exatamente no limiar do
século XVII (escrita entre 1629-1632 e publicada em 1657), século que pode ser
quarto grande livro que marca a inauguração do pensamento moderno (os outros três são:
“arte” como referência à Didática apesar de rara hoje na Educação, ainda mantém como
31
É importante ressalvar aqui que a tradução espanhola de Saturnino Lopes Peces (1992, Madrid, Editorial
Reus. S.A.) da Didática Magna utiliza a palavra artifício em vez de arte.
32
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1992.(apêndice, p.92)
33
Sobre a utilização do século XVII como referência do inicio do "pensamento moderno", não considero
que esse pensamento surge de modo espontâneo e sim que é fruto de um longo processo que se inicia na
Idade Média talvez a partir do século XIII; entretanto, como propõe Koyré:
"Não obstante a periodização não é inteiramente artificial. Pouco importa que os limites
cronológicos dos períodos sejam vagos e mesmo superpostos. A certa distância, grosso modo,
as distinções se apresentam bastante nítidas e os homens de uma mesma época têm muito em
comum. Quaisquer que sejam as divergências - e elas são grandes - entre os homens dos
séculos XIII e XIV, comparemo-las a homens do século XVII, mesmo sendo estes últimos
diferentes uns dos outros. Ver-se-á logo que eles pertencem a uma mesma família; sua 'atitude'
e sua 'maneira de ser' são as mesmas. E essa maneira de ser e esse espírito são bem diferentes
dos homens dos séculos XV e XVI. O Zeitgeist não é uma fantasia. (...)"
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico, Rio de Janeiro, Ed. Forense
Universitária, 1991. p.16
34
Confira: LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia, São Paulo, Mestre Jou, 1974.
Psicanálise pode funcionar como um bom “lembrete” ao educador, ao recordá-lo, como
(MILLOT,1992. p 146)
Um saber não é construído com "as coisas" em si, e de muito pouca valia seria, se
assim o fosse. Ficaríamos limitados a saber que algo queima, que algo molha, e outras
ingênuo. Para que "as coisas" possam ser relacionadas entre si e articuladas como saber,
elas terão de ser definidas, nomeadas. É essa classificação que torna possível estabelecer
uma relação entre, por exemplo, o homem e os macacos — ambos pertencem à ordem
definida de objetos corresponde um conceito, pois não se pode definir uma tal
A partir daí, e por reciprocidade, todo conceito deve ter uma extensão que será "o
conjunto de objetos que ele pode designar" (Idem, p.373). Essas afirmações visam a
considerarmos que a educação é uma classe definida de objetos, (portanto, que possui
conceitos) como são nomeados aqueles que, pertencendo a essa classe, executam o ofício
de ensinar? Seriam mestres? Seriam professores? Mas, não são os dois termos idênticos
em seu significado?
Antes de trabalhar com os motivos, as conseqüências, as dimensões históricas e
etimológicas de uma sinonímia para definir aquele que ensina, é necessário interrogar:
De início, diria que como não precisamos de mais do que um nome para designar
aquele que exerce a medicina, aquele que exerce a engenharia, aquele que exerce a
odontologia, é no mínimo instigante pensar por qual motivo necessitamos de pelo menos
dois nomes para dizer aquele que ensina. Além disso, visto pelo olhar da produção do
conhecimento, uma palavra com a qual uma classe é designada vai bem além da
palavras em seu uso cotidiano, um conceito não admite duplicidade em sua interpretação.
última instância, é a ele que as teorias são destinadas, mesmo que ele esteja descentrado
em relação aos fundamentos teóricos propostos. Ele será sempre o ponto a partir do qual
se tomará a medida das coisas. Afinal, aquele que ensina é quem coloca em operação a
indução concluímos em qual teoria tal denominação teve sua produção, sendo que essa
identificação é possível porque toda teoria da educação tem de indicar de que maneira
aquele que ensina deve ser formado e de que maneira deve ensinar.
São esses os motivos que tornam possível concluir que quando aquele que ensina é
que corresponde ao conjunto de características próprias e exclusivas por meio das quais é
determinado o vínculo da expressão (mestre, professor, tia, etc.) com uma teoria da
extensão do conjunto das teorias educacionais. Enquanto tal, o uso de uma palavra ou
outra só se diferenciará à medida que ela seja produzida no interior de um discurso35
específico. O que significa que, se para o senso comum a escolha de um nome ou outro
faz pouca diferença, o mesmo não ocorre quando mestre e professor são nomeados e
aplicados no interior de uma teoria. Aí, a escolha determinará o eixo dos paradigmas que
produzirá o discurso teórico em que então mestre e/ou professor assumem o valor de
conceito. Creio ter explicitado o fato de aquele que ensina ser tanto uma extensão como
outra no cotidiano, já que ambas buscam significar uma mesma realidade36. Professor
para o cotidiano? Esse excesso de significados para dizer a mesma coisa, aparentemente,
não poderá nos conduzir a outras abstrações e, inúmeras vezes, qualquer discussão que
aborde um tema semelhante corre o risco de nem sequer vir a ser travada, sendo
encerrada em si mesma, como costuma ocorrer com as discussões que adentram pelo
senso comum37. Para prosseguir, então, é condição sine qua non, ser verificada a
35
Segundo Ferdinand De Saussure "o discurso consiste, ainda que de modo rudimentar ou por caminhos
que ignoramos, em afirmar um elo entre dois conceitos que se apresentam revestidos de forma lingüística,
enquanto a língua previamente apenas realiza conceitos isolados, que esperam ser relacionados entre si
para que haja significação do pensamento"
SAUSSURE, Ferdinand De. As Palavras sob as Palavras. Col. Os Pensadores, São Paulo, Abril
Cultural, 1985.p.4
Em síntese o discurso é o que se produz como enunciado, sempre em certas condições de enunciação que
condicionam sua análise.
36
Apesar de possuírem etimologias diferentes (mestre do latim magister - séc. XIII, professor do latim
professor-õris - séc. XV ( Cunha, 1992. p.516 e 637)) a conotação atual de ambos é idêntica: "aquele que
ensina" (Ferreira, 1986. p. 1125 e 1398)
37
"Na linguagem filosófica contemporânea, o senso comum é o conjunto das opiniões tão geralmente
admitidas, numa dada época e num dado meio, que as opiniões contrárias aparecem como aberrações
individuais, inúteis de se refutar seriamente (...) (LALANDE,1993. p.998)
possibilidade dessa igualdade ser rompida, e um dos modos de proceder a essa
(sempre no sentido genérico d’aquele que ensina) possuem pelo menos outras cinco
sinonímias: docente, instrutor, lente, pedagogo e preceptor. O que fica desse modo
constatado é que a série de idênticos iniciada com professor e mestre tem continuidade
não em um terceiro termo que viesse a ser a síntese dos dois primeiros, mas em uma série
torna instigantes esses modos de dizer a mesma coisa não é a possibilidade de revelar
essa seqüência de termos iguais se origina a partir de um evento que pode ser
educação caso admitíssemos que o homem já traz consigo, desde o seu nascimento, o
conhecimento. Creio não existir, pelo menos na atualidade, defensores para uma idéia
38
Tomado em sua conseqüência lógica, o terceiro termo é aquele que determina o fracasso dos dois
primeiros alcançarem uma significação plena. Como exemplifica A. BADIOU: "A partir de 2, continuando
a cadeia 0,1,2 obtém-se 4. O três é pulado, faltante.(...) Pode-se então dizer que o 3 é o fracasso do 2. Ele
é o que o 2 cifra imaginária, não pode alcançar diretamente.”
BADIOU, Alain. Para uma Nova Teoria do Sujeito, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.p.101
Desse modo, o dois representa uma série infinita que vai de dois ao infinito, excluindo a possibilidade do
três como um absoluto, de modo que esse só pode ter seu valor restituído a partir do
quatro."Compreendemos por que o 3 é pulado entre o 2 e o 4: só se pode obter a estrutura a partir do
discurso. Só se pode, portanto, obter o 3 a partir do quatro(...). (...)É preciso que o 4 do discurso venha
primeiro, e que dai o pensamento desça de novo para inscrever a estrutura" (Idem, p.102)
39
Ferreira, Aurélio B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira,
1986.
acontece o que denominamos transmissão. A especulação levará então à formulação de
uma outra pergunta: será que a diversidade de nomes para aquele que ensina, não estaria
Se assim for, cada nome dessa série terá de carregar consigo a marca da
impossibilidade de dizer com uma única palavra o que ensina. Isso significaria que a
Caso contrário, mesmo em relação ao discurso teórico formal, não haveria restrições
quanto ao uso de uma palavra ou de outra. Desse modo, o que se nos apresenta como
conclusão é que o modelo organizador que fornece uma estrutura para a Educação é a
em sua leitura, exigindo que, nesse momento, sejam antecipadas algumas conseqüências
que ela acarreta. Primeiro, é necessário pensar a História não como um conjunto de
do cotidiano, um errante que busca por toda parte a invenção de uma habilidade para
40
Sobre o conceito acontecimento: "O acontecimento é uma categoria decisiva na obra Badiouniana. Não
articulável, instaura uma verdade e deixa um resto, embora possa ausentar-se da memória explícita. Por
isso, é preciso uma intervenção, uma interpretação, para dar consistência a essa singularidade. O
acontecimento pertence ao registro do dois e a essência que inaugura está distante da fatualidade ou da
versão periodística dos espisódios em que o verdadeiro está sempre emudecido."
GARCIA, Célio. Psicanálise, Política, Lógica,São Paulo : Editora Escuta, 1993.p.2
Não é então de estranhar que exatamente no campo da transmissão as teorias da
educação fizeram surgir uma especialidade: a Didática. Tanto que na atualidade, muitas
vezes, o termo didática passou a ser empregado para significar qualidade d’aquele que
ensina"; dizemos: “Aquele professor (também poderia ser dito mestre, docente, ..., etc.)
tem didática”. Assim, didática passou a corresponder não apenas a um modo, mas
saber, produz, por conseqüência, uma identidade para cada um dos nomes da série
2. essa série (mestre, professor, docente, tia, (...), etc.) só produz diferença entre seus
termos a partir do momento em que se utiliza de uma dessas palavras como constituinte
de conceitos;
modos de causar diferença entre os nomes que constituem a série d’aquele que ensina;
também que as teorias da educação se diferenciam umas das outras, e se criticam entre si
41
Em especial sobre a origem dessa posse não faltam os defensores para as hipóteses do adquirido e do
inato.
por sua função ideológica.42 Em síntese, a transmissão é a dimensão da educação em que
campos que já ocuparam esse mesmo lugar de referência para a Educação, antes da
ciência.
Uma vez que a Didática surge em forma próxima à atual a partir do século XVII, com
A primeira constatação que pode ser realizada no sentido acima é de que atualmente a
cristalizada de tal modo que chega a soar estranho o fato de a Educação poder ensinar
algo que não seja científico. Tal fato acaba por produzir na relação entre educação e
ciência uma relação de “pertencimento”, criando uma idéia virtual de que o propósito da
Educação seria o de ensinar apenas o que fosse científico. Hoje, quase não se pensa mais
42
Ideologia aqui é considerada no sentido de um "pensamento teórico que pretende desenvolver-se sobre
seus próprios princípios abstratos, mas que, na realidade, é a expressão de fatos, principalmente sociais e
econômicos, que não são levados em conta ou não são expressamente reconhecidos como determinantes
daquele pensamento." (Ferrreira, 1986. p. 913 )
em conteúdos advindos da ética, da estética, da teologia entre outros campos, como
origem para conteúdos da educação e, quando isso ocorre, é quase sempre realizado em
humanidades.
Prosseguindo nessa linha de raciocínio, é possível observar que tem sido a ciência —
ou sua forma adjetiva, o científico — que tem constituído cada vez mais a garantia de que
o conteúdo ensinado pelo discurso pedagógico é verdadeiro. Isso equivale a dizer que a
por ser comparado, sendo que o melhor já é definido por antecipação. A tendência do
homem em querer uma única verdade acaba por segregar do discurso pedagógico dizeres
outros que um dia já foram pilares do educar. Não custa frisar, mais uma vez, que a
Pode-se argumentar que não apenas a ciência, mas também a tecnologia desempenha
considerando que os holandeses inventaram a lente e não sabiam nada sobre óptica, que
e que Papin não soube o que fazer com a descoberta do vapor. Isso salienta que é a
ciência, enquanto uma construção nominalista do saber, que inscreve uma outra forma de
formal é que esta última não se tem dedicado, desde a revolução científica, a possibilitar
sofrido pelo espírito do homem daquela época e pela verdade escolástica (a leitura
aristotélica43 por ela feita) que o sustentava. O homem do final do século XVI não
perdeu uma fé ou uma crença, ele perdeu o próprio mundo em que habitava. A percepção
sensível, pilar da física aristotélica, rui, sendo substituída por uma natureza não sensível;
ao concreto, sobrepõe-se a teoria. A teoria que se situa como uma oposição à prática —
— "aquilo que constituiria o direito puro ou bem ideal, distinto das obrigações
determinará a verdade.
escreve:
" Ao lado desses progressos materiais, outras modificações vinha
sofrendo a nação inglesa. As lutas religiosas haviam abalado os próprios
fundamentos da forte crença religiosa medieval. As discussões em torno
dos temas essenciais da vida humana geravam cepticismo e descrença.
As descobertas científicas levavam os sábios a novas tentativas de
explicação do Universo e da conduta humana, gerando ao mesmo tempo,
crendices e superstições que procuravam substituir os alicerces abalados
da nova crença. (...) A literatura procurava novos rumos e novas estéticas
relegando para o passado a herança medieval. (...) A dúvida, o cepticismo
vicejaram. De uma concepção teocêntrica da vida passava-se a uma
concepção antropocêntrica."(MENDES,1989. p.35)
43
Sobre esse aspecto é importante demarcar que o Aristotelismo da Idade Média não é propriamente
Aristóteles como exemplifica KOYRÉ : "A filosofia Escolástica - sabemo-lo agora - foi algo muito grande.
Foram os escolásticos que promoveram a educação filosófica da Europa e criaram a terminologia de que
ainda hoje nos servimos. Foram eles que, por seu trabalho, permitiram ao Ocidente tomar, ou, mais
precisamente, retomar o contato com a obra filosófica da antiguidade. (KOYRÉ, 1991. p. 22) (...) O
aristotelismo, mesmo o de um Avicena ou, para só falar dos filósofos da Idade Média ocidental, o
aristotelismo de Santo Alberto Magno, de Santo Tomás ou de Sigério Brabante, não era, tampouco, o de
Aristóteles (...) uma vez que vivia num mundo diferente(...) (Idem, p.34) O aristotelismo (...) propaga-se
nas Universidades. Dirige-se a pessoas ávidas de saber. É a ciência, antes de ser qualquer outra coisa, antes
mesmo de ser filosofia, e é por seu valor de saber científico, e não por seu parentesco com uma atitude
religiosa que ele se impõe. (...) Assim se compreende muito bem que a autoridade ou a ortodoxia religiosa
tenha condenado Aristóteles. E que as filosofias da Idade Média tenham sido obrigadas a interpretá-lo, isto
é, a repensá-lo num novo sentido, compatível com o dogma religioso. Esforço que apenas parcialmente
logrou êxito com Avicena mas que foi brilhantemente bem-sucedido com Santo Tomás: Aristóteles, de
certa forma cristianizado por Santo Tomás, tornou-se o fundamento do ensino no Ocidente.” (Grifo Meu)
(Ibid. p.35)
Para tentar compreender o real significado dessa transição basta recordar que para a
dado seu caráter intemporal. O mundo estava organizado dentro de um cosmo finito e
bem ordenado. Essa concepção ordenava o pensamento para que este reproduzisse tal
ordenação, de modo que por meio dessa repetição o homem tivesse confirmada sua
platônicos, o advento da ciência moderna não apenas recoloca, uma nova forma de ler o
mundo, mas, principalmente, reabre a discussão sobre a posição que sujeito e objeto
dizer de Domingues:
"Descartes, que leva a sério Montaigne, neutraliza as conseqüências
céticas que o filósofo renascentista tinha tirado de sua máxima, procede à
introjeção da coisa, funda o conhecimento no limiar da subjetividade, na
presença de si a si do cogito, e busca o índex da verdade no interior do
próprio sujeito: a certeza da consciência de si." (DOMINGUES,1993. p. 18)
O real é, a partir daí, o que dele podemos teorizar44. Mesmo o empirista mais
ferrenho só poderá conceber o conhecimento como algo que passa pela ordem da
identifica da mesma forma que um papel é identificado por uma marca-d'água. É claro
que Descartes não produziu um método de conhecimento que apresentasse resolução para
todas as questões que tangem a epistéme, da mesma forma que Galileu não produziu a
44
O termo Real é utilizado aqui por oposição a realidade, no sentido de que pode “ser concebido
inteiramente fenomenal, como imanente à representação.(...) O cientista... criou destruindo [a realidade do
senso comum]; e é apenas em proveito da realidade nova que ele aboliu a antiga.” (LALANDE,1993.
p.925).
A cristalização do pensamento científico sepultou na vala do ocultismo45 toda
criando um abismo entre aquele saber, tomado, a partir dali, como inculto, e o científico,
Como toda herança coloca em jogo um espólio, esse legado das universidades merece
ser investigado de modo mais detalhado. Em um trecho anterior deste texto (ver nota n°
18), foi exposto que o retorno a Aristóteles na Idade Média teve como uma de suas
causas a busca da ciência. Esse acontecimento já produz, desde aquela época, uma
pensamento aristotélico,não pode ser confundida com a ciência que se inicia no século
XVII. Para Aristóteles, ciência é aquela que tem por objeto os primeiros (princípios) e
condições que Santo Tomás de Aquino, na Idade Média, irá definir ciência como a
Escolástica finca seu pilar de sustentação e que será a fonte dos ensinamentos nas
universidades da Idade Média. É essa base, portanto, que será desmontada quando o
conhecimento científico se torna dominante, sendo que este último comporta as seguintes
47
Aristóteles, Metafísica I, 2; 982 b1 in: LALANDE,1993. p.156.B
48
Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI; 1139b 20-24 in: LALANDE op. cit. p.156B
49
Santo Tomás de Aquino Summa contra gentiles, 1, II cap. 60 In: LALANDE op. cit. p.156B
• a organização sistemática das idéias ou dos fatos cujo ser científico é
constituído pelas suas relações seriadas (...);
• o rigor da prova tal que, enquanto o conhecimento vulgar e prático tende a
admitir como verdadeiro o que não é reconhecido como falso, 'o
cientista é alguém que duvida', que põe de quarentena tudo que não
é demonstrado verdadeiro."
(LALANDE,1993. p.157).
surgem no século XII em Bolonha e Paris, sendo que naquele momento guardavam
pouca semelhança com o sentido que o termo adquire a partir do século XIX, isto é,
Retomando o tema tratado anteriormente em “um nome para aquele que ensina”, e
observando a multiplicidade de nomes sob a luz dessas constatações, é possível dizer que
o protótipo d’aquele que ensina também advém do solo da escolástica. Com efeito, é
naquele terreno que acharemos, anterior a Comenius, uma obra destinada aos mestres, o
Magistro, de Santo Tomás de Aquino parte do princípio de que o homem é educável por
estabelecimento de relações entre o problema e outros assuntos afins para atingir, assim,
a resposta às objeções iniciais. Mais do que uma formulação sobre o como proceder, a
conhecimento. Forma essa que resistiu a passagem das universidades da Idade Média ao
52
“A primeira visava fazer conhecer ao estudante as ‘autoridades’ e, através delas, permitir-lhe dominar o
conjunto da disciplina que estudava; a segunda era, ao mesmo tempo, para o professor, o meio de
aprofundar mais livremente certas questões do que num comentário de texto e, para o estudante, a ocasião
de pôr em prática os princípios da Dialética, de experimentar a vivacidade de seu espírito e a precisão de
seu raciocínio.” (VERGER: p.56)
Renascimento. De tal modo essa forma de transmissão se arraigou nas universidades que
à universitária.
vagar, e daí por extensão — Lazer produtivo, Estudos feitos com vagar, estudos de
atual.53
perda daquela função do otium. Entretanto, a diferença mais marcante é que o conceito de
escola na antiguidade está vinculado a uma certa filia ao ensinamento de alguém, uma
vez que a escola era designada pelo nome de seu mestre, isto é, era a escola de Sócrates,
de Platão, de Aristóteles.54
53
Nesse aspecto confira: GARCIA, Célio. Escola: por que? in: GARCIA, C. Psicanálise, Política, Lógica,
São Paulo, Ed. Escuta, 1993.
54
Nesse sentido ver o Texto de MILLER, Jacques-Alain. El concepto de Escuela in: Cuardernillos de
Pasador, Buenos Aires, 1992
Sobre essas afirmações são necessárias algumas considerações. O estabelecimento de
Afinal, cabe aos sofistas a proposição da necessidade de uma consciência cultural, uma
vez que é em sua época que é criada a idéia consciente da educação. Como ressalta
JAEGER(1994), mesmo que não tenham produzido a forma definitiva desses conceitos, a
participação deles em sua introdução foi definitiva para a produção do que hoje
designamos como cultura. Foram os sofistas também que nos legaram uma questão
intrincada, ou seja, a de saber se a pedagogia é uma ciência ou uma arte. Mesmo que eles
tenham dado como resposta nomear por techné a sua teoria sobre a arte de educar, tal
serviu de solo para que outras argumentações fossem aí semeadas. Assim, não causa
surpresa encontrarmos na obra póstuma de Platão, As Leis, toda uma prescrição sobre
como devem ser criadas as crianças. Quando refiro-me, portanto, a uma idéia de escola,
homem deve aprender, e o que nele deve ser calcado por ação educativa, mas pela marca
que as idéias de um pensador eram capazes de produzir em uma cultura de modo que ele,
ao se diferenciar de todos os outros, atraía para sua escola todos aqueles que, de um
É claro que o lugar do mestre sempre foi um dos pontos de referência para a distinção
que Abelardo poderia ser classificado como mestre, já que era ao seu ensino, e não à
universidade, que os alunos afluíam. Porém, existe uma diferença fundamental entre eles.
Abelardo, que era demandado por seus alunos, nem sempre obtinha da Igreja a
autorização para ensinar. É essa a diferença entre a escola dos antigos mestres e a
universidade: o fato de aquele que ensina ter de estar previamente sujeito a um
ensinar. Por sua vez, a scholê era a escola de um mestre, um mestre que prescindia da
Enquanto na escola clássica existia o mestre e aqueles que buscavam nele o saber, o
faziam por escolha, produzindo uma dada junção entre o saber e o otium, nas
Ora, nesse esquema o saber já está servido, e decididamente pende para um lado; o
dos que determinam quem pode e quem não pode ser licenciado. Aqueles que sabem, a
priori, e que buscam conferir o saber do "proposto" para verificar se ali não existe
Retornemos agora ao século XVII. A ciência terá seu abrigo dentro das universidades,
mas isso não significa que ela tenha tido uma acolhida tranqüila e segura desde o
tipo de conteúdo transmitido pela escolástica nas universidades. Contudo, com o passar
55
Licenciatura significa 'permissão' e segundo J.A. Miller (op. cit.) o modo de transmissão de saber
universitário "se distingue (...) na medida em que exige algo para poder ensinar - desta forma impô-se a
ordem universitária na Idade Média - uma licenciatura. Uma permissão para ensinar."
pensamento universitário — científico. Nessa migração de um ao outro é que se coloca a
pá de cal sobre o antigo mestre e sobre a concepção de escola que dele emanava. Assim,
denominarei mestre aquele que, segundo o modelo antigo, ensina por sua própria
escrita, e dois exames orais (a tese pública e a aula pública), que por sinal adotavam a
forma do disputatio.56
possível observar que ela produziu “trincas” no discurso pedagógico, deixando marcas
que persistem na atualidade, como as de uma fratura mal consolidada. Para entender que
56
Confira: JULIA, Dominique. Educación y ilustración en Francia. Los cambios del sistema educativo en
Francia en el siglo XVIII in: DEBESSE, M. e MIALARET, G. História da Pedagogia. Barcelona, Oikos
Tau, 1974.
pedagógico — no ensinar a ensinar — da escolástica a garantia da verdade era posta em
Deus;
"A garantia só se daria se encontrássemos um métron absoluto que
em sua absolutidade estivesse apto a medir, sem ser ele próprio medido.
Este métron é Deus, melhor dizendo, o intelecto divino segundo ele
(Santo Tomás) a única coisa apta a medir e que não é medida, a
diferença da coisa natural que está apta a medir e é medida, e do nosso
próprio intelecto, que é medido, e não está apto a medir, em relação às
coisas naturais, e só está apto a medir com relação às coisas artificiais."
(DOMINGUES,1993. p.16)
Isso significa dizer que, em última instância, é o discurso religioso que sustenta na
Escolástica a ausência do mestre; é o intelecto divino o modelo e a garantia para toda
exposição de saber. Assim, todo discurso que daquele lugar seja enunciado terá um lugar
divino. Isso implica que o próprio sujeito é responsabilizado por suas ações, as quais
assume, previamente, de forma livre e consciente, pois existe um modelo posto a ser
seguido.
é capaz de produzir "garantias", pois ele é um dizer infinito que nunca cessa. Uma vez
sendo pura articulação de fórmulas, não há nele um lugar de onde o sujeito possa se olhar
e, conseqüentemente, não há espaço para que nele o sujeito seja responsável por suas
Que implicação esse acontecimento traz para a educação? Mencionei que o conteúdo
científico. Também demarquei que a própria educação estabeleceu uma forma próxima à
científica para ensinar, a Didática. É então evidente que a educação migrou de uma forma
57
Essa relação entre o discurso religioso e o discurso científico será trabalhada de modo mais detalhado no
Capítulo 3 desta dissertação.
para outra, isto é, do religioso ao científico. E disso duas articulações podem ser
traçadas: a primeira é que o discurso religioso era, antes do século XVII, o fundamento
educação perde a garantia que lhe era dada pelo discurso religioso e, conseqüentemente,
Tomando essas observações como corretas, é possível concluir que, a partir do século
uma "sobra" do fenômeno da transmissão que não se conseguirá teorizar. Esse resto, que
premissa da Didática de conseguir ensinar tudo a todos. O senso comum, quando diz que
que não é possível ensinar características como dedicação e amor falam precisamente
dessa mesma condição. Se não é possível ensinar tudo a todos, teremos de concluir que
As colocações do item anterior levam-nos a indagar: será que o ofício de educar não
modernidade é aquele que tudo sabe, bem como o modelo de aluno é aquele que, nada
Abramovich é: quem pode fazer novas perguntas, se quem fala só está disposto a escutar
apenas aquilo que quer? Atualizando essa colocação dentro de nosso contexto, o que fica
interrogado é como um saber novo pode surgir em uma conferência se ele já está servido,
e todos sabem do lado de quem ele fica? Há que se considerar que quem pergunta,
pergunta sempre pela primeira vez, de modo que a repetição se processa sempre para
repetição de um modelo que faz da educação um eterno professar — seguir a regra de;
obedecer às normas de. O saber deixou de ser percebido como uma conquista para
enquadrar-se como uma aquisição, de modo que não exista criação e sim adequação. Isso
resulta em que todos os pais mandem seus filhos à escola para que aprendam o que o
professor repete, desde que, evidentemente, ele seja licenciado, e que o aluno se limite a
Podemos então postular que existe, historicamente, uma ruptura entre a arte de educar
e a profissão de educar; mais do que isso, existe a perda da dimensão do impossível, que
por não poder ser formalizada cientificamente, é segregada e mantida de fora como se
nem sequer existisse. Mas, esse impossível, que escapa à formalização científica,
Juventude Desorientada de August Aichhorn, Freud escrevia: "aceitei o bon mot que
teremos então de concordar que existe pelo menos um campo de saber em que o
impossível pode escapar de sua condição de segregação, uma dimensão em que seja
possível teorizar com o impossível. Dimensão essa que pode revelar novas perspectivas à
Não há como esquecer que o homem é uma invenção muito recente no espaço
freqüência, de que esse humano, de que tanto falamos, é um objeto no campo das
ciências. Quando a educação busca a aplicabilidade de vários campos do saber — tais
não é a um homem concreto que ela está se referindo, mas ao que, dele emanando, pode
ser recortado no campo das ciências humanas. A referência à ciência estabelece para a
partir daí, certo ou errado. É claro que toda a conduta deverá ser orientada no sentido de
advir o errante, aquele que pode vagar diante das certezas em busca de sua própria
produção.
não são ambas profissões impossíveis? — pode conduzir então à possibilidade de que
seja pensada uma ars educãre58 e com isso, talvez redimensionar dados espaços no
saber mesmo não sendo de todo sabido. É claro que não objetivo um retorno às formas
anteriores do educar, nem creio que elas tivessem respostas para as questões que coloco
pudesse ser verdadeira. Porém, colocar lado a lado concepções diferentes permite aguçar
58
O sentido que penso para a ars educãre, por oposição à didática, é semelhante ao que Michel Foucault
descreve na oposição entre ars erótica e scientia sexualis. "Nossa civilização, pelo menos à primeira vista,
não possui ars erótica. Em compensação é a única, sem dúvida, a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor,
só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se
ordenam, quanto ao essencial, em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das
iniciações e ao segredo magistral, que é a confissão." (FOUCAULT,1984a.pp.57,58)
É interessante observar que existe pelo menos um ponto na interseção da scientia sexualis com a didática,
isto é, a educação sexual, uma forma científica e politicamente correta de ensinar sobre o sexo.
Posteriormente, em uma entrevista concedida a Rabinow & Dreyfus (RABINOW,1995), Foucault
esclarece que ao invés de opor a scientia sexualis à ars erotica, esta oposição deveria ser feita em relação a
technè biou grega, isto é, a “arte de viver”, buscando mostrar que o problema geral dos gregos não era a
technè de si, mas a technè da vida, a technè tou biou, como viver.” (gifo meu) (op.cit., p. 259)
o olhar para dadas diferenças que sem essa contraposição tenderiam a permanecer
ocultas.
Para isso pretendo examinar fragmentos deixados pelas rachaduras provocadas quando
outro sem deixar marcas. E, como já dito, sem supor que o retorno ao passado seja
solução de alguma coisa ou que algum dia existiu uma educação melhor do que a atual. A
idéia central é que essa dimensão que foi sepultada na teoria pelo cientificismo
contaminando o dizer claro, único e preciso da ciência, com a peste da certeza de chegar
AMOR E TRANSMISSÃO
Clarice Lispector
3.1 - Ainda Sobre Fragmentos
O capítulo precedente apresentou, em seu final, três argumentos que devem ser
retomados. São eles: a idéia de que o homem ao qual se referem as ciências humanas não
é o homem concreto, mas o que dele pode ser inscrito como objeto de saber; a
cheguei após a discussão da existência de uma série de nomes com que tentamos dizer
aquele que ensina e, em última instância, idéias com as quais busco apreender algo mais
devem ser tomados como proposições, colocam o discurso como plano privilegiado para
a sua análise, conduzindo com isso para o campo das manifestações a possibilidade de
desenvolvimento desta dissertação. Assim, é preciso clarear um pouco mais o que pode
Manifestação é aqui tomada na acepção de: o que dá sinais de, o que revela. É
necessário lembrar que o próprio Freud só pôde iniciar a construção da Psicanálise por
se ter colocado em uma outra posição diante das manifestações da histeria. Com efeito,
foi por ter dado a tais manifestações a possibilidade de referirem-se a uma outra verdade
que não a do corpo biológico, que ele iniciou o percurso que o conduziria à formulação
de um novo objeto de saber, o Inconsciente. Este, por sua vez, apreensível somente pela
saber, seja o protótipo de um conhecimento que somente pode ser construído pela via
indireta.
Quando refiro-me à manifestação, é na condição de que ela nos apresenta algo que não
saber sobre um objeto a partir do que dele se manifesta, pois não entendo, sob nenhuma
forma de argumentação, que possa existir um Inconsciente que seja da ordem do coletivo.
concreta da língua; manifestação que sempre coloca em evidência algo, um tema, uma
discurso como uma forma que não consegue alcançar a exposição absoluta, sendo o
Creio então ter traçado as linhas de um quadro de referências com o qual poderemos
buscar uma aproximação do que pode ser considerado como “fragmentos das rachaduras
de palavras que representam concepções de educar diferentes da atual, mas que persistem
professores diante de sua prática. Palavras que causam um efeito de estranheza para
que defenda as idéias da Escolástica, mesmo que não seja provável encontrarmos
que afirmam que a resposta para os problemas da educação reside em uma forma mais
antiga de educar. Geralmente, tais opiniões, arraigadas ao senso comum, são enunciadas
através daquelas frases que se iniciam pela expressão “no meu tempo...”. Proposições
paradoxais que afirmam ser solução para o presente o que em sua época ... não o foi.
Seria cômodo não levar a sério tal tipo de opinião e mantê-la apenas como mais uma
expressão do senso comum. Mas até que ponto banir a opinião daqueles que não
pertencem à esfera intelectual não seria apenas mais uma forma de querer garantir a
Por outro lado, quando levadas a sério, temos de admitir que, de algum modo, essas
opiniões parecem ter uma consistência tal que a pesquisa dessas antigas formas se impõe
e, em certos casos, até mesmo sejamos levados a reconsiderar alguns de seus preceitos.
Atentando para esse efeito que causam, perceberemos que não se trata de uma
mesmo plano duas classificações diferentes. Assim, quando alguém afirma que a
educação que recebeu era melhor que a que atualmente é dada aos outros, o que ele faz é
transportar para o presente toda uma outra estrutura, uma outra classificação. O autor de
tal tipo de frase, citada acima, atualiza, desse modo, a verdade que ele construiu no seu
tempo, para a sua vida. Esse rompimento da seqüência cronológica, que atualiza em um
de convicção gera. Afinal, não é tarefa fácil pedir a alguém que deixe de acreditar nas
verdades que aprendeu ao longo de uma vida para substituí-las por outras. Por mais que
se “doure a pílula” do novo, do mais moderno, haverá sempre quem esteja disposto a
integrá-los em uma forma capaz de liquidar o mal-estar que o convívio dessa diferença
continuamente causa.
Esse condicional do ter que se haver com a diferença remete a um outro lugar fora da
Educação, onde encontramos essa mesma condição enunciada. Qual lugar? O lugar do
amor. Discordante da opinião daqueles que imaginam ser o amor uma fusão, o encontro
ausência que significa a presença, a confusão de duas identidades que se encontram num
fugaz eu te amo e que, em seguida, se esvanece diante das diferenças que um impõe ao
outro. A maneira como tentamos falar dessa impossibilidade de reduzir o dois a um,
constitui toda uma modalidade discursiva que nomeamos como discurso amoroso.
É por esses motivos que penso que dentre as diversas formas discursivas existentes, o
discurso amoroso é o que se apresenta como o mais apropriado para o estudo dos efeitos
da coexistência de diversas concepções do educar. Por mais estranho que soe, por mais
negada que seja a afirmação de que existe uma vinculação entre a educação e o amor,
não há como deixar de admitir que tal forma discursiva exista no campo pedagógico. O
reconhecimento de tal afirmação é de ordem tácita, pois basta ler os poemas que fazem
do(a) professor(a) personagem literário para reconhecer que é de amor que ali se fala.
Assim, mesmo que pelo viés da teoria essa modalidade discursiva seja pouco freqüente,
esperado, terminam por responder a tais questões produzindo outras conotações para o
atualidade, a educação produziu para lidar com o discurso amoroso. Neste instante, o
que posso notar é que elas advêm de duas raízes calcadas em dois solos que se
alcançar a solução para todos os males da humanidade. Nesses dois terrenos, o discurso
relação à educação, que oscila entre a arte e a ciência, podemos notar que à primeira
explicação desses mesmos estados. Assim, enquanto o discurso romântico serve para
dizer dos sentimentos que permeiam o educar, o discurso científico presta-se para
produzindo um movimento pendular que faz que em um extremo seja aberto o espaço
seja procurada, por meio de um dizer racional, uma boa explicação para o ensinar. Não
há como deixar de reconhecer, portanto, que o período descrito por esse pêndulo seja
essencialmente amoroso.
Por outro lado, sei que ao tomar o discurso amoroso no espaço acadêmico de
trespassou essa modalidade discursiva que fez acreditar que qualquer dizer sobre o
amor, que não seja o da forma científica, é mera idealização. Mas, será mesmo que só
podemos nos interessar pelo amor à medida que ele é qualificado como resultante da ação
dos hormônios? Será mesmo pieguice todo o dizer do amor que não seja o científico?
Acredito que não, mesmo não tendo como negar que, fora desses padrões, o amor, em
relação ao saber, ocupa uma posição marginal. Que assim seja! Afinal, é exatamente por
causa dessa marginalidade, que é tão comum aos amantes, que o discurso amoroso, na
educação, se mostra como sendo a mais apropriada das manifestações para proceder à
modernidade.
relação professor-aluno. Para que as dúvidas mais persistentes quanto à existência desse
vínculo sejam demovidas, basta que se atente em como as respostas a tais perguntas se
a eterna busca de um método mais efetivo e/ou mais vinculado à realidade do aluno.
Para ir além dessa constatação, é importante tentar apreender de que modo foi
indispensável que sejam pensadas, primeiramente, quais foram as formas que esse
transmissão. Para tal, proponho as discussões sobre como foi organizada a primeira teoria
Nova”.
que a relação amorosa para com a criança é pertinente à ordem da natureza. Incidência
materno pelos filhotes humanos. Para desmistificar essa crença no amor natural à criança
inicio por recordar que tal condição amorosa só veio a surgir a partir do século XVIII,
isto é, pelo menos no que tange à exigência de que a criança deve ser amada de modo
incondicional. Não é de admirar, portanto, que nos cause hoje tão profunda sensação de
indicativo de que o conceito de criança foi modificado de forma intensa nos últimos
duzentos anos?
Para explicar tal modificação é possível percorrer diversos caminhos. Um deles é dizer
modo de produção capitalista. Tal via nos conduzirá à percepção de que o novo conceito
de criança não é algo que possa ser atribuído de modo genérico a todo infans, pois
enquanto produção do capitalismo, a teoria do amor à criança não comporta, para ater-me
a um único exemplo, “os meninos de rua”. Não ignorando esse vínculo, é necessário
perceber que a partir do século XIX foi concebido um novo discurso para dizer a criança
e daí, por extensão, estabelecida uma nova forma para amá-la. Assim, tão importante
previamente, a uma forma discursiva a fim de que o novo conceito pudesse ser posto em
prática.
Hoje, quando pensamos em uma criança, e falamos como ela deve ser protegida,
cuidada, ensinada, isto é, dizemos como ela deve ser zelada, na realidade estamos
reproduzindo uma forma de discurso amoroso à criança, a menos que queiramos ficar
surdos diante do enlace que nossa própria língua realizou entre o zelo e o amor. Mas
onde buscamos a referência para garantir que tais “cuidados” são verdadeiramente a
prova de nosso amor à criança? A resposta para essa pergunta não é difícil de ser
encontrada, pois se existe um campo discursivo que privilegiou a nova criança, esse
59
Confira: ORLANDI, O. Teoria e Prática do Amor à Criança : Introdução à Pediatria Social no Brasil,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1985
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1981.
BADINTER, E. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1989.
campo foi, sem dúvida, o discurso médico e, em particular, a puericultura. Para
ensina como as mães e os pais devem limpar, vestir e estimular um bebê? Quem ensina
quais são os horários ideais para o neonato dormir, acordar e ser amamentado? Quem
ensina as normas de como proceder para garantir ao futuro adulto higidez física e mental?
Todas elas comportam uma única resposta, e não é o discurso pedagógico como poderia
ser suposto por sua função de ensinar, mas sim o discurso que criou o saber ao qual todas
mental e moral da criança. De tal modo a puericultura instaurou-se como o saber sobre a
criança que acabou por se tornar capaz de produzir outras determinações que, para além
tange à função dos pais. Hoje, recusar seguir as prescrições médicas poderá facilmente
Entranhada como o centro em torno do qual a família deverá descrever sua órbita, a
nova criança passará a reclamar para si uma nova vicissitude amorosa. Surge então um
novo tipo de necessidade amorosa de que a religião e o discurso social não conheciam
nenhuma palavra, mas ele será o fornecedor das bases para a edificação de um novo pai e
de uma nova mãe. Emergindo do vácuo existente entre os antigos discursos e a nova
novo conjunto de valores, até culminar na organização de uma nova dieta60. Após a
chega o momento de impor um novo modelo para os homens e para as mulheres. O amor,
se é que ainda é possível falar dele, encontra como último refúgio sua redução aos
Discurso Amoroso:
"(...) o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão. Este
discurso talvez seja falado por milhares de pessoas (quem sabe?), mas
não é sustentado por ninguém; foi completamente abandonado pelas
60
É necessário salientar “que os gregos entendem por dieta não só a regulamentação dos alimentos do
enfermo, mas também todo o regime de vida do Homem e especialmente a ordenação dos alimentos e dos
esforços impostos ao organismo. Nesse aspecto, o ponto de vista teleológico em relação ao organismo
humano devia impor ao médico uma grande missão educativa.”(JAEGER, 1995. p.1040)
linguagens circunvizinhas: ou ignorado, depreciado, ironizado por elas,
excluído não somente do poder, mas também de seus mecanismos
(ciências, conhecimentos, artes).”(BARTHES,1994.p.1)
que fala com o sujeito do enunciado.61 O novo discurso que aí é construído, sendo ímpar
em sua capacidade de regular, detém o poder de dizer o que no campo das relações
não é de admirar que “o discurso científico do amar” consiga ser capaz de produzir a
mesma qualidade de culpa que, anteriormente, era provocada pelo discurso religioso.
da família e nas formas de como educar, por que haveríamos de pensar que o modelo
61
Sobre esse aspecto confira:
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - A vontade de saber, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984.
realidade, o contraste entre a educação tradicional e as novas exigências amorosas foi
ficando cada vez mais acentuado, até que já não fosse mais admissível que esse ser doce,
incorporou o novo discurso, como também reconheceu, naquele momento, que essa
mudança somente seria realizada mediante a fixação de um outro ideal e de uma outra
concepção de vida. Princípios vitoriosos que passaram, dali em diante, a determinar, não
apenas o que a educação deveria inculcar, mas como deveriam ser alteradas as vias da
entronização da nova imagem da criança. Mudança radical que afetou não apenas o que
deveria ser ensinado, mas principalmente, o como deveria ser ensinado. Tal ocorrência
avaliza dizer que a educação nova trouxe, em seu bojo, uma nova maneira de aquele que
A relação entre a educação nova e o discurso médico que a precedeu pode ser
profissionais, seja nas bases que possibilitaram o movimento, seja no seu decurso, foi um
(1870-1952) médica - na Itália, entre outros. Além desse indicativo, outra comprovação
cognição. Não fosse assim, não se teria logrado êxito na obtenção de subsídios para a
da criança.
Ainda sobre a forte influência dos médicos na proposição da Escola Nova, Angéla
Diante de tudo isso, não há como negar que o movimento da Escola Nova está calcado
corresponde a uma exigência feita pelo novo discurso. Para entender a força que possui
um modo discursivo basta recordar que quando Ratichius62 e Comenius optaram pelo
nome Didática, derivado do grego didascoo (ação de expor ou discorrer), para batizar
todo um campo de metodologia educacional, eles o fizeram por acreditar que é na forma
discursiva, e não no campo das habilidades práticas (praxis), que estão fixadas as bases
que é educar pôde ser modificada. Conscientes ou não desse fato, esse foi o percurso dos
que lançaram a Escola Nova, e é exatamente por causa dessa condição que,
diferentemente de Angéla Médici, atribuo à nova criança a criação da nova escola e não
o contrário.
Atentando fixamente para essa inversão, encontraremos no século XVII, mais uma
vez, o espaço temporal que gerou o embrião desse movimento que só veio a eclodir
duzentos anos mais tarde, sendo possível deduzir, a partir dessa consideração, que a
62
Forma latina do nome de Wolfgang Ratke (1571 - 1635)
saber. Significa dizer que ela traz consigo todas as virtudes e todos os males inerentes à
scientia, inclusive no que diz respeito à forma como articula o discurso amoroso. Visto
por esse viés, toda ênfase na “criança especial”, nos distúrbios psicológicos de
aprendizagem, nas doenças neurológicas nada mais é do que um mero reflexo do lugar
que a criança passou a ocupar no seio do discurso científico. Acrescento então uma nova
condiciona os papéis da família, exigindo inclusive um novo modelo de escola, por qual
O modelo de professor engendrado pela escola tradicional foi, aos poucos, tornando-
se obsoleto para lidar com aquele novo “ente”. O novo professor que adveio deveria,
capacidade e preparo para relacionar-se com seus alunos. No intuito de aperfeiçoar essa
última habilidade, o novo professor deveria recorrer a teorias médicas e psicológicas para
delas retirar os subsídios necessários à sua prática. Mas, diante dessas novas vicissitudes,
A interrogação é uma proposição para aqui se deter por um instante. Maria Eliana
Novaes faz uma brilhante desconstrução no uso generalizado do parentesco “Tia” como
forma de designar a professora, demonstrando que esse termo vela todo um processo de
contidas nesse velamento, em certo ponto de seu texto ela salienta: “O ciclo vicioso se
possível à medida que existe uma demanda amorosa contida no educar que a moderna
educação simplesmente não tem como responder. É nessa ausência do ter o que dizer
que é possível buscar uma explicação para o motivo que conduziu a prática pedagógica
a “abrir as portas” à entrada do idealismo romântico em seu cerne. Ela as abriu por ter
essa demanda, diante da qual a ciência se cala. A entrada dessa formulação porém,
A nova educação, despossuída de uma referência própria que fosse capaz de conduzir
a um dizer sobre o amor no campo da transmissão, mas com uma demanda apontada
exatamente para esse lugar, fez com que não restasse ao professor outra alternativa que
não a de buscar em si, no seu próprio eu, um modo de atender a essa exigência. Ambígua,
a professora pede, em nome da profissão, que não a tratem de tia, mas aceitará, de bom
grado, essa mesma denominação quando oferecida em nome do amor. Nesse ínterim em
que exposição de saber e exposição de si se misturam, sentir-se amada passa a ser, para a
Não pode ser atribuído ao acaso, portanto, o fato de a descrição da prática profissional
teórica, como por exemplo, as que dizem ser o amor à professora um deslocamento do
em especial as que identificam a função de ensinar crianças como sendo uma habilidade
nata das mulheres. Em todas as formas de distorção, o que é possível ser assinalado é a
alcançar uma resposta amorosa para a Educação no espaço que o saber científico deixa
vago. Idealizações que surgem no exato momento em que, diante da ausência de uma
referência discursiva que justificaria sua ação, o(a) professor(a) enuncia que a teoria na
prática é outra.
A moderna educação foi compondo o seu discurso amoroso velando “daquele que
por uma serie de velamentos teóricos e ideológicos, gerou a imagem do professor como
mãe, tia, amigo, confidente, sacerdote, e o que mais possa ser apresentado como objeto
tamanha idealização amorosa é que um dia o professor se veja como os antigos cristãos
A palavra velar tem, em nossa língua, uma possibilidade de sentidos que lhe é bastante
encontrado na origem de sua significação. Assim, velar enquanto advindo de velu refere-
se ao véu palatino ou aos sons que nele se formam. Por outro lado, se adveio do latim
velare significará: cobrir com véu, encobrir, esconder, ocultar, tornar escuro. Por fim, se
é o vocábulo latino vigilare que está em sua raiz, velar passará a significar: passar a noite
acordado, conservar aceso, estar alerta, vigiar.63 Oportuna conjunção de significações que
me possibilita ampliar o sentido de velamento para além do velare ao qual ele,
específico do discurso, o velamento é algo que só se faz pela fala. Além disso, não
podemos esquecer que a intenção de ocultar só alcança sucesso quando quem esconde
permanece zelando/velando para que esse objeto de ocultamento não venha a ser
63
Confira: FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 2 ed, Nova
Fronteira, 1986.
descoberto. Por tudo isso, defino como velamento a ação de ocultar, produzida no e pelo
discurso, com o objetivo de manter excluído o objeto que sofre a ação de ocultamento.
educação em que não se adentra a não ser como um discurso estrangeiro; por outro lado,
o acontecimento amoroso faz parte do cotidiano da educação sempre que esta envolve,
Talvez as novas tecnologias aplicadas à educação sejam a solução definitiva para esse
problema, uma vez que criam a expectativa de um dia ser possível ensinar sem a
intermediação humana. Mas restaria perguntar: caso tal ficção viesse a tornar-se
É muito pouco provável que assim seja, pois a educação é essencialmente uma prática
humana que envolve duas posições distintas: a de quem conhece e quer ensinar e a de
quem não conhecendo deseja aprender. A ilusão de que o livro didático, o computador,
ou qualquer outro meio que venha a ser inventado seja capaz de educar apenas sustenta a
idealização do discurso pedagógico de ser capaz de valer por si só, de operar na ausência
modo os professores, que acabam por levá-los até mesmo à opção radical de abandonar a
docência. Detalhe: tal reportagem não relata o cotidiano de nossas escolas públicas, onde
64
Revista Veja N°22 Ano 29 Edição 1.446. páginas 54 a56
mídia, mas o das escolas freqüentadas por alunos da chamada classe média. O que está
Não é por acaso que a mesma reportagem aponta, em seu final, para a necessidade de
ser recolocada em discussão a questão de quais são os limites para o ato do outro. Mas
como pensar em limites diante de uma prática amorosa que tem na palavra doação o seu
único vocábulo? E, além disso, como foi que essa palavra se incorporou à prática
pedagógica?
A presença do religioso na educação pode ser demonstrada não apenas pelo vínculo
discurso pedagógico, tanto aferente quanto eferente, de palavras cujas origens são
indubitavelmente religiosas. Constatação a que chegou Eliane Marta S.T. Lopes quando,
Constatação a que também chega Lusia Ribeiro Pereira65, que ao isolar, da redação de
não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é
profissão, é vocação”, palavras tais como: “salvar, dedicação, vocação, amor, esperança,
65
Sobre esse aspecto confira também: ALMEIDA, Guido. O Professor que não Ensina, São Paulo,
Summus, 1986.
coração, carinho, esforço, responsabilidade, mestre, pai, mãe, amigo, guia, companheiro,
dom, entrega, missão, prazer, martírio, luta, anseio, ministério, compromisso, professar,
que se opera, essencialmente, quando oferecem, como espelho para a construção do “ser
fato entretanto não é suficiente, pois é muito pouco provável que caso baníssemos do
discurso pedagógico todas essas palavras alcançássemos a identidade por elas ocultada.
Afinal, essas palavras adentram o discurso pedagógico pelo cotidiano pedagógico e não
pelo o campo teórico ou pela militância da prática profissional. Nesse último aspecto, a
presença dessas palavras chega, inclusive, a produzir uma contradição já que, muitas
vezes, o professor que luta por melhores salários é o mesmo que acredita piamente na
sacralidade de sua profissão. Como o que é sagrado não pode ser remunerado ...
Não sendo possível reverter o efeito que tais palavras causam pela via de sua exclusão
do discurso pedagógico, resta interrogar as causas que possibilitaram tanto a sua entrada
quanto a sua permanência nesse lugar. Nesta condição, duas possibilidades podem ser
seriam fragmentos, vestígios de uma filiação que a educação tenta esquecer, mas da qual
representação insuficiente.
Os desdobramentos dessa presença parecem ser infinitos, até mesmo porque o quadro
está perdido para sempre, dele só podemos contar uma dentre as diversas histórias
possíveis, porém que essa “uma” possa produzir conhecimentos que, como ressalta
história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições
especificamente a história do amor cristão, que deve ser contada para que sua função de
(13,34) encontramos:
"Dou-vos um mandamento novo:
que vos ameis uns aos outros.
Como eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros.
Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns pelos outros”.66
independente da relação que, com ele, eu estabeleça. Assim, deve ser amado de modo
incondicional, com a mesma intensidade de amor que eu possa dedicar a mim mesmo. É
66
A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Edições Paulinas,1987. p. 2022
É interessante acrescentar nesse momento os comentários que se referem a essa passagem: (...)“o
evangelista une o preceito do amor, testamento de Cristo. Esse preceito já presente na lei mosaica,
é ‘novo’ pela perfeição a que Jesus o faz atingir e porque constituiu como o distintivo dos tempos
novos, inaugurados e revelados pela morte de Jesus.”(op. cit. p.2022)
criado então um universal para o amor que não existia na filosofia grega, e que pode ser
expresso através da frase: amo o outro porque sou nele. O amor cristão passará a
oferecer como ethos a identificação de uns aos outros, tendo como modelo a própria
andrógino.67
outras religiões a não ser da Cristã, é a essa modalidade amorosa que elas se referem.
de um amor que tem como objetivo redimir — através de seu próprio sacrifício — da
Ensinar passa a ser penitência; a cada instante são reafirmadas as resoluções do III e
do IV Concílios de Latrão, segundo as quais o professor não deve ser pago, posto que o
saber é um dom de Deus que não pode ser transmitido por dinheiro.68 Pagar criaturas de
origem tão divina com uma quantia justa de dinheiro seria reduzir para elas o caro valor,
tanto no sentido de amor quanto no de capital, de sua profissão. No modelo do amor
cristão existe um para além que não admite sua materialização em moeda, algo que só se
paga pela penitência, um lucro de outra ordem que exige para se realizar a manutenção
professoras nas escolas de quadros, adereços, enfeites, etc que obviamente envolve
67
Sobre o mito do Andrógino ver O Banquete de Platão.
*
Resultado da opção por um Ethos Estóico, por oposição a um Ethos Epicurista, que valorizará o
sofrimento como o caminho para se atingir a “verdade do Ser”.
68
Confira: Verger, J. op. cit. p.68
dinheiro. Como alguém que ganha tão pouco pode retirar de seu mirrado ordenado
dinheiro para a confecção desses materiais? Não seria conveniente que, ao invés de
outro lucro está sendo obtido aí ? A resposta para essas perguntas bem que pode ser a de
que, muito mais que o salário, professores e professoras recebem como pagamento o
amor de seu próximo — digo de seus alunos — a que fazem jus pela cruz que carregam.
Está aí, na comunhão do calvário, um gozo, propiciado pelo amor cristão, que supera
ganho que ele obtém com o ensinar. Esse lucro que se realiza para além do material, será
justificado através da sentença: “O que eu quero é o bem dos outros, contanto que
ele permaneça à imagem do meu (...) contanto que ele dependa do meu
acabam por realizar para o(a) professor(a) a aspiração franciscana de “doar a vida pelo
irmão”, ou seja, ao assumir tal posição, o(a) professor(a) será o próximo que se oferece
para (...)“satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de
lo.”(FREUD, 1974c.p.133). Enfim, se como salienta Freud, homo homini lupus, o(a)
dessa exposição um diferencial de gênero expresso pela grafia de o(a) professor(a). Optei
por tal forma de expressão por considerar que tais velamentos não se produzem de modo
universal para o homem e para a mulher, e por observar que o magistério, em especial no
ciclo básico, é uma profissão essencialmente feminina. Assim sendo, como a idealização
da mulher cristã — aí estando incluído o imaginário da mãe cristã — é aquele que toma
feminina, irá absorver como representação da mulher um ideal que não é apenas o da
sofredora, mas o da que é capaz de abdicar do que lhe é mais caro, a que foi capaz de
entregar para a morte, em benefício de toda a humanidade, sem contestar, o seu próprio
Filho.
Em síntese, é através dos velamentos produzidos, tanto pelos fragmentos quanto pelas
e pela doação, e que não admite ser reduzida completamente ao trabalho secular. Os
professor construir para si uma real identidade de sua prática e, por outro, pelo
imperativo de ter de ofertar corpo e espírito para serem imolados. Diante de tal
condição, não nos deveria causar nenhum espanto quando um governante, diante das
ducha de água fria. Afinal, tal resposta não deixa de ser adequada ao discurso que, muitas
no discurso amoroso e sobre ele com uma citação de Rousseau é uma opção que realizo
discurso pedagógico. Dividir de tal modo o sujeito e sua obra pode soar estranho ao leitor
nesse momento, mas é exatamente essa cisão que os educadores costumam realizar
parece existir, para a educação, um duplo de Rousseau: o que funda a moderna educação,
magistério por se desfazer da paternidade de seus filhos naturais. Para os que teimam em
excluir o sujeito de sua obra parecerá talvez chocante o conteúdo do excerto colocado na
abertura deste texto, mas o trecho condensa, na fala desdenhosa e fria de uma prostituta, a
Sabemos o quão difícil foi, para Rousseau, constatar que aquela “obra-prima da
natureza e do amor (...) tão boa e generosa, quanto amável e bela” de modo que “os
grandes, os príncipes, deviam ser seus escravos” era, na realidade, uma “miserável
prostituta, entregue ao público.” Essa constatação não lhe deixa outra escolha a não ser
a de declarar: “Há nisso qualquer coisa de inconcebível”* Visualiza-se aí, nesse
trecho de As Confissões — que é precedido pela advertência: “Seja quem fôr o leitor
que queira conhecer um homem, que êle ouse ler as duas ou três páginas
veio a ser concebido, na atualidade, como sendo amor. A partir dessa época, o amor passa
a ser definido como sendo uma expressão afetiva que só existe quando foi atendida a
Rousseau não apenas criou as condições para que surgisse um movimento literário, o
romantismo, que fez do anseio amoroso a sua base, como também forneceu à ciência a
O saber científico do amor é, sobretudo, um saber do sexo, o que não quer dizer que
ele não seja um saber sexual, sendo sua via de constituição a da confissão pública. O que
interessa à ciência é saber como é praticado o sexo para que sejam estabelecidos, de
normalidade. Esta é, por exemplo, a conclusão que apresenta Allan BLOOM, em sua
praticados por um grande número de pessoas, o que equivale dizer que possuíam
*
Os trechos em negrito são compilações de As Confissões, op. cit. p.344
representatividade estatística, e, sendo assim, não poderiam mais ser reprimidos por “leis
arcaicas” que tinham como única função a preservação de uma moral antiquada que
foram se sucedendo uns aos outros até que acabaram por criar a sexologia, um campo de
saber que tem como especificidade o tornar públicas as práticas sexuais. O resultante
desse saber, que reafirma o vínculo obrigatório entre o amor e o sexo ao mesmo tempo
saindo das mãos do Autor das coisas...”, para dizer da função do mal-entendido na
tentar, por todos os meios possíveis, alcançar a aniquilação do efeito que esse mal-
ser o retorno à natureza a única forma de conduzir o homem, através da educação, para
viver em um mundo perfeito. Um mundo que desaba quando Sophie declara : “Emile (...)
saiba que não sou mais nada para você. Um outro maculou sua cama, estou
traição de Sophie, inconcebível para Emílio, é uma dentre as muitas formas que Rousseau
acha para dizer de seu próprio fracasso para lidar com a diferença69. O seu projeto porém
persiste, encontrando no iluminismo científico a sua continuidade. Nesse aspecto,
Kinsey e todos os seus sucessores, que acreditam ser a ciência capaz de solucionar o
mal-estar do homem na civilização por meio da prescrição do ato sexual que realize a
69
Confira: SOLER, C. Jean-Jacques Rousseau y las mujeres In: SOLER, Colette. Estudios sobre las
Psicoses, Buenos Aires, Manantial, 1993.
Da descrição dos comportamentos sexuais passou-se à descrição de todas as formas
de um discurso disciplinador que nos oferece a imagem de uma igualdade abstrata entre
os sexos baseada no ser o prazer sexual uma condição natural, as descrições das relações
sociais, por sua vez, permitiram a montagem de um discurso “politicamente correto” que
prega o paradoxo da igualdade das diferenças. O espantoso em tudo isso é que tais
afirmações são feitas pelo mesmo discurso que no início do século pregara a condição de
Mas o que tem isso a ver com a educação? Pergunta a que respondo lhe contrapondo
uma outra: será possível negar que a relação professor-aluno é amorosa? Creio que não;
afinal, como coloca Bloom, referindo-se a um não poder pensar na beleza do erotismo ou
do amor:
"Apoiar este tratamento não erótico do eros é o princípio mais em
moda, segundo o qual todos os relacionamentos humanos,
especialmente os sexuais, provêm do único princípio que motiva o
homem: a força de vontade. Tudo se resume em relacionamentos de
força bruta, na vontade de dominar, de ter as coisas à sua maneira.(...) A
relação entre aluno e professor é uma relação em que este só está
interessado em impor suas opiniões e presença ao aluno”.
(BLOOM,1996. p.23)
Reduzindo o Eros, o amor, a uma condição fisiológica que é o sexo, e criando uma
especialidade que determina como ele deve ser praticado, o discurso científico espera que
uma disciplina escolar, como a educação sexual, erradique todo o mal-entendido que
circula o imaginário da relação sexual, da mesma forma que supõe que os negros, por
do racismo. Falar de amor passa a ser, então, falar de sexo — fiz amor com ... —, e a
relação, qualquer que seja, deve ser igualitária, aniquiladora dos efeitos produzidos pela
posto pelo enunciado; não pode haver sobras nem discordância entre eles. Nesse quadro,
como pode o professor interrogar-se sobre o que dele quer o aluno? E, como pode este
interrogar o que dele quer o professor ? O discurso científico do amor reduziu a relação
estabelecidas. Diante disso nada mais resta a dizer do que “ Lascia le donne e studia la
matematica.”
nomes com que nos referimos a aquele que ensina; nomes que surgiram em diferentes
afirmar agora que a denominação “lente” está vinculada ao ensino, tanto da teoria quanto
é uma referência por um lado às corporações de ofício da Idade Média e, por outro, à
do final da década de 50. Mas como esses nomes se misturam em nosso cotidiano,
perdendo, até certo ponto, as especificidades que os originaram, concluo que tal
diversidade para designar aquele que ensina está vinculada à possibilidade de, diante da
transmissão, serem assumidas diferentes posições para o ensinar. Assim, muito mais do
70
A idéia de pensar a existência de uma “real identidade” a partir dos velamentos que nela operam me
ocorreu a partir da leitura do texto Ser Analista de Jorge Forbes (FORBES,1991) onde essa idéia é
desenvolvida sobre os velamentos da real identidade do ser analista.
71
Confira: ALMEIDA, José R. P. A Instrução Pública no Brasil (1500-18889) São Paulo, Epuc, Brasília,
INEP/MEC, 1989.
que se ligarem a conteúdos específicos de ensino, os nomes da série remetem a
Tomar a forma de ensinar como ponto de partida para pensar a transmissão não é
nenhuma novidade, pois que a transmissão nela implicada é algo que conhecemos bem,
desde Ratichius e Comenius. Mas é esse mesmo campo de saber, fundado por esses
autores, que vem, ao longo dos tempos, nos demonstrando que essa forma não se deixa
que todo método de ensinar encerra, além da sua validade, a sua insuficiência. Assim,
ensinar, a insuficiência desses mesmos resultados irá trazer para a cena pedagógica o
entre aqueles que a teorizam como sendo o efeito causado por um método e buscam na
É claro que essas vertentes não são excludentes entre si, não sendo poucos os
estudos que buscam harmonizá-las. Mas, longe de encontrar uma solução holística, que
viesse apaziguar a insistência dos resultados insuficientes, tais estudos, na maioria das
vezes, acabam por produzir uma eterna repetição que circula entre os estudos das razões
educação. De modo genérico, esses estudos sobre a transmissão na educação acabam por
produzir, como subproduto, a criação da imagem de como deve ser o professor, motivo
que me faz retornar à pergunta de Eliane Marta S. T. Lopes, já citada neste capítulo,
quando interrogando sobre o eterno ensinar a ser professor: “Será mesmo que ninguém
incessantemente prescritas pela Didática, o que significa dizer que para pensar os
Essa identidade, entretanto, apenas poderá ser encontrada se admitirmos que existe
uma incompatibilidade entre a imagem que a educação constrói de como deve ser o
educador, e o homem concreto que com ela se identifica ou não. A última premissa
apresentada implica duas condições. Primeira: existe uma imagem ideal do ser professor
que corresponde àquele que é capaz de ensinar sem perda. Segunda: existe um homem
real que é professor, mas que não consegue atender à exigência de perfeição que a
imagem “do ser professor” lhe impõe. Dessas duas condições, podemos concluir que o
impossibilidade do homem real em atingí-lo. Em síntese, antes de ser uma profissão, ser
professor é uma função, uma tentativa de estabelecer uma correspondência entre um ideal
e o real. Função que deve estar situada em relação à transmissão, por oposição à
veiculação, pois, caso contrário, teríamos de aceitar que é verdadeiro ser a função do
mestre, professor, ..., etc, a de apenas veicular informação, função para a qual, ao longo
sucederam, trazendo com o seu passar a escrita, o livro, a imprensa, o jornal, o rádio, a
televisão, o computador, a multimídia, a internet, e aquele que ensina, apesar dos vários
vaticínios sobre sua extinção, tem permanecido — o que não pode ser atribuído apenas a
carne e osso, para sustentar para nós o aprender, e que este não pode ser substituído por
qualquer tecnologia atual ou que venha a ser inventada. É diante dessa constatação que
me permito definir o homem real que ensina como sendo aquele(a) que sustenta a
veiculação de informação.
Essa definição faz com que tudo o que se refira a conteúdo esteja situado fora do
campo da transmissão, não entrando nele a não ser como a “matéria” com a qual é
construída a ponte entre esses dois desejos. Na condição de matéria, os conteúdos são os
eles, por exemplo, que respondemos a perguntas do tipo: o que um aluno deve aprender?
A transmissão porém não está situada no campo das significações. Isso pode parecer
óbvio, mas quando alguém faz do como se ensina uma interrogação, por que insistimos
resposta na ponta da língua: faça desse modo, use o quadro dessa maneira, utilize tais
aula — posto que ela ainda não aconteceu —, prever com tamanha exatidão? Será que a
educação só é capaz de pensar com a presença, mesmo que para isso esta tenha de ser
idealizada?
Uma observação se faz necessária aqui. Não estou propondo que o planejamento deva
ser abolido do processo pedagógico. É claro que os conteúdos devem ser hierarquizados
de modo a facilitar a ligação entre eles, ou seja, não se inicia o ensino da matemática
quando o professor planeja como deverá agir diante de uma situação que ainda não
aconteceu, sendo que nada lhe pode dar a garantia de que ela aconteça da maneira como
foi planejada. Mesmo que isso possa suscitar temores (talvez tremores) em muitos, que
imaginariam aí o caos, não será o momento de nos atentarmos que, quando uma aula
acontece, ela nos coloca diante de um real ao qual só podemos responder com uma
invenção? Será que toda a rigidez metodológica não nos deixa perceber que toda aula
contém pelo menos uma parte que é inventada no momento pelo professor? E ainda, por
quantas vezes teremos de repetir a experimentação para entender que aquela invenção,
produzida como prescrição, perde a sua capacidade de causar o seu efeito original72?
certeza prévia de seu resultado. Assim, ao invés de a transmissão ocorrer por meio de
uma apropriação que o professor possa fazer do aluno, do tipo “eu sei o que você deve
saber”, ela se dará em um espaço vazio, em que impera o acaso, pois o professor não sabe
o que o aluno deseja saber, mas o aluno supõe que o saber que ele busca está no
uma oferta que estabelecerá um porto onde ocasionalmente o desejo de saber do aluno
atracará.
72
Essa condição de o professor preparar-se para a aula e não o preparar a aula foi a mim apresentada por
Eliane Marta S. T. Lopes, na disciplina Psicanálise e Educação, no mestrado da Faculdade de Educação da
UFMG.
A transmissão é como a ponte desse exemplo, em que as pedras seriam as
significações, os conteúdos que o professor oferece a seu aluno para que ele adquira o
de saber do aprendiz.
A transmissão, ao pôr em jogo o desejo daquele que ensina e o desejo daquele que
quer saber, se estabelece como situação discursiva, pois não há dúvida de que nela
sempre existe pelo menos um sujeito. Como esse jogo do desejo, na via da palavra, que
tenta aproximar o dizer do agir, produzindo efeitos tanto para o professor como para o
aluno remete, mais uma vez, ao discurso amoroso, retorno à pergunta inicial: qual é a
transmissão ?
Tendo sido o discurso amoroso ilhado de seus pares por meio de seu isolamento de
esvaziamento de sentido. Essa situação provocou que um autor como Allan Bloom
produzisse uma obra em que tenta resgatar a retórica da relação amorosa, sempre em
busca “das palavras dos escritores antigos, que levavam o eros muito a sério e
estudo, é necessário ressaltar que tal produção não é um caso isolado e, por outras vias,
outros autores têm também apontado para a ocorrência de uma “banalização” do amor em
nosso tempo, uma perda da noção do “verdadeiro amor” sobre o que é necessário
repensar. Desses outros autores, destaco dois: M. Foucault, que em A História da
sexo, pela pretensão de falar do sexo pelo modo purificado e neutro da ciência, e por
querer fazer coincidir o sentimental com o sexual. Não é possível, entretanto, imaginar
que exista uma homogeneidade entre esses três autores; pelo contrário, as discordâncias
que eles estabelecem entre si são bem maiores do que as concordâncias, porém o efeito
que causam, ao evidenciar essa falha no discurso amoroso, permite que dos três façamos
amor na transmissão, sem com isso exigir fidelidade à teoria desse ou daquele pensador.
amor e, além disso, fazer recair sobre ele o acontecimento da transmissão é algo que
exige, para que possa ter sentido, a contraposição com outras formas de enunciação do
amor. Formas que não têm necessariamente, de observar uma sucessão cronológica, pois
se os autores citados notaram essa dessemelhança é porque, de algum modo, pelo menos
um traço desse amor verdadeiro se mantém através dos tempos. Inicio então pelo jogo
O amor é uma condição que sempre coloca em jogo o dois, um sujeito e um objeto, em
posições que se alternam de acordo com o lugar (de sujeito ou de objeto) que é assumido.
Constituindo uma situação oposta àqueles dos que imaginam ser o verdadeiro amor uma
que um sujeito possa criar para tornar essa ausência possível) o que desencadeia um dizer
amoroso que reconduz o sujeito à sua verdade. É em torno dessa ausência do objeto
amado, radicalizada como presença impossível, que foi construído no século XI, na
Dessa modalidade amorosa, destaco duas características que são assinaladas por J.
de tal forma que autores puderam notar que todos parecem dirigir-se à mesma
sua posse, servindo de aguilhão a esses poetas para a enunciação de sua verdade, uma
verdade que inscreve a relação com esse mesmo objeto como sendo um universal, já que
não são as características pessoais da “dama”, em última instância, o que importa, mas
sim o que ela representa, o que nela possa ser velado e revelado do amor.
Permanecemos porém em um mesmo eixo, isto é, o que pensa ser o amor pertinente
exclusivamente à relação entre um homem e uma mulher. Para dele sairmos é necessário
Em vista de tal colocação fica evidente que o amor, por colocar em jogo questões
como a verdade, o prazer e a sua própria finalidade, não está, necessariamente, associado
à procriação. Constatação que nos leva a inscrevê-lo como uma expressão humana, uma
expressão do desejo, o que é o mesmo que dizer que o amor só pode ser entendido
enquanto um desvio em relação a uma natureza biológica do homem. Assim, para
entendermos a relação entre o amor e a transmissão é necessário buscar aqueles que por
esse percurso seguiram, e destes escolho, mais uma vez, três: Platão, Santo Agostinho e
Freud.73
amor. Amor que ele apresenta como dividido, em relação à sua finalidade, entre a de
procriação e a de criação
"(...) aqueles que estão fecundados em seu corpo voltam-se de
preferência para as mulheres, e é desse modo que são amorosos, pela
procriação conseguindo para si imortalidade, memória e bem
aventurança por todos os séculos seguintes, ao que pensam; aqueles
porém que é em sua alma — pois há os que concebem na alma mais que
no corpo, o que convém à alma conceber e gerar(...)”
(PLATÃO,1983.p.40)74
Não tendo como finalidade exclusiva a reprodução, Platão nos apresenta, através de
73
A escolha desses três pensadores se deu, exclusivamente, em função de ser encontrada na obra desses
autores uma exposição sobre o amor que o distancia da finalidade da procriação e/ou não a toma como a
única finalidade do amor. Reconheço, portanto, que a exposição agostiniana está na base da organização da
unicidade matrimonial, e que Freud, dependendo da leitura que se faça dele, pode ser tomado, como aliás o
fez Allan Bloom, como um dos responsáveis pela cientificização do discurso amoroso.
74
Dada a diversidade de traduções e edições de O Banquete, manterei, em nota de rodapé, a paginação de
Henri Estienne. Essa passagem encontra-se em 208e - 209a.
"O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e
aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e
dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no
meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele
a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte
divinatória, como também a dos sacerdotes, que se ocupam dos
sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda
adivinhação e magia”(idem, p34-35)75
O amor, mesmo que para os gregos possa ter assumido versões diferentes desta que é
apresentada — como adverte Foucault, não é possível imaginar que a doutrina socrático-
platônica resuma todas as formas que a filosofia do Eros tomou na Grécia —, encontra
formulações que O Banquete nos apresenta sobre a origem e a função do amor, através
discurso de Sócrates um ponto de unidade. Eros, filho de Pênia (Pobreza) com Poros
presença que aponta para ausência e a ausência que aponta para presença. A condição do
falta.
Santo Agostinho irá deparar precisamente com essa formulação sobre o amor
75
Idem, Ibidem, 202e - 203a
76
Ibiem, Ibidem, 202a
conciliação nos legará uma outra concepção de amor, que pode ser resumida através das
A influência do platonismo em Santo Agostinho é algo que ele mesmo nos conta
através de suas Confissões, mas é também nessa mesma obra que ele irá nos dizer o
amar a Cristo como a via de obtenção da verdade interior que habita cada um de nós.
Permanece assim, como um facho de luz que resiste a ser apagado, no discurso
agostiniano, a proposição do amor como o que faz laço entre a ignorância e o desejo de
ensinar, algo que vai além da reprodução do diálogo socrático, que naquele texto está
mestre interior.
O ponto final desta discussão sobre amor e transmissão recai em Freud. De fato, teria
sido muito simples, no início deste capitulo, ter antecipado ao leitor o seguinte dizer: a
transmissão só ocorre mediada pela transferência. A apresentação imediata desta
sobre dois pontos cruciais: a distorção que o conceito de transferência costuma sofrer
especial o segundo, podem revelar-nos algo sobre a relação do desejo de ensinar com o
desejo de saber.
Para iniciar essa busca, proponho, como ponto de partida, retomar algumas
derivam da condição de ser a transferência uma manifestação amorosa, Freud ressalta que
(...)“não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu
à via que o analista deve assumir diante desse amor, que esta (...) “é um caminho para o
qual não existe modelo na vida real”(Idem, p.216). Dessas duas observações podemos
concluir que a Psicanálise opera por uma via que não é aquela que, em nosso cotidiano,
civilização, de modo que o ato sexual nunca levará à realização plena do amor, e
mantém por meio da mesma qualidade de insuficiência que vincula um amante a seu
objeto sexual, qualidade que, eu poderia acrescentar, se enuncia pelo in vino veritas. Essa
insuficiência, que se situa entre o objeto de amor e o Ser do amado, faz que a verdade,
de modo que dela não temos mais do que um ligeiro sabor, um fugaz aroma, que nos
mantém na expectativa de que o ser amado possa se realizar plenamente como objeto de
amor.
Não é por acaso que Freud ,em dois de seus textos que tratam da relação entre
professor aluno; o aluno apreende no ser de seu professor na mesma medida que este
busca apreender sobre o ser de seu aluno. Agrupando todas essas constatações, a busca
especialmente, o fato de toda essa procura manifestar-se por meio de uma relação, da
busca de uma escuta que possa acolher essa fala, não tenho dúvidas em afirmar que as
Acreditando ser possível ao leitor concordar com essa afirmação, o próximo passo
será o de pensarmos como essa manifestação pode ser pensada na relação pedagógica, no
que tange à transmissão. O primeiro reconhecimento que daí podemos obter é que o
professor não poderá operar no lugar do analista, isto é, não há como aquele que ocupa,
juntamente com o aluno, um lugar de fala, não se incluir ali como sujeito. Porém, não
podemos negar que a presença do amor nessa relação cause uma aproximação do sujeito
com a sua verdade por meio da interrogação ao Outro; um instante em que o mal-
da transferência, que faz do professor suporte da verdade de seu aluno. Momento que
pode levar um aluno, por exemplo, a reconhecer o quanto de esforço ele é capaz de
apresentar-se como a palavra que propicia a conexão entre o sujeito que fala e o saber —
77
Refiro-me aos seguintes textos: O Interesse Científico da Psicanálise, vol.XII. e Algumas Reflexões
Sobre a Psicologia do Escolar, Vol XIII, ambos da Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S.
Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora.
78
Ver Capítulo 1 desta dissertação
que a redução do amor à significação exclusiva de sentimento furtou à cena pedagógica,
isto é, ficou oculto ao professor o que, afinal, põe em causa o amor. Tudo isso me conduz
à proposição final desta dissertação, e que apresento agora como encerramento deste
Capítulo e abertura do próximo: por onde opera o professor a transmissão mediada pela
transferência ?
EPÍLOGO
OS DESASTRES DE SOFIA
Clarice Lispector
4 - “Os Desastres de Sofia”
ao longo de toda a exposição deverão ser contrastadas com um fundo para que possam
àquela que, comumente, esperamos que ocorra no final da sucessão de todos os capítulos
de uma dissertação de mestrado. Tal deliberação não se faz sem motivo, o que não é
nenhuma novidade, já que nenhuma decisão é desmotivada. Mas, para esta, em especial,
digamos que eu tenha pelo menos um par de bons motivos para assim proceder.
O primeiro deles refere-se ao fato de epílogo ser sempre algo que deixa um resto, uma
impressão de que o autor, tendo sido perfeitamente entendido por seu leitor, nada mais
tem a fazer do que traçar um resumo de sua obra, recapitulando o que foi dito ao longo
de toda ela. Por outro lado, epílogo — muito mais presente na literatura do que na
aqui não é preciso, há sempre ali e acolá uma ponta solta que, em alguns casos, é um
O outro motivo para a escolha desse nome advém do que lhe servirá de matéria para
sua construção: um conto de Clarice Lispector. Uma vez tendo optado por inserir a
literatura como o fundo em que possa ser anunciado o remate desta dissertação, julguei
mais coerente optar por uma expressão de fim que estivesse mais próxima da arte do que
da ciência, ressaltando apenas que não se deve confundir proximidade à arte com
ausência de objetividade.
A inserção de Os Desastres de Sofia ocupará aqui um lugar semelhante àquele que
Afinal, o que Clarice Lispector escreve, bem que poderia ser, resguardadas as devidas
conto não apresenta nenhuma situação absurda ou qualquer outra categoria que rompa os
laços com as imagens da realidade. Acredito que qualquer professor ao lê-lo reconheça
algo, pelo menos uma imagem, que lhe remeta a seu cotidiano, seja como professor, seja
como aluno.
distorcida acabou por gerar justos protestos daqueles que se dedicam à Literatura, é
necessário que eu diga que tomo o conto de Clarice no sentido que Bellemin-Noël
propõe a essa articulação: o de "oferecer aos textos uma outra dimensão e observar
98). Especulação? Claro que não. A dimensão da instauração da verdade está no conto,
letra por letra, palavra por palavra. Não é real? Então, temos de considerar que a ficção é
capaz de nos desvendar caminhos que a materialidade nos vela ou, mais especificamente,
que não existe uma diferença radical entre materialidade e ficção - “Heisenberg fez
disso uma lei, visando não a imaginação mas 'coisas' tão rigorosamente
determinadas como partículas físicas, que são quantificáveis" (Idem, p.87). Assim,
permanecendo nessa referência de trabalho, o conto será trabalhado no sentido de que ele
Assim, não me proponho extrair dessa obra uma supra verdade, interpretando o texto
torno do qual é possível fazer circular as situações do humano que o conto encena.
Além disso, é preciso levar em consideração que uma obra artística nos causa
de afetos é preciso manter uma dada distância, esvaziar-se no que for possível desse
efeito a que, sem dúvida, o artista visa. É necessário não esquecer que nem o autor, nem
os personagens autorizam qualquer análise de si mesmos, vale frisar, mais uma vez, que
eles são vazios no que se refere à posse de uma estrutura clínica. É o humano que nesses
personagens habita o que interessa nessa articulação entre Psicanálise e literatura. Esse
humano, construído pelo autor com o barro da linguagem, que nos ilude a ponto de
pensarmos serem essas imagens pessoas de carne e osso, demonstrando com isso a
existência de uma dada ordenação a que nos podemos ligar para produzir um saber a
leitura desta dissertação. Aos poucos, na página inaugural de cada capítulo, fui
apresentando trechos dessa obra de Clarice Lispector, excertos que julguei terem uma
dada relação com a temática que propunha desenvolver naquele momento. Mas agora é
mais do que aconselhável que a leitura do conto seja feita em sua íntegra, pois Os
Desastres de Sofia fala por si. Que seja esse desvio entendido como um convite, uma
abertura à emoção que somente no próprio conto pode ser encontrada e a que eu nada
tenho a acrescentar. Convido então, ao leitor, para que ele se transfira para o anexo, as
últimas paginas onde poderá encontrar a transcrição desse texto contido no livro A
A primeira abordagem a esse texto - é bom lembrar que de uma obra literária só se
aproxima pelas bordas - é sobre o seu título: Os Desastres de Sofia. Assim, inicio pelo
nome da personagem que nos é apresentada: Sofia. Sofia não é apenas um nome, um
menina de nove anos, que a si mesma “mais parecia um erro de cálculo”80. Não há
como deixar de reconhecer que essa passagem, da infância à vida adulta, é um tempo de
transição, um tempo marcado pela desproporção. É assim que Clarice nos apresenta
Sofia, uma menina que recusa a aprender o que a escola lhe oferece, uma vez que está
põe em jogo todo o Ser de Sofia. É o que ocorre quando ela é exposta, abruptamente, por
um professor, a uma verdade diante da qual ela se horroriza. Ora, desastre, em sua
etimologia, refere-se à palavra italiana disastro81 que tem como significação má estrela.
Não sendo pouco comum a ligação que se estabelece entre a “sorte” e os astros, é
possível então apontar o acontecimento desse desastre, do qual Sofia recolhe o efeito,
como sendo algo que se aproxima do destino, ou mais propriamente dito, da “Fortuna”.
Para os romanos, essa divindade alegórica distribuía tanto a felicidade quanto a desgraça,
remetendo ao que, atualmente, pode ser designado como acaso.
Na realidade, o desastre que sucede a Sofia está muito mais próximo ao que, em
56) É, portanto, como uma tyche, no sentido que os gregos lhe davam82 — o do
80
Os excertos do textos de Clarice Lispector serão apresentados nessa forma gráfica (entre aspas e em
negrito) sem o acompanhamento de sua referência bibliografica, uma vez que o texto original se encontra
transcrito como anexo desta dissertação.
81
Confira:CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 2ª Edição, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1992.
82
Sobre o sentido grego para tyche, confira: JAEGER, Werner A Paideia, A formação do homem grego,
3ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 1995. pp.159-160, 408-413, 1279-1280.
paradoxo de ser o instante em que o homem quase alcança a sua aspiração de liberdade, o
mesmo em que ele é forçado a reconhecer a sua absoluta carência dessa mesma liberdade
— que o acontecimento desastroso na vida de Sofia deve ser entendido, como algo
“inantecipável”.
O mais importante a ser sublinhado nesse encontro é que ele resulta, para Sofia, na
aquisição de um saber que, mesmo não podendo ser totalmente objetivado, marcará para
indefinível, e nem por isso menos verdadeiro. Ele se assenta na produção de um saber
próprias palavras, sobre “o homem muito pobre ...” não tem outra função a não ser a de
fornecer a base sobre a qual a verdadeira ação, a palavra verdadeira de Sofia, surgisse. A
um aluno não aprende o que lhe é ensinado, a explicação para essa ausência é atribuída
escolar: que posição deve ser tomada diante de uma aluna que apresenta uma recusa
sistemática em abandonar sua ignorância? Como constata Sofia, é uma pena que os
professores não possam ver, na maioria das vezes, em que se transformam seus alunos.
transmissão só se interessa pelo que, em última instância, possa ser quantificável, possa
por reduzir o educar à veiculação de informação. Ora, como já foi exposto no Capítulo 3,
para informar não é necessária a presença de um professor. Por outro lado, Sofia nunca
teria apreendido o que apreendeu se não existisse ali, frente a ela, por trás de um par de
óculos sem aros, um professor que lhe atraía “pelo seu silêncio e pela incontrolada
impaciência que ele tinha em (..) ensinar.” Não há melhor descrição de que, na
realidade, o aluno apreende o professor muito mais do que as informações que este
acredita poder ensinar. É um desejo de saber, expressado por esse outro - o professor -
pelo silêncio e pela impaciência em desejar que o aluno - muitas vezes o seu mudo
Mas disso sabia tão pouco o professor quanto o sabia Sofia. A grande crueldade do
pensar a possibilidade de ensinar sem método, não há como negar que com ele o processo
ganha uma articulação bem mais propícia à aquisição dos conteúdos. Assim, cabe à
Didática estabelecer “as regras do jogo”, evitando com isso que um curso, uma aula
operar essa inversão, não se interessa por nada mais além do imperativo de que as coisas
devem funcionar. Ele passa a exigir que o aluno produza sempre orientado pelo que,
professor a causa e o fim de toda a sua ação, e o aluno só adentra esse espaço para
O grande mérito do professor de Sofia é que ele não age dessa forma, ele não pune ou
adverte sua aluna por esta ter contrariado o sentido real da história; ao invés disso, ele
decide interrogá-la sobre o seu “tesouro”, uma interrogação que não se objetivou em
resposta. Afinal, o próprio professor não tinha outra resposta para a composição de Sofia
que não o singelo reconhecimento de que ela estava bonita. Tudo o que ele pôde oferecer
a Sofia foi uma escuta de seu escrito, um momento de silêncio que fez recair sobre ela
sua obstinação de dar tudo o que fosse seu por nada e, reciprocamente, receber tudo por
nada. Foi essa muda interrogação — enunciada por um: de onde você sabe? — que
proporcionou que Sofia de repente se visse ela mesma como um tesouro, pois o que nela
não prestava era aos olhos do outro um tesouro. É nesse tempo da escuta que Sofia
Essa operação, uma vez que alguma coisa para Sofia se realiza, só ocorreu porque dela
o professor foi capaz de se ausentar. Não posso deixar de ressaltar que o episódio descrito
presença, pelo viés da recordação. Mas no tempo presente da situação, o professor não
comparece como de costume com sua impaciência de ensinar. É mediante seu olhar sem
raiva que ele se deixa apreender por Sofia como uma parte dela mesma e, sobretudo, ele
permite deixar-se cair da condição de ídolo. O professor não faz nem um esforço, nem
mesmo uma menção para se manter naquela condição; ao invés disso, ele deixa
transparecer o sorriso que aprendera e, confiante, deixa ver a sua feiúra. Esse é o tempo
de sua ausência, um tempo em que ele não reivindica nenhum reconhecimento para si,
um tempo de absoluta transparência em que ele permite a Sofia ver que ele também não
sabe; é nesse tempo de sua morte enquanto ídolo que se localiza o tempo da transmissão.
Eu não encontraria outra forma para poder disso falar nesta dissertação a não ser por
necessidade de o professor produzir, por meio de sua ausência, a transmissão, não é algo
posso dizer que ela tem suas origens na formulação do “mestre interior” agostiniano, em
medida que ele se ausenta da condição de modelo, que essa produção pode ocorrer.
Convenhamos, não é uma posição fácil, toda a situação pedagógica exige o contrário,
conduzindo à idealização.
e o de saber —, e como a ação desses dois sujeitos é mediada por seus desejos, onde o
desencontro. O mal-entendido que disso resulta não é de pouca monta, posto que o
implicada em uma verdade do sujeito sobre o seu próprio desejo, e não no acúmulo de
conhecimentos, teremos de pensar o que permite a um professor ocupar uma posição que
favoreça esse acontecimento, lembrando que para tal o lugar de analista não serve como
modelo, uma vez que educar não é psicanalisar, e vice-versa. Resta então ao professor
fazer valer, no seu próprio desejo de ensinar, uma verdade anterior, algo que já existia
nele antes que se enveredasse por seu ofício: o seu desejo de saber. Basta que esse outro
desejo seja colocado em evidência para que se percebam os meandros por onde ele opera.
Em síntese, é na posição de aluno, enquanto é esse que está referido ao desejo de saber,
que o professor poderá encontrar o lugar de onde possa vir a ser “o arco da transmissão”.
com os alunos, pois um professor que realmente acreditasse que para transmitir tivesse de
se vestir, falar, se comportar, etc, como seus alunos poderia, no muito, causar espanto. A
posição de aluno a que me refiro é aquela que Sofia tão bem apresenta, uma posição de
pergunta apenas para ter confirmada a resposta já trazida pronta, na ponta da língua. A
professor o saber, e está em oposição àquele tipo de discurso desgastado que alguns
professores enunciam quase como um pedido de desculpas por não saberem tudo. Estes
últimos, que repisam como bordão respostas do tipo “eu não tenho agora uma resposta
para a sua pergunta, vou trazer na próxima aula”, encenam diante da ignorância um duplo
cancelamento. Algo que poderia ser traduzido mais ou menos assim: de tanto saber que
não sei, posso de tudo saber. Seu intuito é, em geral, ser sempre admirado por seus
alunos, e ocupando tal posição ele nunca permitirá que seu aluno o destitua.
Ainda a respeito da destituição do professor. A posição que ele ocupa para seu aluno é
verdadeiramente a daquele que sabe; o aluno atribuí isso a ele. O professor de Sofia era
seu ídolo, isso está no texto. Mas também está no texto toda a ambivalência de Sofia em
relação a ele; para ela seu professor amado é também seu professor odiado, e é assim que
O fato de ocupar um lugar a que se atribui, por antecipação, um saber, não livra o
professor da ambivalência do amor, é bom que isso esteja claro. Quantos professores não
caem nessa armadilha do desejo de saber, e acabam por pedir que sejam sempre
reconhecidos como bons, belos, caridosos, desprendidos, e tantas outras palavras que o
amor cristão permita engendrar para a sua realização? Por essa via, eles se afastam da
sedução, já que acreditam ser, eles próprios, o verdadeiro objeto de amor de seus alunos.
método que eu possa agora apresentar no sentido de garantir que todos aqueles que
venham a utilizá-lo possam alcançar os resultados esperados. Não há aqui o que possa
vir em meu socorro, de modo a apresentar no final desta dissertação uma norma, uma
orientação para procedimentos a serem adotados em sala de aula. A única conclusão que
posso apresentar como tal, após a realização escrita de todo este trabalho, é que ele me
Encerro, então, em um momento de solidão — posto que já não posso mais aqui
contar com o meu leitor ideal, que agora está objetivado no que leu o texto
todo o texto; não há um ponto específico onde ele esteja colocado. Neste final, retomo o
sentido de apontar para a transmissão: poder dizer que está lá, apostar que se encontra lá.
Mas caberá a um outro poder localizá-la e realizá-la da forma que lhe convier. De minha
parte, espero que esta escritura possa fornecer aos professores uma possibilidade de
Clarice Lispector.
OS DESASTRES DE SOFIA
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão,
e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão
estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto
do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria
um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera
de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De
noite, antes de dormir, ele me irritava. Eu tinha nove anos e pouco, dura idade como o talo não
quebrado de uma begônia. Eu o espicaçava, e ao conseguir exacerbá-lo sentia na boca, em glória
de martírio, a acidez insuportável da begônia quando é esmagada entre os dentes; e roía as unhas,
exultante. De manhã, ao atravessar os portões da escola, pura como ia com meu café com leite e a
cara lavada, era um choque deparar em carne e osso com o homem que me fizera devanear por
um abismal minuto antes de dormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em
profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura. De manhã — como se eu não tivesse
contado com a existência real daquele que desencadeara meus negros sonhos de amor — de
manhã, diante do homem grande com seu paletó curto, em choque eu era jogada na vergonha, na
perplexidade e na assustadora esperança. A esperança era o meu pecado maior.
Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pela salvação daquele homem. Eu
queria o seu bem, e em resposta ele me odiava. Contundida, eu me tornara o seu demônio e
tormento, símbolo do inferno que devia ser para ele ensinar aquela turma risonha de
desinteressados. Tornara-se um prazer já terrível o de não deixá-lo em paz. O jogo, como sempre,
me fascinava. Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os
ruins já nascem — aqueles ruins que roem as unhas de espanto —, sem saber que obedecia a uma
das coisas que mais acontecem no mundo, eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez
não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não
tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era
apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a
seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem
todas posso contar — uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo
despenhadeiro as minhas altas geleiras. Assim, pois, não falarei mais no sorvedouro que havia em
mim enquanto eu devaneava antes de adormecer. Senão eu mesma terminarei pensando que era
apenas essa macia voragem o que me impelia para ele, esquecendo minha desesperada abnegação.
Eu me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera. Era de se lamentar que tivesse
caído em minhas mãos erradas a tarefa de salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos e
crianças daquele tempo eu era provavelmente a menos indicada. “Essa não é flor que se cheire”,
como dizia nossa empregada. Mas era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo terror
do precipício, eu, por mais inábil que fosse, não pudesse senão tentar ajudá-lo a descer. O
professor tivera a falta de sorte de ter sido logo a mais imprudente quem ficara sozinha com ele
nos seus ermos. Por mais arriscado que fosse o meu lado, eu era obrigada a arrastá-lo para o meu
lado, pois o dele era mortal. Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxa um grande
pela aba do paletó. Ele não olhava para trás, não perguntava o que eu queria, e livrava-se de mim
com um safanão. Eu continuava a puxá-lo pelo paletó, meu único instrumento era a insistência. E
disso tudo ele só percebia que eu lhe rasgava os bolsos. É verdade que nem eu mesma sabia ao
certo o que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eu sentia que meu papel era ruim
e perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida, vida real que tardava, e pior que inábil, eu
também tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só Deus perdoaria o que eu era porque só Ele sabia
do que me fizera e para o quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d’Ele. Ser matéria de Deus era a
minha única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por Ele, mas pela
matéria d’Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. Aceitava a vastidão
do que eu não conhecia e a ela me confiava toda, com segredos de confessionário. Seria para as
escuridões da ignorância que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freira na cela. Freira
alegre e mostruosa, ai de mim. E nem disso eu poderia me vangloriar: na classe todos nós éramos
igualmente mostruosos e suaves, ávida matéria de Deus.
Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seu paletozinho apertado, minhas
gargalhadas só conseguiam fazer com que ele, fingindo a que custo me esquecer, mais contraído
ficasse de tanto autocontrole. A antipatia que esse homem sentia por mim era tão forte que eu me
detestava. Até que meus risos foram definitivamente substituindo minha delicadeza impossível.
Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já me tomara demais.
Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre cambaios,
humilhada por não ser uma flor, e sobretudo torturada por uma infância enorme que eu temia
nunca chegar a um fim — mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a minha única riqueza:
os cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e que por conta
do futuro eu já exercitava sacundindo-os. Estudar eu não estudava, confiava na minha vadiação
sempre bem sucedida e que também ela o professor tomava como mais uma provocação da
menina odiosa. Nisso ele não tinha razão. A verdade é que não me sobrava tempo para estudar.
As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de história que eu
lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza, refinamento
que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia
horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os
com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu
me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava permanentemente ocupada em querer e
não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido
era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha
tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com uma falta de graça que mais parecia o
resultado de um erro de cálculo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era
emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas — na minha pressa eu crescia sem saber para
onde. O fato de um retrato da época me revelar, ao contrário, uma menina bem plantada,
selvagem e suave, com olhos pensativos embaixo da franja pesada, esse retrato real não me
desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica estranha que eu não compreenderia se fosse a sua
mãe. Só muito depois, tendo finalmente me organizado em corpo e sentindo-me
fundamentalmente mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco; antes, porém, eu não
podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar — tomava intuitivo cuidado com o que eu
era, já que eu não sabia o que era, e com vaidade cultivava a integridade da ignorância. Foi pena o
professor não ter chegado a ver aquilo em que quatro anos depois inesperadamente eu me
tornaria: aos treze anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha, ele me teria
visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez dele, passara embaixo um
ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem perceber que eu já não era mais um moleque e
sim uma jovem digna cujo nome não pode mais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. “Que
é?”indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como resposta gritada a notícia de que o
professor morrera naquela madrugada. E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a rua
vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a de uma boneca partida.
Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que contei, misturado e em conjunto,
que escrevi a composição que o professor mandara, ponto de desenlace dessa história e começo
de outras. Ou foi apenas por pressa de acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no
parque.
— Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a composição. Mas usando as
palavras de vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela sineta, já pode ir para o recreio.
O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara
muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e
continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não
tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara,tanto colhera, tanto
começara a vender que terminara ficando muito rico.
Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar
claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era. Ele contara sem
olhar um só vez para mim. É que na falta de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu também
o acossava com o olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simples olhar direto, do qual
ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava bem límpido e
angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E conseguia sempre o mesmo
resultado: com perturbação ele evitava meus olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de
um poder que me amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vez me irritava. Irritava-me que ele
obrigasse uma porcaria de criança a compreender um homem.
Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio. Aquele meu colégio,
alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão
bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas
descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para
pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para
moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombras onde as abelhas faziam mel. Lá
cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tinhamos rolado de cada declive,
intensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos os
troncos havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por
flechas; meninos e meninas ali faziam o seu mel.
A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual à que ele contara. Só
que naquela época eu estava começando a “tirar a moral das histórias”, o que, se me santificava,
mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez. Com alguma faceirice, pois, havia acrescentado as
frases finais. Frases que horas depois eu lia e relia para ver o que nelas haveria de tão poderoso a
ponto de enfim ter provocado o homem de um modo como eu própria não conseguira até então.
Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho
árduo era o único mode de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral
oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só
descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi
exatamente isso. Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um
sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que, arbitrariamente
contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio,
mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É
possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já tivesse
iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo
me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos
ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão.
Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inútil de ter sido a primeira,
ciscando a terra, esperando impaciente pelos meninos que pouco a pouco começaram a surgir da
sala.
No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minha carteira não me lembro o quê,
para mostrar ao caseiro do parque, meu amigo e protetor. Toda molhada de suor, vermelha de um
felicidade irrepresável que se fosse em casa me valeria uns tapas — voei em direção à sala de
aula, atravessei-a correndo, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os cadernos
empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora buscar, e iniciando outra corrida de
volta — só então meu olhar tropeçou no homem.
Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta. Ele me olhava. Meus
passos, de vagarosos, quase cessaram.
Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochichado da classe, sem a
admiração que minha afoiteza provocava. Tentei sorrir, sentindo que o sangue me sumia do rosto.
Uma gota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era uma pata macia e pesada sobre
mim. Mas se a pata era suave, tolhia-me toda como a de um gato que sem pressa prende o rabo do
rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pela boca, dividindo ao meio o meu sorriso. Apenas
isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava. Comecei a costear a parede de olhos baixos,
prendendo-me toda a meu sorriso, único traço de um rosto que já perdera os contornos. Nunca
havia percebido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passo do medo, eu via o seu
tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e
altas as paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do qual sorrir
fazia parte, eu mal acreditava poder alcançar o âmbito da porta — de onde eu correria, ah como
correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crianças. Além de me concentrar no sorriso,
meu zelo minucioso era o de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à natureza íntima de
um perigo do qual tudo o mais eu desconhecia. Foi num arrepio que me adivinhei de repente
como num espelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançando devagar na ponta dos
pés, e com um sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara a sala em silêncio, e mesmo
os ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de fora do silêncio. Cheguei finalmente à
porta, e o coração imprundente pôs-se a bater alto demais sob o risco de acordar o gigantesco
mundo que dormia.
De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de costas para ele sem coragem de
me voltar. A brisa que vinha pela porta acabou de secar o suor do corpo. Virei-me devagar,
contendo dentro dos punhos cerrados o impulso de correr.
E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito
grande e muito feio, e que ele era o homem de minha vida. O novo e grande medo. Pequena,
sonâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha fatal liberdade finalmente me levara. Meu
sorriso, tudo o que sobrara de um rosto, também se apagara. Eu era dois pés endurecidos no chão
e um coração que de tão vazio parecia morrer de sede. Alí fiquei, fora do alcance do homem. Meu
coração morria de sede, sim. Meu coração morria de sede.
Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que
nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não
a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte
de compacta tristeza, era também monte de fúria? Mas meu passado era agora tarde demais. Um
arrependimento estóico manteve erecta a minha cabeça. Pela primeira vez a ignorância, que até
então fora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera
há meses. Eu era o único eu.
A surpresa me fez subitamente olhá-lo. Era só isso, então!? O alívio inesperado foi quase
mais chocante que o meu susto anterior. Avancei um passo, estendi a mão guaguejante.
Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.
Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-
me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as
inúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na
frente de um homem.
Disfarcei olhando teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão ainda estendida porque não sabia
como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso, com os olhos despenteados como se tivesse
acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada? Ou exigir que eu me ajoelhasse e pedisse
perdão. Meu fio de esperança era que ele não soubesse o que eu lhe tinha feito, assim como eu
mesma já não sabia, na verdade eu nunca soubera.
— Como é que lhe veio a idéia do tesouro que se disfarça?
— Que tesouro? — murmurei atoleimada.
—Ah, o tesouro! precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa por admitir
qualquer falta, implorando-lhe que meu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de
culpa, que a tortura eterna fosse a minha punição, mas nunca essa vida desconhecia.
— O tesouro que está escondido onde menos se espera. Que é só descobrir. Quem lhe
disse isso?
O homem enloqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? Atônita, sem
compreender, e caminhando de inesperado a inesperado, pressenti no entanto um terreno menos
perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera a me levantar das quedas mesmo quando mancava e
me refiz logo: “foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido o meu erro!”Fraca, e
embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia segurança, eu no entanto já me levantara o
bastante da minha queda para poder sacudir, numa imitação da antiga arrogância, a futura
cabeleira ondulada:
Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar, começava no
entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, de viés.
E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara a me amedrontar, tinha ameaças
novas que não compreendia. Aquele olhar que não me desfitava — e sem cólera... Perplexa, e a
troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o surpreendida. Que é que ele queria de
mim? Ele me constrangia. E seu olhar sem raiva passara a me importunar mais do que a
brutalidade que eu temera. Um medo pequeno, todo frio e suado, foi me tomando. Devagar, para
ele não perceber, recuei as costas até encontrar atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou até
não ter mais para onde ir. Daquela parede onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a
vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa
boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga
aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara — o mal-estar já
petrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando
uma crosta — mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia
tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão
de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura
e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um
olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel.
Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo oolho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o
esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola
arrancada da barriga aberta — que estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via
sua apreensão extrema em não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de
súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu
recebesse a entrega dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas
costas forçaram desesperadamente a parede, recuei — era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo
demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer.
Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-
vivo... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo
demais de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque eu era forte.
“Mas e eu?”gritei dez anos depois por motivos de amor perdido, “quem virá jamais à minha
fraqueza!”Eu o olhava surpreendida , e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia
cegar os curiosos.
Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:
— Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você... —
ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se
ele fosse o meu coração. — Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.
Foi a primeira vergonha real da minha vida. Abaixei os olhos, sem poder sustentar o olhar
indefeso daquele homem a quem eu enganara.
Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele de algum modo havia
confiado em mim, e que então eu o enganara com a lorota do tesouro. Naquele tempo eu pensava
que tudo o que se inventa é mentira,e somente consciência atormentada do pecado me redimia do
vício. Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta
contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me
corrigindo: eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu não
merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía. Eu
bem quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o,desanimei: faltava-me a
coragem de desiludi-lo. Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, as de meu pai, por
exemplo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi difícil engolir a seco essa alegria
que tão irresponsavelmente eu causara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o prato de
comida sem perceber que lhe haviam dado carne estragada. O sangue me subira ao rosto, agora
tão quente que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo
engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite aquilo tudo se
trasformaria em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.
— Você — repetiu então ele lentamente como se aos poucos estivesse admitindo com
encantamento o que lhe vieira por acaso à boca —, você é uma menina muito engraçada, sabe?
Você é uma doidinha..., disse usando outra vez o sorriso como um menino que dorme com os
sapatos novos. Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. Confiante, deixava-me ver
a sua feiúra, que era a sua parte mais inocente.
Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditar em mim, tive que
engolir a piedade por ele, a vergonha por mim, “tolo!”pudesse eu lhe gritar, “essa história de
tesouro desfarçado foi inventada, é coisa só para menina!”Eu tinha muita consciência de ser uma
criança, o que explicava todos os meus graves defeitos, e pusera tanta fé em um dia crescer — e
aquele homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em mim pela
primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes
mentiras...
... E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suportei um instante mais —
sem ter pegado o caderno corri para o parque, a mão na boca como se me tivessem quebrado os
dentes. Com a mão na boca, horrorizada, eu corria, corria para nunca parar, a prece profunda não
é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais — eu corria, eu corria muito
espantada.
Quando enfim me dei conta de estar bem longe da órbita do professor, sofreei exausta a
corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no tronco de uma árvore, respirando alto,
respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos fechados, sentindo na boca o amargo empoeirado do
tronco, os dedos mecanicamente passando e repassando pelo duro entalhe de um coração com
flecha. E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco mais: estaria ele
querendo dizer que... que eu era um tesouro disfarçado? O tesouro onde menos se espera...Oh
não, não , coitadinho dele, coitado daquele rei da Criação, de tal modo precisara... de quê? de que
precisara ele?... que até eu me transformara em tesouro.
Eu ainda tinha muito mais corrida dentro de mim, forcei a garganta seca a recuperar o
fôlego, e empurrando com raiva o tronco da árvore recomecei a correr em direção ao fim do
mundo.
Mais ainda não divisira o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando
mais vagarosos, excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por cançaso, mas eu
sucumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram
passos um pouco deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma
doçura toda estanha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal
em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de
cançaso abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe
talvez lembrasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás. “Você
é uma menina muito engraçada, você é um doidinha”, dissera ele. Era como um amor.
Não , eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito séria. Não, eu não era
doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, por Deus, eu não
era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se
nasce e com que se rói a vida — só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu
curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância
com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitável — que
podia eu fazer? eu já sabia que eu era inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que
aquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a
niguém —através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem:
tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos
chegavem a alcançar. Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o
impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera,
com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendi eu tudo isso? Não. E não
sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com aterrorizado
fascínio o mundo — e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo
eu vi - assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O
que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura , entendido pela minha
ignorância. Ignorância que ali em pé — numa solidão sem dor, não menor que a das árvores — eu
recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade imcompreensível. Ali estava eu, a menina esperta
demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em
mim não prestava era o meu tesouro.
Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu fizesse enfim sorrir,
por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Criação: fizera
de mim a mulher do rei da Criação. Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera
arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão
dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te
arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que
te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais,
meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te
servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto,
tanto — uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem
um no outro para amar e dormir.
... E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser
amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama.
Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de
meu coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de
meu grito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS