You are on page 1of 163

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

MESTRADO - FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA U.F.M.G.

ENSINAR :

Do Mal-Entendido ao Inesperado da Transmissão


JOÃO BATISTA DE MENDONÇA FILHO

ENSINAR:

DO MAL-ENTENDIDO AO INESPERADO DA TRANSMISSÃO

DISSERTAÇÃO APRESENTADA NO
CURSO DE MESTRADO DA FaE-UFMG
COMO REQUISITO PARCIAL Á
OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE
EM EDUCAÇÃO.

ORIENTADORA: ELIANE MARTA SANTOS TEIXEIRA LOPES

BELO HORIZONTE

FACULDADE DE EDUCAÇÃO - U.F.M.G.

1996
Dissertação apresentada ao curso de mestrado da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de
Mestre em Educação.
Banca examinadora constituída pelos professores:

_________________________________________________________________
CÉLIO GARCIA

___________________________________________________________________
CYNTHIA GREIVE VEIGA

____________________________________________________________________
ELIANE MARTA SANTOS TEIXEIRA LOPES
Orientadora
João Batista de Mendonça Filho

Ensinar:

Do Mal-Entendido ao Inesperado da Transmissão

Faculdade de Educação / U.F.M.G.

1996
MENDONÇA FILHO, João Batista
ENSINAR: DO MAL-ENTENDIDO AO INESPERADO
DATRANSMISSÃO.— Belo Horizonte : FaE / UFMG, 1996.
148 p.

Orientador: Eliane Marta Santos Teixeira Lopes

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas


Gerais; Faculdade de Educação.

1. PSICOLOGIA EDUCACIONAL 2. FORMAÇÃO DO


PROFESSOR 3. PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO

I- Orientador II- Universidade III - Título

CDD 370.15
As Primeiras Palavras - “Uma Simples Lembrança”

Em dissertações de mestrado, de um modo geral, utiliza-se esse espaço para agradecer

de uma forma padronizada. Particularmente, sentir-me-ia desconfortável se os outros em

quem reconheço uma verdadeira filia no trabalho com o saber figurassem aqui como um

rol de nomes adjetivados por uma única qualidade.

É por esse motivo que resolvi torná-los parte integrante do meu texto, mesmo porque

eles não poderiam ser situados de uma outra forma. Afinal, muito do que escrevi surgiu

após discussões, conversas, aulas, com esses “outros”, e, na realidade, perdi a conta de

quantas palavras deles eu me apropriei para poder escrever sobre a transmissão. A

escrita de uma dissertação é um ato solitário, mas, por oposição, a sua produção é um ato

solidário. É totalmente ilusória a imagem daquele que produz, no campo do

conhecimento, como sendo a do ermitão que se trancafia em sua caverna com seus livros,

para só sair de lá após o seu período de hibernação, com o trabalho concluído. A

produção do conhecimento é algo que exige circulação — ou será que ainda existe quem

acredite na virgindade do inédito —; é através de trocas com os outros que lapidamos

nossas idéias, testamos a sua possibilidade, recebemos a cumplicidade e a indicação de

que falta ... uma nova obra a ser pesquisada, o conhecimento da posição de um outro

autor, a consistência para uma afirmação.

O subtítulo deste texto, “uma simples lembrança”, eu o retirei de uma dedicatória feita

para mim por uma professora do curso primário. Se não foi minha primeira professora,

também não foi a última daquele período de escolarização; na verdade foi a do segundo

ano, mas foi a que marcou. Para mim ela ficou como “Dona” Marília, pois não me

recordo do sobrenome. Quanto ao “Dona”, bem, era assim que nos anos sessenta nos

referíamos às nossas professoras, porém, é necessário dizer que na dedicatória do livro,


ela assina, simplesmente, Marília. Hoje, quando revolvo a memória — e a estante de

livros também — lá encontro uma autora chamada Vírginia Lefrève que escreveu um

livro intitulado “A Conquista do Mar Oceano”. Muito mais do que a obra em si, o que me

vem à lembrança é uma professora da rede pública que, por um motivo qualquer, que

nunca saberei muito bem precisar, resolveu presentear um ex-aluno em sua primeira

formatura com um livro e com algumas palavras de estímulo à continuidade de seus

estudos.

Quando pensei em fugir da norma e transformar os agradecimentos nas primeiras

palavras desta dissertação, o gesto de Marília não poderia passar desapercebido, mesmo

porque ele mostra de modo muito claro tudo aquilo que pode ser entendido como

transmissão, uma vez que se situa para além do informar. Dona Marília, é claro, não foi a

única que, ocupando a função de ensinar, introduziu-me no universo da educação e, por

extensão, no universo do saber, mas é por seu intermédio que faço aqui uma justa

homenagem a todos aqueles que, em meu percurso escolar, ocuparam o lugar “d’aquele

que ensina”.

Quando disse que a produção do conhecimento envolve sobretudo circulação, esse

dizer deve ser levado às últimas conseqüências. Estudar, escrever, produzir, enfim, a

transmissão não é algo que tenha um lugar ou uma hora específica para acontecer.

Quantas vezes as idéias nos ocorrem nas horas e nos lugares mais inesperados? A escola

não pode sob nenhuma forma ser restringida a um espaço físico seja ele o do Grupo, o do

Colégio ou o da Universidade. O sentido do apreender chega-nos muitas vezes de

supetão, e invade-nos quando estamos vivendo uma situação que, a princípio, parece

totalmente desconectada com o que aprendemos. Assim, apreendemos quando vamos ao

cinema, ao teatro, a uma exposição, ou quando lemos uma boa obra da literatura. Porém,

para que isso ocorra, uma condição me parece essencial — além de obviamente ter

acesso a eles —, é preciso falar sobre esses eventos. Quando a fala e a interrogação se
fecham sob a justificativa de que não é nem o momento, nem o lugar, o que poderia ter

surgido como novo muitas vezes se cala e se conforma com o já estabelecido. O

transmitir também tem a ver com essa irrupção da desobediência à ordem, com o ousar

propor uma nova interpretação para o que já se apresenta como totalmente significado.

Nesse aspecto, gostaria de agradecer à minha mãe pelo que ela me possibilitou, tanto em

relação à oportunidade de freqüentar, desde muito cedo, o ambiente acadêmico, quanto à

dedicação, o incentivo e o empenho em relação aos meus estudos. Além do mais, como

uma mãe que espera o bem de seu filho, ela não deixou de figurar para mim como uma

arché em todo o meu desenvolvimento.

Ainda em relação à circulação do conhecimento e ao acontecimento da transmissão no

lugar do inesperado, não tenho como deixar de agradecer a meus amigos e amigas, que

me dispenso aqui de citar, dada a confiança de que neste lugar eles e elas se reconheçam.

Esses outros e outras, alguns que me acompanham desde o início de minha vida escolar,

outros que chegaram mais tarde, com os quais compartilho sucessos e fracassos, e que me

ajudaram, muito, na produção desta dissertação. Cada um à sua maneira, com o seu jeito.

A todos, entretanto, agradeço igualmente a compreensão pelos inúmeros “compromissos”

que tive de adiar ou a que faltei por dever me dedicar a esta escrita. A amizade é

fundamental; representa um a mais em relação àqueles aos quais já nascemos vinculados

por laços sangüíneos, e constrói esses mesmos laços com aqueles que não os possuem

desde o princípio. Quantas vezes esses “outros”, com formação muito diferente daquela a

cujo trabalho me colocava apresentaram-se pacientemente como escutadores sagazes.

Há também aqueles amigos que associam a essa filia do sentimento o compartilhar do

trabalho para o saber, amigos com os quais se convive no ambiente de trabalho, ou

melhor dizendo, amigos que produzem o ambiente para o trabalho. Aqueles que, na

realidade, possibilitaram, muitas vezes, que o texto fosse escrito, aqueles que

localizaram uma obra que, embora estritamente necessária, ou era inédita ou ainda não
tinha sido traduzida, e se dispunham a me emprestá-la. Há também aqueles que, em seus

momentos particulares de leitura, lembravam-se de mim e me comunicavam de imediato:

“olha esse texto vai te interessar”. Outros, ainda permitiram que eu assistisse às suas

aulas: será possível maior intimidade do que compartilhar um momento em que alguém

expõe o seu saber? Neste momento quero agradecer, aqui nominalmente, ao Wellerson

Durães Alkmim, ao Jurandir Freire Costa, ao Francisco Paes Barreto, ao Antônio Pereira

dos Santos, ao Sérgio Augusto Chagas Laia, ao Ram Mandil, à Lícia M. Dias, à Jeanne

D’Arc Carvalho. De um modo muito especial, quero agradecer à Yara D’Alva Simão,

que além de partilhar dessa filia pelo saber, se dispôs a realizar a leitura dos originais,

contribuindo em muito na direção tomada pelo que veio a se constituir como esta

dissertação.

Um outro agradecimento nominal também deve ser registrado aqui, pois para que eu

pudesse realizar o mestrado tive de contar com a colaboração e o consentimento

daqueles que dirigiam e/ou dirigem as instituições em que trabalho. Produzir uma

dissertação requer uma dedicação que muitas vezes nos furta o tempo quando

deveríamos, por força de uma obrigação contratual, estar realizando um outro tipo de

atividade. O que posso dizer é que tive a sorte de encontrar diretores que nunca me

cobraram além do possível, e ressaltar que são pessoas empenhadas na ampliação e na

circulação do conhecimento nas instituições que dirigem. Sendo assim, agradeço, em

relação à Escola de Saúde de Minas Gerais, a Mariana Lúcia Tavares e Eunice Godoy

Mendes e, em relação à Faculdade de Ciências Humanas da Fundação Mineira de

Educação e Cultura, a Amancio Fernandes Caixeta , a Divina Sebastiana Lara Vivas, e a

Walter Andrade Parreiras.

Quanto ao ambiente acadêmico, dizer que a transmissão não ocorre apenas nele é

sobretudo, reconhecer sua função de “pôr a trabalho”, sem isso não teríamos um ponto

em que todas essas idéias pudessem ser discutidas e avaliadas com o rigor que se faz
necessário. Sobre a relação da escola com a transmissão, ela me parece evidente;

contudo, tenho a impressão de que às vezes escapa à Educação que a verdadeira aula é da

ordem do único, ela se constitui não apenas naquele que designamos como professor,

mas também no modo como os alunos nela se situam. E não terei pudor em dizer que

muito aprendi com os outros, alunos como eu, nas chamadas conversas paralelas. Esse

espaço de transmissão é realmente interessante, pois basta o professor inquirir sobre o

que está sendo dito, convidar para dividir com todos o que está sendo falado, para que ele

seja totalmente dissipado. Creio que, às vezes, para apreender é necessário o segredo, o

compartilhar a cumplicidade de uma fala que ainda não está preparada para ser tornada

totalmente pública. A todos que participaram comigo dessa experiência, nas mais

diversas disciplinas do curso de mestrado, o meu muito obrigado.

No mestrado também existiu um encontro que quero registrar de modo destacado.

Apesar de dar aulas em uma faculdade de psicologia — o que me coloca também na

posição d’aquele que ensina —, o contato com as teorias da educação foi para mim uma

novidade. Sentia isso quando da discussão com colegas que advinham da pedagogia; a

defasagem entre o meu conhecimento acumulado sobre educação e o deles era enorme.

Aquela distância só pôde ser reduzida graças ao empenho e à dedicação de uma

professora em particular, e, precisamente por isso, é justo que eu agradeça de modo

especial: a você, Cynthia Greive Veiga. Obrigado, sinceramente.

Outro agradecimento que quero registrar de modo destacado, é a Guido de Almeida,

por sua criteriosa e cuidadosa revisão de todo o texto, bem como, oportunas sugestões

que auxiliaram-me a expressar com clareza minhas idéias.

Para o encerramento destas primeiras palavras deixei, propositadamente, duas espécies

de relações que constituem, na realidade, o traço sob o qual essa dissertação é desenhada.

A primeira delas é a relação com a minha orientadora. Orientar não é tarefa fácil. Existe

naquele que se dispõe a ocupar esse lugar uma disponibilidade que nem sempre é
reconhecida pelo orientando. A impressão que tenho — pois como esse lugar eu não o

ocupo, o que dele posso ter é uma impressão — é de que o orientador busca sustentar um

difícil equilíbrio entre a necessária retificação do texto e o incentivo às idéias de seu

autor. Além disso, o orientando já chega com uma escolha, mesmo que ela seja

apresentada de uma forma meio dissimulada. Creio que todos nós, candidatos a

orientandos, chegamos com uma enunciação do tipo: “quero trabalhar tal assunto,

gostaria que você me orientasse”. Quer o orientador saiba ou não disso, ele já representa,

para nós orientandos, uma crença; a de que ele é capaz de tornar em pesquisa, em matéria

escrita, os nossos anseios de ocupar um lugar em relação ao conhecimento. Pretendemos

passar para o orientador esse anseio e, às vezes, esperamos que ele arque com o ônus da

situação por nós próprios criada.

Porém, minha relação com minha orientadora foi um espaço de construção, não

apenas do conhecimento, do partilhar as últimas novidades do século XVII ou da

Escolástica, mas o da criação de uma relação de um para com o outro enlaçada pelo amor

ao saber. Uma relação de possibilidades que surgiam ao discutir a educação, a

psicanálise, a literatura, a música, e outros tantos temas que, não estando explícitos nesta

dissertação, são dela partes integrantes e sem os quais ela não teria sido concluída. Uma

relação que nos possibilitou a vivência da intimidade que só atingem aqueles que são

capazes de reconhecer a legitimidade do trabalho do outro, não sendo por acaso que ela é

das autoras mais citadas em minha dissertação.

Existe um ditado popular que denuncia como tolo aquele que empresta um livro. A

relação que tenho com minha orientadora faz dela uma exceção a esse dito, pois, afinal,

não existe demonstração maior de intimidade do que se dispor a compartilhar um livro

com todas as marcas de leitura já realizada. É podendo valer-me dessa intimidade que

posso aqui dizer, muito obrigado a você, Eliane Marta, e “como você sabe”, os motivos
de um agradecimento como este não são passíveis de serem totalmente enunciados em

uma escrita.

A segunda relação, a que finaliza estas primeiras palavras, é aquela que apresenta para

mim a verdade do amor, uma relação que contém fragmentos de todas as outras, mas que

se realiza como única. A você, Valéria Márcia, que nunca restringiu seu apoio a esta

minha iniciativa, e que tanto me auxiliou na pesquisa e nas discussões para a

concretização desta dissertação, explicito aqui o meu agradecimento, sabendo que mais

do que isso não é necessário, e que o implícito nos pertence.


SUMÁRIO

RESUMO 01

INTRODUÇÃO 02

CAPÍTULO 1 SOBRE A TRANSMISSÃO 15

1.1 - Aprender ... Informar ... Transmitir 16

1.2 - O Eu, o sujeito, o saber de si como ponto de partida 27

1.3 - Para além da memória, da cognição e do logos: A Transmissão 30

1.4 - A transmissão: entre o ler e o apreender 33

1.5 - Educar, psicanalisar ... transmitir 39

CAPÍTULO 2 OS NOMES DAQUELE QUE ENSINA 43

2.1 - As dimensões perdidas do ensinar a ensinar 44

2.2 - Um nome para aquele que ensina 50

2.3 - Educação e ciência 56

2.4 - Educar: ofício impossível 70


CAPÍTULO 3 AMOR E TRANSMISSÃO 74

3.1 - Ainda sobre fragmentos 75

3.2 - Sobre a educação e o amor 77

3.3 - Do amor à criança à nova escola 81

3.4 - Os velamentos pedagógicos do discurso amoroso 90

3.4.1 - Em nome de Deus - Os velamentos do discurso religioso 92


3.4.2 -Lascia le donne e studia la matematica
Os velamentos do discurso científico
97

3.5 - A real identidade do professor e o discurso amoroso na transmissão 102

3.5.1 - O amor verdadeiro e a transmissão ou o elo de Eros 107

EPÍLOGO OS DESASTRES DE SOFIA 115

ANEXO 126

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 137

BIBLIOGRAFIA 142
INTRODUÇÃO

APONTAMENTOS SOBRE A TRANSMISSÃO

A vida real é um sonho, só que de olhos

abertos (que vêem tudo distorcido). A vida real entra

em nós em câmara lenta, inclusive o raciocínio o mais

rigoroso — é sonho. A consciência só me serve para

eu saber que vivo às apalpadelas e na ilogicidade

(apenas aparente) do sonho. O sonho dos acordados


é matéria real. Nós somos tão ilógicos sonhadores

que contamos com o futuro.

Clarice Lispector - Um Sopro de Vida


Apontamentos Sobre a Transmissão

Ao apresentar esta dissertação de mestrado, quero iniciar recompondo parte da história

que lhe deu origem, seja porque para escrever é preciso um motivo, seja porque gostaria

de que, desde o princípio, o leitor pudesse se apropriar da referência que a produziu.

Assim, a temática principal que será desenvolvida, a transmissão, teve seu início em uma

outra questão aparentemente desvinculada dela. Refiro-me a uma primeira abordagem

que realizei no campo da educação, quando colocava em foco a insistência da educação

em buscar, nas teorias psicológicas, uma base em que assentar a divisão entre

normalidade e anormalidade. Foi a partir de uma pergunta então colocada que, aos

poucos, fui tomando, meio que de viés, a direção de escrever sobre a transmissão.

Aquela pergunta foi meu motivo inicial e não aparece em nenhum outro lugar no

texto. Dedico um espaço aqui para refletir sobre ela. Mais do que isso, estou expondo a

algumas considerações a questão que me conduziu ao mestrado da Faculdade de

Educação da U.F.M.G.. Esse laço entre mim e a educação acentuou-se a partir da

constatação da existência de uma vasta literatura em educação que se propõe a tarefa de

examinar tanto o fracasso quanto o sucesso escolar de alunos e professores, e da

observação de que, freqüentemente, muitos desses trabalhos acabavam por produzir uma

análise sobre as teorias psicológicas, fosse para validá-las, fosse para refutá-las.

Incomodava-me, sobretudo o fato de a maioria daqueles textos tratarem a ciência

psicológica como sendo portadora de uma unicidade e de uma absoluta harmonia no


desenvolvimento de suas conclusões. Assim, naquele instante, eu perguntava: como um

campo que já fora apropriadamente definido como sendo “um espaço de dispersão do

saber”1 poderia servir para a educação definir os seus critérios de normalidade? A partir
desta pergunta eu fiz meu Memorial; um registro escrito em que articulava a minha

prática na educação com esse incômodo. Incômodo que era fortemente sustentado pela

crítica que pode ser abstraída da Psicanálise à ação normativa da psicologia.2

Foi assim que, naquele primeiro instante, eu interroguei a educação, sendo que nela

encontrei muitas outras formas de produzir uma resposta para tal. Em especial, deparei

com a análise sociológica que atribui às teorias psicológicas a instrumentação de uma

prática de exclusão viabilizada pela representação ideológica que essas mesmas teorias

estabelecem3. Entretanto, diante de tantas outras possibilidades de investigação, a

Psicanálise que de início era apenas um ponto de sustentação para a minha pergunta

permanecia a inquietar-me e a manifestar-se em uma aula ou outra, quando ora

propiciava a formulação de uma questão aos professores, ora se apresentava como um

saber que, em seu íntimo, guardava uma relação qualquer com a educação.

De repente - e após concluída esta dissertação tenho bons motivos para dizer que a

transmissão é algo que só se opera na forma do repente -, uma outra questão emergiu.
Maior do que o interesse pelos modos que a educação possa assumir para fazer valer um

dado quadro de inclusão/exclusão baseado nos critérios de normalidade, surgiu o

interesse pelo que, afinal, é verdadeiramente apreendido pelo aluno quando exposto à

1
Nesse sentido confira:
GARCIA-ROZA, Luiz A. Psicologia um espaço de dispersão do saber. In: RÁDICE, revista de psicologia,
Ano 1, n°4, pp.20-26
2
Nesse sentido confira:
BADIOU, Alain. A Respeito das Verdades. In: JORNAL DO PSICÓLOGO, CRP 04, Belo Horizonte,
n.43, setembro-outubro 1993. suplemento e
FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1991.
3
Nesse aspecto da análise da psicologia como procedimento ideológico da exclusão, confira:
Costa, Dóris Anita Freire. Fracasso Escolar: Diferença ou Deficiência, Porto Alegre, Kuarup, 1993
ação daquele que ensina. Esse deslizamento de uma pergunta a outra não é difícil de ser

explicado.

Ao interrogar sobre os critérios de normalidade da educação, fui percebendo, pouco a

pouco, que antes mesmo de serem interpretados em um quadro de referência seja social,

seja psicológico, ou ainda em ambos, o que é colocado em evidência é o acontecimento

de o aluno aprender e, especialmente, de muitas vezes ser capaz de apreender algo muito

diferente daquilo que lhe foi ensinado pelo professor. Ao deparar com a existência dessa

condição, que traduzi como “o mal-entendido na educação”, atinei que minha primeira

pergunta colocava em evidência o que na realidade era efeito, mantendo a causa fora de

toda possibilidade de análise. Encontrava aí também um primeiro indício da existência de

uma relação entre a Educação e a Psicanálise. Esta última contudo, colocava-me em uma

situação, digamos ... de risco. Michel De Certeau escreveu, como prefácio a um livro que

põe em jogo Psicanálise e educação4, que se trata de brincar com fogo5. Como brincar

sozinho é coisa bem pouco divertida, era preciso que existisse um encontro que criasse a

possibilidade do que era em princípio pergunta, vir a ganhar um corpo escrito para se

realizar em dissertação. Foi sob a égide desse arriscar que encontrei com e em minha

orientadora o aceite que só pode vir daquele que “topa” brincar, mesmo sabendo, ambos,
a resposta que o dito popular fornece para aqueles que se dispõem a brincar com fogo.

Porém, esse arriscar entre a Psicanálise e a Educação, mesmo que em uma vertente

aponte para a radicalidade da disjunção entre ambas, em outra, irmana-as em uma

composição com o governar, no que Freud estabeleceu como sendo as três profissões

impossíveis.6 Pensar a educação como impossível; esse foi o primeiro passo que dei na

direção de buscar alcançar um outro saber para a educação sobre a transmissão. E dele fiz

a escrita do projeto desta dissertação.

4
Refiro-me ao livro de CIFALI, Mireille. Freud Pédagogue, Paris, InterÉditions, 1982.
5
no original: Jouer avec le feu
6
FREUD, S. Análise terminável e interminável, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976. p.282
A aprovação do projeto pelo colegiado da pós-graduação da FaE/UFMG acabou por

revelar-me duas reações que julgo necessário aqui apresentar. A primeira foi a de

espanto: como é possível produzir o que quer que seja se já se toma como premissa

inicial que é impossível? A segunda foi a de aceitação. Apesar do espanto, foi de bom

grado que o parecer favorável a essa proposta de articulação foi dado. Essas reações, até

certo ponto contraditórias, revelaram que eu teria necessidade de buscar alcançar um

modo de explanação sobre a teoria que a Psicanálise faz do impossível para a educação,

pois em nada me interessava uma escrita hermética que mantivesse de fora todo aquele

que na Psicanálise não fosse iniciado. Procurei nunca perder de vista o fato de estar

realizando uma dissertação de mestrado na Faculdade de Educação. Essa proposição,

entretanto, requer para si uma cautela bem medida. Isso porque se por um lado havia a

minha exigência de tentar explanar sobre os conceitos psicanalíticos de modo a torná-los

acessíveis a um leitor que poderia presumir como leigo, por outro eu não poderia

banalizar esses mesmos conceitos, e retirar deles exatamente a sua condição de operação.

Ou pior: desviá-los para a idéia de aplicabilidade.

A aplicabilidade da Psicanálise à Educação no sentido de a segunda utilizar os

conceitos da primeira para produzir uma prática educacional melhorada, tem,

historicamente, causado os mesmos efeitos de quando era a Psicologia que estava em

questão. Aliás, de modo geral, essa aplicabilidade quando tentada não resulta em outra

condição a não ser a de converter a Psicanálise em Psicologia. Sabendo então desse

efeito, procurei demarcar ao longo de todo o meu texto que não se achará nele uma

contribuição no sentido de produzir uma Pedagogia psicanalítica.

Essa exclusão da aplicabilidade, entretanto, não afeta a junção causada pela

fraternidade na impossibilidade. A “descoberta” do Inconsciente pela Psicanálise não é

apenas a terceira grande ferida do homem, mas é, essencialmente, a invenção de uma

nova possibilidade de pensar e trabalhar com um objeto que escapa à convenção e à


formulação cartesiana. O que quero dizer é que quando Freud inventa a Psicanálise, nem

a medicina, nem a Psicologia lhe serviram como modelo. A criação da associação livre

como o método de operação de uma clínica, para utilizar apenas um exemplo, não

encontra precedentes. Ao colocar a relação entre Psicanálise e Educação como uma

posição paralela7 entre uma e outra, interessa-me, essencialmente, a operação com o

impossível. Minha expectativa é de que o percurso já realizado pela Psicanálise possa

servir como um ponto de referência para a reflexão da Educação sobre aquilo que nela

mais se repete, o como ensinar.∗

Assim, que não seja aguardada aqui, a elaboração ou a indicação de um novo método

de ensino: a Educação já os tem em abundância . Tampouco seja esperada a construção

de um instrumento novo que venha a resolver o mal-estar causado pela condição de

profissão impossível. Minha proposta é a de examinar o modo e a forma como a

Educação e os educadores têm se posicionado diante da certeza de na Educação — assim

como na Psicanálise e no governar —, “sempre se atingir resultados insatisfatórios”.

Que tal certeza, entretanto, não desperte no leitor uma impressão de impotência. A

Psicanálise, nesse aspecto, é um bom exemplo, uma vez que estando exposta a essa

mesma condição, nunca fez dela justificativa para a recusa de sua validade ou de sua

eficácia. O que pode ser aguardado desta dissertação é, sobretudo, a indicação da

necessidade de serem pensadas, na Educação, as possibilidades de invenção em relação

ao acontecimento da transmissão, que é aqui definido como o que está além da

veiculação da informação.

A admissão de que existe uma diferença entre o transmitir e o informar foi o ponto de

partida de todo este trabalho. Como já disse, se existe um axioma em Educação, este é a

7
Vale lembrar aqui que uma reta quando paralela a uma outra só terá em comum com esta um ponto no
infinito.

É interessante observar que “o como ensinar” é, simultaneamente, o que mais se repete e o que jamais se
repete na educação.
constatação de que o aluno aprende com o professor. Mas afinal, o que é que o aluno

verdadeiramente apreende? Será que todo o processo educativo se resume na acumulação

de dados? Creio que nenhum educador concorde com isso, pois a enorme importância

que é atribuída à Educação durante todo o desenvolvimento histórico cultural da

humanidade demonstra que ela é bem mais que um mero processo informativo. É claro

que todos sentem necessidade de deter certas informações que venham possibilitar a

interação com a sociedade, com a cultura, com o trabalho, etc. Mas, mesmo que a

adaptação seja um efeito inevitável do educar, ela não aglutina em si o objetivo da

Educação que pode ser sintetizado como sendo o de levar à produção de uma relação com

o saber. E é precisamente nessa relação que se sustenta a diferença entre transmitir e

informar.

Quando veiculamos uma informação, a mesma torna-se passível de ser avaliada em

sua aprendizagem. Disso ficamos cientes através de toda teoria da comunicação. A

metodologia educacional, essencialmente a didática, tem dedicado, nos últimos três

séculos, inúmeros esforços na tentativa de alcançar o controle sobre esse tipo de

situação, e fazer com que a mensagem emitida pelo professor possa ser recebida pelo

aluno com a menor perda possível. Porém, quando essa situação ideal não se (re)produz

na prática, a expectativa da explicação do porque a comunicação não ocorreu do modo

esperado recai no campo da Psicologia, e é explicada, via de regra, por um desajuste

emocional/intelectual ou do professor, ou do aluno. Durante todo esse processo, o que é

levado em consideração é a condição de que o saber é sempre algo consciente, de que é

pertinente ao “eu” e passível de controle e de avaliação.

Na realidade, a noção de Inconsciente, isto é, a idéia de que possa existir um saber do

qual o “eu” nada sabe, não sujeito a controle, é ainda tomada como estranha no campo

da Educação. Naquele espaço o Inconsciente só adentra quando distorcido em

inconsciência; algo que, em última instância, possa ser convertido em consciência. Tal
desvio mantém de fora toda e qualquer possibilidade de interlocução entre Psicanálise e

Educação, o que significa dizer que muito do que os educadores têm referido como

sendo Psicanálise, na realidade não o é. Resulta dessa exclusão a ausência de posição da

Educação diante da ocorrência de um saber que não sabe de si, um saber que, mesmo

sendo estranho ao eu, sustenta o verdadeiro desejo tanto de aprender quanto de ensinar.

Assim, mesmo que a educação consiga alcançar êxito sobre a aquisição do conhecimento

pelo viés da informação, escapa-lhe o pensar a transmissão pela via de um saber que não

se sabe.

Mas será o Inconsciente capaz de ensinar? A tentativa de construir uma resposta para

esta pergunta é o cerne do Capítulo 1 desta dissertação. Nele busco mostrar,

principalmente para o leitor da educação, porque a idéia de transmissão é diferente

quando apresentada pela Psicanálise, ou pela teoria da comunicação. Para alcançar esse

objetivo me servi, de um modo bastante peculiar, da teoria da literatura, essencialmente

do jogo que se estabelece entre um autor e seu leitor. A idéia em torno da qual a

exposição se desenvolve é a de pensar a transmissão como sendo o envio do próprio ser

do autor, em outras palavras, a de que o verdadeiro ensino é aquele que ensina com o ser.

Um caminho trilhado pela Psicanálise que teve nos poetas e nos escritores seus

predecessores na produção dessa verdade.

Ao admitir que a transmissão é mais do que veicular informação e, além disso, que ela

ocorre por uma vertente que escapa ao saber consciente — o saber que sabe de si —,

procuro incluir no universo da Educação a necessidade de que o sujeito venha a ser

pensado como um sujeito dividido, um sujeito que não corresponde ao que é estabelecido

pelo cogito cartesiano. A constatação dessa cisão conduz à compreensão de que o

acúmulo de saber por si só não torna ninguém menos ou mais apto para ensinar, já que a

transmissão pode ocorrer por uma via que escapa à própria consciência. Reapresento,
assim, o pensamento de Freud, exposto em O Interesse Científico da Psicanálise8, de

que só pode ensinar aquele que está capacitado a entrar na alma de seu aluno.

Ao desenvolver tal temática, fui tendo, paralelamente, minha atenção despertada para

a diversidade de nomes que utilizamos para designar aquele que ensina. Assim, fui

ficando intrigado sobre qual seria o motivo que nos leva a referir àquele que ensina como

mestre, professor, lente, tia, docente, preceptor e outras palavras, comportando-nos como

se a escolha de um ou outro nome para designar a função de ensinar fosse indiferente.

Entretanto, o uso cotidiano desses termos guarda uma diferença intrínseca. Diferença

expressa muitas vezes através de uma forma hierárquica, que coloca uma distancia entre

aquele que é professor e aquele que se limita a ser professor. Por outro lado, questionava

a dualidade existente entre aquele que ensina com o ser e aquele que ensina por ser

licenciado.

Essa indagação levou-me à necessidade de pesquisar como foi que se estabeleceu a

prática de os professores serem licenciados para o ensino. Além disso, pensava se o

surgimento dessa prática não estaria de algum modo relacionada com a existência dos

diversos nomes daquele que ensina. A pesquisa realizada levou-me à Idade Média, à

Escolástica, o berço da licencia docendi, e acabou por constituir o Capítulo 2 desta

dissertação. Ao retroceder à Idade Média, e conseqüentemente, a todo o universo da

Escolástica, deparei não apenas com uma outra formulação para o que é ensinar, mas

também encontrei uma série de fragmentos que permaneceram desde aquele período até a

atualidade na Educação. Fragmentos herdados de um solo religioso, representantes da

forma de ensino Escolástica, e que continuam a habitar a educação, mesmo que esta

tenha assumido, nos últimos tempos, um caráter cada vez mais laico.

8
Confira: FREUD, S. O Interesse Científico da Psicanálise, Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de S. Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
Foi ao examinar essa herança que pude finalmente perceber que a variedade de nomes

para aquele que ensina está imbricada como uma mudança na forma como era percebida,

praticada e executada a função de ensinar. Mudança que atingirá seu ápice a partir do

século XVII, quando do chamado “nascimento” da ciência moderna. A colisão entre a

Educação Escolástica e a ciência produziu um híbrido do qual não se aproxima com

muita facilidade. O fato é que a instauração das universidades, a partir do século XIII,

ocorre no período escolástico, e quando o pensamento científico passa a ocupar um lugar

nessas instituições, ele já encontra pronto esse modelo do ensinar; com isso a estrutura

de ensino é mantida basicamente inalterada.

O mesmo, entretanto, não é possível ser dito em relação aos conteúdos que passam a

ser ensinados e à metodologia utilizada. Para estudar a relação desses conteúdos e dessa

nova metodologia com a transmissão, recorri a dois autores que podem ser considerados

como precurssores de toda a moderna educação, Comenius e Rousseau; e às suas grandes

obras, a Didática Magna e o Emílio ou da Educação, respectivamente. O que ficou

evidenciado foi que a moderna metodologia do educar se esmerava na tentativa de

erradicar do cenário da educação o mal-entendido, sendo a preocupação de que os

ensinamentos do professor pudessem chegar incólumes ao aluno uma constante nesses

dois autores. A modulação do ensinar vai desse modo ganhando um contorno que será

“aprimorado” cada vez mais no sentido da erradicação do mal-entendido, e a

possibilidade de o aluno aprender como um errante vai sendo esquecida, já que o erro

deve sempre ser corrigido.

O afastamento da Educação em relação ao mal-entendido exclui a possibilidade de ser

nela pensada a idéia do ofício impossível. Assim, enquanto Freud leva a sério o bon mot

que diz ser o educar, o governar e o curar profissões impossíveis, acreditando estar aí um

tangenciamento à verdade, a educação simplesmente não o registra. Com isso, o

pensamento sobre a transmissão ganha uma única versão: a de que transmitir é acumular
informações. As outras versões para o acontecimento da transmissão são atiradas fora, e

seus rastros são cuidadosamente apagados.

Por maior que tenha sido o esforço da educação em alcançar a aniquilação do mal-

entendido, esse ruído não se dissipou; prova robusta da indestrutibilidade do

Inconsciente, ele permaneceu a produzir seus efeitos, porém a maneira de interpretá-los

mudou radicalmente, passando da necessidade de correção do erro para a necessidade de

produzir uma explicação racional para ele. A Educação torna-se cada vez mais técnica,

em detrimento de uma antiga arte de educar, ao gosto do seu tempo.

Uma vez realizado esse percurso ao longo das origens da moderna educação, comecei

a perceber que a transmissão é um acontecimento que pode ser tomado como

independente do método de ensino. Essa idéia ficou clara quando, ao recuar um pouco

mais no tempo, percebi que em um modelo do educar como o da scholê grego-latina, a

transmissão não apenas existia, como era teorizada de uma forma bastante diversa da

atual. Naquele modelo, o otium preparava para o aprender e o amor determinava a forma

de ensinar. Como o resgate da concepção grega de escola não é um elemento estranho à

Psicanálise, que fez dela “grado” para organizar o conjunto de analistas, resolvi

investigar sob quais formas a moderna educação vem tratando a relação entre o amor e o

transmitir, discussão que resultou no Capítulo 3.

O material que serviu de entrada para a discussão da relação acima citada foi a

presença, no discurso educacional, de uma série de palavras de origem religiosa,

causando um heterodoxo. Basicamente despertou minha atenção o fato de a maioria

dessas palavras estar vinculada a uma necessidade de expressão amorosa do professor,

seja em relação a seu aluno, seja em relação à sua profissão. De forma bastante diversa

da Psicanálise, que define a relação com o saber como uma relação amorosa, a Educação

dedicou toda uma forma de discurso amoroso, principalmente aquela que foi produzida
pela Escola Nova, para velar essa mesma relação, de modo que, tanto o discurso

religioso quanto o discurso científico acabaram por “executar” uma única função: a de

ocultar do professor a sua real identidade no processo de transmissão.

A relação entre o amor (Eros) e o saber é algo que escapa aos modernos preceitos do

educar, que do amor só se tem valido na versão banalizante que produz a equivalência

entre o amor e o sexo. A perda da função do amor na transmissão provoca efeitos para o

universo educacional, sendo um dos mais marcantes aquele que sustenta a manutenção da

idéia de que, sendo o ensinar uma dádiva divina, não é justo que por seu exercício seja

obtido qualquer ganho financeiro.

Finalmente, restava construir um espaço de demonstração, pois por mais que a

experiência pessoal pudesse me indicar que caminhava na direção de apresentar à

Educação uma contribuição em relação à transmissão, as idéias apresentadas exigiam um

ponto de amarração, uma forma de exposição que fosse capaz de alcançar a interligação

entre os vários apontamentos colocados nesta dissertação. Esse “ponto” eu o encontrei

em um conto de Clarice Lispector intitulado Os Desastres de Sofia, e ele constitui a

última parte de minha dissertação, ou seu Epílogo.

Já citei nesta introdução que Freud considerava os poetas e os escritores como

predecessores da verdade da existência de um saber que não se sabendo é capaz de

ensinar; assim, a escolha da literatura não foi sem motivo. Nesse aspecto, o texto de

Clarice Lispector apresenta-se como único no sentido de descrever, através de todos os

desvios, o percurso traçado pela ocorrência da transmissão. O impacto desse achado foi

tão forte que resolvi manter o conto na íntegra e reproduzi-lo como anexo; sem dúvida, o

conto fala por si. Mas, sobretudo, ele me permitiu construir um espaço de demonstração

sobre a relação entre o amor, o saber e a transmissão que não conduzisse à proposição de
um novo método de educar, ou à terrível hipótese da aplicabilidade da Psicanálise à

Educação.

Enfim, este trabalho sobre a transmissão é uma tentativa de dizer das possibilidades de

pensar o acontecimento da transmissão do conhecimento por meio de uma referência que

tem sido pouco comum na Educação. Juntamente com outros trabalhos, este visa marcar

que, pelo contraste com um campo habitado essencialmente pela diferença ao educar, é

viável encontrar uma contribuição que possa apontar para a necessidade de serem

inventadas novas estratégias que conduzam para além da repetição de uma única

pergunta: como ensinar a ensinar? É por isso que esta dissertação se inicia pelos

apontamentos não apenas no sentido de registrar as idéias que circulam sobre o

acontecimento da transmissão, mas também no de dar uma direção que permita pensar as

causas e os efeitos dessas idéias, indicando que existe toda uma obra na educação a ser

executada, a partir do momento em que os educadores também levem às últimas

conseqüências o bon mot do educar como profissão impossível.


CAPÍTULO 1

SOBRE A TRANSMISSÃO

“Provavelmente o que o professor

quisera deixar implícito na sua história triste

é que o trabalho árduo era o único modo de

se chegar a ter fortuna. Mas levianamente

eu concluíra pela moral oposta: alguma

coisa sobre o tesouro que se disfarça, que

está onde menos se espera, que é só


descobrir, acho que falei em sujos quintais

com tesouros.”(...)

Clarice Lispector
1.1 - Aprender ... Informar ... Transmitir

Quando um autor inicia a escrita de um livro, de um artigo, de uma dissertação, um


outro se impõe a ele imediatamente: o leitor. Esse outro, presente durante todo o

tempo em que o pensamento, a imaginação, e o desejo do autor são materializados no ato

da grafia, intervem de variadas formas. Ora é um companheiro benevolente que se torna

cúmplice de idéias ousadas, instigando o autor a inclui-las em seu escrito, ora é um

crítico sagaz que aponta uma direção inesperada como se quisesse deixar de ser um

outro para assumir ele próprio a autoria do escrito. Em outros momentos é um crítico

avassalador que destrói as idéias antes mesmo que elas ganhem o direito à existência no

papel. É ainda, às vezes, o censor rígido e cruel que faz a borracha retroceder sobre o

texto, apagando o que antes tinha se apresentado como promissor. Esse leitor, que

preexiste à sua materialidade, nomeado às vezes como alter ego — um outro Eu —, faz

com que um texto não seja o produto de uma atividade solitária, mas sim o de uma

incessante interlocução, de um debate exaustivo que torna cada palavra, em certo

aspecto, vencedora de uma batalha, já que foi ela a escolhida diante de tantas outras que

poderiam ocupar "aquele" lugar.

Todo esse processo faz que um escrito público — o que significa que ele deixou de

pertencer a um autor para estar disponível a todos — seja sempre o resto das frases que

sobreviveram ao outro, porém não impunemente, no processo de criação. É possível

mesmo admitir que uma parte interessante de um texto nunca irá ao público, pois

permanecerá como reminiscência. Palavras borradas nos rascunhos que, após terem

cumprido sua função na gênese do escrito, foram deixadas à margem para que o "texto"

pudesse existir. Caso contrário, a escrita de um único texto seria um trabalho de Sísifo.

Os escritores, de tanto se pronunciarem sobre isso, tornaram gasta a metáfora que funde o

significado da obra ao filho, conferindo-lhe uma filiação e uma herança.


Assim, todo texto é mais do que ele apresenta em si. O que o público lê é tão somente

o ponto de basta do autor, o momento em que ele, não suportando mais a cumplicidade e

a ferocidade desse "outro Eu", vê-se obrigado a silenciar. Paradoxalmente, como

Michelangelo, ele espera que sua obra fale. Expectativa frustrada, pois que a escrita e a

fala ocupam posições distintas no uso que delas fazem escritores e falantes. Diferente dos

primeiros, aos falantes não é dada a possibilidade de rascunhar. O imediatismo da fala

não admite ensaios e isso a torna sempre uma obra inacabada; "(...) a escrita começa

no ponto em que a fala se torna impossível (pode-se entender esta palavra: como

se diz de uma criança)." (BARTHES,1987. p.265)

Por conter parte desse "inacabado", toda obra escrita é, desde o início de sua

produção, um "jogo" de ideais. Sem isso ela incorreria no risco de que seu entendimento

dependesse exclusivamente de cada leitor. Para que o entendimento de um texto não se

transforme em uma idiossincrasia, um autor nunca escreve para o seu leitor empírico,

mas para um leitor modelo, "uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê

como colaborador, mas ainda procura criar" ( ECO, 1994. p.15). Correspondendo,

simetricamente, ao leitor modelo, existe o autor modelo,


"(...) uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente, ou
dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como
uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas
passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como leitor-
modelo". (Idem, p.21).

Em síntese, a compreensão do texto está vinculada à correspondência do empírico a um

ideal.

Assim, mesmo que escrita e fala ocupem "lugares" diferentes, elas possuem um ponto

de interseção, e esse ponto é o outro. É ele, em última instância, que as objetifica. A


diferença crucial é que a fala, dado seu imediatismo, não admite intermediários, enquanto

na escrita essa função é realizada pela inserção de modelos. De qualquer forma, há

sempre uma distância separando a palavra enunciada do olho e do ouvido do


destinatário. O espaço aí existente será ocupado pelo olhar e pela escuta. Quando

proponho tomar a transmissão como objeto de dissertação é nesse topos que a localizo,

nesse entre um e outro e, sobretudo, no elemento que constrói a ligação desse entre: a

linguagem. Nada mais justo então ao iniciar uma primeira aproximação sobre a questão

da transmissão, que ela proceda, desde sua inauguração, apresentando como "enigma" a

herança da própria palavra. Afinal o que quer dizer transmissão ?

De etimologia latina — trans + mittere —, transmissão é uma junção de dois

significados: para além de (trans) e enviar (mittere). No cotidiano nós a utilizamos, em

nossa língua, com o significado de "mandar de um lugar para outro, ou de uma pessoa

para outra; expedir, enviar (grifo meu)9" O uso revela que uma simplificação é operada à

medida que fazemos equivaler transmitir a enviar, desprezando a existência desse para

além contido na montagem da palavra transmitir. Mas que sentido pode ser atribuído a

esse para além de? De que modo o transmitir se diferencia significativamente do enviar ?

Bem, na ação de enviar é sempre alguma coisa, ou alguém, que é colocado em

deslocamento. Já transmitir não diz respeito a um objeto ou uma pessoa, mas a uma

operação de passagem de um para outro. A diferença entre transmitir e enviar fica nítida

se empregarmos as duas palavras em uma única frase, por exemplo: "O rei enviou seus
arautos a todas as cidades do reino para que eles transmitissem as boas novas ao povo"

Assim, enquanto o enviar refere-se aos arautos que são deslocados de cidade em cidade,

cumprindo as ordens reais, na transmissão é o rei que fala através da boca de seus

arautos. Dito de outra forma: o enviar é um fato, enquanto transmissão é um fenômeno10,


estando situada entre a escuta e a fala, sendo essa a condição que justifica o acréscimo

do "para além" ao enviar, para significá-la.

9
FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 2
ed., Nova Fronteira, 1986.
10
"(...) o fenômeno é o elemento material do fato, puro dado sensível anterior a qualquer intervenção do
eu,"(...) (LALANDE,1993.P.395)
Toda essa intrincada rede para buscar alcançar uma significação para o transmitir nada

mais faz do que demonstrar a maneira pela qual as palavras e as coisas se relacionam.

Essa questão irá encontrar em Ferdinand De Saussure11 uma resolução, que mesmo não
sendo original — ela já se encontrava no De Magistro de Santo Agostinho —, produziu

um divisor de águas entre a gramática e a lingüística. De uma forma sintética, a

lingüística, após Saussure, romperá com a idéia de que cada coisa evoca apenas uma

palavra específica para significá-la12. O signo lingüístico, constituído por uma relação

aleatória entre a imagem acústica da palavra, o significante, e a significação que ela

busca alcançar, o significado, demonstra que nenhuma língua é uma completa

onomatopéia. Essa idéia de antepor a imagem ao sentido é fundamental para a

compreensão do que é transmissão.

Como foi exposto, a transmissão é um fenômeno e não um fato, isso significa que sua

apreensão não pode ser realizada de um modo direto. As teorias sobre a informação e a

psicolingüística podem fornecer um prestimoso auxílio nesse instante. Em 1949, Shannon

e Weaver apresentaram um esquema, reproduzido abaixo, sobre de que forma a

comunicação se processa.

13

11
Confira: SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral, São Paulo, 20ª Ed., Editora Cultrix, 1995.
12
"(...) Nesse sentido, cada elemento lingüístico provoca imagens de outros elementos, tanto na pessoa que
fala, quanto na que ouve. A palavra 'ensino' por exemplo, desperta associações como 'ensinar' , 'educação' ,
'aprendizagem', etc. Saussure chama essas associações de 'relações in absentia', pois elas vêm à tona na
ausência dos signos evocados." (VOGT,1985. p IX, X)
13
Extraído do Livro: PETERFALVI, Jean-Michel. Introdução à Psicolingüistica, Ed Cultrix, São Paulo,
1970. p.26.
É interessante observar que o lugar dado por esses autores à transmissão é o da

codificação, ou seja a transformação dos sinais advindos da fonte de modo a torná-los

aptos a serem enviados pelo canal apropriado; por exemplo: a conversão de imagens em

ondas eletromagnéticas, da voz em impulsos elétricos, da letra em bit. Tal teoria é

bastante eficiente para explicar os mecanismos envolvidos no processo físico de

comunicação, mas é insuficiente no que diz respeito à comunicação entre dois seres

falantes. Coube então à Psicolingüística adaptar tal esquema para aplicá-lo aos

"humanos", sendo o esquema apresentado modificado para a seguinte forma:

14

Nessa nova forma, o indivíduo funciona como uma "unidade de comunicação" que

contém em si as funções de codificação e descodificação, sendo possível concluir que a

transmissão é o produto daquilo que o sujeito quer dizer. Quanto à decodificação, esta

ocorrerá mediante a quantidade de informação necessária para que possa ser produzida.

Se alguém diz: go away, mas quem escuta não fala inglês, o imperativo de quem fala não

poderá ser entendido e, consequentemente, executado. A partir desse esquema básico, foi

desenvolvida uma série de outros, como o de Mowrer e Osgood, que explicam relações

mais complexas tais como a aprendizagem, o comportamento, a interação social, tendo

sido, desde então, muito usados pela psicologia, educação, marketing, etc.

14
Idem, Ibidem, p.26
Esse esquema, porém, apresenta um problema crucial que deve ser abordado. É o fato

de toda a ênfase da comunicação repousar sobre a função de significação, levando,

necessariamente, à pressuposição de que existe a possibilidade de atingir um ápice em

que a transmissão se realizaria — quase — em plenitude. Isso só seria possível sob duas

condições: primeiro, que o Eu fosse perfeitamente correspondente à razão (o indivíduo

diz o que ele realmente quer), e segundo, que a significação fosse alcançada de modo

pleno ( o outro deve recompor a mensagem na íntegra). Essas condições, se realizadas,

levariam à aniquilação de qualquer forma de equívoco. O que significaria a

impossibilidade da inserção de uma idéia, ou mesmo de um pensamento inovador, que

requerem, tanto do autor, quanto do outro, um momento de inquietação e

questionamento sobre a verdade. Verdade entendida aqui como o que está além dos

paradigmas, aquilo que tenta demonstrar o real. Mas será possível pensar a transmissão a

partir de uma outra referência ?

Para buscar essa outra possibilidade, a primeira alternativa que se apresenta é partir da

negação das duas condições previamente apresentadas, isto é: que o Eu não corresponda

à razão, e que a significação não se dê de modo pleno. Àqueles que possuem algum saber

nessa área não terão dificuldade em reconhecer que aí se adentra pelo viés da Psicanálise.

Dentre as várias formas possíveis de definir esse saber, recorro a uma que advém do

próprio Freud15, a Psicanálise como a terceira grande ferida no orgulho do Homem, à


medida que ele não é mais o centro de si mesmo. O Inconsciente, tal como postulado por

Freud, insere uma ruptura crucial no pensamento cartesiano, pois o Eu não tem mais a

sua existência assegurada pela razão — Penso, logo existo.


"Freud (...), está seguro de que um pensamento está lá, pensamento
que é inconsciente, o que quer dizer que se revela como ausente. É a
este lugar que ele chama, uma vez que lida com os outros, o eu penso
pelo qual vai revelar-se o sujeito."(LACAN,1985.p39)

15
Confira: FREUD, S. Uma Dificuldade No Caminho da Psicanálise, ESB das Obras Completas de S.
Freud, Vol XVII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
Assim, o pensar e o "eu" ocupam lugares dissimétricos, se penso onde não sou, por

conseqüência, sou onde não me penso.

Uma das maiores dificuldades na compreensão da Psicanálise está situada na

radicalidade do conceito de Inconsciente. Com efeito, pensar em um depósito de

conteúdos que transitam, de acordo com algumas regras, entre a consciência e o

Inconsciente é aniquilar a originalidade da descoberta freudiana. O Inconsciente, em

Psicanálise, refere-se a uma condição substantiva, algo que escapa incessantemente à

razão, mas que se manifesta, como um ruído, fragmentando a homogeneidade do

pensamento. Assim, o Inconsciente não é passível de ser transformado em consciência;

não é uma sombra que repousando no inferno possa dele ser retirada, por um trabalho

hercúleo, para a luz. O Inconsciente é o heterogêneo da razão, um saber produzido, do

qual o eu racional nada sabe.

A Psicanálise não apresenta o Eu como idêntico ao Ser, mas como cindido, posto que

possui uma parte que ele próprio não conhece. A razão de si não assegura nada mais além

do que a existência de um outro saber que ela busca incessantemente racionalizar16,

significar. O saber de si então ganha novos contornos, uma vez que ele é construído a

partir de um ponto de ignorância radical, o eu (razão-consciência) nada sabe desse saber


que nele se manifesta como estranho, mesmo que o reconheça como familiar. A

existência é então atirada para fora do lugar do pensamento, do idêntico, da significação,

e o sujeito não pode ser mais concebido a não ser como um sujeito cindido.

Essa condição implica a impossibilidade de a significação ser alcançada de modo

pleno, pois o Inconsciente não pode ser reduzido em sua totalidade à razão,

permanecendo sempre como um resto impossível de ser dito, mas que entretanto, quer

sempre dizer algo. Ponto de encontro entre a palavra e o ser que só pode ser caracterizado

16
No sentido de Logos
pela falta. A palavra não consegue dizer a totalidade da coisa, e o eu não consegue dizer a

totalidade do desejo. Essa lacuna levará ao enunciado de uma incessante significação que

remeterá sempre a outra significação, e isso sucessivamente, sempre marcada por um

"quer dizer" que nunca se realizará em sua essência, posto que esta é, para sempre,

vazia.17

O que dizer então da transmissão a partir da Psicanálise? A priori, diria que ela deve

ser pensada como um processo de decifração em oposição ao modelo anterior que a

pensa pela codificação. Enquanto o codificar implica a produção de um código que pode

ser restaurado em sua forma original desde que se possua o crivo adequado, a decifração

está referenciada à leitura, à tradução e, conseqüentemente, à interpretação. Talvez a

diferença entre uma e outra não seja tão aparente à primeira vista; nesse caso, é

importante que aqui se detenha um pouco mais para tentar explicitar mais essa

dessemelhança.

Quando nos referimos a um código, dizemos de um conjunto de sinais que expressam

uma idéia. Por exemplo, podemos atribuir ao desenho de três linhas onduladas a idéia de

água, rio ou mar. Mesmo quando um código refere-se a letras, como o código Morse, é a

idéia da letra que os sinais expressam e não a letra em si; três sinais longos representam a

idéia da letra "o".

A decifração, ou melhor, a cifração significa ordenar elementos dentro de um

determinado contexto de modo que uma se diferencie de outra em função de um valor

atribuído. Assim, quando encontramos em uma partitura o sinal # (sustenido), isso

significa que o som da nota que está à sua direita será elevado em um semitom.

Podemos concluir então que enquanto o código busca manter intacta a possibilidade da

restituição de um sentido, as cifras permitem manter intacta a estrutura que as gerou.


17
Confira: LACAN, J. Variantes do Tratamento Padrão, Trad. Luiz S. D. Forbes, São Paulo, Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1990
Um outro exemplo advém da Arqueologia. Quando a expedição francesa encontra a

famosa Pedra Roseta, de imediato surge a expectativa de que os hieróglifos pudessem ser

traduzidos. Afinal, ali existia um texto em escrita hieroglífica, em demótica, e em grega.

Bastaria realizar a transposição do código grego ao egípcio pela eqüivalência dos

sentidos. Coube, entretanto, a Champollion retificar o hieróglifo à letra, determinando

com isso que a escrita egípcia não era ideográfica e sim fonética. Em síntese, só

conseguimos saber mais sobre o tempo dos faraós quando lhe restituímos, através de sua

escrita, a sua língua.

Isso remete-nos a uma pergunta: Quando lemos um livro ou ouvimos uma aula,

estamos decodificando ou decifrando? Na verdade, uma operação não invalida a outra, e

é bastante provável que ambas se produzam simultaneamente. Pensar que a teoria da

comunicação possa dar conta em totalidade do processo de transmissão seria simplificar

por demais esse fenômeno, e a Psicanálise surge, então, como uma teoria para a qual a

transmissão não deve ser pensada fora da sua relação com a decifração ou, dito de outra

forma, da interpretação.

No início deste escrito marquei com certa insistência a existência de um outro que

participa juntamente com o autor no processo da produção de um texto. Também já me

referi que para a Psicanálise o Inconsciente se processa como um saber do qual o "eu"

consciente nada sabe. Tomando agora como ponto de partida que "não existe

significação alguma que se mantenha senão pela remessa a uma outra

significação" (LACAN,1984a. p.228), poderemos então concluir que o Inconsciente se

manifesta como um Outro que, enviando cifras ao nosso consciente, nos remete,

incessantemente, a outras significações, convidando cada um a ser o Champollion de seu

próprio desejo.
O que daí podemos deduzir é que quando falamos para alguém não enviamos apenas

uma mensagem que esperamos esse outro possa decodificar, mas, sobretudo, enunciamos

uma demanda de que esse outro nos responda o que nós próprios desejamos. O cotidiano

ilustra de modo exemplar esse acontecimento. Imagine-se a cena:

( O marido ao chegar em casa convida sua esposa para ir ao cinema)

— Cinema ? Pensei que você iria me convidar para jantar!

— Está bem, então vamos sair para jantar.

— É sempre assim, você nunca tem uma idéia dessas. Agora eu não quero mais.

— Mas você não queria ?

— Queria, mas agora não quero mais.

— Então o que você quer ?

— Por que você não propõe alguma coisa ?

Mas de onde vem essa radical impossibilidade de expressar com precisão o que se

quer? Freud nos dá a resposta quando diz que o desejo é a tentativa de restabelecer a

situação de uma primeira satisfação. Entretanto, acrescenta que essa experiência não tem

como ser reconstituída. Tomemos o exemplo que Freud fornece para essa explicação:

Um bebê após nascer se vê invadido por uma desconfortável sensação da qual não possui

nenhuma vivência prévia, e a única forma possível de expressar esse desprazer é o choro.

Permanecendo a situação inalterada, "porque a excitação que surge de uma

necessidade interna não é devida a uma força que produz um impacto

momentâneo, mas a uma força que se encontra em funcionamento

contínuo"(FREUD,1972a. p.602). Caberá então a um outro, por exemplo a mãe, fornecer

a esse ruído um sentido. É o que ela faz à medida que o interpreta como fome. Sua ação

bem que poderá ser a de amamentar o infante que chora. Realizado esse ato, a criança

verá a sua necessidade orgânica saciada.


"Um componente essencial desta experiência de satisfação é uma
percepção particular (a de nutrição em nosso exemplo) cuja imagem
mnemônica permanece associada, daí por diante, ao traço de memória da
excitação produzida pela necessidade. Em resultado do elo que é assim
estabelecido, na vez seguinte em que essa necessidade desperta, surgirá
imediatamente um impulso psíquico que procurará recatexiar a imagem
mnemônica da percepção e reevocar a própria percepção, isto é,
restabelecer a situação da satisfação original."(Idem, p.602-603)

Entretanto, não há como repetir de modo idêntico um original. Qualquer tentativa que

aí se faça não produzirá outra coisa que não seja cópia. Mas, se como coloca Freud, "um

impulso desta espécie (repetição da satisfação original) é o que chamamos de

desejo"(Ibid. p.603), temos de concluir que o desejo visa a um objeto ao qual só somos

capazes de nos referir por sua ausência, dada a impossibilidade de reeditá-lo na condição

de original. Desse modo, o desejo afasta-se da necessidade, já que não se vincula a um

objeto real, mas a um objeto produzido pela ausência de semelhança, isto é, um vazio.

É diante desse vazio, paradoxalmente a essência do desejo, que nos dirigimos a

alguém. É por isso que a mulher do exemplo diz ao marido que ela espera que ele saiba e,

simultaneamente, nega o que ele lhe propõe. Com efeito, apenas ela poderá dizer de seu

próprio desejo, mas o toma como estranho a si, buscando no marido, nesse outro, uma

resposta que ele jamais lhe poderá dar. A esse amor que busca um saber do desejo, a

Psicanálise o nomeia como transferência. Fonte irredutível do equívoco, que faz cada um
pedir ao outro que lhe atenda, que lhe forneça esse algo de si sem o qual ele não pode

viver e que ele supõe ser possuído pelo outro. Pedido (demanda) que não se faz a não ser

sob a égide do amor.

O sucesso desse amor representará o fracasso do Inconsciente à medida que nele a

relação se realiza no outro. Esse outro, tomado como o complemento, "a outra metade da

fruta", faz cessar a interrogação no sujeito, pois a substitui por um ponto de exclamação:

Eu sei o que você quer! Mas a relação de completude não se sustenta pela eternidade e

para além do amor há o desejo. A manutenção incessante de um enigma que por não se
completar faz com que o Inconsciente insista. A transmissão em Psicanálise deve então

ser procurada nesse percurso, nessa mudança de um amar o suposto saber de si no outro,

para ter de se confrontar com um saber que não se realiza em totalidade.


1.2 - O Eu, o sujeito, o saber de si como ponto de partida

Ao propor tal condição, uma questão se apresenta de imediato. Diante de um saber

que não sabe de si, como fica então a consciência ? Qual o lugar do "Eu"? Essa dupla

pergunta já revela, por antecipação, que os dois não estão no mesmo lugar. O tão falado

corte epistemológico da Psicanálise, a que me referi anteriormente, tem aí seu lugar. Um

lugar ao qual é necessário mais uma vez retornar, posto que é nele que está situada a

originalidade da Psicanálise. Um original diante do qual muitos buscam incessantemente

se penitenciar. É conhecida a referência de Freud à Psicanálise como a peste, uma peste

que muitos tentaram, e ainda tentam, atenuar.

O próprio Freud já defrontava com isso. Em 1924-5 ele escreve, em Um Estudo

Autobiográfico, referindo-se à viagem à América, em 1909,


(...)"Ela (a psicanálise) não perdeu terreno nos Estados Unidos desde
a nossa visita; é extremamente popular entre o público leigo e
reconhecida por grande número de psiquiatras oficiais como importante
elemento nos estudos médicos. Infelizmente, contudo, muito sofreu por
ter sido diluída. Além disso, muitos desmandos que não têm relação
alguma com ela encontram guarida sob seu nome, havendo poucas
oportunidades de qualquer formação completa na técnica ou na
teoria."(FREUD,1974d.p. 67-68)

Aliás, em 1920 Freud já escrevia a O. Pfister sobre sua preocupação com "a diluição" da
Psicanálise,
"(...) C'est vrai, la cause progresse partout, mais vous semblez
surestimer la joie que j'en retire. La satisfaction personnelle que l'analyse
peut procurer, j'en ai joui au temps où j'étais seul; et depuis que d'autres
se sont joints à moi, j'ai eu plus de soucis que de joies. La manière dont
les gens admettent l'analyse et l'utilisent ne m'a a pas donné d'eux une
autre opinion que leur comportement, quand ils la récusaient sans la
comprendre. Il faut croire qu'à cette époque une brèche irréparable s'est
18
creusée entre les autres et moi." (FREUD,199. p.124)

Tais constatações não foram sem sentido. Infelizmente ainda existem aqueles que
querem impingir à Psicanálise o caráter de uma teoria do desocultamento, da

assimilação ao eu de uma parte estranha a ele. Professores que não se cansam em afirmar

que a função da Psicanálise é a adequação do Ego aos perigosos instintos do Id e às

exigências do severo Superego mediante as relações do indivíduo com o mundo externo.

Sobre essa questão, duas observações. Primeiro, os termos Ego, Id e Superego não são da

autoria de Freud, mas uma contingência da tradução das obras freudianas para a língua
inglesa — o que não é feito sem a ressalva do tradutor19. E segundo, a escolha de

pronomes de uma língua morta, o latim, em detrimento de suas formas mais semelhantes

em nosso idioma — Eu, Isso, SuperEu —, acabou por derivar uma supra-substância a

esses conceitos que rompeu com a referência de seu uso comum.

Essas observações fazem-se necessárias quando nos propomos entender porque o Eu

em Freud não mais é equivalente ao Ser. Essa equivalência é uma dedução imediata do

cogito cartesiano;
"(...) Mas logo após percebi que, quando pensava que tudo era falso,
necessário se tornava que eu — eu que pensava — era alguma cousa, e
notando que esta verdade — penso, logo existo — era tão firme e tão
certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram
capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la como primeiro princípio
da filosofia que procurava."(DESCARTES, 1990. p.86)

18
"É certo que a causa ganha terreno por toda a parte, mas você parece exagerar demasiado a alegria que
daí tiro. Toda a satisfação pessoal que a análise pode de fato proporcionar tive-a já no momento em que
estava só; a partir do momento em que outros se juntaram a mim, tive mais ocasiões de preocupação do que
de alegria. A forma de as pessoas assumirem a psicanálise e dela se servirem não me deu melhor opinião
delas do que o seu comportamento de outrora, quando a rejeitavam sem a compreender. Tenho razões para
acreditar que um fosso irreparável se cavou então entre os outros e eu."
19
Sobre a tradução desses três termos ver a Introdução do Editor Inglês, James Strachey, em "O Ego e o
Id", Edição Sandard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XIX, Imago Editora.
Portanto, para Descartes é a consciência que fornece ao Eu o sentido da existência,

momento de suspensão da dúvida e expressão da verdade que assegura ao ser sua

condição de sujeito; sujeito de sua própria razão.

Pensar o Inconsciente como algo que está fora da consciência ou como não

pertencente ao Eu, mas que deve ser reintegrado a ela ou a ele é manter intacta a premissa

cartesiana e, assim sendo, onde estaria a novidade? E o corte epistemológico introduzido

pela Psicanálise? Em que medida o indivíduo aí seria descentrado de si mesmo a ponto

de perder sua unicidade? Tal perda só se sustenta se pensarmos que o eu, a consciência,

não é mais o lugar de suspensão da dúvida do Ser.

Existe uma frase no final da Conferência XXXI, das Novas Conferências

Introdutórias Sobre Psicanálise, de Freud que requer um exame cuidadoso. No original

está escrito: "WO ES WAR, SOLL ICH WERDEN ". A tradução inglesa, entretanto,

confere um caráter substantivo aos pronomes Es e Ich — "Where the id was, there the

ego shall be" (grifo meu). O que resulta na tradução brasileira — realizada a partir do

inglês — em " Onde estava o id, ali estará o ego." (FREUD,1976b. p.102) Diante

dessa modificação, J. Lacan em La Cosa Freudiana O Sentido Del Retorno A Freud En

Psicoanálisis irá indagar sobre esse acréscimo da tradução que conduz ao entendimento
da alteração de substância — o id que se transforma em ego —, para retornar à idéia de

diferentes sujeitos, o eu "(...) como constituído en su núcleo por una serie de


identificaciones enajenantes (...)" (LACAN,1974c. p.399) e o sujeito verdadeiro do

Inconsciente.

A inovação da Psicanálise é que a partir dela não há como identificar o eu com o lugar

da verdade, posto que ele não conhece o sujeito que a enuncia. É de um eu, produto da

imagem que se tem de si, que a Psicanálise se referencia quando diz de um ego. Não se

trata de uma dualidade entre o bem e o mal à maneira de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, mas da
relação de um eu construído a partir de uma imagem fornecida por um semelhante, um

outro (com "o" minúsculo), e um sujeito que o atropela com uma fala que lhe é estranha

e que aponta para o lugar de um Outro (com "o" maiúsculo); a ordem simbólica do

Inconsciente. Esse Outro constituído pela linguagem, estrutura exterior e anterior ao

individuo, é que instaura a palavra como mediadora do desejo. O Inconsciente que aí está

posto não pode ser reduzido a uma condição de inconsciência, ou mesmo de

subconsciente; ele instaura uma ordem do particular em que cada um está colocado diante

da impossibilidade de produzir uma unificação entre o eu e o sujeito.

1.3 - Para além da memória, da cognição e do logos: A transmissão

Mas, em que sentido a demarcação de uma ruptura entre o sujeito e o eu pode vir a

alterar a concepção do que seja transmissão?

Retomemos a transmissão como algo que se processa no campo da decodificação. A

idéia fundamental de toda essa articulação requer, como condição "sine qua non", que um

receptor seja capaz de recompor na íntegra a mensagem que lhe é enviada. O que é,

evidentemente, verdadeiro. Se pergunto, em uma cidade estranha a mim, como faço para

chegar ao centro, espero uma resposta que me conduza ao lugar esperado. Quando um

professor de geografia, por exemplo, dá uma aula sobre os recursos minerais do Brasil,

ele transmite uma série de dados sobre o relevo, o clima, a população, as atividades

econômicas que informam ao aluno um conhecimento perfeitamente definido.

Nesse contexto, toda a questão sobre transmissão aponta a necessidade de fornecer

formas mais precisas ao emissor para que este possa atingir o receptor. Nesse espaço, a

linguagem é trabalhada em sua condição comportamental, visando a eliminar todo o tipo

de acontecimento que possa produzir no receptor uma compreensão errônea. Assim, é o

uso da palavra, em sua condição de substantivo, de verbo, de adjetivo, que é colocado

em jogo. Os entraves à transmissão são pesquisados no dito, no que a palavra por si


própria define, no que é entendido, mesmo que seja subentendido. A clareza é uma

condição essencial para que a transmissão possa ser processada, de modo que a ênfase da

transmissão recai no emissor.

Tal concepção tem sido, sobretudo na última década, o enfoque privilegiado para a

teoria da transmissão. A "Internet" não é apenas um modismo, mas a concretização de

ideais que sustentam a teoria da comunicação desde seu inicio e, queiramos ou não, é

hoje uma realidade que não pode ser desprezada em seus efeitos. É interessante que nesse

momento sejam retomadas as teses de Hebert Marshall McLuhan, trinta e cinco anos

após sua divulgação. Se, por um lado, a idéia da aldeia global nunca esteve tão próxima

quanto nesse lustro final do século, por outro, encontramos no livro Mutações Em

Educação Segundo McLuhan, de Lauro de Oliveira Lima, publicado na década de 70, o

seguinte comentário:
"Não basta, como supõem os devotos da comunicação de massa, saturar
o ambiente de informação: se o aluno não estiver mobilizado para recebê-
la é como se a informação não existisse... Um banquete não estimula o
apetite se o indivíduo não estiver com fome."(LIMA,1976. p.37)

A crítica nasceu simultânea à utopia. A idéia da possibilidade do acesso universal a toda

informação nasce e carrega consigo uma marca de nascença, um contraponto; apenas a

informação não basta.

O que a idéia da comunicação como transmissão da informação não percebe é que a

linguagem não é apenas transmissora de informação, mas também é o campo da

expressão. A idéia da existência de um sujeito, de um lugar onde a relação emissor /

receptor torna-se inexistente,


"Pois, se é preciso um código para que haja linguagem, nem por isso é
necessário que este código seja imputado a dois sujeitos (emissor e
receptor). Os poetas sempre souberam disto, eles que, quando não
podem resistir ao desejo de ler seus poemas ao primeiro que aparecer,
lêem-nos ao outro que é a sombra deles mesmos. Pois para lê-los ao
Outro, poderiam bem estar sozinhos."(MANNONI,1989. p.53)
Portanto, a transmissão não caberia apenas dentro do referencial da informação, da

linguagem, do comportamento. Tal constatação surge com o enunciado das perguntas

que ultrapassam o limite dessas teorias. Assim, será que o professor do exemplo não diz

a seus alunos mais do que apenas os dados sobre recursos minerais? Afinal, o querer que

o aluno aprenda já é mais alguma coisa. Além disso, não desejaria ele também dizer

alguma coisa a mais, talvez expressar algo que nem mesmo o seu "eu" saiba?

Mas que efeito esse "algo" pode causar na transmissão? Certamente não seria da

ordem do ruído. Pois se assim fosse, tal acontecimento seria sujeito às normas de redução

e eliminação do mesmo. Tampouco poderia ser da ordem do subentendido ou do erro.

Condição que tornaria a exclusão desse efeito "indesejável" possível mediante a

utilização da linguagem de uma forma assertiva. Uma pista para a explicação desse efeito

é encontrada em Jacques Lacan, no texto Variantes do Tratamento Padrão. Ao abordar

"a ambigüidade insustentável que se propõe à psicanálise", Lacan escreve:


(...) "Ela está ao alcance de todos. É ela que se revela na questão de que
falar quer dizer, e cada um a encontra, bastando tão somente acolher um
discurso. Pois a própria locução em que a língua recolhe sua intenção
mais simples: a de entender o que ele 'quer dizer' já diz que ele não o
diz. Mas o que quer dizer esse 'quer dizer' ainda tem duplo sentido, e
depende do ouvinte que seja um ou outro: seja o que o falante lhe quer
dizer pelo discurso a ele dirigido, ou seja o que esse discurso lhe
esclarece sobre a condição do falante."(...) (LACAN,1990. p.9)

Palavra interessante essa “quer” da nossa língua; às vezes é conjunção, outras vezes é

o verbo advindo do latim quaerere. No primeiro uso expressa uma condição alternativa,

no segundo é a expressão individualizada da vontade. Nesse instante eu diria que em

ambos o "quer" se conjuga com o desejo, pois de modo simultâneo marca a necessidade

da univocidade da interpretação — é isto e não aquilo —, enquanto denuncia que algo

permanecerá não entendido — "quer dizer" diz sempre que algo em relação ao outro

restou como incompreendido.


Mediante isso, considerando que a linguagem não se vincula necessariamente à

existência de um emissor e um receptor, e que o falante produz um duplo discurso cujo

sentido é demarcado pelo ouvinte, podemos concluir que a questão da transmissão não

repousa em um subentendido que conduz ao erro, mas em um mal-entendido radical que

nos faz dizer aos outros coisas que bem poderíamos estar sozinhos para dizê-las.

1.4 - A transmissão: Entre o ler e o apreender

Todo o escrito até aqui realizado não teve por objeto outra questão que não fosse a de

demarcar a transmissão como um fenômeno que não pode ser pensado exclusivamente

em um único referencial, na concepção da existência de um diálogo que se realiza em

plenitude tanto para quem fala, quanto para quem escuta. O percurso já realizado indica

que para tentar formalizar um dizer sobre ela é necessário que se recorra, mesmo que

com certa insistência, a certas antíteses, buscando em significações opostas a

possibilidade de aproximação, pouco a pouco, de uma forma conceitual.

Nesse sentido, tomarei aqui uma dessas oposições que apenas posteriormente se

revelam como tal. Refiro-me ao ato de ler e ao ato de aprender. Creio que em um

primeiro momento a maioria tome um como decorrente do outro, mas em um texto

intitulado Sobre a Leitura, Roland Barthes escreve: "Não falo pois das leituras

'instrumentais', que são necessárias à aquisição de um saber, de uma técnica, e

segundo as quais o acto de ler desaparece sob o acto de apreender;(...)"

(BARTHES,1987. p.33). É necessário observar que Barthes é categórico ao dizer que, no

que se refere ao instrumental, o ato de apreender faz desaparecer o ato de ler.


É surpreendente! O senso comum toma o ler como uma das formas privilegiadas de

aprender, os alunos dedicam horas, pelo menos isto é o esperado, na leitura de textos

didáticos e, quando finalmente apreendem, surge Barthes a nos dizer, sem a menor

cerimônia, que nesse processo o ato da leitura desapareceu! E pior! Ele não está só

nessa afirmativa. Umberto Eco ao comentar o romance I Promessi Sposi de Alessandro

Manzoni, e sugerir sua leitura, observa: "Quase todos os italianos odeiam esse livro

porque foram obrigados a lê-lo na escola".(ECO,1994. p.58) Tal observação não

deixa de indicar que, apesar de ter sido lido por uma maioria, a obra literária quando

transformada em "leitura didática - instrumental", permanece inédita para seus "leitores

colegiais".

Mas em que sentido essa desconcertante afirmação pode acrescentar algo à idéia de

transmissão? A resposta, por mais óbvia que seja, é de que acrescenta a partir do

momento em que podemos incluir a própria leitura como um meio de transmissão.

Tomemos como exemplo um texto, ou melhor uma carta, uma missiva. A etimologia

revela então, um radical que nos é familiar: missus, o particípio passado de mittere. trata-

se do mesmo enviar (mittere) ao qual aglutinamos o trans para poder dizer transmitir, e

que está presente em outras tantas palavras como missa, missão, missionário, míssil.

Aliás, missiva advém do francês lettre missive o que, se por um lado resulta em

pleonasmo — no caso de uma tradução ao pé da letra —, por outro mantém intacta a

idéia de como se processa a transmissão por um escrito: enviar a letra. Podendo ainda

revelar um sentido mais ousado para esse mesmo processo como em l'être missive20.

20
Em um texto intitulado: “A instância da letra no Inconsciente ou a razão desde Freud, Jacques Lacan se
vale da Homofonia entre “la lettre, l’être e l’autre” para dizer, respectivamente, da letra, do ser e do outro.
Para preservar a homofonia, os tradutores do texto para língua portuguesa optaram por sacrificar o sentido
traduzindo essa parte do texto por: O ponto, o onto, o outro (LACAN,J. Escritos, Ed. Perspectiva,1978.
p.254). Já para o espanhol o tradutores optaram pela manutenção do sentido, traduzindo por: La letra, el ser
y el outro (LACAN,J. Escritos, Ed.Siglo Veintiuno,1984.p.505). Optei por manter o termo em francês para
preservar a homofonia e simultaneamente expressar a duplicidade de sentido que permite L’être missive:
enviar a letra, o ser, ao outro.
A partir daí, imaginemos a seguinte situação: Alguém que vive sob um regime de

governo totalitário deseja enviar uma carta a um amigo dizendo sobre a situação política

em que vive. Evidentemente, o autor sabe que sua correspondência será censurada, que

sua carta será aberta e lida por rigorosos censores. Claro, ele poderá escrever em código,

mas essa solução apresenta dois grandes inconvenientes. Primeiro, é necessário que seu

interlocutor possua a chave para restituir ao código seu sentido original e, segundo, se o

censor não for um idiota, ele terá sua imaginação despertada pelo non sense do código e

saberá, mesmo sem ser capaz de descobrir o sentido, que ali está contido algo "proibido".

A alternativa que restaria a nosso escritor seria a de tentar dizer da situação em que

vive através de uma forma que o destinatário fosse capaz de compreendê-la e o censor

não. Isto é, atribuir à carta um lugar que não seja o da ordem do apreendido. Na história

recente do Brasil, no período da ditadura militar, encontramos na música popular uma

série de composições que ilustram bem esse exemplo. Existe algo nas chamadas músicas

de protesto, que obtiveram êxito em burlar a censura, que só é transmitido pela leitura,

pela letra, algo que só é sensível à escuta. Pode-se então supor, a partir de Barthes e Eco,

por indução, que assim como o apreender exclui o ler por sobreposição, do mesmo modo

o informar exclui a transmissão.

Um exemplo semelhante sobre a censura é utilizado por Freud na Conferência IX, A

Censura dos Sonhos. Ao falar sobre interpretação dos sonhos, com a finalidade de

esclarecer de que forma a censura modifica o desejo produtor do sonho, ele escreve o

seguinte :
(...)"Nos dias atuais, não é preciso ir longe. Tomem qualquer jornal
político e verificarão que aqui e ali o texto está ausente e, em seu lugar,
não se vê nada mais que papel em branco. Isto, como sabem, é obra da
censura da imprensa. Nos espaços vazios havia algo que não agradou às
autoridades superiores da censura, e por este motivo foi removido (...)"
"Noutras ocasiões a censura não funcionou em uma passagem depois
de esta já estar pronta. O autor viu com antecedência quais as
passagens que se podia esperar suscitassem objeções da censura e, por
esta causa, antecipadamente moderou o tom das mesmas, modificou-as
ligeiramente ou se contentou com aproximações ou alusões àquilo que
originalmente teria fluído de sua pena."(...) (FREUD,1976a. pp 168-169)

Freud ainda ressalta a existência de uma terceira forma de ação da censura para a qual

essa analogia não é válida. Trata-se da produção de uma nova forma de agrupamento do
material onírico na qual a ênfase é retirada dos pontos essenciais e deslocada para outros

elementos de modo que "com esse novo agrupamento dos elementos de conteúdo,

o sonho manifesto ficou tão diferente dos pensamentos oníricos latentes, que

ninguém suspeitaria da presença destes atrás daquele."(Idem, p.169)

Ao esclarecer a forma de ação da censura, poderemos avançar um pouco mais em

direção à idéia de transmissão. Se fosse possível "desconectar" o Inconsciente,

poderíamos conceber a existência de um processo de transmissão que agisse

exclusivamente segundo as regras da teoria da informação. Nesse caso, o ruído causado

pelo "subjetivo" seria atenuado, ou mesmo excluído, desde que emissor e receptor se

adequassem ao método proposto. Entretanto, essa premissa não será verdadeira se

considerarmos a existência do Inconsciente, tal como a Psicanálise o propõe.

Como a censura atesta, o Inconsciente freudiano é, acima de tudo, inassimilável ao

"Eu". Dito de outra forma, o Inconsciente é o que o "Eu" censura para, por meio dessa

metabolização21, torná-lo apreensível a si, em uma tentativa de buscar alcançar uma


significação sobre esse Outro que a ele se manifesta, de modo incessante, como enigma.

Em síntese, o "Eu" não conhece outra realidade, interna ou externa, que não aquela

21
(...) "Podemos definir trabalho de metabolização como a função pela qual um elemento
heterogêneo à estrutura celular é rejeitado ou, ao contrário, transformado num material que se
torna a ela homogêneo. Esta definição pode se aplicar rigorosamente ao trabalho que efetua a
pisque, com uma única diferença: neste caso, o elemento absorvido e metabolizado não é um
corpo físico, mas um elemento de informação."
AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação - do pictograma ao enunciado, Rio de Janeiro,
Imago editora, 1979. p.27
produzida dentro de seu próprio esquema relacional como inteligível. Tal condição

determina a impossibilidade de apreender, em totalidade, o que na realidade o o(O)utro

quer dizer. Tudo o que apreendemos é o que o "Eu" foi capaz de compreender de modo

inteligível a ele mesmo. Esse processo contudo deixa sempre um resto, uma falta presente

no enunciado que remete sempre à condição de querer dizer mais alguma coisa. Assim, a

idéia de ter apreendido a totalidade do objeto não passa de uma ilusão do Eu de ter

alcançado pleno sucesso na interpretação do o(O)utro.

A censura é um rastro da impossibilidade do "Eu" em realizar a assimilação do que é

Inconsciente, e não é por acaso que ao seguir essas pegadas Freud estabeleceu as formas

por meio das quais o Inconsciente se manifesta: os sonhos, o sintoma, os chistes, os atos

falhos, e os lapsos de língua. Tais manifestações apontam com insistência a ocorrência de

lacunas em nossa vida mental consciente, vazios que denotam a existência de um

o(O)utro texto do qual o "Eu" nada sabe porque não lhe é possível lê-lo. Esse o(O)utro

texto, entretanto, não cessa de se manifestar como um saber que não sabendo de si, exige

que se produza um sentido para ele; e quantos sentidos já não foram, e ainda são

fornecidos ao sonho, por exemplo.

É, então, esse o(O)utro texto, essa exigência da busca de significação que o "Eu"

também produz para o outro22, a expectativa de que este nos diga de nosso desejo; afinal,
um dia o outro nos impôs, não sem a necessária violência, o seu desejo como resposta à

nossa necessidade23. Contudo, isso não se faz a partir de um código restabelecedor de

uma tranqüilizante significação, pois o que o Inconsciente envia para o "Eu" são cifras,

como já foi dito. Não existindo um texto oculto a ser decifrado, o lugar dado ao

22
O sentido fornecido à palavra outro nesse parágrafo é o de outrem, semelhante.
23
"O efeito de antecipação da resposta materna está presente desde o inicio; o efeito antecipador de sua
palavra e do sentido que ela veicula, deverá ser, posteriormente, apreendido pela criança.(...) Para que o
psiquismo infantil entre em ação, é preciso que ao seu trabalho se acrescente o da função de prótese do
psiquismo materno, comparável à prótese que representa o seio, enquanto extensão do próprio corpo(...)"
(AULAGNIER, op. cit. p.38)
semelhante, para além da informação, é o da invenção. Lugar aliás que os analistas não

teriam dificuldade em reconhecer como sendo o da interpretação; "se o inconsciente


24
cifra, o psicanalista não decifra, ele inventa(...)"

Não é difícil, então, compreender em que sentido o ato de apreender exclui o ato de

ler. Tomemos o exemplo de um aluno que "lê" um romance como tarefa de uma aula de

literatura. Sua leitura estará previamente condicionada pelas instruções fornecidas a ele;

toda a leitura tenderá à busca de algumas respostas corretas sobre questões formuladas

previamente sobre o estilo, os personagens, o conteúdo, etc. O professor, ao esperar

respostas corretas, antecipou o tempo de compreensão do aluno, e toda interpretação do

aluno não faz senão confirmar a palavra do mestre. Nesse sentido, o diálogo entre o texto

e o leitor será rompido, e as possíveis perguntas que o leitor se pudesse fazer serão

previamente silenciadas. Essa também pode ser uma boa explicação do porque a cada

releitura de um texto podemos sempre apreender algo de novo, produzir entendimento

para algo que sempre esteve no texto, mas que poderíamos jurar ter sido acrescentado no

período entre a primeira e a última leitura.

A questão sobre o modo como se processa a transmissão pode agora ser recolocada da

seguinte forma: A transmissão está além do que podemos definir como o que é

apreendido, da mesma forma como ver, escutar, degustar e tocar estão além do que

podemos enunciar no discurso como visto, ouvido, saboreado e tocado. As palavras

marcam simultaneamente o modo de expressão do que desejamos e queremos transmitir

ao outro, e a impossibilidade de nos tornarmos absolutamente inteligíveis para ele.

Resta, pois, pensar em que sentido essa concepção pode acrescentar algo para aqueles

que ensinam.

24
NASIO, Juan David. La voz y la interpretacion, Ediciones Nueva Vision, Buenos Aires, 1980. Citado em
BORGES, Fábio. Transmissão: Uma Questão ? In: Reverso, Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas
Gerais, Nº 28, 1987.
1.5 - Educar, Psicanalisar ... Transmitir.

A ausência de relações entre a Psicanálise e a educação é exposta, de forma brilhante,

por Catherine Millot, em Freud Antipedagogo. No final de sua obra não lhe resta outra

condição a não ser a de concluir que: "A psicanálise fez com que ficassem caducas

as esperanças de que, através de uma reforma da educação, o homem pudesse

atingir a felicidade — seja ela no sentido de harmonia interior, seja na satisfação

plena." (MILLOT,1992. p.156) Conclusão essa ratificada por Maria Cristina Kupfer, em

Freud e a Educação, que ressalta as três perguntas diante das quais Millot responde com

um sonoro não:
1. Pode haver uma educação analítica no sentido de a educação ter uma
perspectiva profilática em relação às neuroses?
2. Pode haver uma educação analítica no sentido de visar aos mesmos fins de um
tratamento psicanalítico (resolução do complexo de Édipo e superação da
castração)?
3. Pode haver uma educação psicanalítica que se inspire no método psicanalítico
e o transponha para a relação pedagógica? (KUPFER,1989. p.73,74)

Diante disso, e apesar disso, ambas propõem a possibilidade de a Psicanálise agir

como uma forma de interlocução com a Educação. Para Millot, a experiência

psicanalítica pode ser uma inspiração que sirva para a fundação de uma outra ética

pedagógica. Enquanto para Kupfer, a transferência seria o ponto chave para que

professores e alunos fossem conduzidos a uma mudança de posição em relação a seus

ideais de ensinar e de apreender. A observação essencial que faço é que ambas não se

detiveram na constatação da impossibilidade, não fizeram dela justificativa para a

omissão ou para a impotência. É nesse contexto, concordando com as conclusões de

Millot, que acredito exista na educação o espaço para trabalhar a transmissão tendo

como compreensão teórica a Psicanálise.

Assim sendo, retorno a uma antiga concepção que sustenta que o saber é um dom

divino (Scientia donum Dei est), e, consequentemente, o ensinar está incluído na mesma
categoria. Alegação que serviu de base para que os Concílios III e IV de Latrão

deliberassem que o professor não deveria ser pago (unde vendi non potest).25 É evidente

que tal acontecimento se sujeita a uma análise sociológica, mas gostaria de demarcar nele

algo que de certa forma se tem perpetuado mesmo que o nome dom tenha sido

substituído, em diferentes épocas, por vocação, engajamento, interesse, amor, etc. Trata-

se da idéia de pensar o acontecimento da transmissão como algo que transcende ao

indivíduo e que, de certa forma, tem resistido a ser cientificamente decodificado no

campo da didática.

Será que realmente desistimos da idéia de que a transmissão é algo que transcende ao

indivíduo? Não seriam os significantes, advindos do discurso religioso, que persistem no

campo da educação, restos e lacunas de um tentar dizer sobre a transmissão? Em que se

sustentam as hipóteses de que o sucesso do professor — avaliado pelo sucesso de seu

aluno em aprender — está vinculado a seu amor e interesse pelo ensinar e que isso não

se ensina? É bem provável que a resposta às duas últimas perguntas seja responder de

modo negativo a primeira, e se assim for, a Psicanálise poderá vir a dar alguma

contribuição, não por ser aplicável, mas por pensar o sujeito enquanto dividido.

No trabalho de Kupfer, por exemplo, a transferência é apontada como sendo o

elemento chave do processo de transmissão. É a partir desse acontecimento que a autora

chega mesmo a traçar, em linhas gerais, como se relacionariam professor e aluno a partir

do momento em que se apropriassem desse saber: a possibilidade do aluno de "matar o


mestre para se tornar o mestre de si mesmo(...)"(KUPFER,1989. p.99) e a do

professor de suportar tal destituição. Mas será que existe uma outra forma de o professor

ser conduzido a esse lugar que não seja por meio de sua própria análise? A resposta a

essa pergunta é não.

25
Confira: VEGER, J. As Universidades na Idade Média, São Paulo, UnESP, 1990.
A exclusão que estabelecem mutuamente, entre si, Psicanálise e Educação aponta para

a formulação de uma pergunta, isto é, se quem psicanalisa não educa e quem educa não

psicanalisa, como então se transmite a Psicanálise? Com efeito, não existe em nenhuma

universidade um curso que tenha por finalidade graduar o psicanalista. Além disso, toda

apropriação que se fez da Psicanálise, enquanto "leitura instrumental", resultou na

produção de um equívoco, seja para a prática, seja para a teoria psicanalítica. Tais

acontecimentos levaram Jacques Lacan a afirmar, na Proposição de 9 de Outubro de

1967: "Primeiro, um princípio: o psicanalista só se autoriza por si

mesmo"(LACAN,1987. p.29). Em outras palavras, só há análise a partir do instante em

que o analisando sustente a proposta dele de se analisar, de nada adiantando, por si só, a

indicação de um analista, mesmo que de renome. Seria, então, uma utopia imaginar que

todo professor, para se tornar um bom professor, devesse antes proceder à sua análise.

Diferentemente do educador, ao analista não cabe contar com o acúmulo de saber para

sustentar sua prática, uma vez que o saber por ele operado se inscreve em um espaço que

é o avesso daquele do saber acadêmico. Isso significa que enquanto para o professor o

acúmulo de saber é o alicerce que sustenta sua prática, para o analista, em sua clínica, o

acúmulo de saber não é uma materialidade, mas uma suposição, sendo aí, nesse lugar de
suposto saber, que ele assentará os pilares que suportam a sua prática. Porém, se a análise

acontecer, terá resultado em seu final um novo analista. Disso se deduz que a

transmissão pode ocorrer em um espaço que não é mediado pelo saber (scientia),

levando-nos a concluir que a transmissão opera essencialmente a partir de dado lugar no

discurso.

Suportar a destituição de si e do saber em si suposto é condição essencial ao analista já

que é ao não existir enquanto si (eu) que ele colocará em jogo o objeto como causa do

desejo do analisando. Sem isso, sem a destituição do analista, não haverá análise e,

conseqüentemente, não haverá transmissão. No que se refere ao professor, não é


necessário que o mesmo processo se dê, pois sabemos que existem professores que

suportando ou não a destituição, que sendo ou não analisados, conseguem, em relação a

seus alunos, mais do que simplesmente repassar informações, adentrando pelo campo da

transmissão.

Considerando que é apenas na própria análise que se produz o analista, que o saber

acumulado, por si só, não é capaz de explicar o processo da transmissão, e que a

transmissão está presente em dois campos excludentes entre si (Psicanálise e educação),

proponho-me estudar como a transmissão ocorre ao longo das indicações do

desenvolvimento histórico do lugar — e da função — daquele que ensina.

A premissa inicial que apresento é a de que esse lugar não é determinado por um grau

de escolarização, existindo uma cisão entre a licenciatura e a transmissão. Que algo da

idéia do dom persiste entre nós na atualidade como indica um agradecimento aos mestres

que costuma figurar nos convites de formatura de nossos alunos:


"Nossa gratidão, àqueles que fizeram do magistério um ideal,
mesclando a arte de ensinar com o dom da convivência, tornando-se
amigos, transmitindo suas experiências que grandemente ajudaram na
nossa formação.
Nosso perdão àqueles que se limitam a ser apenas professores"

Acredito que o pensar de tal agradecimento não possa ser considerado um ato de
desrespeito ou um comportamento mal-educado. Também não creio que faça

exclusivamente referência à existência de profissionais sem compromisso com o seu

trabalho, ou que o executam de uma forma mecânica. Tomo-o como um fragmento, uma

ruidosa manifestação de que o lugar do ensinar, da transmissão não é autorizado pela

licencia docendi.
CAPÍTULO 2

OS NOMES DAQUELE QUE

ENSINA

“O professor era gordo, grande e

silencioso, de ombros contraídos. Em vez


de nó na garganta, tinha ombros

contraídos. Usava paletó curto demais,

óculos sem aro, com um fio de ouro

encimando o nariz grosso e romano.” (...)

Clarice Lispector
2.1 - As Dimensões Perdidas do Ensinar a Ensinar

A necessidade dos pensadores da educação em produzir uma resposta para o como

ensinar a ensinar sempre foi tão premente que acabaram por criar um campo totalmente

dedicado a ela. Refiro-me à Didática, o destinatário mais freqüente na educação quando o

assunto é ensinar a ensinar. Por outro lado, e, creio, é melhor dizer pelo avesso, o verbo

"ensinar", ao ser duplicado desse modo, potencializa aquilo que, por si só, já se apresenta

como uma fonte inesgotável de inquietação: o que é ensinar ? Se essa questão tem

resistido vigorosamente a ser definida de um modo único, claro e inequívoco, como

poderíamos esperar que ao ser elevada ao quadrado se esclarecesse? Assim, quando

proponho mais uma produção nesse campo, é justo que eu diga, desde o início, que não

viso a dissertar sobre o ensinar a ensinar, mas desacertar o ensinar a ensinar. Antes de

prosseguir é necessária mais uma advertência. Meu objetivo nesta dissertação é ampliar

a idéia de como se processa a transmissão. Entretanto, existem momentos em que esse

tema se aproxima da produção do conhecimento de tal modo que fica difícil distinguir o

que pertence a um ou a outro. Tal fato torna inevitável que sejam apresentadas

concepções no campo da produção do conhecimento para que as mesmas possam servir

de referência ao leitor, permitindo a localização dos pressupostos teóricos dos quais

parto, e que sustentam o desenvolvimento do pensamento de todo o texto.

Quando me refiro “a mais uma produção” estou considerando que o saber é produzido

a partir de uma série, da mesma forma que o conjunto dos números naturais é obtido

através da função “n + 1”. Assim, toda nova produção de saber confirma, retifica ou

ratifica um saber anterior. Essa característica agregacionista da produção do

conhecimento não somente conduz à ampliação do conhecimento sobre um dado objeto,

mas, também, tende a segregar desse mesmo campo outros saberes (novos ou anteriores)
que não se alinham com o saber vigente. Dito de outro modo, um conceito quando

estabelecido, incorpora-se a um eixo de paradigmas26 em que o significado das palavras

com as quais o saber de um objeto específico é enunciado fica congelado.

Produzir um desacertar nesse eixo é um meio de impedir que os sentidos

estabelecidos tendam à estagnação e adquiram um valor dogmático. Os alemães sabem

bem disso, já que a palavra Bildung — que pode ser traduzida imprecisamente por

formação ou cultura —, implica a idéia de que a formação é algo inacabável e que um

esforço intelectual concluído e terminado seria a instalação de um novo dogmatismo.27

Ao mesmo tempo, o desacertar é também uma oportunidade de, ao realizar um

movimento de desconstrução, recolocar antigos e novos saberes frente à posição atual.

Com isso fica estabelecido um meio de aproximação para tentar saber como a educação

construiu suas teorias sobre o ensinar a ensinar.

A educação é um universo que engendra uma variedade de possibilidades que vão

desde a discussão sobre qual é sua verdadeira essência — o que é educação ? — até à

tentativa de definir qual é o saber que um sujeito necessita possuir — o que a educação

deve ensinar ? De um ponto a outro (da forma ao conteúdo) existe uma dispersão

intrínseca ao campo educacional que assume dimensões28 que necessitam de uma


referência, de uma qualidade para poder com isso escapar da imensidão, e assim ser

viabilizada em uma produção que possa ser entendida como saber pertinente a esse
26
“Cada palavra que acrescento a uma palavra anterior é uma palavra que devo escolher entre as várias que
o contexto lingüístico e extralingüístico então nos permite utilizar: o eixo das palavras possíveis é o
paradigma.”
COELHO, Eduardo Prado. Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade e
estruturalismos in COELHO, E. P.(org) Estruturalismo: Antologia de textos teóricos, São Paulo, Livraria
Martins Fontes Ed., 1968. p.XVII
27
Confira: HERMANN, Ulrich. Educación y formación durante la Ilustración en Alemania, in: DEBESSE,
M. e MIALARET, G. História da Pedagogia. Barcelona, Oikos Tau, 1974.
28
Sobre o uso da palavra "dimensões" é importante que se faça aqui um esclarecimento. Dimensão no
sentido matemático (número mínimo de variáveis necessárias para descrição de um conjunto) permite lidar
com o infinito sem produzir nele a contradição de sua redução ao mesmo tempo que cria a possibilidade
para o exame de sua textura. (Nesse sentido confira: GUILLEN, Michael. Dimensão: Um reino de muitas
possibilidades in: GUILLEN, M. Pontes Para o Infinito, Lisboa, Gradiva,1987
campo. Disso resulta que o saber que nesse espaço é construído o é sempre a partir de

uma interseção, seja com a filosofia, seja com a ciência ou mesmo com a religião. A

impressão causada em quem se propõe escrever sobre Educação é que a essência desta é

para sempre inefável, que ela pode ser apenas circunscrita e, mesmo assim, nunca será

da ordem do preciso.

Para iniciar, então, essa circunscrição, proponho a exame uma frase de Rousseau, que

existe em seu Emílio. Se a esta citação recorro, não é por afinidade à teoria de um

mestre, mas pelo efeito por ela produzido, já que é o debate com o efeito causado pelo

autor que, neste instante, me servirá de eixo para falar das dimensões em educação. A

anunciada frase é a seguinte: "Tudo é certo em saindo das mãos do Autor das

coisas, tudo degenera nas mãos do homem."(ROUSSEAU,1992. p.9) Tal frase,

colocada logo no início de uma obra que pretende ensinar a ensinar, possui um sentido

que é necessário desde já evidenciar, isto é, apresenta a degeneração como um

inevitável. É claro que alguém poderá replicar que estou atribuindo uma importância

não existente, ou mesmo forçando um sentido, porque na realidade Rousseau se refere

apenas à impossibilidade do homem alcançar a intenção divina. Ao suposto interlocutor

respondo que independente da origem da intenção existe sempre uma perda, uma
degeneração, uma traição do leitor para com o autor. Afinal, a mensagem nunca chega

ao receptor na plena forma em que foi emitida. O que a frase de Rousseau me permite é

dizer que o homem produz um mal-entendido na natureza, que ele é frustrado em sua

esperança de alcançar a perfeição da intenção. Será esse mal-entendido que tomarei, a

priori, como o irredutível, aquele que é decorrente de uma condição da linguagem

caracterizada pela ruptura entre a palavra e a coisa29 e que se expressa na impossibilidade


29
(...) "Porque as palavras não são coisas e as coisas não são palavras, o sujeito não pode
comunicar-se diretamente com as coisas, mas indiretamente, através de um liame ou termo
médio que liga as palavras às coisas: a representação”.
DOMINGUES, Ivan. O Problema da Verdade, A Questão do Sujeito e a Serpente de Valéry. in:
Kriterion, Revista de Filosofia do Dept. de Filosofia da Fac. de Filosofia e Ciências Humanas
da UFMG, Belo Horizonte, N° 88, Agosto a Dezembro de 1993. p.14
da primeira recobrir de modo pleno a segunda. Opto então por tomar o "Tudo é certo em

saindo..." em um sentido crítico literário, tal como o propõe Roland Barthes, em Que é a

Crítica, (...) "a crítica não é uma 'homenagem' à verdade do passado ou à verdade
do 'outro', ela é a construção do inteligível do nosso tempo." (BARTHES,1967.

p365)

É diante do inteligível do nosso tempo que é aberta a possibilidade de descortinar

elementos do passado, sendo possível então manter em suspenso a cronologia e, com

isso, trazer para um mesmo eixo Rousseau (1712-1778) e Comenius (1592-1670) . Este

último irá substituir o acontecimento da degeneração à Didática; o "tratado da arte

universal para ensinar tudo a todos" (Comenius,1985. p.43). Eis aí a resposta

encontrada pela educação diante do acontecimento do dizer de o professor ser

degenerado pelo aluno: a Didática, o saber que estuda o processo ensino-aprendizagem,

mesmo considerando que ela não recobre a totalidade do fenômeno aprendizagem30.

Assim, é em sua forma científica, a Didática, que a educação deposita suas expectativas

de encontrar uma resposta à questão: Como ensinar a ensinar ?

Na Didática discutem-se desde as técnicas de melhor ensinar até o contexto social em

que tais técnicas são engendradas. Possuindo, na atualidade, uma vasta literatura, é difícil
não reconhecer nela seu caráter científico, anunciado por sua capacidade de classificar e

prever fenômenos. Mesmo quando tratada em uma perspectiva crítica, sua condição

científica não é questionada, como pode ser observado no seguinte excerto, do livro A

Reconstrução da Didática: Elementos Teóricos-Metodológicos, de Maria Rita N. Sales

Oliveira:

Entretanto, a representação não se realiza em sua totalidade, de modo que há sempre um real que sobra e
resiste a ser representado.
30
O estudo das formas e modos da cognição é feito pela psicologia. Além disso, não é possível considerar
que o ideal pansófico de Comenius esteja presente em toda Didática, mas não há como negar que está em
seu alicerce.
"(...) A construção da Didática à luz de seu compromisso com as
classes populares; o entendimento do objeto de estudo da Didática — o
ensino — como uma totalidade completa, produzida socialmente pelo
homem e que se atualiza na aula; e o tratamento do ensino em suas
dimensões histórica, antropológica, ideológica e epistemológica.
"(...) Dentro disso, o saber didático dever ser reconstruído num espaço
que leve em conta, de um lado, sua amplitude, para além do processo
ensino-aprendizagem de uma dada matéria curricular e de outro, seus
limites, no sentido de não-identificação com um método geral de ensino.
Esse saber didático, enquanto saber de mediação, trata de princípios,
essencialmente metodológicos, do processo pedagógico escolar —
ensino — entendidos à luz do estreito relacionamento entre conteúdo e
forma, no contexto das condições concretas do trabalho didático, o qual
possui sua expressão nuclear na sala de aula." (OLIVEIRA,1992. p.132-
133)

Mas afinal, mesmo com todo o avanço da ciência e da crítica do social deste final de

século, a questão do ensinar a ensinar permanece, em grande parte, inalterada no sentido

da degeneração, do mal-entendido, e não podemos atribuir esse fracasso a uma

insuficiência da Didática, posto que novas metodologias do ensinar são geradas a cada

dia. O fato é que a persistência do mal-entendido reafirma uma impossibilidade radical

que até aqui tem sido pouco considerada pela educação. Contudo nem sempre foi assim,

"Ora, que absurdo maior do que crer ter sido instruído pelas minhas palavras

àquele que, se interrogado antes de eu falar, poderia responder sobre o assunto?"

(Santo AGOSTINHO,1956.p.117) Que outra leitura fazer dessa citação a não ser a de

que Santo Agostinho já dizia aos mestres, no século IV, dessa impossibilidade?

Impossibilidade que também Rousseau, soubesse ou não de sua radicalidade, deixou

enunciada, e que na atualidade a educação parece querer desconhecer.

Para dizer dos efeitos causados por esse desconhecimento, retorno mais uma vez a

Comenius e à concepção que ele fornece à Didática como sendo uma arte. Tal concepção

afasta-se de forma considerável da existente na atualidade quando a técnica se impõe

sobre a arte, mantendo com esta apenas o parentesco distante da habilidade contida no
artifício31. Existe um hiato entre Comenius e a atualidade que não pode ser explicado

apenas pelo intervalo de tempo. Aliás, sob muitos aspectos, Comenius pode ser

considerado um autor bastante atual para a Didática. O fato é que nesses três séculos e

meio a Didática migrou nitidamente da arte para a técnica, para o método. Claro,

devemos considerar que a própria palavra técnica não existia com sentido próximo ao

atual antes do final do século XVIII32, e que se ela já existisse como tal, era provável que

Comenius tivesse optado por escrever: "a técnica — ou a metodologia — de ensinar tudo

a todos". Entretanto, é necessário considerar que a escolha do termo arte implica uma

clara referência a artesão. Comenius produz sua Didática Magna exatamente no limiar do

século XVII (escrita entre 1629-1632 e publicada em 1657), século que pode ser

identificado como marco do pensamento moderno, do racionalismo cartesiano, do

surgimento da moderna ciência33 Larroyo chega a mencionar que a Didática Magna é o

quarto grande livro que marca a inauguração do pensamento moderno (os outros três são:

Novum Organum(1620) de F. Bacon, Discurso sobre o Método(1637) de R. Descartes e

Fragmento de um Tratado sobre o Vácuo(1651) de Pascal)34. A utilização do termo

“arte” como referência à Didática apesar de rara hoje na Educação, ainda mantém como

resquício uma dimensão em que o educar é uma arte e o educador um artífice. A

31
É importante ressalvar aqui que a tradução espanhola de Saturnino Lopes Peces (1992, Madrid, Editorial
Reus. S.A.) da Didática Magna utiliza a palavra artifício em vez de arte.
32
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 2ª Edição, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1992.(apêndice, p.92)
33
Sobre a utilização do século XVII como referência do inicio do "pensamento moderno", não considero
que esse pensamento surge de modo espontâneo e sim que é fruto de um longo processo que se inicia na
Idade Média talvez a partir do século XIII; entretanto, como propõe Koyré:
"Não obstante a periodização não é inteiramente artificial. Pouco importa que os limites
cronológicos dos períodos sejam vagos e mesmo superpostos. A certa distância, grosso modo,
as distinções se apresentam bastante nítidas e os homens de uma mesma época têm muito em
comum. Quaisquer que sejam as divergências - e elas são grandes - entre os homens dos
séculos XIII e XIV, comparemo-las a homens do século XVII, mesmo sendo estes últimos
diferentes uns dos outros. Ver-se-á logo que eles pertencem a uma mesma família; sua 'atitude'
e sua 'maneira de ser' são as mesmas. E essa maneira de ser e esse espírito são bem diferentes
dos homens dos séculos XV e XVI. O Zeitgeist não é uma fantasia. (...)"
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico, Rio de Janeiro, Ed. Forense
Universitária, 1991. p.16
34
Confira: LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia, São Paulo, Mestre Jou, 1974.
Psicanálise pode funcionar como um bom “lembrete” ao educador, ao recordá-lo, como

ressalta Catherine Millot, de que (...)"os métodos de transmissão dos

conhecimentos importam pouco frente ao desejo de aprender da criança”

(MILLOT,1992. p 146)

2.2 - Um Nome Para Aquele Que Ensina

Um saber não é construído com "as coisas" em si, e de muito pouca valia seria, se

assim o fosse. Ficaríamos limitados a saber que algo queima, que algo molha, e outras

constatações semelhantes que caminhariam, inevitavelmente, para um empirismo

ingênuo. Para que "as coisas" possam ser relacionadas entre si e articuladas como saber,

elas terão de ser definidas, nomeadas. É essa classificação que torna possível estabelecer

uma relação entre, por exemplo, o homem e os macacos — ambos pertencem à ordem

dos primatas — e não a simples observação de um e outro. Assim,"(...) A toda classe

definida de objetos corresponde um conceito, pois não se pode definir uma tal

classe sem indicar um conjunto de características que pertencem aos objetos

dessa classe" (LALANDE, 1993. p.182)

A partir daí, e por reciprocidade, todo conceito deve ter uma extensão que será "o
conjunto de objetos que ele pode designar" (Idem, p.373). Essas afirmações visam a

colocar em destaque a existência de um pleonasmo no campo conceitual da educação. Se

considerarmos que a educação é uma classe definida de objetos, (portanto, que possui

conceitos) como são nomeados aqueles que, pertencendo a essa classe, executam o ofício

de ensinar? Seriam mestres? Seriam professores? Mas, não são os dois termos idênticos

em seu significado?
Antes de trabalhar com os motivos, as conseqüências, as dimensões históricas e

etimológicas de uma sinonímia para definir aquele que ensina, é necessário interrogar:

Qual é a importância de deter-se nessa redundância ?

De início, diria que como não precisamos de mais do que um nome para designar

aquele que exerce a medicina, aquele que exerce a engenharia, aquele que exerce a

odontologia, é no mínimo instigante pensar por qual motivo necessitamos de pelo menos

dois nomes para dizer aquele que ensina. Além disso, visto pelo olhar da produção do

conhecimento, uma palavra com a qual uma classe é designada vai bem além da

condição arbitrária que vincula um significante a um significado, pois diferentemente das

palavras em seu uso cotidiano, um conceito não admite duplicidade em sua interpretação.

Sendo aquele que ensina o ponto de partida da teorização em educação, já que, em

última instância, é a ele que as teorias são destinadas, mesmo que ele esteja descentrado

em relação aos fundamentos teóricos propostos. Ele será sempre o ponto a partir do qual

se tomará a medida das coisas. Afinal, aquele que ensina é quem coloca em operação a

teoria. Portanto, quando nomeado de "tia", ou de "trabalhador da educação", por

indução concluímos em qual teoria tal denominação teve sua produção, sendo que essa

identificação é possível porque toda teoria da educação tem de indicar de que maneira

aquele que ensina deve ser formado e de que maneira deve ensinar.

São esses os motivos que tornam possível concluir que quando aquele que ensina é

nomeado de mestre, de professor ou de “tia” fica estabelecida uma expressão objetiva

que corresponde ao conjunto de características próprias e exclusivas por meio das quais é

determinado o vínculo da expressão (mestre, professor, tia, etc.) com uma teoria da

educação. Em outras palavras, a denominação mestre ou professor funciona como

extensão do conjunto das teorias educacionais. Enquanto tal, o uso de uma palavra ou
outra só se diferenciará à medida que ela seja produzida no interior de um discurso35

específico. O que significa que, se para o senso comum a escolha de um nome ou outro

faz pouca diferença, o mesmo não ocorre quando mestre e professor são nomeados e

aplicados no interior de uma teoria. Aí, a escolha determinará o eixo dos paradigmas que

produzirá o discurso teórico em que então mestre e/ou professor assumem o valor de

conceito. Creio ter explicitado o fato de aquele que ensina ser tanto uma extensão como

um conceito das teorias da educação.

Retornemos ao binômino. Como foi visto, enquanto palavras, "mestre" e "professor"

pertencem ao universo de nossa língua materna, sendo indiferente o uso de uma ou de

outra no cotidiano, já que ambas buscam significar uma mesma realidade36. Professor

ou mestre, o que determina a escolha, fora do campo do discurso teórico da educação,

são exclusivamente os aspectos regionais, formais, históricos ou mesmo os subjetivos.

Mas, e no campo do discurso teórico? Não haverá aí também um uso indiscriminado?

Se não, o que justificaria a incapacidade das teorias educacionais de transferir a diferença

para o cotidiano? Esse excesso de significados para dizer a mesma coisa, aparentemente,

não poderá nos conduzir a outras abstrações e, inúmeras vezes, qualquer discussão que

aborde um tema semelhante corre o risco de nem sequer vir a ser travada, sendo
encerrada em si mesma, como costuma ocorrer com as discussões que adentram pelo

senso comum37. Para prosseguir, então, é condição sine qua non, ser verificada a
35
Segundo Ferdinand De Saussure "o discurso consiste, ainda que de modo rudimentar ou por caminhos
que ignoramos, em afirmar um elo entre dois conceitos que se apresentam revestidos de forma lingüística,
enquanto a língua previamente apenas realiza conceitos isolados, que esperam ser relacionados entre si
para que haja significação do pensamento"
SAUSSURE, Ferdinand De. As Palavras sob as Palavras. Col. Os Pensadores, São Paulo, Abril
Cultural, 1985.p.4
Em síntese o discurso é o que se produz como enunciado, sempre em certas condições de enunciação que
condicionam sua análise.
36
Apesar de possuírem etimologias diferentes (mestre do latim magister - séc. XIII, professor do latim
professor-õris - séc. XV ( Cunha, 1992. p.516 e 637)) a conotação atual de ambos é idêntica: "aquele que
ensina" (Ferreira, 1986. p. 1125 e 1398)
37
"Na linguagem filosófica contemporânea, o senso comum é o conjunto das opiniões tão geralmente
admitidas, numa dada época e num dado meio, que as opiniões contrárias aparecem como aberrações
individuais, inúteis de se refutar seriamente (...) (LALANDE,1993. p.998)
possibilidade dessa igualdade ser rompida, e um dos modos de proceder a essa

verificação é observar se esse duplo possui um terceiro termo38 que dê continuidade à

série d’aquele que ensina.

Assim procedendo, em uma rápida pesquisa pelo dicionário39, professor e mestre

(sempre no sentido genérico d’aquele que ensina) possuem pelo menos outras cinco

sinonímias: docente, instrutor, lente, pedagogo e preceptor. O que fica desse modo

constatado é que a série de idênticos iniciada com professor e mestre tem continuidade

não em um terceiro termo que viesse a ser a síntese dos dois primeiros, mas em uma série

que dá continuidade à impossibilidade de dizer de um só modo aquele que ensina. O que

torna instigantes esses modos de dizer a mesma coisa não é a possibilidade de revelar

apenas as diferenças de significação discursivas no campo da educação, mas também que

essa seqüência de termos iguais se origina a partir de um evento que pode ser

considerado como um axioma da Educação.

Tal axioma é que a passagem de conhecimento de um para outro — a ocorrência da

transmissão — é uma condição irrefutável. Não haveria maneira de pensar as teorias da

educação caso admitíssemos que o homem já traz consigo, desde o seu nascimento, o

conhecimento. Creio não existir, pelo menos na atualidade, defensores para uma idéia

desse tipo. Conclui-se, então, que o conhecimento se processa, essencialmente, através de

uma condição singular — da passagem de um para um —, sendo que nessa passagem

38
Tomado em sua conseqüência lógica, o terceiro termo é aquele que determina o fracasso dos dois
primeiros alcançarem uma significação plena. Como exemplifica A. BADIOU: "A partir de 2, continuando
a cadeia 0,1,2 obtém-se 4. O três é pulado, faltante.(...) Pode-se então dizer que o 3 é o fracasso do 2. Ele
é o que o 2 cifra imaginária, não pode alcançar diretamente.”
BADIOU, Alain. Para uma Nova Teoria do Sujeito, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.p.101
Desse modo, o dois representa uma série infinita que vai de dois ao infinito, excluindo a possibilidade do
três como um absoluto, de modo que esse só pode ter seu valor restituído a partir do
quatro."Compreendemos por que o 3 é pulado entre o 2 e o 4: só se pode obter a estrutura a partir do
discurso. Só se pode, portanto, obter o 3 a partir do quatro(...). (...)É preciso que o 4 do discurso venha
primeiro, e que dai o pensamento desça de novo para inscrever a estrutura" (Idem, p.102)
39
Ferreira, Aurélio B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira,
1986.
acontece o que denominamos transmissão. A especulação levará então à formulação de

uma outra pergunta: será que a diversidade de nomes para aquele que ensina, não estaria

diretamente vinculada a uma posição diferenciada assumida em função da posição que

os nomes dessa série assumem em relação à transmissão ?

Se assim for, cada nome dessa série terá de carregar consigo a marca da

impossibilidade de dizer com uma única palavra o que ensina. Isso significaria que a

transmissão do ensino pelo mestre é diferente da do professor, e assim sucessivamente.

Caso contrário, mesmo em relação ao discurso teórico formal, não haveria restrições

quanto ao uso de uma palavra ou de outra. Desse modo, o que se nos apresenta como

conclusão é que o modelo organizador que fornece uma estrutura para a Educação é a

transmissão do saber. Tal conclusão implica que o modo de aquisição do conhecimento é

algo condicionado pelo como se dá o acontecimento40 da transmissão.

A introdução da categoria do acontecimento nesta dissertação produz um diferencial

em sua leitura, exigindo que, nesse momento, sejam antecipadas algumas conseqüências

que ela acarreta. Primeiro, é necessário pensar a História não como um conjunto de

acontecimentos seqüenciais ou como um processo que é a priori carregado de sentido,

mas como um processo sujeito ao acaso, ao imprevisível em que são reveladas as


singularidades. Segundo, o lugar dado ao sujeito não é o lugar da razão, do esforço para

incorporar a esta um sentido possível por antecipação. O sujeito que aí se apresenta é o

do cotidiano, um errante que busca por toda parte a invenção de uma habilidade para

lidar com o acontecimento.

40
Sobre o conceito acontecimento: "O acontecimento é uma categoria decisiva na obra Badiouniana. Não
articulável, instaura uma verdade e deixa um resto, embora possa ausentar-se da memória explícita. Por
isso, é preciso uma intervenção, uma interpretação, para dar consistência a essa singularidade. O
acontecimento pertence ao registro do dois e a essência que inaugura está distante da fatualidade ou da
versão periodística dos espisódios em que o verdadeiro está sempre emudecido."
GARCIA, Célio. Psicanálise, Política, Lógica,São Paulo : Editora Escuta, 1993.p.2
Não é então de estranhar que exatamente no campo da transmissão as teorias da

educação fizeram surgir uma especialidade: a Didática. Tanto que na atualidade, muitas

vezes, o termo didática passou a ser empregado para significar qualidade d’aquele que

ensina"; dizemos: “Aquele professor (também poderia ser dito mestre, docente, ..., etc.)

tem didática”. Assim, didática passou a corresponder não apenas a um modo, mas

também a algo que é possuído, algo do qual se toma posse.41

Considerando a exposição até aqui realizada, é possível concluir que:

1. Todo discurso da educação, por necessitar definir como ocorre a transmissão do

saber, produz, por conseqüência, uma identidade para cada um dos nomes da série

d’aquele que ensina;

2. essa série (mestre, professor, docente, tia, (...), etc.) só produz diferença entre seus

termos a partir do momento em que se utiliza de uma dessas palavras como constituinte

de um discurso teórico específico da educação em que esses termos assumem a função

de conceitos;

3. a posição assumida em relação à forma de transmitir o conhecimento é um dos

modos de causar diferença entre os nomes que constituem a série d’aquele que ensina;

4. a Didática é, para as teorias da educação, a disciplina de que se esperam o estudo e

o controle do acontecimento da transmissão.

É no espaço da transmissão e no que nela resiste a ser definido em totalidade que o

ofício de educar é exercido e são formados o mestre, o professor, o docente. É nele

também que as teorias da educação se diferenciam umas das outras, e se criticam entre si

41
Em especial sobre a origem dessa posse não faltam os defensores para as hipóteses do adquirido e do
inato.
por sua função ideológica.42 Em síntese, a transmissão é a dimensão da educação em que

o continente e o conteúdo, a intensão e a extensão são construídos.

Resta então investigar a ciência como o referencial privilegiado em que a Educação e,

conseqüentemente, a didática, vêm buscando um modo de alcançar uma formalização

sobre o acontecimento da transmissão, bem como analisar os fragmentos de outros

campos que já ocuparam esse mesmo lugar de referência para a Educação, antes da

ciência.

2.3 - Educação e Ciência

Uma vez que a Didática surge em forma próxima à atual a partir do século XVII, com

Comenius, cabe indagar se aquele período, que também caracteriza a formalização da

produção do pensamento científico como modelo da produção de conhecimento, não

implicou outras conseqüências para a educação além da produção de uma metodologia.

A primeira constatação que pode ser realizada no sentido acima é de que atualmente a

maioria dos conteúdos do ensino formal (o que ensinar) provém do domínio do

conhecimento científico. Essa vinculação, iniciada a partir do século XVII, foi

cristalizada de tal modo que chega a soar estranho o fato de a Educação poder ensinar

algo que não seja científico. Tal fato acaba por produzir na relação entre educação e

ciência uma relação de “pertencimento”, criando uma idéia virtual de que o propósito da

Educação seria o de ensinar apenas o que fosse científico. Hoje, quase não se pensa mais

42
Ideologia aqui é considerada no sentido de um "pensamento teórico que pretende desenvolver-se sobre
seus próprios princípios abstratos, mas que, na realidade, é a expressão de fatos, principalmente sociais e
econômicos, que não são levados em conta ou não são expressamente reconhecidos como determinantes
daquele pensamento." (Ferrreira, 1986. p. 913 )
em conteúdos advindos da ética, da estética, da teologia entre outros campos, como

origem para conteúdos da educação e, quando isso ocorre, é quase sempre realizado em

relação à ciência. No Brasil, em especial, temos um currículo pobre em ensino de

humanidades.

Prosseguindo nessa linha de raciocínio, é possível observar que tem sido a ciência —

ou sua forma adjetiva, o científico — que tem constituído cada vez mais a garantia de que

o conteúdo ensinado pelo discurso pedagógico é verdadeiro. Isso equivale a dizer que a

ciência transformou-se no métron do discurso pedagógico. A conseqüência imediata

dessa forma de aferir se a enunciação do conhecimento é verdadeira é que toda

formalização não científica é de imediato “imaginarizada” como sendo um

conhecimento, no mínimo, de segunda classe. O que a princípio é apenas diferente acaba

por ser comparado, sendo que o melhor já é definido por antecipação. A tendência do

homem em querer uma única verdade acaba por segregar do discurso pedagógico dizeres

outros que um dia já foram pilares do educar. Não custa frisar, mais uma vez, que a

própria Didática é uma extensão da formalização científica no campo da Educação.

Pode-se argumentar que não apenas a ciência, mas também a tecnologia desempenha

um papel crucial na produção de um novo modelo educacional. Porém, quando demarco

a formalização da produção do pensamento científico a partir do século XVII, e não o

desenvolvimento tecnológico como marco fundamental dessa modificação, faço-o

considerando que os holandeses inventaram a lente e não sabiam nada sobre óptica, que

os chineses prescindiram de qualquer teoria sobre o magnetismo para inventar a bússola,

e que Papin não soube o que fazer com a descoberta do vapor. Isso salienta que é a

ciência, enquanto uma construção nominalista do saber, que inscreve uma outra forma de

classificação do saber, que irá se opor ao senso comum, à religião e ao mito.


Outra contraposição quanto ao lugar ocupado pela tecnologia em relação à Educação

formal é que esta última não se tem dedicado, desde a revolução científica, a possibilitar

o desenvolvimento de tecnologias de ponta, tanto que a criação de novos inventos

ocorrem em lugares (fábricas, centros de pesquisa privados ou públicos) desvinculados

da educação formal. O mesmo se dá com a vertente do ensino das técnicas que se

preocupa, quase exclusivamente, com a adaptação do homem às tecnologias e não com o

ensinar a produzi-las. Portanto, é a ciência, e não a tecnologia, o campo que a educação

toma como produtor de um saber sistematizado a ser socializado.

Bem, mas que tipo de modificações a formalização desse modo de produzir o

conhecimento pode ter causado à educação? Galileu Galilei, um dos inauguradores da

ciência moderna, define a natureza como um livro escrito em caracteres matemáticos,

acrescentando que "sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão

compreendê-lo". A respeito dessa proposição comenta Koyré:


“Eis aí: a maneira pela qual Galileu concebe um método científico
correto implica uma predominância da razão sobre a simples experiência,
a substituição de uma realidade empiricamente conhecida por modelos
ideais (matemáticos), a primazia da teoria sobre os fatos (Grifo meu). Só
assim as limitações do empirismo aristotélico puderam ser superadas e
que um verdadeiro método experimental pôde ser elaborado. Um método
no qual a teoria matemática determina a própria estrutura da pesquisa
experimental, ou, para retomar os próprios termos de Galileu, um método
que utiliza a linguagem matemática (geométrica) para formular suas
indagações à natureza e para interpretar as respostas que ela dá.
(KOYRÉ,1991. p.74)

Tal colocação permite-nos reconstituir, ou pelo menos simular, a violência do golpe

sofrido pelo espírito do homem daquela época e pela verdade escolástica (a leitura
aristotélica43 por ela feita) que o sustentava. O homem do final do século XVI não

perdeu uma fé ou uma crença, ele perdeu o próprio mundo em que habitava. A percepção

sensível, pilar da física aristotélica, rui, sendo substituída por uma natureza não sensível;

ao concreto, sobrepõe-se a teoria. A teoria que se situa como uma oposição à prática —

seja na ordem dos fatos — "aquilo que é objeto de um conhecimento desinteressado,

independente de suas aplicações" (LALANDE,1993.p.1127), — seja na ordem normativa

— "aquilo que constituiria o direito puro ou bem ideal, distinto das obrigações

comumente reconhecidas" (idem, pp 1127-1128) é que daquele momento em diante

determinará a verdade.

Esse espírito atormentado do homem do século XVII é registrado em diversos

campos. Na literatura, em um ensaio sobre a vida e a obra Shakespeare, Oscar Mendes

escreve:
" Ao lado desses progressos materiais, outras modificações vinha
sofrendo a nação inglesa. As lutas religiosas haviam abalado os próprios
fundamentos da forte crença religiosa medieval. As discussões em torno
dos temas essenciais da vida humana geravam cepticismo e descrença.
As descobertas científicas levavam os sábios a novas tentativas de
explicação do Universo e da conduta humana, gerando ao mesmo tempo,
crendices e superstições que procuravam substituir os alicerces abalados
da nova crença. (...) A literatura procurava novos rumos e novas estéticas
relegando para o passado a herança medieval. (...) A dúvida, o cepticismo
vicejaram. De uma concepção teocêntrica da vida passava-se a uma
concepção antropocêntrica."(MENDES,1989. p.35)

43
Sobre esse aspecto é importante demarcar que o Aristotelismo da Idade Média não é propriamente
Aristóteles como exemplifica KOYRÉ : "A filosofia Escolástica - sabemo-lo agora - foi algo muito grande.
Foram os escolásticos que promoveram a educação filosófica da Europa e criaram a terminologia de que
ainda hoje nos servimos. Foram eles que, por seu trabalho, permitiram ao Ocidente tomar, ou, mais
precisamente, retomar o contato com a obra filosófica da antiguidade. (KOYRÉ, 1991. p. 22) (...) O
aristotelismo, mesmo o de um Avicena ou, para só falar dos filósofos da Idade Média ocidental, o
aristotelismo de Santo Alberto Magno, de Santo Tomás ou de Sigério Brabante, não era, tampouco, o de
Aristóteles (...) uma vez que vivia num mundo diferente(...) (Idem, p.34) O aristotelismo (...) propaga-se
nas Universidades. Dirige-se a pessoas ávidas de saber. É a ciência, antes de ser qualquer outra coisa, antes
mesmo de ser filosofia, e é por seu valor de saber científico, e não por seu parentesco com uma atitude
religiosa que ele se impõe. (...) Assim se compreende muito bem que a autoridade ou a ortodoxia religiosa
tenha condenado Aristóteles. E que as filosofias da Idade Média tenham sido obrigadas a interpretá-lo, isto
é, a repensá-lo num novo sentido, compatível com o dogma religioso. Esforço que apenas parcialmente
logrou êxito com Avicena mas que foi brilhantemente bem-sucedido com Santo Tomás: Aristóteles, de
certa forma cristianizado por Santo Tomás, tornou-se o fundamento do ensino no Ocidente.” (Grifo Meu)
(Ibid. p.35)
Para tentar compreender o real significado dessa transição basta recordar que para a

física aristotélica era impossível à matemática explicar qualquer fenômeno na natureza,

dado seu caráter intemporal. O mundo estava organizado dentro de um cosmo finito e

bem ordenado. Essa concepção ordenava o pensamento para que este reproduzisse tal

ordenação, de modo que por meio dessa repetição o homem tivesse confirmada sua

relação de pertencer à natureza. Ao romper a ordem estabelecida, retomando argumentos

platônicos, o advento da ciência moderna não apenas recoloca, uma nova forma de ler o

mundo, mas, principalmente, reabre a discussão sobre a posição que sujeito e objeto

ocupam na constituição do conhecimento. A perda de uma referência, a da percepção do

sensível, reabre a discussão sobre a verdade e, conseqüentemente, sobre a certeza. No

dizer de Domingues:
"Descartes, que leva a sério Montaigne, neutraliza as conseqüências
céticas que o filósofo renascentista tinha tirado de sua máxima, procede à
introjeção da coisa, funda o conhecimento no limiar da subjetividade, na
presença de si a si do cogito, e busca o índex da verdade no interior do
próprio sujeito: a certeza da consciência de si." (DOMINGUES,1993. p. 18)

O real é, a partir daí, o que dele podemos teorizar44. Mesmo o empirista mais

ferrenho só poderá conceber o conhecimento como algo que passa pela ordem da

intermediação, sendo necessário reajustar a posição do sujeito na produção do

conhecimento. Esta é a característica do pensamento da ciência moderna, o traço que a

identifica da mesma forma que um papel é identificado por uma marca-d'água. É claro

que Descartes não produziu um método de conhecimento que apresentasse resolução para

todas as questões que tangem a epistéme, da mesma forma que Galileu não produziu a

teoria da relatividade. Entretanto, é indiscutível que o pensamento contemporâneo se

acha impregnado do que naquele instante foi construído.

44
O termo Real é utilizado aqui por oposição a realidade, no sentido de que pode “ser concebido
inteiramente fenomenal, como imanente à representação.(...) O cientista... criou destruindo [a realidade do
senso comum]; e é apenas em proveito da realidade nova que ele aboliu a antiga.” (LALANDE,1993.
p.925).
A cristalização do pensamento científico sepultou na vala do ocultismo45 toda

expressão do saber popular que, no século XVII, emergia da repressão do catolicismo,

criando um abismo entre aquele saber, tomado, a partir dali, como inculto, e o científico,

cujo ensino daquele momento em diante é legado às universidades46, nomeadas como as

herdeiras legais daquele conhecimento.

Como toda herança coloca em jogo um espólio, esse legado das universidades merece

ser investigado de modo mais detalhado. Em um trecho anterior deste texto (ver nota n°

18), foi exposto que o retorno a Aristóteles na Idade Média teve como uma de suas

causas a busca da ciência. Esse acontecimento já produz, desde aquela época, uma

aliança entre ciência e universidade. Entretanto, a ciência medieval, calcada no

pensamento aristotélico,não pode ser confundida com a ciência que se inicia no século

XVII. Para Aristóteles, ciência é aquela que tem por objeto os primeiros (princípios) e

as causas47, a ciência diz respeito ao necessário e ao eterno48. É com base em tais

condições que Santo Tomás de Aquino, na Idade Média, irá definir ciência como a

assimilação do espírito à coisa sabida49, na tentativa de vincular a produção do

conhecimento pelo homem ao intelecto divino. Esse é o métron da verdade em que a

Escolástica finca seu pilar de sustentação e que será a fonte dos ensinamentos nas
universidades da Idade Média. É essa base, portanto, que será desmontada quando o

conhecimento científico se torna dominante, sendo que este último comporta as seguintes

características como essenciais:


• A especificação pelo simples elemento formal, por um ponto de vista, por
um método (...);
45
Estudo e/ou prática de artes divinatórias e de fenômenos que parecem não poder ser explicados pelas leis
naturais, como, p. ex., a astrologia, a quiromancia, a magia, a telepatia e a levitação; ciências ocultas.
(Ferreira, 1986. p.1214)
46
Nesse sentido ver HILL, Cristopher. O Mundo de Ponta Cabeça : Idéias radicais durante a revolução
Inglesa de 1640. São Paulo, Companhia da Letras, 1987.

47
Aristóteles, Metafísica I, 2; 982 b1 in: LALANDE,1993. p.156.B
48
Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI; 1139b 20-24 in: LALANDE op. cit. p.156B
49
Santo Tomás de Aquino Summa contra gentiles, 1, II cap. 60 In: LALANDE op. cit. p.156B
• a organização sistemática das idéias ou dos fatos cujo ser científico é
constituído pelas suas relações seriadas (...);
• o rigor da prova tal que, enquanto o conhecimento vulgar e prático tende a
admitir como verdadeiro o que não é reconhecido como falso, 'o
cientista é alguém que duvida', que põe de quarentena tudo que não
é demonstrado verdadeiro."
(LALANDE,1993. p.157).

Os escombros da Escolástica entretanto permaneceram, a ponto de Hill comentar em

O Mundo de Ponta Cabeça, que na Inglaterra,


"a restauração permitiu a sobrevivência das universidades,
praticamente inalteradas, a despeito das idéias científicas novas que as
haviam invadido durante a Revolução.(...) Elas conservaram relações
estreitas com a Igreja Anglicana, embora tivessem perdido seu monopólio
em matéria religiosa. Também conservaram a ênfase nos clássicos,
embora o latim não fosse mais a fonte principal de informação científica,
ou a língua da comunicação científica internacional." (HILL,1987. pp 292-
293)

A permanência de um resto, de um inalterado da escolástica nas universidades é

indicativo de que a estrutura destas, em relação à transmissão do saber, foi organizada

antes que o modelo científico fosse implantado integralmente. As primeiras universidades

surgem no século XII em Bolonha e Paris, sendo que naquele momento guardavam

pouca semelhança com o sentido que o termo adquire a partir do século XIX, isto é,

ainda que mantendo o mesmo nome originário do latim universitate (universalidade, a

totalidade, o todo; o conjunto das coisas do universo (FARIA,1956. p.1001)), é somente a


partir do início do século XIX que a palavra universidade passará a designar uma

instituição de ensino superior que compreende um conjunto de faculdades ou escolas.50

A importância em observarmos tal permanência reside no fato de que, ao se

pesquisarem as formas de transmissão, devemos considerar a Escolástica e não a

instauração do modo científico como o ponto de origem do modelo atual universitário. A

“dissolução” das universidades da Idade Média consuma, nas palavras de Verger, o

divórcio entre ciência e ensino.51 De um lado, é instaurado um novo modelo de produção


50
Confira: CUNHA, 1992. p.803
51
Confira: VERGER, Jacques. As Universidades na Idade Media, São Paulo, UnESP, 1990. p.162
de conhecimento, de outro, é mantido um modelo que, apesar de decadente, sustenta a

base sobre a qual será construído o modelo de ensino da modernidade. Se atentarmos,

com cuidado, para os atuais modelos didáticos, seremos capazes de reconhecer, em

muitos deles, o lectio e o disputatio52 como formas indicadas de transmissão.

Retomando o tema tratado anteriormente em “um nome para aquele que ensina”, e

observando a multiplicidade de nomes sob a luz dessas constatações, é possível dizer que

o protótipo d’aquele que ensina também advém do solo da escolástica. Com efeito, é

naquele terreno que acharemos, anterior a Comenius, uma obra destinada aos mestres, o

De Magistro, de Santo Tomás de Aquino. Semelhante à Didática Magna, o De

Magistro, de Santo Tomás de Aquino parte do princípio de que o homem é educável por

um professor e/ou mestre.


(...) “Portanto, como se diz que o médico causa a saúde no enfermo,
graças a cooperação da natureza, assim também se diz que um homem
causa no outro a ciência, graças à cooperação da razão natural deste
último. E isto é ensinar.” (AQUINO, SNT. p.07)

O modelo de ensinar produzido consistia na apresentação de uma proposição inicial,

seguida da enumeração dos pontos a serem discutidos e da proposição dos argumentos

contrários à primeira tese, o que resultaria no enunciado de uma proposição contrária. A

partir daí, processava-se a discussão do problema de modo a conduzir ao

estabelecimento de relações entre o problema e outros assuntos afins para atingir, assim,

a resposta às objeções iniciais. Mais do que uma formulação sobre o como proceder, a

obra de Santo Tomás é uma tentativa de “metodologizar” o processo da transmissão do

conhecimento. Forma essa que resistiu a passagem das universidades da Idade Média ao

52
“A primeira visava fazer conhecer ao estudante as ‘autoridades’ e, através delas, permitir-lhe dominar o
conjunto da disciplina que estudava; a segunda era, ao mesmo tempo, para o professor, o meio de
aprofundar mais livremente certas questões do que num comentário de texto e, para o estudante, a ocasião
de pôr em prática os princípios da Dialética, de experimentar a vivacidade de seu espírito e a precisão de
seu raciocínio.” (VERGER: p.56)
Renascimento. De tal modo essa forma de transmissão se arraigou nas universidades que

chamá-la de universitária seria apenas reconhecer o contexto no qual foi engendrada.

. A questão então é deslocada para a tentativa de buscar saber se existe na história

ocidental outra forma de sistematização da transmissão que se apresente como alternativa

à universitária.

Buscando essa outra forma de inscrever a transmissão, através do tempo,

observaremos, em primeiro lugar, que ela corresponde, igualmente, a uma mudança de

lugar. Mais precisamente do tópos da transmissão do saber. Tal constatação é embasada

no fato de a organização da Escola como tópos da transmissão do saber ser precedente à

da universidade. A palavra escola provém do latim schola derivado do grego scholê

(CUNHA,1992. p.315) e, nesse sentido continha, como pertencente a seu significado

original, o sentido do ócio, do otium latino, que designava um "tempo de repouso,

vagar, e daí por extensão — Lazer produtivo, Estudos feitos com vagar, estudos de

gabinete"(FARIA,1956. p.667). Sentido esse completamente excluído da significação

atual.53

É dessa exclusão em diante que se produz um novo tópos para a transmissão do


saber, sendo possível supor que tal mudança em relação ao tópos esteja vinculada à

perda daquela função do otium. Entretanto, a diferença mais marcante é que o conceito de

escola na antiguidade está vinculado a uma certa filia ao ensinamento de alguém, uma

vez que a escola era designada pelo nome de seu mestre, isto é, era a escola de Sócrates,

de Platão, de Aristóteles.54

53
Nesse aspecto confira: GARCIA, Célio. Escola: por que? in: GARCIA, C. Psicanálise, Política, Lógica,
São Paulo, Ed. Escuta, 1993.
54
Nesse sentido ver o Texto de MILLER, Jacques-Alain. El concepto de Escuela in: Cuardernillos de
Pasador, Buenos Aires, 1992
Sobre essas afirmações são necessárias algumas considerações. O estabelecimento de

um modelo educacional na antiga Grécia está intimamente entrelaçado com os sofistas.

Afinal, cabe aos sofistas a proposição da necessidade de uma consciência cultural, uma

vez que é em sua época que é criada a idéia consciente da educação. Como ressalta

JAEGER(1994), mesmo que não tenham produzido a forma definitiva desses conceitos, a

participação deles em sua introdução foi definitiva para a produção do que hoje

designamos como cultura. Foram os sofistas também que nos legaram uma questão

intrincada, ou seja, a de saber se a pedagogia é uma ciência ou uma arte. Mesmo que eles

tenham dado como resposta nomear por techné a sua teoria sobre a arte de educar, tal

interrogação persiste na atualidade com todo o seu vigor.

Essa primeira formalização da educação em um campo marcado pela ação consciente

serviu de solo para que outras argumentações fossem aí semeadas. Assim, não causa

surpresa encontrarmos na obra póstuma de Platão, As Leis, toda uma prescrição sobre

como devem ser criadas as crianças. Quando refiro-me, portanto, a uma idéia de escola,

não o faço em consideração a um ideário pedagógico que busca estabelecer o que o

homem deve aprender, e o que nele deve ser calcado por ação educativa, mas pela marca

que as idéias de um pensador eram capazes de produzir em uma cultura de modo que ele,

ao se diferenciar de todos os outros, atraía para sua escola todos aqueles que, de um

modo ou de outro, foram “atiçados” por seu saber.

É claro que o lugar do mestre sempre foi um dos pontos de referência para a distinção

de lugares no campo da transmissão. Observe-se, por exemplo, a história de Abelardo

em relação à Universidade de Paris. Comparando-a ao lugar do antigo mestre, notamos

que Abelardo poderia ser classificado como mestre, já que era ao seu ensino, e não à

universidade, que os alunos afluíam. Porém, existe uma diferença fundamental entre eles.

Abelardo, que era demandado por seus alunos, nem sempre obtinha da Igreja a

autorização para ensinar. É essa a diferença entre a escola dos antigos mestres e a
universidade: o fato de aquele que ensina ter de estar previamente sujeito a um

parâmetro e a um cânone que condicionam a concessão ou não de uma autorização para

ensinar. Por sua vez, a scholê era a escola de um mestre, um mestre que prescindia da

autorização da instituição, do estado, do clero para poder transmitir o saber.

Enquanto na escola clássica existia o mestre e aqueles que buscavam nele o saber, o

faziam por escolha, produzindo uma dada junção entre o saber e o otium, nas

universidades, a partir da escolástica, não haverá mais mestres e sim licenciados,55 ou


seja, os que para lecionar necessitam de um mestre para citar. É essa repetição que,

fundada naquela época, caracteriza o ensino universitário como um ensino em que o

mestre é referência e não presença. Observemos o excerto abaixo:


"O grau mais antigo, no início o único, era a licença (licencia docendi);
após ter examinado se o candidato preenchia as condições de
escolaridade exigidas, um juri de mestres ouvia-o dar uma lição e
responder às questões; se o julgavam apto, os mestres apresentavam
então o candidato ao chanceler que, automaticamente, lhe conferia a
licença. (VERGER, 1990. p. 59)

Ora, nesse esquema o saber já está servido, e decididamente pende para um lado; o

dos que determinam quem pode e quem não pode ser licenciado. Aqueles que sabem, a

priori, e que buscam conferir o saber do "proposto" para verificar se ali não existe

dessemelhança. A licença é uma concessão, o certificado de que a partir dela se pertence

à casta, e o examinado não pode errar. É um lugar que nega o otium.

Retornemos agora ao século XVII. A ciência terá seu abrigo dentro das universidades,

mas isso não significa que ela tenha tido uma acolhida tranqüila e segura desde o

princípio. Ao contrário, no início o pensamento científico era radicalmente contrário ao

tipo de conteúdo transmitido pela escolástica nas universidades. Contudo, com o passar

do tempo a Universidade migra do pensamento escolástico — aristotélico para o

55
Licenciatura significa 'permissão' e segundo J.A. Miller (op. cit.) o modo de transmissão de saber
universitário "se distingue (...) na medida em que exige algo para poder ensinar - desta forma impô-se a
ordem universitária na Idade Média - uma licenciatura. Uma permissão para ensinar."
pensamento universitário — científico. Nessa migração de um ao outro é que se coloca a

pá de cal sobre o antigo mestre e sobre a concepção de escola que dele emanava. Assim,

denominarei mestre aquele que, segundo o modelo antigo, ensina por sua própria

autorização, em contraposição a professor, aquele que ensina a partir de uma autorização

institucional, o que se relaciona com a licencia docendi.

Posteriormente à derrocada da Escolástica, a idéia de uma licença para o ensinar

persiste. A função da Igreja de determinar quem e o que ensinar é substituída pelo

Estado. Nóvoa em O Passado e o Presente dos Professores comenta sobre o ensino no

século XVIII em Portugal:


"A partir do final do século XVIII não é permitido ensinar sem uma
licença ou autorização do Estado, a qual é concedida na seqüência de
um exame que pode ser requerido pelos indivíduos que preencham um
certo número de condições (habilitações, idade, comportamento moral,
etc.). Este documento constitui um verdadeiro suporte legal ao exercício
da actividade docente, na medida em que contribui para a delimitação do
campo profissional do ensino e para atribuição ao professorado do direito
exclusivo de intervenção nesta área.” (NÓVOA, 1991.p.14)

Na França um processo semelhante é implantado em 1763. Após a expulsão dos

jesuítas da formação de professores, a Faculdade de Artes estabelece um concurso para

entrada de professores laicos e clérigos seculares composto de três etapas: a composição

escrita, e dois exames orais (a tese pública e a aula pública), que por sinal adotavam a

forma do disputatio.56

Analisando de modo mais detalhado essa passagem do mestre para o professor, é

possível observar que ela produziu “trincas” no discurso pedagógico, deixando marcas

que persistem na atualidade, como as de uma fratura mal consolidada. Para entender que

tipo de manifestação tais marcas produzem é necessário relembrar que no discurso

56
Confira: JULIA, Dominique. Educación y ilustración en Francia. Los cambios del sistema educativo en
Francia en el siglo XVIII in: DEBESSE, M. e MIALARET, G. História da Pedagogia. Barcelona, Oikos
Tau, 1974.
pedagógico — no ensinar a ensinar — da escolástica a garantia da verdade era posta em

Deus;
"A garantia só se daria se encontrássemos um métron absoluto que
em sua absolutidade estivesse apto a medir, sem ser ele próprio medido.
Este métron é Deus, melhor dizendo, o intelecto divino segundo ele
(Santo Tomás) a única coisa apta a medir e que não é medida, a
diferença da coisa natural que está apta a medir e é medida, e do nosso
próprio intelecto, que é medido, e não está apto a medir, em relação às
coisas naturais, e só está apto a medir com relação às coisas artificiais."
(DOMINGUES,1993. p.16)

Isso significa dizer que, em última instância, é o discurso religioso que sustenta na
Escolástica a ausência do mestre; é o intelecto divino o modelo e a garantia para toda

exposição de saber. Assim, todo discurso que daquele lugar seja enunciado terá um lugar

bastante definido para o sujeito, ou seja, a procura da aproximação com o intelecto

divino. Isso implica que o próprio sujeito é responsabilizado por suas ações, as quais

assume, previamente, de forma livre e consciente, pois existe um modelo posto a ser

seguido.

E quanto à ciência? Qual é a garantia que discurso científico propõe em troca do

discurso religioso? A resposta a essa pergunta é surpreendente: o discurso científico não

é capaz de produzir "garantias", pois ele é um dizer infinito que nunca cessa. Uma vez

sendo pura articulação de fórmulas, não há nele um lugar de onde o sujeito possa se olhar

e, conseqüentemente, não há espaço para que nele o sujeito seja responsável por suas

ações ou, por elas ser responsabilizado.57

Que implicação esse acontecimento traz para a educação? Mencionei que o conteúdo

transmitido pela educação é, atualmente, quase exclusivamente advindo do modo

científico. Também demarquei que a própria educação estabeleceu uma forma próxima à

científica para ensinar, a Didática. É então evidente que a educação migrou de uma forma

57
Essa relação entre o discurso religioso e o discurso científico será trabalhada de modo mais detalhado no
Capítulo 3 desta dissertação.
para outra, isto é, do religioso ao científico. E disso duas articulações podem ser

traçadas: a primeira é que o discurso religioso era, antes do século XVII, o fundamento

da educação ocidental, tendo como modelo, em especial, a escolástica. A segunda é que,

ao assumir a ciência como o conteúdo privilegiado para a transmissão do saber, a

educação perde a garantia que lhe era dada pelo discurso religioso e, conseqüentemente,

tem o seu sujeito esvaziado.

Tomando essas observações como corretas, é possível concluir que, a partir do século

XVII, o discurso científico condicionará as hipóteses sobre a questão da transmissão do

conhecimento. Entretanto, como tal discurso não consegue enunciar totalmente a

transmissão — o saber científico não possuí um ponto de basta — sempre permanecerá

uma "sobra" do fenômeno da transmissão que não se conseguirá teorizar. Esse resto, que

se manifesta como resistência ao saber, é o que funcionará como um empecilho à

premissa da Didática de conseguir ensinar tudo a todos. O senso comum, quando diz que

não se ensina o pulo do gato, e a constatação das pesquisas tipológicas de professores de

que não é possível ensinar características como dedicação e amor falam precisamente

dessa mesma condição. Se não é possível ensinar tudo a todos, teremos de concluir que

existe na educação algo que só poderá ser pensado na categoria do impossível.

2.4 - Educar: Ofício Impossível

As colocações do item anterior levam-nos a indagar: será que o ofício de educar não

mantém com a impossibilidade uma relação excluída no campo da ciência, já que o

objetivo desta última é tomar consciência, erradicar a ignorância, ultrapassar a


impossibilidade? Afinal, o modelo de professor que foi sendo construído ao longo da

modernidade é aquele que tudo sabe, bem como o modelo de aluno é aquele que, nada

sabendo, tudo aprende com o professor.

Para uma primeira constatação é interessante colocarmos lado a lado a concepção

anterior de mestre, e a profissão de educador da modernidade.Tomemos então o De

Magistro de Santo Agostinho e um texto intitulado Palestras e suas Inevitáveis

Perguntas, de Fanny Abravomich. Esta última, após entrevistar vários palestrantes e

produzir um interessante relato do comportamento destes diante das perguntas

encaminhadas após uma conferência, conclui:


"Senhores professores que escutam conferências. Por favor, façam
outras e novas perguntas para nós que estamos falando. Ouvir as
mesmas questões há décadas é desalentador... Queremos ser sacudidos,
queremos perguntas novas, queremos novos ângulos e não velhas
reclamações de praxe. Queremos gente informada, curiosa sobre o que já
se fez / onde se errou / o que deu certo um dia / etc. Para poder caminhar
para frente e não ficar ouvindo — em cada encontro — a mesmíssima
descoberta do mundo(...)."(ABRAMOVICH,1990. p.69)

E, sobre essa citação façamos incidir duas perguntas do antigo mestre:


"E, porventura, os mestres pretendem que se conheçam e retenham os
seus próprios conceitos e não as disciplinas mesmas, que pensam
ensinar quando falam? Mas quem é tolamente curioso que mande seu
filho à escola para que aprenda o que pensa o mestre?" (Santo
AGOSTINHO,1956.p.127)

O que as perguntas de Santo Agostinho colocam como respostas à conclusão de

Abramovich é: quem pode fazer novas perguntas, se quem fala só está disposto a escutar

apenas aquilo que quer? Atualizando essa colocação dentro de nosso contexto, o que fica

interrogado é como um saber novo pode surgir em uma conferência se ele já está servido,

e todos sabem do lado de quem ele fica? Há que se considerar que quem pergunta,

pergunta sempre pela primeira vez, de modo que a repetição se processa sempre para

quem ouve o enunciado e não para quem enuncia uma pergunta.


Na realidade o que cansa, e que Abramovich percebe com incrível agudez, é a

repetição de um modelo que faz da educação um eterno professar — seguir a regra de;

obedecer às normas de. O saber deixou de ser percebido como uma conquista para

enquadrar-se como uma aquisição, de modo que não exista criação e sim adequação. Isso

resulta em que todos os pais mandem seus filhos à escola para que aprendam o que o

professor repete, desde que, evidentemente, ele seja licenciado, e que o aluno se limite a

perguntar aquilo para o que o professor já detém a resposta. Na modernidade já não há

mais espaço para o mestre que ensina com perguntas.

Podemos então postular que existe, historicamente, uma ruptura entre a arte de educar

e a profissão de educar; mais do que isso, existe a perda da dimensão do impossível, que

por não poder ser formalizada cientificamente, é segregada e mantida de fora como se

nem sequer existisse. Mas, esse impossível, que escapa à formalização científica,

aparece em um outro lugar nos tempos modernos. Em 1925, no Prefácio para a

Juventude Desorientada de August Aichhorn, Freud escrevia: "aceitei o bon mot que

estabelece existirem três profissões impossíveis — educar, curar e governar (...)"

(FREUD,1976c. p.341) acrescentando em 1937, em Análise Terminável e Interminável,

"quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a resultados

insatisfatórios" (FREUD,1976b. p.282). Admitindo que a Psicanálise é um saber,

teremos então de concordar que existe pelo menos um campo de saber em que o

impossível pode escapar de sua condição de segregação, uma dimensão em que seja

possível teorizar com o impossível. Dimensão essa que pode revelar novas perspectivas à

educação, ou pelo menos permitir a invenção de novas perguntas.

Não há como esquecer que o homem é uma invenção muito recente no espaço

epistemológico, e que nestes últimos duzentos anos temos caminhado essencialmente no

sentido de buscar formas de educar o humano. Esquecemo-nos porém, com muita

freqüência, de que esse humano, de que tanto falamos, é um objeto no campo das
ciências. Quando a educação busca a aplicabilidade de vários campos do saber — tais

como a psicologia, a antropologia, a história, etc — para a resolução de seus impasses,

não é a um homem concreto que ela está se referindo, mas ao que, dele emanando, pode

ser recortado no campo das ciências humanas. A referência à ciência estabelece para a

educação a primazia do erro. Todo pensamento, toda ordenação, todo ensinamento é, a

partir daí, certo ou errado. É claro que toda a conduta deverá ser orientada no sentido de

eliminar o erro, e de criar formas assertivas. Assim, a educação elimina a possibilidade de

advir o errante, aquele que pode vagar diante das certezas em busca de sua própria

produção.

O impossível da educação, tomado a partir de uma fraternidade com a Psicanálise —

não são ambas profissões impossíveis? — pode conduzir então à possibilidade de que

seja pensada uma ars educãre58 e com isso, talvez redimensionar dados espaços no

universo educacional. Criar outras possibilidades para o pensar (talvez o repensar) da

educação como um processo que possua outras inserções além da racionalidade

cartesiana. Afinal, um dia, em um passado, o educar já foi constituído como um ofício, e

o professor como mestre, legando-nos reminiscências de um tempo em que era possível

saber mesmo não sendo de todo sabido. É claro que não objetivo um retorno às formas
anteriores do educar, nem creio que elas tivessem respostas para as questões que coloco

sobre o impossível da educação; seria um anacronismo imaginar que tal condição

pudesse ser verdadeira. Porém, colocar lado a lado concepções diferentes permite aguçar
58
O sentido que penso para a ars educãre, por oposição à didática, é semelhante ao que Michel Foucault
descreve na oposição entre ars erótica e scientia sexualis. "Nossa civilização, pelo menos à primeira vista,
não possui ars erótica. Em compensação é a única, sem dúvida, a praticar uma scientia sexualis. Ou melhor,
só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se
ordenam, quanto ao essencial, em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das
iniciações e ao segredo magistral, que é a confissão." (FOUCAULT,1984a.pp.57,58)
É interessante observar que existe pelo menos um ponto na interseção da scientia sexualis com a didática,
isto é, a educação sexual, uma forma científica e politicamente correta de ensinar sobre o sexo.
Posteriormente, em uma entrevista concedida a Rabinow & Dreyfus (RABINOW,1995), Foucault
esclarece que ao invés de opor a scientia sexualis à ars erotica, esta oposição deveria ser feita em relação a
technè biou grega, isto é, a “arte de viver”, buscando mostrar que o problema geral dos gregos não era a
technè de si, mas a technè da vida, a technè tou biou, como viver.” (gifo meu) (op.cit., p. 259)
o olhar para dadas diferenças que sem essa contraposição tenderiam a permanecer

ocultas.

Para isso pretendo examinar fragmentos deixados pelas rachaduras provocadas quando

da passagem da educação à modernidade, já que não se migra de um referencial para

outro sem deixar marcas. E, como já dito, sem supor que o retorno ao passado seja

solução de alguma coisa ou que algum dia existiu uma educação melhor do que a atual. A

idéia central é que essa dimensão que foi sepultada na teoria pelo cientificismo

permanece insepulta no discurso, agindo como um fantasma, algo que se manifesta

contaminando o dizer claro, único e preciso da ciência, com a peste da certeza de chegar

sempre a resultados insatisfatórios.


CAPÍTULO 3

AMOR E TRANSMISSÃO

“Cada dia renovava-se a mesquinha luta

que eu encetara pela salvação daquele

homem. Eu queria o seu bem, e em

resposta ele me odiava. Contundida, eu me

tornara o seu demônio e tormento, símbolo

do inferno que devia ser para ele ensinar

aquela turma de desinteressados.”(...)

Clarice Lispector
3.1 - Ainda Sobre Fragmentos

O capítulo precedente apresentou, em seu final, três argumentos que devem ser

retomados. São eles: a idéia de que o homem ao qual se referem as ciências humanas não

é o homem concreto, mas o que dele pode ser inscrito como objeto de saber; a

constatação do laço entre Educação e Psicanálise a partir do momento em que ambas se

irmanam como profissões impossíveis; e, finalmente, a proposição de que existem

fragmentos na educação advindos de modelos anteriores do educar. Argumentos a que

cheguei após a discussão da existência de uma série de nomes com que tentamos dizer

aquele que ensina e, em última instância, idéias com as quais busco apreender algo mais

sobre o processo de transmissão do conhecimento. Tais argumentos, que neste capítulo

devem ser tomados como proposições, colocam o discurso como plano privilegiado para

a sua análise, conduzindo com isso para o campo das manifestações a possibilidade de

desenvolvimento desta dissertação. Assim, é preciso clarear um pouco mais o que pode

ser entendido como “manifestação” e particularmente que relação podem estabelecer,

entre si, “manifestação” e “discurso”.

Manifestação é aqui tomada na acepção de: o que dá sinais de, o que revela. É

necessário lembrar que o próprio Freud só pôde iniciar a construção da Psicanálise por

se ter colocado em uma outra posição diante das manifestações da histeria. Com efeito,

foi por ter dado a tais manifestações a possibilidade de referirem-se a uma outra verdade

que não a do corpo biológico, que ele iniciou o percurso que o conduziria à formulação

de um novo objeto de saber, o Inconsciente. Este, por sua vez, apreensível somente pela

escuta de suas manifestações: os sonhos, os chistes, os atos falhos, os lapsos e,

evidentemente, o sintoma, o que faz que a proposição do Inconsciente, como objeto de

saber, seja o protótipo de um conhecimento que somente pode ser construído pela via

indireta.
Quando refiro-me à manifestação, é na condição de que ela nos apresenta algo que não

se deixa apreender diretamente. É conveniente lembrar que, nesse aspecto, a Psicanálise é

utilizada apenas como uma analogia, uma demonstração da possibilidade de enunciar um

saber sobre um objeto a partir do que dele se manifesta, pois não entendo, sob nenhuma

forma de argumentação, que possa existir um Inconsciente que seja da ordem do coletivo.

Quanto às relações entre manifestação e discurso, estas parecem-me evidentes,

principalmente se atentarmos para o fato de ser o discurso a forma de manifestação

concreta da língua; manifestação que sempre coloca em evidência algo, um tema, uma

vontade, um saber. Relembro porém, como já mencionado no Capítulo 1, que tomo o

discurso como uma forma que não consegue alcançar a exposição absoluta, sendo o

resultado possível da tentativa de aproximação de um objeto a partir da qual tentamos

enunciar um saber, seja da ordem do particular, seja da ordem do universal.

Creio então ter traçado as linhas de um quadro de referências com o qual poderemos

buscar uma aproximação do que pode ser considerado como “fragmentos das rachaduras

provocadas quando da passagem da Educação à modernidade”. Trata-se essencialmente

de palavras que representam concepções de educar diferentes da atual, mas que persistem

no discurso da educação, seja no discurso teórico-conceitual, seja no discurso dos

professores diante de sua prática. Palavras que causam um efeito de estranheza para

quem se atenta a escutá-las, pois evidenciam a diferença entre um modelo e outro e

denunciam a exitência de problemas na educação que persistem ao longo dos séculos.


3.2 - Sobre a Educação e o Amor

Mesmo que não se encontre um único “manual de educação” escrito no século XX

que defenda as idéias da Escolástica, mesmo que não seja provável encontrarmos

atualmente numerosos defensores da escola tradicional, nota-se a persistência daqueles

que afirmam que a resposta para os problemas da educação reside em uma forma mais

antiga de educar. Geralmente, tais opiniões, arraigadas ao senso comum, são enunciadas

através daquelas frases que se iniciam pela expressão “no meu tempo...”. Proposições

paradoxais que afirmam ser solução para o presente o que em sua época ... não o foi.

Seria cômodo não levar a sério tal tipo de opinião e mantê-la apenas como mais uma

expressão do senso comum. Mas até que ponto banir a opinião daqueles que não

pertencem à esfera intelectual não seria apenas mais uma forma de querer garantir a

ilusão de que o conhecimento é homogêneo ?

Por outro lado, quando levadas a sério, temos de admitir que, de algum modo, essas

opiniões parecem ter uma consistência tal que a pesquisa dessas antigas formas se impõe

e, em certos casos, até mesmo sejamos levados a reconsiderar alguns de seus preceitos.

Atentando para esse efeito que causam, perceberemos que não se trata de uma

contradição, mas, sim, de um heterodoxo, isto é, são respostas que colocam em um

mesmo plano duas classificações diferentes. Assim, quando alguém afirma que a

educação que recebeu era melhor que a que atualmente é dada aos outros, o que ele faz é

transportar para o presente toda uma outra estrutura, uma outra classificação. O autor de

tal tipo de frase, citada acima, atualiza, desse modo, a verdade que ele construiu no seu

tempo, para a sua vida. Esse rompimento da seqüência cronológica, que atualiza em um

único instante o passado e o presente, coloca-nos diante da conclusão de que, apesar de

dados problemas na educação se repetirem, cada um produziu, de algum modo, uma

resposta para a qual pode atribuir o valor de verdade.


Todos aqueles que trabalham com educação já depararam com os efeitos que esse tipo

de convicção gera. Afinal, não é tarefa fácil pedir a alguém que deixe de acreditar nas

verdades que aprendeu ao longo de uma vida para substituí-las por outras. Por mais que

se “doure a pílula” do novo, do mais moderno, haverá sempre quem esteja disposto a

persistir no valor do mais antigo. A Educação é, portanto, um campo em que coexistem

enunciados advindos de diferentes épocas e culturas, sem que exista a possibilidade de

integrá-los em uma forma capaz de liquidar o mal-estar que o convívio dessa diferença

continuamente causa.

Esse condicional do ter que se haver com a diferença remete a um outro lugar fora da

Educação, onde encontramos essa mesma condição enunciada. Qual lugar? O lugar do

amor. Discordante da opinião daqueles que imaginam ser o amor uma fusão, o encontro

de duas metades que formarão o pomo perfeito, o amor é sempre o desencontro, a

ausência que significa a presença, a confusão de duas identidades que se encontram num

fugaz eu te amo e que, em seguida, se esvanece diante das diferenças que um impõe ao

outro. A maneira como tentamos falar dessa impossibilidade de reduzir o dois a um,

constitui toda uma modalidade discursiva que nomeamos como discurso amoroso.

É por esses motivos que penso que dentre as diversas formas discursivas existentes, o

discurso amoroso é o que se apresenta como o mais apropriado para o estudo dos efeitos

da coexistência de diversas concepções do educar. Por mais estranho que soe, por mais

negada que seja a afirmação de que existe uma vinculação entre a educação e o amor,

não há como deixar de admitir que tal forma discursiva exista no campo pedagógico. O

reconhecimento de tal afirmação é de ordem tácita, pois basta ler os poemas que fazem

do(a) professor(a) personagem literário para reconhecer que é de amor que ali se fala.

Assim, mesmo que pelo viés da teoria essa modalidade discursiva seja pouco freqüente,

no cotidiano ela transborda. Não sendo consagrados explicitamente ao amor, os textos

que procuram abordar as situações do cotidiano da sala de aula oferecem um bom


exemplo de como o discurso amoroso é presente na educação. Esses textos, quando

tentam descrever de que modo ocorre a relação professor(a)-aluno(a), quando buscam

apresentar a tipologia de um professor bem sucedido, ou ainda quando indagam sobre os

motivos que levam um mesmo método de ensino a produzir resultados diferentes do

esperado, terminam por responder a tais questões produzindo outras conotações para o

que é, essencialmente, amoroso. Desse modo, quando a explicação do fenômeno

pesquisado é atribuída a causas como o interesse, a empatia, a compreensão, tais textos

apresentam um discurso essencialmente amoroso, oferecendo aos educadores, ao invés

de juras de amor, pactos conceituais.

É importante que se interrogue então como foram montadas as estratégias que, na

atualidade, a educação produziu para lidar com o discurso amoroso. Neste instante, o

que posso notar é que elas advêm de duas raízes calcadas em dois solos que se

contrapõem. Refiro-me ao romantismo e ao cientificismo. A oposição entre ambos é

caracterizada pelo fato de ter sido o romantismo, em seu nascimento, um movimento de

expressão artística antagônico às esperanças de que um dia a razão iluminista viesse a

alcançar a solução para todos os males da humanidade. Nesses dois terrenos, o discurso

amoroso encontrará duas formas de expressão. No romantismo, à medida que esse

movimento privilegiou o nacionalismo e a paixão, o discurso amoroso aparece vinculado

ao indivíduo, enquanto no discurso científico, que privilegia o exame dos

comportamentos psico-biológicos do Homo sapiens, o discurso amoroso aparece como

uma dissecação das paixões do homem, um dizer amoroso de ordem biologicista. Em

relação à educação, que oscila entre a arte e a ciência, podemos notar que à primeira

estratégia de expressão pertencem todos os tipos de poemas e dizeres que fazem do

professor objeto de idolatria e penúria, enquanto à segunda estratégia pertencem todos os

estudos que tentam sistematizar as relações do professor consigo mesmo e com os

outros. Como resultado dessa duplicidade servimo-nos, por um lado, da concepção


romântica sobretudo para falar de modo individualizado do afeto e da emoção, e por

outro, valemo-nos do discurso científico na busca da racionalização e na conseqüente

explicação desses mesmos estados. Assim, enquanto o discurso romântico serve para

dizer dos sentimentos que permeiam o educar, o discurso científico presta-se para

compreender, deduzir e explicar as causas e os meios de ensinar. A presença de tal cisão

no discurso amoroso da educação ratifica a cisão do Pathos entre a paixão e o patológico,

produzindo um movimento pendular que faz que em um extremo seja aberto o espaço

para entrada em cena de todas as formas de expressão do idealismo romântico, e no outro

seja procurada, por meio de um dizer racional, uma boa explicação para o ensinar. Não

há como deixar de reconhecer, portanto, que o período descrito por esse pêndulo seja

essencialmente amoroso.

Por outro lado, sei que ao tomar o discurso amoroso no espaço acadêmico de

dissertação adentro-me por um campo minado, porque de tal forma o romantismo

trespassou essa modalidade discursiva que fez acreditar que qualquer dizer sobre o

amor, que não seja o da forma científica, é mera idealização. Mas, será mesmo que só

podemos nos interessar pelo amor à medida que ele é qualificado como resultante da ação

dos hormônios? Será mesmo pieguice todo o dizer do amor que não seja o científico?

Acredito que não, mesmo não tendo como negar que, fora desses padrões, o amor, em

relação ao saber, ocupa uma posição marginal. Que assim seja! Afinal, é exatamente por

causa dessa marginalidade, que é tão comum aos amantes, que o discurso amoroso, na

educação, se mostra como sendo a mais apropriada das manifestações para proceder à

abordagem das rupturas causadas no discurso pedagógico quando de sua passagem à

modernidade.

A premissa que neste instante formulo é a de que o discurso amoroso se apresenta

vinculado ao acontecimento da transmissão. Digo isso por observar que as perguntas

sobre os motivos que levam um aluno a aprender ou a fracassar desembocam, direta ou


indiretamente, em respostas que trazem para o primeiro plano da cena pedagógica a

relação professor-aluno. Para que as dúvidas mais persistentes quanto à existência desse

vínculo sejam demovidas, basta que se atente em como as respostas a tais perguntas se

enquadram: ou na concepção romântica — quando, por exemplo, demandam dos

professores o amor aos alunos e à profissão — ou na concepção científica — ratificando

a eterna busca de um método mais efetivo e/ou mais vinculado à realidade do aluno.

Para ir além dessa constatação, é importante tentar apreender de que modo foi

constituído, para a atual concepção de educar, o discurso amoroso, tornando-se

indispensável que sejam pensadas, primeiramente, quais foram as formas que esse

discurso assumiu na Educação, deixando para depois a relação entre o amor e a

transmissão. Para tal, proponho as discussões sobre como foi organizada a primeira teoria

do amor à criança no século XIX e sobre a necessidade da criação de uma “Escola

Nova”.

3.3 - Do Amor à Criança à Nova Escola

O pensamento contemporâneo caminha, de maneira acelerada, na direção de afirmar

que a relação amorosa para com a criança é pertinente à ordem da natureza. Incidência

que fica caracterizada pela proposição antropomórfica da existência de um instinto

materno pelos filhotes humanos. Para desmistificar essa crença no amor natural à criança

inicio por recordar que tal condição amorosa só veio a surgir a partir do século XVIII,

isto é, pelo menos no que tange à exigência de que a criança deve ser amada de modo

incondicional. Não é de admirar, portanto, que nos cause hoje tão profunda sensação de

antinaturalidade e repulsa o fato da larga utilização do infanticídio como método de


controle da natalidade na Europa até o século XVIII59. Não seria essa repulsa um

indicativo de que o conceito de criança foi modificado de forma intensa nos últimos

duzentos anos?

Para explicar tal modificação é possível percorrer diversos caminhos. Um deles é dizer

que o novo conceito de criança foi uma conseqüência inerente ao desenvolvimento do

modo de produção capitalista. Tal via nos conduzirá à percepção de que o novo conceito

de criança não é algo que possa ser atribuído de modo genérico a todo infans, pois

enquanto produção do capitalismo, a teoria do amor à criança não comporta, para ater-me

a um único exemplo, “os meninos de rua”. Não ignorando esse vínculo, é necessário

perceber que a partir do século XIX foi concebido um novo discurso para dizer a criança

e daí, por extensão, estabelecida uma nova forma para amá-la. Assim, tão importante

quanto compreender que a instauração do novo modo de produção acarretou alterações

na concepção de criança é notar que tais alterações tiveram de ser assimiladas,

previamente, a uma forma discursiva a fim de que o novo conceito pudesse ser posto em

prática.

Hoje, quando pensamos em uma criança, e falamos como ela deve ser protegida,

cuidada, ensinada, isto é, dizemos como ela deve ser zelada, na realidade estamos

reproduzindo uma forma de discurso amoroso à criança, a menos que queiramos ficar

surdos diante do enlace que nossa própria língua realizou entre o zelo e o amor. Mas

onde buscamos a referência para garantir que tais “cuidados” são verdadeiramente a

prova de nosso amor à criança? A resposta para essa pergunta não é difícil de ser

encontrada, pois se existe um campo discursivo que privilegiou a nova criança, esse

59
Confira: ORLANDI, O. Teoria e Prática do Amor à Criança : Introdução à Pediatria Social no Brasil,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1985
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1981.
BADINTER, E. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1989.
campo foi, sem dúvida, o discurso médico e, em particular, a puericultura. Para

comprovar tal afirmação é só responder às seguintes perguntas sobre o ensinar: Quem

ensina como as mães e os pais devem limpar, vestir e estimular um bebê? Quem ensina

quais são os horários ideais para o neonato dormir, acordar e ser amamentado? Quem

ensina as normas de como proceder para garantir ao futuro adulto higidez física e mental?

Todas elas comportam uma única resposta, e não é o discurso pedagógico como poderia

ser suposto por sua função de ensinar, mas sim o discurso que criou o saber ao qual todas

essas perguntas se destinam, ou seja, o discurso médico.

Atribuo então à puericultura, enquanto representante do discurso médico, a criação e

o estabelecimento das técnicas que visam a assegurar o perfeito desenvolvimento físico,

mental e moral da criança. De tal modo a puericultura instaurou-se como o saber sobre a

criança que acabou por se tornar capaz de produzir outras determinações que, para além

do orientar, modificaram todo o campo das relações familiares, principalmente no que

tange à função dos pais. Hoje, recusar seguir as prescrições médicas poderá facilmente

conduzir à culpa e ao sentimento de omissão. O processo da instauração de um novo

modelo familiar é descrito assim por ORLANDI (1985):


"(...) A medicina social, através da higiene familiar, foi tornando a
família cada vez mais dependente dos conselhos médicos. Aos poucos,
foi penetrando no interior dos lares sob o pretexto de defender as
crianças ameaçadas pelas altas taxas de morbilidade e mortalidade; foi,
também, impondo a todos os seus membros uma educação física, moral
e sexual de acordo com os conhecimentos higiênicos da
época.(...)”(op.cit.,p.52)

Entranhada como o centro em torno do qual a família deverá descrever sua órbita, a

nova criança passará a reclamar para si uma nova vicissitude amorosa. Surge então um

novo tipo de necessidade amorosa de que a religião e o discurso social não conheciam

nenhuma palavra, mas ele será o fornecedor das bases para a edificação de um novo pai e

de uma nova mãe. Emergindo do vácuo existente entre os antigos discursos e a nova

exigência amorosa, o discurso higienista criará novas significações para os cuidados


com a criança. Em síntese, a criança solapada dos discursos religioso e social é,

praticamente, (re)inventada pela pena da ciência. No Brasil, sobre esse processo,

Jurandir Freire COSTA(1989) acrescenta em Ordem Médica, Norma Familiar:


"No período colonial a representação social e religiosa da criança
monopolizava o sentido de sua vida. Os papéis culturais de “filho
incapaz” e de “anjinho” superpunham-se e obscureciam sua condição de
etapa biológico-moral no desenvolvimento do adulto. A vida infantil
persistia cindida da vida dos mais velhos, como se seu cerne
pertencesse a uma segunda natureza humana. Natureza imprecisa,
expectante, que se mantinha em estado larvar até o despertar da
puberdade. Entre o adulto e a criança as ligações existentes eram a da
propriedade e da religião. Fora disso, um fosso os separava. A
“alteridade” e a descontinuidade entre um e outro eram radicais. Os elos
que uniam a cadeia das gerações só foram criados quando a família
dispôs da representação da criança como matriz físico-emocional do
adulto. Por meio das noções de evolução, diferenciação e gradação,
heterogeneidade e continuidade conciliaram-se. A família pôde, então,
ver na criança e no adulto o mesmo e o outro. Daquele momento em
diante os papéis invertem-se: a criança passa a determinar a função e o
valor do filho.(op.cit.,p.162)

Pouco a pouco, o discurso do saber médico vai inserindo, silenciosamente, todo um

novo conjunto de valores, até culminar na organização de uma nova dieta60. Após a

criação da criança e da determinação de novas funções para os pais e para as mães,

chega o momento de impor um novo modelo para os homens e para as mulheres. O amor,

se é que ainda é possível falar dele, encontra como último refúgio sua redução aos

conceitos psico-biológicos. Nesse particular, não poderia deixar de fora a alusão à

sexologia: saber que possibilita a criação e experimentação de modelos para a relação

sexual. A esse processo de exclusão do discurso amoroso, Roland Barthes refere-se no

início da sua obra, sem precedentes e sem sucessores, intitulada Fragmentos de um

Discurso Amoroso:
"(...) o discurso amoroso é hoje em dia de uma extrema solidão. Este
discurso talvez seja falado por milhares de pessoas (quem sabe?), mas
não é sustentado por ninguém; foi completamente abandonado pelas

60
É necessário salientar “que os gregos entendem por dieta não só a regulamentação dos alimentos do
enfermo, mas também todo o regime de vida do Homem e especialmente a ordenação dos alimentos e dos
esforços impostos ao organismo. Nesse aspecto, o ponto de vista teleológico em relação ao organismo
humano devia impor ao médico uma grande missão educativa.”(JAEGER, 1995. p.1040)
linguagens circunvizinhas: ou ignorado, depreciado, ironizado por elas,
excluído não somente do poder, mas também de seus mecanismos
(ciências, conhecimentos, artes).”(BARTHES,1994.p.1)

No intento de domar o amor e produzi-lo como “uma outra coisa”, a ciência

transmuta a antiga confissão religiosa em inquérito, narrativa, entrevista, questionário,


ou em qualquer outro procedimento metodológico que vise a fazer coincidir o sujeito

que fala com o sujeito do enunciado.61 O novo discurso que aí é construído, sendo ímpar

em sua capacidade de regular, detém o poder de dizer o que no campo das relações

amorosas é normal ou não. Ao traçar uma equivalência entre o pecar e a anormalidade,

não é de admirar que “o discurso científico do amar” consiga ser capaz de produzir a

mesma qualidade de culpa que, anteriormente, era provocada pelo discurso religioso.

O discurso da ciência, do qual o discurso médico/higienista é uma das variantes, ao

passar a coabitar o leito dos amantes, vai gradualmente assumindo a função de

diferenciar o permitido e o proibido, o que, anteriormente, era feito pelo discurso

religioso. A grande conquista dessa modalidade discursiva foi, contudo, o

estabelecimento de novos papéis para os personagens de pai e de mãe. “Esta

identificação entre masculinidade e paternidade e feminilidade e maternidade será

o padrão regulador da existência social e emocional de homens e

mulheres”.(COSTA,1989,p.239) A imposição desse novo modelo resultou no

desaparecimento das singularidades e na liquidação das diferenças, conduzindo ao

estabelecimento de comportamentos assertivos para amar e relegando o diferente e o

excesso para as categorias nosológicas.

Estando o surgimento da nova criança no cerne das modificações causadas na função

da família e nas formas de como educar, por que haveríamos de pensar que o modelo

tradicional de educação extrafamiliar e escolar também não teria de ser alterado? Na

61
Sobre esse aspecto confira:
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - A vontade de saber, Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984.
realidade, o contraste entre a educação tradicional e as novas exigências amorosas foi

ficando cada vez mais acentuado, até que já não fosse mais admissível que esse ser doce,

meigo e ingênuo continuasse sendo submetido a um modelo de educação capaz de valer-

se até mesmo da palmatória. Resultado: um novo modelo de educação correspondente

às novas exigências da criança foi criado.

No Brasil, O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932 não apenas

incorporou o novo discurso, como também reconheceu, naquele momento, que essa

mudança somente seria realizada mediante a fixação de um outro ideal e de uma outra

concepção de vida. Princípios vitoriosos que passaram, dali em diante, a determinar, não

apenas o que a educação deveria inculcar, mas como deveriam ser alteradas as vias da

entronização da nova imagem da criança. Mudança radical que afetou não apenas o que

deveria ser ensinado, mas principalmente, o como deveria ser ensinado. Tal ocorrência

avaliza dizer que a educação nova trouxe, em seu bojo, uma nova maneira de aquele que

ensina se posicionar no interior do campo da transmissão.

A relação entre a educação nova e o discurso médico que a precedeu pode ser

afirmada não apenas pela forte presença de médicos e de professores de psicologia no

movimento dos pioneiros brasileiros, mas, principalmente, porque a presença desses

profissionais, seja nas bases que possibilitaram o movimento, seja no seu decurso, foi um

evento mundial. Exemplos disso são Johann Herbart(1776-1841) - psicólogo - na

Alemanha, John Dewey(1859-1952) - psicólogo - nos Estados Unidos, Maria Montessori

(1870-1952) médica - na Itália, entre outros. Além desse indicativo, outra comprovação

dessa vinculação é a proposição da própria escola como sendo um laboratório

privilegiado para os estudos e a experimentação dos mecanismos da aprendizagem e da

cognição. Não fosse assim, não se teria logrado êxito na obtenção de subsídios para a

criação de um currículo escolar que correspondesse ao desenvolvimento físico-emocional

da criança.
Ainda sobre a forte influência dos médicos na proposição da Escola Nova, Angéla

Médici observa em A Educação Nova:


"Resumindo, na obra dos médicos-educadores de que tratei,
encontram-se expressas, do modo mais completo, as principais
características da Educação Nova: primeiro, desejo de conhecer a
criança, de a abarcar em todos os aspectos da sua personalidade e
todos os dados da sua história; esforço para fazer da educação um acto
de vida e de adaptação ao meio: estava aberto o caminho que permitiria
que as relações entre o aluno e o seu meio se estabelecessem
espontaneamente, dando assim origem a ‘uma criança nova” nas nossas
aulas” (MEDICI,1976, p.48)

Diante de tudo isso, não há como negar que o movimento da Escola Nova está calcado

em bases biológicas, psicológicas e sociológicas. Para alcançar a real dimensão desse

movimento, entretanto, é necessário entender previamente que ele, na realidade,

corresponde a uma exigência feita pelo novo discurso. Para entender a força que possui

um modo discursivo basta recordar que quando Ratichius62 e Comenius optaram pelo
nome Didática, derivado do grego didascoo (ação de expor ou discorrer), para batizar

todo um campo de metodologia educacional, eles o fizeram por acreditar que é na forma

discursiva, e não no campo das habilidades práticas (praxis), que estão fixadas as bases

da compreensão e da transmissão. Assim, foi somente a partir do instante em que a

educação incorporou para si o novo discurso, que, literalmente, toda a significação do

que é educar pôde ser modificada. Conscientes ou não desse fato, esse foi o percurso dos

que lançaram a Escola Nova, e é exatamente por causa dessa condição que,

diferentemente de Angéla Médici, atribuo à nova criança a criação da nova escola e não

o contrário.

Atentando fixamente para essa inversão, encontraremos no século XVII, mais uma

vez, o espaço temporal que gerou o embrião desse movimento que só veio a eclodir

duzentos anos mais tarde, sendo possível deduzir, a partir dessa consideração, que a

Escola Nova foi um processo inerente à mudança ocorrida na forma de produção do

62
Forma latina do nome de Wolfgang Ratke (1571 - 1635)
saber. Significa dizer que ela traz consigo todas as virtudes e todos os males inerentes à

scientia, inclusive no que diz respeito à forma como articula o discurso amoroso. Visto

por esse viés, toda ênfase na “criança especial”, nos distúrbios psicológicos de

aprendizagem, nas doenças neurológicas nada mais é do que um mero reflexo do lugar

que a criança passou a ocupar no seio do discurso científico. Acrescento então uma nova

interrogação: se a representação da criança enquanto matriz físico-emocional do adulto

condiciona os papéis da família, exigindo inclusive um novo modelo de escola, por qual

motivo deveríamos esperar que o papel de professor se mantivesse incólume?

O modelo de professor engendrado pela escola tradicional foi, aos poucos, tornando-

se obsoleto para lidar com aquele novo “ente”. O novo professor que adveio deveria,

principalmente, estar atento ao desenvolvimento físico-emocional da criança, isto é, à

sua capacidade e preparo para ensinar deveria corresponder, simetricamente, uma

capacidade e preparo para relacionar-se com seus alunos. No intuito de aperfeiçoar essa

última habilidade, o novo professor deveria recorrer a teorias médicas e psicológicas para

delas retirar os subsídios necessários à sua prática. Mas, diante dessas novas vicissitudes,

como fica o professor em relação à organização de seu saber ?

A interrogação é uma proposição para aqui se deter por um instante. Maria Eliana

Novaes faz uma brilhante desconstrução no uso generalizado do parentesco “Tia” como

forma de designar a professora, demonstrando que esse termo vela todo um processo de

expropriação do saber. Após um minucioso exame de todas as implicações que estão

contidas nesse velamento, em certo ponto de seu texto ela salienta: “O ciclo vicioso se

fecha, ao nível da aparência. Continuar-se-á acreditando que a professora passou

a ser tia, na intenção de se oferecer mais carinho à criança.”(NOVAES,1984.

p.130) É preciso, no entanto, acrescentar que tal efeito de “imaginarização” somente é

possível à medida que existe uma demanda amorosa contida no educar que a moderna

educação simplesmente não tem como responder. É nessa ausência do ter o que dizer
que é possível buscar uma explicação para o motivo que conduziu a prática pedagógica

a “abrir as portas” à entrada do idealismo romântico em seu cerne. Ela as abriu por ter

encontrado na formulação do discurso romântico uma possibilidade de tentar responder a

essa demanda, diante da qual a ciência se cala. A entrada dessa formulação porém,

acabou por atuar como coadjuvante no ocultamento da importância da função social de

ser professora ou professor.

A nova educação, despossuída de uma referência própria que fosse capaz de conduzir

a um dizer sobre o amor no campo da transmissão, mas com uma demanda apontada

exatamente para esse lugar, fez com que não restasse ao professor outra alternativa que

não a de buscar em si, no seu próprio eu, um modo de atender a essa exigência. Ambígua,

a professora pede, em nome da profissão, que não a tratem de tia, mas aceitará, de bom

grado, essa mesma denominação quando oferecida em nome do amor. Nesse ínterim em

que exposição de saber e exposição de si se misturam, sentir-se amada passa a ser, para a

professora, o coeficiente segundo o qual ela avalia a sua capacidade docente.

Não pode ser atribuído ao acaso, portanto, o fato de a descrição da prática profissional

do professor ou da professora comportar tantas referências à idealização amorosa.

Algumas dessas idealizações são o resultado de um intrincado processo de perversão

teórica, como por exemplo, as que dizem ser o amor à professora um deslocamento do

amor à mãe. Outras são o resultado da “imaginarização” do papel social da professora,

em especial as que identificam a função de ensinar crianças como sendo uma habilidade

nata das mulheres. Em todas as formas de distorção, o que é possível ser assinalado é a

existência de um ponto comum, ou seja, o fato de tais idealizações surgirem no afã de

alcançar uma resposta amorosa para a Educação no espaço que o saber científico deixa

vago. Idealizações que surgem no exato momento em que, diante da ausência de uma

referência discursiva que justificaria sua ação, o(a) professor(a) enuncia que a teoria na

prática é outra.
A moderna educação foi compondo o seu discurso amoroso velando “daquele que

ensina” qual é o verdadeiro lugar do amor na transmissão. Esse ocultamento, produzido

por uma serie de velamentos teóricos e ideológicos, gerou a imagem do professor como

mãe, tia, amigo, confidente, sacerdote, e o que mais possa ser apresentado como objeto

idealizado de amor, resultando na produção de uma caricatura do mestre. O perigo de

tamanha idealização amorosa é que um dia o professor se veja como os antigos cristãos

em Roma: no circo, prestes a ser devorado pelos leões famintos.

3.4 - Os Velamentos Pedagógicos do Discurso Amoroso.

A palavra velar tem, em nossa língua, uma possibilidade de sentidos que lhe é bastante

peculiar. Na verdade, os sentidos de velar dependerão de qual é o vocábulo latino

encontrado na origem de sua significação. Assim, velar enquanto advindo de velu refere-

se ao véu palatino ou aos sons que nele se formam. Por outro lado, se adveio do latim

velare significará: cobrir com véu, encobrir, esconder, ocultar, tornar escuro. Por fim, se

é o vocábulo latino vigilare que está em sua raiz, velar passará a significar: passar a noite

acordado, conservar aceso, estar alerta, vigiar.63 Oportuna conjunção de significações que
me possibilita ampliar o sentido de velamento para além do velare ao qual ele,

evidentemente, está referenciado. Sendo assim, gostaria de ressaltar que, no caso

específico do discurso, o velamento é algo que só se faz pela fala. Além disso, não

podemos esquecer que a intenção de ocultar só alcança sucesso quando quem esconde

permanece zelando/velando para que esse objeto de ocultamento não venha a ser

63
Confira: FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 2 ed, Nova
Fronteira, 1986.
descoberto. Por tudo isso, defino como velamento a ação de ocultar, produzida no e pelo

discurso, com o objetivo de manter excluído o objeto que sofre a ação de ocultamento.

É essa definição que atribuo à posição de velamento que o discurso pedagógico

assume em relação ao discurso amoroso. O universo amoroso tornou-se um fora da

educação em que não se adentra a não ser como um discurso estrangeiro; por outro lado,

o acontecimento amoroso faz parte do cotidiano da educação sempre que esta envolve,

principalmente, a pressuposição da existência de uma relação entre professor e aluno.

Talvez as novas tecnologias aplicadas à educação sejam a solução definitiva para esse

problema, uma vez que criam a expectativa de um dia ser possível ensinar sem a

intermediação humana. Mas restaria perguntar: caso tal ficção viesse a tornar-se

realidade, será que ainda estaríamos dentro do universo educacional ?

É muito pouco provável que assim seja, pois a educação é essencialmente uma prática

humana que envolve duas posições distintas: a de quem conhece e quer ensinar e a de

quem não conhecendo deseja aprender. A ilusão de que o livro didático, o computador,

ou qualquer outro meio que venha a ser inventado seja capaz de educar apenas sustenta a

idealização do discurso pedagógico de ser capaz de valer por si só, de operar na ausência

de um sujeito que o sustente. A menos que, enquanto educadores, estejamos dispostos a

reduzir a educação à informação, condição em que as novas tecnologias são imbatíveis,

devemos, necessariamente, repensar o campo das relações amorosas na educação.

Um artigo publicado na revista Veja, de 29 de maio,64 intitulado A Turma do Barulho,


expõe o fato de “alunos indisciplinados e mal-educados” estarem atormentando de tal

modo os professores, que acabam por levá-los até mesmo à opção radical de abandonar a

docência. Detalhe: tal reportagem não relata o cotidiano de nossas escolas públicas, onde

a queixa de insubordinação já é por demais antiga para freqüentar as páginas da grande

64
Revista Veja N°22 Ano 29 Edição 1.446. páginas 54 a56
mídia, mas o das escolas freqüentadas por alunos da chamada classe média. O que está

exposto na reportagem é a conseqüência da opção pelo amor incondicional à criança;

estranha perversidade do conceito de cidadania essa, que só consegue enumerar direitos!

Não é por acaso que a mesma reportagem aponta, em seu final, para a necessidade de

ser recolocada em discussão a questão de quais são os limites para o ato do outro. Mas

como pensar em limites diante de uma prática amorosa que tem na palavra doação o seu

único vocábulo? E, além disso, como foi que essa palavra se incorporou à prática

pedagógica?

3.4.1 - Em nome de Deus - Os Velamentos do Discurso Religioso

A presença do religioso na educação pode ser demonstrada não apenas pelo vínculo

histórico existente entre a religião e a educação, mas, também, pela existência no

discurso pedagógico, tanto aferente quanto eferente, de palavras cujas origens são

indubitavelmente religiosas. Constatação a que chegou Eliane Marta S.T. Lopes quando,

diante de um interminável dizer do ensinar a ser professor, substituiu a prescrição

apaziguadora pela interrogação inquietante: (...)“Será mesmo que ninguém aprende

depois de tantos séculos, de tantas vezes repetido ? Por quê?”(LOPES,1991.p.27).

Interrogado em sua repetição, o discurso do ensinar entrega, não sem resistência, à

escuta arguta da autora, sua filiação religiosa.

Constatação a que também chega Lusia Ribeiro Pereira65, que ao isolar, da redação de

candidatos ao vestibular da UFMG em 1993 sobre o tema “mas professor é profissão,

não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é
profissão, é vocação”, palavras tais como: “salvar, dedicação, vocação, amor, esperança,

65
Sobre esse aspecto confira também: ALMEIDA, Guido. O Professor que não Ensina, São Paulo,
Summus, 1986.
coração, carinho, esforço, responsabilidade, mestre, pai, mãe, amigo, guia, companheiro,

dom, entrega, missão, prazer, martírio, luta, anseio, ministério, compromisso, professar,

doação, paciência, sacrifício (...)”, conclui:


“ Palavras e expressões utilizadas pelos vestibulandos para
exprimirem o que restou depois de terminada a ação educativa de seus
professores. Palavras e expressões insistentemente utilizadas para
identificar e qualificar a figura e o fazer do professor ou da professora.
Palavras e expressões carregadas de simbolismo religioso, pois foi nesse
campo do religioso que elas foram primeiramente cunhadas.(...)
(PEREIRA,1996.p.50)

Essas palavras, de origem religiosa, assumem, no discurso pedagógico, sobretudo a

função de velar do professor a sua real identidade no processo da transmissão. Velamento

que se opera, essencialmente, quando oferecem, como espelho para a construção do “ser

professor”, a imagem do pobre, do misericordioso e do sofredor. Concordar com esse

fato entretanto não é suficiente, pois é muito pouco provável que caso baníssemos do

discurso pedagógico todas essas palavras alcançássemos a identidade por elas ocultada.

Afinal, essas palavras adentram o discurso pedagógico pelo cotidiano pedagógico e não

pelo o campo teórico ou pela militância da prática profissional. Nesse último aspecto, a

presença dessas palavras chega, inclusive, a produzir uma contradição já que, muitas

vezes, o professor que luta por melhores salários é o mesmo que acredita piamente na

sacralidade de sua profissão. Como o que é sagrado não pode ser remunerado ...

Não sendo possível reverter o efeito que tais palavras causam pela via de sua exclusão

do discurso pedagógico, resta interrogar as causas que possibilitaram tanto a sua entrada

quanto a sua permanência nesse lugar. Nesta condição, duas possibilidades podem ser

levantadas. A primeira é que essa permanência é causada em virtude de a ruptura entre a

Educação e a Escolástica não se ter completado; assim, as palavras de origem religiosa

seriam fragmentos, vestígios de uma filiação que a educação tenta esquecer, mas da qual

é lembrada sempre que se vincula a prática pedagógica a uma missão sacerdotal. A

segunda atribuiria a causa dessa presença ao insucesso do vocabulário técnico-científico


do discurso pedagógico para produzir uma boa representação da função de ensinar; nesse

caso, as palavras religiosas retornariam ao discurso pedagógico como manifestação dessa

representação insuficiente.

Os desdobramentos dessa presença parecem ser infinitos, até mesmo porque o quadro

de referência que originou essas palavras, o discurso pedagógico religioso da escolástica,

está perdido para sempre, dele só podemos contar uma dentre as diversas histórias

possíveis, porém que essa “uma” possa produzir conhecimentos que, como ressalta

Foucault, (...)“encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou

a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma

história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições

de possibilidade(...)”(FOUCAULT,1987, p.11). Assim, nas condições de sua

possibilidade, as palavras religiosas na educação contam uma história de amor,

especificamente a história do amor cristão, que deve ser contada para que sua função de

velamento amoroso no pedagógico possa ser revelada.

O início dessa história está na fundação do próximo. No evangelho de São João

(13,34) encontramos:
"Dou-vos um mandamento novo:
que vos ameis uns aos outros.
Como eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros.
Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns pelos outros”.66

O próximo é fundado então como um igual, aquele diante do qual eu me reconheço,

independente da relação que, com ele, eu estabeleça. Assim, deve ser amado de modo

incondicional, com a mesma intensidade de amor que eu possa dedicar a mim mesmo. É

66
A Bíblia de Jerusalém, São Paulo, Edições Paulinas,1987. p. 2022
É interessante acrescentar nesse momento os comentários que se referem a essa passagem: (...)“o
evangelista une o preceito do amor, testamento de Cristo. Esse preceito já presente na lei mosaica,
é ‘novo’ pela perfeição a que Jesus o faz atingir e porque constituiu como o distintivo dos tempos
novos, inaugurados e revelados pela morte de Jesus.”(op. cit. p.2022)
criado então um universal para o amor que não existia na filosofia grega, e que pode ser

expresso através da frase: amo o outro porque sou nele. O amor cristão passará a

oferecer como ethos a identificação de uns aos outros, tendo como modelo a própria

imagem de Cristo, conduzindo para o esvaziamento das diferenças no ideal da formação

do Um e suturando, desse modo, os efeitos do corte que Zeus havia realizado no

andrógino.67

Como as palavras religiosas que habitam o discurso pedagógico não advieram de

outras religiões a não ser da Cristã, é a essa modalidade amorosa que elas se referem.

Conclui-se que, ao produzirem um imaginário daquele que ensina como sendo o de um

sofredor, de um abnegado, de um missionário, de um redentor, elas apenas realizam o

modelo cristão de amar* . Professores e professoras encontram na educação a expressão

de um amor que tem como objetivo redimir — através de seu próprio sacrifício — da

ignorância seus alunos para unificá-los no Amor de Cristo.

Ensinar passa a ser penitência; a cada instante são reafirmadas as resoluções do III e

do IV Concílios de Latrão, segundo as quais o professor não deve ser pago, posto que o

saber é um dom de Deus que não pode ser transmitido por dinheiro.68 Pagar criaturas de

origem tão divina com uma quantia justa de dinheiro seria reduzir para elas o caro valor,
tanto no sentido de amor quanto no de capital, de sua profissão. No modelo do amor

cristão existe um para além que não admite sua materialização em moeda, algo que só se

paga pela penitência, um lucro de outra ordem que exige para se realizar a manutenção

do sofrimento. Lusia Pereira (op.cit.) constata que, paralelamente às queixas de falta de

condições de trabalho e baixa remuneração, existe todo um fazer cotidiano das

professoras nas escolas de quadros, adereços, enfeites, etc que obviamente envolve

67
Sobre o mito do Andrógino ver O Banquete de Platão.
*
Resultado da opção por um Ethos Estóico, por oposição a um Ethos Epicurista, que valorizará o
sofrimento como o caminho para se atingir a “verdade do Ser”.
68
Confira: Verger, J. op. cit. p.68
dinheiro. Como alguém que ganha tão pouco pode retirar de seu mirrado ordenado

dinheiro para a confecção desses materiais? Não seria conveniente que, ao invés de

apenas repetirmos a denúncia da exploração do magistério, nos interrogássemos que

outro lucro está sendo obtido aí ? A resposta para essas perguntas bem que pode ser a de

que, muito mais que o salário, professores e professoras recebem como pagamento o

amor de seu próximo — digo de seus alunos — a que fazem jus pela cruz que carregam.

Está aí, na comunhão do calvário, um gozo, propiciado pelo amor cristão, que supera

qualitativamente o quantitativo da remuneração financeira.

O velamento que as palavras de origem religiosa cristã irão operar no discurso

pedagógico será o de, através do amor ao próximo, ocultar do professor o verdadeiro

ganho que ele obtém com o ensinar. Esse lucro que se realiza para além do material, será

justificado através da sentença: “O que eu quero é o bem dos outros, contanto que

ele permaneça à imagem do meu (...) contanto que ele dependa do meu

esforço”(LACAN,1988.p.229). Assim, quando os alunos se tornam insubordinados,

pervertendo a disciplina e fazendo do mestre um fantoche, por paradoxal que seja,

acabam por realizar para o(a) professor(a) a aspiração franciscana de “doar a vida pelo

irmão”, ou seja, ao assumir tal posição, o(a) professor(a) será o próximo que se oferece
para (...)“satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de

trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,

apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-

lo.”(FREUD, 1974c.p.133). Enfim, se como salienta Freud, homo homini lupus, o(a)

professor(a), pela doação, se oferece para ser a caça.

Ainda sobre o velamento religioso do amor no discurso pedagógico, utilizei ao longo

dessa exposição um diferencial de gênero expresso pela grafia de o(a) professor(a). Optei

por tal forma de expressão por considerar que tais velamentos não se produzem de modo

universal para o homem e para a mulher, e por observar que o magistério, em especial no
ciclo básico, é uma profissão essencialmente feminina. Assim sendo, como a idealização

da mulher cristã — aí estando incluído o imaginário da mãe cristã — é aquele que toma

como modelo Maria — a mãe de Cristo —, o amor ao próximo, em sua condição

feminina, irá absorver como representação da mulher um ideal que não é apenas o da

sofredora, mas o da que é capaz de abdicar do que lhe é mais caro, a que foi capaz de

entregar para a morte, em benefício de toda a humanidade, sem contestar, o seu próprio

Filho.

Em síntese, é através dos velamentos produzidos, tanto pelos fragmentos quanto pelas

manifestações do religioso-cristão na educação que é apresentado ao professor (aqui na

condição de universal) um ideal de uma profissão sacralizada, caracterizada pela vocação

e pela doação, e que não admite ser reduzida completamente ao trabalho secular. Os

frutos dessa irredutibilidade caracterizam-se por um lado pela impossibilidade de o

professor construir para si uma real identidade de sua prática e, por outro, pelo

imperativo de ter de ofertar corpo e espírito para serem imolados. Diante de tal

condição, não nos deveria causar nenhum espanto quando um governante, diante das

justas reivindicações salariais da categoria, resolve atendê-las, literalmente, com uma

ducha de água fria. Afinal, tal resposta não deixa de ser adequada ao discurso que, muitas

vezes, os próprios professores fazem de si mesmos como eternos sofredores, e à crença

que sustentam da educação como redentora de todos os males do homem.

3.4.2 - “ Lascia le donne e studia la matematica.”


Os Velamentos do Discurso Científico

O título italiano desta parte foi extraído de As Confissões de Jean-Jacques Rousseau

conforme o demonstra o excerto abaixo:


"Não lhe foi difícil curar-me e desfazer-me aquela pequena vergonha:
mas no momento em que eu estava prestes a desfalecer sôbre aquele
colo que parecia oferecer-se pela primeira vez à boca e à mão de um
homem, percebi que tinha um seio defeituoso. Surpreendo-me, examino,
julgo perceber que aquele seio não era do mesmo feitio do outro. Eis-me
procurando descobrir por que se pode ter um seio assim; e convencido
de que aquilo seria devido a algum mal importante, à força de virar e
revirar tal idéia na cabeça, vi, claramente como à luz do dia, que na
mulher mais encantadora que se possa imaginar, eu tinha nos braços
uma espécie de aleijão, o rebotalho da natureza, dos homens e do amor.
Levei minha estupidez ao ponto de falhar-lhe no seio defeituoso. A
princípio ela levou a coisa na brincadeira e, com seu gênio folgazão,
disse e fez coisas que me fariam morrer de amor; mas guardando no
fundo uma inquietação que não pude esconder-lhe, vi finalmente que ela
enrubecia, afastava-se, endireitava-se e, sem dizer uma só palavra, foi
meter-se à janela. Quis ficar ao lado dela; saiu dali e foi-se sentar no leito
para repousar, donde se levantou um momento depois; e, passeando
pelo quarto enquanto se abanava, disse-me desdenhosa e friamente:
Zanetto, lascia le donne, e studia la matematica” (ROUSSEAU,1965.
p.344,345)

Iniciar a explanação sobre os velamentos que o discurso científico é capaz de operar

no discurso amoroso e sobre ele com uma citação de Rousseau é uma opção que realizo

em virtude do efeito que a obra de Rousseau e o sujeito “Jean-Jacques” causam no

discurso pedagógico. Dividir de tal modo o sujeito e sua obra pode soar estranho ao leitor

nesse momento, mas é exatamente essa cisão que os educadores costumam realizar

quando colocam de um lado O Emílio ou Da Educação, e de outro As Confissões. Assim,

parece existir, para a educação, um duplo de Rousseau: o que funda a moderna educação,

pregando o amor natural à criança, e o que escandaliza os estudantes de pedagogia e de

magistério por se desfazer da paternidade de seus filhos naturais. Para os que teimam em

excluir o sujeito de sua obra parecerá talvez chocante o conteúdo do excerto colocado na

abertura deste texto, mas o trecho condensa, na fala desdenhosa e fria de uma prostituta, a

síntese da concepção científica do amor.

Sabemos o quão difícil foi, para Rousseau, constatar que aquela “obra-prima da

natureza e do amor (...) tão boa e generosa, quanto amável e bela” de modo que “os

grandes, os príncipes, deviam ser seus escravos” era, na realidade, uma “miserável

prostituta, entregue ao público.” Essa constatação não lhe deixa outra escolha a não ser
a de declarar: “Há nisso qualquer coisa de inconcebível”* Visualiza-se aí, nesse

trecho de As Confissões — que é precedido pela advertência: “Seja quem fôr o leitor

que queira conhecer um homem, que êle ouse ler as duas ou três páginas

seguintes: irá conhecer a fundo Jean-Jacques Rousseau.”(op.cit.,p.343) —, o que

veio a ser concebido, na atualidade, como sendo amor. A partir dessa época, o amor passa

a ser definido como sendo uma expressão afetiva que só existe quando foi atendida a

condição de amalgamar, em uma só moeda, o objeto de amor e o sexo.

Rousseau não apenas criou as condições para que surgisse um movimento literário, o

romantismo, que fez do anseio amoroso a sua base, como também forneceu à ciência a

via de construção de um saber amoroso, ou seja, a confissão. As conseqüências da

idealização romântica sobre o educar já foram apresentadas neste capítulo; resta,

portanto, pensar a via científica: a confissão e seus efeitos sobre a educação.

O saber científico do amor é, sobretudo, um saber do sexo, o que não quer dizer que

ele não seja um saber sexual, sendo sua via de constituição a da confissão pública. O que

interessa à ciência é saber como é praticado o sexo para que sejam estabelecidos, de

acordo com a descrição pormenorizada da intimidade de cada um, os padrões de

normalidade. Esta é, por exemplo, a conclusão que apresenta Allan BLOOM, em sua

obra Amor e Amizade. Analisando os efeitos do relatório Kinsey sobre o comportamento

sexual da sociedade norte-americana, ele escreve: “Kinsey contribuiu para reduzir o

eros a sexo, numa visão exterior profundamente destrutiva do que sentimos

interiormente.” (BLOOM,1996. p.15)

A partir de Kinsey, a sociedade ficou sabendo que atos como a masturbação, o

adultério, o homossexualismo e os desvios do coito de sua finalidade de procriação eram

praticados por um grande número de pessoas, o que equivale dizer que possuíam

*
Os trechos em negrito são compilações de As Confissões, op. cit. p.344
representatividade estatística, e, sendo assim, não poderiam mais ser reprimidos por “leis

arcaicas” que tinham como única função a preservação de uma moral antiquada que

submetia todos a um sofrimento desnecessário. Os relatórios sobre as atividades sexuais

foram se sucedendo uns aos outros até que acabaram por criar a sexologia, um campo de

saber que tem como especificidade o tornar públicas as práticas sexuais. O resultante

desse saber, que reafirma o vínculo obrigatório entre o amor e o sexo ao mesmo tempo

que possibilita a descrição objetiva do sexual — incluindo aí a quantificação —, foi a

produção de uma nova forma discursiva.

No Capítulo 2 me servi da frase inaugural de Rousseau, no Emílio, “tudo é certo em

saindo das mãos do Autor das coisas...”, para dizer da função do mal-entendido na

transmissão. Agora, quero ressaltar que o objetivo de Rousseau, na mesma obra, é o de

tentar, por todos os meios possíveis, alcançar a aniquilação do efeito que esse mal-

entendido causa. Assim, o Emílio é a empreitada desesperada de um autor que acredita

ser o retorno à natureza a única forma de conduzir o homem, através da educação, para

viver em um mundo perfeito. Um mundo que desaba quando Sophie declara : “Emile (...)

saiba que não sou mais nada para você. Um outro maculou sua cama, estou

grávida, nunca mais em minha vida você irá tocar.(...)”(ROUSSEAU,1994. p.63). A

traição de Sophie, inconcebível para Emílio, é uma dentre as muitas formas que Rousseau

acha para dizer de seu próprio fracasso para lidar com a diferença69. O seu projeto porém
persiste, encontrando no iluminismo científico a sua continuidade. Nesse aspecto,

Kinsey e todos os seus sucessores, que acreditam ser a ciência capaz de solucionar o

mal-estar do homem na civilização por meio da prescrição do ato sexual que realize a

união perfeita entre desejo e cultura, são legítimos herdeiros de Rousseau.

69
Confira: SOLER, C. Jean-Jacques Rousseau y las mujeres In: SOLER, Colette. Estudios sobre las
Psicoses, Buenos Aires, Manantial, 1993.
Da descrição dos comportamentos sexuais passou-se à descrição de todas as formas

de relacionamento humano. Assim, se as descrições do sexual conduziram à montagem

de um discurso disciplinador que nos oferece a imagem de uma igualdade abstrata entre

os sexos baseada no ser o prazer sexual uma condição natural, as descrições das relações

sociais, por sua vez, permitiram a montagem de um discurso “politicamente correto” que

prega o paradoxo da igualdade das diferenças. O espantoso em tudo isso é que tais

afirmações são feitas pelo mesmo discurso que no início do século pregara a condição de

inferioridade da mulher e a superioridade da raça branca.

Mas o que tem isso a ver com a educação? Pergunta a que respondo lhe contrapondo

uma outra: será possível negar que a relação professor-aluno é amorosa? Creio que não;

afinal, como coloca Bloom, referindo-se a um não poder pensar na beleza do erotismo ou

do amor:
"Apoiar este tratamento não erótico do eros é o princípio mais em
moda, segundo o qual todos os relacionamentos humanos,
especialmente os sexuais, provêm do único princípio que motiva o
homem: a força de vontade. Tudo se resume em relacionamentos de
força bruta, na vontade de dominar, de ter as coisas à sua maneira.(...) A
relação entre aluno e professor é uma relação em que este só está
interessado em impor suas opiniões e presença ao aluno”.
(BLOOM,1996. p.23)

Reduzindo o Eros, o amor, a uma condição fisiológica que é o sexo, e criando uma

especialidade que determina como ele deve ser praticado, o discurso científico espera que

uma disciplina escolar, como a educação sexual, erradique todo o mal-entendido que

circula o imaginário da relação sexual, da mesma forma que supõe que os negros, por

serem chamados de americanos de origem africana, sejam capazes de superar os efeitos

do racismo. Falar de amor passa a ser, então, falar de sexo — fiz amor com ... —, e a

relação, qualquer que seja, deve ser igualitária, aniquiladora dos efeitos produzidos pela

diferença. O sujeito da enunciação tem obrigatoriamente de corresponder ao que está

posto pelo enunciado; não pode haver sobras nem discordância entre eles. Nesse quadro,
como pode o professor interrogar-se sobre o que dele quer o aluno? E, como pode este

interrogar o que dele quer o professor ? O discurso científico do amor reduziu a relação

professor-aluno a um contrato em que todas as perguntas e respostas já estão previamente

estabelecidas. Diante disso nada mais resta a dizer do que “ Lascia le donne e studia la

matematica.”

3.5 - A Real Identidade do Professor70 e o Discurso Amoroso na Transmissão

Qual é a forma que o discurso amoroso assume na educação para possibilitar o

acontecimento da transmissão? No Capítulo 2 apontei a existência de uma série de

nomes com que nos referimos a aquele que ensina; nomes que surgiram em diferentes

épocas da história da educação. A exposição, realizada naquele momento, permite-me

afirmar agora que a denominação “lente” está vinculada ao ensino, tanto da teoria quanto

da aplicação, das ciências abstratas e das ciências naturais71. Já a denominação “mestre”

é uma referência por um lado às corporações de ofício da Idade Média e, por outro, à

forma de ensino da Escolástica e da antiguidade clássica. “Professor”, por sua vez,

remete ao ensino na modernidade, sobretudo ao espírito da reforma e da contra-reforma


quando o ensino das ciências e da literatura tornou-se indispensável. “Tia” refere-se a

uma forma generalizada de tratamento às “senhoras mais velhas”, um modismo brasileiro

do final da década de 50. Mas como esses nomes se misturam em nosso cotidiano,

perdendo, até certo ponto, as especificidades que os originaram, concluo que tal

diversidade para designar aquele que ensina está vinculada à possibilidade de, diante da

transmissão, serem assumidas diferentes posições para o ensinar. Assim, muito mais do

70
A idéia de pensar a existência de uma “real identidade” a partir dos velamentos que nela operam me
ocorreu a partir da leitura do texto Ser Analista de Jorge Forbes (FORBES,1991) onde essa idéia é
desenvolvida sobre os velamentos da real identidade do ser analista.
71
Confira: ALMEIDA, José R. P. A Instrução Pública no Brasil (1500-18889) São Paulo, Epuc, Brasília,
INEP/MEC, 1989.
que se ligarem a conteúdos específicos de ensino, os nomes da série remetem a

diferentes formas do ensinar.

Tomar a forma de ensinar como ponto de partida para pensar a transmissão não é

nenhuma novidade, pois que a transmissão nela implicada é algo que conhecemos bem,

desde Ratichius e Comenius. Mas é esse mesmo campo de saber, fundado por esses

autores, que vem, ao longo dos tempos, nos demonstrando que essa forma não se deixa

apreender em totalidade por meio de um único método, tornando possível a afirmação de

que todo método de ensinar encerra, além da sua validade, a sua insuficiência. Assim,

enquanto os resultados positivos obtidos confirmam-nos a validade de um método para

ensinar, a insuficiência desses mesmos resultados irá trazer para a cena pedagógica o

questionamento d’aquele que ensina. O pensar a transmissão na educação é dividido

entre aqueles que a teorizam como sendo o efeito causado por um método e buscam na

capacidade cognitiva e na realidade social do aluno a sua explicação, e aqueles que

pesquisam a prática pedagógica e buscam na formação e nas habilidades do professor

essa mesma resposta.

É claro que essas vertentes não são excludentes entre si, não sendo poucos os

estudos que buscam harmonizá-las. Mas, longe de encontrar uma solução holística, que

viesse apaziguar a insistência dos resultados insuficientes, tais estudos, na maioria das

vezes, acabam por produzir uma eterna repetição que circula entre os estudos das razões

do fracasso e do sucesso escolar, criando um verdadeiro movimento de revolução na

educação. De modo genérico, esses estudos sobre a transmissão na educação acabam por

produzir, como subproduto, a criação da imagem de como deve ser o professor, motivo

que me faz retornar à pergunta de Eliane Marta S. T. Lopes, já citada neste capítulo,

quando interrogando sobre o eterno ensinar a ser professor: “Será mesmo que ninguém

aprende depois de tantos séculos, de tantas vezes repetido ? Por quê?”

(LOPES,1991.p.27) Diante do exposto, podemos pensar que a impossibilidade de


aprender a ser professor deve estar relacionada com essas imagens que são

incessantemente prescritas pela Didática, o que significa dizer que para pensar os

motivos dessa impossibilidade de “aprender a ser” temos antes de pensar qual é a

verdadeira identidade daquele que ensina.

Essa identidade, entretanto, apenas poderá ser encontrada se admitirmos que existe

uma incompatibilidade entre a imagem que a educação constrói de como deve ser o

educador, e o homem concreto que com ela se identifica ou não. A última premissa

apresentada implica duas condições. Primeira: existe uma imagem ideal do ser professor

que corresponde àquele que é capaz de ensinar sem perda. Segunda: existe um homem

real que é professor, mas que não consegue atender à exigência de perfeição que a

imagem “do ser professor” lhe impõe. Dessas duas condições, podemos concluir que o

ensinar é, na realidade, uma operação que se estabelece entre a imagem de um ideal e a

impossibilidade do homem real em atingí-lo. Em síntese, antes de ser uma profissão, ser

professor é uma função, uma tentativa de estabelecer uma correspondência entre um ideal

e o real. Função que deve estar situada em relação à transmissão, por oposição à

veiculação, pois, caso contrário, teríamos de aceitar que é verdadeiro ser a função do

mestre, professor, ..., etc, a de apenas veicular informação, função para a qual, ao longo

da história, as tecnologias têm-se mostrado mais efetivas. Mas, como os anos se

sucederam, trazendo com o seu passar a escrita, o livro, a imprensa, o jornal, o rádio, a

televisão, o computador, a multimídia, a internet, e aquele que ensina, apesar dos vários

vaticínios sobre sua extinção, tem permanecido — o que não pode ser atribuído apenas a

uma postura de resistência — é preciso admitir que necessitamos de um homem, de

carne e osso, para sustentar para nós o aprender, e que este não pode ser substituído por

qualquer tecnologia atual ou que venha a ser inventada. É diante dessa constatação que

me permito definir o homem real que ensina como sendo aquele(a) que sustenta a

função de operar a ligação entre o seu próprio desejo de ensinar e o desejo de um


outro de saber. Fora dessa operação, tudo o mais que exista no ensinar se reduz à

veiculação de informação.

Essa definição faz com que tudo o que se refira a conteúdo esteja situado fora do

campo da transmissão, não entrando nele a não ser como a “matéria” com a qual é

construída a ponte entre esses dois desejos. Na condição de matéria, os conteúdos são os

elementos de significação que nos permitem organizar as imagens do mundo em que

habitamos e, enquanto tal, estão submetidos às necessidades sociais e culturais. É com

eles, por exemplo, que respondemos a perguntas do tipo: o que um aluno deve aprender?

A transmissão porém não está situada no campo das significações. Isso pode parecer

óbvio, mas quando alguém faz do como se ensina uma interrogação, por que insistimos

em responder propondo uma significação? Professores de professores sempre têm uma

resposta na ponta da língua: faça desse modo, use o quadro dessa maneira, utilize tais

recursos didáticos, planeje a aula. Como é possível, na ausência do aluno, na ausência da

aula — posto que ela ainda não aconteceu —, prever com tamanha exatidão? Será que a

educação só é capaz de pensar com a presença, mesmo que para isso esta tenha de ser

idealizada?

Uma observação se faz necessária aqui. Não estou propondo que o planejamento deva

ser abolido do processo pedagógico. É claro que os conteúdos devem ser hierarquizados

de modo a facilitar a ligação entre eles, ou seja, não se inicia o ensino da matemática

pelos números complexos. O que estou me referindo é à ocorrência de uma inversão

quando o professor planeja como deverá agir diante de uma situação que ainda não

aconteceu, sendo que nada lhe pode dar a garantia de que ela aconteça da maneira como

foi planejada. Mesmo que isso possa suscitar temores (talvez tremores) em muitos, que

imaginariam aí o caos, não será o momento de nos atentarmos que, quando uma aula

acontece, ela nos coloca diante de um real ao qual só podemos responder com uma

invenção? Será que toda a rigidez metodológica não nos deixa perceber que toda aula
contém pelo menos uma parte que é inventada no momento pelo professor? E ainda, por

quantas vezes teremos de repetir a experimentação para entender que aquela invenção,

que é da ordem do particular do professor e daquela situação, quando padronizada,

produzida como prescrição, perde a sua capacidade de causar o seu efeito original72?

A transmissão, por ocorrer na tangência de dois arcos — o que enuncia o desejo de

ensinar e o que enuncia o desejo de saber — implica um inesperado que remete a um

jogo de presença-ausência; um jogo do qual só temos as regras e o local e, nunca, a

certeza prévia de seu resultado. Assim, ao invés de a transmissão ocorrer por meio de

uma apropriação que o professor possa fazer do aluno, do tipo “eu sei o que você deve

saber”, ela se dará em um espaço vazio, em que impera o acaso, pois o professor não sabe

o que o aluno deseja saber, mas o aluno supõe que o saber que ele busca está no

professor. O enunciado do saber produzido pela enunciação do desejo de ensinar criará

uma oferta que estabelecerá um porto onde ocasionalmente o desejo de saber do aluno

atracará.

Um exemplo sobre transmissão, utilizado por Fábio BORGES(1992) em seu texto, Da

Transmissão de um Dever ao Dever de uma Transmissão, pode ajudar a esclarecer qual

é o lugar da transmissão. Citando o livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, ele


transcreve o seguinte diálogo:
" Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra.
— Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? — pergunta o Grande
Khan.
— A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra — responde
Marco —, mas pela curva do arco que estas formam.
O Grande Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois
acrescenta:
— Por que falar das pedras? Só o arco me interessa.
Polo responde:
— Sem pedras o arco não existe...”. (BORGES, 1992.p.156)

72
Essa condição de o professor preparar-se para a aula e não o preparar a aula foi a mim apresentada por
Eliane Marta S. T. Lopes, na disciplina Psicanálise e Educação, no mestrado da Faculdade de Educação da
UFMG.
A transmissão é como a ponte desse exemplo, em que as pedras seriam as

significações, os conteúdos que o professor oferece a seu aluno para que ele adquira o

conhecimento, mas o que vai permitir ou não o acontecimento do transmitir é o desejo de

ensinar do professor, o verdadeiro pilar que sustenta — no sentido de apoio — o desejo

de saber do aprendiz.

A transmissão, ao pôr em jogo o desejo daquele que ensina e o desejo daquele que

quer saber, se estabelece como situação discursiva, pois não há dúvida de que nela

sempre existe pelo menos um sujeito. Como esse jogo do desejo, na via da palavra, que

tenta aproximar o dizer do agir, produzindo efeitos tanto para o professor como para o

aluno remete, mais uma vez, ao discurso amoroso, retorno à pergunta inicial: qual é a

forma que o discurso amoroso assume na educação para possibilitar o acontecimento da

transmissão ?

3.5.1 -O Amor Verdadeiro e a Transmissão ou O Elo dos Eros

Tendo sido o discurso amoroso ilhado de seus pares por meio de seu isolamento de

todas as outras referências discursivas, o amor foi conduzido, em nossa época, a um

esvaziamento de sentido. Essa situação provocou que um autor como Allan Bloom

produzisse uma obra em que tenta resgatar a retórica da relação amorosa, sempre em

busca “das palavras dos escritores antigos, que levavam o eros muito a sério e

sabiam falar sobre ele”(BLOOM,1996.p.11). Independente das conclusões desse

estudo, é necessário ressaltar que tal produção não é um caso isolado e, por outras vias,

outros autores têm também apontado para a ocorrência de uma “banalização” do amor em

nosso tempo, uma perda da noção do “verdadeiro amor” sobre o que é necessário
repensar. Desses outros autores, destaco dois: M. Foucault, que em A História da

Sexualidade desmonta a hipótese da repressão sexual pela sociedade capitalista; e

Roland Barthes, que em Fragmentos de um Discurso Amoroso reinsere esse discurso

como a transgressão necessária ao pensamento acadêmico.

Bloom, Foucault e Barthes, cada um em seu tempo e ao seu estilo, demonstram a

existência de um hiato entre a atual concepção de amor e “o amor verdadeiro”, o que

pode ser caracterizado, respectivamente, pela banalidade do discurso público referente ao

sexo, pela pretensão de falar do sexo pelo modo purificado e neutro da ciência, e por

querer fazer coincidir o sentimental com o sexual. Não é possível, entretanto, imaginar

que exista uma homogeneidade entre esses três autores; pelo contrário, as discordâncias

que eles estabelecem entre si são bem maiores do que as concordâncias, porém o efeito

que causam, ao evidenciar essa falha no discurso amoroso, permite que dos três façamos

um laço. Um laço que, ao circunscrever o espaço amoroso, permite dizer da função do

amor na transmissão, sem com isso exigir fidelidade à teoria desse ou daquele pensador.

Afirmar a existência de um amor verdadeiro que se contrapõe à atual concepção de

amor e, além disso, fazer recair sobre ele o acontecimento da transmissão é algo que

exige, para que possa ter sentido, a contraposição com outras formas de enunciação do

amor. Formas que não têm necessariamente, de observar uma sucessão cronológica, pois

se os autores citados notaram essa dessemelhança é porque, de algum modo, pelo menos

um traço desse amor verdadeiro se mantém através dos tempos. Inicio então pelo jogo

presença-ausência que está implicado no amor, e ao qual já me referi anteriormente. Dele

nos diz Roland Barthes:


“Devo infinitamente ao ausente o discurso da sua ausência; situação
com efeito extraordinária; o outro está ausente como referente, presente
como alocutário. Desta singular distorção, nasce uma espécie de
presente insustentável; estou bloqueado entre dois tempos, o tempo da
referência e o tempo da alocução; você partiu (disso me queixo), você
está aí (pois me dirijo a você)” (BARTHES,1994. p.29)
(...)
"Um Koan budista diz o seguinte: ‘O mestre conserva a cabeça do
discípulo sob a água, por muito, muito tempo; pouco a pouco as bolhas
se rarificam; no último instante, o mestre tira o discípulo, o reanima:
quando tiveres desejado a verdade como desejaste o ar, então saberás o
que ela é.’
A ausência do outro me conserva sob a água; pouco a pouco sufoco,
meu ar se rarefaz: é através dessa asfixia que reconstituo minha
‘verdade’ e preparo o Intratável do amor.”(IDEM, p. 31)

O amor é uma condição que sempre coloca em jogo o dois, um sujeito e um objeto, em

posições que se alternam de acordo com o lugar (de sujeito ou de objeto) que é assumido.

Constituindo uma situação oposta àqueles dos que imaginam ser o verdadeiro amor uma

possessividade, um apropriar-se do outro, é a ausência do objeto (ou mesmo as formas

que um sujeito possa criar para tornar essa ausência possível) o que desencadeia um dizer

amoroso que reconduz o sujeito à sua verdade. É em torno dessa ausência do objeto

amado, radicalizada como presença impossível, que foi construído no século XI, na

Alemanha, o que pode ser denominado como amor cortês.

Dessa modalidade amorosa, destaco duas características que são assinaladas por J.

Lacan, no seminário VII, a de que “o objeto, nomeadamente aqui o objeto feminino,

se introduz pela porta mui singular da privação, da inacessibilidade”(...) e a

condição de que essa “Dama é apresentada (...) com caracteres despersonalizados,

de tal forma que autores puderam notar que todos parecem dirigir-se à mesma

pessoa.”(LACAN,1988.p185). Eis a ausência do objeto do amor, a impossibilidade de

sua posse, servindo de aguilhão a esses poetas para a enunciação de sua verdade, uma

verdade que inscreve a relação com esse mesmo objeto como sendo um universal, já que

não são as características pessoais da “dama”, em última instância, o que importa, mas

sim o que ela representa, o que nela possa ser velado e revelado do amor.

Permanecemos porém em um mesmo eixo, isto é, o que pensa ser o amor pertinente

exclusivamente à relação entre um homem e uma mulher. Para dele sairmos é necessário

retomar Foucault, que em O Uso dos Prazeres coloca:


"Nas culturas cristã e moderna essas mesmas questões — da
verdade, do amor, e do prazer — serão relacionadas muito mais
facilmente com os elementos constituitivos da relação homem-mulher; os
temas da virgindade, das bodas espirituais, da alma esposa marcarão
bem cedo o deslocamento efetuado de uma paisagem essencialmente
masculina — habitada pela erasta e pelo erômeno — para uma outra,
marcada pelas figuras da feminilidade e da relação entre os dois sexos.”
(FOUCAULT,1984b.p.201)

Em vista de tal colocação fica evidente que o amor, por colocar em jogo questões

como a verdade, o prazer e a sua própria finalidade, não está, necessariamente, associado

à procriação. Constatação que nos leva a inscrevê-lo como uma expressão humana, uma

expressão do desejo, o que é o mesmo que dizer que o amor só pode ser entendido
enquanto um desvio em relação a uma natureza biológica do homem. Assim, para

entendermos a relação entre o amor e a transmissão é necessário buscar aqueles que por

esse percurso seguiram, e destes escolho, mais uma vez, três: Platão, Santo Agostinho e

Freud.73

Em O Banquete, Platão irá dedicar todo o diálogo à busca do verdadeiro sentido do

amor. Amor que ele apresenta como dividido, em relação à sua finalidade, entre a de

procriação e a de criação
"(...) aqueles que estão fecundados em seu corpo voltam-se de
preferência para as mulheres, e é desse modo que são amorosos, pela
procriação conseguindo para si imortalidade, memória e bem
aventurança por todos os séculos seguintes, ao que pensam; aqueles
porém que é em sua alma — pois há os que concebem na alma mais que
no corpo, o que convém à alma conceber e gerar(...)”
(PLATÃO,1983.p.40)74

Não tendo como finalidade exclusiva a reprodução, Platão nos apresenta, através de

Diotima, o Amor como um intermediário cuja função é, precisamente, a da transmissão.

73
A escolha desses três pensadores se deu, exclusivamente, em função de ser encontrada na obra desses
autores uma exposição sobre o amor que o distancia da finalidade da procriação e/ou não a toma como a
única finalidade do amor. Reconheço, portanto, que a exposição agostiniana está na base da organização da
unicidade matrimonial, e que Freud, dependendo da leitura que se faça dele, pode ser tomado, como aliás o
fez Allan Bloom, como um dos responsáveis pela cientificização do discurso amoroso.
74
Dada a diversidade de traduções e edições de O Banquete, manterei, em nota de rodapé, a paginação de
Henri Estienne. Essa passagem encontra-se em 208e - 209a.
"O de interpretar e transmitir aos deuses o que vem dos homens, e
aos homens o que vem dos deuses, de uns as súplicas e os sacrifícios, e
dos outros as ordens e as recompensas pelos sacrifícios; e como está no
meio de ambos ele os completa, de modo que o todo fica ligado todo ele
a si mesmo. Por seu intermédio é que procede não só toda arte
divinatória, como também a dos sacerdotes, que se ocupam dos
sacrifícios, das iniciações e dos encantamentos, e enfim de toda
adivinhação e magia”(idem, p34-35)75

Intermediação que se dá essencialmente entre o saber e a ignorância, e que determina

o saber como um efeito que atinge o Ser.


"(...) Ou não percebeste que existe algo entre a sabedoria e
ignorância? (...)
O opinar certo, mesmo, sem poder dar razão, não sabes, dizia-me ela,
que nem é saber — pois o que é sem razão, como poderia ser ciência?
— nem é ignorância — pois o que atinge o ser, como seria ignorância? —
é que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a opinião certa, um
intermediário entre entendimento e ignorância.(Ibidem, p.34)76

O amor, mesmo que para os gregos possa ter assumido versões diferentes desta que é

apresentada — como adverte Foucault, não é possível imaginar que a doutrina socrático-

platônica resuma todas as formas que a filosofia do Eros tomou na Grécia —, encontra

nessa doutrina as referências que o ocidente assumiu para pensá-lo. As diferentes

formulações que O Banquete nos apresenta sobre a origem e a função do amor, através

dos discursos de Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes e Agatão, encontrarão no

discurso de Sócrates um ponto de unidade. Eros, filho de Pênia (Pobreza) com Poros

(Recurso), oscila entre a vida e a morte, entre o enriquecimento e a pobreza, entre a

presença que aponta para ausência e a ausência que aponta para presença. A condição do

amor é a criação, é a de possibilitar, àquele que deseja, enunciar o reconhecimento de sua

falta.

Santo Agostinho irá deparar precisamente com essa formulação sobre o amor

quando propõe organizar o platonismo para o cristianismo. O resultado dessa tentativa de

75
Idem, Ibidem, 202e - 203a
76
Ibiem, Ibidem, 202a
conciliação nos legará uma outra concepção de amor, que pode ser resumida através das

seguintes palavras de M. Foucault, em O Uso dos Prazeres:


"(...) Houve a unificação doutrinal — da qual Santo Agostinho foi um
dos operadores — e que permitiu pensar, no mesmo conjunto teórico, o
jogo da morte e da imortalidade, a instituição casamento e as condições
de acesso à verdade”(FOUCAULT,1984b. p.221)

A influência do platonismo em Santo Agostinho é algo que ele mesmo nos conta

através de suas Confissões, mas é também nessa mesma obra que ele irá nos dizer o

quanto a concepção do Amor cristão se afasta da do Eros platônico. Assim, se

encontramos em Confissões toda uma pregação do amor à mãe, ao matrimônio e sobre o

peso do amor carnal, se achará, quase que em oposição, no De Magistro a condição de

amar a Cristo como a via de obtenção da verdade interior que habita cada um de nós.

Permanece assim, como um facho de luz que resiste a ser apagado, no discurso

agostiniano, a proposição do amor como o que faz laço entre a ignorância e o desejo de

saber. Encontramos também no De Magistro uma nova modulação para o desejo de

ensinar, algo que vai além da reprodução do diálogo socrático, que naquele texto está

presente, refiro-me ao esvaziamento do mestre em sua pretensão de ser o detentor da

verdade do seu discípulo, isto é, o estabelecimento do verdadeiro mestre como sendo o

mestre interior.

O ponto final desta discussão sobre amor e transmissão recai em Freud. De fato, teria

sido muito simples, no início deste capitulo, ter antecipado ao leitor o seguinte dizer: a
transmissão só ocorre mediada pela transferência. A apresentação imediata desta

constatação, entretanto, manteria afastada a possibilidade de realizar a reflexão necessária

sobre dois pontos cruciais: a distorção que o conceito de transferência costuma sofrer

quando utilizado em outros campos de saber que não a própria Psicanálise; e a

interrogação sobre qual é a função da transferência na transmissão do conhecimento na

relação professor-aluno. Mesmo já tendo me referido a essas observações no Capítulo 1,


é diante da exposição da função do amor na transmissão que esses dois pontos, em

especial o segundo, podem revelar-nos algo sobre a relação do desejo de ensinar com o

desejo de saber.

Para iniciar essa busca, proponho, como ponto de partida, retomar algumas

proposições encontradas na obra de Freud que abrangem a transferência e a educação. No

texto Observações Sobre o Amor Transferencial, ao pensar sobre as implicações que

derivam da condição de ser a transferência uma manifestação amorosa, Freud ressalta que

(...)“não temos o direito de contestar que o estado amoroso que faz seu

aparecimento no decurso do tratamento analítico tenha o caráter de um ‘amor

genuínio’”(FREUD,1972b p.218). Antes disso, porém, ele já havia advertido, em relação

à via que o analista deve assumir diante desse amor, que esta (...) “é um caminho para o

qual não existe modelo na vida real”(Idem, p.216). Dessas duas observações podemos

concluir que a Psicanálise opera por uma via que não é aquela que, em nosso cotidiano,

reconhecemos como a via “natural” do amor. Acrescente-se a essa conclusão a

impossibilidade de ocorrer uma conciliação plena entre a pulsão sexual e as exigências da

civilização, de modo que o ato sexual nunca levará à realização plena do amor, e

teremos nos aproximado da função do amor na transmissão.

No texto, de 1912, Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor,

FREUD(1970) menciona que a relação de um beberrão de vinho com essa bebida se

mantém por meio da mesma qualidade de insuficiência que vincula um amante a seu

objeto sexual, qualidade que, eu poderia acrescentar, se enuncia pelo in vino veritas. Essa

insuficiência, que se situa entre o objeto de amor e o Ser do amado, faz que a verdade,

atribuída à essência do objeto, se esvazie no instante em que estamos prestes a bebê-la,

de modo que dela não temos mais do que um ligeiro sabor, um fugaz aroma, que nos

mantém na expectativa de que o ser amado possa se realizar plenamente como objeto de

amor.
Não é por acaso que Freud ,em dois de seus textos que tratam da relação entre

Psicanálise e Educação77, vai situar na busca da apreensão do ser o lugar da relação

professor aluno; o aluno apreende no ser de seu professor na mesma medida que este

busca apreender sobre o ser de seu aluno. Agrupando todas essas constatações, a busca

da verdade sobre o amor, sobre o esvaziamento do objeto de amor no ser do amado e,

especialmente, o fato de toda essa procura manifestar-se por meio de uma relação, da

busca de uma escuta que possa acolher essa fala, não tenho dúvidas em afirmar que as

relações que se produzem na cena pedagógica nos dizem de um fenômeno de

transferência com todas as implicações que essa afirmação traz consigo.

Acreditando ser possível ao leitor concordar com essa afirmação, o próximo passo

será o de pensarmos como essa manifestação pode ser pensada na relação pedagógica, no

que tange à transmissão. O primeiro reconhecimento que daí podemos obter é que o

professor não poderá operar no lugar do analista, isto é, não há como aquele que ocupa,

juntamente com o aluno, um lugar de fala, não se incluir ali como sujeito. Porém, não

podemos negar que a presença do amor nessa relação cause uma aproximação do sujeito

com a sua verdade por meio da interrogação ao Outro; um instante em que o mal-

entendido e a não possibilidade do diálogo78 são colocados quase em suspensão. Esse

instante permite-nos reconhecer, por seu enunciado amoroso, a presença da enunciação

da transferência, que faz do professor suporte da verdade de seu aluno. Momento que

pode levar um aluno, por exemplo, a reconhecer o quanto de esforço ele é capaz de

realizar para não aprender.

É esse momento transferencial — o deslocamento do significante, fazendo-o

apresentar-se como a palavra que propicia a conexão entre o sujeito que fala e o saber —

77
Refiro-me aos seguintes textos: O Interesse Científico da Psicanálise, vol.XII. e Algumas Reflexões
Sobre a Psicologia do Escolar, Vol XIII, ambos da Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S.
Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora.
78
Ver Capítulo 1 desta dissertação
que a redução do amor à significação exclusiva de sentimento furtou à cena pedagógica,

isto é, ficou oculto ao professor o que, afinal, põe em causa o amor. Tudo isso me conduz

à proposição final desta dissertação, e que apresento agora como encerramento deste

Capítulo e abertura do próximo: por onde opera o professor a transmissão mediada pela

transferência ?
EPÍLOGO

OS DESASTRES DE SOFIA

“... E foi assim que no grande parque do


colégio lentamente comecei a aprender a

ser amada, suportando o sacrifício de não

merecer, apenas para suavizar a dor de

quem não ama.”(...)

Clarice Lispector
4 - “Os Desastres de Sofia”

É chegado o momento de concluir, aquele tempo do texto quando as idéias lançadas

ao longo de toda a exposição deverão ser contrastadas com um fundo para que possam

assumir a significação esperada. Ao nomear esta divisão do texto de epílogo em vez de

conclusão, entretanto, busco traçar um diferencial e situá-lo de uma forma assimétrica

àquela que, comumente, esperamos que ocorra no final da sucessão de todos os capítulos

de uma dissertação de mestrado. Tal deliberação não se faz sem motivo, o que não é

nenhuma novidade, já que nenhuma decisão é desmotivada. Mas, para esta, em especial,

digamos que eu tenha pelo menos um par de bons motivos para assim proceder.

O primeiro deles refere-se ao fato de epílogo ser sempre algo que deixa um resto, uma

possibilidade de continuidade, estabelecendo por isso uma oposição à palavra conclusão,

já que ambas se propõem expressar a idéia de fim. Conclusão passa-me a idéia de um

arremate perfeito, do que se esgotou em si mesmo, seu aparecimento no texto causa-me a

impressão de que o autor, tendo sido perfeitamente entendido por seu leitor, nada mais

tem a fazer do que traçar um resumo de sua obra, recapitulando o que foi dito ao longo

de toda ela. Por outro lado, epílogo — muito mais presente na literatura do que na

produção acadêmica, é verdade — aponta para um ponto de basta, o arremate da trama

aqui não é preciso, há sempre ali e acolá uma ponta solta que, em alguns casos, é um

convite explícito para que outros se aventurem na mesma teia.

O outro motivo para a escolha desse nome advém do que lhe servirá de matéria para

sua construção: um conto de Clarice Lispector. Uma vez tendo optado por inserir a

literatura como o fundo em que possa ser anunciado o remate desta dissertação, julguei

mais coerente optar por uma expressão de fim que estivesse mais próxima da arte do que

da ciência, ressaltando apenas que não se deve confundir proximidade à arte com

ausência de objetividade.
A inserção de Os Desastres de Sofia ocupará aqui um lugar semelhante àquele que

ocupa em outras dissertações a exposição da análise dos resultados de uma pesquisa.

Afinal, o que Clarice Lispector escreve, bem que poderia ser, resguardadas as devidas

proporções, o depoimento de um professor ou de uma aluna em uma entrevista, pois esse

conto não apresenta nenhuma situação absurda ou qualquer outra categoria que rompa os

laços com as imagens da realidade. Acredito que qualquer professor ao lê-lo reconheça

algo, pelo menos uma imagem, que lhe remeta a seu cotidiano, seja como professor, seja

como aluno.

Quanto à relação entre Psicanálise e Literatura, que depois de tantas vezes

distorcida acabou por gerar justos protestos daqueles que se dedicam à Literatura, é

necessário que eu diga que tomo o conto de Clarice no sentido que Bellemin-Noël

propõe a essa articulação: o de "oferecer aos textos uma outra dimensão e observar

a escritura na sua gênese e no seu funcionamento"(BELLEMIN-NOËl,1983.p.97-

98). Especulação? Claro que não. A dimensão da instauração da verdade está no conto,

letra por letra, palavra por palavra. Não é real? Então, temos de considerar que a ficção é

capaz de nos desvendar caminhos que a materialidade nos vela ou, mais especificamente,

que não existe uma diferença radical entre materialidade e ficção - “Heisenberg fez

disso uma lei, visando não a imaginação mas 'coisas' tão rigorosamente

determinadas como partículas físicas, que são quantificáveis" (Idem, p.87). Assim,

permanecendo nessa referência de trabalho, o conto será trabalhado no sentido de que ele

encerra um saber que é capaz de ultrapassar o saber do escritor que o produziu79.

Assim, não me proponho extrair dessa obra uma supra verdade, interpretando o texto

no sentido de nele fazer brotar o diagnóstico e atribuindo a esse ou àquele personagem

uma normalidade ou anormalidade. O texto interessa-me enquanto abre, com um jogo de

linguagem, um campo de significações que encontra o seu limite definido previamente


79
"o poema sabe mais que o poeta"(BELLEMIN-NOËL,1983. p.13).
por sua materialidade. Assim, será a letra da obra literária o suporte indispensável em

torno do qual é possível fazer circular as situações do humano que o conto encena.

Além disso, é preciso levar em consideração que uma obra artística nos causa

sentimentos, despertando em nós os mais variados tipos de emoções. Desse inundamento

de afetos é preciso manter uma dada distância, esvaziar-se no que for possível desse

efeito a que, sem dúvida, o artista visa. É necessário não esquecer que nem o autor, nem

os personagens autorizam qualquer análise de si mesmos, vale frisar, mais uma vez, que

eles são vazios no que se refere à posse de uma estrutura clínica. É o humano que nesses

personagens habita o que interessa nessa articulação entre Psicanálise e literatura. Esse

humano, construído pelo autor com o barro da linguagem, que nos ilude a ponto de

pensarmos serem essas imagens pessoas de carne e osso, demonstrando com isso a

existência de uma dada ordenação a que nos podemos ligar para produzir um saber a

partir do campo literário.

Explicitadas essas observações, gostaria de sugerir ao leitor um desvio na rota de sua

leitura desta dissertação. Aos poucos, na página inaugural de cada capítulo, fui

apresentando trechos dessa obra de Clarice Lispector, excertos que julguei terem uma

dada relação com a temática que propunha desenvolver naquele momento. Mas agora é

mais do que aconselhável que a leitura do conto seja feita em sua íntegra, pois Os

Desastres de Sofia fala por si. Que seja esse desvio entendido como um convite, uma

abertura à emoção que somente no próprio conto pode ser encontrada e a que eu nada

tenho a acrescentar. Convido então, ao leitor, para que ele se transfira para o anexo, as

últimas paginas onde poderá encontrar a transcrição desse texto contido no livro A

Legião Estrangeira publicado pela editora Siciliano.

A primeira abordagem a esse texto - é bom lembrar que de uma obra literária só se

aproxima pelas bordas - é sobre o seu título: Os Desastres de Sofia. Assim, inicio pelo
nome da personagem que nos é apresentada: Sofia. Sofia não é apenas um nome, um

nome de mulher, é uma referência ao saber; na clássica composição da palavra filosofia,

por exemplo, o acharemos aglutinado ao amor. A Sofia do conto de Clarice é uma

menina de nove anos, que a si mesma “mais parecia um erro de cálculo”80. Não há

como deixar de reconhecer que essa passagem, da infância à vida adulta, é um tempo de

transição, um tempo marcado pela desproporção. É assim que Clarice nos apresenta

Sofia, uma menina que recusa a aprender o que a escola lhe oferece, uma vez que está

voltada para um não saber de si que cultiva com “ a integridade da ignorância”.

A outra palavra que compõe o título, o desastre, também contém outras

possibilidades de ser pensada em sua significação. É o acontecimento de um desastre que

põe em jogo todo o Ser de Sofia. É o que ocorre quando ela é exposta, abruptamente, por

um professor, a uma verdade diante da qual ela se horroriza. Ora, desastre, em sua

etimologia, refere-se à palavra italiana disastro81 que tem como significação má estrela.

Não sendo pouco comum a ligação que se estabelece entre a “sorte” e os astros, é

possível então apontar o acontecimento desse desastre, do qual Sofia recolhe o efeito,

como sendo algo que se aproxima do destino, ou mais propriamente dito, da “Fortuna”.

Para os romanos, essa divindade alegórica distribuía tanto a felicidade quanto a desgraça,
remetendo ao que, atualmente, pode ser designado como acaso.

Na realidade, o desastre que sucede a Sofia está muito mais próximo ao que, em

Psicanálise, poderíamos chamar de encontro com o real, “um encontro marcado, ao


qual somos sempre chamados, com um real que escapole.”(LACAN:1985. p.55-

56) É, portanto, como uma tyche, no sentido que os gregos lhe davam82 — o do
80
Os excertos do textos de Clarice Lispector serão apresentados nessa forma gráfica (entre aspas e em
negrito) sem o acompanhamento de sua referência bibliografica, uma vez que o texto original se encontra
transcrito como anexo desta dissertação.
81
Confira:CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 2ª Edição, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1992.
82
Sobre o sentido grego para tyche, confira: JAEGER, Werner A Paideia, A formação do homem grego,
3ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 1995. pp.159-160, 408-413, 1279-1280.
paradoxo de ser o instante em que o homem quase alcança a sua aspiração de liberdade, o

mesmo em que ele é forçado a reconhecer a sua absoluta carência dessa mesma liberdade

— que o acontecimento desastroso na vida de Sofia deve ser entendido, como algo

“inantecipável”.

O mais importante a ser sublinhado nesse encontro é que ele resulta, para Sofia, na

aquisição de um saber que, mesmo não podendo ser totalmente objetivado, marcará para

sempre a sua vida.


"(...) Mas assim como por um instante no professor eu vira com
aterrorizado fascínio o mundo - e mesmo agora ainda não sei o que vi,
só que para sempre em um segundo eu vi - assim eu nos entendi, e
nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O que
quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de
doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali em pé -
numa solidão sem dor, não menor que a das árvores - eu recuperava
inteira, a ignorância e a sua verdade incompreensível.(...)”

Em Os Desastres de Sofia, o encontro entre a tyche e o saber é algo da ordem do

indefinível, e nem por isso menos verdadeiro. Ele se assenta na produção de um saber

para o sujeito que ultrapassa o saber enquanto referido à aquisição de um conteúdo. No

conto, a proposta do professor de que Sofia fizesse uma composição, utilizando as

próprias palavras, sobre “o homem muito pobre ...” não tem outra função a não ser a de

fornecer a base sobre a qual a verdadeira ação, a palavra verdadeira de Sofia, surgisse. A

produção daquele saber, dissociado do eu que, evidentemente, o ignora, é que nos

demonstra a existência da transmissão.

Na Educação, atualmente, quando queremos nos referir à aquisição de um saber,

basicamente o fazemos por duas vertentes: a da modificação do comportamento, e a da

ocorrência de um insight, ambas tomadas por empréstimo à Psicologia. Assim, quando

um aluno não aprende o que lhe é ensinado, a explicação para essa ausência é atribuída

ou a uma insuficiência cognitiva — seja ela do aluno ou do método —, ou a um distúrbio


emocional — aí sempre do aluno — que coloca em cena a delicada relação entre o

normal e o patológico. É uma boa pergunta a esse modelo de compreensão da vida

escolar: que posição deve ser tomada diante de uma aluna que apresenta uma recusa

sistemática em abandonar sua ignorância? Como constata Sofia, é uma pena que os

professores não possam ver, na maioria das vezes, em que se transformam seus alunos.

O fato é que o modelo que a educação utiliza para compreender o acontecimento da

transmissão só se interessa pelo que, em última instância, possa ser quantificável, possa

confirmar o corpo teórico já existente. Assim, a única modalidade de transmissão que as

teorias educacionais nos apresentam remete para a aquisição de um conteúdo, e acabam

por reduzir o educar à veiculação de informação. Ora, como já foi exposto no Capítulo 3,

para informar não é necessária a presença de um professor. Por outro lado, Sofia nunca

teria apreendido o que apreendeu se não existisse ali, frente a ela, por trás de um par de

óculos sem aros, um professor que lhe atraía “pelo seu silêncio e pela incontrolada

impaciência que ele tinha em (..) ensinar.” Não há melhor descrição de que, na

realidade, o aluno apreende o professor muito mais do que as informações que este

acredita poder ensinar. É um desejo de saber, expressado por esse outro - o professor -

pelo silêncio e pela impaciência em desejar que o aluno - muitas vezes o seu mudo

interlocutor - apreenda, que sustenta a transmissão.

Mas disso sabia tão pouco o professor quanto o sabia Sofia. A grande crueldade do

método didático surge quando invertemos sua função. O método didático é,

evidentemente, necessário como princípio organizador, e mesmo que seja possível

pensar a possibilidade de ensinar sem método, não há como negar que com ele o processo

ganha uma articulação bem mais propícia à aquisição dos conteúdos. Assim, cabe à

Didática estabelecer “as regras do jogo”, evitando com isso que um curso, uma aula

venha a se transformar em um evento absolutamente caótico. Mas, quando as regras

subvertem sua função de dar um encaminhamento à ação pedagógica, transformando-se


na própria finalidade dessa ação, o resultado é trágico para o aluno. O professor, ao

operar essa inversão, não se interessa por nada mais além do imperativo de que as coisas

devem funcionar. Ele passa a exigir que o aluno produza sempre orientado pelo que,

previamente, ele mesmo definiu como finalidade. Nessa circunstância, é o próprio

professor a causa e o fim de toda a sua ação, e o aluno só adentra esse espaço para

confirmar ao professor que o seu saber é o correto.

O grande mérito do professor de Sofia é que ele não age dessa forma, ele não pune ou

adverte sua aluna por esta ter contrariado o sentido real da história; ao invés disso, ele

decide interrogá-la sobre o seu “tesouro”, uma interrogação que não se objetivou em

resposta. Afinal, o próprio professor não tinha outra resposta para a composição de Sofia

que não o singelo reconhecimento de que ela estava bonita. Tudo o que ele pôde oferecer

a Sofia foi uma escuta de seu escrito, um momento de silêncio que fez recair sobre ela

sua obstinação de dar tudo o que fosse seu por nada e, reciprocamente, receber tudo por

nada. Foi essa muda interrogação — enunciada por um: de onde você sabe? — que

proporcionou que Sofia de repente se visse ela mesma como um tesouro, pois o que nela

não prestava era aos olhos do outro um tesouro. É nesse tempo da escuta que Sofia

apreende o mistério de ser amada, o de suportar “o sacrifício de não merecer, apenas

para suavizar a dor de quem não ama.”

Essa operação, uma vez que alguma coisa para Sofia se realiza, só ocorreu porque dela

o professor foi capaz de se ausentar. Não posso deixar de ressaltar que o episódio descrito

só se inicia, de fato, a partir do momento em que Sofia recebe a notícia de que o

professor havia morrido. Naquele instante, a ausência definitiva do mestre torna-se

presença, pelo viés da recordação. Mas no tempo presente da situação, o professor não

comparece como de costume com sua impaciência de ensinar. É mediante seu olhar sem

raiva que ele se deixa apreender por Sofia como uma parte dela mesma e, sobretudo, ele

permite deixar-se cair da condição de ídolo. O professor não faz nem um esforço, nem
mesmo uma menção para se manter naquela condição; ao invés disso, ele deixa

transparecer o sorriso que aprendera e, confiante, deixa ver a sua feiúra. Esse é o tempo

de sua ausência, um tempo em que ele não reivindica nenhum reconhecimento para si,

um tempo de absoluta transparência em que ele permite a Sofia ver que ele também não

sabe; é nesse tempo de sua morte enquanto ídolo que se localiza o tempo da transmissão.

Eu não encontraria outra forma para poder disso falar nesta dissertação a não ser por

intermédio dessa abertura proporcionada pelo conto de Clarice Lispector. A situação da

necessidade de o professor produzir, por meio de sua ausência, a transmissão, não é algo

que se deixe apreender por questionários ou entrevistas. No que se refere à Educação,

posso dizer que ela tem suas origens na formulação do “mestre interior” agostiniano, em

nada se aproximando de conceitos ou métodos psicológicos que sustentam a idéia da não

intervenção ou do laissez-faire como ideais da prática pedagógica. Assim, é na

possibilidade de o professor suportar a destituição de si como todo o saber, pelo aluno, à

medida que ele se ausenta da condição de modelo, que essa produção pode ocorrer.

Convenhamos, não é uma posição fácil, toda a situação pedagógica exige o contrário,

conduzindo à idealização.

Como a relação professor-aluno implica a enunciação de dois desejos — o de ensinar

e o de saber —, e como a ação desses dois sujeitos é mediada por seus desejos, onde o

planejamento didático aguarda o previsível ele colidirá com o imprevisível e o

desencontro. O mal-entendido que disso resulta não é de pouca monta, posto que o

impossível do educar aí se situa. Contudo, se acreditamos que a transmissão está

implicada em uma verdade do sujeito sobre o seu próprio desejo, e não no acúmulo de

conhecimentos, teremos de pensar o que permite a um professor ocupar uma posição que

favoreça esse acontecimento, lembrando que para tal o lugar de analista não serve como

modelo, uma vez que educar não é psicanalisar, e vice-versa. Resta então ao professor

fazer valer, no seu próprio desejo de ensinar, uma verdade anterior, algo que já existia
nele antes que se enveredasse por seu ofício: o seu desejo de saber. Basta que esse outro

desejo seja colocado em evidência para que se percebam os meandros por onde ele opera.

Em síntese, é na posição de aluno, enquanto é esse que está referido ao desejo de saber,

que o professor poderá encontrar o lugar de onde possa vir a ser “o arco da transmissão”.

Evidentemente, reconhecer o lugar de aluno é coisa bem distinta de identificar-se

com os alunos, pois um professor que realmente acreditasse que para transmitir tivesse de

se vestir, falar, se comportar, etc, como seus alunos poderia, no muito, causar espanto. A

posição de aluno a que me refiro é aquela que Sofia tão bem apresenta, uma posição de

ignorância; a ignorância de quem verdadeiramente interroga, e não aquela de quem

pergunta apenas para ter confirmada a resposta já trazida pronta, na ponta da língua. A

ignorância radical sustenta a operação da transmissão à medida que faz faltar no

professor o saber, e está em oposição àquele tipo de discurso desgastado que alguns

professores enunciam quase como um pedido de desculpas por não saberem tudo. Estes

últimos, que repisam como bordão respostas do tipo “eu não tenho agora uma resposta

para a sua pergunta, vou trazer na próxima aula”, encenam diante da ignorância um duplo

cancelamento. Algo que poderia ser traduzido mais ou menos assim: de tanto saber que

não sei, posso de tudo saber. Seu intuito é, em geral, ser sempre admirado por seus

alunos, e ocupando tal posição ele nunca permitirá que seu aluno o destitua.

Ainda a respeito da destituição do professor. A posição que ele ocupa para seu aluno é

verdadeiramente a daquele que sabe; o aluno atribuí isso a ele. O professor de Sofia era

seu ídolo, isso está no texto. Mas também está no texto toda a ambivalência de Sofia em

relação a ele; para ela seu professor amado é também seu professor odiado, e é assim que

ela se divertia em provocá-lo, em exasperá-lo, em transformar-se em seu objeto de ódio.

O fato de ocupar um lugar a que se atribui, por antecipação, um saber, não livra o

professor da ambivalência do amor, é bom que isso esteja claro. Quantos professores não

caem nessa armadilha do desejo de saber, e acabam por pedir que sejam sempre
reconhecidos como bons, belos, caridosos, desprendidos, e tantas outras palavras que o

amor cristão permita engendrar para a sua realização? Por essa via, eles se afastam da

possibilidade de sustentar a transmissão, não realizam outra função a não ser a da

sedução, já que acreditam ser, eles próprios, o verdadeiro objeto de amor de seus alunos.

Por fim, do acontecimento da transmissão não é possível dar receitas; não há um

método que eu possa agora apresentar no sentido de garantir que todos aqueles que

venham a utilizá-lo possam alcançar os resultados esperados. Não há aqui o que possa

vir em meu socorro, de modo a apresentar no final desta dissertação uma norma, uma

orientação para procedimentos a serem adotados em sala de aula. A única conclusão que

posso apresentar como tal, após a realização escrita de todo este trabalho, é que ele me

levou à compreensão de que a transmissão produz um diferencial na forma de se nomear

aquele que ensina.

Encerro, então, em um momento de solidão — posto que já não posso mais aqui

contar com o meu leitor ideal, que agora está objetivado no que leu o texto

concretamente —, dizendo que procurei falar sobre o acontecimento da transmissão por

todo o texto; não há um ponto específico onde ele esteja colocado. Neste final, retomo o

sentido de apontar para a transmissão: poder dizer que está lá, apostar que se encontra lá.

Mas caberá a um outro poder localizá-la e realizá-la da forma que lhe convier. De minha

parte, espero que esta escritura possa fornecer aos professores uma possibilidade de

melhor suportar a impossibilidade de seu ofício.


ANEXO

“OS DESASTRES DE SOFIA”

Clarice Lispector.
OS DESASTRES DE SOFIA

Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão,
e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele.

O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na


garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de
ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo
seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu
adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas,
interrompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:

— Cale-se ou expulso a senhora da sala.

Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão
estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto
do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria
um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera
de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De
noite, antes de dormir, ele me irritava. Eu tinha nove anos e pouco, dura idade como o talo não
quebrado de uma begônia. Eu o espicaçava, e ao conseguir exacerbá-lo sentia na boca, em glória
de martírio, a acidez insuportável da begônia quando é esmagada entre os dentes; e roía as unhas,
exultante. De manhã, ao atravessar os portões da escola, pura como ia com meu café com leite e a
cara lavada, era um choque deparar em carne e osso com o homem que me fizera devanear por
um abismal minuto antes de dormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em
profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura. De manhã — como se eu não tivesse
contado com a existência real daquele que desencadeara meus negros sonhos de amor — de
manhã, diante do homem grande com seu paletó curto, em choque eu era jogada na vergonha, na
perplexidade e na assustadora esperança. A esperança era o meu pecado maior.

Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pela salvação daquele homem. Eu
queria o seu bem, e em resposta ele me odiava. Contundida, eu me tornara o seu demônio e
tormento, símbolo do inferno que devia ser para ele ensinar aquela turma risonha de
desinteressados. Tornara-se um prazer já terrível o de não deixá-lo em paz. O jogo, como sempre,
me fascinava. Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os
ruins já nascem — aqueles ruins que roem as unhas de espanto —, sem saber que obedecia a uma
das coisas que mais acontecem no mundo, eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez
não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modificam, e se não
tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era
apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a
seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem
todas posso contar — uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo
despenhadeiro as minhas altas geleiras. Assim, pois, não falarei mais no sorvedouro que havia em
mim enquanto eu devaneava antes de adormecer. Senão eu mesma terminarei pensando que era
apenas essa macia voragem o que me impelia para ele, esquecendo minha desesperada abnegação.
Eu me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera. Era de se lamentar que tivesse
caído em minhas mãos erradas a tarefa de salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos e
crianças daquele tempo eu era provavelmente a menos indicada. “Essa não é flor que se cheire”,
como dizia nossa empregada. Mas era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo terror
do precipício, eu, por mais inábil que fosse, não pudesse senão tentar ajudá-lo a descer. O
professor tivera a falta de sorte de ter sido logo a mais imprudente quem ficara sozinha com ele
nos seus ermos. Por mais arriscado que fosse o meu lado, eu era obrigada a arrastá-lo para o meu
lado, pois o dele era mortal. Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxa um grande
pela aba do paletó. Ele não olhava para trás, não perguntava o que eu queria, e livrava-se de mim
com um safanão. Eu continuava a puxá-lo pelo paletó, meu único instrumento era a insistência. E
disso tudo ele só percebia que eu lhe rasgava os bolsos. É verdade que nem eu mesma sabia ao
certo o que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eu sentia que meu papel era ruim
e perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida, vida real que tardava, e pior que inábil, eu
também tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só Deus perdoaria o que eu era porque só Ele sabia
do que me fizera e para o quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d’Ele. Ser matéria de Deus era a
minha única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por Ele, mas pela
matéria d’Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. Aceitava a vastidão
do que eu não conhecia e a ela me confiava toda, com segredos de confessionário. Seria para as
escuridões da ignorância que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freira na cela. Freira
alegre e mostruosa, ai de mim. E nem disso eu poderia me vangloriar: na classe todos nós éramos
igualmente mostruosos e suaves, ávida matéria de Deus.

Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seu paletozinho apertado, minhas
gargalhadas só conseguiam fazer com que ele, fingindo a que custo me esquecer, mais contraído
ficasse de tanto autocontrole. A antipatia que esse homem sentia por mim era tão forte que eu me
detestava. Até que meus risos foram definitivamente substituindo minha delicadeza impossível.

Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já me tomara demais.
Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre cambaios,
humilhada por não ser uma flor, e sobretudo torturada por uma infância enorme que eu temia
nunca chegar a um fim — mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a minha única riqueza:
os cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e que por conta
do futuro eu já exercitava sacundindo-os. Estudar eu não estudava, confiava na minha vadiação
sempre bem sucedida e que também ela o professor tomava como mais uma provocação da
menina odiosa. Nisso ele não tinha razão. A verdade é que não me sobrava tempo para estudar.
As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de história que eu
lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza, refinamento
que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia
horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os
com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu
me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava permanentemente ocupada em querer e
não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido
era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha
tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com uma falta de graça que mais parecia o
resultado de um erro de cálculo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era
emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas — na minha pressa eu crescia sem saber para
onde. O fato de um retrato da época me revelar, ao contrário, uma menina bem plantada,
selvagem e suave, com olhos pensativos embaixo da franja pesada, esse retrato real não me
desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica estranha que eu não compreenderia se fosse a sua
mãe. Só muito depois, tendo finalmente me organizado em corpo e sentindo-me
fundamentalmente mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco; antes, porém, eu não
podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar — tomava intuitivo cuidado com o que eu
era, já que eu não sabia o que era, e com vaidade cultivava a integridade da ignorância. Foi pena o
professor não ter chegado a ver aquilo em que quatro anos depois inesperadamente eu me
tornaria: aos treze anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha, ele me teria
visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez dele, passara embaixo um
ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem perceber que eu já não era mais um moleque e
sim uma jovem digna cujo nome não pode mais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. “Que
é?”indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como resposta gritada a notícia de que o
professor morrera naquela madrugada. E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a rua
vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a de uma boneca partida.

Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que contei, misturado e em conjunto,
que escrevi a composição que o professor mandara, ponto de desenlace dessa história e começo
de outras. Ou foi apenas por pressa de acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no
parque.

— Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a composição. Mas usando as
palavras de vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela sineta, já pode ir para o recreio.

O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara
muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e
continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não
tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara,tanto colhera, tanto
começara a vender que terminara ficando muito rico.

Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar
claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era. Ele contara sem
olhar um só vez para mim. É que na falta de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu também
o acossava com o olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simples olhar direto, do qual
ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava bem límpido e
angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E conseguia sempre o mesmo
resultado: com perturbação ele evitava meus olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de
um poder que me amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vez me irritava. Irritava-me que ele
obrigasse uma porcaria de criança a compreender um homem.

Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio. Aquele meu colégio,
alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão
bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas
descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para
pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para
moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombras onde as abelhas faziam mel. Lá
cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tinhamos rolado de cada declive,
intensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos os
troncos havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por
flechas; meninos e meninas ali faziam o seu mel.

Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras escondidas já me chamava.


Apressei-me. Como eu só sabia “usar minhas próprias palavras”, escrever era simples. Apressava-
me também o desejo de ser a primeira a atravessar a sala — o professor terminara por me isolar
em quarentena na última carteira — e entregar-lhe insolente a composição, demonstrando-lhe
assim minha rapidez, qualidade que me parecia essecial para se viver e que, eu tinha certeza, o
professor só podia admirar.
Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos me olhar. Melindrada, sem um
elogio pela minha velocidade, saí pulando para o grande parque.

A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual à que ele contara. Só
que naquela época eu estava começando a “tirar a moral das histórias”, o que, se me santificava,
mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez. Com alguma faceirice, pois, havia acrescentado as
frases finais. Frases que horas depois eu lia e relia para ver o que nelas haveria de tão poderoso a
ponto de enfim ter provocado o homem de um modo como eu própria não conseguira até então.
Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho
árduo era o único mode de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral
oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só
descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi
exatamente isso. Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um
sentimento simples mas que se torna pensamento complicado. Suponho que, arbitrariamente
contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio,
mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É
possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já tivesse
iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo
me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos
ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão.

Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inútil de ter sido a primeira,
ciscando a terra, esperando impaciente pelos meninos que pouco a pouco começaram a surgir da
sala.

No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minha carteira não me lembro o quê,
para mostrar ao caseiro do parque, meu amigo e protetor. Toda molhada de suor, vermelha de um
felicidade irrepresável que se fosse em casa me valeria uns tapas — voei em direção à sala de
aula, atravessei-a correndo, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os cadernos
empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora buscar, e iniciando outra corrida de
volta — só então meu olhar tropeçou no homem.

Sozinho à cátedra: ele me olhava.

Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta. Ele me olhava. Meus
passos, de vagarosos, quase cessaram.

Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochichado da classe, sem a
admiração que minha afoiteza provocava. Tentei sorrir, sentindo que o sangue me sumia do rosto.
Uma gota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era uma pata macia e pesada sobre
mim. Mas se a pata era suave, tolhia-me toda como a de um gato que sem pressa prende o rabo do
rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pela boca, dividindo ao meio o meu sorriso. Apenas
isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava. Comecei a costear a parede de olhos baixos,
prendendo-me toda a meu sorriso, único traço de um rosto que já perdera os contornos. Nunca
havia percebido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passo do medo, eu via o seu
tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e
altas as paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do qual sorrir
fazia parte, eu mal acreditava poder alcançar o âmbito da porta — de onde eu correria, ah como
correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crianças. Além de me concentrar no sorriso,
meu zelo minucioso era o de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à natureza íntima de
um perigo do qual tudo o mais eu desconhecia. Foi num arrepio que me adivinhei de repente
como num espelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançando devagar na ponta dos
pés, e com um sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara a sala em silêncio, e mesmo
os ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de fora do silêncio. Cheguei finalmente à
porta, e o coração imprundente pôs-se a bater alto demais sob o risco de acordar o gigantesco
mundo que dormia.

Foi quando ouvi meu nome.

De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de costas para ele sem coragem de
me voltar. A brisa que vinha pela porta acabou de secar o suor do corpo. Virei-me devagar,
contendo dentro dos punhos cerrados o impulso de correr.

Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.

E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito
grande e muito feio, e que ele era o homem de minha vida. O novo e grande medo. Pequena,
sonâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha fatal liberdade finalmente me levara. Meu
sorriso, tudo o que sobrara de um rosto, também se apagara. Eu era dois pés endurecidos no chão
e um coração que de tão vazio parecia morrer de sede. Alí fiquei, fora do alcance do homem. Meu
coração morria de sede, sim. Meu coração morria de sede.

Calmo como antes de friamente matar ele disse:

— Cheguei mais perto ...

Como é que um homem se vingava?

Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que
nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não
a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte
de compacta tristeza, era também monte de fúria? Mas meu passado era agora tarde demais. Um
arrependimento estóico manteve erecta a minha cabeça. Pela primeira vez a ignorância, que até
então fora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera
há meses. Eu era o único eu.

— ... Pegue o seu caderno..., acrescentou ele.

A surpresa me fez subitamente olhá-lo. Era só isso, então!? O alívio inesperado foi quase
mais chocante que o meu susto anterior. Avancei um passo, estendi a mão guaguejante.
Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.
Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-
me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as
inúmeras pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na
frente de um homem.
Disfarcei olhando teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão ainda estendida porque não sabia
como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso, com os olhos despenteados como se tivesse
acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada? Ou exigir que eu me ajoelhasse e pedisse
perdão. Meu fio de esperança era que ele não soubesse o que eu lhe tinha feito, assim como eu
mesma já não sabia, na verdade eu nunca soubera.
— Como é que lhe veio a idéia do tesouro que se disfarça?
— Que tesouro? — murmurei atoleimada.

Ficamos nos fitando em silêncio.

—Ah, o tesouro! precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa por admitir
qualquer falta, implorando-lhe que meu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de
culpa, que a tortura eterna fosse a minha punição, mas nunca essa vida desconhecia.
— O tesouro que está escondido onde menos se espera. Que é só descobrir. Quem lhe
disse isso?

O homem enloqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? Atônita, sem
compreender, e caminhando de inesperado a inesperado, pressenti no entanto um terreno menos
perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera a me levantar das quedas mesmo quando mancava e
me refiz logo: “foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido o meu erro!”Fraca, e
embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia segurança, eu no entanto já me levantara o
bastante da minha queda para poder sacudir, numa imitação da antiga arrogância, a futura
cabeleira ondulada:

— Ninguém, ora..., respondi mancando. Eu mesma inventei, disse trêmula, mas já


recomeçando a cintilar.

Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar, começava no
entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, de viés.
E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara a me amedrontar, tinha ameaças
novas que não compreendia. Aquele olhar que não me desfitava — e sem cólera... Perplexa, e a
troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o surpreendida. Que é que ele queria de
mim? Ele me constrangia. E seu olhar sem raiva passara a me importunar mais do que a
brutalidade que eu temera. Um medo pequeno, todo frio e suado, foi me tomando. Devagar, para
ele não perceber, recuei as costas até encontrar atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou até
não ter mais para onde ir. Daquela parede onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.

E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Não sei contar.

Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a
vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa
boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga
aberta para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se fazendo na sua cara — o mal-estar já
petrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando
uma crosta — mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia
tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão
de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura
e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um
olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel.
Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo oolho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o
esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola
arrancada da barriga aberta — que estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via
sua apreensão extrema em não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de
súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu
recebesse a entrega dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem. Minhas
costas forçaram desesperadamente a parede, recuei — era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo
demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer.
Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-
vivo... Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. Estavam pedindo
demais de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque eu era forte.
“Mas e eu?”gritei dez anos depois por motivos de amor perdido, “quem virá jamais à minha
fraqueza!”Eu o olhava surpreendida , e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia
cegar os curiosos.
Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:

— Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você... —
ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se
ele fosse o meu coração. — Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.

Foi a primeira vergonha real da minha vida. Abaixei os olhos, sem poder sustentar o olhar
indefeso daquele homem a quem eu enganara.

Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele de algum modo havia
confiado em mim, e que então eu o enganara com a lorota do tesouro. Naquele tempo eu pensava
que tudo o que se inventa é mentira,e somente consciência atormentada do pecado me redimia do
vício. Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta
contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me
corrigindo: eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu não
merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía. Eu
bem quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o,desanimei: faltava-me a
coragem de desiludi-lo. Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, as de meu pai, por
exemplo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi difícil engolir a seco essa alegria
que tão irresponsavelmente eu causara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o prato de
comida sem perceber que lhe haviam dado carne estragada. O sangue me subira ao rosto, agora
tão quente que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo
engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite aquilo tudo se
trasformaria em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.

— Você — repetiu então ele lentamente como se aos poucos estivesse admitindo com
encantamento o que lhe vieira por acaso à boca —, você é uma menina muito engraçada, sabe?
Você é uma doidinha..., disse usando outra vez o sorriso como um menino que dorme com os
sapatos novos. Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. Confiante, deixava-me ver
a sua feiúra, que era a sua parte mais inocente.

Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditar em mim, tive que
engolir a piedade por ele, a vergonha por mim, “tolo!”pudesse eu lhe gritar, “essa história de
tesouro desfarçado foi inventada, é coisa só para menina!”Eu tinha muita consciência de ser uma
criança, o que explicava todos os meus graves defeitos, e pusera tanta fé em um dia crescer — e
aquele homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em mim pela
primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes
mentiras...

... E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suportei um instante mais —
sem ter pegado o caderno corri para o parque, a mão na boca como se me tivessem quebrado os
dentes. Com a mão na boca, horrorizada, eu corria, corria para nunca parar, a prece profunda não
é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais — eu corria, eu corria muito
espantada.

Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A


necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu
fizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do
crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e
destruia meu amor por ele e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também
era eu. Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem
candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência... Com a mão
apertando a boca, eu corria pela poeira do parque.

Quando enfim me dei conta de estar bem longe da órbita do professor, sofreei exausta a
corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no tronco de uma árvore, respirando alto,
respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos fechados, sentindo na boca o amargo empoeirado do
tronco, os dedos mecanicamente passando e repassando pelo duro entalhe de um coração com
flecha. E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco mais: estaria ele
querendo dizer que... que eu era um tesouro disfarçado? O tesouro onde menos se espera...Oh
não, não , coitadinho dele, coitado daquele rei da Criação, de tal modo precisara... de quê? de que
precisara ele?... que até eu me transformara em tesouro.

Eu ainda tinha muito mais corrida dentro de mim, forcei a garganta seca a recuperar o
fôlego, e empurrando com raiva o tronco da árvore recomecei a correr em direção ao fim do
mundo.

Mais ainda não divisira o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando
mais vagarosos, excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por cançaso, mas eu
sucumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram
passos um pouco deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma
doçura toda estanha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal
em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de
cançaso abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe
talvez lembrasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás. “Você
é uma menina muito engraçada, você é um doidinha”, dissera ele. Era como um amor.

Não , eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito séria. Não, eu não era
doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, por Deus, eu não
era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se
nasce e com que se rói a vida — só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu
curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância
com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitável — que
podia eu fazer? eu já sabia que eu era inevitável. Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que
aquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a
niguém —através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem:
tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos
chegavem a alcançar. Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o
impuro era a nossa mais profunda nostalgia. Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera,
com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendi eu tudo isso? Não. E não
sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com aterrorizado
fascínio o mundo — e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo
eu vi - assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O
que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura , entendido pela minha
ignorância. Ignorância que ali em pé — numa solidão sem dor, não menor que a das árvores — eu
recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade imcompreensível. Ali estava eu, a menina esperta
demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em
mim não prestava era o meu tesouro.

Como uma virgem anunciada, sim. Por ele me ter permitido que eu fizesse enfim sorrir,
por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Criação: fizera
de mim a mulher do rei da Criação. Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera
arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão
dura, e para que eu nascera sem nojo da dor. Para que te servem essas unhas longas? Para te
arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que
te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais,
meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te
servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto,
tanto — uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem
um no outro para amar e dormir.

... E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser
amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama.
Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de
meu coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de
meu grito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVICH, Fanny. O Professor não duvida! Duvida? São Paulo, Summus,1990.


ALMEIDA, Guido de. O Professor Que Não Ensina. São Paulo, Summus, 1986.
ALMEIDA, José R. P. A Instrução Pública no Brasil (1500-1889), São Paulo, Epuc, Brasília,
INEP/MEC, 1989.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família, 2ª Ed., Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1981.
AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação - do pictograma ao enunciado, Rio de
Janeiro, Imago editora, 1979.
AZEVEDO, Fernando & outros. A Reconstrucção Educacional no Brasil - Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1932.
BADINTER, Elizabeth. Um Amor Conquistado: O mito do amor materno, 6ª Ed., Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1989.
BADIOU, Alain. A Respeito das Verdades. In: JORNAL DO PSICÓLOGO, CRP 04, Belo
Horizonte, n.43, setembro-outubro 1993.
BADIOU, Alain. Para uma Nova Teoria do Sujeito, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.
BARTHES, Roland. Escritores, intelectuais, professores In: BARTHES, R. O Rumor da
Língua, Lisboa, Edições 70,1987.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves,
1994.
BARTHES, Roland. Que é a Crítica In: COELHO, Eduardo Prado (org) Estruturalismo -
antologia de textos teóricos, São Paulo, Livraria Martins Fontes Ed.,1967.
BARTHES, Roland. Sobre a Leitura In: BARTHES, R. O Rumor da Língua, Lisboa, Ediçoes
70, 1987
BELLEMIN-NOËL, Jean. Psicanálise e Literatura, São Paulo, Ed. Cultrix, 1983.
BLOOM, Allan. Amor & Amizade, São Paulo, Mandarim, 1996.
BORGES, Fábio. Da Transmissão de um Dever ao Dever de uma Transmissão, In: FORBES,
Jorge (org) A Escola de Lacan: a formação do psicanalista e a transmissão da
psicanálise, Campinas, Papirus, 1992.
BORGES, Fábio. Transmissão: Uma Questão ? In: Reverso, Publicação do Círculo Psicanalítico
de Minas Gerais, Nº 28, 1987.
CERTEAU, Michel De. Jouer Avec le Feu, In: CIFALI, Mireille. Freud Pédagogue?
Psychanalyse et éducationn, Paris, InterÉditions, 1982.
COMÉNIO, João Amos. Didáctica Magna, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª ed., 1985.
CONDORCET. Instrução Pública e Organização do Ensino, Porto, Livraria Educação
Nacional LTDA., 1943.
COSTA, Dóris Anita F. Fracasso Escolar: Diferença ou Deficiência, Porto Alegre, Kuarup,
1993.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1989.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 2ª Edição, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1992.
DESCARTES, R. Discurso do Método, Rio de Janeiro, Ediouro, 1990.
DOMINGUES, Ivan. O Problema da Verdade, A Questão do Sujeito e a Serpente de Valéry. In:
Kriterion, Revista de Filosofia do Dept. de Filosofia da Fac. de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, Belo Horizonte, N° 88, Agosto a Dezembro de 1993.
ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, São Paulo, Companhia das Letras,
1994.
FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino-Português, Rio de Janeiro, Ministério da Educação
e Cultura, 1956.
FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de
Janeiro, 2 ed., Nova Fronteira, 1986.
FORBES, Jorge. Ser Analista, In: Capítulos de Psicanálise, São Paulo, Nº 18, Biblioteca
Freudina Brasileira, maio, 1991.
FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1991.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - O cuidado de si, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1985.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - A vontade de saber, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1984.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - O uso dos prazeres, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1984.
FREUD, S. A Censura dos Sonhos, In: FREUD, S. Conferências Introdutórias Sobre
Psicanálise, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol XV,
Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. A Dissecção da Personalidade Psíquica, In: FREUD, S. Novas Conferências
Introdutórias Sobre Psicanálise, ESB Vol. XXII Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos, ESB das Obras Completas de S. Freud, Vol V, Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1972.
FREUD, S. Algumas Reflexões Sobre a Psicologia do Escolar, Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de S. Freud, Vol XIII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. Análise terminável e interminável, Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de S. Freud, vol XXIII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. Correspondance avec le Pasteur Pfister, Paris, Éditions Gallimard, 1991.
FREUD, S. O Interesse Científico da Psicanálise, Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de S. Freud, Vol XIII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S.
Freud, vol XXI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. Observações sobre o Amor Transferencial (Novas Recomendações Sobre a Técnica
da Psicanálise III) In: FREUD, S. Artigos Sobre Técnica, Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud, Vol XII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1972.
FREUD, S. Prefácio a Juventude desorientada de August Aichorn, Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de S. Freud, Vol. XIX, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor, Edição Standard
Brasileira da Obras Completas de S. Freud, Vol. XI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1970.
FREUD, S. Um Estudo Autobiográfico, ESB das Obras Completas de S. Freud, vol XX, Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. Uma Dificuldade No Caminho da Psicanálise, ESB das Obras Completas de S.
Freud, Vol XVII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
GARCIA, Célio. Psicanálise, Política, Lógica,São Paulo : Editora Escuta, 1993.
GARCIA-ROZA, Luiz A. Psicologia um espaço de dispersão do saber. In: RÁDICE, revista de
psicologia, Ano 1, n°4, pp.20-26
GUILLEN, M. Pontes Para o Infinito, Lisboa, Gradiva,1987
HERMANN, Ulrich. Educación y formación durante la Ilustración en Alemania, in: DEBESSE,
M. e MIALARET, G. História da Pedagogia, Barcelona, Oikos Tau, 1974.
HILL, Cristopher. O mundo de Ponta Cabeça: Idéias Radicais Durante a Revolução Inglesa
de 1640, São Paulo, Cia da Letras, 1987.
JAEGER, Werner. A Paideia, A formação do homem grego, 3ª edição, São Paulo, Martins
Fontes, 1995.
JULIA, Dominique. Educación y ilustración en Francia. Los cambios del sistema educativo en
Francia en el siglo XVIII In: DEBESSE, M. e MIALARET, G. História da Pedagogia,
Barcelona, Oikos Tau, 1974.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico, Rio de Janeiro, Ed.
Forense Universitária, 1991.
KUPFER, Maria C. Freud e a Educação: O mestre do impossível, São Paulo, Ed. Scipione,
1989.
LACAN, J. A instância da letra no Inconsciente ou a razão desde Freud, In: LACAN, J. Escritos,
São Paulo, Ed. Perspectiva,1984.
LACAN, J. Función y Campo de la Palabra y del Lenguaje en Psicoanálisis In: LACAN, J.
Escritos, México, Siglo Veintiuno Editores, 1984.
LACAN, J. La Cosa Freudiana o Sentido del Retorno a Freud en Psicoanálisis" In: LACAN, J.
Escritos, México, Siglo Veintiuno Editores, 12 ed, 1984.
LACAN, J. O Seminário - Livro 7, A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1988.
LACAN, J. O Seminário - Livro 8, A Transferência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. O Seminário - Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 2ª ed.,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. Variantes do Tratamento Padrão, Trad. Luiz S. D. Forbes, São Paulo, Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1990.
LACAN, Jacques. Proposição Sobre o Psicanalista da Escola, Letra Freudiana, Escola,
Psicanálise e Transmissão: Documentos Para uma Escola, Rio de Janeiro, Ano I nº O, 1987.
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo, Maritns Fontes,
1993.
LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia, São Paulo, Mestre Jou, 1974.
LIMA, L. O. Mutações em Educação segundo McLuhan, Petrópolis, Ed Vozes, 2ª ed., 1976.
LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira, São Paulo, Ed. Siciliano, 1992.
LOPES, Eliane M. S.T. Da Sagrada Missão Pedagógica, Belo Horizonte, Faculdade de
Educação da UFMG, 1991.
MANNONI, Maud Um Saber que não se sabe; a experiência analítica, Campinas, SP, Papirus,
1989.
MÉDICI, A. A Educação Nova, Porto, Edições Rés Limitada,1976.
MENDES, Oscar A Vida de Shakespeare na Vida do seu Tempo,In: SHAKESPEARE, William.
Obra Completa de W. Shakespeare, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguliar, 1989.
MILLER, Jacques-Alain. El concepto de Escuela In: Cuardernillos de Pasador, Buenos Aires,
1992.
MILLOT, Catherine. Freud Antipedagogo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
NOVAES, M.E. Professora Primária - Mestra ou Tia, São Paulo, Cortez Editora, 1984.
NÓVOA, Antonio. O passado e o presente dos professores In: NÓVOA, A. (org) Profissão
Professor, Portugual, Porto Editora, 1991.
OLIVEIRA, Maria Rita N. Sales. A Reconstrução da Didática: Elementos Teóricos-
Metodológicos, Campinas, SP, Papirus, 1992.
ORLANDI, O. Teoria e Prática do Amor à Criança : Introdução à Pediatria Social no
Brasil, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1985.
PEREIRA, Lusia R. De Donzela Angelical e Esposa Dedicada ... A Profissional da Educação -
a presença do discurso religioso na formação da professora, São Paulo: Fauldade de
Educação da USP, 1996 (tese de doutorado).
PETERFALVI, Jean-Michel. Introdução à Psicolingüistica, Ed Cultrix, São Paulo, 1970.
PLATÃO. O Banquete, In: PLATÃO. Diálogos / Platão, São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1983.
(Os Pensadores)
RANBION, P. & DREYFUS, H. Michel Foucault - Uma Trajetória Filosófica Para Além do
Estruturalismo e da Hemeneutica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. As Confissões de Jean-Jacques Rousseau, Rio de Janeiro, Edições
de Ouro, 1965.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emile e Sophie ou Os solitários, Porto Alegre, Editora Paraula,
1994.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação, Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil
Ltda,1992.
SANTO AGOSTINHO. Confissões, Petrópolis, Editora Vozes, 1992.
SANTO AGOSTINHO. De Magistro,Universidade Federal do R. G. Sul - Instituto de Filosofia,
1956.
SANTO TOMÁS DE AQUINO, De Magistro, La Scuola Editrice, Brescia.
SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral, São Paulo, 20ª Ed., Editora Cultrix, 1995.
SAUSSURE, Ferdinand De. As Palavras sob as Palavras, In: Textos Selecionados de F.
Saussure, R. Jakobson, Louis T. Hjelmslev, N. Chomsky, São Paulo, Abril Cultural,
1985. (Os Pensadores)
SOLER, Colette. Jean-Jacques Rousseau y las Mujeres, In: SOLER, Colette. Estudios Sobre Las
Psicoses, Buenos Aires, Manantial, 1993.
VEGER, J. As Universidades na Idade Média, São Paulo, UnESP, 1990.
VOGT, Carlos. Vida e Obra de F. Saussure, R. Jakobson, Louis T. Hjelmslev, N. Chomsky, In:
Textos Selecionados de F. Saussure, R. Jakobson, Louis T. Hjelmslev, N. Chomsky, São
Paulo, Abril Cultural, 1985. (Os Pensadores)
BIBLIOGRAFIA

ABRAMOVICH, Fanny. O Professor não duvida! Duvida? São Paulo, Summus,1990.


ALMEIDA, Guido de. O Professor Que Não Ensina. São Paulo, Summus, 1986.
ALMEIDA, José R. P. A Instrução Pública no Brasil (1500-1889), São Paulo, Epuc, Brasília,
INEP/MEC, 1989.
ARIÈS, Philippe. História da Vida Privada, vol III, Da Renascença ao século das luzes, São
Paulo, Cia. das Letras, 1991.
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família, 2ª Ed., Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1981.
AULAGNIER, Piera. A Violência da Interpretação - do pictograma ao enunciado, Rio de
Janeiro, Imago editora, 1979.
AZEVEDO, Fernando & outros. A Reconstrucção Educacional no Brasil - Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1932.
BADINTER, Elizabeth. Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno, 6ª Ed., Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1989.
BADIOU, Alain. A Respeito das Verdades. In: JORNAL DO PSICÓLOGO, CRP 04, Belo
Horizonte, n.43, setembro-outubro 1993.
BADIOU, Alain. Conférences en Argentine et au Chili, octobre 1994. SNR.
BADIOU, Alain. D’un Désastre Obscur (Droit, État, Politique), Paris, Editions de l’Áube,
1990.
BADIOU, Alain. Para uma Nova Teoria do Sujeito, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994.
BADIOU, Alain. Poesia Pensamento, Filosofia, In: Plural, Caderno de Debates, Belo Horizonte,
FUMEC, Ano III, março 1994.
BARTHES, Roland. Escritores, Intelectuais, Professores e Outros Ensaios, Lisboa, Editorial
Presença Ltda, 1975.
BARTHES, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso, Rio de Janeiro, Francisco Alves,
1994.
BARTHES, Roland. O Rumor da Língua, Lisboa, Edições 70, 1987.
BELLEMIN-NOËL, Jean. Psicanálise e Literatura, São Paulo, Ed. Cultrix, 1983.
BIRMAN, Joel (org) Percuros na História da Psicanálise, Rio de Janeiro, Ed. Taurus,1988.
BLOOM, Allan. Amor & Amizade, São Paulo, Mandarim, 1996.
BOONS, Marie- Claire. Du littoral au littéral, In: Littoral, Paris, n 25.
BORGES, Fábio. Transmissão: Uma Questão ? In: Reverso, Publicação do Círculo Psicanalítico
de Minas Gerais, Nº 28, 1987.
BRANCO, Lúcia C. & BRANDÃO, Ruth S. Literaterras - As bordas do corpo literário, São
Paulo, Annablume,1995.
BURKE, Peter. A Escrita da História - novas perspectivas, São Paulo, Editora UNESP, 1992.
CARDOSO, Sérgio et Alli. Os Sentidos da Paixão, São Paulo,Cia. das Letras, 1987.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1982.
CIFALI, Mireille. Freud Pédagogue? Psychanalyse et éducation, Paris, InterÉditions, 1982.
CALPARÈDE, Edoard. A Escola Sob Medida, Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura S/A,
1959.
COELHO, Eduardo Prado (org). Estruturalismo - antologia de textos teóricos, São Paulo,
Livraria Martins Fontes Ed.,1967.
COMÉNIO, João Amos. Didática Magna, São Paulo, Organizações Simões, 1954.
COMENIUS, João Amos. Didáctica Magna, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 3ª ed.,
1985.
CONDORCET. Instrução Pública e Organização do Ensino, Porto, Livraria Educação
Nacional LTDA., 1943.
COSTA, Doris A. F. Fracasso Escolar: Diferença ou Deficiência, Porto Alegre, Kuarup, 1993.
COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1989.
COUSINET, Roger. A Educação Nova, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1959.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 2ª Edição, Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1992.
CUNHA, Maria Isabel da. O Bom Professor e sua Prática, Campinas, Papirus, 1989.
DEBESSE, M. e MIALARET, G. História da Pedagogia, Barcelona, Oikos Tau, 1974.
DESCARTES, R. Discurso do Método, Rio de Janeiro, Ediouro, 1990.
DOMINGUES, Ivan. O Problema da Verdade, A Questão do Sujeito e a Serpente de Valéry. In:
Kriterion, Revista de Filosofia do Dept. de Filosofia da Fac. de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, Belo Horizonte, N° 88, Agosto a Dezembro de 1993.
DOR, J. A-Cientificidade da Psicanálise - a alienação da psicanálise, Porto Alegre, Artes
Médicas, 1993.
EBY, Frederick. História da Educação Moderna, Rio de Janeiro, Editora Globo, 1962.
ECO, Umberto. Seis Passeios pelos Bosques da Ficção, São Paulo, Companhia das Letras,
1994.
FAIN,M.- COURNUT, J. - ENRIQUES, E. - CIFALI, M. Les Trois Métiers Impossibles, Paris,
Société D’Édition “Les Belles Lettres”, 1987.
FARIA, Ernesto. Dicionário Escolar Latino-Português, Rio de Janeiro, Ministério da Educação
e Cultura, 1956.
FERACINE, Luiz. O Professor Como Agente de Mudança Social, São Paulo, E.P.U.,1990.
FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, Rio de
Janeiro, 2 ed., Nova Fronteira, 1986.
FORBES, Jorge (org) A Escola de Lacan: a formação do psicanalista e a transmissão da
psicanálise, Campinas, Papirus, 1992.
FORBES, Jorge. Ser Analista, In: Capítulos de Psicanálise, São Paulo, N 18, Biblioteca
Freudina Brasileira, maio, 1991.
FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas - uma arqueologia das ciências humanas, São
Paulo, Martins Fontes, 1987.
FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia, Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1991.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - O cuidado de si, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1985.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - A vontade de saber, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1984.
FOUCAULT, M. História da Sexualidade - O uso dos prazeres, Rio de Janeiro, Edições Graal,
1984.
FREUD, Anna. Infância Normal e Patológica, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1980.
FREUD, S. Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna, Edição Standard
Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Vol IX, Rio de Janeiro, Imago Editora,
1976.
FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos, ESB das Obras Completas de S. Freud, Vol V, Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1972.
FREUD, S. Algumas Reflexões Sobre a Psicologia do Escolar, Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de S. Freud, Vol XIII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. Artigos Sobre Técnica, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud, Vol XII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1972.
FREUD, S. Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise, Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud, Vol XV e XVI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. Correspondance avec le Pasteur Pfister, Paris, Éditions Gallimard, 1991.
FREUD, S. Inibições, Sintomas e Ansiedade, Ed. Standard Brasileira das Obras Completas de
S. Freud, vol XX, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. Novas Conferências Introdutórias Sobre Psicanálise, ESB Vol. XXII Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S.
Freud, Vol. XXI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. O Interesse Científico da Psicanálise, Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de S. Freud, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S.
Freud, Vol. XXI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. Prefácio a Juventude desorientada de August Aichorn, Edição Standard Brasileira
das Obras Completas de S. Freud, Vol. XIX, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD, S. Sobre a Tendência Universal à Depreciação na Esfera do Amor, Edição Standard
Brasileira da Obras Completas de S. Freud, Vol. XI, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1970.
FREUD, S. Um Estudo Autobiográfico, ESB das Obras Completas de S. Freud, vol XX, Rio de
Janeiro, Imago Editora, 1974.
FREUD, S. Uma Dificuldade No Caminho da Psicanálise, ESB das Obras Completas de S.
Freud, Vol XVII, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.
FREUD,S. Análise terminável e interminável, Edição Standard Brasileira das Obras Completas
de S. Freud, vol XXIII, Rio de Janeiro, Imago Editora 1976.
GARCIA, Célio. Psicanálise, Política, Lógica,São Paulo, Editora Escuta, 1993.
GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e Repetição em Psicanálise - uma introdução à teoria das
pulsões, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1986.
GARCIA-ROZA, Luiz A. Psicologia um espaço de dispersão do saber. In: RÁDICE, revista de
psicologia, Ano 1, n°4, pp.20-26.
GUILLEN, M. Pontes Para o Infinito, Lisboa, Gradiva,1987.
HERSCHMANN, M. M. & PEREIRA, Carlos A. M. A Invenção do Brasil Moderno, Rio de
Janeiro, Rocco, 1994.
HILGARD, E. R. Teorias da Aprendizagem, São Paulo, EPU, 1975.
HILL, Cristopher. O mundo de Ponta Cabeça: Idéias Radicais Durante a Revolução Inglesa
de 1640, São Paulo, Cia da Letras, 1987.
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976.
HUBERT, René. História da Pedagogia, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1976.
JAEGER, Werner A Paideia, A formação do homem grego, 3ª edição, São Paulo, Martins
Fontes, 1995.
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico, Rio de Janeiro, Ed.
Forense Universitária, 1991.
KUPFER, Maria C. Freud e a Educação: O mestre do impossível, São Paulo, Ed. Scipione,
1989.
LACAN, J. Escritos, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1984.
LACAN, J. Escritos, vol I e II, México, Siglo Veintiuno Editores,1984.
LACAN, J. Hamlet por Lacan, Campinas, Editora Escuta, 1986.
LACAN, J. Intervenciones y Textos, vol 1 e 2, Buenos Aires, Manantial, 1991.
LACAN, J. Lituraterre, In: Ornicar?, Paris, numéro 41, XII Anné, Avril-Juin 1987.
LACAN, J. O Seminário - inédito, ... Ou Pire.
LACAN, J. O Seminário - inédito, O Saber do Psicanalista.
LACAN, J. O Seminário - Livro 1, Os Escritos Técnicos de Freud, Rio de Janeiro, Zahar
Editores, 1979.
LACAN, J. O Seminário - Livro 2, O Eu na Teoria de Freud e na Técnica da Psicanálise, Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1987.
LACAN, J. O Seminário - Livro 7, A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
1988.
LACAN, J. O Seminário - Livro 8, A Transferência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
LACAN, J. O Seminário - Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 2ª ed.,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, J. Variantes do Tratamento Padrão, Trad. Luiz S. D. Forbes, São Paulo, Biblioteca
Freudiana Brasileira, 1990.
LACAN, Jacques. Proposição Sobre o Psicanalista da Escola, Letra Freudiana, Escola,
Psicanálise e Transmissão: Documentos Para uma Escola, Rio de Janeiro, Ano I nº O, 1987.
LAJOLO, Marisa. Do Mundo da Leitura Para a Leitura do Mundo, São Paulo, Editora Ática,
1994.
LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo, Maritns Fontes,
1993.
LARROYO, Francisco. História Geral da Pedagogia, São Paulo, Mestre Jou, 1974.
LIMA, L. O. Mutações em Educação segundo McLuhan, Petrópolis, Ed Vozes, 2ª ed., 1976.
LISPECTOR, Clarice. A Legião Estrangeira, São Paulo, Ed. Siciliano, 1992.
LOPES, Eliane M. S. T. As Fascinantes, Deliciosas & Arriscosas Relações Entre a História
da Educação e a Literatura, mimeo.
LOPES, Eliane M. S. T. Concepções Católicas de Mestre - Anotações de uma pesquisa,
mimeo.
LOPES, Eliane M. S.T. Da Sagrada Missão Pedagógica, Belo Horizonte, Faculdade de
Educação da UFMG, 1991.
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber - A trajetória da arqueologia de Michel Foucault, Rio
de Janeiro, Edições Graal, 1981.
MANNONI, Maud Um Saber que não se sabe; a experiência analítica, Campinas, SP, Papirus,
1989.
MAYER, Frederick. História do Pensamento Educacional, Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
MÉDICI, A.. A Educação Nova, Porto, Edições Rés Limitada,1976.
MILER, Gérard.(org) Lacan, São Paulo, Jorge Zahar Editor, 1989.
MILLER, Jacques-Alain. El concepto de Escuela In: Cuardernillos de Pasador, Buenos Aires,
1992.
MILLER, Jacques-Alain. Remarques et questions In: Analytica: Lacan et la chose japonaise,
Paris, Navarin, Vol. 55, 1988.
MILLOT, Catherine. Freud Antipedagogo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992.
MILNER, Jean-Claude. O Amor da Língua, Porto Alegre, Artes Médicas, 1987.
MOLL, Jeanne. La Pédagogie Psychanalytique - origine et histoire, Paris, Bordas, 1989.
MONROE, Paul. História da Educação, 9ª Ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1970.
NOVAES, Adauto. Artepensamento, São Paulo, Cia. das Letras, 1994.
NOVAES, Adauto (org) Ética, São Paulo, Cia. das Letras, 1992.
NOVAES, Adauto (org) Tempo e História, São Paulo, Cia. das Letras, 1992.
NOVAES, M.E. Professora Primária - Mestra ou Tia, São Paulo, Cortez Editora, 1984.
NÓVOA, A. (org) Profissão Professor, Portugual, Porto Editora, 1991.
OLIVEIRA, Maria Rita N. Sales. A Reconstrução da Didática: Elementos Teóricos-
Metodológicos, Campinas, SP, Papirus, 1992.
ORLANDI, O. Teoria e Prática do Amor à Criança : Introdução à Pediatria Social no
Brasil, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1985.
PEIXOTO, Afranio. Noções de História da Educação, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1933.
PEREIRA, Lusia R. De Donzela Angelical e Esposa Dedicada ... A Profissional da Educação -
a presença do discurso religioso na formação da professora, São Paulo: Fauldade de
Educação da USP, 1996 (tese de doutorado).
PETERFALVI, Jean-Michel. Introdução à Psicolingüistica, Ed Cultrix, São Paulo, 1970.
PLATÃO. Diálogos / Platão, São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
PRÉVOT, J. L’utopie éducative Coménius, Paris, Éditions Belin, 1981.
QUINET, Antonio. As 4 + 1 Condições da Análise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.
RANBINOW, P. & DREYFUS, H. Michel Foucault - Uma Trajetória para além do
Estruturalismo e da Hermeneutica, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
RAJCHMAN, John. Eros e Verdade - Lacan, Foucault e a questão da ética, Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1993.
RODRIGUES Jr., José F. A Taxonomia de Objetivos Educacionais, Brasília, Editora
UnB,1994.
ROSA, M. Glória. A História da Educação através dos Textos, São Paulo, Cultrix, 1978.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. As Confissões de Jean-Jacques Rousseau, Rio de Janeiro, Edições
de Ouro, 1965.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emile e Sophie ou Os solitários, Porto Alegre, Editora Paraula,
1994.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação, Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil
Ltda,1992.
SANTO AGOSTINHO. Confissões, Petrópolis, Editora Vozes, 1992.
SANTO AGOSTINHO. De Magistro,Universidade Federal do R. G. Sul - Instituto de Filosofia,
1956.
SANTO TOMÁS DE AQUINO, De Magistro, La Scuola Editrice, Brescia.
SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral, São Paulo, 20ª Ed., Editora Cultrix, 1995.
SAUSSURE, Ferdinand De. As Palavras sob as Palavras, In: Textos Selecionados de F.
Saussure, R. Jakobson, Louis T. Hjelmslev, N. Chomsky, São Paulo, Abril Cultural,
1985. (Os Pensadores)
SHAKESPEARE, William. Obra Completa de W. Shakespeare, Rio de Janeiro, Editora Nova
Aguliar, 1989.
SILVESTRE, Michel. Amanhã, a Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1991.
SOLER, Colette. Estudios Sobre Las Psicoses, Buenos Aires, Manantial, 1993.
VEGER, J. As Universidades na Idade Média, São Paulo, UnESP, 1990.
VOGT, Carlos. Vida e Obra de F. Saussure, R. Jakobson, Louis T. Hjelmslev, N. Chomsky, In:
Textos Selecionados de F. Saussure, R. Jakobson, Louis T. Hjelmslev, N. Chomsky, São
Paulo, Abril Cultural, 1985. (Os Pensadores)

You might also like