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REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 22
junho / dezembro - 2010

volume 22
julho / dezembro - 2010
edição especial – música popular
Realização Patrocínio

ISSN: 1517-7599 UFMG - Escola de Música - Pós Graduação


REVISTA ACADÊMICA DE MÚSICA

volume 22
julho/dezembro - 2010

ISSN: 1517-7599
Editorial

Este volume 22 de Per Musi - Revista Acadêmica de Música, juntamente com o volume 23, são volumes temáticos de-
dicados ao estudo da música popular, uma das sub-áreas que mais tem crescido no meio acadêmico brasileiro, inalmente
reletindo uma das mais fortes vocações musicais deste país. O grande número de textos selecionados – 38, incluindo três
partituras inéditas - permitiu alguns agrupamentos temáticos (como o hibridismo na música popular brasileira), manifes-
tações tradicionais (como o lundu, choro, samba, canções, bossa-nova, baião, repente, ragtime, jazz moderno e musicais)
ou mais recentes (como o axé, o mangue beat, música infantil e a nova música instrumental brasileira) e personalidades
referenciais (como Ernesto Nazareth, Pixinguinha, K-Ximbinho, Gnattali, Guerra-Peixe, Tom Jobim, Hermeto Pascoal,
Baden Powell, Egberto Gismonti, Victor Assis Brasil e o grupo UAKTI).

O renomado etnomusicólogo inglês Philip Tagg aceitou o convite de contribuir com dois artigos. Neste volume, nos traz
um inusitado e fascinante estudo em torno da canção Yes we can, que embalou a campanha presidencial norte-america-
na de Barack Obama. A partir de seu original sistema de análise da música popular, ele compara materiais harmônicos,
melódicos, rítmicos, de instrumentação e da relação texto-música em canções de ícones como Bob Dylan, Beatles, Bob
Marley e Dixie Chicks, entre outros, para estabelecer ligações entre estilo, política e poder.

A partir da história de vida de Hermeto Pascoal, Fausto Borém e Fabiano Araújo explicam o desenvolvimento das lin-
guagens harmônicas na música eclética do genial “bruxo” da música brasileira instrumental.

Luiz Costa-Lima Neto analisa uma faceta pouco conhecida do multi-instrumentista, compositor e arranjador Hermeto
Pascoal, qual seja a multiplicidade de recursos vocais e vocal-instrumentais que utiliza para dar vida à inquietude e
originalidade de suas ideias musicais.

Fausto borém e Maurício Freire Garcia revelam o entrelaçamento dos aspetos musicais e religiosos na obra-prima
Cannon para lauta, humming na lauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal na interpretação do próprio compositor,
a partir da análise melódico-harmônica da partitura restaurada, das práticas de performance e relações texto-música
percebidas na gravação, e das experiências místico-religiosas na vida do compositor-intérprete.

A partitura de performance de Cannon para lauta, humming na lauta e sons pré-gravados de Hermeto Pascoal, trans-
crita e editada por Fausto Borém a partir de sua gravação e desenho artístico de Ruy Pereira no disco Slaves Mass (1977)
é aqui apresentada integralmente pela primeira vez.

A partir dos textos de Vinícius de Moraes e José da Veiga Oliveira, ambos ligados ao emblemático LP Canção do Amor
Demais, Liliana Harb Bollos discute as fronteiras entre o popular e o erudito na Bossa Nova.

Silvio Augusto Merhy discute o embate entre letra, melodia e arranjo na canção O morro não tem vez de Antonio Carlos
Jobim e Vinícius de Moraes e seus desdobramentos frente à divisão geográica e social do Rio de Janeiro: favelas e Zona
Sul, escolas de samba e Bossa Nova.

Carlos de Lemos Almada nos traz uma inovadora abordagem analítica ao adaptar procedimentos schenkerianos para
compreender a música popular, revelando estruturas harmônicas, melódicas e intervalares que dão unidade a Chovendo
na roseira, obra-prima de Tom Jobim.

Vera Lúcia Rocha Pedron Peres aborda a multiplicidade e o pós-modernismo na obra Rimsky (quinteto para cordas e
piano) do compositor Gilberto Mendes, revelando sua intertextualidade e justaposição de estilos em que convivem refe-
rências muito díspares da música erudita (atonalismo, serialismo, cadenza) e música popular (música de cinema, rock, fox
trot, ritmos nordestinos, bossa nova, tango), além de citações que homenageiam o inspirador, Rimsky-Korsakov.
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas aborda um dos aspectos mais marcantes do ritmo na música popular, a síncopa, desde
o seu valor nos antigos tratados eruditos, suas relações com alturas, harmonia e ornamentação até sua presença nos
“modernos” da música popular, ilustrando com trechos de Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Tom Jobim, Hermeto Pascoal,
Edu Lobo e Gilberto Gil.

Para reletir sobre a relação entre música, teatro, rádio e infância, Eugênio Tadeu Pereira, Cristiane da Silveira Lima,
Gabriel Murilo Resende e Reginaldo Santos falam de sua experiência com o programa experimental “Serelepe – uma
pitada de música infantil” da Rádio UFMG Educativa.

Maura Penna discute o processo de autonomia dos jovens em relação aos seus pais, sob o prisma da sociologia e da
psicologia, tendo como pretexto canções populares brasileiras das duplas Roberto de Carvalho e Rita Lee, Marina Lima e
Antônio Cícero e Fábio Jr.

Jorge Luiz Schroeder apresenta seu conceito de corporalidade musical a partir da performance de dois dos mais reco-
nhecidos violonistas da música instrumental brasileira: Baden Powell e Egberto Gismonti.

Sob o ponto de vista dos estudos culturais, Álvaro Neder discute conceitos e ferramentas de análise aplicáveis à música
popular (e à música popular brasileira, em particular), visando airmar a música popular como área autônoma, com de-
mandas teóricas e metodológicas próprias e irredutíveis àquelas originadas nos campos erudito e tradicional.

A partir de pesquisa de campo realizada em Sergipe e Pernambuco, Yukio Agerkop discute o fenômeno do mangue beat na
expressão musical regional e híbrida de quatro grupos: Sulanca, Naurêa, Maria Scombona e Chico Science e Nação Zumbi.

Tocando em um tema normalmente evitado na academia, Armando Alexandre Castro propõe uma visão alternativa do
gênero Axé music, tendo como subsídio a tabulação de dados coletados em Salvador, epicentro de um dos gêneros mais
populares e rentáveis da música popular brasileira.

Cruzando as visões dos estudos literários, das artes cênicas e dos estudos em performance, Conrado Vito Rodrigues
Falbo discorre sobre perspectivas teóricas para a análise da palavra cantada no âmbito da música popular.

Fausto Borém entrevista Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza sobre o Projeto Teatro Musical, gê-
nero em franco crescimento no Brasil que integra as áreas artísticas do teatro, da dança e da música com tradições
populares e eruditas.

Lembramos que todos os conteúdos e capas de Per Musi, desde janeiro de 2000 até o presente volume estão dis-
poníveis para download ou impressão gratuitamente no site de Per Musi Online, no endereço www.musica.ufmg.br/
permusi. As versões impressas de quase todos os números da revista ainda podem ser adquiridas através do e-mail
mestrado@musica.ufmg.br.

Fausto Borém
Fundador e Editor Cientíico de Per Musi
PER MUSI - Revista Acadêmica de Música (ISSN 1517-7599) é um espaço democrático para a relexão intelectual na área de música, onde a diversidade
e o debate são bem-vindos. As idéias aqui expressas não reletem a opinião da Comissão Editorial ou do Conselho Consultivo. PER MUSI está indexada nas
bases RILM Abstracts of Music, Literature The Music Index e Bibliograia da Música Brasileira da ABM (Academia Brasileira de Música).

Fundador e Editor Cientíico Revisão Geral


Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte) Fausto Borém
Maria Inêz Lucas Machado
Corpo Editorial Internacional
Aaron Williamon (Royal College of Music, Londres, Inglaterra) Universidade Federal de Minas Gerais
Anthony Seeger (University of California, Los Angeles, EUA) Reitor Clélio Campolina Diniz
Eric Clarke (Oxford University, Oxford, Inglaterra) Vice-Reitora Rocksane de Carvalho Norton
Denise Pelusch (University of Colorado, Boulder, EUA) Pró-Reitor de Pós-Graduação Ricardo Santiago Gomez
Florian Pertzborn (Instituto Politécnico do Porto, Portugal) Pró-Reitora Adj. de Pós-Graduação Andréa Gazzinelli Correa de Oliveira
Jean-Jacques Nattiez (Université de Montreal, Canadá) Pró-Reitor de Pesquisa Renato Lima dos Santos
João Pardal Barreiros (Universidade de Lisboa, Portugal)
Jose Bowen (Southern Methodist University, Dallas, EUA) Escola de Música da UFMG
Lewis Nielson (Oberlin Conservatory, Oberlin, EUA) Diretora Maria Inêz Lucas Machado
Lucy Green (University of London, Institute of Education, Londres, Inglaterra)
Marc Leman (Ghent University, Ghent, Bélgica) Programa de Pós-Graduação em Música da UFMG
Melanie Plesch (Univ. Católica, Univ. de Buenos Aires, Argentina) Coord. Sérgio Freire
Nicholas Cook (Royal Holloway, Eghan, Inglaterra) Sub-Coord. Flávio Barbeitas
Silvina Mansilla (Universidad Católica, Buenos Aires, Argentina) Sec. Geralda Martins Moreira
Xosé Crisanto Gándara (Universidade da Coruña, Corunha, Espanha) Sec. Alan Antunes Gomes
Thomas Garcia (Miami University, Miami, EUA)
Planejamento e Produção
Corpo Editorial no Brasil Isabela Scarioli - Cedecom/UFMG
André Cavazotti (UFMG, Belo Horizonte) Camila Rodrigues (estagiária) – Cedecom/UFMG
Cecília Cavalieri (UFMG, Belo Horizonte)
Cristina Capparelli Gerling (UFGRS, Porto Alegre) Projeto Gráico
Diana Santiago (UFBA, Salvador) Capa e miolo: Sérgio Lemos - Cedecom/UFMG
Fernando Iazetta (USP, São Paulo) Diagramação: Romero Morais - Cedecom/UFMG
José Vianey dos Santos (UFPB, João Pessoa)
Lucia Barrenechea (UNIRIO, Rio de Janeiro) Tiragem
Márcia Taborda (UFSJR, São João del Rey) 100 exemplares
Maurício Alves Loureiro (UFMG, Belo Horizonte)
Maurílio Nunes Vieira (UFMG, Belo Horizonte) Acesso gratuito na internet
Norton Dudeque (UFPR, Curitiba) www.musica.ufmg.br/permusi
Rafael dos Santos (UNICAMP, Campinas)
Rosane Cardoso de Araújo (UFPR, Curitiba)
Salomea Gandelman (UNIRIO, Rio de Janeiro)
Sônia Ray (UFG, Goiânia) Endereço para correspondência
Vanda Freire (UFRJ, Rio de Janeiro) UFMG - Escola de Música - Revista Per Musi
Av. Antônio Carlos 6627 - Campus Pampulha
Conselho Cientíico Belo Horizonte, MG, Brasil - 31.270 - 090
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC, Florianópolis) Fone: (31) 3409-4717 ou 3409-4747
Adriana Giarola Kayama (UNICAMP, Campinas) Fax: (31) 3409-4720
André Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro) e-mail: fborem@ufmg.br
Ângelo Dias (UFG, Goiânia) mestrado@musica.ufmg.br
Arnon Sávio (UEMG, Belo Horizonte)
Beatriz Magalhães Castro (UNB, Brasília)
Cíntia Macedo Albrecht (UNICAMP, Campinas)
Eduardo Augusto Östergren (UNICAMP, Campinas)
Fabiano Araújo (UFES, Vitória)
Flávio Apro (UNESP, São Paulo)
Guilherme Menezes Lage (FUMEC, Belo Horizonte)
José Augusto Mannis (UNICAMP, Campinas)
Lea Ligia Soares (EMBAP, Curitiba)
Lincoln Andrade (UFMG, Belo Horizonte)
Luciana Del Ben (UFRGS, Porto Alegre)
Manoel Câmara Rasslan (UFMS, Campo Grande)
Pablo Sotuyo (UFBA, Salvador)
ABM
Patrícia Furst Santiago (UFMG, Belo Horizonte)
Vladimir Silva (UFPI, Teresina)
PER MUSI: Revista Acadêmica de Música - n. 22, julho/dezembro, 2010 -
O Corpo de Pareceristas de Per Musi e seus pareceres são sigilosos Belo Horizonte: Escola de Música da UFMG, 2010 –

n.: il.; 29,7x21,5 cm.


Semestral
ISSN: 1517-7599

1. Música – Periódicos. 2. Música Brasileira – Periódicos.


I. Escola de Música da UFMG
Sumário

ARTIGOS CIENTíFICOS
Os acordes de Yes we can do vídeo da campanha presidencial de Barak Obama ...................... 7
The Yes we can chords
Philip Tagg (Tradução de Fausto Borém)

Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua linguagem harmônica ................ 22


Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic language
Fausto Borém
Fabiano Araújo

O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz ................................................................... 44


The singer Hermeto Pascoal: instruments of voice
Luiz Costa-Lima Neto

Cannon de Hermeto Pascoal:


aspectos musicais e religiosos em uma obra-prima para lauta ............................................... 63
Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a lute masterpiece
Fausto Borém
Maurício Freire Garcia

Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para lauta, humming na lauta e


sons pré-gravados .......................................................................................................................... 80
Cannon (dedicated to Cannonball Aderley), for lute, lute humming and pre-recorded sounds
Hermeto Pascoal (Transc. e Ed. de Fausto Borém)

Canção do Amor Demais: um marco da música popular brasileira contemporânea ........ 83


Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: more than the presentation of Bossa Nova,
a milestone of contemporary Brazilian popular music
Liliana Harb Bollos

Letra, melodia, arranjo: componentes em tensão em O morro não tem vez de


Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes ................................................................................ 90
Lyrics, melody, arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and Vinícius de Moraes
Silvio Augusto Merhy

Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana ......................................... 99


Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approach
Carlos de Lemos Almada

As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes ................................... 107


Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes
Vera Lúcia Rocha Pedron Peres
A memória e o valor da síncope:
da diferença do que ensinam os antigos e os modernos .......................................................... 127
Memory and the value of syncopation:
on the difference between what the old and the modern teach
Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas

Música e infância no rádio: o programa Serelepe na Rádio UFMG-Educativa .................... 150


Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG-Educativa station
Eugênio Tadeu Pereira
Cristiane da Silveira Lima
Gabriel Murilo Resende
Reginaldo Santos

“Escute, pai”: diálogos entre ilhos(as) e pais em canções populares brasileiras ................. 157
“Listen to me, dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular music
Maura Penna

Corporalidade musical na música popular: uma visão da performance violonística de


Baden Powell e Egberto Gismonti .............................................................................................. 167
Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances on the guitar
Jorge Luiz Schroeder

O estudo cultural da música popular brasileira ....................................................................... 181


The cultural study of Brazilian popular music
Álvaro Neder

Circular cidade: poesia e groove na expressão musical de quatro grupos da


região do mangue nordestino .................................................................................................... 196
Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue (mangrove) of
northeastern Brazil
Yukio Agerkop

Axé music: mitos, verdades e world music ............................................................................... 203


Axé Music: myths, truths and world music
Armando Alexandre Castro

A palavra em movimento: algumas perspectivas teóricas para a análise de canções


no âmbito da música popular ..................................................................................................... 218
The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the framework of popular music
Conrado Vito Rodrigues Falbo

ENTREVISTA
Entrevista com Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza
sobre o Projeto Teatro Musical .................................................................................................. 232
Interview with Fernando Bustamante, Ana Taglianetti e Daniel Souza about the Teatro Musical Project
Fausto Borém

6
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Os acordes de Yes we can do vídeo da


campanha presidencial de Barak Obama

Philip Tagg (Faculté de Musique, Université de Montreal, Montreal, Canadá)


philtagg@sympatico.ca
Tradução de Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)
fborem@ufmg.br

Resumo: Estudo sobre o loop de quatro acordes ║: Sol Maior – Si Maior – Mi Menor – Dó Maior :║ na canção Yes we can
[Sim, nós podemos] do vídeo de Will.i.am (ADAMS, 2008) lançado durante a campanha presidencial de Barack Obama nos
Estados Unidos. A partir da identiicação de IOCMs (Materiais Interobjetivos de Comparação) e PMFCs (Campos Paramu-
sicais Conotativos) da análise musemática (TAGG, 2009), compara-se Yes we can com materiais harmônicos, melódicos,
rítmicos, de instrumentação e de letras de canções populares da tradição afro-britânico-americana, levando-se também
em consideração as atitudes de relevantes compositores e intérpretes populares social e politicamente engajados.
Palavras-chave: Barack Obama, música e política, música e sociedade, análise musemática, harmonia da música popu-
lar, intertexto.

The Yes we can chords

Abstract: Study of the four-chord loop ║: G – B – Em – C :║ in the song Yes We Can from the video by Will.i.am (ADAMS,
2008) released during the 2008 US presidential campaign of Barack Obama. Departing from IOCM and PMFC identiica-
tion of the musematic analysis (TAGG, 2009), Yes We Can is compared to harmony, melody, rhythm, instrumentation and
lyrics found in iconic popular songs of the Afro-Bristish-American tradition, also taking into consideration the attitudes
of relevant composers and performers engaged in social and political issues.
Keywords: Barack Obama, music and politics, music and society, musematic analysis, popular music harmony, intertext.

1 – Introdução
Este artigo surgiu como uma simples resposta a uma sim- (1970) de Neil YOUNG. 2 (3) Barbara Bradby se referiu à
ples questão enviada por Carol Vernallis à lista online da Sitting on the dock of the bay [daqui para frente chamada
IASPM (International Association for the Study of Popular apenas de Dock of the bay] (1968) de Otis REDDING, numa
Music; veja www.iaspm.net) em Janeiro de 2009. Ela lan- similaridade intertextual que também foi observada por
çou a pergunta: “Alguém já se perguntou sobre a progres- diversos de meus alunos em Montreal. Ela também ob-
são harmônica de Yes we can (Sim, nós podemos), sobre seu servou uma similaridade melódica entre a frase cantada
conteúdo musical, ou mesmo, sobre as canções populares em 0:31 [aos 31 segundos da gravação] de Yes we can
que ela pode ecoar?”. Vernallis estava se referindo ao vídeo no vídeo de Obama e a frase incial “When the night. . .”
de mesmo nome da campanha presidencial de Barak Oba- (“Quando a noite. . .”) na canção Stand by me (1961) de
ma (ADAMS, 2008). 1 As respostas dos membros da IASPM Ben E. KING. (4) Matthew Bannister apontou similaridades
podem ser sumariadas nos seis pontos descritos a seguir: com No woman no cry (1974) de Bob MARLEY e os Wailers
e possíveis conotações antêmicas (do inglês anthemic, ou
(1) Mike Daley e Allan Moore reletiram sobre o poten- seja, com uma melodia fácil de cantar por muita gente
cial do acorde de Si Maior, o progredir harmonicamente e com o caráter digno ou solene dos hinos [anthems])
“para um lugar inesperado” e o aspecto do “conforto e em Another girl another planet (1978) da banda de rock
segurança” relativos da sequência de seu turnaround pla- norte-americana THE ONLY ONES. (5) Danilo Orozco su-
gal (2) Allan Moore sugeriu similaridades com progres- geriu similaridades com matrizes harmônicas de origem
sões de outras gravações, como Jungle (1973) da banda espanhola na América Latina. (6) Finalmente, David Usko-
ELECTRIC LIGHT ORCHESTRA (ELO), What becomes of the vich fez referência à canção Don’t stop believing (1981) da
brokenhearted (1966) de Jimmy RUFFIN e Southern man banda de rock norte-americana Journey. 3

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 21/06/2009 - Aprovado em: 15/03/2010
7
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Esta lista de associações intertextuais contribui para um ra- do acorde de Dó Maior (IV grau), cuja nota Dó aguda (pri-
zoável conjunto de IOCMs (Materiais de Comparação Inte- meira casa na corda Si) é substituída por uma nota Ré
robjetiva, do inglês Interobjective Comparison Material; veja (terceira casa na corda Si) para criar um efeito de Cadd9
glossário de termos da análise musemática ao inal desse (acorde de Dó Maior com nona maior acrescentada) com
artigo e mais detalhes em www.tagg.org/articles/ptgloss. pedal, nenhum acorde contém notas estranhas às tríades
html#IOCM), como normalmente aconteceria em um se- comuns (terças) em questão. 5 Todos os quatro acordes
minário respeitável sobre música popular, no qual a análise na sequência de Yes we can são ritmicamente articulados
musemática está na ordem do dia e no qual todas as refe- de maneira semelhante (ou idêntica) àquela mostrada na
rências são relevantes, embora umas mais do que outras. batida do acorde de Sol Maior do Ex.2. A fundamental de
cada acorde geralmente aparece com a duração de duas
2 – Os quatro acordes colcheias, a segunda ligeiramente abafada, seguida das
Antes de iniciar a análise musemática de Yes we can, gos- notas restantes do acorde, que podem ser uma semínima
taria de esclarecer, dentro do possível, sobre as estruturas ou duas colcheias com uma batida que vai do grave para
convencionais da progressão harmônica com a qual esta- o agudo, tangendo as três ou quatro cordas superiores do
mos lidando. Assim como meus colegas da IASPM, escutei violão. Por exemplo, a nota mais aguda do acorde mos-
o loop de quatro acordes que ocupa quatro compassos trado acima, um Sol, nem sempre é audível.
quaternários ║: G – B – Em – C :║ ou, em termos relati-
vos, ║:I – III – vi – IV :║, como mostra o Ex.1. 4 Não consigo pensar em nenhuma música, além de Yes we
can, que corresponda exatamente a todas essas caracte-
Primeiro, com o andamento q =100, ouve-se esta sequ- rísticas descritas acima. Referências intertextuais apre-
ência harmônica se repetir nos primeiros 2:28 do tempo sentadas por alguns dos meus alunos e por mim mesmo,
de duração total de 4:26 da canção, tocada em um violão assim como aquelas dos colegas na discussão online da
acústico com seis cordas de aço (e não de nylon), com IASPM, todas elas mostram alguma característica estru-
a batida mostrada no Ex.2. A não ser pelo acorde de Si tural comum. Mas, como veremos, alguns dados compa-
Maior (III grau) no segundo compasso, realizado com uma rativos podem se mostrar mais relevantes do que outros.
pestana a partir da segunda casa na corda Lá, todos os Em outras palavras, precisamos olhar as referências in-
acordes são tocados na primeira posição. Com exceção tertextuais com um foco mais preciso.

Ex.1 – Os quatro acordes do turnaround de Yes we can


(ADAMS, 2008; fotos em substituição às fotos originais publicadas no YouTube. Crédito das fotos: Dindão)

Ex.2 – A batida do violão em Yes we can

8
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

3 - A alta Renascença e a bi-modalidade va maior; (3) geralmente são duas vezes mais longos.
andina Considerando outros parâmetros da expressão musical
As referências de Danilo Orozco às matrizes harmôni- associados com os acordes de Yes we can, seria relevan-
cas que Carlos Vega provavelmente teria chamado de te também observar que; (4) os andamentos dos IOCMs
bi-modais são signiicativas porque há um denominador andino e da alta renascença, na maioria das vezes, são
comum entre os acordes de Yes we can e, por exemplo, mais rápidos que q = 100; (5) sua métrica geralmente
a gravação de Guardame las vacas a que ele se refere. 6 não é 4/4, mas sim 3/4 ou 6/8, ou uma combinação de
ambas formando hemíolas; (6) quando tocado com bati-
Os acordes de Guardame las vacas mencionados por Oro- das do tipo rasgueado, qualquer instrumento harmônico
zco são semelhantes àqueles da canção La folia 7 cuja de cordas é mais rápido do que quando dedilhado; (7)
ubiquidade em toda a Europa na alta renascença é com- se o timbre de um violão com cordas de aço é pouco
parável àquela do blues de doze compassos nos Estados comum, o timbre de um violão com cordas de tripa ou
Unidos do século XX. Uma variação comum da matriz de nylon é mais comum (o som do violão “espanhol”), e o
La Folia se desenrola como mostrado no Ex.3: timbre mais agudo e metálico de uma bandola, tiple ou
charango é ainda muito mais comum. Embora possamos
Se o acorde inalis nessa matriz de oito compassos, um especular a partir de possíveis bases comuns divergen-
Mi Menor, for considerado como tônica principal, então as tes da imagem sônica triádica da harmonia “clássica”,
funções relativas dos outros acordes serão aquelas da linha ligada à europeidade urbana do século XIX, as razões
do meio mostrada no Ex.3. Se, por outro lado, escutarmos acima me levam a pensar que as similaridades estrutu-
essa matriz no tom de Sol Maior (o tom do acorde initialis), rais não são suicientemente marcantes para defender
será que a linha de baixo, em itálico, seria a mais correta? uma comparação interobjetiva mais aprofundada nes-
Bem, de fato não, porque a matriz termina com uma ine- ta direção. Por isso, tentarei restringir as comparações,
quívoca cadência perfeita V-i (acordes de Si Maior – Mi tanto quanto possível, aos materiais que mais de perto
Menor). Além disso, como ocorre na progressão de La Folia lembram os acordes de Yes we can.
(mostrada acima), o acorde de Mi Menor é sempre precedi-
do ou seguido apenas por tríades maiores de Ré (bVII) ou Si 4 - Quatro acordes, quatro harmonias
(V), ambas, em termos da harmonia triádica europeia, ten- Investigar o signiicado de uma sequência de acordes é o
do a função dominante no tom de Mi Menor, especialmen- mesmo que tentar encontrar exemplos intertextuais de
te o acorde do V grau (Si Maior, alterado ascendentemente todas as harmonias presentes. Embora possa soar tauto-
para incluir a sétima Ré #, ao invés das tríades especíicas lógico, vale a pena lembrar que, a não ser que a matriz
Si Menor e Ré Maior do tom, que tem o Ré natural). Além comece e termine no mesmo acorde, uma sequência de
disso, não há uma relação cadencial no turnaround, nem três acordes contém três harmonias, uma sequência de
plagal nem de dominante, entre os acordes inalis e initialis quatro acordes contém quatro harmonias e assim por
seguintes. O mesmo acontece em muitas progressões har- diante. Esta obviedade deve ser reairmada porque é fácil
mônicas no estilo andino huayño, a exemplo da matriz de subestimar um dos mais importantes aspectos tonais do
quatro acordes C – G – B – Em, a qual pode ser encontrada loop de acordes: a harmonia do último acorde do turna-
na versão de Quiaquenita (incluída em La lûte indienne, round e sua volta para o primeiro. Em Yes we can, isto
1966) de LOS CALCHAKIS. Não consigo ouvir esta progres- é representado pelo movimento da cadência plagal dos
são como sendo totalmente no tom de Sol (IV – I – III – vi): acordes de Dó Maior para Sol Maior (IV→I). De fato, é
para mim, sempre soa como bVI - bIII – V - i, principalmen- esta harmonia, e não o movimento V→vi (acordes de Ré
te no tom de Mi Menor.8 Maior para Mi Menor) no meio do loop, que encerra al-
gum potencial de inalização real. 9
Resumindo esta breve incursão pelas matrizes da alta
renascença e andina, esses acordes, diferentemente da- O movimento plagal no sentido horário do círculo das
queles de Yes we can: (1) terminam como cadências en- quintas é quase tão comum em estilos como gospel, coun-
volvendo a dominante (V-i) no tom menor; (2) se iniciam try modal, rock folk e o rock baseado no blues quanto é
na tríade da relativa maior ou da subdominante relati- raro no universo das sonatas de Corelli, óperas de Wag-

Ex.3 – Sequência harmônica da canção renascentista La Folia.

9
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

ner, canções de câmara vitorianas, standards de jazz etc. entre o “It’s time for a change. . . ” (“É hora de mudar. . . ”)
que priorizam o sentido anti-horário do círculo das quin- de Obama e The Times they are a-changing (“Os tempos
tas. 10 As harmonias do turnaround plagal de Yes we can de mudança”) de DYLAN.
podem, de fato, constituir uma razão pela qual nós pro-
vavelmente escutamos essa música como popular, como Outro ponto signiicativo a respeito do acorde de Sol
norte-americana e não como clássica e europeia. Podemos Maior, com suas quatro cordas soltas e terça dobrada (Si
até escutar a referência plagal em algum Amém, canção nas cordas Lá e Si) é que, assim como os outros dois acor-
gospel ou canção folclórica baseada na escala pentatônica des na primeira posição que se repetem (Mi Menor e Dó
maior mas, conotativamente, é difícil falar especiicamente Maior), é fácil para qualquer violonista amador que encon-
sobre o IV-I sem falar que esse encadeamento harmôni- tramos em festinhas ou acampamentos. Os acordes de Sol
co é muito idiomático nos outros estilos. E pode, mesmo, Maior, Mi Menor e Dó Maior são acordes que milhões de
ser a marca de conclusão harmônica preferida em muitas norte-americanos podem saudar com um yes, we can!. E
canções no amplo leque das tradições da canção popular mesmo o acorde de Si Maior, o segundo acorde de Yes we
na língua inglesa. 11 Por isso, ao invés de nos determos aí, can, que pode ser entendido como um acorde de Lá Maior
vamos investigar o passo harmônico inicial da sequência, tocado com uma pestana na segunda casa, não apresenta
que é, ainda, menos comum do que o IV-I. nenhum desaio técnico para o músico amador de habili-
dade mediana. 15 Mas não é tanto a acessibilidade poïética
5 – Primeiras impressões: → I em si mesma que é semioticamente importante, mas sim
É dito que a primeira impressão é a que ica. Este dita- o seu signiicado para a maioria dos que não tocam violão,
do certamente se aplica às partidas harmônicas porque mesmo pouco. Graças ao fato de que tocar esses acordes
o segundo acorde em qualquer sequência é o que cria a fáceis está dentro da capacidade de uma signiicativa mi-
primeira impressão de uma progressão ou direção harmô- noria da população que toca violão, a maioria da socieda-
nica. Entretanto, antes de discutir o passo I-III de Yes we de, por meio da exposição repetida a estes acordes de uma
can, devemos considerar aquele que é o primeiro passo maneira simples no violão, tem aprendido a associá-los às
de fato, ou seja, o passo que leva o ouvinte da ausência palavras, ideias e situações que os acompanham.
musical a algo musical. Em outras palavras, partindo do
antes e fora da música para o primeiro som da canção. O 6 – O passo harmônico inicial I→III
acorde de Sol Maior na primeira posição do violão acús- O passo harmônico inicial I→III (acordes de Sol Maior para
tico em Yes we can é importante porque sua sonoridade Si Maior em Yes we can) não é o início mais comum e nem
cria a primeira impressão real da canção. o início mais incomum dos encadeamentos harmônicos da
música popular na língua inglesa: I→IV, I→V, I→vi, pro-
Exemplos de acordes de Sol Maior na primeira posição no vavelmente também I→ii e I→iii são, provavelmente, mais
início de canções, com levadas rítmicas ou simplesmen- comuns do que I→III, o qual, por sua vez, talvez seja menos
te dedilhados, em um violão acústico com seis cordas de usual do que I→II, I→bI II or I→bVII, mas provavelmente
metal, e com um andamento moderado ocorrem no início mais comum do que I→bVI (veja MOORE, 1992).
das seguintes gravações de Bob DYLAN: The Times they
are a-changing (1964a), It ain’t me babe (1964b), John Em todo caso, o número de peças, ou seções de peças,
Wesley Harding (1967), George Jackson (1971) e Kno- que começam com I→III que chamaram minha atenção
ckin’ on heaven’s door (1973).12 Esse acorde de Sol Maior dentro do repertório relevante, ou pelo menos parcial-
também ocorre como primeiro acorde da tônica com mente relevante, não impressiona. Achei apenas onze, lis-
frequência em um razoável número de canções de Woo- tadas a seguir em ordem alfabética: [1] Abilene (George
dy GUTHRIE como, por exemplo, Oklahoma Hills (1937), HAMILTON IV, 1963); [2] Bell-bottom blues (Eric CLAP-
Grand Coulee Dam (1946) e Two good men (1946?). 13 O TON, 1970); [3] The Charleston (GOLDEN GATE ORCHES-
primeiro som em Yes we can é, em outras palavras, vir- TRA, 1925); [4] Crazy (Patsy CLINE, 1961); [5] Creep
tualmente idêntico ao primeiro som de diversas canções (RADIOHEAD, 1992); [6] Jungle (ELECTRIC LIGHT OR-
populares de reconhecidos cantores-compositores nor- CHESTRA, 1979); [7] Nobody knows you when you’re
te-americanos associados com políticas progressistas e down and out [daqui para frente chamada apenas de
mudanças sociais. Se estas alusões são intencionais ou Down and out] (Bessie SMITH, 1929); 16 [8] Dock of the
não em Yes we can, as promessas de mudança e justiça bay (Otis Redding, 1968); [9] Who’s sorry now (Connie
social da recente eleição presidencial dos Estados Unidos, FRANCIS, 1957); [10] Woman is the nigger of the world
por outro lado, certamente poderiam estar, teoricamen- (John LENNON, 1975); [11] A World without love (PETER
te, conectadas a iguras muito menos apropriadas dentro e GORDON, 1964). 17 Inicialmente, sem saber o porquê,
das tradições da música popular norte-americana do que descobri que apenas três dessas onze canções soavam
Woody Guthrie e Bob Dylan. Basta imaginar as imagens, suiciente parecidas como Yes we can para serem usadas
sons e palavras de artistas como Alice Cooper, Charlie como IOCMs convincentes para a sequência de acordes
Daniels ou Barry White como acompanhamento musical em questão. Uma vez que esse tipo de “intuição” não é
para uma plataforma eleitoral de um governo responsá- muito útil em si mesmo, tentarei identiicar e explicar as
vel! 14 Obviamente, existe muito mais correspondência, diferenças nos parâmetros da expressão musical que se
tanto do ponto de vista da letra quanto da sonoridade, articulam aí e em conexão com o passo harmônico inicial

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

I-III, comum entre Yes we can e as onze peças comparati- sicais e conotações de um mundo distante daquele de Yes
vas. Este processo de eliminação deverá melhorar o foco we can. As duas canções country (Abilene e Crazy) podem
para se observar as características mais salientes do loop também ser eliminadas como IOCMs por razões semelhan-
de acordes de Yes we can. tes de incompatibilidade de instrumentação, padrão de
acompanhamento e prolongamento harmônico. 20
Antes de tudo, há duas características estritamente har-
mônicas que se destacam, do ponto de vista da semiótica, As canções Down and out (q. = 90, 12/8), Sitting on the
em relação à natureza do passo I→III: a linhas do baixo dock of the bay (q = 103, 4/4) e Creep (q = 92, 4/4), por
e o prolongamento harmônico. Todas as notas do baixo outro lado, seguem no mesmo caminho de Yes we can e
do loop de Yes we can coincidem com a fundamental das pertencem, todas, ao repertório pop internacional anglo-
tríades, enquanto que CLAPTON, em Bell-Bottom Blues americano pós-1955. Embora nenhuma destas canções
(1970), utiliza uma linha descendente no baixo por graus apresente a batida simples de acompanhamento do cantor
conjuntos de tal forma que os acordes, de fato, progridem com violão acústico, elas se assemelham mais a Yes we can
como I→III5→vi→[I5→] IV (as notas do baixo, no tom do que The Charleston, Who’s sorry now, Abilene e Crazy.
de Sol Maior seriam Sol, Fá#, Mi [Ré] e Dó; e os acordes Apesar disto, existem diversas diferenças estruturais im-
seriam G, Ré/F#, Em, G/D, C), uma progressão que contém portantes entre as três canções em discussão (Down and
dois acordes com inversão. Graças a precedentes famosos out, Dock of the bay e Creep) e, por outro lado, Yes we
como Whiter shade of pale / Ária de BACH (I-V3-vi-I5, etc., can. Por exemplo, todas as gravações de Down and out,
Bach, 1731; PROCOL HARUM, 1967), acordes invertidos sejam elas com q. = 90, tanto na gravação de Bessie SMI-
com linhas do baixo por grau conjunto se tornaram um TH (1929) quanto na de Eric CLAPTON (1992), sejam mui-
coniável símbolo pop de “eruditismo” ou “pop clássico”. to mais lentas, com o próprio CLAPTON (1970) ou Stevie
Trata-se de um mecanismo que retira esta canção-arranjo WINWOOD (1966), todas elas tem o acompanhamento
da esfera de participação popular, participação popular que shufle do blues lento ( ¼ , mesmo quando notado como
pode ser exempliicada pelo estilo de violão toque-e-cante o), tendo como acompanhamento a corneta, o piano e a
de Yes we can e suas tríades na posição fundamental. A tuba (na gravação de Bessie Smith) ou a guitarra elétri-
utilização de acordes invertidos e graus conjuntos na li- ca, o órgão Hammond e a bateria (nas gravações de Clap-
nha do baixo elitizam a peça. Esta é apenas um das razões ton e Winwood), enquanto que os acordes Yes we can são
para tratar uma similaridade estrutural óbvia como a par- apresentados em colcheias sem swing iiiq . 21 Além dis-
tida harmônica I→III com cautela. Outra razão harmônica so, o passo I-III inicial de Down and out segue com uma
para por em dúvida a relevância de uma comparação que progressão de quintas descendentes que inclui o VI grau (E
envolva I→III é o prolongamento harmônico. Por exemplo, ou E7), ao invés do vi grau (Em), depois inclui o ii grau (Am)
somente duas das dez peças que constituem IOCMs (Dock e, depois, passa por harmonias como #IVdim (C#dim), para
of the bay e Creep) apresentam I→III no início do loop de seguir com II7 (A7), V7 (D7) e I (G). Não se ouve nenhum
quatro compassos. Muitas das outras canções, na verda- acorde diminuto ou uma extensa progressão com domi-
de, incluem encadeamentos de harmonias com dominantes nantes no círculo da quintas em qualquer parte de Yes we
do círculo das quintas (sentido anti-horário) incompatíveis can. Esta canção foi concebida em um idioma diferente,
com o idioma tonal geral de Yes we can. Além disso, parâ- seja nos aspectos tímbrico, métrico, rítmico ou tonal.
metros como andamento, padrão de acompanhamento e
instrumentação podem também fazer algumas harmonias Sitting on the dock of the bay (REDDING, 1968), por outro
I→III soarem bastante diferentes daquelas de Yes we can. lado, é em colcheias contínuas e sem swing iiiq e
apresenta os quatro acordes de sua sequência virtualmen-
As músicas The Charleston (q = 96) e Who’s sorry now (q te no mesmo andamento (q =104) de Yes we can: I – III
= 88), por exemplo, embora sejam tocadas em um anda- – IV - II (G - B - C - A). Esta sequência de Dock of the bay
mento semelhante ao de Yes we can (q =100), são muito é notável porque não contém nenhum passo harmôni-
diferentes em termos de instrumentação, rítmica e prolon- co plagal (IV→I) ou de dominante (V→I). Somente uma
gamento harmônico. Tanto (1) a orquestração tradicional ponte de 19 segundos (1:24 - 1:43) do total dos 2:45 da
de jazz band em The Charleston, quanto (2) sua sonoridade canção inclui uma breve progressão: bVII→V→I (1:37 -
lo-i 18 típica dos discos de 78 rpm, (3) quanto, no caso 1:43) que leva de volta à sequência de acordes harmo-
de Who’s sorry now, sua sonoridade semi-ampliicada dos nicamente estática que ocupa toda a gravação, exceto
pop combos da década de 1950, que se torna mais típica por alguns segundos. A sequência de Dock of the bay é
ainda com as tercinas constantes no piano, remanescen- interessante também porque consiste em dois pares de
tes do jazz “clink-clink-clink” de Stan FREBERG (1956) 19, acordes: primeiro, o I e o IV graus (Sol Maior e Dó Maior
são opções comparativas muito longínquas de Yes we can, no tom de Sol Maior), que estão próximos entre si no
que é tocada com a simplicidade de notas e tríades de um círculo das quintas; segundo, o III e o II graus (Si Maior
violão acústico. O prolongamento do I-III em The Charles- e Lá Maior no tom de Sol Maior), ambos para o lado dos
ton e Who’s sorry now em uma sequência de dominantes sustenidos no círculo das quintas (longe dos graus I e IV)
em quintas descendentes (I-III-VI-II-V-I nas tonalidades de e separados entre si apenas pelo VI grau (Mi Maior). Mas
Si b Maior e Mi b Maior, que são amigáveis para os metais esses quatro acordes não são tocados nessa disposição
e saxofones) são outras indicações óbvias dos estilos mu- - experimente o efeito de tocá-los, ao contrário, na sequ-

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

ência G-C-A-B ou, então, G-B-A-C[-G] -, uma vez que I e tos Civis e com o tipo de engajamento social que Michael
III (G→B) pertencem à mesma frase que Redding canta Haralambos documenta em Right on! From blues to soul in
“Sitting on the dock of the bay. . .” (“Sentado na doca da black America (HARALAMBOS, 1974). Se há alguma vali-
baía. . .”), depois da qual ele respira. Após esta cesura no dade nesta análise da frase no ponto 0:31 de Yes we can,
meio da canção, ele canta “Watching the tide roll in. . . ” a conexão com o I-III de Dock of the bay se reforça cicli-
(“Olhando a maré que chega. . .”) na segunda metade do camente por associação-cruzada. Sua corrente de conota-
loop de acordes (no seu encadeamento IV→II , C→A), ções contém os seguintes tipos de elos indexadores: (1) a
que é um tipo de I-VI em Dó Maior, reletindo o mesmo frase melódica de Yes we can lembra arquétipos melódicos
tipo de distância harmônica de terça, como no encadea- cantados por cantores homens de música soul na inal da
mento I-III (na primeira metade do loop, G→B). década de 1960; (2) a música daquela época estava asso-
ciada a uma imagem mais esperançosa e assertiva entre
Não haveria nada de especial a respeito desta divisão da os afro-americanos nos Estados Unidos, (3) um dos mais
sequência em duas partes se os dois acordes triádicos, em famosos desses cantores foi Otis Redding, sendo Sitting on
cada metade, estivessem mais perto um do outro no círculo the dock of the bay um de seus maiores sucessos; (4) essa
das tonalidades. Mas não é o caso. A segunda tríade de canção também contém o mesmo passo harmônico I-III
cada par, Si Maior e Lá Maior, situa-se distante não ape- como ocorre em Yes we can, a canção da campanha pre-
nas um ou dois passos harmônicos de quinta da primeira sidencial de Barak Obama; (5) o governo presidencial de
tríade, mas a uma distância de quatro passos harmônicos Obama marca outra grande mudança positiva nos Direitos
no círculo das quintas (Sol Maior→(Ré Maior→Lá Maior→Mi Civis dos Estados Unidos.
Maior)→Si Maior ou, em termos relativos, I→(V→II→VI)→III)
e a uma distância de três passos harmônicos no círculo A canção Jungle (1979) da banda ELO, menciona-
das quintas (Dó Maior→(Sol Maior→Ré Maior)→Lá Maior ou, da por Allan Moore, é no mesmo andamento de Yes we
em termos relativos, IV→(I→V) →II), respectivamente. É can (q=100). Seus três primeiros encadeamentos harmô-
isto que faz a sequência de Dock of the bay soar como dois nicos são idênticos àqueles da canção de Obama: Ré Maior
acordes vai-e-vem (shuttle chords) semelhantes, um após – Fá # Maior - Si Menor - Sol Maior (Jungle, no tom de
o outro – um constante movimento para frente e para trás Ré Maior) = I III vi IV = Sol Maior – Si Maior - Mi
– ao invés de uma sequência única e repetida de acordes Menor - Dó Maior (Yes we can, no tom de Sol Maior). “Na
como I-vi-IV-V ou I-V-bVII-IV. Este movimento de vai-e- mosca!”, poderíamos pensar. De fato, parece haver aí 100%
vem em Dock of the bay, que é sublinhado pelo acréscimo de correspondência. Mas há um problema, uma vez que
de efeitos sonoros de praia como ondas que vem e vão, esta correspondência perfeita não soa exatamente como
estão ausentes, é claro, em Yes we can, cuja sequência de os acordes de Yes we can. Existem pelo menos quatro ra-
acordes contém dois passos harmônicos de tonalidades vi- zões para não se encaixarem: (1) os acordes da banda ELO
zinhas muito claros: Si Maior → Mi Menor (III→vi, com não são utilizados em loop; (2) a sequência da banda ELO
função dominante) e Dó Maior → Sol Maior (IV→I, com segue com uma cadência V→I (A→D) repetida, (3) os qua-
função plagal), o que dá a ela um deinitivo caráter de re- tro acordes cobrem dois compassos, e não quatro, e são
petição e não de vai-e-vem duplo. 22 espaçados assim: | h.q |h. q |, com apenas uma nota
para cada acorde, e não um compasso inteiro de ,
Nada disso signiica que Sitting on the dock of the bay é ou , ou qualquer outra padrão similar para cada
inadmissível como uma evidência IOCM dos acordes de acorde; (4) a instrumentação é totalmente diferente, pre-
Yes we can. Mesmo que o caráter de vai-e-vem harmô- enchida com instrumentos tropicais do tipo “world music”
nico da gravação de Redding, seu prolongamento harmô- associados, pelo menos na cultura musical urbana e não-
nico e sua orquestração divirjam claramente de Yes we tropical do “primeiro-mundo”, como o título da canção:
can, sua ponte repete uma curta frase melódica (no trecho Jungle (Selva). Posso escutar instrumentos que lembram
“Nothing’s gonna change. . .” [“Nada irá mudar. . .”], “I can’t o agogô, o guiro [tipo de reco-reco da América Central],
do what ten people tell me to do. . .” [“Não posso fazer o que cowbell, wood block e maracas. Mais ainda – e já fora da
dez pessoas me pedem para fazer. . . “], etc., 1:24-1:37) conotação deste campo (ou selva, para ser mais preciso),
que recorre de maneira semelhante em 0:31 de Yes we um bem audível e denso string pad [um sample sintetiza-
can (“It was sung by immigrants. . .” [“Era cantado pelos do do naipe das cordas orquestrais]. Todas estas diferenças
imigrantes. . .”]). 23 Como apontou bem Barbara Bradby na me deixam relutante para fazer referência aos acordes da
seu e-mail na lista da IASPM, aquela frase de Yes we can banda ELO como um IOCM para os acordes de Yes we can
chega muito perto da declamação inicial “When the ni- de Obama, apesar da correta similaridade em termos de
ght. . .” [“Quando a noite. . . ”] em Stand by me (1961) na uma teoria harmônica convencional. Estas duas canções
voz de Ben E. KING. Eu acrescentaria que as frases meló- simplesmente não soam suicientemente similares.
dicas em cada uma dessas três canções podem ser carac-
terizadas como proclamatórias, sinceras e apaixonadas. Eu Um raciocínio semelhante pode ser aplicado à canção Wo-
também caracterizaria essas frases como sendo frases tipi- man is the nigger of the world (1975) de John LENNON,
camente masculinas dos cantores soul da década de 1960 embora por diversas razões de dessemelhança. Além do
(por exemplo, Otis Redding, Wilson Picket, Marvin Gaye), fato de que a sequência de John Lennon não é um loop,
que estão associados à luta norte-americana pelos Direi- mas parte de uma sequência de um chorus de oito compas-

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

sos (|| I - III - vi - I - IV - iv- I - I || no tom de Mi Maior), a Entretanto, diferentemente de Dock of the bay, a gravação
batida da canção de Lennon é suingada (12/8 feel), o efei- de Peter & Gordon não contém nenhum elemento de soul
to geral da intensidade sonora muito mais alto, o registro or gospel que dirija o ouvinte em direção a qualquer tipo de
vocal mais agudo e o timbre mais rascante do que em Yes conotação relativa aos Direitos Civis. Se isto é verdade, que
we can. Há também diferenças radicais de instrumentação tipo de mensagem paramusical World without love contem?
entre as duas canções, sendo que a música de Lennon in- Vejamos seus versos [com o texto original após a tradução]:
clui um piano percussivo, guitarra e contrabaixo elétricos,
um saxofone estridente em primeiro plano e eventos de [verso 1, verso 3] Por favor, prenda-me longe daqui e não permita
alta intensidade na bateria. Não se ouve nenhuma dessas o dia aqui dentro, onde me escondo com minha solidão. Não me
importo com que dizem, não vou viver em um mundo sem amor.
características na canção de Obama.
[verso 2] Pássaros cantam desainados e nuvens de chuva escon-
dem a lua. Estou bem, aqui icarei com minha solidão. Não me
Restam apenas duas músicas de IOCM I→III para discutir, importo com que dizem, não vou viver em um mundo sem amor.
a canção A World without love (PETER e GORDON, 1964) [ponte] Aqui vou esperar, daqui a pouco verei o sorriso do meu
de Lennon e McCartney e Creep da banda de rock inglesa amor. Ela virá, não sei quando. Quando vier, perco, por isso baby,
Radiohead (RADIOHEAD, 1992). até lá.

De 1964 até recentemente, trabalhei equivocadamente [v.1, v.3] Please lock me away and don’t allow the day here inside
where I hide with my loneliness. I don’t care what they say I won’t
achando que os primeiros quatro compassos de cada ver- stay in a world without love.
so de A World without love eram harmonizados com os [v.2] Birds sing out of tune and rain clouds hide the moon. I’m OK,
acordes Mi Maior | Sol # Maior |Dó # Menor | Lá Maior here I’ll stay with my loneliness. I don’t care what they say I won’t
(I−III−vi−IV), ou seja, a mesma progressão relativa do stay in a world without love.
loop de acordes de Yes we can. A sequência, de fato, é Mi [bridge] Here I wait and in a while I will see my lover smile. She may
Maior | Sol # Maior | Dó # Menor | Dó # Menor (I−III− come, I know not when. When she does I lose, so baby until then.
vi−vi). E a toquei com harmonia errada muitas vezes sem
que qualquer ouvinte ou colega músico tenha reclamado, À primeira vista, as divagações deste jovem e apaixonado
provavelmente porque a única nota melódica no quarto rapaz não têm nada a ver com a luta, esperança e coisas
compasso, um Dó #, soa bem tanto sobre um acorde de cotidianas que podemos encontrar nas frases de efeito dos
Lá Maior quanto de Dó # Menor. O meu ponto de vista, discursos de Obama que ocorrem ao longo de Yes we can.
neste caso, é sugerir mais uma vez que a correspondên- Assim, basta escarafunchar um pouco abaixo da superfície
cia harmônica exata não é necessariamente o fator mais da letra de Lennon e McCartney para encontrar um parale-
importante, se uma sequência de acordes em uma músi- lo: um processo emocional que, se pudermos simpliicar, vai
ca soa como uma sequência de acordes de outra música. do relativo desespero e escuridão a uma relativa esperança
Neste contexto, isto signiica que a parecença harmônica e luz, sempre com o mesmo sentido de determinação.
mais importante entre A World without love e Yes we can
é o fato de ambas compartilharem os mesmos passos har- A sequência harmônica na canção Creep de Radiohead é o
mônicos iniciais I→ III→ vi. Mas a sequência de Lennon loop ║: I→III→IV→iv :║ (Sol Maior | Si Maior | Dó Maior |
e McCartney soa diferente de Yes we can principalmen- Dó Menor) com q=92 durante os quatro minutos que dura a
te porque: (1) a primeira é cantada em um andamento canção. Cada loop cobre quatro compassos, com um acorde
mais rápido ( = 134); (2) o acompanhamento é domina- por compasso e rítmica de quatro colcheias ou semínimas
do pelas pela pesada iguração “one-ive sem swing na bateria e no violão ( iiiq no ximbau) e o
oompah” do baixo de Paul McCartney; 24 (3) o seu I-III-vi padrão de simples q.e ‫ ׀‬eq e no baixo. Considerando o
não se repete em loop. Dito isto, o I-III-vi-vi em World movimento de acompanhamento como um todo, estas par-
Without Love não ocorre regularmente no início de cada tes são mais semelhantes ainda ao padrão iq q do violão
verso em compasso 4/4 sem swing, com um acorde por acústico de Yes we can do que aqueles de Dock of the bay. E,
compasso e com a batida do acompanhamento básico do certamente, são muito mais próximos da canção de Obama
violão acústico, mesmo que pouco audível na mixagem. do que o padrão |h. q| da banda ELO, ou o padrão suingado
Além disso, o prolongamento harmônico I - iv - I - I - ii |q eq e| de Down and out ou de Woman is the nigger of the
- V - I (acordes de Mi Maior - Lá Menor - Mi Maior - Mi world, ou o padrão |iiq iiq| de Who’s sorry now. E, como
Maior - Fá # Menor - Si Maior - Mi Maior) em World acabei de airmar, eles são, da mesma forma que Yes we can,
without Love permanece dentro do mesmo idioma de trí- repetidos sobre o mesmo período de quatro compassos em
ades comuns no estado fundamental como em Yes we 4/4. Além disso, as harmonias do turnaround do loop de Ra-
can, enquanto que sua instrumentação pop simples tem diohead, que vão de Dó Menor para Sol Maior (iv→I) é pla-
muito mais em comum com Yes we can do que Jungle da gal como o turnaround de Yes we can, e os padrões de acom-
banda ELO, Woman is the nigger of the world de Lennon, panhamento são todos epítomes de um estilo pop-rock sem
isto para não citar The Charleston (que recebeu muitas irulas (desenhos de ximbau standard simples na bateria,
gravações, inclusive da Golden Gate Orchestra) e Down arpejos simples no violão, virtualmente sem reverberação ou
and out com Bessie Smith etc. 25 Como em Dock of the qualquer outro tratamento de sinal sonoro etc.). A estética
bay, o I III em World without love não compartilha com da essência crua em Creep se alinha bem com o caráter sem
Yes we can alguns elementos estruturais comuns. irulas do som do violão em Yes we can.

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Nenhuma das similaridades acima mencionadas pode 7 - I – iii – vi - IV


refutar o fato de que há claras diferenças entre Creep Os quatro primeiros acordes de What becomes of the
e Yes we can, sendo a mais óbvia a gritaria nervosa e brokenhearted? (RUFFIN, 1966) são Bb → Dm → Gm →
alienada e a guitarra elétrica com um poderoso over- Eb (ou, em termos relativos, I→iii→vi→IV), que parece
drive ocorrendo em 39% do tempo da faixa rock de ser o que estamos procurando. Infelizmente, este não
Radiohead. 26 Harmonicamente, há outra diferença im- é o IOCM curinga que precisamos, porque a sequên-
portante: enquanto que Yes we can repete a sequência cia de acordes na verdade se apresenta com inversões,
I-III-vi-IV, o loop em Creep segue o encadeamento I- Bb/F → Dm/F → Gm → Eb/G (ou, em termos relati-
III-IV-iv. Isto signiica que, embora o turnaround em vos, I5→iii3→ vi→ IV3): três das quatro tríades estão
ambas as canções sejam plagais, o acorde de IV grau invertidas. É verdade que não há uma linha do baixo
(Maior) em Creep ocorre um compasso antes, no lugar em graus conjuntos cobrindo o intervalo de uma quarta
do Mi Menor (vi) de Yes we can e a tríade de Dó Maior justa ou intervalo maior nesta sequência, como ocorre
(IV grau) de Yes we can ocorre na mesmo posição do em A Whiter shade of pale (PROCOL HARUM, 1967) ou,

de de Dó Menor, com sua nota Mib, enarmonicamente


loop do Dó Menor (iv grau) de Radiohead. Este acor- na voz de Clapton, Bell-Bottom blues (DEREK AND THE
DOMINOES, 1970). Entretanto, as inversões das tríades
contrastando, em termos de direcionalidade de condu- e o caráter de nota pedal na linha do baixo na canção
ção de voz, contra a nota Ré # ascendente do acorde de Rufin criam um efeito parcial de estaticidade har-
de Si Maior, imprime ao loop de Creep um caráter único mônica que não se resolve em um movimento substan-
que pode contribuir para o dramático sentido de deses- cial até muito mais à frente na peça. Além disso, assim

mas o Mib repetidamente reverte este movimento para


perança da canção: 27 o Ré # sobe para o Mi natural, como Bell-bottom blues de Clapton, a sequência inicial
de What becomes of the brokenhearted? não é em loop
baixo fechando novamente sobre o Ré natural e Sol. Yes e seu prolongamento contém harmonias incompatíveis
we can não contém nenhum cromatismo descendente. com os acordes no estado fundamental e sistematica-
mente sem swing de Yes we can. 28 Soma-se a isso o fato
Apesar das claras diferenças entre Yes we can e Creep, de que a canção da Mowtown é claramente orquestrada
essas duas canções deinitivamente compartilham mais de maneira muito diferente, com piano, cordas, backing
coisas em comum do que o encadeamento inicial I-III do vocals e percussão. Talvez o iiiq em 4/4 e com q = 100
loop quaternário de quatro compassos em Sol Maior. A com timbre de voz masculina, semelhante ao que se ouve
questão é: como uma canção raivosa de auto-comise- em 0:31 na canção de Obama possa atenuar algumas das
ração, que trata de um personagem pilantra e esdrúxulo diferenças acima mencionadas. Se for o caso, conexões
pode ter alguma coisa musicalmente signiicativa em interobjetivas eventuais entre elas são improváveis de
comum com um personagem que airma uma cren- fundamentarem uma parecença harmônica audível.
ça coletiva na esperança, como ocorre em Yes we can.
Uma razão poderia estar na ideia levantada por outros Incipts harmônicos I-iii no estado fundamental não
membros da IASPM, a de que o encadeamento apresen- são incomuns em outros tipos de canção da música
ta uma forte qualidade de movimento para um lugar pop anglofônica. Por exemplo, Puff the magic dragon
diferente, do tipo para cima e para fora que se observa (PETER, PAUL & MARY, 1963), The Weight (THE BAND,
no baixo ascendente I-III-vi e no movimento melódico 1968) e Daniel and the sacred harp (THE BAND, 1970),
5 - #5 - 6 (voz interna Ré - Ré# - Mi) já mencionado; e todas começam com I-iii-IV, enquanto que Sukyaki
que este movimento para cima e para fora indo para (SAKAMOTO, 1963) 29 e Hasta mañana da banda sueca
um lugar diferente é essencial tanto para expressar Abba (ABBA, 1974), ambas apresentam a progressão I-
coniança na superação de diiculdades – “yes, we can” iii-vi. O encadeamento harmônico ocorrendo mais no
(“sim, nós podemos”’), quanto para vociferar aversão a meio da canção e progredindo do I grau para o IV ou
qualquer coisa que gere auto-repulsa. O loop de acorde vi graus, passando antes pelo iii grau, também ocorre
de Yes we can não tem a escorregada cromática descen- em Hangman (Peter, Paul and Mary, 1965), assim como
dente de Creep, nem seu encadeamento I-III, seguido em pontos proeminentes de It’s all over now Baby Blue
pelo segundo encadeamento IV-II (Dó Maior - Lá Maior) (1965: I-iii-IV) e I pity the poor immigrant (1968: I-iii-
direcionalmente “de engano” de Dock of the bay, possui vi) de Bob DYLAN. 30 Exceto por Sukiyaki e Hasta Maña-
nenhum dos efeitos para frente-e-para trás daqueles na, todas essas canções pertencem aos repertórios folk
dois acordes vai-e-vem daquela canção. De fato, para e folk rock norte-americano. Além disso, a canção
aprofundarmos na questão do signiicado dos acordes Hangman, as duas canções de Dylan e as duas faixas
de Yes we can, precisamos examinar o material compa- da banda de rock canadense The Band (que acompa-
rativo que apresenta os outros dois acordes do loop da nhou Dylan entre 1964 e1967) apresentam letras que
canção de Obama: vi e IV. Para ser mais preciso, preci- divergem da temática de amor, diversão, raiva adoles-
samos encontrar IOCMs que apresentem loops harmôni- cente e nostalgia do pop. Apenas uma das canções,
cos no esquema I – x - vi - IV, no qual x é um alterna- The Weight, utiliza um loop de acordes, I-iii-IV-I com q
tiva para III como meio viável de passar de I para vi. O = 124 em um 4/4 regular com um acorde por compas-
acorde x mais comum seria, é claro, iii ou V (no tom de so. Assim como Hangman, a letra de The Weight con-
Sol Maior: Si menor ou Ré Maior). ta uma história de experiências negativas e positivas,

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

contrastantes, enquanto que o I-iii-vi de I pity the poor todas elas apresentam letras que expressam esperança ou
immigrant de Dylan acompanha a virada em direção estímulo frente a problemas ou tempos difíceis. Tudo bem,
à justiça no inal de cada verso. 6 Por outro lado, em- a letra de Country roads menciona, apenas de passagem,
bora todas essas canções apresentem um violão com um discreto arrependimento – “Tenho a sensação de que
batidas simples em progressões I-iii-IV ou I-iii-vi, com deveria ter voltado pra casa ontem. . .” – mas todas as
todos os acordes no estado fundamental, apenas uma outras apresentam, claramente, experiências tanto de di-
delas (The Weight) apresenta um loop de acordes, e iculdades quanto de esperança, como mostra o Ex.4.
mesmo assim, como uma unidade de três acordes, e
não de quatro. Mais ainda, nenhuma das canções tem O vídeo Yes we can com a canção Yes we can encapsula
a progressão I-iii-vi-IV, que seria a variante mais pró- os tipos de sentimentos listados na coluna Esperança,
xima do I-III-vi-IV de Yes we can. Resumindo, mesmo estímulo, determinação da tabela acima (Ex.4). A colu-
que haja similaridades e algumas possíveis referências na Problemas, no caso da canção de Obama, seria pre-
às canções folk e folk rock norte-americanas com le- enchida com citações como “escravos e abolicionistas”,
tras sérias, realmente precisamos buscar similaridades “imigrantes [que desbravam] os conins implacáveis”,
harmônicas mais convincentes em outras plagas. “os trabalhadores [que tiveram de] organizar”, “as mu-
lheres [que tiveram] de lutar pelo voto”, “os obstáculos
8 - I - V - vi - IV [que] estão no nosso caminho”, o “coro de cínicos que
A segunda de nossas duas alternativas para o III grau fala mais alto e mais dissonante”, e “a garotinha que
como elemento de ligação entre o I e o vi graus (entre Sol estuda na escola desmoronando em Dillon”. Além do
Maior e Mi Menor em Yes we can) é o V grau (Ré Maior em slogan “Yes we can” que diz tudo, a coluna três também
Sol Maior). A simples questão harmônica que se coloca é abrigaria “eles forjaram um trilha”, “Rei que nos levou
que o V grau é o relativo maior do iii grau (uma tríade de ao topo da montanha e nos apontou o caminho da Terra
tonalidade especíica em estado fundamental no terceiro Prometida”, “oportunidade e prosperidade”, “curar esta
grau da escala maior) e que, assim como o ii grau ou o nação”, “consertar este mundo”, “nunca houve nada de
III grau, o V grau contém duas notas adjacentes à tríade falso com a esperança” etc.
alvo, que é o vi grau. 32 Esta alternativa do segundo acor-
de muda o loop de I-III-vi-IV (Yes we can) para I-V-vi-IV. Embora nenhuma das quatro canções mencionadas no
Convenhamos que esta sequência soa bastante similar ao Ex.4 apresente um acompanhamento de violão de seis
início do Canon de Pachelbel – ║: V │vi -iii │IV-I │ IV-V cordas com batida simples, todas elas, assim como Yes
:║ –, um padrão que parece ter sido disseminado ampla- we can, transcorrem com a regularidade de um acorde
mente na música pop de língua inglesa. 33 Esta progressão para cada compasso ao longo de períodos de 4 compas-
de acordes constitui toda a base harmônica de All toge- sos em métrica 4/4. Dois deles (No woman no cry e Not
ther now (1991) da banda de Liverpool THE FARM, com ready to make nice) repetem a sequência I-V-vi-IV pelo
andamento q =108 em 4/4 e sua taxa de ritmo harmô- menos duas vezes em seguida, enquanto que a letra de
nico de um acorde por compasso. 34 Mais especiicamen- todas as canções, incluindo Yes we can, justapõe expe-
te, a sequência I-V-vi-IV, também em 4/4 e com taxa de riências de diiculdades e esperança.
um acorde por compasso, pode ser escutada no início de
cada verso de Let it be (1970: q =76 |C |G |Am |F) dos 8 - IOCM em combinação
BEATLES, bem como, com taxa de dois acordes por com- Seria realmente uma surpresa se houvesse qualquer
passo, em No woman no cry (1974: q = 78 |C G3|Am F) outra canção que contivesse o mesmo tipo de loop de
de Bob MARLEY. O mesmo I-V-vi-IV também acompanha acordes, como ocorre em Yes we can, tocada com anda-
a deixa do coro em Country roads (1971: q =80 |D |A |Bm mento semelhante e de maneira semelhante em relação
|G) de John DENVER e Not ready to make nice (2006: à instrumentação, tonalidade e métrica. Por outro lado,
q=86 ║: G |D |Em |C :║ ) da banda country norte-ame- o IOCM apresentado acima mostra que uma variedade
ricana DIXIE CHICKS. 35 Esta sequência de acordes tam- de elementos encontráveis na tradição da música pop de
bém ocorre em canções barulhentas e otimistas de rock língua inglesa está incorporada na sequência de acordes
como We’re not going to take it (TWISTED SISTER, 1984: de Yes we can. Deve-se deixar claro também que aqueles
q =144) ou Another girl another planet (THE ONLY ONES, elementos estruturais especíicos são geralmente asso-
1978: q =156), mas o andamento, rítmica, instrumentação ciados àquelas tradições com noções, atitudes, emoções,
e tipo de impostação vocal nessas canções seriam uma atividades, eventos e processos que, juntos, constroem
tentativa muito distante do caminhar relativamente tran- um campo semântico razoavelmente coerente e cono-
quilo e ordenado, sem irulas dos acordes de Yes we can. tativo. As características estruturais mais importantes e
36
De fato, a sequência de acordes da canção de Obama seus principais PMFCs (Campos Paramusicais Conotati-
utiliza um andamento e um ritmo de discurso que têm vos, do inglês Paramusical Fields of Connotation) podem
muito mais em comum com as canções extremamente ser sumariados, a grosso modo, na tabela do Ex.5.
populares mencionadas antes. Mas a história não acaba
aí. All together now, Let it be, No woman no cry, Country Resumindo, há boas razões para acreditar que os acordes
roads e Not ready to make nice, todas elas têm um caráter de Yes we can, ao recorrerem a tradições especíicas da
antêmico. Todas elas são eminentemente cantaroláveis e música popular em língua inglesa, contribuem para co-

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Canção Problemas Esperança, estímulo, determinação

The Farm: “…forefathers died, lost in “…they stopped ighting and they were one”;
millions for a country’s pride”; “‘hope remains”; “‘Stop the slaughter, let’s go
All together now “All those tears shed in vain; Noth- home”; …”joined together”; “All together now”.
(1991) ing learnt and nothing gained”.
[“… eles pararam de lutar e se tornaram um
[“… antepassados morreram, perdidos entre só”; “a esperança permanece”; “Pare a ma-
milhões pelo orgulho de um país”; “Todas tança, vamos para casa”; “…unidos”; “Todos
aquelas lágrimas derramadas em vão; não juntos agora”.]
aprendemos nada e não ganhamos nada”.]

Beatles: “times of trouble”; “the broken heart- “Mother Mary comes to me“; “words of wisdom“;
ed people”; “the night is cloudy” “There will be an answer“; “Still a chance“; “A
Let it be (1970) light that shines on me“.
[“tempos difíceis”; “o povo desiludido”; “a
noite está nublada”.] [“Mãe Maria venha a mim”; “palavras sábias”;
“Haverá uma resposta”; “Ainda uma chance”;
“Uma luz que brilha em mim”.]

Bob Marley: “The government yard in Trenchtown“; “ob- “No woman no cry“; “dry your tears“; “I’ll share
serving the hypocrites“; “good friends we’ve with you“; “got to push on through“.
No woman no cry lost’“.
(1974/5) [“Não, mulher, não chore”; “seque suas
[“O quintal do governo em Trenchtown”; lágrimas“; “Dividirei com você”; “temos que
“observando os hipócritas”; “os bons amigos continuar”.]
que perdemos”.]

The Dixie Chicks: “I’ve paid a price and I’ll keep paying“; “too “I’m through with doubt“; “I’m not ready to back
late to make it right“; “sad, sad story“; “my down“; [I won’t] “do what… you think I should“.
Not ready to make life will be over“.
nice (2006) [“Chega de dúvidas”; “Não estou disposto me
[“Paguei um preço e continuarei pagando”; retirar“; “Não farei ... o que você acha que eu
“tarde demais para consertar”; “triste, triste deveria”.]
história”; “minha vida será inda”.]

Ex.4 – Tabela comparativa com frases-chave ”superando diiculdades” em letras de


canções pop antêmicas que apresentam a variante I-V-vi-IV dos acordes de Yes we can

Características estruturais gerais


Gênero(s) Conotações
(sempre 4/4 em (anglófono[s]) (PMFCs)
andamento moderado)

Sol Maior e outros acordes fáceis em Relacionado Fácil de tocar, participativo, democrático, politicamente
violão acústico com 6 cordas de metal ao folk progressista, “sim, nós podemos”

Orientação para cima e para fora, possivelmente


I - III Pop
problemático
Folk, folk rock,
I - iii - vi Narrativo, do povo
country rock
Pop de lingual inglesa, airmativo, determinado, partici-
IV - I Gospel, soul, rock
pativo (“Amém”)
Vai da diiculdade ao estímulo, determinação e esperança,
I - V - vi - IV Pop, rock
antêmico, participativo, politicamente progressista

Ex.5 – Tabela-resumo dos IOCMs harmônicos e seus respectivos PMFCs em Yes we can.

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TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

notações de estímulo, engajamento, airmação, divisão do Glossário:


poder e participação democrática que parece fazer parte Para uma lista completa de termos e abreviaturas da aná-
do ethos e programa político de Barack Obama. A justa- lise musemática, veja www.tagg.org/articles/ptgloss.html
posição entre diiculdade e esperança que se observa no
Para uma lista de termos e abreviaturas de harmonia veja
IOCM I-V-vi-IV (Ex.4) corresponde às citações do discurso
p.27-30 do Tagg’s Harmony Handout em www.abretagg.
de Obama sobre escravos, abolicionistas, imigrantes, tra-
org/articles/xpdfs/harmonyhandout.pdf
balhadores, mulheres e sua determinação em superar as
diversas formas de injustiça. Olhando de perto um exemplo Acordes vai-e-vem (chord shuttle): neologismo cria-
muito mais recente e especíico, vale a pena acrescentar do por Phillip Tagg em 1993 para descrever a oscilação entre
que as Dixie Chicks utilizaram uma variação do I-V-vi-IV dois acordes, por exemplo, entre as tríades de Si  Menor e
do loop de acordes de Yes we can para acompanhar sua Sol  Maior no início da Marche funèbre de Chopin, também
determinação de desaiar as ameaças pessoais que resulta- conhecido como “pêndulo eólio” (BJÖRNBERG, 1989).
ram do fato da banda expressar a vergonha que sentiu pelo
fato do ex-presidente norte-americano George Bush ser Campo Paramusical de Conotação: veja PMFC.
do mesmo estado natal que elas, o Texas. 37 Nas palavras
de Obama, foi um tempo para mudanças e, mesmo, nas Comparação interobjetiva (Interobjective com-
palavras de Dylan, os tempos são, espera-se, de “mudanças parison): Neologismo criado por Phillip Tagg em 1979 para
prá valer” (“a-changing for real”). descrever a comparação musical de intertextos de um ou
mais elementos estruturais de uma obra musical com outra.
Embora este artigo já passe de 8.000 palavras, ainda
há muito mais a ser dito sobre a música do vídeo da Estésico: Do francês esthésique (Molino, via Nattiez), é
eleição de Obama e suas conotações. Pode-se argu- um adjetivo relacionado à aesthesis, ou seja, à percepção
mentar, por exemplo, que o caráter antêmico do IOCM da música, ao invés da produção/construção/criação/rea-
I-V-vi-IV não seja de grande importância para Yes we lização musical. Basicamente, o mesmo que recepcional e
can e para sua letra, que é quase totalmente falada. o oposto de construcional ou poïético. Na música, busca
Mas este argumento se esvazia em pelo menos um descrever um elemento da estrutura do ponto de vista de
ponto: quais gravações consistindo de frases curtas suas qualidades conotativas percebidas, ao invés de sua
chamativas apresentadas por diversos artistas, um de- construção, por exemplo, “delicado”, “som de detetive”,
pois do outro, formando uma série de conclamações, “allegro” ao invés de “con sordino”, “acorde menor com
existem no gênero das canções pop reconhecidamen- sétima maior”, “quarta aumentada”, “pentatonicismo” etc.
te desde, pelo menos, Do They know it’s Christmas? da
BAND AID (1984). E canções nesta forma – que chamo Harmonia de terças (tertial harmony): Neologismo
de charity stringalong (canções de solidariedade com criado por Phillip Tagg em 1998 para descrever harmo-
solos de cantores) –, invariavelmente envolvendo uma nias baseadas na superposição de terças que se entre-
chamada de participação em uma causa nobre. 38 Este laçam (por exemplo, tríades comuns, acordes de sétima,
cantar ou declamar consecutivamente, ao invés de si- acordes de nona etc.), ao contrário da harmonia quartal,
multaneamente é simplesmente uma outra maneira de, em que há a superposição de quartas.
musicalmente, apresentar um sentido de comunidade,
que se pode comparar a um salmo ou hino. Yes we can IOCM: Abreviatura de Material de Comparação Interob-
combina, por assim dizer, o universo harmônico comu- jetiva (Interobjective Comparison Material), um neologis-
nitário progressista da revista Sing out! 39, com um tipo mo criado por Phillip Tagg em 1979 para descrever inter-
de comunidade beneicente e participativa em prol de textos musicais, ou seja, trechos de outras obras musicais
uma causa humanitária. nos quais pode se demonstrar semelhança com a obra
musical que é objeto de análise.
Os acordes de Yes we can também se referem a outras
tradições da música popular anglófona, como a banda Material de Comparação Interobjetiva: veja IOCM.
de rock formada por quatro homens (por exemplo, os Musema: Menor unidade de signiicado musical. Para
Beatles, a primeira formação do Radiohead etc.), coun- o conceito original, veja o artigo de Charles Seeger On
try-rock e folk-rock (por exemplo, The Band) e soul (por the moods of a musical logic no Journal of the American
exemplo, Otis Redding). Além disso, Yes we can acres- Musicological Society, v.13, p.224-261 (SEEGER, 1960);
centa o rap e a pregação afro-americana àquela mistura re-publicado no livro Studies in Musicology 1935-1975
de estilos, fundindo-os em um único produto. Esta fusão (Berkeley: University of California Press, 1977, p.64-88;
certamente parece se alinhar com os objetivos de unii- musema é deinido na p.76).
cação e colaboração de Obama. Entretanto, todas essas
questões – a inclusão musical de expressões da comu- Paramusical: Qualidade de um elemento semiologica-
nidade, o papel do rap e da pregação religiosa em Yes mente relacionado a um discurso musical especíico sem
we can, e sua relação com o contexto político no qual ser estruturalmente intrínseco àquele discurso. Neologis-
o vídeo foi produzido e utilizado – estão, infelizmente, mo criado por Phillip Tagg em 1983 que signiica literal-
fora do escopo deste artigo. mente “ao lado da música”.

17
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

construcional e o oposto de estésico ou recepcional. Na


PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conota- música, busca descrever um elemento da estrutura musi-
ção (Paramusical Field of Connotation), um neologismo cal do ponto de vista de sua construção, ao invés de suas
criado por Phillip Tagg em 1991 para descrever um cam- qualidades conotativas percebidas, por exemplo, “con
po semântico conotativamente identiicável que se re- sordino”, “acorde menor com sétima maior”, “quarta au-
laciona com estruturas musicais (ou um conjunto delas). mentada”, “pentatonicismo” ao invés de “delicado”, “som
De 1979 a 1990, foi denominando de EMFA (Extramusi- de detetive”, “allegro” etc.
cal Field of Comparison).
Turnaround: Sequência repetida de acordes, geralmente
Poïético: Do francês poïétique (Molino, via Nattiez), é um em número de três ou quatro, ocupando uma frase de dois
adjetivo relacionado à poïesis, ou seja, o fazer musical, ou a quarto compassos, por exemplo, a sequência de acom-
invés da percepção musical. Basicamente, o mesmo que panhamento I-vi-ii/IV-V, também conhecida como vamp

(termo usado, por exemplo, na frase “vamp till ready”).


Referências de textos:
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pers, no. DK 1. 1989 (também disponível online em www.tagg.org/others/bjbgeol.html) (Acesso em 18 de março, 2009).
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TAGG, Philip. Glossary of special terms, abbreviations, neologisms, etc. used in writings by Philip Tagg. www.tagg.org/
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______. Tagg’s harmony handout. www.tagg.org/articles/xpdfs/harmonyhandout.pdf . (Acesso em 19 de outubro de 2009).

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BACH, Johann Sebastian. Air, Orchestral Suite in D Major (BWV 1068), 1731. Leipzig: VEB Deutscher Verlag fur Musik
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WHITE, BARRY. I can’t get enough of your love babe. Pye Int. 7N25661. 1974.
WILL.I.AM. Veja ADAMS, Wiliam. 2008.
WINWOOD, Stevie. Veja SPENCER DAVIS GROUP. 1967.
YOUNG, Neil. Southern Man. After the Gold Rush. Reprise 7599-27243-1. 1970.

Referência de vídeo:
PECK, Cecília; KOPPLE, Bárbara. Shut up and sing (Cabin Creek Films/Weinstein, 2006).

19
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

Notas
1. O vídeo, que nunca foi oicialmente sancionado pela campanha de Obama, foi disponibilizado online em fevereiro de 2008 e, até julho do mesmo ano,
foi assistido mais de 21 milhões de vezes. O vídeo é de autoria de “Will.i.am” (nome artístico de William Adams) e foi dirigido por Jesse Dylan, ilho de
Bob Dylan. Fonte: www.en.wikipedia.org/wiki/Will.i.am (Acesso em 15 de março de 2009).
2. O loop de acordes ║: Em |C - Am:║ / ║:Em - Em7 - C - Am:║ de Southern man não será discutido neste artigo. É, na verdade, uma variante dos
acordes vai-e-vem (shuttle chords) no modo eólio (BJÖRNBERG, 1989).
3. Meus comentários foram enviados à lista da IASPM em 19 de Janeiro de 2009.
4. Estou considerando o tom da peça como Sol Maior (I grau), mesmo que a matriz e a gravação ao inal, na verdade, termine em Dó Maior (IV grau).
5. No acorde de Dó Maior no início de Not ready to make nice (2006), as Dixie Chicks utilizam o mesmo efeito de nona adicionada (add9). Veja www.
youtube.com/watch?v=IHH8bfPhusM (Acesso em 6 de fevereiro de 2009).
6. Como explica Carlos VEGA (1944, p.160), se referindo à musica nessa tradição, “No hay melodias en mayor y melodias en minor: hay simplemente me-
lodias bimodales” [não há melodias em maior ou menor: há simplesmente melodias bi-modais”.
7. La Folia foi uma canção bastante popular no início do século XVI, provavelmente de origem portuguesa, também conhecida como Les folies d´Espagne
e que serviu de tema para muitas variações no século XVII.
8. De fato, quando eu estava produzindo uma canção de solidariedade no Chile com nossa banda RÖDA KAPELLET (Solidaritetssång för Chiles folk, 1974),
optei, sem reletir o porquê naquela época, pela matriz VI–III–V–i (F–C–E–Am). Todos os músicos envolvidos nesta performance, mais Pedro
van der Lee (musicólogo e performer argentino-sueco e tocador de huayño), consideravam a peça em Lá Menor, e não em Dó Maior. As outras canções
mencionadas por Orozco apresentam características semelhantes. Polo Margariteño também é bi-modal — G D (B) Em Am B Em — e Rio Manza-
nares, harmonicamente, segue quase como Quiaquenita — G C E Am (VII–III–V–i). A versão de Elida Nuñes de Uruchaqina, referida por Orozco, é
melodicamente bi-modal, mas na sua performance, não se observa nenhuma mudança de campo harmônico. Há, sim, uma espécie de luxo permanente
entre Lá Menor e Dó Maior. Sobre o comentário de VEGA (1944) a respeito de bi-modalidade, veja a nota anterior no presente artigo.
9. A mudança de Si Maior para Mi Menor pode ser um tipo de progressão mais direcional, com função dominante (como um tipo de cadência interrom-
pida), mas ocorre tão claramente no meio da sequência que apresenta mais o caráter de uma progressão tonal temporária do que de uma inalização.
10. Por exemplo, comparando-se a sequência C G D A E (plagal) de Jimi Hendrix com a sequência (B) E A D G (função dominante) de Sweet Ge-
orgia Brown. O jazz modal e o free jazz estabeleceram outras regras tonais, mas quase todos os outros tipo s de jazz, inclusive o bebop, se baseiam
claramente na direcionalidade V-I e não IV-I.
11. As DIXIE CHICKS, por exemplo, terminam ambas Not ready to make nice e Taking the long way round (2006) com V–IV[–I], uma sequência mais
idiomática do que V-I. O modo jônico e o passo harmônico V-I aparecem em alguns tipos de música country, mas sua ausência também acontece.
Esta característica tonal pode ser derivada de sua preponderância relativa, dentro das músicas tradicionais afro-britânico-americanas, em modos que
apresentam a 7ª maior a partir da tônica.
12. Sol Maior é uma das tonalidades preferidas de DYLAN. As seguintes canções são também em Sol Maior, embora sejam articuladas de maneira diferente
do que acontece em The Times they are a-changing ou Yes we can: I pity the poor immigrant (em 3/4, 1968), I shall be released (com swing), Lay, lady,
lay (com órgão e violão de aço, 1969), Don’t think twice (com palhetadas sistemáticas, 1963) e It’s all over now Baby Blue (Sol maior, mas com uso do
capotraste preso no braço do violão, 1965).
13. O acorde da tônica Sol tocado na primeira posição marca o início de outras canções de GUTHRIE, como All you fascists are bound to lose e Hey Lolly Lolly
(1944). Mesmo a sempre popular This land is your land (1944) de Guthrie, que foi cantada nas festividades de inauguração da campanha de Obama,
começa com um acorde de Sol Maior com cordas soltas, embora a canção seja m Ré Maior com o loop de acordes ║: G|D|A|D :║.
14. Por exemplo, School’s out (COOPER, 1972), A Few more rednecks (DANIELS, 1989), I Can’t get enough of your love babe (WHITE, 1974).
15. Os acordes mais fáceis de se tocar no violão, na primeira posição, são Mi Maior, Mi Menor, Sol Maior, Lá Maior, Lá Menor, Dó Maior, Ré Maior e Ré Me-
nor. Não tive qualquer instrução no violão, mas posso produzir esses oito acordes sem diiculdade. Posso mesmo, geralmente com alguns milisegundos
de atraso, fazer acordes com pestana como aquele Si Maior de Yes we can. Não consigo lembrar de uma única “canção de protesto” popular dentro das
tradições do folk ou folk rock na língua inglesa que não esteja em uma daquelas oito tonalidades. A tonalidade menos comum seria Ré Menor, enquanto
que, certamente, Sol Maior e Ré Maior estão entre as tonalidades mais comuns neste tipo de música.
16. Veja também as versões de CLAPTON (1971, 1992) e WINWOOD (1967).
17. Seria interessante incluir neste estudo a progressão I–III–IV que ocorre na sequência ao inal de Imagine de John Lennon (1971): IV–V–I–III–IV–V–I.
Com a letra, temos: [IV] “You may [V] say I’m a [I] dreamer [III] but I’m [IV] not the only [I] one; [IV] I hope some [V] day you’ll [I] jo-
in us [III IV] and the [V] world will [I] live as one” {traduzindo: [IV] “Você pode [V] dizer que sou um [I] sonhador [III] mas não [IV] sou o
[I] único; [IV] espero que algum [V] dia você se [I] junte a nós [III IV] e aí o [V] mundo [I] viverá como um só]. Infelizmente, tive de excluir esta
referência porque o seu III grau não é um passo harmônico inicial e nem é seguido pelo vi grau.
18. O termo lo-i (low-idelity, ou “baixa idelidade”) foi criado por Murray Schafer como antônimo de hi-i (high-idelity).
19. Veja a paródia de Stan FREBERG (1956) da música The Great pretender dos THE PLATTERS (1955).
20. Os acordes de Abilene são G|B|C|G|A|D|G C|G [D]| (com swing 4/4 rápido), enquanto que os de Crazy são G|B7|Em|Em|D |D7 |G |G [D]| (balada
um pouco lenta). Os acordes de Who’s sorry now são E|G7|C7|F7|B7|E etc. no tom de Mi Maior e andamento q = 88, e os acordes The Char-
leston são B|D7|G7|C7| F7|B no tom de Si Maior e andamento q= 96.
21. Por exemplo, na gravação de CLAPTON (1972), o andamento é q. = 56.
22. Note a distinção entre os acordes vai-e-vem (que BJÖRNBERG,1989, chama de pendulum) e o loop de acordes. No passo harmônico vai-e-vem, o
acordes vão e depois voltam, mas no loop, os acordes giram ao redor. São necessários três pontos pelo menos para se criar uma forma tri-dimen-
sional. Quanto maior o número de ângulos em uma forma bi-dimensional, mais ela se parecerá com o círculo. O diamante que se forma no campo
de baseball norte-americano tem quatro ângulos (as “bases”), o que também acontece na área do pitch do jogo inglês rounders. Pode-se caminhar
ao redor de um quarteirão completamente retangular. Mas não se caminha ao redor de uma linha reta entre dois pontos, não pelo menos dentro
da física de Newton. Ocorre o mesmo com as sequências de acordes. Incidentalmente, Sitting on the dock of the bay também contém os sons de
gaivotas na praia obrigatórios, além do barulho das ondas do mar.
23. O contexto desta frase na letra de Yes we can é o seguinte: “ ‘Yes we can’. It was sung by immigrants as they struck out from distant
shores and pioneers who pushed westward against an unforgiving wildeness. ‘Yes we can’ “. [“ ‘Sim, nós podemos”, cantaram os imigrantes,
quando se lançaram de praias distantes, assim como os pioneiros que se embrenharam no oeste contra a natureza inóspita. ‘Sim, nós podemos’ ”.]
24. Quando digo “one ive oompah” [“I-V um-pá”], quero dizer a levada do contrabaixo em que “oom” são semínimas pontuadas leves no grave nos tempos
1 e 3, e “pah” são semicolcheias pesadas no registro médio. Para cada acorde, o baixo toca primeiro a fundamental do acorde da cifra e, depois, a quinta
em relação àquela nota. Por exemplo, Mi e Si para o acorde de Mi Maior; Sol # e Ré # para o acorde Sol #, Dó# e Sol# para o acorde de Dó# etc. Algumas
vezes, a ordem pode ser inversa quando for o acorde do V grau. Por exemplo, Fá# e Si para o acorde de Si Maior (V) no tom de Mi Maior (I).

20
TAGG, P. Os acordes de Yes we can... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.7-21.

25. A sequência de acordes nos 12 compassos dos versos de A World without love é a seguinte: ║: E|G#|C#m|C#m|E|Am|E |E |F#m |B |E ||1ª casa: C B
turnaround :║ 2ª casa: E ... seguindo até a ponte de 8 compassos ou até o inal|. A instrumentação da canção consiste de: (1); os pesadamente pon-
tuados “one-ive oompahs” de Paul McCartney; (2) uma bateria simples e discreta; (3) uma batida simples do violão; (4) um órgão Vox acompanhando
com string pads praticamente inaudíveis junto com a melodia do verso no break instrumental. A linha vocal é cantada por vozes masculinas jovens de
maneira lírica e simples.
26. 39% da canção Creep, que dura 4:00, corresponde a 1:34. A gritaria e o overdrive ocorrem em dois pontos desta gravação:
1:02 -1:24 (22”) e 2:06-3:08 (1:02”).
27. A canção Creep é única, dentro do conhecimento que tenho sobre outras canções que se baseiam na sequencia do loop I-III-IV-iv. Baseio esta interpre-
tação de dramática desesperança não tanto na letra da canção, embora seu conteúdo contenha bastante drama e desesperança, mas na harmonia,
como é comum no tipo de análise musical exagerada que os alunos geralmente apresentam, geralmente com respostas do tipo alienado, com raiva,
sem esperança, desesperado, cínico etc. Experimente substituir o acorde de Dó Menor por Ré Maior ou Ré Menor ou Fá Maior.
28. Além de outras inversões de tríades, Brokenhearted contém um acorde de Mi diminuto e apresenta alternâncias bem marcadas para o campo de Dó
Maior-Lá Menor para depois voltar a Si Maior-Sol Menor.
29. Na verdade, Sukiyaki começa com acordes vai-e-vem plagais (I-IV-I no tom de Sol Maior) mas, antes, progride harmonicamente para I-iii-vi-V no
compasso 5 do verso.
30. A progressão iii-IV em Baby Blue ocorre mais ao inal de cada verso (em “Look out, the saints are coming through” [“Cuidado, os santos estão passando”
no verso 1]. O iii vi reaparece logo antes do rallentando inal ao inal de cada verso de I pity the poor immigrant com Joan Baez no disco A Hard Rain
concert, 1976).
31. O tipo de letra contando histórias que se observa em Hangman, The Weight e I pity the poor immigrant de Dylan também ocorre em outra canção bem
conhecida que utiliza a partida harmônica I-iii [-vi] em andamento andante: A Day In the life (1967: “I read the news today” [“Leio as notícias de
hoje”], “A crowd of people stood and stared” [“Uma multidão de pessoas parou e encarou”], etc.) dos Beatles. Sem qualquer consciência dessa conexão,
nossa banda também utilizou este I-iii[-IV] por razões narrativas semelhantes em Revolutionens vagga (RÖDA KAPELLET, 1974).
32. O Ré e o Fá# do acorde de Ré Maior no tom de Sol Maior são ambos adjacentes à fundamental da tônica de Mi Menor.
33. Para um hilariante pot-pourri de canções de derivadas do Canon de Pachelbel, veja PARAVONIAN (2006).
34. Vale a pena mencionar que esta canção aparece no “. . . álbum Spartacus, o qual tem sido conectado. . . com temas favoritos da banda [The Farm], tais
como socialismo, fraternidade e futebol americano” (artigo All together now da Wikipedia (Acesso em 17 de março de 2009).
35. Voltando a falar, pela última vez, do repertório político de esquerda da banda de rock da qual fui membro de 1972 a 1976, talvez valha a pena comentar
que utilizamos o loop I-V-vi-IV em Sol Maior (G - D - Em - C) para acompanhar as seções narrativas da montagem de 10 minutos de Lärling (RÖDA
KAPELLET, 1976). A letra se refere ao tratamento injusto recebido por aprendizes na indústria e sua determinação de mudanças para melhorar de vida.
36. Don’t stop believing (1981) de JOURNEY tem um andamento mais moderado (q = 122) do que as faixas de Twisted Sister e Only Ones, e repete o
loop I-V-vi-IV durante os versos. Mas, suas quatro semínimas duras, ampliicadas no piano e arpejos de semicolcheias pseudo-clássicos na guitarra
elétrica, revelam uma instrumentação muito diferente de Yes we can. Mesmo assim, a canção tem algum valor antêmico, com sua letra que clama
alguém a não desistir (“Não pare de acreditar”). Um outro exemplo de rock antêmico com I-V-vi-IV em Sol Maior é Free bird de LYNYRD SKYNYRD
(1973, q = 120). Entretanto, esta sequência harmônica faz parte de um período de 8 compassos - ║: I |V|vi|vi ] IV|IV|V|V :║ com o grau IV no com-
passo 5 iniciando uma segunda frase. Mais apropriada, bastante antêmica e politicamente progressista é a icônica canção sueca Man måste veta vad
man önskar sig (1972, ║: D|A|Bm|G :║; q = 120) da banda progressiva sueca HOOLA BANDOOLA. Entretanto, assim como ocorre com as referências
de RÖDA KAPELLET (notas de im 7, 29, 33), mesmo com raízes estilísticas na tradição pop/rock anglo americana, a letra é em sueco, e não em inglês.
37. A história completa do incidente no teatro O2 Shepherd’s Bush Empire em Londres, em 2003, quando a cantora Natalie Maines das Dixie Chicks expres-
sou sua vergonha de ter nascido no mesmo estado que o presidente George Bush e suas consequências para aquelas três heróicas musicistas jovens do
Texas é contada no tocante documentário Shut up and sing (PECK e KOPPLE, 2006).
38. Alguns exemplos destes grupos são Artists united against apartheid (1985), os suecos Svensk rock mot apartheid (1985), Hear’n aid (1986) e Disco aid
(1986). O verbo string along, de acordo com o Oxford Concise English Dictionary (1995), é uma expressão coloquial que signiica “estar em companhia
de”. Singalong, de acordo com o mesmo dicionário, signiica “uma canção que alguém pode cantar junto” ou “uma ocasião de canto comunitário”. Se
várias pessoas cantam ou falam, uma de cada vez e sucessivamente durante uma canção, elas certamente estão em companhia umas com as outras (e
também com a canção), mas elas o fazem consecutivamente e não simultaneamente: daí o termo stringalong.
39 Entre os fundadores da revista Sing Out! estão Pete Seeger, Woody Guthrie, Paul Robeson, Alan Lomax e Irwin Silber. Para uma descrição e história
da revista, veja www.singout.org/sohistry.html (Acesso em 18 de março, 2009)

Philip Tagg é Professor de Musicologia na Faculté de Musique da Université de Montréal (Canadá). Co-fundador da Interna-
tional Association for the study of Popular Music (IASPM) e mentor da Encyclopedia of Popular Music of the World (EPMOW),
publicou dezenas de artigos nos mais prestigiosos periódicos. Foi professor do Institute of Popular Music da University of
Liverpool (Inglaterra), onde orientou mestrandos e doutorandos e desenvolveu cursos de musicologia, análise, harmonia e
semiologia relacionados à música popular. Trabalhou também na University of Göteborg (Suécia) e Swedish Council for Re-
search in the Humanities and Social Sciences (Suécia). É organista erudito e tecladista em bandas de rock e pop, entre elas
Röda Kapellet. Como compositor, escreveu obras corais e canções populares. É autor e colaborador de diversos programas
de rádio educacionais relacionados à música popular. Recebeu diversos prêmios nas áreas de composição, ensino e pesquisa.
Seu site www.tagg.org é um dos sites de musicologia e etnomusicologia da música popular mais visitados em todo o mundo,
no qual dispobiniliza gratuitamente signiicativa parte de sua extensa obra didática e de pesquisa.
Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o Mes-
trado e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um livro, três capítulos de
livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, musicologia, etnomusicologia
da música popular e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras e recitais
nos principais eventos nacionais e internacionais de contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior como solista,
teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Arnaldo
Cohen e músicos populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI,
Toninho Horta, Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Túlio Mourão e Fabiano Araújo Costa.

21
BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.

Hermeto Pascoal: experiência de vida e a


formação de sua linguagem harmônica

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG)


fborem@ufmg.br

Fabiano Araújo (UFES, Vitória, ES)


armoniah@gmail.com

Resumo: Estudo panorâmico sobre a trajetória musical e a formação das linguagens harmônicas do compositor, arranjador
e multi-instrumentista Hermeto Pascoal ao longo de suas fases musicais, linguagens que são geralmente associadas,
na música erudita, ao tonalismo, modalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e música concreta. São
observados como elementos de sua experiência de vida (cultural, social, religiosa e proissional) podem ter inluenciado
a combinação vertical de sons na sua criação musical, bem como a sua proposta e utilização de conceitos como música
universal, cifragem universal, música da aura, música dos ferros e método do corpo presente.
Palavras-chave: Hermeto Pascoal; música popular brasileira; etnomusicologia brasileira; harmonia; análise musical;
auto-didatismo em música.

Hermeto Pascoal: life experience and the formation of his harmonic language

Abstract: Panoramic study about the musical trajectory and development of the harmonic languages of the Brazilian
composer, arranger e multi-instrumentalist Hermeto Pascoal through his musical phases, languages which are usually
associated with the “classical” terms tonalism, modalism, atonalism, polimodalism, soundscape and concrete music. It is
observed how elements of his life experience (cultural, social, religious and professional) may have inluenced the vertical
combination of sounds in his musical output as well as his proposition and usage of concepts such as universal music,
universal chord notation, aura music, iron scraps music and present-body method.
Keywords: Hermeto Pascoal; Brazilian popular music, Brazilian ethnomusicology; harmony; musical analysis;
autodidacticism in music.

“Eu uso a teoria, a teoria não me usa. . .”


Hermeto Pascoal (CAVALCANTI, 2004)

1 – Introdução
Este estudo panorâmico tem o objetivo de apresentar a explicita a condução de vozes), podem revelar um pen-
formação da linguagem harmônica na trajetória musi- samento estruturado que, se nasceram de sua intuição
cal de Hermeto Pascoal. Conhecer o percurso não-con- e autodidatismo brasileiros, encontram eco e explicação
vencional de sua formação nos mostra como surgem, se nos princípios sistematizados por outro importante com-
acomodam e se integram, dentro da sua obra, as diver- positor do século XX, o europeu Arnold Schoenberg (mú-
sas nuances de sua linguagem harmônica, que tem sido sico de formação erudita, racional, mas autodidata como
associada, na música erudita, aos termos tonalismo, mo- Hermeto Pascoal).
dalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e
música concreta. Ao desenvolver o princípio da Monotonalidade (ou seja, a
manutenção de apenas uma tônica em uma peça ou por-
O conjunto de 366 peças do Calendário do som, bem ções signiicativas da mesma) e seus conceitos relaciona-
como a maioria de sua vasta produção, se associa à mú- dos (Tonalidade Expandida, Tonalidade Flutuante, Tona-
sica tonal. Entretanto, os procedimentos peculiares de lidade Suspensa, Transformação, Substituição, Regiões,
Hermeto (músico de formação intuitiva, não letrada) de Regiões Intermediárias, Acordes Vagantes), SCHOENBERG
se afastar e de se aproximar dos centros tonais em cada (2004, 2001, 1999) buscou simpliicar as explicações para
uma delas, assim como sua graia especial de cifras (que os crescentes afastamentos harmônicos proporcionados

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.

por notas alteradas estranhas à tonalidade inicial. Esta NA, Aline e PASCOAL, Hermeto, 2009b), ainda não termi-
perspectiva inovadora foi aproveitada, no Brasil, por Pau- nou este trabalho. No mesmo site, encontra-se também
lo José TINÉ (2002) dentro do contexto do ensino da mú- uma errata de duas páginas (provida por Aline Morena e
sica popular, cujo repertório e práticas de performance pelo próprio Hermeto Pascoal) sobre outra fonte impor-
quase sempre evitam os conceitos de modulação, polito- tante: o livro para crianças O Menino Sinhô, vida e música
nalidade e atonalismo. de Hermeto Pascoal para crianças (VILLAÇA, 2007). Agra-
decemos a Hermeto Pascoal, Aline Moreno, Jovino Santos
Hermeto Pascoal e sua obra constituem um rico manan- Neto e Itiberê Zwarg por terem generosamente revisado as
cial de temas de estudo, e proveria temas para diversas informações históricas deste artigo.
áreas de pesquisa em música: composição, performance,
etnomusicologia, educação musical, organologia, música Grosso modo e quase cronologicamente, a trajetória mu-
e tecnologia, sociologia e psicologia da música. Entre os sical de Hermeto Pascoal pode ser dividida em oito fases:
trabalhos acadêmicos sobre o compositor, destacam-se
sete dissertações de mestrado, em que a trajetória mu- I (1936-1942): do nascimento à idade escolar, período de
sical de Hermeto Pascoal serve de contexto para focos atenção e familiarização com sons de animais, melodias
diversos. Entretanto, ainda há uma grande diiculdade de da fala, objetos, instrumentos musicais e festas do inte-
obtenção de fontes consolidadas e atualizadas sobre esse rior em Lagoa da Canoa (Alagoas).
tema. PRANDINI (1996) concentrou seu estudo nos ele-
mentos rítmicos, harmônicos e melódicos característicos II (1943-1949): da infância à adolescência, período de prá-
em improvisações que transcreveu de gravações de Her- tica instrumental e trabalho informal como músico (fole de
meto Pascoal. TABORDA (1998) busca explicar a obra de oito baixos/pandeiro) em Lagoa da Canoa e adjacências.
quatro músicos populares brasileiros (Hermeto Pascoal,
Caetano Veloso, Jards Macalé e Chico Mello) com base III (1950-1957): migração para grandes cidades do Nor-
em matrizes eruditas europeias. K. RODRIGUES (2006) deste (Recife, Caruaru, João Pessoa), consolidação prois-
analisou o pianista Hermeto Pascoal juntamente com sional (sanfona/pandeiro) e experimentação com o piano.
mais sete outros destacados pianistas da música popu-
lar brasileira. ARAÚJO (2006), procurando avançar a pro- IV (1958-1968): migração para grandes centros do Su-
posta de TINÉ (2002), desenvolveu um modelo de análise deste (Rio de Janeiro e São Paulo), mudança do foco de
harmônica aplicado à realização de leadsheets de peças sanfoneiro de regional para pianista de grupos instru-
selecionadas do Calendário do som, a partir de conceitos mentais, desenvolvimento como compositor e multi-ins-
harmônicos de Schoenberg (sistematizados e discutidos trumentista e experiência em festivais da canção.
por DUDEQUE, 2006), explicando a manutenção e afas-
tamento de centros tonais na música de Hermeto. Dentro V (1969-1977): viagens aos Estados Unidos, gravações
do viés da semiologia, ARRAIS (2006) focou em aspectos como solista, consolidação internacional como composi-
do ritmo, timbre e contorno melódico. A maioria das in- tor, arranjador e multi-instrumentista.
formações históricas nestes estudos quase sempre parte
de artigos divulgados pela mídia, muitas vezes conlitan- VI (1978-1993): consolidação da Escola Jabour com Her-
tes. Neste cenário, Luiz Costa-Lima Neto e Lúcia Campos meto Pascoal e Grupo, desenvolvimento da notação mu-
são exceções, pois oferecem discussões substanciadas em sical, experiência com gravadoras de pequeno porte.
fontes etnomusicológicas primárias, entrevistas com o
próprio compositor e seus parceiros em grupos diversos. VII (1994-2002): socialização da Escola Jabour, pro-
Luiz COSTA-LIMA NETO (1999) estudou a caracterização jetos musicais isolados, como a escrita do Calendário
de elementos rítmicos, harmônicos, melódicos e timbrísti- do som, shows nacionais e internacionais com outros
cos no período de Hermeto pascoal e Grupo (1981-1993). solistas e grupos.
Lúcia CAMPOS (2006) abordou a inluência do forró,
choro e bandas de pífanos na rítmica do compositor. Luiz VIII (2003-presente): parceria com Aline Morena e for-
COSTA-LIMA NETO (2000, 2008, 2010a, 2010b) se desta- mação do duo multi-instrumentista Chimarrão com Ra-
ca como o autor que mais publicou trabalhos sobre a vida padura, rompimento com as grandes gravadoras multi-
e obra de Hermeto Pascoal em periódicos no Brasil e no nacionais e projeto de socialização da obra de Hermeto
exterior (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz Pascoal na internet (partituras, textos, vídeos e grava-
como instrumento neste número de Per Musi às p.44-62). ções), shows com seu duo, grupo e big bands.

É grande o número de discrepâncias em relação a datas, Quando não indicadas por citação, as informações histó-
nomes de pessoas, músicas e lugares a respeito de Hermeto ricas incluídas neste artigo resultam de um cruzamento
Pascoal. O site oicial do compositor informa que o escritor e concordância de dados das seguintes fontes: PASCO-
baiano Roberto Torres “. . . está escrevendo a biograia do AL (2009a, 2009b, 2009c), MORENA e PASCOAL (2009a,
Hermeto há mais de 20 anos. . .”. Ao que tudo indica, Torres, 2009b, 2009c, 2009d), SIXPACK (2009), COSTA-LIMA NETO
que seria “. . . o pesquisador que mais conhecimento de (1999, 2000, 2008, 2010a, 2010b), VILLAÇA (2007), CAM-
causa tem a respeito da vida e obra do Hermeto” (MORE- POS (2006), PRADINES (2006) e MARCONDES (1998).

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BORÉM, F.; ARAÚJO, F. Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.22-43.

2- A trajetória musical eclética de Hermeto ma ao ar livre A Felicidade bate à sua porta, Jackson do
Pascoal Pandeiro lhe deu um conselho: “Hesmeto [Jackson não
conseguia falar Hermeto], se você icar nesse negócio
“A minha música começou no meu cordão umbilical. Foi quan- de tocar pandeiro, você não vai pra frente não. Não vê
do eu nasci, o meu primeiro som foi esse. . .” Hermeto Pascoal eu, estou começando a cantar, não vou icar no pandeiro
(BARROSO, 2009).
toda hora não”. (BARROSO, 2009). Resultado: suspenso do
Hermeto Pascoal nasceu em 22 de Junho de 1936 no sítio trabalho por quinze dias, por não aceitar tocar apenas
Olho d’Água em Lagoa da Canoa, no município alagoano pandeiro e ser chamado de “Sivuquinha”, Hermeto foi en-
de Arapiraca, “ilho de agricultores [Pascoal José da Costa viado para a rádio de Caruaru e, Zé Neto, para a rádio de
- ou Seu Pascoal, e Vergelina Eulália de Oliveira – ou Garanhuns, para recomeçarem da estaca zero (VILLAÇA,
Dona Divina], albino e de olho virado” (O. RODRIGUES, 2007, p.36-37). O maestro Giusepe Mastroianni da Rádio
2003). Por parecer um pequeno homenzinho, recebeu Difusora de Caruaru percebeu que o jovem talento tinha
da família o carinhoso apelido de Sinhô (VILLAÇA, 2007, ouvido absoluto, o que levou Hermeto a procurar a escola
p.5-7). Logo se familiarizou com os sons que o rodeavam de música do maestro e violinista Laranjeiras. Mas deste
e vinham de fontes diversas: o fole do pai, os músicos ouviu que não poderia aprender música ali devido à sua
Vicente Cego e Juvenal Tatu que vinham tocar no bar do deiciência visual, ao que respondeu: “Maestro, eu não
pai, as sobras de ferro do avô ferreiro Sena da Bolacha, preciso das aulas para aprender música. Música eu já sei.
os animais, o sino da igreja, as festas e cantos populares Vim até aqui para aprender como é que se escreve a mú-
de Lagoa da Canoa, os gritos dos vendedores na feira da sica!” e logo decidiu que “Música não é para ver. Música
vizinha Arapiraca (VILLAÇA, 2007, p.8-25). Aos sete anos, é para sentir. Se eu deixar de tocar só porque não consigo
iniciou-se no fole de oito baixos, sem teclado, apenas ler as notas no papel, eu tô é frito!” (VILLAÇA, 2007, p.42-
com botões, também conhecido como harmônico ou pé- 43). Mas pediu ao amigo Zé Gomes que lhe comprasse um
de-bode, pela simplicidade. Mas uma simplicidade dentro livro de música, o Método para Acordeon do carioca Alen-
da qual Hermeto já vislumbrava combinações pouco usu- car Terra onde, pela primeira vez e aos dezesseis anos, em
ais. Esse oito baixos em Dó de seu pai era essencialmente meio ao oceano desconhecido de símbolos musicais, viu
diatônico, mas incluía um Fá sustenido, segundo relata “aquela bola branca, quatro tempos. . . aquela hastezinha.
Hermeto em uma entrevista a Álvaro CAVALCANTI (2004, . . a mínima pretinha. . .”. Aí, deixou de lado esta apren-
CD 4; ouça a faixa única entre 7’:48’‘ e 8’:05’’). Seu Pas- dizagem, pelo menos por um tempo, porque aquela “. . .
coal se animou, ao ver o talentoso ilho tocando escon- teoria ia me atrapalhar” (BARROSO, 2009).
dido seu fole, “. . .você vai agora é tocar, papai vai com-
prar um para você, eu vou vender aí uma vaca, um boi, Zé Neto mudou-se para o Rio de Janeiro a convite de Luiz
para comprar um bonito para você” (BARROSO, 2009). Do Gonzaga. Hermeto, aos 19 anos, retorna ao Recife, onde
universo musical de sua infância, também faziam partes passa a tocar sanfona no regional de choro da Rádio Jor-
as lautas (pifes) de talo de mamona (carrapateira). Aos nal do Commercio. No ambiente das rádios, podia assistir
11, com apoio da família, formou a dupla Os Galegos do aos ensaios de grupos orquestrais com os maestros Guer-
Pascoal com o irmão Zé Neto, também albino, revezando ra-Peixe, Clóvis Pereira, Duda e Joaquim Augusto. Com o
fole e pandeiro em bailes da região (VILLAÇA, 2007, p.26). convite do guitarrista Heraldo do Monte para trabalhar na
Boate Delim Verde, transfere sua técnica da sanfona para
No início de sua carreira proissional, Hermeto Pascoal o piano e aprende a tocar “jazz para americano ouvir. . .
percorreu um caminho ligado à prática de música ao [para] marinheiros da base militar americana” (VILLAÇA,
vivo nas rádios. Os Galegos do Pascoal mudaram-se para 2007, p.48-49). Ainda no Recife, tocou no regional de Ro-
o Recife em 1950, onde foram contratados pela Rádio mualdo Miranda, cuja ilha Ilza tornou-se sua esposa em
Tamandaré. Conheceram Sivuca, que sentiu em Hermeto 1954, com quem viveu 46 anos e teve seis ilhos: Jorge,
“. . . ainda de calças curtas. . . ‘o fogo sagrado’ ” (SIVUCA, Fábio (músico multi-instrumentista como o pai), Flávia,
2000) e o ajudou a ingressar na Rádio Jornal do Commer- Fátima, Fabíula [escrito assim mesmo!] e Flávio. Aceitan-
cio, onde seu irmão já estava. Juntos, os três formaram do o convite de trabalhar no regional da Rádio Tabajara
o trio O Mundo Pegando Fogo, nome imposto pelo pro- em João Pessoa, Hermeto teve contato com diversos gê-
dutor da rádio Amarílio Niceias e referência à cor rosa- neros musicais – “bossa-nova, rock-and-roll, samba-jazz”
da e cabelos avermelhados dos três albinos; no trio foi (VILLAÇA, 2007, p.51), começou a compor e construiu
também imposto a Hermeto o apelido de “Sivuquinha”. uma grande reputação na Paraíba, mesmo sem saber ler
Na estreia do grupo no Largo da Paz, sem ensaio e com música. Atraído pela efervescência musical do sudeste do
instrumentos novos que Hermeto e Zé Neto mal conhe- Brasil, mudou-se para o Rio em 1958, para tocar sanfo-
ciam (sanfonas de 80 e 120 baixos, ao invés do fole de na com Pernambuco do Pandeiro em rádios. Na década
8!), o grupo agradou, até o momento em que o locutor de 1960, em meio aos festivais da canção, viu surgir a
pediu Vassourinha. Não conhecer o clássico do frevo em Bossa Nova, a Jovem Guarda, as canções de protesto e o
Recife foi fatal, apesar da tentativa de Sivuca, que antes Tropicalismo. Embora não se alinhe a nenhum destes mo-
de morrer considerou Hermeto “o Beethoven do século vimentos, Hermeto parece ter se identiicado com aquele
XX” (SIVUCA, 2000), de lhes salvar a pele. Hermeto foi que é considerado o mais soisticado harmonicamente,
obrigado, então, a tocar pandeiro na rádio. No progra- o que o levou a ser incluído no time de instrumentistas

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“herdeiros ou continuadores (muitas vezes sobreviventes) tendência ao modismo. ‘Ouço muita gente falar do Hermeto. Mas
da linhagem da bossa-nova” por Ana Maria BAHIANA poucos entendem’, airmou Theo de Barros, ex-companheiro de
Hermeto no Quarteto Novo, em dezembro de 78. ‘Não sei se feliz-
(1979-1980b, p.77). Para estudar o piano, instrumento mente ou infelizmente, ele está sendo tratado como um modismo.
caro e trancado a “sete chaves”, mas que fazia parte do . .’ ” (BAHIANA,1979-1980b, p.79-81)
instrumental básico das rádios e boates, Hermeto contou
com o “jeitinho brasileiro” de Heraldo do Monte na Boate “Ao se encerrar a década [de 1970], a música instrumental tinha
no Brasil pelo menos dois grandes nomes. . . dois nomes que exem-
Delim (VILLAÇA, 2007, p.49) e de Pernambuco do Pandei- pliicavam perfeitamente essa passagem da linha jazz/bossa para
ro na Rádio Mauá (CAMPOS, 2006, p.83). uma linguagem mais misturada e mais ampla: Egberto Gismonti e
Hermeto Paschoal [sic.]” (BAHIANA,1979-1980b, p.82-83).
No Rio de Janeiro, Hermeto logo expandiu sua cultura mu-
sical tanto na música instrumental quanto acompanhan- Em 1969, a convite da cantora Flora Purim e do percus-
do cantores em boates, como a Chicote. Tocou piano no sionista Airto Moreira, que mandava notícias otimistas de
conjunto e na boate do violinista Fafá Lemos. Substiuindo sua experiência de tocar com Miles Davis, Hermeto viajou
o acordeonista Chiquinho do Acordeom, fez parte, bre- para os Estados Unidos. Lá, participou dos LPs Natural Fe-
vemente, do Trio Surdina com Fafá Lemos e o violonista elings (1970) e Seeds On the Ground (1971) de Airto, atu-
Garoto. Depois, participou do conjunto do maestro, lau- ando como compositor, arranjador e instrumentista. Atra-
tista e saxofonista Copinha no Hotel Excelsior. Em 1961, vés de Airto, Hermeto e Miles Davis se conheceram, após
mudou-se para São Paulo onde, em 1964, a convite de um show do jazzista norte-americano. Hermeto lembra
Airto Moreira, com o im do Sambalança Trio (que tinha o da súbita amizade que se estabeleceu entre os dois:
pianista César Camargo Mariano), fundou o Sambrasa Trio “Aquele jeitão dele, meio carrancudo. . . você tem que acreditar
(ROBINSON, 2000). Além de tocar em casas noturnas como em alguma energia celestial. Isso foi antes de começar o show.
Stardust, sempre atento e autodidata, dedica-se ao estudo Eu acredito nisso, senti um vibração bonita dele. Aí ele fez o show
da lauta e saxofone. Acompanhou cantores de festivais dele, eu assisti o show, depois eu fui em um, dois, três shows. A
música dele eu não achava boa naquela época. . . aquele rock. . .
como Geraldo Vandré, Edú Lobo e Marília Medalha (com Mas ele aí me ligou e disse que queria me ver de qualquer maneira.
Ponteio, 1º Lugar no 3º Festival de Música Popular Brasilei- . . Quando eu cheguei lá e tal, levei um violão, ele se sentou, toquei
ra da TV Record em 1967). Mais tarde, se apresentou como um monte de música[s], cantando e solando. . .Quando acabei de
compositor de Serearei, cantada por Alaíde Costa no VII FIC tocar, ele chegou e disse: ‘Que pena que eu não posso gravar todas
as suas músicas!’. Aí eu falei: ‘Mas como você sabe que eu quero
- Festival Internacional da Canção de 1972 e de O Porco te dar todas pra gravar? Eu vim também pra gravar aqui. Eu vou
da festa cantada por Aleuda e ele no Festival Abertura da escolher as que eu quero te dar’. A partir daquele dia houve aquela
Rede Globo de Televisão em 1975. simpatia geral. . . Ao ponto de eu ir pra casa dele e a gente lutar
boxe. Uma vez eu dei uma porrada nele, errei e dei uma porrada
Hermeto sabia que acompanhar cantores era o ganha- nele. . .” (BARROSO, 2009).
pão mais certo, mas sentia que não poderia se submeter
para sempre às exigências dos shows, rádio e TV: E, de fato, através de Airto, conheceu Miles Davis, que se
interessou logo pelas suas músicas:
“. . . sob a patrulha ideológica do nacionalista Geraldo Vandré,
Hermeto trajava terno e gravata e mantinha o cabelo bem curto.” Mostrei a ele umas 12 músicas, que eram bem diferentes de tudo
(COSTA-LIMA NETO, 2008, p.24) aquilo que ele fazia. Disse que queria colocar algumas no disco
dele e eu me senti à vontade para brincar e dizer que eu veria
“Nem modernismo nacionalista, nem cosmopolitismo antropofági- quantas músicas deixaria ele colocar no disco dele. (IVANOV, 2002)
co. O conlito de Hermeto com a intelligentsia urbana representa-
da por Geraldo Vandré [diversas vezes acompanhado pelo Quarteto Ao inal, fora incluídas Nem um talvez e Igrejinha no dis-
Novo], de um lado, e com a vanguarda da música popular [termo
que não se aplica aqui, segundo Hermeto Pascoal] representada
co Live evil lançado por Miles Davis em 1972. Nesse disco
por Gilberto Gil [o qual o Quarteto Novo recusou acompanhar histórico, além de Hermeto e Airto Moreira, participaram
na música Domingo no parque], de outro, marcaram o caminho muitas lendas do jazz: Keith Jarret, Joe Zawinul, Herbie
pessoal que Hermeto escolheria em seguida.” (COSTA-LIMA NETO, Hancock, Chick Corea, John McLaughlin, Steve Grossman,
2008, p.14)
Dave Holland, Jack DeJohnette, Art Farmer, Wayne Shorter,
Finalmente, o vácuo após o relativo declínio da canção Joe Farrel, Hubert Laws, Ron Carter e Thad Jones (COSTA-
brasileira com o im dos grandes festivais abriu o espaço LIMA NETO, 2010a; 2000, p.124). A partir daí, só cresceu o
para a música instrumental, que levaria Hermeto a uma reconhecimento de Hermeto em todo o mundo e a expe-
era de maturidade e autonomia musical: riência de interagir com grandes artistas como Stan Getz,
Joe Pass, Barney Kessel, Dizzy Gillespie, Jhonny Grifin, Opa
“O predomínio do texto atingiu seu pique máximo com os festivais, Trio (grupo uruguaio que acompanhava Flora e Airto), Ab-
nos derradeiros anos 60 e primeiros 70 – e quando a censura em- dullah Chhadeh, Laura Fygi, Pedro Jóia, entre outros.
penhou esforços para emudecer a música brasileira, os primeiros
murmúrios da música instrumental – sem texto, portanto, teorica-
mente, incensurável e livre – se izeram ouvir. . . mas o jejum for- Hermeto tem recebido muitas homenagens e prêmios
çado imposto às plateias não criou de imediato um interesse por como reconhecimento pelo seu trabalho. Em 1984, foi
música instrumental. . . só começou a registrar dados positivos de inaugurada uma escola municipal com seu nome em Cam-
crescimento a partir de 1974. . . A realização, extremamente bem
sucedida, de uma verdadeira maratona de música improvisada, em
pestrinho (Alagoas). Em 1985, recebeu o título de cidadão
78 – o Festival de Jazz de São Paulo, em setembro – serviu para honorário de Arapiraca, cidade vizinha à sua cidade natal.
atestar a existência inequívoca de um interesse pelo gênero. . . e a Em 1972 e 1973, recebeu os prêmios de Melhor Solista e

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Melhor Arranjador , respectivamente, pela Associação Pau- se levarmos em consideração as diiculdades históricas
lista dos Críticos de Arte. No Rio, recebeu o Prêmio Sharp que as gravadoras lhe impuseram. Seu site oicial www.
de Música por cinco vezes: Melhor Grupo em 1987, Melhor hermetopascoal.com.br (PASCOAL, 2009c) lista 35 grava-
Disco Instrumental em 1993 com o disco Festa dos deuses, ções comerciais, o que inclui apenas os discos em que é
Melhor Disco Instrumental com Por Diferentes Caminhos o artista principal ou líder de grupos, os discos em que
e Melhor Música Instrumental por Pixitotinha em 1989 e participa como um dos solistas principais ou discos em
Melhor Arranjo pelo disco Kids of Brazil do duo de violões participa como arranjador ou diretor artístico: Hermeto
Duofel. Em 1994, sua apresentação no Queen Elizabe- (1971), A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973), Slaves
th Hall foi considerada pelo jornal The Guardian como o Mass (1977), Missa dos Escravos (1977), Zabumbê-bum-
maior concerto de música popular da década. Em 2002, á (1979), Ao Vivo Montreaux Jazz Festival (1979), Cére-
foi homenageado pelo SESC com a exposição Hermetis- bro Magnético (1980), Hermeto Pascoal & grupo (1982),
mos Pascoais, sobre sua obra. Ainda em 2002, os lautistas Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca (1984), Brasil
da Pró-Música do Rio de Janeiro o escolheram como tema Universo (1985), Só Não Toca Quem Não Quer (1987), Por
do espetáculo O Aprendiz de feiticeiro. Em 2004, recebeu Diferentes Caminhos: Piano Acústico (1988), Mundo Verde
o Troféu Monsueto no 3º Prêmio Rival Petrobrás de Música Esperança (1989, não lançado comercialmente), Festa dos
na categoria Música Instrumental pelo disco Mundo Verde Deuses (1992), Pau Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo, Série
Esperança, disco que ainda recebeu dois troféus no Prêmio Música Viva (1993), Hermeto Pascoal/Renato Borghetti
Tim de Música. Em 2007, o DVD Chimarrão com Rapadura - CCBB, ao vivo (1993), O Melhor da Música de Hermeto
foi escolhido como um dos dez melhores em todo o mundo Pascoal (1998), Hermeto Pascoal: eu e eles (1999), Mundo
pelo historiador e produtor de jazz Arnaldo DeSouteiro, no Verde Esperança (2002), Chimarrão com Rapadura (2006)
qual Hermeto foi homenageado como Artista do Ano e Ali- em CD e DVD em duo com Alina Morena.
ne Morena com Artista Revelação.
Hermeto aparece como arranjador, maestro e instrumen-
Em outubro de 2002, durante um workshop em Londrina tista convidado em diversos discos. Para citar panorami-
conheceu a cantora Aline Morena, descrita por um crítico camente alguns de uma enorme lista, temos: Roteiro No-
argentino como “Impactante. . . con una capacidad vocal turno (1964) de Mauricy Moura; The Real Bobby Mackay
asombrosa” (MOUJÁN, 2007), e a convidou para dar uma (1969) de Bobby Mackay, Tide (1970) de Tom Jobim, Can-
canja no dia seguinte com o seu Grupo em Maringá. Em tiga de Longe (1970) de Edu Lobo, Natural Feelings (1970)
seguida ela o acompanhou ao Rio de Janeiro e, no im de e Seeds On the Ground (1971) de Airto Moreira, Live, Evil
2003, Hermeto, “. . . assustado com a violência no Rio de (Sony, 1972) de Miles Davis, Taiguara (1976) de Taiguara,
Janeiro, colocou à venda sua casa na Zona Oeste. . .” (AL- Open Your Eyes, You Can Fly (1976) e Encounter (1977) de
BIN, 2009) e passou a residir com ela em Curitiba. Ensinou- Flora Purim, Orós (1977) de Fagner, Robertinho no Passo
lhe viola caipira, piano e percussão e, em março de 2004, (1978) de Robertinho do Recife, Maraponga (1978) de
estreou com ela o duo Chimarrão com Rapadura (ou seja, Ricardo Bezerra, Elis Regina, 13th Montreux Jazz Festi-
gaúcha com alagoano) no Sesc Vila Mariana em São Paulo val (1982) junto com Elis Regina, Instrumento do CCBB
(MORENA e PASCOAL, 2009a). (1993) de Renato Borghetti (com Hermeto Pascoal), Kids
of Brasil do Duofel (1996) e Stephan Kurmann Strings
Hermeto Pascoal é mais conhecido tocando sanfona, fole Play Hermeto Pascoal (2008) de Stephan Kurmann.
de oito baixos, piano, lautas e saxofones. Mas, versátil
multi-instrumentista e dotado de grande curiosidade em A estreia de Hermeto em gravações comerciais foi como
relação aos timbres, tem se expressado como virtuoso nos sanfoneiro em três discos de Pernambuco do Pandeiro
discos (e shows) em muitos outros instrumentos conven- e seu Regional (CAMPOS, 2006, p.92-97, 141): No meu
cionais, entre eles teclados eletrônicos diversos, harmô- Brasil é assim (1954), Batucando no Morro (1954) e No
nio, cravo, órgão, escaleta, lauta de bambu, bombardino, arraial de Santo Antônio (1958). Gravou também no disco
luguel, trumpete, violão, cavaquinho, viola caipira, ban- Ritmos Alucinantes (1956) do maestro Clóvis Pereira. Es-
dola, craviola, clavinete, bateria, caixa, surdo, zabumba, treou como pianista em gravações no disco Boate em sua
pandeiro, pratos, triângulo – e em instrumentos exóticos, casa, vol.2 (1958) com José Neto e seu Conjunto, grupo
objetos e animais, como bocal de tuba, sapho, garrafas, de seu irmão mais velho. Em São Paulo, gravou lauta,
berrante, assovio, buzinas, apitos, brinquedos, chaleira, recém-aprendida, no disco de estreia Caminhos (1964)
máquina de costura, baldes, bacias, panelas, garfos, facas, do baiano pioneiro da bossa-nova Walter Santos. Ainda
balas, ruídos e gritos da voz, mangueira com voz, porta do na década de 1960, começou a gravar música instrumen-
estúdio, iefone, porcos, gansos, perus, galinhas, patos e tal em trios e quartetos: o disco Conjunto Som 4 (1964)
coelhos (PASCOAL, 2009b, 2009c). com o Som Quatro; o disco Em Som Maior (1965) no qual
liderou o Sambrasa Trio, aparecendo também como com-
Estima-se que Hermeto Pascoal tenha composto mais de positor pela primeira vez com a música Coalhada; o dis-
4.000 músicas até 2007 (VILLAÇA, 2007, p.59; PRADINES, co Quarteto Novo (1967) com o Quarteto Novo, o qual
2006), muitas das quais estão sendo editadas pelo ex- recebeu o nome do grupo e no qual incluiu O Ovo, uma
discípulo, pianista e professor Jovino Santos Neto. A sua de suas músicas mais tocadas até hoje. Em 1969, lançou
produção fonográica também é grande, especialmente Brazilian Octopus, o disco que teve o mesmo nome do

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“grupo mais estranho surgido na música brasileira”, cria- ao vivo (1993) e Solos do Brasil (2000), com o violonis-
do para musicar os espetáculos promocionais de empresa ta Sebastião Tapajós e o pianista Gilson Peranzzetta. Em
Rhodia (Marcelo Dolabela, citado por CALADO, 2000). Mundo Verde Esperança (2002), depois de 12 anos, Herme-
to volta a contar com a participação de Hermeto Pascoal
No primeiro disco lançado no exterior, Hermeto (1971), os e Grupo, e mais 13 músicos da Itiberê Orquestra Família,
jazzistas convidados dão uma mostra do reconhecimento em um disco que 13 das 14 músicas receberam nomes dos
internacional do compositor: Gil Evans, Joe Farrell, Hubert netos de Hermeto. Nele, ainda homenageia Vitor Assis Bra-
Laws e Ron Carter, entre outros. A Música Livre de Her- sil, na música Vitor, e Nivaldo Ornelas, na guarânia Camila
meto Paschoal (1973) foi seu primeiro disco solo gravado (CALADO, 2003). Em 2003, Hermeto participou, juntamen-
como artista principal no Brasil e no qual consolidou seu te com outros compositores como Caetano Veloso e Egber-
primeiro grupo (Nenê, Mazinho, Hamleto, Bola, Alberto e to Gismonti, de um projeto da Companhia Balé da Cidade
Anunciação); o compacto Hermeto Pascoal (1975) foi o de São Paulo para homenagear o pintor Cândido Portinari,
primeiro disco solo orquestral (com Porco na Festa de um compondo parte da trilha sonora com base no quadro Baile
lado e Rainha do Mar do outro). Em Slaves Mass (1977), na roça (VILLAÇA, 2007, p.59).
gravado nos Estados Unidos, recorreu a dois porquinhos
de estimação de dois garotinhos do Texas (veja foto do Chimarrão com Rapadura (2006) relete a mais recente
Ex.1 à p.65 nesse número de Per Musi). O álbum du- parceria de Hermeto Pascoal: Aline Morena, uma multi-
plo Hermeto Pascoal Ao Vivo – Montreux Jazz (1979) foi instrumentista que, além de se tornar sua esposa, abraçou
seu primeiro disco ao vivo. Em Cérebro Magnético (1980), sua concepção de música universal. Nas 19 faixas deste
além da composição e arranjos, fez o desenho da capa. disco, cujo título explicita uma integração entre o Nordes-
te e o Sul do Brasil (gaúcha com alagoano), o duo utiliza
Sete LPs - Zabumbê-bum-á (1979), Cérebro Magnético dezenas de instrumentos, convencionais e exóticos, como
(1980), Hermeto Pascoal e Grupo (1982), Lagoa da Canoa a porta do estúdio onde gravaram, balde, garfo, faca, cha-
Município de Arapiraca (1984), Brasil Universo (1985), leira, mangueira com voz, vestido de copos de iogurte, cha-
Só Não Toca Quem Não Quer (1987) e Festa dos Deuses péu de castanholas, bota, sapatilha, plástico no tablado,
(1992) - são frutos do período de extrema dedicação à saia de alumínio, percussão com água e boca, entre outros.
prática musical, no qual se consolida o trabalho de Her-
meto Pascoal e Grupo. Os músicos da assim chamada Atualmente, Hermeto mantém uma agenda cheia de
Escola Jabour (ZWARG, 2009a) ensaiavam todos os dias compromissos no Brasil e no exterior, apresentando-se
“from 2 to 8 pm”, segundo entrevista do músico Jovino com cinco formações diferentes: solo, com seu grupo, em
a GILMAN (2009), o que é corroborado por COSTA-LIMA duo com Aline Morena e à frente de big bands e orques-
NETO (2008, p.2, 8), informando também que isto ocorreu tras sinfônicas.
“. . . durante doze anos consecutivos, de 1981 a 1993”,
sendo que esse tempo de ensaio era acrescido “. . .pela 3 - O afeto, a alegria e apoio familiar contra
prática diária matinal, quando os músicos ensaiavam os as diiculdades do mundo
trechos mais difíceis de suas partes individuais . . .”. Her-
meto sempre foi receptivo com músicos que quiseram “Como será a cidade grande? O mar. . . Como será o som do mar?”
conhecer sua rotina diária de ensaios. Além daqueles que Hermeto Pascoal, aos 14 nos, antes de sair de casa (VILLAÇA,
2007, p.31)
se tornaram membros efetivos de longa duração no seu
grupo - Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Márcio Bahia,
Nenê, Carlos Malta, Antonio Luis Santana (mais conhe- A trajetória vitoriosa de Hermeto Pascoal contrapõe-se aos
cido como Pernambuco, mas que não deve ser confundi- muitos nãos e hostilidades que recebeu ao longo da vida.
do com Pernambuco do Pandeiro), Vinícius Dorin, André Isto se deve, em grande parte, ao apoio que sempre recebeu
Marques, Fábio Pascoal – também passaram pela Escola dos pais, Seu Pascoal e Dona Divina. O triunfo do autodida-
Jabour os músicos Zabelê, Joyce, Jane Duboc, Aleuda, tismo que o acompanhou até a maturidade sobre o acade-
Paulo Braga, Zé Eduardo Nazário, Nivado Ornelas, Cacau, micismo tem raízes na sólida e afetiva estrutura familiar:
Mazinho, Anunciação, Arismar do Espírito Santo, Ricardo “Hermeto sempre soube que era diferente, mas nunca se sentiu infe-
Silveira, Alfredo Dias Gomes, entre outros. rior nem desenvolveu complexos - aliás, eis um caso em que se pode
airmar: muito pelo contrário. Ainda era menino, em Lagoa da Ca-
noa, a molecada da escola colocava um apelido atrás do outro, era
A luência de Hermeto em todos os instrumentos que co- aquela zuada - e ele nem aí. Era tão talentoso e divertido que no im
nheceu permite a ele realizar projetos arrojados, como as meninas mais interessantes gostavam dele. E bastava um chame-
gravar dois álbuns sozinho, sem outros instrumentistas: o go para a turma cair em cima: ‘Como é que você namora um cara
disco duplo Por Diferentes Caminhos (1989), de piano solo, desses, ele não enxerga direito e o olho dele vira!’ Na saída, Hermeto
ia em um por um - era mais fortinho. ‘Você falou que eu sou feinho?’
e o disco Hermeto Pascoal: eu e eles (1999), que se refere ao E pá neles. Mais tarde, sempre aparecia um pai ultrajado. ‘Seu ilho
fato do compositor tocar todos os instrumentos nesta gra- bateu no meu.’ Seu Pascoal, tranquilo, olhava pra Hermeto. ‘Filho,
vação. Depois da dissolução do Grupo do Jabour, Hermeto por que você bateu?’ Primeiro ouvia, depois acrescentava: ‘Então fez
gravou alguns discos com formações menores, como Pau certo’. A mãe, dona Divina, dava também aquela proteção. Aconte-
cia, por exemplo, de as mocinhas lavando roupa no rio começarem
Brasil e Hermeto Pascoal ao vivo, com o grupo de mesmo a fazer troça com o menino. ‘Que esquisito, olha como ele é branco!
nome (1993), Hermeto Pascoal/Renato Borghetti - CCBB, Você enxerga bem?’ Hermeto tinha pronta a resposta: ‘Levanta a

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saia que eu digo’. E lá iam as mocinhas fazer queixa do galego com não guardou ressentimentos contra o produtor da Rádio
dona Divina. Que primeiro ouvia, depois... ‘Respondeu certo. E tem Jornal do Commercio Amarílio Niceias: “Eu não iquei
mais: fui eu que ensinei.’ É por isso, graças a seu Pascoal e a dona
Divina, que Hermeto se gosta, se acha bonito. ‘Sou uma árvore mui- revoltado com nada disso. . .” (CAVALCANTI, 2004), pois
to original’.” (O. RODRIGUES, 2003). queria apenas “. . . mostrar pra esse cara, sem raiva dele,
que ele me fez um bem, não me fez um mal. Ele se arris-
O seguinte diálogo, recuperado da infância de Hermeto, cou, ele podia ter feito um mal se eu fosse um cara que
mostra seu avô tranquilizando sua mãe sobre seu talento não tivesse a força que eu tenho. Eu poderia ter me dado
musical: mal, ter icado desgostoso. Escutar um negócio desses
com 14 anos de idade. . .” (BARROSO, 2009).
“Pai, eu acho que Sinhô ta doido! Meu ilho tá doido! Sabe aqueles
ferros que o senhor joga fora? O Sinhô pegou uma porção deles!. . Já reconhecido como excelente instrumentista no meio
. Deixe o menino brincar. . .E ele tá lá até agora, trancado, batendo
nos ferros. . . Olhe minha ilha, eu acho que quem está doida é musical em São Paulo, Hermeto ainda era visto cinicamen-
você! Ele está tocando. . .o baião Asa Branca de Luiz Gonzaga, que te por boa parte da crítica especializada como “hermético”
tanto tocava na feira. . .” (VILLAÇA, 2007, p.22) (CABRAL, 2000, p.12). Não faltaram produtores que quise-
ram manipular seu talento em prol da indústria fonográ-
Numa carta de 30 de abril de 2003 a seu ex-aluno do ica. Hermeto fala do episódio em que foi convidado para
curso primário, Zélia Gaia se lembra “. . . dos pandeiri- gravar um disco como artista principal na Continental:
nhos de latas de goiabada que Dona Divina, sua mãe,
ensinava a fazer. . . das lautas de carrapateira que fa- “O primeiro contrato que eu fui assinar era na Continental, com
um produtor de disco e os produtores eram ‘donos dos músicos’.
zíamos na escola. . . ricas experiências. . .” (GAIA, 2003). Quando eu fui convidado pra gravar, pra mim era uma grande
A paciência que Hermeto encontrou na sua primeira e chance, uma oportunidade de gravar, as minhas músicas todas
amorosa professora, não encontrou depois nos profes- debaixo do dedo para tocar. Quando eu chego lá, tava lá uma lis-
sores de música que procurou: “Há muitos anos, arran- ta, um papel com um monte de nomes de músicas. Aí ele pediu
para eu sentar, e começou a ler, e disse: “E agora? Está bom essas
jaram um professor para me ensinar teoria, mas ele se músicas aqui?” Eu digo: “Pra que?”. [Produtor:] “Já escolhi as mú-
recusou porque eu não enxergava direito.” (GONTIJO, sicas pra você gravar”. [Hermeto:]”As minhas músicas, o senhor
2000, p.2). Para CABRAL (2000, p.11), me desculpe, mas, modéstia parte, quem escolhe sou eu. Isso aí
que o senhor me falou, não são músicas, são letras. Tá muito ruim,
“Hermeto Pascoal é um desses brasileiros que, pela determinação e quadrado. Isso aí eu toco na noite algumas vezes, uma ou duas
pelo talento, conseguiram superar as deiciências do nosso sistema dessas”. . . E eu estava na faixa dos 20 e poucos anos. [Produtor:]
educacional. Nascido e criado em uma região desprovida de escola “Mas menino! Você vai perder uma chance dessas de gravar na
de música, ainda assim sempre quis ser músico . . . assumindo so- Continental?” Eu digo: “Porque eu vou gravar? Porque eu sou bom
zinho, a própria educação. . . teve só uma professora na vida: dona músico ou não?”. [Produtor:] “É, mas você tem que escolher música
Zélia, que o alfabetizou. . . ”. conhecida”. Eu disse: “Mas eu quero icar conhecido, se eu tocar
música conhecida eu não vou icar conhecido. Eu quero que as
minhas músicas também iquem conhecidas e que eu ique conhe-
Em Recife, Hermeto encontrou muitos obstáculos. Do cido através das minhas músicas. Se for assim eu gravo, se não for
produtor musical da Rádio Jornal do Commercio e patrão assim, eu quero lhe agradecer, desculpa, mas eu não quero gravar
Amarílio Niceias, ouviu: “Você não toca bem a sanfona. . nunca, não é só hoje não. Não quero que ninguém me convide,
pode avisar para todos seus amigos empresários, diretores, que eu
. Nem oito nem oitenta [baixos]!. . . Se quiser continuar não quero gravar nunca a não ser as minhas músicas e como eu
na rádio, vai ter que tocar pandeiro. . . Você não tem é quero tocar. Não abro mão do jeito que eu quero gravar. Quem me
jeito pra música!” (VILLAÇA, 2007, p.39). Mas isto não foi chamar para gravar com alguém, tem que ser como eu quero tocar.
empecilho para o determinado músico: Sempre prevale- Não estou precisando de nada, não quero nada” (BARROSO, 2009).
ceu seu otimismo: “Siga em frente! Você tem o dom da
música! Conie em você!”, dizia para si mesmo (VILLAÇA, Falando sobre a música comercial-popular brasileira,
2007, p.40). WISNIK (1979-1980, p.7) distingue
“. . . dois modos de produção diferentes, tensos mas interpene-
Certo dia, em Caruaru, já conhecido como bom sanfo- trantes dentro dela: o industrial, que se agigantou nos chamados
neiro, Hermeto achou uns penicos de ágata em um fer- anos 70, com o crescimento das gravadoras e das empresas que
controlam os canais de rádio e TV, e o artesanal, que compreende
ro-velho e os levou para tocar em um estúdio da rádio.
os poetas-músicos criadores de uma obra marcadamente indivi-
VILLAÇA (2007, p.44-45) reconstrói o diálogo entre ele e dualizada, onde a subjetividade se expressa lírica, satírica, épica
os colegas músicos galhofeiros: e parodicamente.”

“- Que loucura é essa? O que é isso? Dentro desta música artesanal, Hermeto criou, ainda, um
- Isso é música, ouça que maravilha! A ágata dá um som danado!
- Não, isso é só um penico – zombou um deles.
nicho ainda menos comercial, menos disposto, como se
tornou chavão na gíria cultural brasileira, “a fazer conces-
Hermeto icou sério: - Os objetos têm sons. Estão só esperando sões”. A opção de Hermeto por uma música instrumental
para serem usados como instrumentos. mais soisticada, mesmo em discos de cantores, é quase
. . .O máximo que Hermeto conseguiu foi arrancar o riso de seus
religiosa e deixou uma produção histórica, como foi mos-
companheiros.” trado acima. Ele não abre mão de sua posição radical-
mente oposta à linha comercial geralmente imposta pelas
Na volta ao Recife, já saudado por Sivuca como o “O gravadoras e mídia: “Essa turma não evoluiu nada. Minha
Maior Sanfoneiro do Agreste” (BARROSO, 2009), Hermeto intenção ao trabalhar com eles foi abrir a cabeça deles,

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mas eles apelaram: foram fazer música para novela. Hermeto interrompeu a apresentação, dizendo que o seu tempo
Como o meu amigo Fagner, que criticava a TV Globo de show havia acabado. . . Todos retiraram-se para os bastidores
enquanto o público que lotava o Town Hall, em pé, aplaudia e
e acabou cedendo. Ganhou muito dinheiro, mas cadê gritava o seu nome, pedindo o retorno do grupo. . . Apesar do es-
a alegria interior?” (CALADO, 2003). Perguntado sobre tímulo de Rob Crocker, um dos mais populares apresentadores da
seus cantores preferidos, Hermeto parece se identiicar WQCD-101. . . Hermeto e seus músicos não retornaram ao palco.
apenas com aqueles dispostos a uma interação mais le- As lâmpadas foram acesas e o público deixou o teatro entusiasma-
do com a música que ouviu naquela noite mas, no fundo sentindo
xível e menos óbvia com a parte instrumental, aqueles que Hermeto não tivesse mostrado mais de seu som original, rico
que valorizam a criação, a improvisação. Cita alguns, e harmonioso.” (MILLARCH, 1989b)
como Johnny Alf e Guinga, mas diz que não ouve “igu-
rões” como Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Em outra oportunidade, apresentando-se no Rio Mon-
Gil, apesar de gostar deles, pois “. . . isso já passa no rá- terey Jazz Festival em 1980 no Rio de Janeiro, não teve
dio, né? Aliás isso tem a ver com aquilo que falei sobre o paciência com o público e sua interferência:
não evoluir. . .” (IVANOV, 2002). Entre as cantoras, elogia
a “genial Jane Duboc, quebramos tudo que tinha direito” , “. . . Hermeto falou muito, experimentou vários instrumentos e
fez alguns trocadilhos. Depois reclamou do barulho. Deu um aviso
(PASCOAL, 2000a, p.101-102) e dedicou a balada Dá-lhe prévio. Começou a fazer um belíssimo solo de lauta, com o tema
coração a Eliane Elias, a quem diz “. . . ter visto nascer que apresentou em Montreux (gravado no LP da WEA, nas lojas),
musicalmente” (MILLARCH, 1989c). mas parou ao ouvir o barulho entre o público que se acotovelava a
sua frente. E, irritado, saiu do palco, sob vaias. Tumultos, confusão.
Voltou minutos depois, mas recebido com vaias, jogou a lauta
Mesmo no meio puramente instrumental, Hermeto mos- no chão e se foi. Mais tarde, nos bastidores, disse que gostaria de
tra-se muito exigente. Ele não tem boas lembranças do ‘tocar para a imprensa’. A noite mais longa do festival acabou mais
encontro que seria o sonho dos fãs da música instrumental cedo.” (MILLARCH, 1980a)
brasileira, o show Virada do milênio realizado no ATL Hall
no Rio de Janeiro em 1999, quando tocou simultaneamen- Depois das primeiras experiências de gravação com grupos
te no palco com três outros grandes pianistas brasileiros de regionais, Hermeto trabalhou com grandes gravadoras
- Arthur Moreira Lima, Egberto Gismonti e Wagner Tiso: multinacionais, como EMI (1967), Polygram (1973 e 1992)
e WEA (de 1977 a 1980), mas as diiculdades crônicas com
“. . . ‘Foi aquela coisa que se imagina que vai ser muito bom e acaba a política comercial das mesmas o direcionou a pequenas
não sendo. Era para ser algo de improviso e o Egberto e o Wagner
se prepararam para isso. Foi uma briga, não foi música. O Arthur,
gravadoras, como Som da Gente (1981-1993) e Maritaca:
que era o erudito, foi o que mais me surpreendeu e se soltou.
“Convites eu sempre tive, mas não quero mais gravar por gravado-
Carregamos os outros nas costas’, diz, brincando à sério. Arthur
ras grandes. . . Elas não evoluíram nada. Querem gravar comigo só
[presente à entrevista], depois, conirmou a coisa toda com um
para dizer que têm Hermeto Pascoal no catálogo. Me tratam como
riso.” (IVANOV, 2002)
aquela jóia exposta na vitrine para deixar as pessoas com água na
boca, mas que ninguém consegue comprar.” (CALADO, 2003)
A imagem messiânica de Hermeto Pascoal que seus admi-
radores adotam parece derivar da religiosa obsessão com A saída encontrada por Hermeto para o tratamento hostil
que vive a música no seu dia-a-dia. Esta devoção, que às e explorador que as gravadoras lhe destinam é extrema
vezes parece beirar o transe religioso, é aparente também e tem resultado na liberação ou perda de seus direitos
nos shows, como em uma inauguração de uma casa de autorais. Em relação às cópias domésticas do LP Brazilian
jazz em Pendotiba (Niterói), na qual Hermeto e seu grupo Octopus no formato CD que estavam circulando em São
“. . . tocaram por cinco horas e meia” (COSTA-LIMA NETO, Paulo, foi categórico: “Se a gravadora não se interessa
2008, p.9). Em outra oportunidade, durante o 1º Festival em fazer o CD, essas pessoas têm que copiar mesmo. É
Internacional de Jazz, realizado em São Paulo em 1978, o o único jeito que o público tem de ouvir a nossa músi-
show de Hermeto “. . . começou às 23 horas e prolongou- ca” (CALADO, 2000). MILLARCH (1979) relata que “. . .o
se até às 4 horas da madrugada, e com nomes internacio- próprio Hermeto recomenda que todos que vão assistir
nais como McLaughlin, Chick Corrêa e Stan Getz subindo seus espetáculos devem levar gravadores, pois nunca há
ao palco e, praticamente pedindo para se integrarem ao a mesma sequência, o mesmo show.”. Ele, às vezes, deixa
seu som totalmente inusitado, múltiplo. . .” (MILLARCH, transparecer sua revolta com os impedimentos de socia-
1979). Esta obstinação em que cria um mundo particular lizar sua obra com o público:
com a música e que não se enquadra dentro dos limites
de horário dos teatros onde se apresenta tem rendido a Meu discos estão sendo pirateados pelas Gravadoras. As minhas
Hermeto algumas diiculdades. Na sua segunda apresen- Gravadoras lançam os meus discos e não me dão satisfação. . .
Nenhuma delas tem um recibo assinado por mim lá, deles pedindo
tação durante os concertos do festival Som da gente no
uma autorização para lançar meus discos. Eu sei que as músicas
Town Hall em Nova Iorque em 1989, sentiu-se tolhido ao são deles, mas para todos discos eu tenho direito autoral. . . Eu já
saber do tempo que teria e falei: PIRATEIEM MEUS DISCOS. . . Não toco em rádio, pirateiem,
vendam. Quem está dizendo sou eu. . . A [Rádio] MEC é uma rádio
“. . .não fez por menos: após demorar-se em falar numa homena- pobre. . . é do governo. . . Nós queremos a cultura. Mas se eles não
gem a alguns amigos presentes - como a pianista Eliana Elias e o tocarem. . . eu dou essa porra também. Eu quero é isso. Pirateiem
baterista Dom Um Romão (que subiu ao palco, para um demorado os discos do Hermeto, estou mandando piratear, eu assumo. . .
abraço) ou ausentes - Miles Davis, que lhe havia telefonado à tar- Todas são Ladras, estão me roubando e vão me roubar até eu mor-
de - referiu-se a uma suíte de 20 minutos que ainda está com- rer. . . Eu nunca recebi mil reais no Brasil, já assinei 70 recibos no
pondo, ‘mas que gostaria de apresentar’. . . começaram a mostrar ECAD de Brasília e nunca foi [equivalente a] mil reais. Da editora
a belíssima composição, mas não passaram dos primeiros acordes; na França eu recebi seis mil reais da primeira vez. Aqui, a Rádio

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MEC fez cinco mil discos, mas não tem distribuição. . . Eles falam, são e, mais tarde, tudo foi resolvido” (COMODO, 1996),
anunciam na rádio dizendo: “Nas boas lojas”. Que boa nada, tem explicando que “Eu gravei no disco do Miles Davis duas
que vender em qualquer lugar. . .” (BARROSO, 2009).
músicas minhas e saiu que o Miles tinha roubado as
minhas músicas. Saiu mesmo o nome dele nas minhas
Mas a vingança de Hermeto “tocando viola de papo pro
músicas. Mas jamais eu, pelo conhecimento que eu te-
ar” contra a indústria fonográica já começou. O adven-
nho com ele, [digo que] jamais ele ia fazer isso comigo,
to da internet ofereceu a Hermeto um instrumento ideal
nem com ninguém” (BARROSO, 2009).
para socializar sua música. Ao comentar sobre o projeto
de disponibilização gradual e gratuita da obra de Her-
A determinação e a alegria parecem, de fato, nortear a
meto Pascoal no site www.hermetopascoal.com.br a par-
vida de Hermeto Pascoal. Com o humor cáustico que per-
tir em meados de 2007, Aline Morena comenta sobre a
meia os relatos de sua expedição para conhecer de perto
política injusta das multinacionais da gravação: “Então,
a música brasileira, o jornalista norte-americano John
adeus às grandes editoras que izeram isso até hoje. Que
KRICH (1993, p.117-118) comenta que Hermeto poderia
elas aproveitem enquanto podem, porque vamos ofe-
ter razões para ser infeliz: ”. . . obeso, um olho-virado,
recer tudo gratuitamente.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA,
atributos realçados pela barba de Papai-Noel despente-
2007). Em 2008, Hermeto decidiu declarar livre acesso
ada e a massa de cabelos brancos anelados que repousa
para aqueles que quiserem gravar sua obra. Em uma folha
sobre sua cabeça como tirinhas de papel de empacotar”.
colorida a lápis e emoldurada com desenhos de ferma-
Mas se redime dizendo que
tas, acidentes musicais e um auto-retrato, o compositor
documenta sua postura universalizadora: “Eu, Hermeto “. . . a partir do momento em que entrei na sua casa no subúrbio do
Pascoal, declaro que a partir desta data libero, para os Rio [no Bairro Jabour], senti que nunca havia encontrado alguém
músicos do Brasil, e do mundo, a gravação em CD de to- mais alegre. . . ‘Posso tocar qualquer coisa. Se você quiser, posso
tocar até você!’ . . .Fiquei uma tarde assistindo à banda de Hermeto
das as minhas músicas que constam na discograia deste [Hermeto Pascoal e Grupo]”. . . [que] desaparece escada abaixo e
site [www.hermetopascoal.com.br]. Aproveitem bastante. volta com um cabide de paletó. Em segundos, ele arranca cada
Hermeto Pascoal. Curitiba 17 do 11 de 2008. Testemunha: um dos ganchos torneados e [acha o som] que precisava e [que]
Aline Morena” (PASCOAL, 2008). somente pode ser obtido esfregando um no outro. . . Quando sua
devotada esposa aparece perguntando pelo cabide, o grupo morre
de rir. Eles já viram esta história se repetir muitas vezes. A esposa
Jovino, que guarda boa parte dos originais da obra de de Hermeto nem precisa da resposta para entender que mais uma
Hermeto, fala sobre o que considera sua missão após a peça da mobília acabara de se tornar um instrumento musical.”
dissolução do Grupo:
O. RODRIGUES (2003) relata outro trecho que sugere a
“Desde que saí do Hermeto Pascoal e Grupo em 1993, disponibi- rejeição da mídia ao aspecto visual de Hermeto, que tem,
lizar sua música para músicos em todo o mundo se tornou uma
de minhas prioridades. Sempre fui uma espécie de bibliotecário no humor, um aliado para brincar com situações difíceis:
dos manuscritos, organizando-os e guardando-os. Quando me
mudei para Seattle, comecei a editar algumas peças em compu- “Pouca gente lembra, mas em 1967, no III Festival de Música Po-
tador. Agora estamos perto de publicar um livro com parte de sua pular Brasileira da Record, foi o Quarteto Novo - Hermeto, Heral-
música para piano solo. Em seguida, viriam música para grupos do, Théo de Barros e Airto Moreira - que ajudou “Ponteio”, de Edu
de lautas, quartetos de cordas, peças sinfônicas, para big band e, Lobo, a chegar ao primeiro lugar. De vez em quando, trechos do
claro, alguns dos arranjos para nosso Grupo. Tenho cerca de 1.000 festival são reprisados e quase nunca se vê Hermeto no palco, só
peças em arquivo, o que será muito trabalho. Entretanto, sou o suas mãos tiritando na lauta. “Eles deviam me achar muito feio
responsável por isto e considero minha missão garantir que este pra mostrar.” Numa dessas grandes noites, ele se escondeu atrás
acervo musical surpreendente seja conhecido e ouvido. Trabalho de um cenário. Logo, o diretor apareceu para ver o que estava
diretamente com o Hermeto neste projeto e esperamos ter o pri- acontecendo. Hermeto: “Meus ilhos estão duvidando que eu toco
meiro livro em breve” (GILMAN, 2009). na televisão”. Nunca mais sumiram com ele.”

Com os colegas, Hermeto também aprendeu a lidar com Este mesmo humor com que tem driblado os obstáculos
constrangimentos proissionais de uma maneira positiva, que encontra pela vida, aparece na sua música. Entre seus
como no polêmico episódio com Miles Davis. Numa época projetos estava a ideia de transformar em música uma
em que os produtores do grande trompetista de jazz não ita que recebeu de um gago alemão recitando poemas de
se preocupavam em dar os créditos de músicas de outros amor (COMODO, 1996). Juntos, o humor e a alegria fazem
compositores, Hermeto não teve seu nome incluído como parte da memória afetiva de Hermeto, nos festejos popu-
autor das músicas Nem um talvez e Igrejinha gravadas no lares nas ruas do Brasil, como na reencarnação das ban-
disco Live evil, lançado em 1972. dinhas, que Jovino presenciou como membro do Grupo:
“Certa vez, em 1982, durante o concerto no Teatro IBAM, co-
MILLARCH (1988), citando outra escorregadela de MiIes meçamos a sair do palco com o piccolo, dois saxofones, tuba e
Davis, em que ele aparece como autor de Corcovado percussão e depois, para fora do teatro, nas ruas, tocando alguns
(Tom Jobim) e Aos pés da Santa Cruz (Marino Pinto e Zé temas que o Hermeto havia escrito para aquela formação. A pla-
da Zilda) no disco Quiet Nights (1962), o chama de “. . . teia nos seguiu. Desilamos por um tempo e, então, voltamos
para o teatro pra terminar o show. Aquilo criou situações extre-
useiro em se apropriar de temas alheios, tendo feito isto mamente engraçadas, como subir nos ônibus coletivos, entrar
com ‘Igrejinha’ de Hermeto Paschoal, só pagando direi- nos bares e, algumas vezes circular centenas de metros longe do
tos após ameaças judiciais e mil broncas de Airto.” O teatro; Algumas vezes, tínhamos milhares de pessoas dançando
erro não deixou Hermeto magoado: “Houve uma confu- atrás da gente nas ruas.” (GILMAN, 2009)

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Esta mesma memória afetiva que lhe remete sempre às distinta ao ouvido humano), antes mesmo dos tons e semi-
suas raízes, à sua família, o motiva musicalmente. A voz tons do pé-de-bode de seu pai. Muito antes do conceito de
do pai, Seu Pascoal, incluiu na faixa São Jorge, no paisagem sonora de Murray Shaffer: “Até os 14 anos iquei
disco disco Zabumbê-bum-á (1979). Na gravação de lá em Lagoa da Canoa em contato total com a natureza,
Santo Antônio, no mesmo disco, Hermeto gravou com todos os animais. . . não escutava nem rádio porque
sua mãe Dona Divina descrevendo um ritual típico nem havia luz elétrica. . .” (CAVALCANTI, 2004). Já adulto,
do interior, improvisando pedidos de prenda em Hermeto resgatou imagens da infância, de sua comunhão
uma típica procissão nordestina do santo casa- com a natureza e as reverte em música, como em Merco-
menteiro. Hermeto achou, nas diiculdades encontradas som do álbum Hermeto Pascoal: eu e eles,1999):
pela vida, motivações para traçar seu caminho e viver
Um dia, na estrada até Lagoa da Canoa, ele descobriu as formigas
bem. Não é à toa que a frase escolhida por ele para inali- em travessia, trabalhando duro. Tiveram de chamar seu Pascoal em
zar cada uma das 366 partituras do Calendário do som foi casa: ‘Seu ilho icou maluco, está deitado lá na estrada e não quer
o voto generoso e otimista “tudo de bom, sempre”. deixar os vaqueiros passarem com a boiada.’ Uma das coisas que
encanta Hermeto é o que ele chama de ‘sonzinho’ das formigas.
‘Aquela areia branca, elas se arrastando na areia. . . Na gravação
4 - A natureza de um disco, comecei a me lembrar desse sonzinho, iz assim na
calça, saiu algo interessante. O técnico se assustou. Aí pronto, já
“Os animais são meus maiores professores.” Hermeto Pascoal comecei a tocar um forró. Você escuta um som que parece zabum-
(O. RODRIGUES, 2003) ba, mas não é: é calça jeans! Você vê que tudo é música. E isso
que eu tô falando vale pra vaca, cavalo, boi, vale pra todos eles.’ O.
A bandeira ecológico-musical de Hermeto pode ser apre- RODRIGUES (2003)
ciada nos títulos de suas músicas, como Dança da selva
na cidade grande, Terra verde, Música das nuvens e do Em entrevista sobre o primeiro disco Mundo Verde Espe-
chão, Peixinho, Nascente, Quando as aves se encontram rança (1989; não lançado comercialmente; o segundo
nasce o som, Caminho do sol, Fauna universal, Água lim- Mundo Verde Esperança foi lançado em 2002), Hermeto
pa, Saudade do Tietê, Batucando nas Matas, Cordilheira Pascoal relaciona seu pensamento ecológico-musical com
do Andes, entre outras. E também em vídeos. Por exem- uma ilosoia de vida que aprendeu no interior do Brasil:
plo, Hermeto Pascoal e Grupo foram temas do vídeo eco- “Eu, que sou um cara da roça, que fui criado na roça, via muito
lógico Bagre Cego de Ricardo Lua (disponível em www. bem que o dono do cercado tinha o cuidado de fazer uma vala do
youtube.com como Hermeto e Grupo, Ballad for a blind tamanho do terreno e plantava um negócio chamado macambira,
que não pega fogo, para que o dono do outro terreno pudesse
albino catish), em que ele e seus músicos aparecem fa- preparar o terreno para plantar, sem prejudicar o vizinho. Tudo era
zendo música nas cavernas do Vale do Ribeira, em São bem feito, feito com muito cuidado. Creio que isso acontece na
Paulo, ameaçadas de destruição (MILLARCH, 1986). Já música também.” (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007).
no vídeo Hermeto Pascoal and the music fom the frogs
“. . . passarinhos, formigas, sapos, porcos, bois, cavalos. ‘Os animais
(disponível em www.youtube.com), Hermeto fala sobre a são meus maiores professores.’ E é na terra natal que Hermeto
natureza e, tocando uma lauta de bambu ininterrupta- recebe as primeiras bênçãos do sol, da chuva, do mato, do vento;
mente, entra em um poço de um riacho e gradualmente, é onde ele descobre o som da areia e percebe as vozes da alma.
saltando como um sapo, desaparece sob as águas. Este ‘Eu arrancava um pedaço de carrapateira, aquele canudinho da
mamona, e com uma faquinha fazia uma lautinha e começava a
envolvimento com a natureza é antigo. Ele relata: tocar. Primeiro, aquele som novo assustou os bichos. Mas aos pou-
cos. . . Eu começava a tocar uma melodiazinha e icava naquela só,
“Eu comecei a tocar no mato tudo que tinha de coisa . . .Então a
para eles se acostumarem. No segundo dia já tinha dois. No ter-
gente inventava. Eu inventava muito. . . Você começa a analisar
ceiro, foi aumentando, aumentando, a ponto de eu tocar tudo que
suas coisas de criança. Foi quando eu comecei a ver esse lado todo,
quisesse. Agora não precisava mais escolher a musiquinha pra eles,
o lado dos animais, que eu conversava com os animais, natural-
não. . . Quando eu tocava o primeiro som na lauta, eles vinham e
mente. Eles entendiam tudo, a gente se entendia. Eles me enten-
cobriam a árvore.’ O. RODRIGUES (2003)
diam porque eu via a ação deles. . . o cavalo fazia com a orelha.
Eu sabia os sinais. Por exemplo: Quando o cavalo via uma visage.
O quê que é uma visage? É uma visão, uma coisa espiritual, uma Esta aprendizagem inicial, não orientada pela tradição
energia. Que o animal é muito sensível. A gente põe eles no lugar europeia, acompanhou Hermeto no seu contato com as
errado, acha que o animal não tem espírito. É conversa iada. O
espírito deles é tão elevado quanto o nosso. . . Os sapos são gênios!
outras músicas: “Quando eu era pequenininho tocando a
São gênios, escondidos, excluídos por nós. Os sapos já dão a aula oito-baixos, com 8, 9 anos de idade eu tava tocando forró.
do que é orquestração natural. Eles são gênios, os sapos, os pás- . . baile, casamento e quando eu pegava na oito-baixos, eu
saros. Deus botou os animais como o espelho verdadeiro da vida. já ’entortava‘ a oito-baixos. . . umas músicas muito doidas.
. . O porco é tido como rude, talvez o animal mais rude que tem. .
. Ele queria justamente [ouvir] um instrumento médio. Eu pegava
Eu extraía dos ferros, das pancadas que eu dava nos ferros,
um talo de abóbora. . . rachar no meinho com uma faquinha, com aquelas harmonias” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.78). Para
cuidado. . . e sopra como se fosse aquelas gaitas escocesas, em- Hermeto, “O atonal é a coisa mais natural que existe”, o
purra no céu da boca, que ica aquele som assim, de céu da boca, que levou COSTA-LIMA NETO (1999, p.190) a propor a
como gaita escocesa. . . O porco, você toca aquilo ali, ele pára. . .
Você sentia a felicidade dele. . . Hoje em dia, eu posso fazer com
perspectiva de uma trindade sonora experimental cujas
sax soprano. . . o porco vai delirar com você. . .” (BARROSO, 2009). raízes estão na infância do músico alagoano, e que, mais
tarde, passou a subsidiar o sistema musical singular de
Os sons da natureza foram os primeiros sons musicais a Hermeto, incluindo suas melodias e harmonias. Esta trin-
habitarem a mente de Hermeto Pascoal; eram sons de al- dade sonora paradigmática, segundo a qual som musi-
tura “indeterminada” (cuja fundamental não é claramente cal e ruído são equivalentes, é derivada de três fontes

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distintas, percebidas por Hermeto graças a sua escuta do som de cada pessoa através da música. E quando eu
ampliada: sons de animais, sons dos objetos e sons da escuto a voz da pessoa, eu toco aquilo que estou escu-
voz humana. O próprio Hermeto percebe uma relação do tando” (ESSINGER, 2000).
atonalismo que chama de “fala dos objetos” com o ato-
nalismo que ouve na fala humana, que conceituou com No disco Festa dos deuses (1992), pode-se apreciar várias
música da aura: “Os pedaços de ferro já tinham alguma instâncias de música da aura. Uma análise auditiva de
coisa a ver com a música da aura. . . o som da aura que três destas músicas - Pensamento positivo (a partir de
percebi desde minha infância. . .” (COSTA-LIMA NETO, uma fala do Presidente Collor de Melo), Aula de natação
2000, p.131-132). Assim, se nos objetos, que são instru- (a partir de uma aula ministrada pela ilha Fabíula Pas-
mentos musicais esperando para serem tocados - como coal) e Três coisas (a partir de um poema de Mário Lago
os “resultados incríveis” das moedas de 25 centavos de recitado por ele mesmo) - mostra procedimentos comuns:
dólar (além do pé esquerdo de seu sapato!) que colocou (1) escolha de trechos da fala humana pré-gravadas como
entre as teclas de um Steinway para provocar o público ponto de partida para a criação musical, (2) apresentação
novaiorquino (MILLARCH, 1989b) -, ele percebe a música da fala sozinha primeiro, (3) repetição da fala com do-
dos ferros, nas pessoas ele percebe a música da aura. bramento instrumental de teclados (piano e harmônio)
aproximando de suas alturas “indeterminadas” e ritmos,
Na sua análise da música Ferragens para piano solo, COS- o que resulta em um contorno melódico atonal heterofô-
TA-LIMA NETO (2000, p.135) observa a intenção progra- nico (um “quase-uníssono”), (4) acompanhamento com
mática nas indicações de pedal e de fermatas sucessivas, acordes esparsos em encadeamentos não funcionais ou
como uma representação da reverberação que descreve os atonais. Jovino, que foi quem tocou piano e harmônio
sons de pedaços de sucata de ferro do avô ferreiro Sena da nestas três faixas, observa que
Bolacha que povoaram sua prática musical na infância. Do
“A música da aura ainda está nos seus estágios iniciais. . . pode
ponto de vista harmônico, as alturas “indeterminadas” tra- imaginar um ilme em que os diálogos do atores é também a trilha
duzidas para o piano resultam em clusters acompanhando sonora? . . . Embora outros tentaram algo similar, em minha opi-
uma melodia atonal e fragmentada (Ex.1). Entretanto, es- nião, somente Hermeto conseguiu capturar a essência musical da
tas “. . . combinações harmônicas complexas. . .” têm raízes fala.” (GILMAN, 2009)
em “. . . elementos harmônicos simples como as tríades. . .”
(COSTA-LIMA NETO, 1999, p.94-96). Na faixa Três coisas, Hermeto Pascoal, Jovino Neto e Fábio
Pascoal avançaram um pouco além desta fórmula básica
O conceito de música da aura surgiu na década de 1980, acima, descobrindo redundâncias de células rítmicas na
quando se deu conta de que “O cantar das pessoas, na declamação poética de Mário Lago e as acompanhando
minha concepção. . . é o que chamamos de fala. Assim com levada e instrumentação de baião; coincidindo ca-
como os pássaros, nós somos pássaros também” (entre- dências da fala com tríades perfeitas maiores e menores.
vista a Luís Carlos Saroldi da Rádio MEC em 1997, cita- Ainda no disco Festa dos deuses, a faixa Quando as aves
do por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.177). No disco Lagoa se encontram, nasce o som também pode ser considera-
da Canoa, município de Arapiraca (1983), na faixa Som da música da aura, mas os elementos primários aqui são
da aura, ele utilizou os famosos trechos onomatopai- as “vozes” de aves (uirapuru, sabiá, corvo, fogo-apagou,
cos de narração esportiva “tiruliruli-tirulirulá” e “parou, galo, bacurau, marreco) com um tratamento mais soisti-
parou, parou” dos locutores esportivos Osmar Santos e cado: há solos a cappella alternando com trechos acom-
José Carlos Araújo, respectivamente. Hermeto descreve panhados (com Hermeto nos teclados), dobramentos que
o procedimento para a realização da música da aura, se entrelaçam, células manipuladas com loops, acompa-
simples para ele que tem ouvido absoluto e uma práti- nhadas com levadas de gêneros diversos (samba e valsa),
ca de reconhecimento auditivo enorme: “É muito fácil harmonias contrastantes (atonalismo, tonalismo, moda-
tocar o som da aura, que nada mais é do que a energia lismo, cromatismo). Embora a transcrição musical de can-

Ex.1 – Exemplo de música dos ferros com clusters atonais em Ferragens de Hermeto Pascoal.

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tos de pássaros nos remeta à iniciativa do compositor e não pode, auditivamente, ser considerado tonal, como
ornitologista Olivier Messiaen, a abordagem de Hermeto mostra o trecho do Ex.3, que é uma redução da trans-
é única no sentido da eclética liberdade de compor com crição de Jovino Santos Neto do original para piccolo,
os motivos que descobre nos cantos e as associações que saxofone tenor, piano e contrabaixo elétrico sobre uma
faz com a rítmica popular. gravação da fala do papagaio de Hermeto, chamado Flo-
riano, em torno do registro de Sib3 (COSTA-LIMA NETO,
Muitos dos animais que povoaram a infância de Herme- 1999, p.151-161; COSTA-LIMA NETO, 2000, p.129).
to reaparecem na sua obra. No disco Slaves Mass (1977),
por exemplo, Hermeto utiliza trechos com gravação de A valorização dos sons de animais pode ter inspirado
guincho de dois porquinhos, “naturalmente ainados” em Hermeto em alternativas de utilização da voz que não
alturas diferentes, “. . . ‘executados’ por [Airto] Guimor- a fala humana. Foi ele “. . . quem sugeriu que ela [Flora
van [Moreira], proposta que Hermeto já tentou aplicar Purim] experimentasse improvisação vocal sem palavras.
no Festival da Canção de 1972, no Maracanãzinho, em . .” (McGOWAN e PASSANHA, 1999, p.167). Essa incor-
72, e quase o levou à cadeia” (MILLARCH, 1977). A ideia poração de uma grande variedade de efeitos vocais, como
dos porcos retorna no Festival Abertura da Rede Globo de grunhidos, choros, rangidos, emulação de distorções ele-
Televisão em 1975, quando Hermeto ganhou o prêmio de trônicas, scatting aleatório e ondas de glissandi ajudou
melhor arranjo com O Porco da Festa (MILLARCH, 1975). Flora Purim a vencer o prêmio de Melhor Cantora da Re-
vista Down Beat por quatro vezes e ser nomeada duas
COSTA-LIMA NETO (1999, 2000) aponta vários exemplos vezes para o Grammy.
da relação que Hermeto faz entre as vozes dos animais e
Ao descrever a Sinfonia do boiadeiro (1995), Her-
sua tradução atonal na partitura. Esse atonalismo “natu-
meto recorre mais uma vez às vozes da natureza:
ral” ou ruidismo “ecológico” pode ser apreciado nos pri-
meiros 16 compassos de Arapuá, incluída no disco Brasil “Você já viu uma boiada de 3 mil reses em movimento? Eu via
universo (1986), em que um cluster no registro médio- e ainda vejo essas boiadas viajarem dois, três meses de uma fa-
grave sobre uma 4ª justa no baixo imita o zunido do tipo zenda para a outra, o vaqueiro tangendo, o gado atravessando
o rio, o aboio, o barulhos dos cascos na água. É essa a sinfonia.”
de abelha que dá nome à música (Ex.2; transcrição de (CABRAL, 2000, p.15).
Jovino Santos Neto, citado por COSTA-LIMA NETO, 2000,
p.129). Já em Cores (disco Hermeto Paschoal e Grupo,
1982), cujo nome é uma referência ao arco-íris, às cigar- 5 – Três princípios da Música Universal
ras e aos amoladores de facas (COSTA-LIMA NETO, 1999, “A Harmonia é a mãe da música, o ritmo é o pai e a melodia ou o
p.130), Hermeto utiliza o Lá4 de uma cigarra “gravada tema é o ilho”
no jardim de sua casa” como um pedal agudo sobre dois “Bom gosto não se aprende na escola”
“A prática é quem manda”
pianos cuja somatória harmônica soa como um cluster Princípios da Música Universal de Hermeto Pascoal
(COSTA-LIMA NETO, 1999, p.140-142). Ainda em Cores, (MORENA, 2008)
na coda, ele recorre a um cluster na região médio-aguda
do piano para emular as “cores indeinidas” - parciais O primeiro, o terceiro e o décimo-quarto princípios da
inarmônicos - de um pedaço de ferro sendo percutido música universal de Hermeto Pascoal, listados na epígra-
(ou amolado) (Ex.2; transcrição de Jovino Santos Neto, fe acima, sintetizam e norteiam o processo de formação
citado por COSTA-LIMA NETO, 2000, p.136). de sua linguagem harmônica. Diferentemente de muitos
músicos populares que, por não terem tido a oportunida-
Se nos exemplos acima o atonalismo hermetiano resulta de de estudar a música erudita, por isso criam, em torno
de uma abordagem vertical e homofônica, em Papagaio dela, o mito de uma cultura superior e inatingível, Herme-
alegre (disco Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca, to Pascoal sempre encontrou caminhos alternativos dian-
1984), é fruto da escrita linear e polifônica. Embora as te dos impedimentos de uma educação formal em música
vozes sejam baseadas individualmente em escalas diver- que lhe foram impostos. Ele relata: “. . . vim a aprender
sas, o resultado sonoro de sua superposição polimodal teoria com 42, 43 anos de idade. Eu memorizava muito as

Ex.2 – Clusters imitando o zumbido da abelha arapuá na música Arapuá (transcrição de Jovino Santos Neto) e
os parciais inarmônicos de um pedaço de ferro percutido na música Cores (transcrição de Jovino Santos Neto),
ambas de Hermeto Pascoal.

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Ex.3 - Atonalismo resultante do contraponto polimodal em Papagaio alegre


(transcrição de Jovino Santos Neto) de Hermeto Pascoal.

coisas. Quando eu viajava para São Paulo, mais ou menos No Rio de Janeiro, admirava os ensaios do erudito-popular
uma hora de ônibus, ia cantando. Dava uma gorjeta ao Radamés Gnattali. Com Edú Lobo, Hermeto, então pianis-
cobrador e dizia: “Não sou doido, não sei música, não sei ta do Quarteto Novo, teve a oportunidade de conhecer
escrever e nem tenho gravador. Eu preciso ir cantando metrópoles mundiais da música erudita na Europa e nos
essa música até chegar na boate, até chegar no lugar em Estados Unidos. Um importante contato de Hermeto com
que eu toco”. (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007) partituras de música do século XX parece ter ocorrido “.
. . em Los Angeles, o Edu [Lobo] icava mostrando umas
Percebe-se, ainda hoje, entre músicos, diletantes e leigos, partituras do Stravinsky para ele. . .”, embora Hermeto não
o automatismo de associar soisticação musical e forma- considere muito o peso desta experiência na sua forma-
ção erudita. Não é o caso de Hermeto, mas após quase ção, pois “. . . Ah, eu não tava muito interessado nisso não.”
40 anos de proissão, ele viu-se atormentado com as fre- (entrevista de Jovino a COSTA-LIMA NETO, 1999, p.6). Mas
quentes perguntas de repórteres ávidos de saber sobre o mesmo Hermeto, que em entrevista à Jazz Magazine em
sua educação musical: 1984 (citado por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.4) disse: “Eu
adoro tocar música ‘clássica’ ”, certamente tocou muitas
Quando iz os meus 50 anos. . .eu falei para minha esposa Ilza. . . vezes a Pavane de G. Fauré, incluída no LP Brazilian Oc-
estou um pouco preocupado, as pessoas estão cobrando muito de
mim. . . eu não sei dizer como foi que eu aprendi. . . tão achando topus (1969) e a ária Kein Wort do Segundo Ato da ópera
que eu estou escondendo alguma coisa. . .vocês acham que se A Flauta mágica de Mozart, incluída no mais recente CD/
alguém fosse meu professor não estaria feliz de ser meu professor, DVD Chimarrão com Rapadura (2006). Sintomaticamente,
não seria conhecido?. . . não tenho um professor aparente. . . estou sua parceria com Aline Morena, “. . . formada em canto
me sentindo órfão. . . aquele ilho que nasceu e gostaria de conhe-
cer os pais (CAVALCANTI, 2004). lírico pela Universidade de Passo Fundo” (CASTRO, SOUZA
e ROCHA, 2007), o motivou a compor para este último
A constatação de seu autodidatismo vitorioso e tão ei- álbum uma música chamada À Capela.
ciente quanto qualquer formação acadêmica, entretanto,
não implica em um desconhecimento de sua parte dos Para descrever o estilo improvisatório de Hermeto, o crí-
valores musicais mais racionais e menos intuitivos, ca- tico do The New York Times Stephen Holden fala mais de
racterísticos do músico letrado. Em Recife, Hermeto se uma referência erudita do que do jazz norte-americano:
maravilhava com os ensaios de Guerra-Peixe, “. . . mestre “. . .ofereceu momentos de virtuosismo no piano, embora não faça
da arte da composição e do arranjo. . . ” (VILLAÇA, 2007, exatamente aquilo que os americanos pensam a respeito do jazz. .
p.36), e com o pianista Alberto Figueiredo, “. . . que tocava . ‘citações’, improvisando em torno de standards da música ame-
só Chopin. . . [que] lia a partitura e criava” (CAMPOS, ricana - como Two for the Road (de Henry Mancini, composta em
1967 para a trilha do ilme Um Caminho Para Dois), My Funny
2006, p.81). A inluência da música erudita aparece em Valentine e Round Midnight. . . Poderia-se descrever seu som e
algumas músicas do Calendário do som. Em 8 de dezem- estilo como uma lembrança e improvisação de Rachmaninoff com
bro de 1996 (PASCOAL, 2000a, p.211), Hermeto comenta a força do fogo latino-americano”. (MILLARCH, 1989a)
tanto sobre a questão da harmonia, quanto a questão da
técnica no piano: “Esta música é muito erudita e cheia de É muito provável que o contato com procedimentos da
modulações. Até breve! Haja mão esquerda”. Ainda rele- música erudita, diretamente com músicos de formação
tindo uma prática erudita, somente esta música e mais tradicional ou via outros estilos populares inluenciados
quatro, em todo o livro, têm a mão esquerda realizada, pela música erudita (como o jazz moderno), tenha inspi-
com típicos gestos do pianismo romântico: repetidos ar- rado Hermeto em harmonias e métricas mais complexas.
pejos em colcheias marcando as mudanças de harmonia e O baterista Nenê conta que, como pianista do Quarte-
arpejos em quiálteras num jogo polirítmico de seis notas to Novo, Hermeto tocava “Garota de Ipanema em 7/4”
no acompanhamento contra quatro na melodia. (CAMPOS, 2006, p.109). Em Pintando o sete de Hermeto,

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a “. . . assimetria do compasso 7/8 cria o efeito de estra- como John Cage, Joshua Kohl e Jarrad Powell foram
nhamento em relação à música popular convencional. . compositores residentes, declarou a GILMAN (sem data)
. ” (ARRAIS, 2006, p.12, 13). No “chorinho em sete” (um seu plano de re-orquestrar A sagração da primavera de
7/4), que aparece na música 1º de Fevereiro de 1977 do Stravinsky para 10 músicos apenas.
Calendário do som (CAMPOS, 2006, p.102), também se
podem reconhecer diversos padrões assimétricos, como Apesar de não ter tido professores eruditos, a proximi-
[4/4 + 3/4], [2/4 + 2/4 + 6/8], mostrados no Ex.4, que dade de Hermeto com a música erudita é visível na suas
não se relacionam com as métricas aditivas afro-brasi- obras sinfônicas que compôs, ainda muito pouco conhe-
leiras apontadas por SANDRONI (2001), mas provavel- cidas, como Sinfonia em Quadrinhos; Sinfonia Berlim e
mente com uma leitura jazzística de práticas eruditas. sua gente; Suíte Pixitotinha; Suíte Paulistana; Suíte Mun-
Admirador de Radamés Gnattali, ícone da música brasi- do Grande; Suíte Norte, Sul, Leste, Oeste; Sinfonia Vale do
leira que melhor integrou as músicas erudita e popular, Ribeira e Sinfonia do Boiadeiro. Um dos ícones da música
Hermeto lhe dedicou Mestre Radamés, música centrada erudita brasileira, Isaac Karabtchevsky, quando o regeu à
em um complexo solo de bateria, cuja partitura revela frente da Orquestra Jovem de São Paulo no Teatro Mu-
“melodia de timbres”, “frases ritmico-melódicas desloca- nicipal, não economizou elogios: “Ele sempre me impres-
das”, a “coexistência de diferentes pulsações”, a “fusão e sionou pelo domínio instrumental aliado a uma inventivi-
alternância de células rítmicas” e a ausência ou “poucas dade rítmica e melódica, que engloba uma visão de todos
barras de compasso” (CAMPOS, 2006, p.120-121). os sons num resultado fantástico” (COMODO, 1996).

Ironicamente, os problemas crônicos enfrentados pelo Mas Hermeto não reteve as terminologias eruditas, as regras
músico erudito no Brasil podem ter favorecido Hermeto formais e harmônicas, preferindo se guiar pelo resultado da
ter se cercado de instrumentistas de alto nível e com realização musical, pelas sonoridades que diziam respeito
experiência sinfônica. As “. . . diiculdades proissionais à sua percepção e pelo vocabulário próprio da aprendiza-
da classe de instrumentistas – onde se incluem desde gem oral. Daí surgiram termos como “cacho de uva” (acor-
os músicos de sinfônica até os integrantes de bandas des), “três andares” (superposição de três acordes) (ZWARG,
carnavalescas. . .” de que falava Plínio Marcos, geraram 2009b), “garinho” (síncope), “pendurada” (acento contra-
(e têm gerado) uma desilusão, instabilidade proissio- métrico), “chão” ou “fora do chão” (ênfase nos tempos ou
nal e, mesmo, provocado a evasão das orquestras, em contratempos), “quebrar” (sair da ênfase nos tempos) (CAM-
grande parte devido à incompetência do “. . . sindicato, POS, 2006, p.86-87). Não estar preso à formação tradicional
a Ordem dos Músicos . . . nada fazem, nada reivindicam. de música também lhe permitiu criar conceitos mais amplos
. . ” (BAHIANA,1979-1980b, p.78). COSTA-LIMA NETO como música universal, cifragem universal, música da aura,
(1999, p.72) lembra que “. . . com exceção do percus- música dos ferros e utilizar o método do corpo presente, cria-
sionista Pernambuco, os demais integrantes do Grupo do por Itiberê Zwarg (MORENA, 2009).
[do Jabour] tiveram passagens pela música erudita e a
Favorecendo a prática, e não a teoria, na sua rotina
abandonaram para se dedicar à música popular . . . [for-
musical, Hermeto alcançou um nível criativo em que a
mando um grupo] semelhante a um conjunto de mú-
improvisação tornou-se muito próxima da composição,
sica de câmara. . .” Márcio Bahia tocou na Orquestra
ao mesmo tempo luente, em tempo real e com extraor-
Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Itiberê
dinária riqueza de ideias:
estudou piano clássico. Carlos Malta estudou na Escola
de Música da UFRJ e na Escola de Música Villa-Lobos. “A surpreendente originalidade dessas ideias e a grande variedade
Jovino, que hoje leciona no Cornish College of the Arts de procedimentos composicionais empregados, resultam em im-
(Estados Unidos) no qual compositores avant-garde provisações extremamente bem concebidas e inalizadas, podendo

Ex.4 - Padrões de [4/4 + 3/4] e [2/4 + 2/4 + 6/8] na métrica 7/4 em 1º de Fevereiro de 1977 de Hermeto Pascoal.

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ser ouvidas e estudadas independentemente de seus temas de ori- oito baixos. . . ele não segue as progressões harmônicas usuais,
gem, demonstrando complexidade e nível artístico de composições por isso, soa sempre novo e inesperado. . . embora seus acordes
previamente elaboradas PRANDINI (1996, p.91). sejam bastante elaborados, são, na maioria, formados por tríades
simples empilhadas umas sobre as outras. . . o que é radicalmente
diferente do que é ensinado na maioria das escolas. Isto nos dá a
Da mesma forma, a diversidade harmônica que se encontra oportunidade de criar música sem ser baseada na utilização de
nas composições de Hermeto também parece estar pre- escalas e modos. Tenho mostrado este conceito aos meus alunos
sente em suas improvisações e é fruto de sua abordagem, aqui na [Escola de Música do] Cornish College of the Arts em Se-
como relata Jovino: “É necessário compor e escrever como attle [Estados Unidos] e é surpreendente como reagem quando
descobrem que simples acordes podem criar harmonias complexas
se fosse improviso e tocar como se fosse escrito” (COSTA- (GILMAN, 2009)
LIMA NETO, 1999, p.23). Após analisar alguns solos impro-
visados no período entre 1985 e 1992, José Carlos Prandini Na música De bandeja e tudo, COSTA-LIMA NETO (1999,
observou a existência de padrões que dão unidade à sua p.148) reconhece ecos modais e sonoridades de “. . . efeito
música criada espontaneamente. Embora tenha utilizado imponente, solene e místico” resultantes dos acordes com
uma amostragem pequena e tenha simpliicado a harmo- quartas e quintas justas sem terças, os quais normalmente
nia de Hermeto nas suas transcrições e graia, PRANDINI se associam, na música erudita, desde os organa medievais,
(1996, p.89-90, p.4 da segunda partitura do Anexo I) fala até as quintas diretas dos power chords do rock, passan-
da improvisação de Hermeto como um frequente “grande do pelas harmonias paralelas de Debussy. Novamente, e
adensamento de notas”, com predomínio de semicolheias, apesar da possibilidade de Hermeto ter ouvido estas re-
tercinas e fusas dentro de um “pensamento diatônico” jun- ferências na sua vida de músico proissional maduro entre
to com os quais podem aparecer a ixação em um acorde músicos letrados, é mais provável que estas sonoridades
apenas, uma preferência pelas escalas Lídia, Superlócria e tenham surgido na sua música mais a partir da confor-
Dórica (e, em menor grau, a escalas Menor melódica, Mi- mação de suas mãos sobre os instrumentos (sanfonas e
xolídia e Tons inteiros). Mas observa também que ocorrem teclados, como o recorrente acorde X4568) e mesmo, do
“. . . superposições de elementos originários de outras áreas modalismo típico nordestino, remanescente dos trovadores
tonais, ou emprego de tonalidade expandida. . .” e, mesmo, renascentistas, que José SIQUEIRA (1981) identiicou no
“fala e ruído de animais”, como ocorre ao inal da improvi- seu Sistema Modal na música folclórica do Brasil.
sação em O Tocador quer beber.
Outro recurso de complexidade harmônica comum em
A orientação pela prática, e não pela teoria, permitiu ao Hermeto, oriundo das exaustivas práticas de ensaio di-
discípulo Itiberê Zwarg, “herdeiro” das práticas musicais árias e não da teoria, é o dobramento da mesma linha
de Hermeto no Jabour, desenvolver o conceito de método melódica por outro instrumento transpositor sem se
do corpo presente, no qual a composição e a performance preocupar em manter a mesma tonalidade COSTA-LIMA
são processos quase simultâneos e participativos, carac- NETO (1999, p.150), superposição que, obviamente, terá o
terística fundamental no processo criativo e coletivo da mesmo efeito prático da politonalidade.
Itiberê Orquestra Família. Ele explica:
“. . . As músicas vão surgindo segundo o método de corpo presente.
O contraponto, um elemento típico da música erudita,
. . a capacidade de compor na hora, burilando as músicas ali no pertence ao vocabulário de Hermeto desde o início de sua
contato com os instrumentistas. . . O que sai dessas reuniões de carreira. Na gravação do disco Brazilian Octopus (1969),
corpo presente é delirantemente variado. Em Pedra do Espia há cho- bolou uma linha contrapontística para duas lautas para
rinho, forró, samba, valsa e muito mais. Tudo 100% instrumental. .
. Partimos do som, da referência auditiva, ao invés do método tra-
acompanhar o repetitivo tema da música O Pássaro do gui-
dicional - que usa a visão, o olhar cravado na partitura. As músicas tarrista Lanny Gordim. O saxofonista Carlos Alberto relata
amadurecem muito rápido. Ensaiamos muito. . .” (BARBOSA, 2001) a importância que Hermeto confere à soisticação de sua
criação musical: “Só que, na hora da mixagem, o contra-
“Conforme vou compondo, em um instrumento qualquer,a música
vai sendo executada quase simultaneamente à sua criação. Por
canto tinha sumido da gravação. O Hermeto icou tão bra-
exemplo: faço uma frase melódica e passo para o clarinetista; a vo que queria pegar o técnico. . .”(CALADO, 2000). Muitas
harmonia para o pianista; e em seguida vou abrindo as vozes para vezes, ele deixa claro seu pensamento contrapontístico
todos os instrumentistas, parte por parte. . . Reproduzir de ouvido o nas partituras, como na música 10 de setembro de 1996
que vou criando desenvolve a percepção rítmica, melódica, harmô-
nica e a memória musical. . . a memória de cada um dos músicos
do Calendário do som, inspirada em Tom Jobim (PASCOAL,
é acionada pelo estímulo do som e não pelo estímulo gráico. Só 2000a, p.102). Mas a simultaneidade de linhas melódicas
depois de parte da composição e arranjos prontos é que cada um na música de Hermeto não parece derivar de suas expe-
dos instrumentistas com a ajuda de meu monitor, escreve o que riências com música erudita mas, antes, podem remeter
executou, desenvolvendo a habilidade da escrita musical. . . apren-
dem a escutar todos os instrumentos, presenciando [grifo nosso] e
às experiência sonoras de sua infância, muitas vezes com-
participando de todo o processo de criação.” (ZWARG, 2009c) plexas. Por exemplo, a superposição de materiais desco-
nectados, gerando a sensação de caos pela simultaneidade
Jovino procura explicar as raízes do conceito harmônico de diversas pulsações, andamentos e atmosferas é relatada
de Hermeto, os quais aprendeu na Escola Jabour e levou por ele mesmo, “. . . [na feira de Lagoa da Canoa, em que]
para o exterior: haviam os cantadores de embolada, os vendedores anun-
É sempre difícil explicar os conceitos harmônicos de Hermeto, ciando, os discos do Luiz Gonzaga tocando no megafone. .
mesmo para outros músicos. . . ele disse que costumava, na in-
fância, icar na oicina do avô ferreiro. . . batia na peças de ferro
. e era tudo isso junto, de uma vez só. . . ”, o que pode ter
e tentava emular todos os harmônicos que ouvia no seu fole de servido de modelo para ele na “. . . bandinha da escola, na

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qual tocava tambor. . . atravessado de propósito para ver a para a música 12 de novembro de 1996, que ele descre-
marcha icar trocada. . . ” (CAMPOS, 2006, p.134). ve assim: “compus esta música nos doze tons, maiores
e menores” (PASCOAL, 2000a, p.165). Como se fosse um
Uma das características do estilo composicional de Her- Bach da música popular do século XX, ele consegue con-
meto Pascoal é a economia de meios na utilização do centrar, em apenas 24 compassos contendo uma cifra
vocabulário harmônico. Geralmente ele recorre à repe- cada, um passeio “bem-temperado” por todos os acor-
tição dos mesmos tipos de acordes e a transposições de des das tônicas dos 24 tons maiores e menores, basean-
encadeamentos harmônicos (sequências), tanto em obras do-se em apenas dois tipos de acorde (X7+ e Xm 479).
mais antigas quanto mais recentes. Mais do que isto, em Desta forma, consegue utilizar uma variedade máxima
muitas músicas, a predominância de um tipo de acorde de acordes, sem perder a coerência do discurso tonal
sobre os demais é muito comum. Por exemplo, no ma- tradicional da música popular. Tal coerência poderia ser
nuscrito do compositor de O Ovo (PASCOAL, 2008), peça explicada alternativamente como ambiguidades ou po-
gravada pela primeira vez no disco Quarteto Novo (1967), larizações em torno da tônica e da supertônica, ao invés
nota-se que a recorrência de acordes do tipo X4568 / 4 de conigurar modulações (Ex.5).
ocupa 75,6 % dos 45 acordes da peça. Já em Amor, paz e
esperança (PASCOAL, 1980), os acordes menores do tipo Avesso a rótulos, Hermeto precisou criar um para dar
Xm479 correspondem a 48,8% e os acordes do tipo X479 conta da diversidade que é o princípio básico de seu
correspondem a 29,2 % do total de 41 acordes da peça conceito de música universal, no qual cabem “. . . todos
(juntas, essas versões maior e menor deste acorde equi- os estilos e todas as tendências. O Brasil, sendo o país
valem a 78% do conteúdo harmônico utilizado!). mais colonizado do mundo, não poderia ser outra coisa .
. . aquela mistura bem feita . . .”, como airmou em uma
A economia de meios é ainda mais evidente em 22 de entrevista à revista eletrônica Jungle Drums (citado por
agosto de 1996, que ele diz ter composto “com um tipo ARRAIS, 2006, p.7). Este conceito torna a música uma
de acorde, só com modulações” (PASCOAL, 2000a, p.83). experiência mais ampla do que apenas o fazer musical.
Aqui, ele recorre mais uma vez ao típico acorde X 4568 COSTA-LIMA NETO (2008, p.24-25) identiica na música
(sem terça, com 4ª, 5ª, 6ª e reforço da oitava). Estão claros universal opções de estilo de vida, como “arte” e “quali-
os dois procedimentos nos quais Hermeto se baseou para dade”, em oposição a “dinheiro” e “quantidade”. De fato,
compor os encadeamentos harmônicos desta música: o o documento com dezessete Princípios da Música Uni-
mesmo tipo de acorde com fundamentais diferentes, mas versal criada por Hermeto Pascoal, organizado pela dis-
sobre o mesmo baixo (como nos c.9-10: Bb 4568/F, Ab cípula a atual esposa Aline MORENA (2008), é visionário
4568/F, G 4568/F, Eb 4568/F) e, esporadicamente, o mes- e valoriza atitudes como “. . . amar, criar, imaginar e se
mo tipo de acorde com a mesma fundamental, mas sobre inspirar nos sons da natureza. . . misturar sem precon-
baixos diferentes (como no c.13: B 4568/D#, B 4568/D). ceitos, mas com bom gosto. . . são todos os mundos. . .
A genialidade harmônica de Hermeto ica evidente com só busca encontrar-se. . . a confraternização e o amor
a solução encontrada para sua concepção planejada entre os povos. . . é alimento para a alma”.

Ex.5 – Economia de meios harmônicos, máxima variedade de acordes e ambiguidade tonal de Hermeto Pascoal na
música12 e novembro de 1996.

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6 - Hermeto Pascoal: “Minha religião é a Em outro exemplo do sincretismo afro-indígena no Bra-


música” (GONTIJO, 2000, p.2) sil, Hermeto recorre a “. . . recursos vocais não conven-
cionais, como sussurros, chiados, glissandi, ataques glo-
“Eu rezo com a música, com o instrumento”. Hermeto Pascoal tais, tosse, gritos” para criar a ambiência afro-brasileira
(O. RODRIGUES, 2003) de Mestre Mará (1979), e uma série de aliterações com
palavras em torno do título:
A religião, especialmente aquela dos ritos populares bra-
sileiros, sempre fez parte do mundo musical de Hermeto “. . . técnica muito comum na embolada nordestina, para asso-
ciar a denominação do ritmo afro-brasileiro ‘maracatu’, com o
Pascoal. As experiências religiosas estão presentes des-
instrumento indígena ‘maracá’, além do gato-do-mato (na língua
de sua infância em Lagoa da Canoa, nas procissões dos indígena) ‘maracajá’ e, inalmente, o nome do mestre ‘Mará’. Nes-
benditos e nas rezas das novenas (CAMPOS, 2006, p.69), ta música, a melodia cantada por Hermeto está numa velocidade
nos mistérios das crenças, que ele mesmo relata: “Com (andamento) lenta, enquanto o coro explorando recursos vocais
não convencionais está em outro andamento, mais rápido. A su-
8 anos, achava que era alma, mas não era nada mais do
perposição incomum dos dois andamentos em “Mestre Mará” in-
que os morcegos dentro da igreja” (CASTRO, SOUZA e dica a presença de duas dimensões simultâneas. De fato, além da
ROCHA, 2007). A religiosidade de Hermeto aparece nos Umbanda, do espiritismo, e das tradições musicais relacionadas ao
títulos de muitas músicas, como Velório (disco Hermeto, catolicismo popular do nordeste, nesta música o alagoano revela
outra faceta de sua espiritualidade ao cantar: ‘Ô Mestre, recebi
1971; relançado em CD como Hermeto Pascoal, Brazi-
sua mensagem, foi com muita alegria que musiquei sua imagem.’
lian adventure), Religiosidade (disco Cérebro Magnético, O ‘mestre’ em questão parece estar relacionado a outra igura que
1980), Novena (disco Hermeto Pascoal e Grupo, 1982), Hermeto denominou ‘O Dom’ ” COSTA-LIMA NETO (2008, p.11-12).
Santo Antônio (disco Zabumbê-bum-á, 1979), São Jorge
(disco Zabumbê-bum-á, 1979), Santa Catarina (1984), O jornalista Howard Mandel, da revista Down Beat, o
Monte Santo (disco Lagoa da Canoa, município de Arapi- compara com outras referências místico-musicais: “. . .
raca,1984), Mentalizando a cruz (disco Brasil Universo, Pascoal é um líder pan-global como [o compositor e pia-
1985), Magimani Sagei (disco,1982), Missa dos escravos nista de jazz, poeta, ilósofo, pioneiro da ilosoia cós-
(disco Slaves Mass, 1977), Igrejinha (gravada como Little mica afro-futurismo] Sun Ra e um individualista como
church no disco Live evil de Miles Davis), Devoção, Mes- [o multi-instrumentista e militante Afro-Americano]
tre Mará (1979), 25 de dezembro de 1996 do Calendário Rashaan Roland Kirk ” (McGOWAN e PASSANHA, 1999,
do som (dedicada a Jesus), 16 de março de 1997 do Ca- p.161). Mesmo os músicos estrangeiros e que tiveram
lendário do som (dedicada ao médium espírita Doutor pouco contato com Hermeto percebem a religiosida-
Fritz e seus irmãos espirituais), entre outras. de com que ele abraça a música. Lyle Mays, tecladista
do Pat Metheny Group diz que “Ele tem uma verdadei-
Falando da “cosmologia pessoal” de Hermeto Pascoal, ra devoção com o fazer musical, e nos expressa isto...”
COSTA-LIMA NETO (2010a), acredita que o Calendário do (McGOWAN e PESSANHA, 1991, p.160).
som (2000) é “uma obra sacra ‘inspirada por Deus’”. Ou
Deuses. Ecumênico, Hermeto está atento às tradições re- A música parece, de fato, ser um instrumento religioso de
ligiosas indígenas e afro-brasileiras. No processo de gra- comunicação para Hermeto. A amizade que estabeleceu com
vação de Magimani Sagei (1982), música com clima de Miles Davis reletiu-se na música de Hermeto muito tempo
dança tribal que se refere à índia cabocla Magimani Sagei após a morte do jazzista norte-americano, ao lhe dedicar a
(um possível “alter-ego de Hermeto”), e que tem corres- música Capelinha e lembranças (disco Eu e eles, 1999):
pondência com uma alta entidade espiritual na umbanda:
“Essa música com o Miles foi o seguinte. . . aconteceu agora, de-
“. . . o técnico de estúdio Zé Luiz inventou, a pedido de Hermeto, pa- pois dele lá no outro plano. . . por ser um gênio, um cara tão mu-
lavras com sonoridade tupi (“oirê, ogorecotara, tanajura”), enquanto, sical, ele aprendeu essas músicas minhas [Little church e Nem um
nos breques instrumentais, os músicos falavam palavras desconexas, talvez no disco Live evil de Miles Davis], eu não precisei escrever
sopravam apitos e gritavam. Os latidos dos cachorros Spock, Bolão e partitura nem nada. . . Ele aprendeu gravando essas músicas no
Princesa adensavam a textura geral, enquanto o andamento acele- estúdio, e icou. E eu tocando o Hammond. . . tocando num órgão
rava até o inal free, improvisado” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.10). elétrico que ele tinha lá, horrível. . . aumentei o volume e o som
veio pela intuição. . . Uáaa, Uáaaa. . . Aí o Miles correu de lá e dis-
se: ‘Oh, que som, que coisa bonita isso aí’. Então nesse meu disco
Em Missa dos escravos, incluída no disco Slaves Mass, agora, que eu iz essa música e dediquei a ele. . . [para] retribuir. . .
pode-se observar novamente a voz como elemento típico aquele convite que ele fez no disco dele [que] . . . me comunicando
da música ritualística: muito com ele espiritualmente. Comecei a tocar e sentia muito a
presença dele na minha mente. . . Na gravação é que estava muito
“A frase cantada ‘Chama Zabelê pra poder te conhecer’ é entoada mais forte a intuição. . . que começa a capella. . . com os quatro
hipnoticamente num crescendo, em uma mesma nota grave con- lugelhorns. . . eu conversando com ele, brincando com ele. . . to-
tínua, como em um recitativo (recto tono) de uma missa católica cando samba no lugelhorn. . . colocaram como se fossem duas
medieval, acompanhada pelo naipe dissonante de lautas e tendo músicas, não são duas músicas, aquilo é uma música só. Aquilo é
como base os batuques dançantes dos tambores da bateria. No a introdução da melodia” (BARROSO, 2009)
inal, um duo de porcos grunhindo dialoga com o solo vocal de
gargalhadas, choro e gritos de Flora Purim, superpostos a uma Hermeto, ecumênico, admira a doutrina espírita, reli-
melodia lenta tocada na lauta transversa em uníssono com a voz
cantada, aparentemente inspirada nos cantos de rezadeiras e nos
gião escolhida por muitos familiares de sua primeira
benditos e incelenças do catolicismo popular nordestino (COSTA- esposa, Dona Ilza. Ele diz: “Eu vivi nesse meio e tenho
LIMA NETO, 2008, p.11). muita experiência que o pai dela passou pra mim sobre

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Alan Kardec, mesa branca. Você não vê, por exemplo, Aos poucos, o culto à música por Hermeto e seus se-
ninguém de Alan Kardec na TV pegando dinheiro, vê?” guidores tem tomado a forma de um local público que
(O. RODRIGUES, 2003). abrigará, segundo sua esposa e parceira musical Aline
Morena, “. . . um teatro, que terá o acervo do Herme-
Uma escuta atenta da música Chapéu de baeta (disco Festa to, uma sala onde haverá o acervo multimídia. Além
dos deuses, 1992 ) revela Hermeto recitando sobre “. . . o de acontecerem espetáculos de música universal, vão
som que embala a alma. . . quem premedita não procura e estar disponíveis os vídeos de shows, de workshops.”
jamais encontra . . .é sair com fé, coragem, com muita me- (CASTRO, SOUZA e ROCHA, 2007). O Templo do Som
ditação. . .” Já em Mentalizando a cruz, no longo trecho de Hermeto Pascoal, cujo projeto arquitetônico “. . . já está
piano solo que inicia a música, COSTA-LIMA NETO (2008, pronto e é assinado pelo arquiteto Mário Biselli” será
p.11) diz que “. . . foi composta por Hermeto e dedicada ao um espaço que, além de disponibilizar manuscritos
músico Paulo Cesar Wilcox” e que “Hermeto parecia con- originais, gravações raras e imagens, terá uma função
vencido que o homenageado, recém-falecido, teria ‘sopra- educacional, onde pretende-se a discussão sobre mú-
do’ esta música aos seus ouvidos, como numa psicograia.” sica e seu papel na melhoria do ser humano (PAULA,
2007). Hermeto parece preparado para deixar o legado
A linguagem atonal geralmente aparece na música de de sua missão na terra:
Hermeto Pascoal como música da aura, em que “meu ou-
“. . .Deus fez uma escada ininita e a deu de presente a cada um de
vido absoluto, recebe os fenômenos sonoros cotidianos. nós. Estou subindo os degraus e vou continuar subindo. Não é pre-
O familiar é tornado exótico e vice-versa. . .” motivada ciso olhar para trás, porque a vida já é um espelho.” (CASTRO, SOU-
por emulação de sons de altura não deinida como a fala ZA e ROCHA, 2007); “Tudo o que sei e serei agradeço a Deus, aos
humana (como em Aula de Natação, na qual “. . . transpõe Deuses e ao meu dom espiritual e musical”. (PASCOAL, 2000b, p.18)
as diferentes durações e alturas da voz falada em prosa
para o piano, resultando uma melodia totalmente atonal 7 - Considerações inais
e de ritmo assimétrico” (COSTA-LIMA NETO, 1999, p.176) Ouvidos desatentos às experiências de vida de Hermeto
ou o som percutido de peças de metal de natureza pro- Pascoal podem reconhecer, dentro do seu eclético esti-
gramática como em Ferragens. lo composicional, ecos derivados diretamente de estilos
eruditos, como melodias acompanhadas chopinianas;
Em Canon para lauta solo, gravada no disco Slaves Mass acordes paralelos debussynianos; os contrapontos, super-
por Hermeto PASCOAL (1977), a sua religiosidade torna- posições politonais e emancipação rítmica de Stravinsky;
se explícita na intenção de emular uma sessão musical os clusters atonais da segunda escola de Viena; as super-
espírita no estúdio de gravação e se comunicar como posições métricas e harmônicas de Charles Ives; a com-
o colega jazzista Julian “Cannonball” Adderley (1928- plexidade rítmica de Boulez; as transcrições de Messiaen
1976), recém-falecido. Uma análise da gravação e das de sons da natureza para o piano; as paisagens sonoras
partituras (veja a partitura original desenhada em forma de R. Murray Schafer; as manipulações eletroacústicas
de espiral no presente número de Per Musi [PASCOAL remanescentes de Pierre Schaeffer e Pierre Henry; os rui-
e PEREIRA, 1977, p.70] e a partitura restaurada [PAS- dismo musicais de Luigi Russolo; a música conceitual de
COAL e BORÉM, p.80-82, nesse volume de Per Musi.]), John Cage; e, mesmo, os modelos modais de composição
revela uma utilização expandida da linguagem harmô- e de improvisação oriundos do jazz.
nica modal. Em Cannon, Hermeto alterna um modalismo
extremamente instável, sem centros modais deinidos Entretanto, basta acompanharmos a trajetória musical
(que, por isso, pode ser percebido como quase-atonal), deste músico genial, para o qual não existe divisão entre
com polarizações modais (Sol Dórico/Eólio e, depois, Sol composição, performance, arranjo e improvisação, para re-
Eólio/Menor Melódico) que sugerem as etapas de uma conhecermos, já na sua infância, as premissas da econo-
sessão espírita: o contato, o transe, a incorporação es- mia política da música de Jacques Attali que COSTA-LIMA
piritual, e a despedida com a alma de “Cannonball” (BO- NETO (1999, p.42-43) identiica em Hermeto Pascoal: o
RÉM e FREIRE, 2010; veja artigo completo às p.63-79 no “espelho do tempo e da sociedade”, a “ação crítica”, o “atri-
presente volume de Per Musi). buto do poder político e religioso” e o “germe da revolta”.

Sempre que lhe perguntam sobre religião, entretanto, No caso de Hermeto, “. . .a tendência em buscar referên-
Hermeto diz que “Minha religião é a música. Deus me dis- cias musicais ao mesmo tempo consagradas e generali-
se: ‘A religião de vocês aí, meu ilho, é o trabalho. É o que zantes (música erudita, jazz). . .” (CAMPOS, 2006, p.78)
vocês gostam de fazer na vida’ ” (GONTIJO, 2000, p.2). não se aplica. Embora seus ouvidos de “gravador ininito”
Não é algo separado das atividades do dia-a-dia. Este in- estiveram (e estão) literalmente atentos a todos os sons
teresse nas tarefas comuns e trabalho dos que cercam que o cercaram, inclusive os eruditos, seu processo de
Hermeto também se relete nos títulos de suas músicas, aprendizagem é único – resultado de suas experiências
como Ilza na feijoada, em que faz referência à atividade de vida musicais e não-musicais - e centrado na trans-
da esposa desde seus tempos no Recife, ou Aula de na- missão oral do conhecimento. O caminho é outro, não
tação que retrata a lida diária da ilha Fabíula Pascoal, tradicional, não-letrado, autodidata, mas os resultados
formada em educação física. sonoros não icam aquém daqueles do tonalismo, mo-

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dalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e música para mim, não há como falar em vanguarda, falar
música concreta da música erudita. em jazz, falar em baião, falar em chorinho. . . não tenho
rótulos” e, mais à frente, sobre mesmice e variedade em
Espera-se que este estudo de caso sobre Hermeto Pascoal música, “. . . o povo cansa de uma coisa só. . . .” (CAVAL-
possa servir de ponto de partida para estudos posterio- CANTI, 2004). O “tacho de sons” no qual CAMPOS (2006)
res, quiçá aqueles de natureza indutiva que, a partir da descreve como os ritmos se misturam “tudo de uma vez
análise de um conjunto maior de músicas desse composi- só” é o mesmo no qual Hermeto Pascoal experimenta suas
tor genial, possam revelar mais detalhes sobre seu estilo receitas em que cabem todos os ingredientes harmônicos,
composicional, especialmente seus percursos harmônicos. muitas vezes “tudo de uma vez só”. Do alto de suas expe-
riências de vida e maturidade musical, o sempre inusita-
Respondendo ao jornalista Álvaro Cavalcanti da Radio do Hermeto Pascoal relete, sem falsa modéstia, sobre si
Nederland Wereldomroep sobre o encontro entre o tra- mesmo: “. . . naquele tempo eu era lindo e agora sou um
dicional e a vanguarda na música, Hermeto disse que “A santo.” (TÁRIK DE SOUZA, 1990).

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Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o
Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um
livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, mu-
sicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras
e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no
Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori,
Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como
Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Ta-
vinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double
Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de
2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara
e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

Fabiano Araújo é Mestre em Música pela Escola de Música da UFMG e Bacharel em Música Popular pelo Centro de
Artes da UNICAMP. Foi professor da FAMES (Faculdade de Música do Espírito Santo) Atualmente é Professor Assistente
do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde leciona Harmonia, Estruturação, Improvisação
e Teclado. Lançou em 2007 o CD e DVD O Aleph, alcançando cotação máxima de crítica do Jornal O Globo. Seu novo
trabalho de interpretação de nove peças do Calendário do Som de Hermeto Pascoal foi gravado e publicado em Portu-
gal, com a participação do contrabaixista norueguês Arild Andersen do baterista Alexandre Frazão (Brasil/Portugal) e do
saxofonista Guto Lucena (Brasil/Portugal).

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NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.

O cantor Hermeto Pascoal:


os instrumentos da voz

Luiz Costa-Lima Neto (UNIRIO, Rio de Janeiro)


lclneto@yahoo.com.br

Resumo: Artigo sobre a utilização da voz na música do compositor Hermeto Pascoal, seja cantando, falando, gritan-
do, sussurrando, rezando, tossindo, gargalhando, assobiando, produzindo sons guturais, sozinha ou simultaneamente
com instrumentos de sopro, de teclas, com objetos sonoros não convencionais ou, ainda, de outras formas. Ao con-
templar a produção vocal na obra e na vida de Hermeto Pascoal, de maneira abrangente, pretendo mostrar uma faceta
pouco conhecida do versátil compositor alagoano, além de revelar que a sua música e a sua personalidade partilham
uma mesma ética, da qual a voz é instrumento.
Palavras-chave: etnomusicologia; Hermeto Pascoal; música popular brasileira; voz; música instrumental.

The singer Hermeto Pascoal: the voice’s instruments

Abstract: Article about Brazilian composer Hermeto Pascoal’s utilization of his voice in his music, whether singing,
talking, shouting, whispering, praying, coughing, laughing, whistling, producing guttural sounds, alone or simultane-
ously with wind instruments, keyboards, non-conventional sound objects or even other forms. In considering the use of
the voice in the work and life of Hermeto Pascoal, in a comprehensive way, I am seeking to show a lesser known facet
of the versatile composer from Northeastern Brazil, as well as revealing that his music and his personality share the
same ethics, in which the voice is the instrument.
Keywords: ethnomusicology; Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; voice; instrumental music.

1- Introdução
Eu me inspiro mais nas outras coisas para fazer música. Eu não es-
cutei música para compor. Não. Eu me inspiro mais na pintura, no
timbre de uma voz. (...) O cantar das pessoas, na minha concepção,
o cantar de cada um de nós, é o que chamamos de fala. Assim
como os pássaros, nós somos pássaros também (PASCOAL, 1997).

Hermeto Pascoal (nascido em 22 de junho de 1936, no Na citação utilizada como epígrafe deste artigo Hermeto
Olho D’água da Canoa, Alagoas) é conhecido no Brasil Pascoal relata que, desde quando ele era criança, a voz foi
e no exterior como um músico multi-instrumentista, ar- algo que o motivou “para fazer música”. Depois, ao lon-
ranjador e compositor. Entretanto, em aproximadamente go de sua carreira proissional, a voz se tornaria um ins-
60% das músicas gravadas em 13 discos autorais lan- trumento tão importante quanto os sopros, as cordas, os
çados a partir de 1972,1 ao invés de limitar-se a utilizar teclados e a percussão. De fato, ela parece integrar, com
somente instrumentos como piano, teclados eletrônicos, os demais instrumentos, um continuum indivisível que
lauta, sax, contrabaixo, bateria, etc. – além de instru- perpassa o território sonoro da Música Universal, confor-
mentos não convencionais –, Hermeto Pascoal também me Hermeto Pascoal designa a sua música inovadora, que
utiliza a voz, mesmo não sendo ele, oicialmente, um can- problematiza a separação entre os pólos popular/erudito e
tor, nem um compositor de canções. Além disso, em seus nacional/internacional. A quantidade numerosa de com-
discos autorais Hermeto sempre contou com a participa- posições gravadas onde a voz se faz presente na obra do
ção de cantoras como Flora Purim, Zabelê, Jane Duboc e alagoano demonstra sua importância, mas, apesar disso,
Luciana Souza e, culminando o longo “namoro musical” este não foi, até então, um tema devidamente contempla-
com o canto, o compositor se casou com a cantora gaú- do nos estudos acadêmicos. Ao invés disso, Hermeto vem
cha Aline Morena, sua atual companheira. sendo considerado apenas como um compositor “multi-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 20/03/2010
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NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.

instrumentista” vinculado às tradições da música instru- Através do “natural”, Hermeto ultrapassa o “convencio-
mental popular, presente em gêneros e estilos, como, por nal”, mas sem negá-lo. Como demonstrei em outro estudo
exemplo, o choro, o frevo, o forró, as bandas de pífano ou (COSTA-LIMA NETO, 1999), para chegar ao atonalismo, rui-
o jazz. Entretanto, se Hermeto Pascoal está, de fato, rela- dismo, aleatorismo e outros “ismos” Hermeto Pascoal não
cionado a estes e a outros gêneros musicais importantes, frequentou escolas de música nem dependeu da música eu-
por outro lado, ele os ultrapassa através da utilização de ropeia de concerto, do jazz norte-americano ou de qualquer
fontes sonoras que, convencionalmente, não são conside- outro gênero musical. Ao invés disso, desde a sua infância
radas “música”, como a voz falada, por exemplo. Esclare- no Nordeste, ele escutou atentamente o que estava a sua
cerei melhor meu argumento a seguir. volta, na natureza e no cotidiano, e utilizou aquelas sonori-
dades em sua música. Ao fundir o “natural atonal” e o “con-
Ainda na epígrafe do presente artigo Hermeto Pascoal vencional modal e tonal” ele cria a sua Música Universal.
airma que, em sua concepção, o “cantar das pessoas é a
fala”. Não se trata de uma metáfora. Hermeto realmen- Embora na citação utilizada como epígrafe Hermeto este-
te escuta as falas das pessoas como se fossem melodias ja se referindo ao papel fundamental que a musicalidade
cantadas. Esta percepção ampliada e precocemente ex- da fala teve na gênese de sua Música Universal, acredito
perimental surgiu na infância do músico, tendo lhe cau- que a partir de seu relato podemos depreender uma inter-
sado, inclusive, alguns problemas junto aos familiares que pretação adicional: se “o cantar das pessoas é o que cha-
não compreendiam porque o menino insistia em dizer que mamos de fala”, a música abrangeria tanto o som, como,
essa ou aquela pessoa estava cantando enquanto falava. também, a palavra e os sentidos por ela enunciados. Desta
Sua própria mãe o chamava de aluado (“lunático”) devido forma, a análise etnomusicológica realizada neste artigo
à insistência incomum do garoto e, desta maneira, Her- contemplará não apenas o canto, os demais instrumentos
meto Pascoal chegou a acreditar que tinha algum pro- e os elementos da sintaxe musical (timbre, textura, ritmo,
blema auditivo. Décadas se passaram e somente a partir harmonia, etc.), como também as letras, narrações e os
de seu LP autoral, lançado em 1984, intitulado Lagoa da títulos das composições de Hermeto Pascoal. Estes dados
Canoa, Município de Arapiraca, o compositor decidiu se serão complementados pelas entrevistas realizadas com
libertar dos fantasmas que o assombravam desde a in- membros de sua família, na região de Lagoa da Canoa,
fância. Começou, então, a gravar em disco as melodias da onde estive em 2008. A partir destas entrevistas relacio-
fala, que só ele parecia escutar, denominando-as músi- narei a vida e a obra de Hermeto Pascoal a certos perso-
cas da aura.2 Nelas, as melodias da fala são reproduzidas, nagens no imaginário popular do Nordeste, como Zumbi
nota por nota, nos teclados e, depois, são harmonizadas dos Palmares, Lampião e Antônio Conselheiro.
e arranjadas para outros instrumentos. Desta maneira,
ele provava para si mesmo e para os outros que não era Som musical e discurso, palavra cantada e palavra falada
“aluado” e nem tinha problemas auditivos. Pelo contrário, podem ser considerados como instrumentos da voz. É o
Hermeto é dotado de ouvido absoluto e de uma escuta que pretendo realizar neste trabalho.3
ampliada através da qual tudo parece se tornar música.
2- O cantor Hermeto Pascoal
A fala humana forneceu para ele os rudimentos de sua Em quatro das nove faixas do primeiro disco autoral
Música Universal ao lhe ensinar as primeiras melodias – lançado em 1972 (Buddah Records), nos EUA, intitulado
atonais e ritmicamente assimétricas. A fala se tornaria, simplesmente Hermeto,4 a voz é utilizada pelo compositor
através da música da aura, uma estrela de primeira gran- alagoano, pela cantora Googie e pelo casal Flora Purim e
deza em sua música, demonstrando a maneira paradoxal Airto Moreira. O experimentalismo musical já transparece
como o compositor alagoano exerce a experimentação na peça Velório, composição que exempliica a importân-
através dos sons cotidianos e daquilo que é mais prosaico. cia da voz e dos objetos sonoros não convencionais na
Como Hermeto Pascoal airmou: “A natureza é o cotidiano música de Hermeto Pascoal. Nesta composição, as vo-
(...) é tudo o que você vê pela frente”. Ela inclui não apenas zes de Hermeto, Flora e Airto são ouvidas logo na seção
os animais e as matas, mas “pode estar também num car- inicial (00:14 – 01:11) e imitam a paisagem sonora dos
ro na Avenida Brasil, na hora do rush, durante uma tem- enterros na terra natal de Hermeto ao simular rezas-de-
pestade” (PASCOAL, entrevista com Gonçalves e Eduardo, defunto5 entreouvidas em meio a sussurros e murmúrios
1998:48). E, complementando a airmação anterior: “Eu aleatórios. As vozes são antecedidas e sucedidas por uma
sou o oposto de muitas escolas. Muitas pessoas pensam orquestra dissonante e atonal constituída por 36 garrafas
que Dó, Mi, Sol, Dó é natural, mas não é; é apenas o con- (00:02 – 01:40). As notas e ritmos foram escritos por Her-
vencional (...). O atonal é a coisa mais natural que existe” meto em partitura e, depois, as partes foram interpreta-
(PASCOAL, entrevista com o autor, 1999). Desta forma, das por jazzmen de renome, tais como Joe Farrel, Hubert
Hermeto Pascoal cria uma dicotomia entre, de um lado, o Laws, Ron Carter e Thad Jones, um pouco surpresos com
“natural” (as sonoridades universais e atonais da fala, da seus novos instrumentos de sopro.
natureza, dos sons dos animais e dos objetos cotidianos,
rurais ou urbanos) e, de outro lado, o “convencional” (o Os objetos sonoros não convencionais foram os primei-
canto e os demais instrumentos, os gêneros e estilos mo- ros instrumentos de Hermeto Pascoal no Olho D’água da
dais e tonais, regionais, nacionais ou internacionais). Canoa, onde o músico nasceu – um local praticamen-

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NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.

te inabitado, cercado por todos os lados pela natureza. através da qual o alagoano lida com a tradição, como a
Lá, o garoto albino se divertia tocando em duo com os declaração a seguir esclarece:
pássaros utilizando lautas feitas por ele mesmo com
Aqui [no Brasil] estão sendo feitas as coisas mais novas e mais
folhas de mamona, ou compunha suas primeiras peças importantes, enquanto lá fora todos estão esgotados. (...) Mas isso
percutindo um carrilhão artesanal de ferrinhos roubados não quer dizer que eu vou sair brandindo as raízes ou fazendo air-
do monturo (lixo) de seu avô ferreiro, apelidado Sena mação de nacionalismo musical. Folclore? O que é isso? Pra mim
da Bolacha.6 As melodias da voz, os sons dos pássaros e só existe música. Ela é universal e está acima de rótulos ou marcas.
Eu nunca digo que sou um “músico brasileiro”, mas um brasileiro
de outros animais, assim como os sons inarmônicos de que faz música. Porque, como músico, sou universal. (PASCOAL,
objetos musicais não convencionais, como o carrilhão entrevista com Ezequiel Neves, 1975)
de ferros, constituíram a “tríade” paradigmática experi-
mental da música de Hermeto Pascoal. Dessa maneira, As tradições musicais regionais ou “folclóricas” não são,
enquanto que o som das garrafas da peça Velório pa- para Hermeto, algo a ser preservado visando à perpetu-
recia estar relacionado às lautas artesanais e ao car- ação de uma suposta “autenticidade” das “verdadeiras
rilhão, as vozes imitando as rezas-de-defunto, por sua raízes” nacionais. Antes, o músico alagoano recorre à tra-
vez, estavam associadas às melodias da fala que hoje dição para, a partir dela, exercer a experimentação. Em
integram as músicas da aura. sua obra, muitas vezes a modernidade parece emergir das
tradições populares, especialmente da música nordestina,
Um esclarecimento terminológico. Na série harmônica, e vice-versa, num continuum sem rupturas, como exem-
presente na maioria dos instrumentos melódicos e har- pliica a peça Velório.
mônicos da orquestra, com exceção de alguns instrumen-
tos de percussão, as frequências parciais mantém com Sucedendo a seção inicial atonal ocorre a segunda seção,
a frequência fundamental uma distância “igual à mul- a mais longa da peça, na qual Hermeto Pascoal se alterna
tiplicação desta [fundamental] por um número inteiro” improvisando no safo (01:42 – 03:29), na lauta transver-
(CAESAR7). Nos sons inarmônicos dos sinos, carrilhões, sal em Dó (03:29 – 04:54), e no piano (04:54 – 05:42),
gongos e outros objetos metálicos, por sua vez, “as par- utilizando os modos Dórico (safo e lauta) e Mixolídio
ciais estão em relação não-harmônica, isto é, em uma (piano). A orquestra é introduzida na terceira seção, pri-
relação matematicamente não inteira com a frequência meiro com os metais da big band, depois com as cordas
mais grave” (idem). O resultado psico-acústico é que o e, em seguida, com o tutti, sempre tendo a “cozinha”9 ao
som inarmônico é percebido sem uma altura deinida; há fundo (05:43 – 07:32). Após o clímax orquestral, atonal, a
uma distorção na ainação. No que diz respeito aos sons peça chega a quarta e última seção, novamente no modo
produzidos pela voz, é interessante observar que as vogais Dórico. O piano solo utiliza a textura bordão, como as
têm parciais harmônicos, mas as consoantes têm carac- cordas graves da viola de um repente nordestino (07:34),
terísticas espectrais “muito mais complexas, porque apre- enquanto Hermeto Pascoal improvisa na lauta transver-
sentam pequenos aglomerados de ruído” (idem). Hermeto sal baixo (08:00 – 08:32).
Pascoal revelou em entrevista comigo (1999) que os sons
dos ferros percutidos serviram como modelo para que ele, A sucessão de seções musicais contrastantes presentes
quando criança, descobrisse acordes atonais e dissonan- nesta composição sugere uma rapsódia ou, ainda, uma su-
tes na sanfona de oito-baixos, popularmente denominada íte, denominação que o próprio Hermeto adota para intitu-
pé de bode. Ilustrando a inluência dos sons inarmônicos lar suas composições mais extensas, com várias partes ou
em sua Música Universal, a composição intitulada Cores seções. Talvez a forma suíte ocorra na música de Hermeto
(1982), por exemplo, apresenta acordes tocados por dois Pascoal porque o músico, quando garoto, tocava sanfona
pianos, cujas notas correspondem aproximadamente aos de oito baixos, pandeiro e triângulo em feiras, forrós, fes-
parciais de uma placa de ferro percutida. tas e bailes em Lagoa da Canoa, em Palmeira dos Índios
e em povoados próximos.10 Nestes bailes, as danças con-
A transcrição destes parciais para os pianos foi possível trastantes eram encadeadas livremente, de acordo com a
graças à percepção ampliada de Hermeto Pascoal. Acima vontade dos dançarinos. Quanto à forma livre denominada
dos “acordes inarmônicos”, Hermeto Pascoal acrescentou rapsódia, acredito que outra explicação faz-se necessária.
o silvo agudo de uma cigarra, cantando, destemperada.8 O próprio Hermeto Pascoal parece fornecê-la: “Todas as
minhas composições começam com uma ideia e terminam
Após a introdução atonal da música Velório, em segui- com mudanças de estilo. Por quê? Respondo eu: é porque
da, de maneira algo irônica, as vozes de Hermeto, Airto a música é universal e o onipotente não tem fronteiras,
e Flora passam a entoar glissandi “fantasmagóricos” em nem preconceito algum.” (PASCOAL, 2000, p.294). As duas
“u” e “a” (01:22 – 01:42), sucedidos pelo solo estridente explicações, combinadas, permitem-nos formular a hipóte-
do safo (ou sapho), um instrumento de cordas, fabricado se de que a construção musical desenvolvida por Hermeto
no Japão, o qual, segundo Hermeto Pascoal (citado por Pascoal encadeia contrastes sucessivos para simular uma
CABRAL, 2000), é uma “mistura de berimbau com máqui- “dança” improvisada, através da qual o músico e “o onipo-
na de escrever”. A ironia com que Hermeto e os músicos tente” se aproximam gradativamente. De fato, muitas ve-
parecem emitir os glissandi merecem um comentário à zes a forma musical das composições de Hermeto Pascoal
parte, pois demonstram, a meu ver, a forma irreverente parece resultar deste ritual religioso.11

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As mudanças entre os trechos falados e tocados, escri- religioso praticado pelos índios Tupinambá no século XVI.
tos ou improvisados das seções atonais e modais da peça Na prática antropofágica, o canibal, ao comer ritualmen-
Velório ocorrem sem costuras aparentes, com as seções te o inimigo, acredita absorver suas qualidades, “com a
se imbricando umas nas outras num luxo ininterrupto. morte signiicando o nascimento de um outro ser no ca-
Este continuum interliga num gesto único: o som das 36 nibal” (ULHÔA, 1997, p.92). Segundo Oswald de Andrade
garrafas e as vozes “rezando no Velório” (primeira seção); a antropofagia teve como seu marco inicial a morte do
os instrumentos solistas safo, a lauta transversal em Dó primeiro bispo católico do Brasil, Dom Pero Fernandes
e o piano (segunda seção); os instrumentos convencio- Sardinha, devorado ritualmente pelos índios Caetés, em
nais da big band e da orquestra de cordas (terceira se- 16 de julho de 1556, na costa do estado de Alagoas, o
ção); e, inalmente, o piano e a lauta transversal baixo estado natal de Hermeto.
(quarta seção). Desta maneira, a atonalidade e o ruidismo
foram sucedidos pelo modalismo nordestino e ambos fo- Neste sentido, será útil veriicarmos a relação – pouco
ram amalgamados com os timbres característicos do jazz explorada academicamente, até então –, entre Hermeto
norte-americano e da orquestra clássica europeia numa Pascoal e os “nativos”, isto é, os índios alagoanos. O músi-
fusão prenunciada, sinestesicamente, pelo título de outra co cresceu numa região ainda hoje habitada pelos índios
composição deste mesmo disco: Coalhada.12 Xucuru-Kariri, os quais perderam sua língua nativa e a
maioria dos indicadores mais visíveis de sua condição in-
Explorando a faringe como a porção da anatomia hu- dígena. Apesar dos revezes advindos da colonização bru-
mana que, ao conectar o nariz e a boca à laringe e ao tal, os remanescentes dos Xucuru-Kariri estão tentando
esôfago, inter-relaciona o cantar e o comer, é inte- redescobrir e reinventar suas tradições e parecem estar
ressante observar que, além de Coalhada, outros títu- presentes na Música Universal de Hermeto Pascoal – não
los de músicas compostas por Hermeto Pascoal men- está ele também, (re)inventando tradições? O alagoano
cionam ou fazem alusão a alimentos ou utensílios de compôs várias músicas que aludem à cultura indígena
cozinha, como, por exemplo, em ordem cronológica: O (Tupizando, Mata verde, Magimani Sagei, Dança da Sel-
Ovo, (1967),Tacho e Geléia de Cereja (1977); Pimentei- va na cidade grande) e nos shows de Hermeto & Grupo,
ra (1979b); De bandeja e tudo, A Taça (1982); Ilza na nos quais estive presente no período 1985-1992, muitas
feijoada, O tocador quer beber (1985); Quiabo (1987) e vezes o compositor e os músicos da banda entravam em
Vai um chimarrão (1999). Além destes títulos, nos ro- cena imitando gritos de índios. A imitação, um pouco irô-
dapés das partituras do Calendário do Som (2000) Her- nica, sem dúvida, não era, entretanto, apenas uma piada.
meto mencionou uma quantidade grande de alimentos: O próprio Hermeto (PASCOAL, entrevista com Mário Ad-
“carne, peixe, piabinha, bacalhau, camarão, vinho tinto, net, 1998) deiniu a si mesmo como um “índio diferente”,
verduras, maxixe, mandioca, feijão, imbuzada, batata- ao mencionar a sua infância, quando vivia em contato
doce, milho, quentão, banana, laranjas e puxa-puxa.”13 com a natureza e construía lautas artesanalmente. Ob-
servo inclusive que, para Hermeto, a lauta parece ser
Os títulos e referências aos alimentos na obra de Herme- um instrumento com caráter quase sagrado, de maneira
to Pascoal podem signiicar que em sua música ocorrem semelhante às lautas utilizadas pelos Xucuru-Kariri em
misturas de “substâncias” (isto é, gêneros e estilos musi- seus Toré rituais. Toré (também chamado tolê, torém) é
cais), que, após serem fundidas, sofrem transformações um misto de dança, ritual, canto e música instrumental
em sua “aparência” e “sabor” iniciais, tornando-se origi- utilizando principalmente lautas, “gaitas” e outros ins-
nais, ao im do processo. Mais do que isso, os alimentos trumentos de sopro, além de instrumentos percussivos.
estão associados à “cozinha”, isto é, um termo utilizado Constitui uma espécie de língua franca dos índios do
na música popular para designar a formação instrumen- Nordeste, sendo utilizado como um meio de as etnias es-
tal constituída pelo contrabaixo, pela bateria e a percus- palhadas pelos estados da região airmar sua identidade
são, instrumentos que, na música de Hermeto Pascoal, cultural. Através do Toré os índios festejam e acreditam
são alçados à condição de solistas, saindo da “cozinha” contatar os encantados, seres espirituais, aos quais recor-
para assumir o local mais nobre da “casa”. À cozinha estão rem para obter orientação, cura, proteção, etc.14
associadas as classes populares – que tradicionalmente
arrumam a mesa e servem a comida para as classes favo- Um ritual semelhante ao Toré ocorre na composição de
recidas economicamente –, contudo, através do “som-co- Hermeto Pascoal para lauta transversal solo, vozes e
mida”, Hermeto Pascoal “vira a mesa” e reverte os papéis sons pré-gravados, intitulada Cannon (1977). Nesta mú-
sociais convencionais, enquanto reairma sua identidade sica ocorre uma “sessão espírita”, na qual Hermeto invo-
cultural e valoriza sua condição de imigrante nordestino. ca, através da lauta e da voz, o espírito do saxofonista de
Mais há ainda outras interpretações possíveis relacio- jazz, Cannonball Adderley, falecido em 1975 (ver o artigo
nando música e comida na obra de Hermeto Pascoal. excelente de BORÉM e FREIRE, neste número). Além de
Apesar deste nunca ter feito, ao que tudo indica, refe- exempliicar como os planos material e espiritual estão
rências a metáfora da antropofagia cultural (ANDRADE, interligados na obra do “índio” Hermeto Pascoal, Cannon
1976 [1928]), acredito que a antropofagia como concei- demonstra que o compositor alagoano “incorpora” al-
to etnomusicológico poderia ser utilizada na análise da guns aspectos musicais do jazz norte-americano. Entre-
Música Universal. O conceito se origina do canibalismo tanto – utilizarei novamente a metáfora antropofágica

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–, o jazz é apenas um dos “temperos” de um “banquete de Hermeto Pascoal em Tacho); multifonicamente, com
universal” no qual o “prato principal” é deinitivamente a lauta transversal (em Cannon – dedicado a Canonball
outro: a “panelada” misturada de sonoridades, formas, Adderley); além de ser utilizada percussivamente (Aquela
texturas, modos escalares, timbres, gêneros e estilos valsa e Geléia de Cereja).
musicais, especialmente do Nordeste do Brasil. Obser-
vo ainda que, na música Velório, Hermeto Pascoal utiliza Na música que empresta o título ao disco, Missa dos Es-
instrumentos que não são norte-americanos, europeus – cravos, Hermeto imaginou
e nem brasileiros –, como o safo, por exemplo, de origem
um grupo de escravos que havia fugido de uma fazenda, e depois
oriental.15 Por estar aberto a inluências sonoras de todo de dias correndo pela loresta, encontrou um outro grupo também
o mundo e, simultaneamente, se recusar a negar as raí- fugido. Eles se reuniram e celebraram a liberdade com uma missa
zes brasileiras, Hermeto Pascoal deine sua música como no mato, com os animais (SANTOS NETO, 2008).
Universal. Essa identidade cultural parece constituir a
sua verdadeira “cidadania”. Assim, acredito que a deno- Na parte central da composição as vozes masculinas can-
minação Música Universal pode ser considerada como a tam, em ostinato vocal, a frase que cresce hipnoticamen-
expressão consciente de uma tendência antropofágica te: “Chama Zabelê pra poder te conhecer”. Zabelê, neste
inconsciente, por parte do “índio” Hermeto Pascoal. Sua caso, “é uma espécie de inhambu ou ave silvestre, que
Música Universal exempliicaria como “a cultura nati- canta um pio melodioso” (SANTOS NETO, 2008). Acom-
va, que aparentemente foi comida pelas [culturas] mais panhada pelo batuque dos tambores da bateria e pelo
‘complexas’, na realidade as incorporou em seu ritual de naipe dissonante de lautas transversas a frase hipnótica
renovação” (ULHÔA, 1997, p.99). parece simular um (en)canto indígena ou, ainda, um recto
tono de uma missa medieval. Na parte inal da música, há
No LP lançado em 1973 (PolyGram Brasil), intitulado um solo vocal de Flora Purim no qual ela integra um trio
A música livre de Hermeto Paschoal (sic)16 seu primeiro inusitado com dois porcos cantando, isto é, grunhindo.
disco autoral lançado no Brasil, três das seis faixas são, Missa dos Escravos é a primeira composição gravada de
originalmente, canções (Asa Branca, Carinhoso e Gaio da Hermeto Pascoal na qual o músico utiliza sons de ani-
Roseira), a partir das quais Hermeto Pascoal fez arran- mais, procedimento que, mais tarde, seria uma de suas
jos instrumentais para orquestra. Escolhi como objeto de marcas registradas e que lhe renderia fama, enquanto
análise, entretanto, uma outra música deste mesmo dis- que, por outro lado, o tornaria alvo de críticas por parte
co, o baião instrumental, em Lá menor, intitulado Bebê, de músicos eruditos e populares puristas. Como mostrarei
uma das composições mais famosas de Hermeto Pascoal. na segunda parte deste artigo, a ecologia e os sons dos
Esta peça foi composta no violão e teve como inspiração animais desempenham um papel importantíssimo na vida
as primeiras tentativas de fala de seu ilho caçula, Flá- e na obra de Hermeto Pascoal e não são fruto da “ex-
vio, que “lalava”,17 repetidamente, duas notas separadas centricidade” do compositor ou um artifício de marketing
por um intervalo de semitom (Mi - Fá), justamente as pessoal visando à autopromoção – como parecem sugerir
duas primeiras notas da melodia de Bebê,, que integram alguns de seus críticos –, ainda que possam, em alguma
o motivo que estruturará toda a peça. Desta maneira, medida, tê-lo auxiliado na construção da imagem pública
a voz forneceu a matéria-prima para a composição de de experimentador autodidata.
uma peça na qual a presença vocal está como que ocul-
ta nos sons dos instrumentos. Bebê, é, por este moti- Continuando a análise da música Missa dos Escravos, o
vo, uma canção sem palavras, assim como várias outras solo vocal não-convencional improvisado por Flora Purim
composições instrumentais de Hermeto Pascoal. Em seu utiliza choros e gargalhadas aleatórias ao invés de notas,
processo criativo, o compositor alagoano geralmente escalas e ritmos previamente deinidos. Os sons vocais
escreve primeiro a melodia, solfejando-a mentalmente incomuns produzidos por Flora se revestem de certa te-
(muitas vezes sem o auxílio de instrumentos), enquanto atralidade e parecem remeter à personagem conhecida
utiliza o ouvido absoluto para imaginar a harmonia que a na Umbanda como Pomba-gira, entidade geralmente as-
acompanharia.18 Assim, Hermeto Pascoal confere a suas sociada à magia e à sexualidade. Hermeto Pascoal con-
peças uma qualidade cantabile, como se o próprio músi- tou-me em entrevista (1999) que, no início da década de
co estivesse cantando através dos instrumentos. Compo- 1970, quando esteve nos EUA com o casal Airto Moreira
sições como, por exemplo, Montreux (1979a), São Jorge e Flora Purim, a cantora pediu seu conselho a respeito do
(1979b), Santa Catarina (1984), Mente Clara (1987), repertório constituído de canções da bossa-nova e stan-
Rainha da Pedra Azul, O Farol que nos guia (1992), dentre dards do jazz com o qual pretendia se lançar no mer-
outras, parecem exempliicar o cantabile característico cado norte-americano. O compositor alagoano disse-me
do estilo de Hermeto Pascoal. que desaconselhou Flora a trabalhar com tal repertório,
pois este seria demasiadamente convencional e já bem
No LP lançado em 1977, nos EUA, (gravadora Warner), conhecido pelos “gringos”. Em alternativa, Hermeto Pas-
intitulado Slaves Mass (Missa dos Escravos), a voz é bas- coal sugeriu à cantora que izesse algo diferente, como,
tante utilizada, em nada menos que seis das sete faixas por exemplo, que utilizasse a voz à maneira de um ins-
do disco: solando simultaneamente com o piano (Escu- trumento e/ou que empregasse recursos e sonoridades
ta meu piano); com teclados eletrônicos (no longo solo vocais não convencionais (“grite, mie, faça os sons mais

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malucos”19), combinando-os às músicas regionais, indí- lançaria o show em disco. A promessa foi descumprida
genas e afro-brasileiras, características estas que, mais pelo produtor logo após a morte inesperada da cantora,
tarde, se tornariam de fato a marca registrada do estilo em 1982 (MIDANI, 2008, p.187-188).21
vocal popular-experimental de Flora Purim.
Controvérsias à parte, o dueto bem sucedido com Elis
Uma parceria, ou melhor, uma jam session improvisada Regina demonstrou como Hermeto Pascoal aprendera
entre Hermeto Pascoal e outra grande cantora, não po- algumas lições importantes com as cantoras e os can-
deria passar aqui despercebida. Reiro-me ao encontro tores durante sua carreira como intérprete contratado,
breve, mas antológico, de Hermeto Pascoal com Elis Re- antes de lançar-se como compositor. De fato, nos gru-
gina na noite brasileira do Festival Internacional de Jazz pos regionais das rádios de Recife (1950), Caruaru (1952)
em Montreux, na Suíça, em 1979, quando Hermeto e e Rio de Janeiro (1958) e nos conjuntos de baile das bo-
Elis interpretaram as músicas Garota de Ipanema (Anto- ates de São Paulo (1961-1967), onde Hermeto Pascoal
nio Carlos Jobim/Vinicius de Moraes), Corcovado (Anto- tocou piano, lauta, contrabaixo (!) – ou qualquer outro
nio Carlos Jobim) e Asa Branca (Luiz Gonzaga/Humberto instrumento que lhe rendesse eventualmente um cachê –,
Teixeira). Segundo SANTOS NETO (2008) Hermeto Pas- os instrumentistas eram solicitados pelos(as) vocalistas a
coal & Grupo20 foram convidados a participar do Festival transpor, ao vivo, as tonalidades das canções, bem como
de Montreux após o diretor do Festival, Claude Nobs, a “tocar de ouvido” novas canções, além de fazer arran-
tê-los assistido no Festival de Jazz de São Paulo, em jos rapidamente. Conirmando a importância do aprendi-
1978. Devido a grande procura por entradas, foram pro- zado nas escolas práticas dos regionais das rádios e dos
gramadas duas apresentações em Montreux, a primei- conjuntos de baile das boates noturnas, Hermeto Pasco-
ra, à tarde e, a outra, à noite. Claude Nobs queria que al airma que: “para solar bem, antes é necessário saber
Hermeto & Grupo tivessem uma noite inteira somente acompanhar” (Itiberê Zwarg citado por PRADO, 2008).
para eles, contudo, como Hermeto era contratado pela
gravadora Warner, a gravadora assumiu a produção do Dentre as músicas do disco gravado por Hermeto Pas-
show e escalou, em cima da hora, a cantora Elis Regina coal & Grupo no Festival de Jazz de Montreux (1979a,
para abrir os shows do alagoano. WEA), escolhi como objeto de análise a peça intitulada
Quebrando tudo!, que, na verdade, é a segunda parte de
A apresentação noturna de Hermeto Pascoal & Grupo um solo com mais de 10 minutos de duração criado im-
durou mais de quatro horas e provocou “uma comoção provisadamente pelo virtuose.22 Segundo SANTOS NETO
enorme, apoteótica” (MIDANI, 2008, p.184). Segundo (2008), este solo surgiu no meio de uma outra compo-
SANTOS NETO (2008), então pianista do grupo de Herme- sição, intitulada Suíte Paulistana (1979b). O compositor,
to, mesmo após o 3º. bis o público estava eufórico e não que estava na coxia escutando o Grupo executar sua
parava de aplaudir, em pé, os músicos. O produtor exe- música, irrompeu repentinamente no palco e começou a
cutivo André Midani (da gravadora Warner) aproveitou improvisar o solo de Quebrando tudo!, acompanhado so-
para “empurrar” Hermeto de volta ao palco, junto com mente pelo contrabaixista Itiberê Zwarg e pelo baterista
Elis. Surpreendidos, ambos tiveram que estabelecer Nenê, enquanto que os demais músicos do Grupo perma-
quais canções seriam interpretadas, bem como deinir, neciam no palco porque não sabiam se a Suíte Paulistana,
ao vivo, as tonalidades de cada uma delas. Contudo, interrompida no meio, seria retomada. Não foi.
apesar do desaio imprevisto, o que se viu a seguir foi,
a meu ver, um encontro memorável. Os dois músicos Inicialmente escutamos o acompanhamento executado
acompanharam-se mutuamente combinando melodias por Itiberê Zwarg, combinado à levada suave da bate-
ainadíssimas e re-harmonizações dissonantes, além de ria de Nenê, em ritmo de baião e andamento modera-
mudanças inesperadas de compasso, ritmo e andamen- do. Enquanto Itiberê e Nenê tocam ao fundo, Hermeto
to, recriando as três canções no calor da improvisação. Pascoal inicia o solo, ao mesmo tempo em que ajusta os
teclados – explorando a regulagem do vibrato do clavi-
É interessante observar que o relato de André Midani so- nete –, e assovia no microfone, testando o equipamento
bre o dueto de Elis e Hermeto é bem diferente do de Jovi- (05:17). A escolha da escala utilizada por Hermeto Pas-
no Santos Neto. Midani parece tentar favorecer a cantora coal recaiu inicialmente no modo Mixolídio, mas este
ao airmar que a jam session com Hermeto teria ocorrido seria rapidamente abandonado e, com o abaixamento
após o show de Elis, que, ainda segundo o produtor, te- do 3º grau, o modo utilizado tornou-se Dórico, no qual a
ria sido um grande sucesso, “com onze pedidos de bis!” música permaneceu até o inal.
(MIDANI, 2008, p.185). A gravação em vídeo feita du-
rante o Festival, entretanto, parece desmentir o relato do Passada a fase de teste dos teclados e do microfone e já
mega-executivo da Warner demonstrando exatamente o deinida a gama escalar principal, Hermeto Pascoal, come-
contrário, i.e., que a jam session entre a cantora e o ala- çou então a fazer efeitos de eco, tocando notas cromáticas
goano ocorreu após os bis do show de Hermeto & Grupo descendentes no clavinete, em contratempos e síncopes,
(e não o contrário) e, além disso, que o show de Elis não respondidas, em uníssono, pela sua própria voz, utilizando
foi o sucesso esperado. Por achar que não tinha cantado vogais isoladas e a sílaba “tá” (05:30) numa estranha mis-
bem, a própria Elis exigiu que Midani jurasse que nunca tura de embolada, coco e scat singing.

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A seguir, farei alguns comentários explicativos ou di- tes com o aleatorismo e o ruidismo praticados no jazz
gressões com o objetivo de contextualizar minha aná- de vanguarda e na música erudita experimental norte-
lise, antes de voltar ao solo improvisado de Quebrando americana, enquanto que a embolada e o coco nordes-
tudo! Scat singing é um tipo de improvisação vocal do tinos presentes, de maneira modiicada, em Quebrando
jazz, que emprega vogais e sílabas nonsense (“da”, “ba”, Tudo!, partilhavam, por sua vez, algumas características
“du”, “dé”, “bu”, etc.) e possibilita aos cantores e cantoras em comum com o scat singing do jazz tradicional e com
inventarem ritmos e melodias utilizando a voz à maneira o bebop. Estas características incluíam, por exemplo, a
de um instrumento de sopro. O scat singing foi inventado utilização puramente sonora da voz sem a preocupação
casualmente pelo trompetista e cantor Louis Armstrong, com o sentido gramatical, além da ironia e da comici-
quando, durante uma sessão de estúdio, a partitura com dade presentes tanto nos vocais de Louis Armstrong ou
a letra da canção interpretada por Armstrong caiu no de Ella Fitzgerald, a mestra do scat, como nos mala-
chão e o trompetista teve que seguir cantando improvi- barismos vocais de Jackson do Pandeiro, o mestre dos
sadamente. Depois, o scat foi utilizado no bebop, estilo cocos.24 A meu ver, o coco, o scat, o jazz, a embolada, o
moderno de jazz que, misturado ao samba, aos ritmos bebop e o baião cantados ou tocados pelos artistas do
afro-cubanos e às harmonias da bossa-nova, era toca- Brasil e dos EUA demonstravam como a diáspora africa-
do por Hermeto Pascoal no Som Quatro e no Sambrasa na nas Américas produzira uma arte popular de altíssi-
Trio (1966), antes que o músico ingressasse no Quarte- ma qualidade, cuja importância musical ultrapassa(va)
to Novo (1967). Este grupo pioneiro, por sua vez, ten- as fronteiras raciais, geopolíticas e os nacionalismos
tou eliminar as tendências do fraseado cromático rápido tacanhos. Hermeto Pascoal percebeu isso.
do bebop ao basear suas improvisações exclusivamente
nas escalas modais e nos ritmos nordestinos. O alagoano A capacidade do alagoano se expressar utilizando um idioma
Hermeto Pascoal sentia-se à vontade no Quarteto Novo, musical brasileiro, mas compreensível internacionalmente,
mas, ao mesmo tempo, era policiado pelo nacionalismo parece ter possibilitado sua comunicação com o famoso
musical xenófobo que norteava as ideias de Geraldo Van- jazzista Miles Davis – já que ambos falavam línguas mu-
dré, cantor a quem o grupo acompanhava, um pouco a tuamente ininteligíveis. Suponho que esta característica,
contragosto. Observo que, curiosamente, o “nacionalista” por assim dizer, “poliglota”, da Música Universal de Hermeto
Vandré conhecia a música nordestina muito menos que tenha inluenciando o trompetista norte-americano a convi-
o “jazzista” Hermeto. Na realidade, como o alagoano me dar o brasileiro para ingressar em sua banda fusion e partici-
contou em entrevista (1998), algumas canções de Vandré, par, como compositor e intérprete, no disco Live-Evil (1972,
como, por exemplo, Pra não dizer que não falei das lo- Sony). Observo, contudo, que as duas peças compostas, can-
res, pareciam mais inluenciadas pela guarânia paraguaia tadas e assobiadas por Hermeto Pascoal (Little Church, Nem
(compasso ternário ou binário composto, tom menor) do um talvez) nada tinham a ver com a fusão eletriicada de
que pela música popular brasileira. Assim, após a disso- jazz, blues, rock e funk do disco de Miles.
lução do Quarteto Novo, em 1969, o compositor alagoa-
no viajou com Airto Moreira e Flora Purim aos EUA para A primeira composição, intitulada Little Church (ou Igre-
lançar-se em carreira solo e misturar, livremente, todas jinha), é uma canção tonal modulante e lenta, harmoni-
as inluências musicais e sonoridades que lhe viessem à zada dissonantemente. A música parece estar relacionada
cabeça. Nos EUA, na década de 1970, o free jazz23 e a à infância do músico brasileiro em Lagoa da Canoa. Se-
música experimental erudita estavam no auge e o espaço gundo informação de Villaça (2006, p.9), após terem se
era propício para que Hermeto Pascoal ousasse, além das mudado do Olho D’água da Canoa para a cidade de Lagoa
fronteiras estéticas do Brasil e dos EUA. da Canoa, o garoto e seus parentes moraram próximos à
igreja, na mesma casa onde Pascoal José da Costa, pai de
Como expus em trabalho anterior (COSTA-LIMA NETO, Hermeto, tinha uma mercearia pequena (visitada eventu-
1999, p.28; 46-47; 50; 54), muito antes de ter tido conta- almente por índios Xucuru-Kariri, em busca de alimento).
to com o free jazz norte-americano ou com a música eru- Todo o dia, às seis da tarde, a família Pascoal ouvia o tocar
dita experimental Hermeto Pascoal já tinha desenvolvido, do sino, anunciando a hora de rezar a ave-maria. A partir
autodidaticamente, uma concepção experimental inova- desta informação de Villaça, por mim conirmada junto
dora, a partir do modelo fornecido pelas melodias da fala, aos parentes de Hermeto Pascoal em Lagoa da Canoa, é
do som dos animais e dos objetos sonoros inarmônicos possível supor que Igrejinha fosse uma reminiscência de
de sua infância no Nordeste. Por isso, paradoxalmente, a hinos religiosos cantados pelos iéis na igreja próxima
liberdade estética que Hermeto encontrou na década de à casa dos Pascoal ou, ainda, que estivesse relacionada,
1970, nos EUA, representou para ele a possibilidade de se de maneira mais ampla, à paisagem sonora guardada na
reencontrar com as suas próprias raízes (experimentais) lembrança de Hermeto. Evidentemente, estou aqui ape-
nordestinas – e expandi-las. nas arriscando uma hipótese, mas parece conirmá-la o
fato de a melodia de Igrejinha ser tonal, como muitos hi-
De fato, a paisagem sonora polifônica das rezas-de- nos católicos. A intensidade suave da canção, por sua vez,
defunto do Nordeste brasileiro e os timbres exóticos e é semelhante ao volume sonoro (fraco) com que os iéis
a atonalidade da orquestra de garrafas tocadas na peça fazem suas orações na igreja. Além disso, o timbre da
Velório (1972) apresentavam semelhanças surpreenden- melodia de Igrejinha é resultado do assobio de Hermeto,

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produzindo uma sonoridade semelhante ao silvo agudo gargalhadas (09:40), em transe aparente, acompanhado
de uma cigarra, inseto que parece gostar de “cantar” ao por Itiberê e pelos rulos frenéticos da bateria de Nenê,
cair da tarde – no mesmo horário da ave-maria. até explodirem, juntos, no cluster inal. Quebrando tudo!
terminou com os aplausos, gritos e assovios da plateia e
Seja como for, as duas canções do alagoano asseme- com os três músicos ensopados de suor.
lhavam-se, no contexto jazzístico norte-americano, às
baladas cool, de uma fase anterior da carreira de Miles O baião-jazz-experimental Quebrando Tudo! é, a meu ver,
Davis. Talvez essas semelhanças musicais tenham contri- uma metáfora antropofágica da desterritorialização pro-
buído para que o trompetista negro se identiicasse com movida pela Música Universal de Hermeto Pascoal. É seu
o “crazy albino”, como ele chamava Hermeto. O fato é “grito de guerra” contra aqueles que querem nacionalizá-
que Miles Davis intitulou a primeira faixa do Lado B de lo ou, ao contrário, internacionalizá-lo, impondo fronteiras
Live-Evil como Selim – o nome de Miles, lido ao contrário. arbitrárias ao seu som brasileiro-universal.
Selim, contudo, não havia sido composta por Miles Davis.
Tratava-se, na verdade, da canção Nem um talvez, de au- As composições de Hermeto Pascoal estão relacionadas
toria de Hermeto Pascoal... à história pessoal do músico e para analisá-las satisfa-
toriamente não basta descrever os sons que delas fazem
Volto à análise de Quebrando Tudo!. O improviso vocal parte. A pesquisa de campo por mim desenvolvida em La-
começou a “esquentar” quando Hermeto Pascoal passou goa da Canoa, no Olho D’água da Canoa e cercanias, em
a intercalar duas notas do teclado em uníssono com a voz, novembro de 2008, ampliará a análise etnomusicológica
utilizando, percussivamente, as sílabas “dá”, “bá” e “pá”, desenvolvida neste artigo.
seguidas de “ru” e “ri” (05:50). O jogo vocal incluiu, en-
tão, risos e gargalhadas (06:11), acompanhados de notas 3 - Os instrumentos da voz
e clusters tocados com a mão direita na região aguda do
clavinete. Na sequência, Hermeto Pascoal alterna os dedos Para mim, compor é algo muito fácil. Minha cabeça é uma fonte,
uma nascente. E uma nascente quer que alguém venha buscar a
polegar e indicador da mão direita para articular rapida- água, que vai sendo substituída. Eu tenho sempre que compor por-
mente uma nota pedal no clavinete – a fundamental do que minha cabeça se enche de ideias. (Pascoal IN ZAGO)
modo –, enquanto a voz percorre, descendentemente, os
semitons da escala cromática (06:24). A seguir, como uma Lagoa da Canoa é uma cidade pequena, com cerca de
citação do coco famoso de Jackson do Pandeiro, Sebastia- 20.000 habitantes (IBGE, 2004), próxima a Arapiraca,
na, ouvimos as vogais do alfabeto, entoadas inicialmente centro comercial do Agreste e segunda maior cidade do
fora de ordem: “ó”, “i”, “u”, “a”, “o”, “é” (06:40). O autodi- estado de Alagoas, suplantada apenas pela capital, Ma-
data Hermeto Pascoal parece se dar conta da “bagunça” e ceió. A aproximadamente 150 km. de Maceió e a ape-
arruma a ordem das vogais, cantando-as em intervalos de nas 20 minutos de carro a partir de Arapiraca, Lagoa da
terça com as notas do teclado, incluindo, ainda, as letras Canoa está situada no limite que separa, de um lado, a
“ipssilone” (ípsilon) e “z” (07:00). Prosseguindo, o músico zona litorânea, de clima ameno e, de outro, a entrada
abandona as vogais e retorna às sílabas iniciadas com con- do quentíssimo sertão alagoano, onde a atividade eco-
soantes explosivas – “dá”, “bá” e “pá” –, enquanto subdi- nômica principal é a agricultura de subsistência, voltada
vide o ritmo, utilizando iguras de duração cada vez mais principalmente para o plantio da mandioca, feijão, arroz
curta. Itiberê e Nenê, por sua vez, respondem ao tensio- e milho. A região de Arapiraca foi, durante muito tempo,
namento rítmico do solo de Hermeto e aumentam o volu- dominada pela cultura do tabaco, o que fez a cidade os-
me do baixo e da bateria (07:20). O andamento acelera e, tentar o título de Capital Brasileira do Fumo. Contudo,
num crescendo progressivo, o solo passa a incluir arpejos, depois de sucessivas campanhas do Ministério da Saúde,
escalas rapidíssimas e frases em quartas paralelas, além o plantio do tabaco vem sendo substituído gradativa-
de tapas percussivos no teclado (07:56) – desferidos com mente pela monocultura da cana-de-açúcar, estampando
certa violência –, até Hermeto Pascoal solicitar, com um a cor verde desta planta nos dois lados da estrada que
sinal com a mão esquerda, que os músicos Itiberê e Nenê o liga Maceió a Arapiraca.
deixassem improvisando sozinho (08:10).
A força dos coronéis, dos grandes latifúndios e dos enge-
Após o breque do baixo e da bateria, Hermeto Pascoal nhos dos tempos coloniais ainda se faz sentir no estado
continua seu improviso, agora tocando e cantando solo, de Alagoas, ecoando um passado nem tão distante de re-
como numa cadenza experimental de um concerto pop, voltas e insubmissões populares de escravos, cangaceiros
mas não demora a chamar os músicos de volta, dizendo e peregrinos. No meio caminho entre o sertão e o litoral,
ao microfone: “sim, não, olha, vem, porque eu vou que- Lagoa da Canoa parece ser habitada não apenas pelos
brar, não tenha medo!” (08:40). Nenê e Itiberê respondem moradores da cidade, mas também por personagens do
ao chamado e voltam a tocar, ainda mais rápido e for- imaginário popular do Nordeste, como Zumbi dos Palma-
te que antes. O público aplaude, eletrizado. Os músicos res, Lampião, Santo Antônio e Antônio Conselheiro.
chegam então ao clímax, caótico e free, com Hermeto
Pascoal fazendo glissandi em clusters ao deslizar as duas A casa onde Hermeto Pascoal nasceu e viveu com seus
mãos no teclado, eventualmente gritando ou dando mais pais e irmãos até, aproximadamente, os dez anos de idade

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(1946), antes de a família se mudar para a residência pró- –, escutamos sua voz falada, além das vozes de Zabelê e
xima à igrejinha na praça central de Lagoa da Canoa, era Pernambuco, simulando os iéis pedindo, de casa em casa,
um pouco afastada desta cidade. Por estar próxima a uma alimentos e outros donativos (00:50 – 01:21). A banda
nascente de água natural, o local recebeu a denominação principia a tocar na parte central, um baião modal em
de Olho D’água da Canoa. Da nascente jorrava a água de compasso binário e andamento animado (ut. 100). A me-
que os moradores de Lagoa da Canoa dependiam para so- lodia sincopada e modal (modos Eólio, Mixolídio com 11a.
breviver. Assim, diariamente, os vizinhos da família Pascoal aumentada, Dórico e Lídio) é executada em terças por
iam ao Olho D’água, de carroça, a cavalo, nos jegues, ou duas lautas transversas, acompanhadas pelo piano, con-
mesmo a pé, voltando com seus tonéis, jarros, vasilhames, trabaixo, bateria e percussão (01:22 – 03:11), e é entre-
panelas ou botijas cheios com o líquido precioso. meada por frases esporádicas ditas pelos “iéis” pedintes.
Na parte inal, os instrumentos saem, restando somente
Curiosamente, todos os parentes de Hermeto Pascoal que as duas lautas em uníssono, tocando uma melodia nova,
tive a oportunidade de conhecer e entrevistar em Lagoa em Fá Lídio. As vozes da mãe de Hermeto, de Zabelê e de
da Canoa, no Olho D’água da Canoa ou em vilas pequenas Pernambuco retornam, gradativamente (03:12 – 04:07).
e municípios próximos, como, por exemplo, em Girau do Ao mesmo tempo, noutro canal de gravação, ouvimos
Ponciano, parecem possuir uma veia artística forte. Uns Dona Vergelina cantando uma melodia modal, com di-
divertem-se rimando enquanto falam, outros cantam ou visão rítmica composta, em Ré Dórico: “Glorioso Santo
tocam instrumentos percussivos, dançam festivamente, Antônio, com seu menino nos braços...” (03:28). Instru-
enquanto outros, ainda, improvisam versos e melodias mentos metálicos de percussão completam a textura po-
utilizando o coco e a embolada. A música está presente lifônica, polimodal e polimétrica.
no cotidiano da família Pascoal como um todo. Ela faz
parte de seu dia-a-dia e parece ser uma atividade quase A sobreposição das vozes faladas por Dona Vergelina,
tão natural quanto beber água. Zabelê e Pernambuco produz uma textura semelhan-
te àquela do primeiro exemplo analisado neste artigo,
No alto de um morro próximo ao local onde icava a casa a composição Velório (1972), na qual Hermeto Pascoal,
dos pais de Hermeto Pascoal no Olho D’água da Canoa, Airto Moreira e Flora Purim simulavam rezas-de-defunto.
há um Cruzeiro, em direção ao qual as procissões se- A polifonia de vozes faladas, nas duas músicas, não é,
guiam nos Dias Santos. Os laços de solidariedade e de contudo, apenas um procedimento composicional in-
reciprocidade presentes nos núcleos familiares de peque- teressante ou, ainda, um exemplo inusitado de como a
nos agricultores e comerciantes de Lagoa da Canoa, bem percepção ampliada de Hermeto sobrepõe sonoridades
como a paisagem sonora vocal das procissões ao Cruzeiro contrastantes. Mais do que isso, ela revela que “no ima-
estão bem ilustrados na música Santo Antônio, gravada ginário social há um leque de representações a partir do
no LP Zabumbê-bum-á (1979b). Esta composição sinaliza desdobramento de um mesmo símbolo” (Silva citado por
a presença do que denominarei neste trabalho de ética SÁ, 2000). Esta duplicidade ou multiplicidade polifônica
musical comunitária, presente tanto na personalidade de representações a partir do mesmo símbolo, religioso,
como na obra de Hermeto Pascoal e sobre a qual me de- em ambas as músicas, pode signiicar que um mesmo ob-
terei mais à frente. jeto ou pessoa se apresenta de maneira complexa, para-
doxal ou mesmo, contraditória.
Cito, abaixo, dois trechos da “narração polifônica” ocor-
rida nesta composição (00:55 – 01:21; 03:31 – 04:00): Acredito que este é o caso de Virgulino Ferreira da Sil-
va (1897 – 1938), alcunhado Lampião, “Rei do Cangaço”,
- É esmola pros festejos de Santo Antônio, quero feijão, farinha,
arroz, ovos, pinto, macaxeira, batata-doce, gerimum, tudo serve.
presença viva no imaginário da família Pascoal, dos mo-
- Ó de casa, ó de casa, vem dá uma esmolinha pra Santo Antônio, radores de Lagoa da Canoa e dos alagoanos e nordestinos
pra Santo Antônio ajudar você. em geral. Mas, talvez o leitor esteja se perguntando, qual
- Pra fazer um leilão no dia 13 de junho. a relação que poderia ser estabelecida entre personagens
- É esmola pra Santo Antônio casamenteiro.
- Com todo prazer e alegria, com a ajuda de nós todos, pra Santo
aparentemente tão contrastantes como Santo Antônio e
Antônio nos dar sorte, saúde e felicidades. [Canta] Glorioso Santo Lampião e o que ambos teriam a ver com Hermeto Pasco-
Antônio com seu menino nos braços, fazei com que Ele nos [in- al? O nome do cangaceiro surgiu nas entrevistas por mim
compreensível] com seu amor. realizadas com os parentes de Hermeto Pascoal no Olho
(Vozes de Zabelê, Pernambuco e de Dona Vergelina Eulália de Oli-
D’água da Canoa, próximo ao Cruzeiro para onde se diri-
veira, mãe de Hermeto Pascoal). giam procissões como a descrita na música Santo Antô-
nio. Além disso, o próprio Hermeto Pascoal relatou25 que,
No início da gravação, Dona Vergelina Eulália de Olivei- certa feita, sua mãe teria se escondido na mata próxima
ra é entrevistada pelo ilho, Hermeto Pascoal, investido ao Olho D’água da Canoa, junto com ele e seus outros
na função temporária de “etnógrafo”, e podemos ouví-la irmãos pequenos, durante três dias consecutivos, com
descrevendo os preparativos e a procissão do dia de San- medo de que Maria Bonita quisesse sequestrá-los. Assim,
to Antônio, padroeiro dos pobres e santo “casamenteiro” ao local onde o músico havia passado os primeiros dez
(00:00 – 00:49). Na continuação – como num lash back anos de sua vida estavam associados, polifonicamente, a
da entrevista que Dona Vergelina acabara de conceder igura de um santo e a de um cangaceiro.

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O Cangaço sempre evocou representações sociais díspa- Conirmando a multiplicidade polifônica de representa-
res. Lampião (no Nordeste, a palavra “lampião” se refere ções sociais relacionadas a Lampião, a narrativa mítica
a uma lanterna ou candeeiro) foi assim alcunhado devido acima mencionada o aproxima de Santo Antônio, pois o
“a luz que emanava de sua arma quando ele atirava” ou, último, além de padroeiro dos pobres e santo “casamen-
de acordo com outras fontes, por causa do “brilho irra- teiro”, também é invocado popularmente para se achar
diado por sua pessoa” (GRUNSPAN-JASMIN, 2006, p.90). objetos perdidos. Neste sentido, Roberto DaMatta faz
Era devoto fervoroso de Padre Cícero e tido como um uma aproximação interessante entre, de um lado, os ban-
herói miraculoso, supostamente dotado de poderes so- didos sociais e cangaceiros e, de outro lado, os peregrinos,
brenaturais de “clarividência e do dom da invisibilidade” pois “ambos teriam sido capazes de produzir uma outra
(idem, p.227-243). Por dividir com os pobres o produto realidade, ou seja, um projeto alternativo de um mundo
de seus roubos Lampião era considerado por uns como novo”. Assim, “tanto o peregrino quanto os bandidos so-
um bandido social, mas, ao mesmo tempo, seus crimes e ciais rezam e caminham em busca da terra da promissão,
crueldades frequentes o tornavam, aos olhos de outros, onde os homens e mulheres inalmente encontrarão um
um justiceiro cruel temido principalmente pelos comer- lugar para realizar seus sonhos de justiça social” (DaMat-
ciantes, pelos coronéis, latifundiários e pela polícia. ta citado por SÁ, 2008).

O “banditismo social” é um conceito formulado pelo his- Estes “sonhos de justiça social” daqueles que erram “em
toriador Eric J. Hobsbawn (1969), referindo-se a uma for- busca da terra da promissão” integram o que antes deno-
ma de resistência pré-capitalista praticada nas sociedades minei de ética musical comunitária, presente na persona-
rurais. Os bandidos sociais eram camponeses fora-da-lei lidade e na Música Universal de Hermeto Pascoal. O termo
vistos por seus patrões e pelo Estado como criminosos, ‘ética’ deriva do grego ethos (caráter, modo de ser de uma
mas que, sob a ótica da sociedade camponesa, eram con- pessoa). Compreende um conjunto de valores e princípios
siderados heróis ou ícones da resistência popular. O herói que norteiam a conduta humana e o bem comum.26 “Co-
mítico inglês, Robin Hood, seria um exemplo de bandi- munidade”, por sua vez, diz respeito aos núcleos popula-
do social. Posteriormente, outros estudiosos ampliaram cionais organizados a partir de laços de parentesco, vizi-
o conceito de Hobsbawn, airmando que o “banditismo nhança ou classe social, nos quais “a orientação da ação
social” também era praticado em outros contextos, como social (...) baseia-se em um sentido de solidariedade: o
no alto mar, pelos piratas ou, ainda, no sertão (a palavra resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos par-
signiica “deserto grande” ou “desertão”) brasileiro, pelos ticipantes” (Weber 1987, p.77). Na modernidade, o con-
cangaceiros. ceito sofreu modiicações passando a incluir as redes de
comunidades virtuais da internet, formadas por indivíduos
“O mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar”, reza a de cidades, regiões, países e classes sociais distintas.27 As
profecia apocalíptica atribuída a Padre Cícero, tauma- referências constantes aos alimentos na música de Her-
turgo e santo popular de Juazeiro, no Ceará. A profecia meto Pascoal – por exemplo, nos títulos das composições,
parecia antever signiicados inusitados que o conceito bem como na narração polifônica da música Santo An-
de “banditismo social” adquiriria na contemporaneida- tônio –, demonstram como, para o compositor alagoano,
de, como exempliica a declaração polêmica de Hermeto os sons e as músicas são semelhantes aos alimentos e a
Pascoal, a seguir: água da nascente próxima à casa de seus pais, no Olho
D’água da Canoa. Devem ser socializados e repartidos, da
[As grandes gravadoras] é que estão me pirateando, prendem o
meu trabalho lá somente para exibirem meu nome no selo e não
mesma maneira que os donativos solicitados pelos iéis na
pagam meus direitos autorais corretamente. A música depois de procissão descrita na narração da música Santo Antônio.
gravada pertence ao mundo, não tem essa de gravadora. Por isso Sons e alimentos integram, assim, uma mesma “natureza
podem colocar minha obra na internet. Quero ser pirateado! (PAS- encantada e abundante, de fartura hiperbólica” (Travassos
COAL, entrevista com Garcia, p.28).
citada por COSTA-LIMA NETO, 1999, p.43), expressa, na
música citada, pela variedade exuberante de escalas mo-
Lampião, Maria Bonita e seu bando de cangaceiros em dais. Neste sentido, o conlito permanente entre Hermeto
suas andanças errantes percorreram o sertão dos estados Pascoal e a indústria fonográica parece ocorrer porque
de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do as políticas opressivas e os altos padrões de lucro impos-
Norte, Bahia e Sergipe. Não se sabe ao certo se o caminho tos na América Latina pelas cinco maiores gravadoras do
trilhado pelo bando de Lampião teria cruzado com o Olho mundo, Warner, BMG, Sony, Universal, EMI, são diame-
D’água da Canoa. Contudo, quando estive em frente ao tralmente contrários à ética musical comunitária e aos
local onde, um dia, estivera localizada a casa dos pais de “sonhos de justiça social” nutridos por Hermeto Pascoal.
Hermeto, a sobrinha do músico contou-me uma sugesti- Neste sentido, BISHOP (2004, p.2, 7) airma que:
va narrativa mítica sobre supostos tesouros roubados que
Lampião teria escondido em buracos cavados na terra. Na América Latina, onde a música ocupa um papel tão deinido de
Acredita-se popularmente que a pessoa que encontrasse expressão cultural, comprar um CD ao preço sugerido pelas grava-
doras é simplesmente impossível para a maioria (...). Nas sociedades
estes tesouros, ao retirá-los da terra, não deveria, em hi- de “baixa-renda” pelo mundo, os piratas de CD não são vistos como
pótese alguma, olhar para trás, pois o tesouro desapare- bandidos (...). Em muitos casos são como Robin Hood, libertando
ceria instantaneamente, como que por encanto. a música dos sequestradores econômicos e devolvendo-a ao povo.

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Hermeto Pascoal parece, de fato, estar relacionado a cer- as tropas militares enviadas pela República e os cerca de
tas iguras do imaginário popular do Nordeste. A inter- 20 mil seguidores de Antônio Conselheiro. Após meses
relação entre o músico e os peregrinos, por sua vez, é de combates árduos, os militares chegaram, por im, à
sugerida pela música Monte Santo, gravada no LP Lagoa vitória, depois que tombaram os últimos defensores do
da Canoa, Município de Arapiraca (1984), o mesmo disco Arraial – dois homens, um velho e uma criança. Os cadá-
no qual Hermeto gravou, pela primeira vez, as melodias veres de ‘Santo Antônio Aparecido’ e de seus iéis foram
da fala que o acompanhavam desde a sua infância, como decapitados, assim como Zumbi, durante o período co-
mencionei na introdução. lonial, e Lampião, durante o Estado Novo. Suas cabeças
cortadas, à maneira de troféus macabros, foram exibidas
Segundo SANTOS NETO (2008) o processo de criação de para a população, como tática de intimidação.
Monte Santo ocorreu em duas etapas. A peça, cujo título
inicial era Nave-Mãe, seria incluída no LP lançado em Tendo testemunhado a resistência tenaz dos seguido-
1982, intitulado Hermeto Pascoal & Grupo28 e consistia, res de Conselheiro e a crueldade da degola, o até en-
originalmente, apenas de acordes tocados por Herme- tão defensor da causa republicana, Euclides da Cunha,
to Pascoal no harmônio, além do solo improvisado na conidenciaria depois a um amigo, referindo-se ao livro
sanfona, cujo som foi processado através de efeitos ele- (Os sertões) que acabara de escrever sobre a Guerra de
trônicos (harmonizer). Entretanto, Nave-Mãe terminou Canudos: “Serei um vingador e terei desempenhado um
por ser deixada de fora do LP mencionado. Em 1984, grande papel na vida – o de advogado dos pobres ser-
Hermeto Pascoal e os músicos do grupo conheceram ca- tanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde
sualmente o poeta baiano João Bá, que declamou o seu e sanguinária” (Cunha IN GALVÃO, 1902, p.133). Assim
poema Monte Santo sobre a gravação feita dois anos a República, proclamada alguns anos antes, preservava
antes e, por isso, o título inicial da composição foi alte- intactas as desigualdades entre o sertão e o litoral, veri-
rado. Desta maneira, a voz acompanhou a música, e não icadas desde o período colonial.
o contrário, como uma primeira audição desta composi-
ção poderia sugerir.
“O que é [considerado] ruído numa velha ordem, é har-
monia numa nova” (ATTALI, 1996 [1977], p.35). Segundo
Incluo, a seguir, um trecho da narração do poema, a guisa
este autor, a música é, simultaneamente, um espelho e
de ilustração (02:11 – 03:54):
uma profecia e, mais do que um objeto em si mesma, é
Do céu desceu uma luz, que Jesus Cristo mandou. Santo Antônio um meio de perceber o mundo, um instrumento de co-
Aparecido, dos castigos nos livrou. Quem ouvir e não aprender, nhecimento. Como espelho, ela relete a relação entre o
quem souber e não ensinar, lá no dia de Juízo, sua alma penará. ser humano e a sociedade de uma determinada época,
Penitentes e contritos, na sagrada procissão, na bandeira de Pila-
tos, anunciar, anunciar Ressurreição. (...) Era Antônio Conselheiro enquanto que, como profecia, ela apresenta certo poten-
(...) e os rebeldes de Canudos.” (Voz de João Bá). cial subversivo, porque sendo concebida como ordenação
do ruído – em outras palavras, como controle da desor-
O início da narração de João Bá (“Do céu desceu uma luz... dem –, possui em si mesma o germe da revolta. Conir-
sua alma penará”) consiste, na verdade, de duas quadras mando o papel profético que Jacques Attali reserva à
sertanejas supostamente de autoria dos rebeldes da música, o “peregrino-cangaceiro” Hermeto Pascoal escala
Guerra de Canudos.29 “Santo Antônio Aparecido” é, neste um monte santo metafórico em sua vida e obra. O ruído
caso, Antônio Conselheiro, misto de profeta religioso e de sua ética musical comunitária adquire desdobramen-
líder político de milhares de caboclos sertanejos pobres, tos político-econômicos claros, apesar de o compositor
além de ex-escravos sem emprego, que a ele se reuniram não seguir partidos ou ideologias políticas. Ao investir
para viver em comunidade no arraial de Canudos. Antônio contra o monopólio das gravadoras transnacionais incen-
Conselheiro era contra a República recém-instaurada, por tivando os downloads gratuitos e o compartilhamento
ele considerada anti-cristã e defendia a volta da monar- de sua obra pelos fãs na internet (veja a quantidade im-
quia, assim como a manutenção do poder da igreja ca- pressionante de vídeos de Hermeto Pascoal no Youtube)
tólica, ameaçada pelos ideais republicanos. O fanatismo o compositor alagoano subverte a lógica do sistema ca-
religioso do sertão, região supostamente “incivilizada” e pitalista baseada no valor de compra e venda da músi-
“inculta”, se contrapunha, assim, aos “ideais elevados” da ca-mercadoria. A subversão levada a cabo por Hermeto
ciência e da razão que caracterizariam o litoral do país. parece conirmar a airmação de ATTALI (1977, p.133) de
Mas o rumo que os fatos tomaram no combate em Canu- que novas maneiras (não-comerciais) de fazer música in-
dos inverteria este enunciado falso. dicam a emergência de uma nova sociedade, profetizando
o futuro pós-capitalista. Nesta nova sociedade, a músi-
O município de Monte Santo está localizado no sertão ca seria partilhada por uma comunidade planetária, sem
da Bahia, próximo à Terra Indígena de Massacará. Deve fronteiras rígidas entre os intérpretes e os compositores e
seu nome ao Frei Capuchinho Apolônio de Toddi, que, entre a produção e o consumo. De fato, como demonstra-
em 1775, chegando a um olho d’Água (!) na subida da do por BISHOP (2004, p.2-3), pela primeira vez na história
serra icou impressionado com a semelhança da mesma da indústria da música os consumidores se tornaram eles
com o calvário de Jerusalém. O Monte Santo teve im- mesmos, produtores de música através dos duplicadores
portância estratégica na guerra que se instaurou entre de CD que, a partir dos anos de 1990, passaram a cons-

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tituir um acessório padrão nos computadores pessoais. O mentos de maior tensão harmônica coincidem com o
título inicial da composição Monte Santo, isto é, Nave- trecho do poema no qual Zabelê declama: “E logo o dia
Mãe, exempliica como a ética musical comunitária de vem clareando, os donos das matas vão se encontran-
Hermeto Pascoal apresenta uma interface mística, como do, andando e voando, nos ares cantando, nas matas,
exempliica a declaração algo messiânica a seguir: “Logo cuidando de tudo que é belo” (00:49 – 01:17; 05:01 –
senti que estava diante de uma grande missão (...), fazer 05:24). De maneira semelhante ao que ocorrera no inal
com que, através da música, as pessoas se amem cada da música Missa dos Escravos – no qual o choro, os risos,
vez mais, sem nenhum tipo de preconceito” (PASCOAL, as gargalhadas e os gritos de Flora Purim se fundiram
2000, p.17-18). Os sonhos de justiça social – nos quais aos grunhidos ruidosos de dois porcos “cantores” –, na
há fartura simbólica de alimentos, música e amor –, são peça Rede, por sua vez, há uma associação musical en-
complementados, ainda, pela ecologia, como exempliica tre, de um lado, a natureza, os animais e, de outro lado,
a música Rede (1979b). as dissonâncias e tensões harmônicas (como na airma-
ção de Hermeto antes citada na introdução: “O atonal é
A letra desta música é um poema criado por Hermeto Pas- a coisa mais natural que existe”). Observo ainda uma in-
coal (bem antes de a ecologia ter se tornado moda), que é versão curiosa de papéis: enquanto que a letra cantada
declamado e, depois, cantado pela intérprete Zabelê: de Missa dos Escravos mencionava a ave “Zabelê”, de pio
melodioso, na música Rede, por sua vez, Zabelê é uma
Me dê a rede, quero dormir, o ar é puro, não vou sair.
Balance com força, mais um pouquinho,
pessoa de carne e osso, isto é, a cantora que declama e
pro sono vir devagarinho. canta um poema sobre os pássaros e a natureza.
Quero sonhar bem diferente, talvez igual a um passarinho,
quando acordar de manhãzinha, vou ver o sol nascer sozinho.
Assim, as composições Rede e Missa dos Escravos esta-
E logo o dia vem clareando,
os donos das matas vão se encontrando, andando e voando, nos belecem um continuum entre a natureza, os animais, a
ares cantando, civilização e os seres humanos. Como assinalei em outro
nas matas, cuidando de tudo que é belo. artigo (COSTA-LIMA NETO 2010b), há, na Música Uni-
Canto a natureza, que é linda, ainda, que é linda, ainda, que é
versal de Hermeto Pascoal, uma fusão de pólos aparen-
linda assim.
temente opostos: fala/canto; animais/seres humanos;
As notas e ritmos tocados inicialmente de maneira suave ruídos/notas; natureza/cidade; sonho inconsciente/vigí-
pelo piano elétrico simulam uma rede rangendo e balan- lia consciente; criador/criatura; modernidade/tradição.
çando, repetidamente, em andamento moderado e com- Por isso, conirmando a fusão de opostos presente em
passo quaternário. Num tensionamento progressivo, o sua música, o “índio diferente” Hermeto Pascoal air-
andamento é acelerado, pouco a pouco, junto com o cres- mou na citação que serviu como epígrafe neste artigo:
cendo de intensidade. A harmonia acompanha o aumen- “nós somos pássaros também”. Na obra do compositor
to de tensão, sendo inicialmente constituída de acordes alagoano os ruídos da natureza e dos animais compar-
em quartas com 2as. ajuntadas (00:01 – 00:29), passan- tilham, “democraticamente”, o mesmo espaço sonoro
do, em seguida, a incluir estruturas poliacordais (00:30), com as vozes e os demais instrumentos musicais. Sua
atingindo, inalmente, o clímax, com acordes dissonantes concepção estética é, ao mesmo tempo, ecológica, reli-
formados por 2as. 7as. e 9as. maiores ou menores (00:49 giosa, social e político-econômica.
– 01:17). Como demonstrei em estudos anteriores (COSTA-
LIMA NETO, 1999, p.90-98, 174-178; 2000, p.125-137), Analogias entre Hermeto Pascoal, Antônio Conselheiro
Hermeto Pascoal constrói estes e outros acordes disso- e Lampião ocorrem, inalmente, através de certas se-
nantes tendo como inspiração as sonoridades inarmôni- melhanças físicas. A barba e a longa cabeleira, em se
cas dos objetos sonoros não convencionais, além dos sons tratando dos dois primeiros e, no que diz respeito ao
produzidos pelos animais (mesclas de sons com espectro músico e ao cangaceiro, a deiciência visual. Em suma,
harmônico e de ruídos), como, por exemplo, o granulado estes indivíduos possuem, de fato, personalidades multi-
do silvo destemperado da cigarra, o cricrilar dos grilos, o facetadas nas quais os terrenos do sagrado e do profano
coaxar dos sapos, o pio dos pássaros, etc. Utilizando sua se interpenetram como as vozes de uma trama polifôni-
percepção ampliada, na música Rede Hermeto Pascoal ca sócio-musical. Parecendo conirmar a minha compa-
adapta e transpõe estas sonoridades naturais inarmônicas ração, Hermeto Pascoal é visto publicamente no Brasil
e ruidosas para os instrumentos convencionais, como, por ora como um “mago”, ora como um “bruxo dos sons”.
exemplo, o piano. A “transposição inarmônica” ocorre, ain- O “lado mago do bruxo” compõe o Calendário do Som
da, com relação à voz. Músicas como, por exemplo, Que- (2000), através do qual constitui uma comunidade pla-
brando Tudo! (1979a) e Mestre Mará (1979b) demonstram netária e homenageia a todos os seres humanos através
os procedimentos vocais não convencionais utilizados por de 366 composições. O “lado bruxo do mago”, por sua
Hermeto: tosse, grunhidos, ataques glotais e consonantais, vez, à maneira de um Lampião contemporâneo, decla-
chiados, gritos, gargalhadas, sons guturais, etc.30 ra guerra permanente contra as grandes gravadoras e a
indústria cultural. O “mago” tocou com Elis Regina no
Zabelê declama o poema de Rede (00:11) tendo ao fun- Festival Internacional de Jazz em Montreux, fez parce-
do o som do piano, além de sons percussivos sutis e de rias com Jane Duboc e arranjos para estrelas da MPB,
apitos imitando os pios dos pássaros (00:43). Os mo- como, por exemplo, Maria Bethânia,31 enquanto que, o

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“bruxo”, critica acidamente o choro, a música regional e e obra. Hermeto Pascoal acredita que existem sentidos
a MPB (“Esse pessoal que toca chorinho, músicas regio- extra-físicos: a visão verdadeira, segundo ele, estaria na
nais, MPB, começa a tocar que nem velho, com cara de testa, num ponto equidistante entre os dois olhos, en-
velho”32), e é menosprezado pelas grandes gravadoras quanto a escuta, por sua vez, ocorreria na região da nuca
e pelos produtores musicais (como demonstrou a con- e não apenas nos ouvidos (JARDIM e CARVALHO, 2001).
trovérsia com o produtor André Midani, por ocasião da Assim, o som e a imagem resultam de um processo físico
jam session de Hermeto e Elis Regina). O primeiro pre- e extra-físico. Conluem, ambos, na voz, que passa então
tende erigir um “Templo do Som da Música Universal”33 a interligar o mundo material ao espiritual, a aura verbo-
e compõe músicas como Santo Antônio, Monte Santo, voco-visual, “terra da promissão”.
Igrejinha e Bebê,, enquanto que, o segundo, improvisa
Quebrando Tudo! e “invoca” espíritos em Velório, Can- Na verdade, em se tratando de Hermeto Pascoal, as clas-
non, Missa dos Escravos. siicações se tornam sempre problemáticas. A denomina-
ção a ele atribuída de “músico popular instrumental”, por
Contudo, como os dois lados da mesma moeda, o “mago” exemplo, parece ser apenas um rótulo, isto é, uma sim-
e o “bruxo” são um só indivíduo. Integram a ética musical pliicação criada com o objetivo de classiicar um artista
comunitária de Hermeto Pascoal, nascido no Olho D’água inovador, etiquetando-o, envolvendo-o numa embala-
da Canoa, zona Agreste do estado de Alagoas. gem e transformando-o num produto capaz de ser iden-
tiicado, comercializado e consumido. Entretanto, a ver-
4- Conclusão: o lençol de águas subterrâneas satilidade de Hermeto Pascoal diiculta conceitualmente
O público, os jornalistas, os intérpretes e os pesquisado- esta classiicação, pois, além de tocar instrumentos de
res relacionam Hermeto Pascoal às tradições da música cordas, sopros e percussão, ele também canta e, muitas
popular e, mais especiicamente, à música instrumental vezes, toca e canta ao mesmo tempo. O fato de o músico
presente em gêneros como o choro, o frevo ou o jazz. alagoano não ser reconhecido publicamente como cantor
Entretanto, apesar da denominação “músico popular parece ocorrer porque suas experimentações vocais ultra-
instrumental”, as composições contempladas neste ar- passam aquilo que o senso comum espera convencional-
tigo e muitas outras músicas criadas por Hermeto Pas- mente de um cantor. Neste sentido, o “problema” é que
coal (totalizando quase 60% das composições gravadas Hermeto Pascoal é um cantor original, que subverte par-
nos seus discos) demonstram que, frequentemente, este cialmente o primado da palavra e da imagem sobre o som
“músico instrumentista” também canta (O Galho da ro- vocal, ao dirigir a atenção para a matéria puramente so-
seira, Quebrando Tudo! Nem um talvez, Mestre Mará) e nora produzida pela voz-instrumento. Suas composições
utiliza a sua voz e a de outros intérpretes de maneira questionam não apenas o rótulo de “música instrumen-
não convencional (Velório, Missa dos Escravos, Cannon, tal”, mas também a própria noção de “música popular”
Igrejinha). As palavras são muitas vezes desmembradas – muito embora, por outro lado, não sejam reconhecidas
em sílabas e letras sem conteúdo semântico, com valor como “música erudita”. O problema quanto à denomina-
apenas sonoro. Através da voz, Hermeto Pascoal com- ção “músico popular instrumental” é aumentado ainda
põe músicas que serão tocadas por outros instrumen- mais porque algumas das composições de Hermeto Pas-
tos (Bebê, Montreux, as peças do Calendário do Som). coal estão no limiar da não-música e do não-humano,
Exemplos adicionais revelaram que o compositor cria ou como exempliicam, respectivamente, as músicas da aura
utiliza falas, letras, poemas, imagens e narrativas que (baseadas nas melodias da fala) e as músicas utilizando
acabarão sendo transformadas em música (Rede, Santo sons de aves, insetos, porcos, etc.
Antônio, Monte Santo, as músicas da aura).
Avesso às tradições cristalizadas, populares ou eru-
As fronteiras que separam a palavra falada, a palavra ditas, Hermeto Pascoal é um experimentador icono-
cantada e a palavra tocada no processo de criação mu- clasta, um Macunaíma da música brasileira, um artista
sical de Hermeto Pascoal são bastante tênues. Mais do que desestabiliza as hierarquias pré-estabelecidas. Ao
que isso, a relação entre o falar, o cantar e o tocar pare- “Quebrar Tudo!” e questionar as categorias estéticas
ce estar inserida numa dimensão mais ampla, sinestési- e os rótulos comerciais, Hermeto Pascoal cria novos
ca ou multi-sensorial. De fato, os sentidos físicos estão paradigmas, desaiando a si mesmo e o público, os in-
inter-relacionados na poiética do compositor alagoano, térpretes, os jornalistas, a crítica e os pesquisadores
como exempliicaram os títulos e letras de suas músicas (incluo-me na lista). O seu ruído não se restringe so-
relacionadas aos alimentos. Além do paladar, a visão e mente a música e alcança a sociedade, a economia e
o tato também estão amalgamados em sua obra, como a política. De forma só aparentemente despretensiosa,
demonstrou a citação utilizada como epígrafe neste ar- ao sabotar as grandes gravadoras transnacionais, o
tigo: “Eu me inspiro mais na pintura para compor, no “peregrino-cangaceiro” contraria interesses podero-
timbre de uma voz” (meu grifo). A multi-sensorialidade sos, enquanto profetiza o surgimento de uma comu-
está relacionada, de maneira ainda mais ampla, a meu nidade planetária unida pelo som. E pela internet, que
ver, à religiosidade de Hermeto Pascoal. Esta constitui um Hermeto Pascoal parece alçar a uma condição semi-
aspecto fundamental da ética musical comunitária do divina, por possibilitar o compartilhamento gratuito de
músico alagoano e ocupa um lugar central em sua vida músicas, numa espécie de “pirataria transcendental”.

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A opinião de que Hermeto Pascoal é não mais que um ternacionais, pois: “ninguém consegue ensacar o som!”
“músico instrumental” (excelente, sem dúvida nenhuma) (PASCOAL, entrevista ao autor, 1999). Assim ele criava
pode ter adquirido, sem que nós percebêssemos, uma sua maneira - “universal” - de ser brasileiro.
conotação um pouco conservadora, ao privá-lo de sua
voz e de tudo aquilo que ela diz, incluindo as críticas e Ao incluir, desde a década de 1970, a ecologia sonora
atitudes dissonantes. O problema por ele levantado com em sua música, Hermeto Pascoal dava voz aos animais
relação à pirataria digital, por exemplo, sinaliza para a e reairmava sua identidade cultural nordestina, rural e
existência de uma crise generalizada na produção e na “indígena”. Não se tratava de mera “excentricidade” ou
difusão musicais no Brasil. Esta crise parece ter como de “exotismo”, dois termos utilizados contra ele de ma-
causa principal a falta de políticas culturais realmente neira depreciativa. Uma observação: enquanto este tipo
eicazes por parte do Governo Federal, cujo orçamento de crítica rasteira ainda ecoa por aqui, paralelamente a
anual destina atualmente à cultura apenas uma per- música de Hermeto Pascoal vem sendo estudada cada
centagem píia (0,7%), ainda abaixo do valor mínimo vez mais nas universidades brasileiras e no exterior, por
(1,0%) deinido pela UNESCO. Os artistas são abando- exemplo, nos EUA, na Inglaterra ou no IRCAM, criado
nados à própria sorte e se vêem à mercê da ditadura do por Pierre Boulez, na França.34 Ocorre que, para muitos
mercado e dos interesses exclusivamente comerciais da brasileiros, a natureza ainda é um Inferno verde, título
indústria musical transnacional – isto num país que tem do livro de Alberto Rangel, prefaciado por Euclides da
na música um símbolo de nacionalidade (!). Cunha com palavras ainda atuais: “Faltam-lhe em geral
[aos cartógrafos] a intimidade da Terra. Nunca sentiram
Como Treece bem assinalou, a tradição de pensamento em torno, entre as vicissitudes das explorações longín-
nacionalista no Brasil vem utilizando conceitos (“demo- quas, o império formidável do desconhecido” (CUNHA,
cracia racial”, “luso-tropicalismo”) e ideologias neocolo- 1909). Entretanto, para o imigrante Hermeto Pascoal os
nialistas (“Marcha para o Oeste”, “integralismo fascista”) gêneros, estilos e sonoridades da cidade e do campo não
para construir uma narrativa mítica como uma “pedra de estão separados, pois “a natureza é o cotidiano.” (PAS-
toque para uma história pacíica de integração política, COAL, 1998, p.48). Neste sentido, sua obra é como uma
social e econômica” (TREECE, 2008, p.11). Entretanto, a viagem acústica. E um ato de resistência. Em tempos de
realidade dos fatos contrasta fortemente com este discur- aquecimento global, desmatamento e extinção de es-
so conciliatório, conforme demonstrado pelos exemplos pécies animais e vegetais o que parece ser mais vital
de Zumbi dos Palmares, Lampião e Antônio Conselheiro, do que recriar musicalmente os sons dos seres vivos, da
abordados neste artigo. No que diz respeito aos índios, natureza e do planeta como um todo, incluindo a selva
continua Treece, a mitologia integracionista invocou con- de pedra das cidades grandes?
tinuamente sua assimilação pela sociedade dominante,
apesar de a população indígena ter sofrido, desde 1500, Voltamos, por im, à musicalidade universal da fala. Atra-
um verdadeiro genocídio, caindo de cerca de 5 milhões vés das músicas da aura descobrimos que ao falarmos,
para apenas 100.000 no início do século XX. É exemplo estamos cantando e, por isso, todos somos cantores. To-
deste discurso de “assimilação” o pronunciamento (ab- dos, sem exceção: o ex-presidente Fernando Collor de
surdo) feito em 1969 pelo coronel Costa Cavalcanti, en- Mello, o poeta e militante comunista Mário Lago, o ba-
tão presidente da FUNAI, em plena ditadura militar: “Nós curau, o marreco e o Papa João Paulo II...35 Existiria algo
não queremos um índio marginalizado, o que queremos é mais democrático, anárquico ou apolítico? Tendo como
um índio produtor, um índio que seja integrado no pro- inspiração inicial o sotaque “cantado”, típico da região
cesso do desenvolvimento nacional” (Cavalcanti citado Nordeste, através das músicas da aura Hermeto Pascoal
por TREECE, 2008, p.12). Após ter migrado de Lagoa da amplia os limites da aldeia e da vila rural para abranger
Canoa para as grandes cidades brasileiras em 1950 – e se todo o globo terrestre, assim aplicando a ética musical
ver cercado pelos nacionalismos de direita e de esquer- comunitária numa escala planetária.
da na década de 1960 –, o nordestino Hermeto Pascoal
teve que descobrir uma maneira de exercer sua arte e, ao “Minha cabeça é uma fonte, uma nascente” (Pascoal,
mesmo tempo, escapar ao controle político-ideológico e citado por ZAGO). As músicas executadas por Hermeto
estético. A saída encontrada pelo músico signiicou para e pelos intérpretes que o acompanharam nos discos
ele, de um lado, o exílio e, de outro, a libertação: via- e shows surgem desta fonte que fala, grita, reclama,
jou em 1970 para lançar-se em carreira solo nos EUA, sussurra, come, reza, canta e toca. A quem interes-
enquanto, ao mesmo tempo, “emigrava para dentro do sa dividir arbitrariamente a música em duas metades,
som universal”, assim continuando as experiências ini- “vocal”, de um lado, e “instrumental”, de outro? Folcló-
ciadas em sua infância, no Olho D’água da Canoa, com os rica, popular ou erudita? Brasileira ou internacional?
sons da fala, dos animais e dos objetos cotidianos. Desta Modal, tonal ou atonal?
maneira, como um índio pós-moderno, Hermeto Pasco-
al ultrapassa(va) permanentemente os limites impostos Para o compositor, multi-instrumentista e cantor Herme-
pelas fronteiras geopolíticas e estéticas nacionais e in- to Pascoal, a música é uma só.

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http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro082.pdf, acesso em 29/01/2010.
http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n17/v9n17a03.pdf, acesso em 29/01/2010.
http://br.youtube.com/watch?v=3BOga_GhZjE&feature=related, acesso em 29/01/2010. [música Peixinho, de Hermeto
Pascoal, intérprete: Jane Duboc. CD Brasil Universo.
http://br.youtube.com/watch?v=wEiQSeyUkCM&feature=related, acesso em 29/01/2010. [música Tomara, arranjo: Her-
meto Pascoal, intérprete: Maria Bethânia].
http://www.hermetopascoal.com.br, acesso em 29/01/2010.
http://www.musimediane.com/article.php3?id_article=21. Acesso em 02/02/2010.

Agradecimentos
Agradeço a Neílson Ávila e a Janete Pascoal pela hospitalidade com que fui recebido em Lagoa da Canoa, Alagoas, em
novembro de 2008, bem como a todos os membros da Família Pascoal em Lagoa da Canoa, Olho D’água da Canoa, Girau
do Ponciano e cercanias. Ao pesquisador José Roberto de Barros Torres pelas informações discográicas gentilmente
enviadas por email, em 17/02/1999, ao compositor, arranjador e instrumentista Jovino Santos Neto pelas informações
valiosas e, inalmente, a Denise Nagem, pelas revisões, comentários e críticas atentas.

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NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.

Notas
1 De um total de 152 músicas gravadas nos 13 discos autorais lançados em 1972, 1973, 1977, 1979a, 1979b, 1980, 1982, 1984, 1985, 1987, 1992,
1999, e 2002, a voz é utilizada em cerca de 90 composições. Incluam-se na lista mais duas composições de Hermeto Pascoal – as baladas Little
Church e Nem um talvez –, cantadas e assobiadas por Hermeto Pascoal no disco Live-Evil, de Miles Davis (disco gravado em 1970 e lançado em
1972, Sony). Finalmente, O Galho da roseira, de autoria dos pais de Hermeto, cantada e sussurrada pelo músico no disco Seeds on the ground (Bu-
ddha Records, 1971), de Airto e Flora Purim, no qual Hermeto Pascoal participou como compositor, arranjador e intérprete.
2 Conferir as músicas da aura intituladas Tiruliruli e Vai mais garotinho (1984), compostas a partir de narrações futebolísticas feitas pelos radialis-
tas desportivos Osmar Santos e José Carlos Araújo. Escutar Hermeto Pascoal fazendo a música da aura do ator francês Yves Montand em: http://
br.youtube.com/watch?v=SrgveUpwCnM&feature=related, acesso em 25/01/2010. Conferir, inalmente, as faixas Pensamento positivo, Três Coisas e
Quando as aves se encontram, nasce o som, (1992). Nestas três faixas Hermeto Pascoal faz a música da aura, do ex-presidente do Brasil, Fernando
Collor de Mello e do poeta Mário Lago, além de “auralizar” os cantos das aves: Uirapuru, Sabiá, Corvo, Fogo-apagou, Galo, Bacurau e Marreco.
3 Para uma abordagem mais completa sobre a Música Universal, ver COSTA-LIMA NETO, 2008, p.1-33; e 2010a (no prelo). Sobre a música da aura,
ver COSTA-LIMA NETO, 1999, p.174-9; 188-194. Sobre a dicotomia entre o “natural” e o “convencional”, ver COSTA-LIMA NETO, 2000, p.119-42.
4 Segundo SANTOS NETO, 2001, p.9, este primeiro disco autoral foi, em 1988, relançado por outra gravadora (Muse Records), sob o título Hermeto
Pascoal, Brazilian Adventure. As músicas de Hermeto Pascoal referidas neste artigo podem ser escutadas, online, no Youtube.
5 Conjunto de orações rezadas em voz alta ou cantadas diante do morto. Ver CASCUDO, 1972, II, p.761.
6 A informação a respeito do apelido do avô de Hermeto Pascoal é de VILLAÇA, 2006, p.20.
7 Em: http://acd.ufrj.br/lamut/cropsite/home.html. Acesso em 02/02/2010.
8 Para maiores informações ver COSTA-LIMA NETO, 1999, p.6-11; 75-98; 127-143.
9 “Cozinha” é um termo utilizado na música popular para designar a formação instrumental básica constituída de contrabaixo, bateria e percussão.
Para Hermeto Pascoal, a “cozinha” é tão importante quanto os demais instrumentos.
10 Sobre a inter-relação da música de Hermeto Pascoal com as feiras, bailes populares e rodas de choro ver CAMPOS, 2006; sobre as rapsódias das
“melodias ininitas” nordestinas ver ANDRADE, Mário de, 2006 [1928], p. 48–57, e TRAVASSOS, 1997, p.171. Observo que na cidade de Palmeira dos
Índios, reside, ainda hoje, a professora que alfabetizou a Hermeto Pascoal, Dona Zélia Gaia, a qual, na infância do músico, convidava o garoto, seu
irmão e seu pai para tocar nas festas da cidade, ver VILLAÇA (prefácio escrito por Zélia Gaia), 2006.
11 Para uma inter-relação entre os elementos musicais (forma, harmonia, ritmo, estilo, etc.) e a religiosidade de Hermeto ver a noção por mim formu-
lada de Continuum separação-fusão paradoxal, em COSTA-LIMA NETO, 2010b.
12 Segundo informação de José Roberto de Barros Torres (email ao autor, 17/02/2009), que está escrevendo uma biograia de Hermeto Pascoal, Coa-
lhada foi gravada originalmente em 1965, pelo Sambrasa Trio e, no mesmo ano, pelo organista Renato Mendes, no disco Órgão de Vanguarda. Ainda
em 1965, Hermeto Pascoal teve gravada sua composição Sete contos pelo grupo Cinco-pados e pelo pianista Ely Arcoverde, além da música Balanço
n° 1, pelo Jongo Trio. Nove anos antes, isto é, em 1956, Hermeto fazia a sua primeira gravação como instrumentista, no disco Ritmos Alucinantes,
do compositor de frevos, maestro e arranjador Clóvis Pereira, em Recife.
13 Para uma discussão a respeito da sinestesia sob o ponto de vista etnomusicológico ver MERRIAN, 1964, p.85-102; para uma inter-relação entre os
compositores clássico-românticos e a culinária (por exemplo, a “doçura” da música de Wolfgang Amadeus Mozart e as sobremesas batizadas com
o nome deste compositor) ver NETTL, 1995, p.24-25.
14 Sobre o Toré, ver NEVES In Grunewald (org.), 2005, p.129-154.
15 Observo que, a partir da década de 1950, Hermeto Pascoal tocou canções francesas e italianas nas boates, além de música cigana no conjunto de Fafá
Lemos, em 1959, no Rio de Janeiro. Ver SANTOS NETO, 2001, p.6 e COSTA-LIMA NETO, 1999, p.36-55.
16 Neste disco de 1973 talvez tenha sido iniciada a confusão com o sobrenome de Hermeto, cuja graia correta é “Pascoal”, sem “h”, segundo infor-
mação do biógrafo de Hermeto, José Roberto de Barros Torres e da família do músico, em Lagoa da Canoa.
17 Segundo informação em SANTOS NETO, 2001, p.10.
18 Ver as cenas de Hermeto Pascoal compondo e solfejando as melodias do Calendário do Som, (em BILLON, 1997). Conferir a entrevista com o pianista
e compositor Jovino Santos Neto, na qual este descreve o processo composicional de Hermeto Pascoal e a maneira cantada pela qual o músico
alagoano compõe suas melodias instrumentais, (em HINRICHSEN, 2004). Escutar a balada Montreux (1979a), em Sol menor, composta por Hermeto
sem o auxílio de instrumentos, apenas algumas horas antes do show realizado no Festival de Jazz realizado na cidade de mesmo nome.
19 Hermeto, reproduzindo as dicas que ele transmitiu para Flora Purim. Em entrevista com Ezequiel Neves, 1975.
20 O Grupo que acompanhou Hermeto Pascoal no Festival de Jazz de Montreux era constituído pelos músicos Itiberê Zwarg, Jovino Santos Neto, Luis
Santana/Pernambuco, Zabelê, Nenê, Nivaldo Ornellas e Cacau.
21 Ver o vídeo das três músicas em: <http://www.youtube.com/watch?v=XOgHxIXyTKc&feature=PlayList&p=11E7EE48CA15EC8F&playnext=1&pla
ynext_from=PL&index=54>; <http://www.youtube.com/watch?v=X7Kv1TpZkTQ>; <http://www.youtube.com/watch?v=zGnqyIfyXOI&feature=Pla
yList&p=EC7003ABE3BF4C61&playnext=1&playnext_from=PL&index=8>. Ver Elis Regina falando sobre a jam session com Hermeto Pascoal em
http://br.youtube.com/watch?v=B_jEaktTVSQ, acesso em 29/01/2010. Segundo informação de SANTOS NETO (2008) após o Festival de Jazz de
Montreux, Hermeto Pascoal, Elis Regina e seus respectivos grupos viajaram para Tóquio, onde se apresentaram novamente, todos dividindo, desta
vez, o mesmo palco.
22 No LP com a gravação do show ao vivo de Hermeto & Grupo no Festival de Montreux (1979a) este solo está subdividido em duas faixas: a primeira
recebeu o título de Maturi, enquanto que, a segunda, foi denominada Quebrando Tudo!. No vídeo postado no YouTube, o solo é apresentado como
foi tocado ao vivo, isto é, sem interrupções, Quebrando tudo! começa aos 04:44. Ver http://br.youtube.com/watch?v=W821bgUU_mY, acesso em
29/01/2010. Observo que a expressão “Quebra tudo!”, criada por Hermeto Pascoal, se tornou parte do dicionário da música popular no Brasil, e sig-
niica: 1) Tocar com “paixão”, “com amor”, “dando tudo de si” (PASCOAL, Hermeto); 2) “Tocar como se cada show fosse a inal de um campeonato”
(PASCOAL, Fábio) e; 3) “Pelo contrário, ‘Quebrar tudo!’, signiica construir musicalmente tudo.” (GUINGA). Ver HINRICHSEN, 2004.
23 Termo cunhado em 1967, pelo saxofonista norte-americano Ornette Coleman, para designar um tipo novo de jazz que se utilizava de improvisações
atonais e assimétricas, e que fazia uso musical dos ruídos. Ver BERENDT, 1987; COSTA-LIMA NETO, 1999, p.45-50.
24 Hermeto Pascoal conheceu Jackson do Pandeiro na Rádio Jornal do Commercio, em Recife. Conferir o solo vocal embolado de Hermeto Pascoal na
faixa musical Remelexo, no mesmo disco gravado no Festival de Jazz de Montreux (1979a).
25 Ver o depoimento irônico de Hermeto Pascoal em PRADO, 2008. Sobre Lampião e o Cangaço ver FACÓ, 1963; MELLO, 1993; GRUNSPAN-JASMIN 2006.
26 Ver http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro082.pdf, acesso em 29/01/2010.
27 Ver http://www.scielo.br/pdf/icse/v9n17/v9n17a03.pdf, acesso em 26/12/2008.
28 O Grupo que o acompanhava nesta época (entre 1981 e 1993) era constituído pelos músicos Antônio Luis Santana (Pernambuco – percussão), Itiberê
Zwarg (contrabaixo, bombardino, tuba), Jovino Santos Neto (piano, teclados, lautas), Márcio Bahia (bateria, percussão) e Carlos Malta (sopros).
29 As duas quadras foram citadas por Euclides da Cunha, 2001 [1902], p.305.

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NETO, L. C-L. O cantor Hermeto Pascoal: os instrumentos da voz. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.44-62.

30 Para maiores noções sobre bio-acústica, ver CAESAR. http://acd.ufrj.br/lamut/cropsite/home.html. Acesso em 02/02/2010.
31 Conferir a composição de Hermeto intitulada Peixinho, interpretada por Jane Duboc, gravada no CD lançado em 1985, em: http://br.youtube.com/
watch?v=3BOga_GhZjE&feature=related, acesso em 10/12/2008. Conferir a música Tomara (Rubinho Valença/Alceu Valença), do CD Maria Bethâ-
nia, 25 anos (1990) em: http://br.youtube.com/watch?v=wEiQSeyUkCM&feature=related, acesso em 10/12/2008.
32 PASCOAL, entrevista com Yoda.
33 Ver http://www.hermetopascoal.com.br, acesso em 29/01/2010.
34 Ver CHOUVEL. Em: http://www.musimediane.com/article.php3?id_article=21. MATHIEU. Em: http://recherche.ircam.fr/equipes/repmus/Rapports/
mathieu2002/outils-analyse-BM-2002.pdf, p.24-38. Acesso em 02/02/2010.
35 Ver CD lançado em 1992. Além das músicas da aura de Collor, Mário Lago e dos pássaros Hermeto Pascoal fez a música da aura do papa João Paulo II,
mas esta não foi incluída porque o Vaticano não concedeu a autorização.

Luiz Costa-Lima Neto é Bacharel em Composição musical pela Universidade Estácio de Sá, Licenciado em Educação
artística com habilitação plena em música pelo Conservatório Brasileiro de Música, mestre em Musicologia brasileira
pela UNIRIO, doutorando na mesma Universidade. É compositor, intérprete e arranjador, integrou a banda Tao e Qual na
década de 1980, participou como compositor em Bienais e Panoramas de Música Brasileira Contemporânea. Professor de
música na Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Pena e no Curso de Pós-graduação em Arteterapia da Clínica Pomar/
ISEPE, Rio de Janeiro. Escreveu artigos publicados no Brasil e no exterior sobre a música de Hermeto Pascoal, sobre edu-
cação musical, e sobre teatro, música e raça na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX. Desenvolve pesquisas sobre
os índios Xavante (Brasil Central), e sobre a música na obra teatral e crítica de Luiz Carlos Martins Pena (1815-1848).

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

Cannon de Hermeto Pascoal:


aspectos musicais e religiosos
em uma obra-prima para lauta
Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte, MG, Belo Horizonte)
fborem@ufmg.br

Maurício Freire Garcia (UFMG, Belo Horizonte, MG, Belo Horizonte)


mgarcia@ufmg.br

Resumo: Estudo de caso sobre Cannon de Hermeto Pascoal, obra para lauta, humming na lauta e sons pré-gravados,
planejada como uma sessão espírita musical e gravada pelo compositor no disco Slaves Mass (PASCOAL, 1977). A partir
do desenho artístico de uma pauta espiralada na capa interna do mesmo LP (PASCOAL e PEREIRA, 1977) e de uma tran-
scrição baseada na faixa gravada, a partitura da obra foi detalhadamente reconstituída e editada (PASCOAL e BORÉM,
2010; incluída neste volume de Per Musi às p.80-82). A combinação das análises formal, escalar e proporcional da
partitura e seu cruzamento com a análise espectral da gravação revelam grande unidade e uma íntima relação entre
os conteúdos musicais e extra-musicais da obra, na qual elementos opostos dialogam: a improvisação e as camadas de
superposição de sons pré-gravados, a sonoridade acústica e os sons manipulados, a performance individual e a coletiva, a
estabilidade e a instabilidade modal, as linguagens popular (embolada, jazz modal, free jazz) e erudita (música concreta,
atonalismo, cadenza, recitativo), os mundos terreno e espiritual. Apresenta também, em primeira mão, a abordagem
analítica do “continuum separação-fusão paradoxal” da obra, a partir de ferramenta etnomusicológica criada e realizada
por COSTA-LIMA NETO (2009). Inclui uma contextualização do papel da religião na música do “mago” multi-instru-
mentista, arranjador e compositor da música popular brasileira.
Palavras-chave: Hermeto Pascoal; música popular brasileira; modalismo; atonalismo; espiritismo e música; música
eletro-acústica, análise musical.

Cannon by Hermeto Pascoal: musical and religious aspects in a lute masterpiece

Abstract: Case study on Cannon by Brazilian composer, arranger and multi-instrumentalist Hermeto Pascoal, a work for
lute, lute humming and pre-recorded sounds, designed as a musical spiritism session and included in the LP Slaves Mass
(PASCOAL, 1977). Departing from an artistic drawing of a music staff spiral included in the internal covers of the same
LP (PASCOAL e PEREIRA, 1977) and a transcription based on the listening of the track in the same disc, the score of the
work was reconstituted and edited in detail (PASCOAL e BORÉM, 2010; included in this issue of Per Musi, p.80-82). The
combination of formal, scalar, proportional analyses with the spectral analysis reveal an intimate relation between the
musical and extra-musical contents of the work, in which opposing elements dialog: improvisation and the layers of pre-
recorded sounds, acoustical sounds and manipulated sonorities, individual and the collective performances, stable and
unstable modalities, the popular (the Brazilian embolada, modal jazz, free jazz) and the classical (musique concrète, bi-
modalism, atonalism, cadenza, recitative) languages, the earth and the spiritual worlds. It presents an original analytical
approach of the work based on the “paradoxal separation-fusion continuum”, devised and realized by ethnomusicologist
COSTA-LIMA NETO (2009). It also includes a context of the religion role in the music of the so-called “mago” (wizard) of
the Brazilian popular music.
Keywords: Hermeto Pascoal; Brazilian popular music; modalism; atonalism; spiritism and music; electro-acoustical
music, music analysis.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 21/12/2009 - Aprovado em: 18/03/2010
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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

“Minha religião é a música”I. em Nova Iorque, em 1989, revoltou-se contra esta limi-
Hermeto Pascoal (GONTIJO, 2000, p.2) tação que tentaram lhe impor na duração do concerto e,
após iniciar uma música, parou e saiu do palco alegando
“Eu rezo com a música, com o instrumento”. que o tempo dado a ele tinha se esgotado. Apesar dos
Hermeto Pascoal (RODRIGUES, 2003) pedidos do público, em pé, Hermeto não retornou com
seu grupo (MILLARCH, 1989).
“. . .tão único e diferente dos outros. . . sua coragem
de experimentar com todo e qualquer tipo de música Na esteira do prestígio da bossa-nova nos Estados Uni-
num nível muito avançado”. dos, aumentou muito o trânsito de músicos brasileiros
Flora Purim sobre Hermeto Pascoal (PURIM, 1977) decididos a desenvolver sua carreira musical no exterior
na década de 1960, a exemplo do casal formado pela
cantora Flora Purim e o percussionista Airto Moreira, que
1 – Hermeto Pascoal e Cannon: contextos se mudaram para os EUA em 1967. Depois das diiculda-
musical e religioso des iniciais, icaram animados com a receptividade de seu
A relação entre música e espiritualidade na vida de Her- trabalho, especialmente após seu contato proissional
meto Pascoal é muito imbricada e transparece tanto na com Miles Davis. Em 1969, convenceram Hermeto a se
sua produção artística quanto na sua ilosoia de vida. É mudar temporariamente para Nova Iorque, para gravar o
comum encontrar, salpicando sua numerosíssima obra,1 disco chamado Hermeto (1971). Ao falar de sua empatia
relexos das diversas experiências religiosas que tem vi- com Miles Davis, apresentado por Airto Moreira, Hermeto
vido. É muito comum ele escolher temas musicais, títulos Pascoal revela um pouco do lado espiritual:
de música e, principalmente, criar atmosferas de rituais
derivados do catolicismo, espiritismo, umbanda, medita- “o repórter [da Radio France disse] ‘. . . o Miles Davis esteve aqui
dando uma entrevista pra mim e eu perguntei pra ele se, quando
ção e ritos indígenas. Assim, Hermeto sintetiza, ao mesmo
ele morresse, ele gostaria de ser músico? Aí ele falou que gostaria
tempo, a vocação brasileira para o sincretismo religioso e de ser um Músico que nem o Hermeto Pascoal’. . . eu disse pro cara
musical. Um relato detalhado de suas experiências religio- também: ‘Se eu morresse eu gostaria de ser um músico como ele’
sas relacionadas à música pode ser encontrado no artigo “ (BARROSO, 2009).
Hermeto Pascoal: experiência de vida e a formação de sua
linguagem harmônica, publicado no presente número de Menos de uma década mais tarde, Hermeto voltou aos
Per Musi (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43). Estados Unidos para gravar Slaves Mass (1977), no qual
icou ainda mais claro sua predileção pelo lado místico
São comuns os depoimentos de músicos que abdicaram da música, o que já é sugerido no próprio título do ál-
de seus estilos de vida, cidades de origem e trabalhos só bum, que faz uma alusão à cultura afro-brasileira: missa
para fazerem parte de seus grupos ou de seu convívio, dos escravos. Na faixa que dá nome ao disco, observa-se
especialmente na fase da Escola Jabour (BARBOSA, 2001; uma ampla utilização ritualística da voz (choros, gritos,
COSTA-LIMA NETO,1999; John KRICH, 1993; ZWARG, gargalhadas, declamações, vocalizes), cuja sonoridade
2009a). Foi esta dedicação e respeito religiosos pela qua- parece nos “. . . remeter à personagem conhecida na Um-
lidade musical que tornaram lendários os ensaios diários banda como Pomba-gira. . .” (COSTA-LIMA NETO, 2010b,
na casa de Hermeto no Rio de Janeiro, “from 2 to 8 pm”, p.48). Hermeto consolida a atmosfera mística do disco
segundo entrevista do músico Jovino a GILMAN (2009), com a utilização não convencional da voz em seis das
o que é corroborado por COSTA-LIMA NETO (2008, p.2 e sete faixas (COSTA-LIMA NETO, 2010b, p.48), e também
8): “. . . ensaiavam diariamente, das 14:00hs às 20:00hs, com um intenso experimentalismo instrumental (técnicas
durante doze anos consecutivos, de 1981 a 1993”, sendo expandidas da lauta, superposição de sons pré-gravados)
que esse tempo de ensaio que era acrescido “. . . pela e sonoridades exóticas (porcos grunhindo). Concorrem
prática diária matinal, quando os músicos ensaiavam os também para esta aura místico-religiosa as fotos na capa
trechos mais difíceis de suas partes individuais . . .” (Ex.1) – uma foto de Tom Copi cuja luz, em forma de aura,
destaca os longos cabelos brancos de Hermeto que mos-
A devoção e envolvimento de Hermeto com a música tra, no lugar dos olhos, teclados reletidos em seus óculos
muitas vezes sugere um estado de transe. Em Pendotiba - e na contra-capa do LP – uma foto avermelhada de
(Niterói), Hermeto e seu grupo prolongaram o show de Joel Sussman com Hermeto segurando um dos dois por-
inauguração de uma casa de jazz por mais de cinco horas quinhos texanos utilizados na gravação da faixa-título
(COSTA-LIMA NETO, 2008, p.9). No 1º Festival Interna- Slaves mass (veja BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-43, nesse
cional de Jazz de São Paulo, em 1978, ao lado de nomes volume de Per Musi).
como John McLaughlin, Chick Correa e Stan Getz, o show
de Hermeto “. . . começou às 23 horas e prolongou-se Deste disco, escolhemos a faixa Cannon, composta por
até às 4 horas da madrugada. . .“ (MILLARCH, 1979). Para Hermeto em homenagem ao jazzista Julian “Cannonball”
Hermeto, esse transe parece fazer parte de um processo Adderley (1928-1976)2, um dos pioneiros do hard-bop
que não pode ser interrompido como um evento mera- (POLITOSKE, p.575), que atuou com Miles Davis até 1958
mente artístico com hora marcada para acabar. No seu e se destacou também no free jazz na década de 1960
segundo concerto do festival Som da gente no Town Hall (KERNFELD, 1988, v.1, p.5-6), estilo da música popular

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

Ex.1 – Misticismo nas fotograias da capa e contra-capa do disco Slaves mass (1977) de Hermeto Pascoal
(Fotos de Tom Copi e Joel Sussman).

esteticamente aim à música erudita aleatória. A análi- notável próxima a 2/3 de duração da peça, ou seja, numa
se de Cannon demonstra como, em Hermeto Pascoal, os proporção equivalente à seção áurea. A linha melódica
aspectos musicais estão intrinsecamente ligados à sua principal (lauta + humming; Observação: hummings são
visão mística e religiosa do mundo; neste caso, segundo a vocalizações no bocal da lauta) e o “coração batendo”,
visão do espiritismo. Esta peça é centrada na performan- antes assíncronos entre si, entram em fase (tornam-se
ce de Hermeto na lauta transversal solo,3 à qual foram sincronizados) momentaneamente (c.87-90; [03:47-
mixadas diversas camadas de som gravadas e manipula- 03:52], veja Ex.5 e mais detalhes na próxima seção deste
das previamente (o que nos remete ao campo erudito da artigo), para depois seguirem cada um seu próprio cami-
música concreta), como falas em português e em inglês, nho, fora de fase, assíncronos. Do ponto de vista religioso,
vocalizações diversas (gritos, risos, canto) e percussão. poderíamos associar este evento ao momento em que de
fato se estabelece o contato entre o médium e o espírito
Cannon ilustra a formação eclética de Hermeto, com desencarnado. Do ponto de vista musical, para resistirmos
referenciais tanto populares quanto eruditos, apesar de à tentação de associar este procedimento à prática his-
nunca ter frequentado escola de música alguma. Seu iní- tórica de polimetria de Charles Ives no começo do século
cio pode lembrar tanto a liberdade harmônica e intervalar XX (e cair no erro da decantada ideia de que procedimen-
da música erudita expressionista ou pós-1950, quanto o tos musicais “cultos” ou “soisticados” sempre vieram do
experimentalismo do free jazz (veja Exs.5 e 6 à frente). estrangeiro), basta lembrarmos das experiências da in-
No primeiro trecho rítmico e alegre da música, a cantora fância de Hermeto na praça de Lagoa da Canoa ouvindo
Flora Purim reage saudosa e instintivamente, no meio da dois, três, quatro eventos superpostos e independentes ao
gravação, com um “Eh, Brasil!” (c.39, veja Ex.9 à fren- mesmo tempo (CAMPOS, 2006, p.134). Para Hermeto, a
te). Mas a métrica ternária deste trecho permite também aprendizagem de seu caminho pelo mundo, sua cultura e
outra leitura, pois poderia ter origem na experiência do religião acontece no encontro com o povo, em casa, nas
compositor com vidas passadas, vidas de formação mais ruas, nos bares, nos teatros, pelo mundo.
tradicional, erudita. Como se trata de uma “sessão espíri-
ta musical”, podemos especular sobre a métrica ternária Finalmente, Cannon pode ser considerada uma obra-
de Cannon e as inluências que o próprio Hermeto diz ter prima do repertório da lauta por diversas razões. Pri-
recebido do outro mundo. É ele mesmo quem diz que “. . meiro, parece tratar-se da primeira peça surgida no
. acredita ter aprendido a tocar ‘em 3/4’. . .”, talvez como cenário da música brasileira, até onde sabemos, para
fruto do que COSTA-LIMA NETO (2010a) considera ser lauta e ita magnética. Segundo, trata-se de uma obra
“. . . recordações que o alagoano supõe ter sido de sua em que se vislumbra uma escrita altamente idiomática
outra ‘encarnação’ em Viena, importante centro cultural da lauta, não só com a sua utilização instrumental
da música erudita européia. . .”. tradicional virtuosística dentro da linguagem modal
expandida e dentro do espírito da cadenza de concer-
Ainda do ponto de vista do timing de distribuição dos to, mas também por explorar eicientemente, um gran-
eventos ao longo de Cannon, observa-se uma ocorrência de leque de formas de ataque e técnicas expandidas,

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

como multifônicos e, especialmente, o humming. Outro - em [01:24]: (Voz masculina) “I don’t know. . . what to say”
aspecto que torna Cannon revolucionária e que tam- - em [01:34]: (Voz masculina) “a friend”
- em [01:39]: (Flora Purim) “I think I´m going to try again, slow.”
bém transgride a barreira entre os mundos erudito e - em [01:41]: (Voz masculina) “forever”.
popular, é a hibridação de práticas de performance que - em [01:46]: (Hermeto) “vejo em você uma alegria imensa, sem
fazem referência a gêneros populares (como o jazz, a im... (conosco?)”
embolada ou o repente) e às práticas eruditas (como - em [02:04]: (Voz masculina) “everybody can throw (?).”
o modalismo quase-atonal, a música eletro-acústica, - em [02:12]: (Voz masculina) “everybody can express [sic] myself”
- em [02:15]: (Hermeto) “você conforta todas as vidas neste
a cadenza de concerto), deixando irreconhecíveis os mundo”
limites entre a composição prévia e a improvisação. - em [02:40]: (Flora Purim): “êh, Brasil! .. . (risada) ”
Finalmente, em Cannon, todos os recursos composicio- - em [02:43]: (Voz masculina) “forever”
nais, instrumentais e de técnicas de gravação em es- - em [03:40]: (Hermeto) “como é linda, linda, a sua alma”
túdio são utilizados de maneira integrada, funcional e - em [03:42]: (Voz masculina) “som! (soul?)”
- em [03:57]: (Voz masculina) “how beautiful. . . beautiful... is
criando grande unidade musical. Nessa obra, Hermeto your soul”
Pascoal atingiu a expressão de um ritual religioso-mu- - em [04:10]: (Hermeto) “mas é isso aí!”
sical que relete não apenas a importância da experi- - em [04:18]: (Hermeto) “agora você está bastante livre para
ência mística na sua vida, mas também a função social andar em todos os ares. . .
da música de uma maneira mais ampla, que aproxima - em [04:21]: (Voz masculina) “toda a vida You ´ll be always here”
- em [04:24]: (Hermeto) “todos os cantos (?) “
diferentes povos, culturas e maneiras de tocar. - em [04:32]: (Voz masculina) “Now. . . you are free!”
- em [04:36]: (Hermeto) “estou gostando deste trabalho“
2 - Análise dos dados eletro-acústicos da - em [04:37]: (Hermeto) “o negócio é que. . . (?) “

gravação de Cannon
Texturalmente, Cannon foi construída com base em um solo Em segundo plano, e utilizando o recurso de aumento de
de lauta ininterrupto sempre em primeiro plano, ao qual velocidade de reprodução da ita magnética (o que resulta
gradualmente se sobrepõe sons pré-gravados (vozes e per- na transposição de uma oitava ou mais acima das alturas
cussão) produzidos por seis pessoas - músicos ou pessoas originais; trechos que, daqui para frente, serão chamados
envolvidas no projeto de Slaves mass presentes no estúdio simpliicadamente de “oitavados”), surgem vozes faladas,
Paramount em Los Angeles: Hermeto Pascoal, Airto Moreira, gritadas ou cantadas (Flora Purim faz vocalizes modais em
Flora Purim, Hugo Fattoruso, Raul de Souza e Laudir de Oli- [01:48], [01:56], [02:02], [02:12], [04:20] e [04:48]). Sur-
veira. As vozes aparecem em dois planos distintos: falas em gem também fragmentos percussivos, como sons sibilados
primeiro plano, sem manipulação e falas e sons vocais em com a boca em [02:08]; palmas em [03:14] e [03:24], per-
segundo plano, com manipulação da velocidade de repro- cussão esparsa em metal entre [04:05] e [04:36], percus-
dução. Hermeto, sempre liderando o grupo, declama frag- são mais rítmica em [04:42] e como um “rulo” em [04:47]
mentos em português em [00:38], [00:52], [01:46], [02:17], e [04:49]. Essas vozes e percussões “oitavadas”, estrate-
[03:40], [04:10], [04:18], [04:35] e [04:37]). Esses fragmen- gicamente distribuídas ao longo da forma musical, criam
tos, quase sempre são seguidos de livres e esporádicas tra- uma atmosfera não-terrena crescente e apropriada para
duções para o inglês por outra voz masculina, possivelmente a sugestão de um ritual místico: lembram vozes do além,
a de Airto Moreira (pode-se observar que é um brasileiro sons de aves, de crianças, risadas, gritos, vocalizes agudís-
quem fala pela escorregadela na gramática da língua ingle- simos, glissandi etc. Devemos ter em mente que, na época
sa “everybody can express [sic] myself” em [02:12]). As falas da gravação do disco (inal da década de 1970), os recur-
femininas são de Flora Purim, notadamente uma em inglês sos tecnológicos de manipulação sonora ainda estavam
e outra em português. Airto Moreira, junto com Flora Purim, mais próximos da herança da inal da década de 1940,
foi quem ciceronou e parece ter sido o porta-voz de Hermeto deixada pelos pais da música concreta – os franceses Pier-
na sua estadia nos Estados Unidos (Hermeto aparentemente re Schaeffer e Pierre Henri (EMMERSON e SMALLEY, 2001,
falava pouco inglês na época). p.60) - e ainda distantes do advento, em 1983, do proto-
colo MIDI no processamento de eventos e sinais sonoros
Repetidas e atentas audições de Cannon permitiram a (EMMERSON e SMALLEY, 2001, p.61) e das facilidades
anotação dos seguintes trechos de fala sem manipulação de manipulação sonora dos modernos softwares (como
de alturas, ainda assim sujeita a erros, pois nem sempre a técnica de alterar o andamento sem alterar as alturas,
são audíveis e há uma grande superposição de sons ma- por exemplo). Assim, para muitos dos ouvidos de hoje, a
nipulados e não manipulados, além de mudanças de canal porção eletro-acústica de Cannon pode soar “datada”, e
e seu efeito de espacialização: lembrar antigas trilhas de ilmes ou seriados de TV que,
psico-acusticamente, relacionamos com seres alienígenas
- em [00:03]: (Voz masculina) “quem falou?”; (ou, no contexto da obra, espíritos desencarnados).
- em [00:38]: (Hermeto) “o que você fez aqui . . . todos os lugares”
- em [00:45]: (Voz masculina [Airto Moreira?]) “forever” Para tentar reconhecer o conteúdo das falas e outros
- em [00:52]: (Hermeto) “o que você fez aqui, continua fazendo sons “oitavados”, reduzimos a velocidade de reprodução
muito mais”
- em [01:00]: (Voz masculina) “forever”
em 25% e 50%, o que permitiu notar que a maioria dos
- em [01:19]: (Voz masculina) “I think I´m going to see you. . .I am efeitos foi, de fato, feita com o aumento de 100% da
sure I´ll see you” velocidade do sinal original, um recurso de realização

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

bastante simples e muito utilizado por compositores de em português, que lidera o grupo: “o que você fez até
música concreta desde a década de 1950. aqui. . . todos os lugares” em [00:38], “o que você fez aqui,
Abaixo, segue uma listagem de trechos de sons (falas e continua fazendo muito mais” em [00:52], “vejo em você
percussão) manipulados e superpostos que puderam ser uma alegria imensa, sem im” em [01:46], “você conforta
compreendidos por meio da redução da velocidade de re- todas as vidas deste mundo” em [02:17], “como é linda,
produção de Cannon: linda, a sua alma” em [03:40], “agora você está bastante
livre para andar por todos os lugares. . . pelos rios(?)“ em
- em [00:27]: (Hermeto “oitavado”) “o que você fez aqui. . . con-
[04:18], “estou gostando deste trabalho” em [04:35]. Ou,
tinua fazendo muito mais”
- em [00:45]: (Hermeto “oitavado”) “você chegou” então, nas interações quase imediatas e fragmentadas
- em [00:47]: (Voz masculina “oitavada”) “meu dedo!” em inglês, na voz de Flora Purim: “I think I’m going to try
- em [01:02]: (Voz masculina “oitavada”) “viagem, malandro, prá again. . . slow” (“acho que vou tentar de novo. . . devagar”)
São Francisco. . .(outra voz) de corpo presente”; em [01:39]. Mas, principalmente (e possivelmente) na voz
- em [01:11]: (Voz masculina “oitavada”, aboio) “Háh!”
de Airto Moreira: “forever” (para sempre) em [01:00], “I
- em [01:38]: (sons guturais), (Hermeto “oitavado”): ”vamos falar
mais coisas!” think I´m going to see you. . .I am sure I´ll see you” (“acho
- em [02:02]: (voz masculina “oitavada”) “saco de batata assada” que vou ver você. . .tenho certeza que vou ver você”) em
- em [03:15]: (vozes em risos, cânticos, sons de aboio “oitava- [01:19], “I don’t know. . . what to say. . . to you” (“não sei
dos”) “Hei!.Hei!. . .Heia!...Heia!..”; o que dizer a você”) em [01:24], “a friend” (“um amigo”)
- em [03:38]: (voz masculina “oitavada”) “let’s go! (?)”
em [01:34], “forever” (para sempre) em [02:43], “every-
- em [03:57]: (voz masculina “oitavada”) “abre o livro” (repetida
3 vezes) body can express [sic] myself” (“todo mundo pode se ex-
- em [04:20]: (aboio, cantos, percussão em metal, Hermeto “oi- pressar”) em [02:12], “how beautiful. . . beautiful... is your
tavado”) “Eita!” soul!” (“que linda, linda é a sua alma!”) em [03:57], “toda
- em [04:45]: (voz masculina“oitavada”) “pode acender” (repeti- a vida You ´ll be always here” (toda a vida você estará
da 3 vezes)
sempre aqui) em [04:21], “Now. . . you are free!” (“agora
- em [05:07]: (voz masculina“oitavada”) “pode acabar”
- em [05:10]: (voz masculina“oitavada”) “deixa que eu mato” você está livre!”) em [04:32].

A repetição de frases completas (“o que você fez aqui”


Percebe-se claramente que algumas das falas não têm
aparece três vezes, sendo uma vez “oitavada”) e recor-
relação direta com o tema da sessão espírita de Cannon.
rência de algumas palavras (“alegria”, “alma”, “vida”,
São frases comuns do dia-a-dia dos estúdios, como possí-
“friend”, “forever”, “free” etc.) contribui não apenas para
veis falas sobre a necessidade de silêncio e concentração
criar a atmosfera mística, mas também para, composi-
no início dos takes de gravação (“quem falou?” [00:03]),
cionalmente, dar unidade à obra. Tanto a lauta quanto
um teste de microfone (“som!” em [03:42]), a satisfação
os sons pré-gravados acontecem, boa parte do tempo, de
musical na gravação (Hermeto: “estou gostando deste
forma declamatória. Embora o clima seja de improvisação
trabalho“ em [04:36]), um comentário sobre detalhes da
(Flora airmou que foi assim, como vimos acima), Herme-
gravação (Hermeto: “mas é isso aí!” em [04:10] “o negó-
to exerce um grande controle sobre os materiais temá-
cio é que. . . “ em [04:37]), possível referência ao hábito
ticos (harmônicos, melódicos, rítmicos, de articulação e
dos músicos de comerem ou fumarem dentro do próprio
tímbricos) que utiliza, como veremos mais à frente. Por
estúdio (“saco de batata assada” [02:02] ou “deixa que eu
isso, a repetição de materiais temáticos tanto na lauta
mato” em [05:10]), a necessidade de deslocamento entre
quanto no emprego dos sons pré-gravados parece reme-
cidades da Califórnia (“viagem, malandro, a São Francis-
ter a uma complexa e estruturada improvisação motívica.
co...de corpo presente” em [01:45]; observamos que o dis-
co estava sendo gravado na cidade de Los Angeles; note
Além das vozes, Hermeto utiliza a manipulação de ou-
que, ao dizer “corpo presente”, um dos presentes utiliza
tros sons pré-gravados, adicionados ao canal principal da
um vocabulário religioso). Essa habilidade de Hermeto
lauta, como elemento uniicador de Cannon. As “batidas
de transformar qualquer som em música é característica
de coração”, por exemplo, que seriam um dos sinais da
desde a sua infância (BORÉM e ARAÚJO, 2010, p.22-42,
vida depois da morte de Cannonbal e uma prova de sua
nesse volume de Per Musi) e relete a “. . . coragem de
comunicação com Hermeto e seus músicos, recorrem cin-
experimentar com todo e qualquer tipo de música. . .” de
co vezes (veja Ex.5 à frente), pontuando todas as seções
que fala Flora PURIM (1977).
da forma musical (a forma A (ba) B A’ Codetta é explica-
da mais à frente no Ex.5 e no texto que o precede):
Mas Hermeto utiliza, na maior parte de Cannon, os sons
da fala (e também vocalizes e percussão) manipulados, que
Seção A: nos c.7-15; em [00:35-01:15]; dur.40’
parecem guardar uma relação direta com o assunto da mú-
Ponte ba: nos c.45-55; em [02:47-03:07]; dur.22’
sica, seja dando orientações de performance para o grupo
(continua na Seção B)
(“vamos falar mais coisas” em [01:38]), seja em detalhes
do possível ritual (“abre o livro”, repetido três vezes em Seção B: nos c.56-68 (continuação da Ponte ba); em
[04:57] e “pode ascender”, repetido três vezes em [04:45]). [03:07-03:29]; dur.22’ e nos c.83-124; em [03:43-
04:26]; dur.43’
Esta relação texto-música ica mais evidente na utiliza- Seção A’: no c.140; em [04:45:-04:46]; dur.1’ (uma
ção de sons não manipulados, na voz Hermeto Pascoal, batida só!)

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

Codetta: nos c.143; em [05:00-05:13]; dur.13’, as “batia- bém se destacou no hard bop e free jazz, foi pioneiro das
ds de coração” inalizam a música sozinhas práticas de música concreta na música popular, colabo-
rou com Cannonball Adderley e veio a falecer no ano de
Outro elemento uniicador em Cannon é a recorrência de lançamento do disco de Hermeto.
materiais cromáticos (algumas vezes causando instabili-
dade modal) em pontos de articulação importantes, no A sonoridade e técnica característica de Hermeto Pasco-
início ou inal das seções da forma: al na lauta pode ser apreciada no espectrograma mos-
trado no Ex.2: (1) uma composição de parciais muito
Seção A: o início (c.1-9) e inais (c.30-33) quase-atonais regular, em que pode ser observada uma frequencia fun-
(veja Ex.6 e Ex.7, à frente); damental mais forte que os harmônicos superiores, (2)
Ponte ba: a escala cromática descendente completa, uma sonoridade non vibrato, caracterizada pela ausên-
próximo ao inal (c.51-55; veja Ex.9, à frente); cia de oscilação detectável de frequencia ou intensidade
Seção B: apojaturas cromáticas e terças cromáticas no espectrograma) e (3) uma “nuvem” de frequências
descendentes próximas ao inal (c.117-124; veja Ex.10, agudas, que indicam ruídos de ar característicos do som
à frente) e cromatismo Mi-Mib-Ré ao inal (c.137-138); de lauta de Hermeto Pascoal. Ainda no Ex.2, pode-se
Seção A’: modalismo instável em toda a seção (c.139- observar, no solo de lauta sem acompanhamento, a
142; veja Ex.11, à frente); maneira particular com que ele termina algumas notas
Codetta: bicorde de segunda menor Lá-Sib sustentado abruptamente (como a 1ª nota - em anacruse, a 3ª e a 6ª
por 10 segundos (c.143; veja Ex.12, à frente). notas, logo no início da peça).

Do ponto de vista instrumental, Hermeto toca a Em relação às técnicas instrumentais expandidas da lau-
flauta em uma posição mais diagonal em relação ta, Hermeto utiliza glissandi (c.6, 10-11, 13-14, 16,22-26,
ao corpo (menos horizontal; mais confortável, se- 28, 34, 58, 69-72, 140-142) e multifônicos de oitava (c.5,
gundo ele) com uma embocadura relaxada (que re- 18, 79 e 89) e de terça maior (c.29), esporadicamente
sulta em sonoridades com mais ar, conhecidas com inseridos na linha melódica. Utiliza também a técnica do
soffio ou sons eólios) e quase sempre sem vibrato, humming extensivamente, desde o c.31 (em [02:15], pró-
seguindo uma tradição que se consolidou na música ximo ao inal da Seção A) até o inal da obra, ou seja, du-
popular brasileira a partir do modelo do canto liso rante exaustivos 2’58”, o que é um dos grandes desaios
e declamado deixado por Mário Reis (GIRON, 2001, na performance desta obra. Pierre Yves-Artaud, uma das
p.240) na década de 1930 e reafirmado por João mais destacadas autoridades da lauta contemporânea,
Gilberto na década de 1960 (GIRON, 2001, p.17). descreve os quatro tipos de humming na lauta: (1) pe-
Hermeto prefere utilizar outros efeitos expressivos dal na lauta com melodia na voz; (2) pedal na voz com
(como diversos tipos de glissando, crescendi súbitos), melodia na lauta; (3) lauta e voz em uníssono ou em
contrastes de articulação (como o staccato e o mar- oitavas e (4) o mais difícil, lauta e voz com melodia inde-
cato), timbres (como a aproximação da fala humana) pendentes o qual “. . .é extremamente complexo e requer
e técnicas expandidas (como multifônicos e diversos um controle perfeito” (ARTAUD, 1995, p.119). Hermeto
tipos de humming). demonstra toda sua genialidade como compositor e in-
térprete realizando esses vários tipos de humming (dois
Uma importante referência que Hermeto Pascoal pode ter dos quais são mostrados no espectrograma do Ex.3). E vai
encontrado na sua viagem aos EUA, ou antes dela, por além, realizando o humming nasal e um longo humming
meio de gravações, é a música revolucionária do multi- em terças paralelas. Abaixo, seguem as ocorrências e ti-
instrumentista cego de jazz norte-americano Rahssan pos de humming de Hermeto Pascoal em Cannon:
Roland Kirk (1935-1977), na qual explorou técnicas ins-
trumentais expandidas e técnicas de estúdio como uma Seção A:
ferramenta composicional. Na lauta transversal (que - humming com a lauta em movimentos contrários
também tocava assoprando pelo nariz) se destacou como (c.31-32);
um pioneiro do humming, se tornando o modelo para im- - humming nasal sem o som da lauta (três primeiras no-
portantes seguidores como Jeremy Steig, Thijs van Leer tas do c.33);
e Ian Anderson da banda Jethro Tull (RAHSSAN, 2010). - humming em uníssono com a lauta (c.33-35);
Rahssan também tinha um lado místico, como ilustra o
nome de seu disco I talk with the spirits (Limelight; Nola´s Ponte ba:
Penthouse Sound, 1964). Na faixa de mesmo título, as- - humming em uníssono com a lauta (c.36-50);
sim como Hermeto em Cannon, RAHSSAN (1964) começa - humming cromático descendente com pedal na lauta
com uma quinta justa ascendente (Mi-Si), sem vibrato, (c.51-55);
e utiliza a linguagem modal (pentatônica em Sol). As-
sim como Hermeto em Cannon, Rahssan também utiliza Seção B:
o humming extensivamente, embora quase sempre com - humming em uníssono com a flauta (c.55-91);
a voz dobrando as mesmas notas da lauta. Fechando o - humming em terças paralelas com a lauta (c.91-94);
conjunto de similaridades e coincidências, Rahssan tam- - humming em uníssono com a lauta (c.95-103);

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

“Nuvem” de
frequências
agudas

Fundamentais fortes
e sem vibrato

Interrupções
entre notas

Ex.2- Espectrograma mostrando a sonoridade de Hermeto Pascoal na lauta no início de Cannon: composição de
harmônicos muito regular, ausência de vibrato e “nuvem de frequências agudas (medidas no eixo vertical em Hz).

- humming em terças paralelas com a lauta (c.104-116); REIRA, 1977). No seu texto de apresentação desse disco,
- humming em portato paralelo a com pedal da a cantora Flora Purim fala sobre a “transcrição” que Ruy
flauta (c.117-118) Pereira realizou “nota por nota” (PURIM, 1977). A trans-
- humming em terças paralelas com a flauta crição publicada em 1977 não é completa e, na verdade,
(c.119-124); apesar de desenhada por Ruy Pereira (que não tinha for-
- humming em uníssono com a flauta (c.124-138); mação musical), foi feita pelo próprio Hermeto, segundo
nos informou Jovino SANTOS NETO (2009).
Seção A’:
- humming em uníssono com a flauta (c.139-142); Para comparar a versão da partitura publicada na capa
interna do disco com a gravação, foi necessário “desenro-
Codetta: lar” os 124 compassos do desenho da partitura espiralada.
- humming em uníssono com a flauta e depois Depois, a partir da audição da gravação, foi possível veri-
descendente com icar que faltavam 19 compassos na partitura do disco (os
a lauta em pedal (c.143). c.47-55, referentes a um trecho lento em que a voz faz
um humming em uníssono com a lauta e, depois, faz um
3 – Análise do contexto, partitura e perfor- humming cromático descendente, enquanto a lauta se-
mance de Cannon gura um pedal em Sol), o que deixa Cannon com 143 com-
Para a parte interna da capa do LP Slaves Mass, o artis- passos, de fato. Além disso, a gravação permite perceber
ta plástico Ruy Pereira criou um desenho artístico que que há muitas simpliicações e discrepâncias na partitura
inclui uma pauta em espiral com um coração no centro original. Por exemplo, não foi anotada nenhuma das vozes
(Ex.4), na qual está notado parcialmente o solo de lauta (em uníssono, em movimento contrário ou em movimen-
de Hermeto Pascoal na música Cannon (PASCOAL e PE- to contra um pedal sustentado) decorrentes da utilização

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

humming nasal Flauta + humming


em uníssono
Flauta + humming em
movimento contrário

Ex.3 - Espectrograma com dois dos vários tipos de humming realizados por Hermeto Pascoal em Cannon: (1) humming
e voz em movimentos contrários (c.31); (2) humming em “uníssono” (c.33; na verdade, em oitavas paralelas, devido à
transposição da voz uma oitava abaixo).

Ex.4 – Partitura espiralada de Cannon desenhada por Ruy Pereira a partir da transcrição de Hermeto Pascoal
no LP Slaves Mass (PASCOAL e PEREIRA, 1977).

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

de humming por Hermeto. Finalmente, há muitas notas, Uma análise formal de Cannon revela uma obra alta-
ritmos, métricas e sinais gráicos inconsistentes, equivo- mente estruturada e uniicada. Embora a escrita um
cados ou difíceis de serem lidos. A partitura completa de tanto rapsódica de Cannon possa sugerir uma suces-
Cannon, reconstruída em detalhe com base na gravação de são de eventos desconectados, especialmente com a
Hermeto de 1977, está publicada no presente número de superposição de diversas camadas sonoras (com vozes
Per Musi, às p.80-82 (PASCOAL e BORÉM, 2010). soli declamadas em português e inglês; vozes faladas
ou cantadas coletivas e manipuladas em segundo plano;
Flora Purim ainda acrescenta que a transcrição de Can- percussões manipuladas em segundo plano) sobre o solo
non “. . .levou seis horas. . .” porque foi uma experiência da lauta (e lauta com humming), sua forma pode ser
de total improvisação. A inalidade foi de se preparar uma descrita como uma forma canção A (ponte ba) B A’ Co-
sessão espiritual e tentar comunicação com Cannonball. detta, sendo que a ponte ba é construída com materiais
Alguns de nós o fez [sic.] com muito sucesso” (PURIM, temáticos contrastantes das Seções B e A. Esta forma
1977). Comentando este episódio, o jornalista Aramis ternária em arco é apropriada para emular o caráter
MILLARCH (1977), amigo de Airto Moreira, conirma que progressivo e em arco de uma sessão espírita – (1) o
teria ocorrido contato gradual e crescente, (2) o clímax, e (3) a despe-
dida gradual e decrescente. As Seções A e B apresentam
“. . . ‘uma verdadeira sessão de espiritismo realizada no estúdio’ muitos contrastes entre si em relação ao andamento,
segundo o relato que o próprio [Airto] Guimorvan [Moreira] nos
prestou na semana passada. Hermeto, Hugo Fattoruso, Raul de
métrica, articulações, materiais harmônicos e contor-
Barros [sic; Na verdade, trata-se do trombonista Raul de Souza, no melódico. Na gravação do disco Slaves mass, os 143
cujo nome de nascimento era João de Souza e foi mudado por compassos de Cannon duram 5’13’’. O Ex.5 apresenta
sugestão de Ary Barroso], Laudir de Oliveira, Airto e Flora Purim uma esquema gráico detalhado com as seções formais,
- que participaram da faixa, sentiram algo de espiritual ocorrer,
como se a alma de Julian ‘Cannonball’ Adderley (1928-1976),
seção áurea e os principais eventos da obra, com indica-
grande amigo de todos os músicos participantes da sessão e a ções de número de compasso e timings.
quem a faixa era dedicada, tivesse ‘baixado’ sobre eles. . .”

± 2/3 ± 1/3

0 1 2 3 4 5

Ι Ι Ι Ι Ι Ι
-----Ι-----Ι----- Ι -----Ι-----Ι----- ----Ι-----Ι----- Ι -----Ι-----Ι----- ----Ι----Ι----- Ι -----Ι-----Ι---- ----Ι-----Ι----- Ι -----Ι-----Ι---- ----Ι----Ι----- Ι -----Ι----Ι---- -----Ι--
Linha do tempo (divisões de 10 em 10 seg.)

Seção A Ponte ba Seção B Seção A’ Coddeta


Forma (materiais temáticos contrastantes

c.1 c.36 c.56 c.139 c.143


[00:00] [02:37] [03:07] [04:40] [04:57] [05:13]

Harmonia modal
c.1 ----------------------- c .10 ------------------------- c.27 ------ c.30 ---------c.36--------------- c.56----------------------- c .95 ------------- c .139------ c.143
Instáv el -------------------Sol Dóri co/ -----------------Sol E ó l i o / ---i nstáv el ------Sol Eólio -------- Sol Eólio ---------------- Sol Dórico------- i ns táv el --- ins tável
Eólio Menor Harm.

An damento
c.1
Lento ad libitum Rápido/Ad libitum/Lento Rápi do, dançante Lento ad libitum

Sons pré-gravados

c.1 c.7 c.15 c.40 c.56 c.58 c.83 c.124 c.140 c.143
v oz es -- -x - - - - x- xxxxx- - - - - - - - -xxxxxxxxxxxxx xxx x- - - - - - - - - xxx- - - xx - - - - - - - - - - - - - - - - - - - xxx - xxxx- -xxxxx - - - - - - - - - - - - - -

v oz es
mani pul adas- - - - - - - -- - - x- - - - - - - - -xxx- - - - -xx- -xx - -xx - xx- - - - - - - x - -xx - xxx- -xxxxxxx -xxxxxxxxxx -xxxxxxxxx x - - - - - - - - - -xxx- -

bati das de c oração - - xxxxxxxxxxxx- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -xxxxxxxxxxx xxx xx- - - - -xxxxxxxxxxxxxxxx xx - - - - - x- - - - xxxxxx

c.1 c.87 c.143

Ex.5 – Esquema gráico analítico de Cannon de Hermeto Pascoal


(seções formais, seção áurea e principais eventos com timing e número de compassos aproximados)

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A Seção A (c.1-35; [00:00-02:37]; dur. 2’37’’), dentro um efeito que tanto pode lembrar as performances pro-
do programa do obra (uma sessão espírita musical), po- gramáticas dos pífanos nordestinos, quanto as primeiras
deria ser chamada de “Preparação para o contato com técnicas da música eletro-acústica (ainal, além do solo
o mundo espiritual”. É em andamento Lento ad libitum, de lauta, tudo o mais em Cannon foi construído com téc-
o que lhe confere um caráter de recitativo, com métrica nicas de estúdio), como tocar a ita gravada de trás para
quaternária na maior parte do tempo (há dois compas- frente em um decrescendo. A Seção A termina instável
sos 5/4 e um 3/4). Harmonicamente, é caracterizada por harmonicamente (Ex.7), mais ainda do que no início, de-
uma grande instabilidade modal inicial, em que os cen- vido à sucessão de quartas justas descendentes Láb-MIb,
tros modais passageiros de Lá, Sol, Mib, Ré, Fá, Sib, Láb, Si-Fá#, Lá-Mi, Dó#-Sol#, que “resolvem” em dois tríto-
Fá, Dó e Sol se sucedem em um curto espaço de tempo nos: Sol#-Ré e Fá#-Dó (c.30). O trecho inal da Seção A
(c.1-12; Ex.6), gerando um ambiente quase-atonal. As (c.31-35; [02:15-02:37]) contém um dos momentos mais
frases, que sugerem um legato cantabile, exibem con- delicados de Cannon e pode ser descrito como uma ”reza”
tornos melódicos com saltos e intervalos incomuns para íntima de Hermeto Pascoal. Apenas ele participa, ainda
a música popular. que realizando três vozes diferentes (c.31-32): (1) uma
declamação suave e sincronizada com (2) uma melodia
Em seguida, no trecho central da Seção A, observa-se ascendente na lauta e (3) um baixo cromático descen-
maior estabilidade harmônica, embora não ocorra uma dente em humming na lauta (veja Ex.3 acima).
deinição de um centro modal, mas sim uma polarização,
que primeiro oscila entre Sol Dórico e Sol Eólio (c.10-26) Nos trechos modalmente mais instáveis da Seção A, a
e, depois, entre Sol Eólio e Sol menor harmônico (c.27-29). articulação é em legato cantabile com muitos saltos me-
Digno de nota neste trecho é o crescendo inalizado com lódicos, com frases típicas da música erudita atonal. Nos
ataque brusco e respiração na nota Dó do c.44, criando trechos de polarização modal, a articulação também é em

Ex.6 - Início da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e portamenti, articulação
emulando swing e instabilidade modal.

Ex.7 – Final da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: contorno melódico com saltos e instabilidade modal.

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legato, mas há grande recorrência de graus conjuntos que de “Contato inicial entre o mundo terreno e o mundo
se organizam em gestos virtuosísticos mais prováveis de espiritual”. É uma combinação de materiais temáticos das
serem encontrados em cadenzas da música erudita tonal Seções B e A (Ex.9) e se divide em três pequenas partes. A
(Ex.8), como as volates em arco que saem do grave para primeira (c.36-44; [02:37-02:45]; dur. 0’08’’) é uma ante-
o agudo e retornam ao grave (c.13-16, 20-21, 27, 28-29). cipação da Seção B (que se inicia no c.56), tonalmente es-
A tessitura da Seção A é mais ampla de todas, compreen- tável em Sol Eólio, com seu andamento rápido, sem swing,
dendo duas oitavas e uma quinta justa (Dó3 a Sol5). Ainda ritmo repetitivo e dançante, tessitura restrita e articulação
dignas de nota, e ocorrendo no primeiro compasso da mú- em marcato. O crescendo inalizado com ataque brusco
sica, são a nota inicial Lá, que também será a última nota e respiração que havia ocorrido antes no c.17 da Seção
da música (superposta a um Sib!, como veremos à frente) A, volta a se repetir no c.44. A segunda parte (c.44-46;
e a articulação tipicamente hermetiana em staccato (nas [02:45-02:55]; dur. 0’10’’) é um amálgama de caracte-
1ª, 3ª e 6ª notas, veja Ex.2 acima), já simulando a articu- rísticas da Seção A (a cadenza com volates ascendente e
lação do swing do jazz (em que as notas de apoio são um descendente) e da Seção B (o andamento rápido e a arti-
pouco mais longas) e, assim, antecipando a comunicação e culação em marcato). A terceira parte, (c.47-55; [02:55-
homenagem ao jazzista e amigo Cannonball Adderley (sa- 03:07]; dur. 0’12’’) é uma recordação da Seção B, com seu
xofonista, mas também lautista, como Hermeto), falecido andamento Lento e frases em legato cantabile de contorno
um ano antes da gravação do disco. Outra referência a esta melódico com saltos. O cromatismo ao inal é um elemento
comunicação que vai se estabelecer é o surgimento da pri- articulador da forma que Hermeto lança mão nesta e nas
meira de uma série de cinco batidas de coração, que ocorre outras seções de Cannon. As vozes superpostas retornam,
em [00:35]. As vozes superpostas (“oitavadas” ou não; em continuam e se intensiicam na Seção B.
primeiro ou segundo planos), tornam-se mais presentes no
meio da Seção A e regridem ao inal da mesma. A Seção B (c.56-138; [03:07:04:40]; dur. 1’33’’), que tem o
mesmo caráter Alegre (embora não marcado por Hermeto
A Ponte ba (c.36-55; [02:37-03:07]; dur. 0’30’’), que tem na partitura original) do início da Ponte ba, poderia ser cha-
a notação Alegre de Hermeto na partitura original (a única mada de “Comunhão entre o mundo terreno e o mundo
indicação de andamento, por sinal), poderia ser chamada espiritual”. Ela epitomiza o encontro das culturas musicais

Ex.8 - Parte central da Seção A em Cannon de Hermeto Pascoal: escrita virtuosística erudita sugerindo cadenza.

Ex.9 – Materiais temáticos nas três partes da Ponte ba em Cannon de Hermeto Pascoal, derivados das Seções A e B.

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do nordeste (a embolada e o repente de Hermeto Pascoal) e da tônica Sol3 e das dominantes Ré3 e Ré4. A insistência na
dos Estados Unidos (o jazz de Cannonball Adderley), como repetição de notas, associadas à imitação da voz do repen-
mostra o trecho no Ex.10. É em andamento Dançante, rít- tista nordestino no humming em terças paralelas com a
mico, com um light swing, com articulação em marcato voz, faz referência aos gêneros da embolada e do repente.
e métrica ternária na maior parte do tempo (apesar de se As vozes superpostas e percussões se intensiicam ao longo
iniciar com um provocante 7/4 + 3/4). Harmônica e me- de toda a Seção B e continuam na Seção A’. Mas talvez o
lodicamente, é caracterizada por uma grande estabilidade evento mais importante na Seção B seja a sincronização
modal em Sol Eólio (c.56-94) e Sol Dórico (c.95-138), o temporária (como são os contatos entre médiuns e almas
que pode nos remeter tanto ao modalismo nordestino (SI- desencarnadas) entre a lauta de Hermeto e as “batidas
QUEIRA, 1981) ou, no jazz, à herança modal dos históricos de coração” de Cannonball (c.87-90, [03:47, 03:52]). Esta
discos Milestones (1958) e Kind of blues (1959) de Miles sincronização ocorre, proporcionalmente, a cerca de 2/3 da
Davis (KERNFELD, 1988, v.1, p.273; v.2, p.116-117). Esta es- duração da obra e coincide com a seção de maior atividade
tabilidade modal é enfatizada pelo humming da voz e lau- rítmica. Assim, percebe-se que a construção do clímax da
ta simultâneas de Hermeto em terças paralelas (c.91-94 e obra segue a proporção áurea (veja Ex.5 acima).
c.104-124). Além do swing, as blue notes Réb e Fá natural
(c.107-108) são outro elemento jazzístico nesta seção em A Seção A’ (c.139-142; [04:40-04:57]; dur. 0’17’’), que
que a alma do norte-americano faz contato com os brasi- chamaríamos de “Volta ao mundo terreno”, poderia
leiros. A tessitura é mais estreita, o que é típico nas danças ser entendida como uma coda, mas seu contraste com
populares: uma oitava e uma quinta justa (Dó3 a Sol4), com os materiais temáticos que a antecedem (Seção B) e o
suas frases gravitando na maior parte do tempo em torno signiicativo retorno ao clima inicial da obra conirmam

Ex.10 – Trecho da Seção B em Cannon de Hermeto Pascoal: encontro dos gêneros repente/embolada (ritmo dançan-
te com notas repetidas, modalismo com tessitura estreita, imitação da voz do repentista nordestino no humming em
terças com a lauta) e jazz (light swing, blue notes, modalismo pós-Miles Davis).

Ex.11 – Seção A’ em Cannon de Hermeto Pascoal: recapitulação de materiais temáticos da Seção A.

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o fechamento em arco da forma (e da sessão espírita “batidas de coração”, o mesmo coração (de Cannonball
musical) de maneira sintética. Como ocorre na Seção A Adderley?) que Ruy Pereira colocou no centro da espiral
inicial e em apenas quatro compassos, temos aí o mes- de sua partitura artística (veja. Ex.4 acima).
mo andamento Lento ad libitum, a mesma instabilidade
modal, a métrica quaternária, o cantabile das frases em Do ponto de vista da orquestração da lauta e da voz
legato e os contornos melódicos com saltos (Ex.11). As utilizada no humming na lauta, Cannon utiliza tessituras
vozes superpostas e percussões continuam em toda a amplas, mais comuns na música erudita. A lauta vai des-
Seção A’ e adentram na Codetta. de sua nota mais grave, o Dó3 (c.17, 26, 28, 46, 76, 100,
123, e142) até um Sol5 (c.14), ou seja, uma extensão de
O último compasso pode, pela sua natureza comple- duas oitavas e uma quinta justa, o que é pouco comum
xa e concentração de eventos e signiicados musicais, na música popular. A voz cantada de Hermeto Pascoal,
ser considerada uma Codetta (c.143; [04:57-05:13]; que na partitura publicada neste número de Per Musi
dur.00’16’’). Observa-se aí a recapitulação não apenas (p.80-82), foi anotada na clave de Sol, mas soa sempre
da forma em arco de Cannon, mas também de eventos uma oitava abaixo, vai, em som real, desde o Sol1 (c.55)
importantes que ocorreram ao longo da obra (Ex.12). até o Sol3 (c.33), ou seja, uma extensão de duas oitavas,
Está presente a mesma nota Lá3 do início da música pouco comum tanto no canto da música popular quanto
(humming + lauta) que, em seguida, sobe para o Síb3, no humming erudito prescrito por ARTAUD (1995, p.119).
lembrando o cromatismo que permeou todas as seções.
Depois, o ambiente modalmente instável se instala com 4- Análise do continuum separação-fusão pa-
o movimento oblíquo entre a lauta (que permanece no radoxal de Cannon por Luiz Costa-Lima Neto
Síb3) e o humming da voz (que retorna para o Lá3). Este Como toda obra complexa, Cannon permite múltiplas
bicorde de segunda menor é sustentado como pedal por leituras analíticas. Luiz Costa-Lima Neto, um dos mais
cerca de 10 segundos. Sobre este pedal, cresce a profu- importantes pesquisadores sobre a música de Hermeto
são de vozes “oitavadas”. Também retornam as “batidas Pascoal (veja seu artigo O cantor Hermeto Pascoal: a voz
de coração”. Este adensamento de texturas se dá por vol- como instrumento neste número de Per Musi às p.44-
ta de 2/3 da duração da Codetta, espelhando também a 62; COSTA-LIMA NETO, 2010a), já havia se interessado
proporção áurea da obra como um todo, que ocorreu na em investigar Cannon pelos seus lados exótico, no qual
Seção B (veja Ex.5 acima). Após crescerem, as vozes ma- identiicou “sons de pássaros” - e místico, no qual iden-
nipuladas desaparecem com glissandi em fading. Depois, tiicou a “voz do próprio Hermeto, como se estivesse re-
no exato inal de Cannon, restam apenas umas poucas zando” (COSTA-LIMA NETO, 2008, p.11). Consultado so-

Ex.12 – Codetta em Cannon de Hermeto Pascoal: um único compasso com recapitulação da forma em arco da obra, de
sua seção áurea e de materiais temáticos das Seções A e B.

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bre nossa reconstrução e edição da partitura de Cannon, genialidade e dom de Hermeto Pascoal para transformar
e sobre a pertinência de possíveis dados extra-musicais qualquer som em música, como falas e ruídos, mesmo
na sua gravação, Luiz Costa-Lima Neto nos propõe uma aqueles gerados no cotidiano, às vezes sem nenhuma re-
análise etnomusicológica com base no que chama de lação com o programa ou materiais temáticos da obra.
“continuum separação-fusão paradoxal” (COSTA-LIMA
NETO, 2009), a qual apresentamos aqui em primeira Podemos caracterizar Cannon como uma música fun-
mão. Ele desenvolveu esta ferramenta metodológica a cional, cujo objetivo foi prover uma sessão espírita para
partir da observação da fala de Hermeto Pascoal e sua Hermeto Pascoal e seus companheiros brasileiros nos
percepção poiética do imaginário, da maneira como “so- Estados Unidos se comunicarem com o recém falecido
brepõe pólos opostos. . . até fundi-los. . .”, gerando um músico norte-americano Cannonball durante a grava-
conjunto integrado de quatro fases inter-relacionadas, ção do disco Slaves mass em 1977. Por outro lado, Can-
que pode ser constatado “. . . tanto nas peças improvisa- non apresenta uma construção complexa, mais comum
das como nas composições escritas.” na música erudita, cujas proporções apresentam uma
estrutura em arco cujo clímax e principal sincronicidade
Para ele, Cannon pode ser compreendida como uma forma (quando os duplos Hermeto/lauta e Cannonball/“batidas
binária AB, precedida de introdução e inalizada por uma de coração” entram em fase) coincidem com a seção áu-
coda. Do ponto de vista ritualístico, o ouvinte passaria rea da obra. Mais do que isso, a complexidade de Can-
por uma preparação da sessão espírita (introdução; c.1- non é aparente em níveis mais locais em toda a obra,
6), que levaria à busca e estabelecimento de contato com com a exploração de melodias de grande tessitura, sal-
o espírito desencarnado (A; c.7-55), que levaria ao transe tos e volates, a utilização de uma linguagem modal ins-
da incorporação (B; c.56-138) e que, inalmente, levaria tável que beira o atonalismo e a bi-modadidade, de téc-
a um retorno da consciência (coda; c.139-143). Na pri- nicas instrumentais avançadas (harmônicos, glissandi,
meira fase de Cannon, que chama de Separação, COSTA- timbres ruidosos) e expandidas (multifônicos de oitava
LIMA NETO (2009) identiica a abertura da sessão espírita e terça, vários tipos de humming).
(c.1-6; [00:00-00:35]), com uma “prece sem palavras”,
realizada apenas pela lauta solo. Na segunda fase, que O gradual acréscimo dos sons pré-gravados, manipula-
chama de Melodia ou embolada de opostos [numa alu- dos ou não, sobre a improvisação na lauta, é de tal
são ao gênero nordestino], o contexto ritualístico sugere ordem organizado que estimula o ouvinte, ao longo da
uma invocação espiritual (c.7-55; [00:35-03:07]) coletiva forma, à sensação de presenciarem um ritual espíri-
do “doutrinador” (Hermeto Pascoal) com a ajuda dos ou- ta completo, em que o doutrinador e demais médiuns
tros “médiuns” (demais músicos presentes na gravação, primeiro rezam, depois entram em transe, no clímax
citados anteriormente) que criam uma “Atmosfera lúdi- encontram com a alma que procuram (Cannonball Ad-
ca. . . positiva. . . adequada ritualmente à sessão espírita derley), a tranquilizam e, inalmente, se despedem para
musical”, em que “os opostos estão se aproximando...”. A retornarem ao mundo terreno. Do ponto de vista da
terceira fase, que chama de Harmonia de opostos, (c.56- instrumentação, podemos ainda associar os sons não
138; [03:07-04:40]) equivaleria ritualmente ao clímax e manipulados (lauta, hummings, vozes declamando em
transe do contato e incorporação espiritual: em meio à português e inglês) ao mundo terreno e os sons mani-
multitude de efeitos instrumentais e vocais, convivem o pulados (falas, risadas, gritos, vocalizes e percussão “oi-
sonhar e o estar acordado, a consciência e a inconsciên- tavados” pelo dobramento da velocidade de reprodução
cia, os espíritos encarnados e os desencarnados; as blue da ita gravada) ao mundo espiritual.
notes indicariam “. . .que o espírito do jazzista Cannon-
ball Adderley ‘baixou’...” e que se liberta (“Agora você está Cannon é bem ilustrativa da linguagem eclética e híbri-
bastante livre para andar em todos os ares, em todos os da de Hermeto Pascoal. Podemos observar, nesta obra,
mundos, now you’re free!...”). Na quarta fase, que chama sua abertura para uma música sem fronteiras entre o
de Fusão paradoxal, (c.139-143; [04:40-05:13]) equiva- popular e o erudito, sem fronteiras entre os estilos ti-
leria ao fechamento da sessão espírita, há um retorno à picamente nacionais (embolada, repente) e estrangeiros
atmosfera inicial, mas diferente pelas reminiscências do (jazz, a cadenza do concerto clássico, música concreta).
transe atingido na terceira fase: A soisticação da escrita composicional e idiomática de
Hermeto Pascoal para a lauta, juntamente com sua cria-
“. . .movimento de relaxamento (parcial) e, simultaneamente, re- tiva integração dos recursos expressivos eletro-acústicos
tenção do tensionamento. . .. . . o estado de vigília é parcialmente
ao seu conteúdo programático, criam um grande sentido
restabelecido, mas a consciência e a inconsciência não estão sepa-
radas como na fase inicial, pois foram unidas e englobadas por uma de unidade em Cannon que, por si só, deveria resgatá-la
instância supraconsciente, espiritual, o ‘Outro-eu transcendente’ do ostracismo para fazer parte, ao lado de outras obras
(conceito cunhado pelo etnomusicólogo inglês John Blacking).” primas ains do repertório solístico da lauta – como
Syrinx (1913) para lauta solo de C. Debussy, Density 21,5
5- Considerações inais (1936) para lauta solo de E. Varèse e Synchronisms N.1
Cannon é uma obra pioneira na música popular brasileira, (1962) para lauta solo e tape com sons sintetizados de
até onde sabemos, por ser a primeira utilizar a manipula- Mario Davidovsky -, seja esse repertório erudito, popular
ção e utilização de sons pré-gravados em estúdio junto a ou, como nos ensina a natureza universal de Cannon e
um solo instrumental. Mais do que isso, é um retrato da Hermeto Pascoal, popular-erudito.

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BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

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voz e porcos), Raul de Souza (trombone e voz), David Amaro (violão, guitarra e viola de doze cordas), Ron Carter (con-
trabaixo acústico), Alphonso Johnson (contrabaixo elétrico), Chester Thompson (percussão), Hugo Fattoruso (voz),
Laudir de Oliveira (voz). WEA/Warner: BS2980, 1977. (LP)
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diretoria geral de cultura, 1981.
VILLAÇA, Edmiriam Módolo. O Menino Sinhô, vida e música de Hermeto Pascoal para crianças. Ilustrações de Rosinha
Campos. Carta de Zélia Gaia. São Paulo: Ática, 2007.
ZWARG, Itiberê. A música universal. In: www.itibereorquestrafamilia.com.br. 2009a (Acesso em 20 de janeiro, 2009).

Referências de partitura
PASCOAL, Hermeto; BORÉM, Fausto. Cannon (dedicada a Cannonball Adderley) para lauta, humming na lauta e sons
pré-gravados. Partitura transcrita e editada por Fausto Borém a partir da gravação do compositor no disco Slave Mass
(1977). Per Musi, n.22. Belo Horizonte: UFMG, 2010. p.80-82.
PASCOAL, Hermeto; PEREIRA, Ruy. Cannon (Partitura transcrita por Hermeto Pascoal e desenhada por Ruy Pereira). In: Sla-
ves Mass (capa interna do LP). Hermeto pascoal (voz, piano, Fender Rhodes, violão, lauta doce e transversal, saxofone
e clavineta), Flora Purim (voz), Airto Moreira (percussão, voz e porcos), Raul de Souza (trombone e voz), David Amaro
(violão, guitarra e viola de doze cordas), Ron Carter (contrabaixo acústico), Alphonso Johnson (contrabaixo elétrico),
Chester Thompson (percussão), Hugo Fattoruso (voz), Laudir de Oliveira (voz). WEA/Warner: BS2980, 1977. (LP)

Referências de gravação
PASCOAL, Hermeto. Cannon. In: Slaves Mass. Hermeto pascoal (lauta e voz) com participações vocais de Flora Purim,
Airto Moreira, Hugo Fattoruso, Raul de Souza e Laudir de Oliveira. WEA/Warner: BS2980, 1977. (LP)
RAHSAAN, Roland Kirk. I talk with the spirits. Limelight, Nola´s Penthouse Sound, 1964 (LP re-masterizado como CD de
áudio; fragmento sonoro disponível em www.amazon.com/Talk-Spirits-Rahsaan-Roland-Kirk)

Notas
1 Segundo VILLAÇA (2007, p.59) e PRADINES (2006), Hermeto Pascoal teria escrito mais de 4.000 músicas até 2007.
2 O nome “Cannonball” é uma corruptela do apelido “cannibal”, uma referência ao grande apetite do músico Julian Adderley na infância (KERNFELD,
1988, p.5).
3 Hermeto Pascoal é um dos mais reconhecidos multi-instrumentistas da história da música popular. É mais conhecido como virtuoso da sanfona, fole
de oito baixos, piano, lautas e saxofones. Entretanto, tem demonstrado sua versatilidade e virtuosismo em muitos outros instrumentos convencio-
nais, entre eles teclados eletrônicos diversos, harmônio, cravo, órgão, escaleta, lauta de bambu, bombardino, luguel, trumpete, violão, cavaquinho,
viola caipira, bandola, craviola, clavinete, bateria, surdo caixa, surdo, zabumba, pandeiro, pratos, triângulo – e em instrumentos exóticos, objetos e
animais, como bocal de tuba, sapho, garrafas, berrante, assovio, buzinas, apitos, brinquedos, chaleira, máquina de costura, baldes, bacias, panelas,
garfos, facas, balas, ruídos e gritos da voz, mangueira com voz, porta do estúdio, iefone, porcos, gansos, perus, galinhas, patos e coelhos (PASCOAL,
2009a, 2009b).
4 Seção áurea é a divisão de uma linha em duas partes de maneira que a proporção do segmento menor para o segmento maior é igual à proporção
do segmento maior para a somatória dos dois segmentos. Os segmentos equivalem a 0.618 e 0.382 do todo, o que é aproximadamente 2/3 e 1/3.
Esta proporção é também encontrada com bastante aproximação na Série Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13 etc.). Para outros exemplos do uso da seção
áurea em música veja o livro Bela Bartók: An Analysis of His Music (Lendvai, 1971) e o artigo Bartók, Lendvai and the Principles of Proportional
Analysis (Howat, 1983).
5 Para uma discussão aprofundada sobre a substituição histórica do portamento pelo vibrato na música erudita veja LEECH-WILKINSON em Per Musi,
n.15 (2007, p.7-25).
6 Há muitas discrepâncias entre a transcrição de Cannon por Hermeto publicada na capa interna de Slaves mass (1977) e a gravação da música no
mesmo disco. Algumas das diferenças relevantes são: dúvidas na notação de notas (Lá3 ou Dó4 no c.13; acidentes nos Lás do c.27; Si natural, Fá#
e Lá natural no c.30; Fás no c.85; falta um bequadro no c.111; seria um bemol no Si do c.124?), notação simpliicada de vozes, efeitos e dinâmicas
(nenhuma voz realizada em humming é anotada; efeitos como glissandi e multifônicos não são anotados; observa-se apenas um crescendo no
c.6), diferenças na notação de notas, ritmos e métrica (mínima no c.32; colcheias no c.83; quaternário nos c.119 ou 120; fusas do c.15 anotadas
com quiálteras; fusas dos c.20-21 anotadas como semicolcheias; sextinas do c.29 simpliicadas como colcheias; omissão de várias notas no c.30;
omissão de um grande trecho lento - c.47-55 - em que há um humming cromático descendente com o pedal da lauta em Sol; o c.69 é anotado
como um compasso quaternário, quando o correto é um ternário; semicolcheias do c.133 simpliicadas como uma colcheia), inconsistência na
notação da forma (repetição no c.88).

78
BORÉM, F; GARCIA, M. F. Cannon de Hermeto Pascoal: aspectos musicais e religiosos... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.63-79.

Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou o
Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem um
livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise, mu-
sicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de partituras
e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos prêmios no
Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo Ma, Midori,
Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos populares como
Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta, Juarez Moreira, Ta-
vinho Moura, Roberto Corrêa e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazilian Music for the Double Bass, o CD e DVD
O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com
Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling (com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos)
e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com o saxofonista Daniel d´Olivier).

Mauricio Freire Garcia é Professor Adjunto da UFMG, onde já atuou como Diretor da Escola de Música e Diretor Adjunto
de Relações Internacionais. Graduado pela mesma instituição em 1987, é o único lautista a receber o título de Douto-
rado, com honras, no New England Conservatory, EUA. Desde 2003, tem atuado como 1º. Flautista Solista convidado da
OSESP. Trabalhou com importantes compositores como Thea Musgrave, Ezra Sims, H. J. Koellreuter e Eduardo Bértola
atuando no Boston MusicaViva, um dos principais grupos de música contemporânea dos EUA, e no Grupo de Música
Contemporânea da UFMG. Já se apresentou nas principais salas do país além dos EUA, Europa e América do Sul. Em
Boston se destacou como solista junto à Boston Chamber Music Society, o New England Conservatory Bach Ensemble e
Contemporary Ensemble. Em 2005, apresentou-se ao lado do pianista Nelson Freire no Festival Piano aux Jacobins em
Toulouse, França. Mantém, desde 1998, duo com o pianista Miguel Rosselini, com quem realizou uma série de recitais na
Alemanha em 2008 e gravou um CD, lançado em 2009. Suas gravações incluem a Suíte em Si menor de Bach, Suite for
Flute and Jazz Piano de Claude Bolling, Choros de Abel Ferreira e diversos CDs com a OSESP.

79
PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para lauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.

Cannon
(dedicada a Cannonball Adderley)
para flauta, humming na flauta e sons pré-gravados
Hermeto Pascoal
Transc. e Ed. Fausto Borém
[00:27]
[Hermeto oitavado:

b¥ O
[Lento, ad libitum] "O que você fez aqui. . ."]

j œ .. œ. ˙ j b˙ U
bœ œ bœ bœ œ
[voz: "Quem falou?" + vozes no fundo]

5
[00:00] [00:01]

Flauta & 4 œ. R œ œ. c ˙ œ. œ
> bœ œ b œ œ œ bœ b œ . J b˙
[Hermeto oitavado: ". . . continua [00:38]
[00:35]

,
[Hermeto: "o que você fez


fazendo muito mais"]

b œ. b œ œ œ œ œ b œ œ. ≈ b œ bœ
[00:29] ["coração batendo" inicia, aqui. . . todos os lugares"]

œ œ. bœ bœ bœ œ
6

œ œ bœnœ œ nœ
assíncrono com a música]

& œ œ
3
> u[00:42]
[00:47] [00:52]

∫ œ. b œ b œ. œr >œ œ
[00:45] [voz oitavada: [01:00] [voz masculina
[voz oitavada: [Hermeto: "O que você fez aqui...

œ œ œ b œ. œr œ
"você chegou"] (Airto Moreira?): "Forever!"]

bœ œ œ ˙ bœ œ œ œ œ
[vozes oitavadas] "meu dedo!(?)"] continua fazendo muito mais"]

œ œ ˙.
9

& œ œ œœ
œ bœ
bœ œ

[voz oitavada: "viagem prá [voz oitavada:

œ œ . œ œ œ œ . ,œ œ œ . œ œ œ
[voz oitavada:

--
São Francisco, malandro. . ."] ". . .de corpo presente"] [01:11] (aboio) "Hah!"] ["coração batendo" cessa]

œ bœ œ œ œ
r
bœ. œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ
[01:02]
œ
œ œ
[01:04]

& bœ nœ œ œ œ
13

[01:24] [voz masculina:

œ
[01:19] [Voz masculina: "I think I´m going


"I don´t know... what to say. . . " ]

&œ œ œ. b œ œ . j 43 # œ j œ bœ c œ bœ œ œ œ œ œ œ
to see you. . .I am sure I´ll see you"]

œ bœ. j
r
16 [01:30]

J u œ œ. œ. J #œ œ.
, ,
[voz masculina:

. . . .
[01:34] [voz masculina:
œ
[01:38]

œ
". . .to you"] [01:39]

® œ œ œ 3 œ œ œ. œ œ. œ œ n œ. œ œ. œ œ œ. œ.
[01:46][Hermeto: "Vejo em

œ œ bœ
"a friend"] [Hermeto oitavado: [Flora Purim: "I think

j j
"vamos falar mais coisas."] você uma alegria . . ."]

. .
I´m going to try again. . . slow"]

b œ c b œ j b œ ‰
20

& 4 œ bœ. œ œ bœ.


[voz masculina: "Forever"]

√ √‰ œr j
[Flora Purim:

, [01:55]
[Hermeto: ". . imensa [Flora Purim: vocalize oitavado]
vocalize oitavado] [percussão] Rall.
œ ‰ rœ
. . . sem fim!]

¥ 45 ≈ ¥ œ bœ œ œ b œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ c
[01:48] r r r œ bœ œ œ œ
œ œœœœœœ œœœ œœœ
& œ. œ ˙ œ bœ œ œ œ.œ
24 [01:56] etc.

œ bœ œ. œ #œ bœ #œ
J J b˙ > J œ . Jœ
œœ
.
√ U. U .vocais sibilados] [02:12] √
[Flora Purim:

œ . œ b ¥œ œ b œ œ œ œ. œ œ. œ b œ.
[02:02] [02:08] [percussão: sons

bœ œ
vocalize oitavado]

œ
[voz oitavada: "saco

œ œ bœ
acelerando
œ
œ .œœ œ. j œ
[Flora Purim:
vocalize oitavado]b œ . œ œ œ
de batata assada"]

œ
&c œ œ œb œ œ n œ# œ œ # œ # œ ‰
œ
œ
28 etc.

œ œ œb œ œ nœ œ œ #œ Jnœ
. . . . . 3. . . . . . uu
u . .. >3 > 3
6

[voz masculina: "everybody


can express [sic] myself"]

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 10/12/2009 - Aprovado em: 18/02/2010
80
PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para lauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.

[02:17] [Declamação sincronizada com flauta + humming] [02:29]

Œ
[Hermeto: vo - cê con-for -ta to - das as vi - das des - te mun do Humming

≈ Œ ‰ ≈ ≈ .
nasal

3

¿ ¿ ¿ ¿¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿œ ¿ ¿ j ‰ œ œ Humming + flauta em uníssono 3


œ bœ œ. œ œ œ œ ˙
# œ˙ œ . b œ œ œ ‰ Œ ‰ b Jœ œ œ œ b œ ˙
31

&˙ n˙ 4
J.
Humming * (voz descendente) + flauta (voz ascendente)
u
[02:37] Alegre [02:43]
U>j > > > > > > > > >
[Rápido, rítmico, sem swing]

[voz masculina: "forever"]

j
[marcato sempre] [02:40]

3 œ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ bœ
& 4 b œJ ‰ ‰ Jœ œ œ
35 [Flora Purim: "Êh, Brasil..."] [vozes oitavadas (aboio)]

œ œ ˙. œœœ œ ˙ œœ
. Humming + flauta em uníssono sempre
[02:47]

, [02:45] ["coração batendo" inicia,

˘
[vozes oitavadas

bœ œ œ œ œ œ
U
assíncrono com a música]

œ
cada vez mais presentes]

3
[Ad libitum]

c b œ œ
42

&œœœœœ ˙. ˙ œœ bœ œ œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ 4
[vozes oitavadas
œ. u u
(aboio) "Eh!"]

[02:55] [03:15] [risadas oitavadas]


[Lento] Humming (voz descendente ) com pedal (flauta)

& 4 œ œ œ œ b œ œ œ œ œ b œ œ œ ˙ .œ # œ n œ œ̇ .b œ œ # œ̇ .n œ
3 7
47

. ˙. 4
œ b œ̇ œ b œ ˙ .
[03:15]

,
[03:07] ["coração batendo" continua]

> > > > , 7 œœ >


[na 2a vez: percussão esparsa (palmas );

7 œ œ j j 3 j j 3
[Dançante, rítmico, light swing] 1
.. œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ 4 ˙. ..
56 aboio oitavado: "Hei!.Hei!. . .Heia!...Heia!.."]

&4 œ œ b œ œ
. 4 ˙. 4 œ œ
. .
>> > > > > > > [marcato sempre]
Humming + flauta em uníssono sempre

O. œ œ œ œ œ
,
œ œ œ œ œ œ
œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ˙.
60 2.

&˙ œ
[sempre dançante]

, ^
‰ œj œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ^
["coração batendo" cessa] [vozes oitavadas cada vez mais intensas]

& bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ ˙
66

bœ œ ˙

,
[03:38]

.

œ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ
œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ œ
72 [voz oitavada: "(?) "Let's go!" (?)]

O ,
[Hermeto: "Como é linda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . linda. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a sua alma"

nœ œ œ œ œ œ œ
œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ ˙ œ
[03:40] [voz masculina: "som!"]

& bœ œ œ œ œ ˙
78
r
œ
. ["coração batendo" inicia,

* Humming: vocalizar notas dentro do bocal da flauta; assíncrono com a música]

a voz de Hermeto Pascoal soa sempre uma oitava abaixo.

81
PASCOAL, Hermeto. Partitura de Cannon (dedicada a Cannonball Aderley), para lauta... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.80-82.

.
[03:47]

œ œ œ bœ œ bœ œ œ œ œ jb œ œ jb œ œ O œ
["batidas de coração" sincronizadas com a flauta]

œ œ œ bœ œ œ œ bœ œ
85

& œ œ œ. œ œ. œ
¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿ ¿
[03:52]
Humming (1a.voz) + flauta (2a. voz)
> > > > > > > >
[vozes oitavadas:
em terças paralelas [03:57] "Abre o livro!" (3x)]

Œ . b œj œ œ b œ . œj œ œ b œ . œj œ œ b œ œ œ œ b œœ œ j œ nœ œ œ œ œ œ œ
["batidas do coração" tornam-se assíncronas]

b œ œ
[voz masculina: "How beautiful. . . . ."

& œ. œ œ œ œ. œ œ œ œ. œ œ œ œ œ œ œ œ .
œ. œ œ œ œ œ
91

J J J J Humming + flauta em uníssono

[04:04] Humming (1a.voz) + flauta (2a. voz)

b œœ œœ œœ œœ b œœ œœ b ˙˙ ..
em terças paralelas

& œ bœ œ œ œ œ œ œ œ œ œ nœ œ œ œ œ œ ˙.
[". . .beautiful. . . . ."] [". . . is your soul . . . ."]

œ œ œ œ bœ œ ˙.
98

[vozes oitavadas soam [04:10]


[percussão em metal oitavada]
como risadas de bebês] [Hermeto:". . . mas é isso aí"]

œ œ œ œ œ œ œ b œœ œœ b œœ œœ œœ œœ b œœ b ˙ . b œœ œœ œœ œœ b œœ œœ b ˙˙ ..
& b œœ œœ œœ œœ b œ œ œ œ œ œ œ
106

˙.
[04:18]

¯ ¯ ¯ ¯ ¯ ¯
[Hermeto: "Agora você está bastante livre para andar. . ."]

œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ œ
& b œœ œœ œœ œœ b œœ œœ b ˙˙ .. œ
b œœ œœ œœ œœ b œ œ b œ œ œ œ œ b œ œ œ
œ œ œ œ b œ b œ̇ œr œ œr œ
112

œ bœ œ œ œ œ
. R ˙.
r r

[04:16] [Humming portato +


[04:19] [Flora Purim: [voz masculina: "toda a vida flauta legato em terças]

˙.
[Hermeto: " . . .por todos [voz

#˙.
oitavada:

´
vocalize oitavado] you´ll be always here"]
os lugares. . . . .pelos rios (?)"] "Eita!"] ["coração batendo" cessa]

j j
[04:20] [04:21] [Rítmico] [marcato sempre]

œ. œ bœ œ œ œ ‰ œ bœ œ
119

& œœ b œœ œœ œœ œœ œœ b ˙˙ ..
[Legato]

˙˙ .. # ˙˙ .. b n ˙˙ .. ˙˙ œ
Humming + flauta em uníssono

& œ œ œ œ œ œ bœ œ œ bœ œ œ œ œ œ bœ œ œ œ œ œ œ bœ œ
127

œ œ œ œ œ œ
[04:37]

œ^ . œ^ . ,
[04:32] [voz masculina: [04:35] [Hermeto:"estou gostando deste trabalho"]
œ̈ œ^ œ œ b œ œ b œ œ œ œ œ ˙ U
[Hermeto:"o negócio é que..."]
"Now. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . your are . . free ..."]

Πc
132

&œ œ œ œ œ œ œ bœ œ ˙.

[04:45] [voz oitavada:"pode ascender (3x). . . vai"]

> > > [som de metal >j


[04:57]
>j
[04:42] [percussão oitavada] Flora Purim: [vocalise oitavado]

¿ ¿ , oitavado] ‰ ¿æ
[04:40] [Lento] 3 [04:47] [humming + flauta:

¿ Ó U
3 3 3

‰ ¿æ œ œ œ œ œ œ œ œ
de uníssono para 2a. menor]
[Ad libitum , cantabile]

c b œ œ b œ n œb œ œ œbœ œ œ œ bœ ˙˙ ..
[05:13]

& œ œ œ œ bœ
139

> ["coração batendo",. J # œ , nœ ˙.


u
flflflfl fl uma pulsação só]
Rall. u [falas e gritos oitavados]
[cresc. - - - - fading + gliss.]
Cannon foi gravada e transcrita por Hermeto Pascoal no disco [05:03] ["coração batendo" inicia. . . cessa sozinho]
Slaves Mass (1977). Esta edição completa foi revisada e editada [05:07] [voz oitavada:"pode acabar"]
por Fausto Borém (2010), a partir da gravação e da partitura [05:10] [voz oitavada:"deixa que eu mato!"]
espiralada desenhada por Ruy Pereira na capa interna do disco.

82
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.

Canção do Amor Demais: marco da música


popular brasileira contemporânea

Liliana Harb Bollos (Faculdade de Música Carlos Gomes, EMESP Tom Jobim, São Paulo, SP)
lilianabollos@uol.com.br

Resumo: Discussão sobre a importância do LP Canção do Amor Demais dentro do panorama da cultura brasileira, mais
do que do âmbito da música popular em si, a partir do texto de Vinícius de Moraes na contracapa do disco e da crítica de
José da Veiga Oliveira. A fronteira existente entre o popular e erudito ica menos evidente neste disco, por conta do alto
grau composicional das canções e pelos arranjos assinados por Jobim, tendo em vista que ali se deu a apresentação de
João Gilberto em disco e da batida do violão que iria simbolizar a Bossa Nova.
Palavras-chave: Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Morais; João Gilberto; José da Veiga Oliveira; Música Popular Bra-
sileira; Jornalismo Cultural; Cultura Brasileira.

Canção do Amor Demais [Song of Too Much Love]: a milestone in contemporary Brazilian po-
pular music

Abstract: This article discusses the importance of the LP Canção do Amor Demais (Song of Too Much Love) within the
panorama of Brazilian culture, much more than simply within the area of popular music itself. As the a starting point,
this discussion uses the LP’s liner notes by Vinícius de Moraes and the critique by José da Veiga Oliveira to demonstrate
that the existing border between popular classical music become less evident with this album. This is due to the high
compositional quality of the songs and arrangements by Tom Jobim, the introduction of João Gilberto and the guitar
rhythms that would come to symbolize bossa nova.
Keywords: Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Morais; João Gilberto; José da Veiga Oliveira; Brazilian Popular Music;
Cultural Journalism; Brazilian Culture.

1. Introdução
É sabido que a Bossa Nova surgiu no cenário musical bra- “Chega de Saudade” (Jobim/Moraes) e “Outra vez” (Jo-
sileiro em meados de 1958 com a canção Chega de Sau- bim). Pela primeira vez a batida que simbolizaria a bos-
dade (Antônio Carlos Jobim/Vinícius de Moraes), inter- sa nova estava sendo gravada, porém a forma de cantar
pretada pelo cantor e violonista João Gilberto e foi alvo de Elizete Cardoso era ainda convencional, a acentuação
da primeira grande manifestação de crítica de música rítmica das sílabas tônicas sempre se dava nos tempos
popular nos jornais brasileiros. Muitos autores também fortes e o uso do vibrato ainda persistia. Essa caracterís-
mencionam a importância do LP Canção do amor demais tica vocal da geração do samba-canção que João Gilberto
(Festa, FT1801) da cantora Elizete Cardoso, por causa da passou a abolir a partir de sua volta ao Rio de Janeiro
participação de João Gilberto ao violão nesse disco. Mas em 1957, seria utilizada por ele no início de sua carreira,
esse disco nos trouxe algumas outras características im- quando chegou à capital federal para integrar o grupo-
prescindíveis para que entendamos o fenômeno Bossa vocal Garotos da Lua como o novo crooner em 1950.
Nova dentro do panorama da cultura brasileira, mais do
que do âmbito da música popular em si. A forma com que o violão foi tocado, simpliicando
o samba e ao mesmo tempo fazendo uso de harmonia
A cantora Elizete Cardoso fora convidada por Vinícius de mais soisticada e densa, provocou uma reação imediata
Moraes e Tom Jobim para participar do projeto idealizado de músicos, críticos, e também da gravadora Odeon, que
pelo proprietário do selo Festa, Irineu Garcia, de unir a instantaneamente convidou Gilberto a gravar o seu pri-
música e a poesia de ambos em disco. João Gilberto já meiro single, com “Chega de Saudade” de um lado e “Bim
se apresentava na noite carioca em 1957 e Jobim, que Bom” (João Gilberto) do outro, poucos meses depois do
icara impressionado com o som inovador do cantor baia- disco da cantora. Em sua coluna para o Diário Carioca,
no, convidou Gilberto para participar do disco da canto- em 29/01/1965, Vinícius de Moraes relata o nascimento
ra, acompanhando-a ao violão em duas faixas do disco: da canção “Chega de saudade”:

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 07/07/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
83
BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.

Um samba todo em voltas, onde cada compasso era uma queixa de (acompanhado de contrabaixo e bateria) e a nova sono-
amor, cada nota uma saudade de alguém longe. Mas a letra não vi- ridade adquirida pelo violão. Com isso, o violão toma o
nha. Fiz 10, 20 tentativas. Uma manhã, depois da praia, subitamente a
resolução chegou. Queria, depois dos sambas do Orfeu, apresentar ao lugar do piano, criando uma sonoridade “nacional”, brasi-
meu parceiro uma letra digna de sua nova música: pois eu realmente leira, marca de um estilo inconfundível que João Gilberto,
a sentia nova, caminhando numa direção a que não saberia dar nome a partir de “Chega de Saudade”, consagrou.
ainda, mas cujo nome já estava implícito na criação. Era realmente a
bossa nova que nascia, a pedir apenas, na sua interpretação, a divisão
que João Gilberto descobriria logo depois (MORAES, 29/01/1965). No entanto, ainda hoje ouvimos que a batida do violão é
que chamou a atenção no disco Canção do Amor Demais,
Não por acaso o LP Canção do Amor Demais teve uma e não as composições ou tampouco os arranjos do disco.
importância fundamental para a música brasileira. Além Na verdade, nesses arranjos tão pouco comentados é que
do violão de Gilberto nas duas faixas, todos os arranjos estão a chave da renovação. Jobim preferiu conferir um
do disco levam a assinatura de Tom Jobim, ainda desco- caráter quase camerístico ao disco de Elizete Cardoso,
nhecido da grande mídia, apesar de ter musicado a peça simpliicando sua instrumentação, fazendo uso de pou-
de teatro Orfeu da Conceição de Vinícius de Moraes em cos instrumentos, abrindo, assim, espaço para o violão em
1956, alcançando prestígio e reputação. O que causou algumas músicas. Notemos que as treze canções do disco
espanto, ainal, neste disco? Alguns músicos comenta- possuem orquestrações muito diferentes uma das outras,
vam sobre a “batida” diferente do violão de Gilberto, sendo que algumas canções foram interpretadas quase a
porém, a recepção do disco foi bastante tímida, com a capela, acompanhadas somente de piano e contrabaixo.
exceção do texto de José da Veiga Oliveira, estampado Nessa época, os pesados arranjos orquestrais eram base-
no “Suplemento literário” do jornal O Estado de S.Paulo, ados em uma voz condutora acompanhada por uma or-
razão pela qual acreditamos que os músicos eram os mais questra que lhe servia de base, ou seja, não havia um jogo
interessados naquele disco, e não a crítica. contrapontístico de vozes e instrumentos que pudessem
participar do arranjo, como foi o caso desse disco.
Quando o cantor e violonista João Gilberto lançou o seu
primeiro single com “Chega de Saudade” e “Bim Bom”, Assim, a transição do samba tradicional para a bossa
ainda em 1958, poucos meses depois de ter participado nova fazia-se presente não somente na batida do violão
do LP de Elizete Cardoso, o público imediatamente no- de Gilberto, mas sobretudo na voz ritmicamente conven-
tou a originalidade, ou pelo menos, a estranheza daquela cional da cantora contrastando com os arranjos econômi-
música, quando as rádios começaram a tocar. O impacto cos de Jobim, sintetizados nesse disco com uma harmonia
que essa música provocou foi enorme, considerada um densa, rica, difícil, considerada pelos opositores como in-
verdadeiro divisor de águas, gerando as primeiras críti- luência direta do jazz americano. Infelizmente, poucos
cas jornalísticas, mas também inluenciando o estilo de críticos perceberam que a inluência benéica desses ar-
compor de vários músicos. Em pouco tempo o cantor ranjos veio também de grandes músicos brasileiros, como
baiano impôs um novo padrão estético à música popular Villa-Lobos, Cláudio Santoro, Léo Perachi, Radamés Gna-
brasileira, inventando um diálogo entre a voz e o vio- talli e também do professor de Jobim, H. J. Koellreutter e
lão, transformando o violão em instrumento participante de outros grandes compositores universais como Chopin,
do processo criativo e não somente um “acompanhante” Debussy e Ravel, para citar somente três.
da voz, tão comum na época. A batida que ele imprimiu,
desde a sua primeira gravação com Elizete Cardoso no Muito embora consideremos que a música erudita, de
LP Canção do amor demais, foi decisiva para que muitos modo geral, foi uma inluência mais signiicativa em Tom
jovens se interessassem em tocar esse instrumento. Jobim do que em outros músicos da bossa nova, a relação
desses dois ambientes musicais – erudito e popular - se
O próprio poeta Manuel BANDEIRA disse que “para nós propagou por toda a obra jobiniana. Portanto, não há como
brasileiros, o violão tinha que ser o instrumento nacional, reduzir o trabalho composicional ou pianístico de Jobim
racial” (1955, p. 8). Ao contrário do piano, introduzido somente dentro dos parâmetros da música popular, se é
nas casas da alta classe média no século dezenove, o vio- que realmente podemos fazer algum julgamento neste
lão foi escolhido pela classe menos favorecida, eviden- sentido, mas é sabido que Jobim foi aluno de piano de Lú-
temente por ser mais barato e portátil, transformando- cia Branco e Tomás Terán, além de ter estudado harmonia
se no instrumento mais signiicativo da música popular com Hans Joachin Koellreuter. Este último airmou que ele
brasileira, percorrendo o choro, o samba, a bossa nova, teria passado a Jobim noções de harmonia e contraponto
com desenvoltura, durante todo o século XX. João Gil- clássicos e “rudimentos de execução pianística”, pois o que
berto, por sua vez, conseguiu com que o violão migrasse interessava ao professor era dar ao aluno uma instrução
também para a classe média, impondo ao violão um lugar “globalizante” (KOELLREUTTER apud Cabral, p.45).
não somente nas rodas de samba, mas também nas casas
de concerto. Vimos, a partir de Gilberto, que o violão co- 2. O disco Canção do amor demais revisitado
meçou a ser utilizado na música norte-americana, muitas por Vinícius de Moraes
vezes substituindo o piano como instrumento harmônico O repertório do disco, como já dissemos, é todo composto
predileto, criando uma contraposição clara entre os gru- de músicas da parceria Jobim-Vinícius, porém, das treze
pos de jazz, que têm o piano como instrumento central canções do disco, nove (“Chega de saudade”, “Caminho de

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pedra”, “Luciana”, “Janelas abertas”, “Eu não existo sem Nova e Outras Bossas - A Arte e o Design das Capas dos
você”, “Estrada branca”, “Vida bela”, “Modinha”, “Canção LPs de Caetano RODRIGUES e Charles GAVIN (Viva Rio/
do amor demais”) são parcerias de Jobim e Vinícius de Petrobrás), justamente sobre este assunto. No caso dos
Moraes, duas (“Serenata do adeus”, “Medo de amar”) são LPs, além do trabalho gráico interessante, apareceram os
composições somente de Vinícius e duas (“As praias de- textos de apresentação nas contracapas dos discos. É o
sertas”, “Outra vez”) pertencem somente a Jobim, o que caso de Vinícius de Moraes que apresenta o disco de Eli-
reforça que o projeto estava focado na obra de Vinícius zete Cardoso, expondo de forma carinhosa o projeto, as-
e Jobim e não na cantora Elizete Cardoso, convidada por sim como Tom Jobim faz a apresentação no disco Chega
eles para integrar o projeto. A contracapa do disco tam- de Saudade de João Gilberto. Aliás, nesse disco apareceu
bém merece destaque, pois há um texto de Vinícius de palavra bossa nova duas vezes, numa época em que ainda
MORAES que elucida bem o projeto da parceira, transcri- não se sabia como chamar aquela nova música. Na letra
to parcialmente abaixo: de “Desainado” (“isto é bossa nova, isto é muito natural”)
e no texto de Jobim em que ele airma que “João Gilberto
Dois anos são passados desde que Antonio Carlos Jobim (Tom, se
preferirem) e eu nos associamos para fazer os sambas de minha
é um baiano “bossa-nova” de vinte e seis anos. Em pou-
peça “Orfeu da Conceição”, de que restou um grande sucesso po- quíssimo tempo, inluenciou toda uma geração de arran-
pular, “Se Todos Fossem Iguais a Você” e, sobretudo, uma grande jadores, guitarristas, músicos e cantores” (JOBIM, 1959).
amizade. (...)

Este LP, que se deve ao ânimo de Irineu Garcia, é a maior prova que
Chamamos a atenção ainda para as palavras de Vinícius
podemos dar da sinceridade dessa amizade e dessa parceria. (...) de Moraes, quando este se refere às composições de Can-
ção do amor demais como sambas e canções, ainal, no
Nem com este LP queremos provar nada, senão mostrar uma etapa decorrer de sua evolução, o samba tem recebido caracte-
do nosso caminho de amigos e parceiros no divertidíssimo labor
de fazer sambas e canções, que são brasileiros mas sem naciona-
rísticas próprias da evolução de seu tempo, de sua gente,
lismos exaltados, e dar alimento aos que gostam de cantar, que é de seus intérpretes, de seus músicos, então, nada mais
coisa que ajuda a viver. natural que ele se reira a sambas, quando o andamento
da composição for mais rápido e a canções para músicas
A graça e originalidade dos arranjos de Antonio Carlos Jobim não
constituem mais novidade, para que eu volte a falar delas aqui.
mais lentas. O importante, para Vinícius, é “mostrar uma
Mas gostaria de chamar a atenção para a crescente simplicidade e etapa do caminho de amigos e parceiros no divertidíssi-
organicidade de suas melodias e harmonias, cada vez mais libertas mo labor de fazer sambas e canções, que são brasileiros,
da tendência um quanto mórbida e abstrata que tiveram um dia. O mas sem nacionalismos exaltados” (MORAES, 1958), essa
que mostra a inteligência de sua sensibilidade, atenta aos dilemas
do seu tempo, e a construtividade do seu espírito, voltado para os
dimensão menos historicista e mais estética que ele an-
valores permanentes na relação humana (MORAES, 1958). teviu, o que realmente iria acontecer com o lançamento
do disco Chega de saudade de João Gilberto.
Vinícius reitera o motivo pelo qual Elizete Cardoso foi esco-
lhida para fazer esse trabalho, muito embora tenha sido Do- Certamente Canção do amor demais foi um marco da
lores Duran convidada primeiramente, mas acabou pedindo música popular brasileira contemporânea, tanto pela
um cachê alto demais para o humilde selo Festa (CASTRO, concepção moderna e inventiva dos arranjos e composi-
2002, p. 176). Nesse sentido, a escolha por Elizete veio ao ções, quanto pela participação de Jobim, Vinícius e João
encontro do gosto dos compositores, uma vez que Dolores Gilberto na concepção e confecção do disco. No entan-
era a escolha de Irineu Garcia, dono do selo. Em seu texto, to, não nos esqueçamos de que não foi por acaso que
Vinícius expõe com cuidado que o tipo de voz dela “respira esses três artistas foram considerados os mentores de
acima do popular”, assim como a música do disco: uma nova proposta musical que estava surgindo, uma vez
que a obra (o disco) que eles realizaram era uma busca
Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida de renovação. E, talvez, por conta da repercussão desse
para cantar este LP. É claro que, por ela interpretado, ele nos
acrescenta ainda mais, pois ica sendo a obra conjunta de três disco, que se tornou o disco de apresentação da bossa
grandes amigos; gente que se quer bem para valer; gente que nova, João Gilberto gravaria o single “Chega de Saudade”
pode, em qualquer circunstância, contar um com o outro; gente, e “Bim bom”, alguns meses mais tarde.
sobretudo, se danando para estrelismos e vaidades e glórias. Mas
a diversidade dos sambas e canções exigia também uma voz par-
ticularmente ainada; de timbre popular brasileiro mas podendo Assunto que tem inspirado muitas polêmicas e discussões,
respirar acima do puramente popular; com um registro amplo e tanto por parte de entusiastas quanto de opositores, a bos-
natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experien- sa nova surgiu de uma série de acontecimentos e inluên-
te, com a pungência dos que amaram e sofreram, crestada pela
cias, como qualquer outra obra artística nova, impregnada
pátina da vida. E assim foi que a Divina impôs-se como a lua para
uma noite de serenata (MORAES, 1958). de novas características renovadoras advindas de várias
fontes. Como não dizer que o jazz, sobretudo o cool jazz,
Uma tradição que se formou a partir dessa época da Bos- inluenciou e muito os músicos brasileiros que deram ori-
sa Nova é que os encartes dos long-playng eram verda- gem a esse movimento? Mas alguns músicos brasileiros
deiras obras de arte, contendo fotos e gravuras de artis- da chamada Época de Ouro, como Custódio Mesquita ou
tas plásticos, herança do Modernismo, época em que Di Ary Barroso, também tomaram conhecimento da música
Cavalcanti, Tarsila do Amaral, entre outros, desenharam americana e tampouco foram questionados quanto às suas
várias capas de livros. Em 2005 foi publicado o livro Bossa inluências americanas dentro de suas canções.

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De fato, a inluência que a música popular america- tão fenomenal porque teve muitas assimilações que a
na exerceu em todo o mundo é grande. Em meados de enriqueceram excepcionalmente.
1950, época em que os programadores de rádio, junta-
mente com as grandes gravadoras de discos, detinham De fato, essas primeiras manifestações de renovação só
poder e impunham o gosto musical, alguns artistas demonstram o quanto signiicativa aquela música em
brasileiros que buscavam uma saída para aquela mú- formação viria a se tornar. Se a bossa nova se impõe ao
sica abolerada, imposta pelos meios de comunicação, deslocar alguns códigos de convenções musicais vigentes
aproximaram-se do novo estilo que estava se forman- até então, como por exemplo, a dissonância moderna de
do nos Estados Unidos, o cool jazz. Com características “Desainado”, quando sua letra reitera que “isto é bossa
quase camerísticas como suavidade, pausas, contrapon- nova, isto é muito natural”, o disco Canção do amor de-
to e harmonização sutil, esse estilo de jazz se impôs, nos mais de Elizete Cardoso apresenta, de uma só vez, as três
anos 1950, procurando se distanciar do modo nervoso iguras mais proeminentes da música popular moderna:
do estilo bebop. Entre os principais representantes do João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
cool jazz destacam-se os saxofonistas Gerry Mulligan,
Paul Desmond, Lee Konitz e Stan Getz, o trompetista 3. Música e crítica por Veiga Oliveira: análise
Chet Baker e o pianista Lennie Tristano, mas foram o ar- e compreensão à altura do disco
ranjador Gil Evans e o trompetista Miles Davis, ao lançar A recepção do LP Canção do amor demais, lançado em abril
o LP The Birth of the Cool (Capitol, M-11026) em 1949 de 1958, foi tímida, com exceção de uma resenha que me-
que estabeleceram esse novo estilo de jazz. rece especial atenção, pois propõe, sem ressentimentos,
uma leitura construtiva acerca do novo disco. Publicada
Em certa medida, a Bossa Nova realmente sofreu inluência no lendário “Suplemento literário” do jornal O Estado de S.
do estilo cool jazz em vários aspectos, como por exemplo, Paulo em 28/02/1959, muitos meses depois do lançamento
pela redução de instrumentos acompanhantes, gerando musical, a crítica “Canções de modinhas nossas” do crítico,
uma diminuição do volume do arranjo, sobressaindo, as- musicólogo e professor José da Veiga Oliveira comenta dois
sim, o arranjo musical e, por conseguinte, a voz condutora. discos recém-publicados, Canção do amor demais e Modi-
O cantor passa a se exprimir sem força, sem vibrato, mais nhas fora de moda da soprano Lenita Bruno.
suavemente, exercitando na voz a possibilidade de um ins-
trumento de sopro. Alguns artistas norte-americanos fo- O Suplemento Literário era uma das publicações jor-
ram muito apreciados por músicos bossanovistas, como o nalísticas mais prestigiosas da época e tornou-se uma
trompetista e cantor Chet Baker, sobretudo o disco The best espécie de ponte importante entre a universidade e
of Chet Baker sings (Paciic-EUA 792932, 1953) e a cantora imprensa, tendo como colaboradores críticos do Grupo
Julie London com o disco Julie is her name (EMI-Br 799804, Clima como Antônio Candido, Décio de Almeida Prado,
1955), com o guitarrista Barney Kessel. Ruy Coelho, Antonio Branco Lefèvre, Álvaro Bittencourt
e Alberto Soares de Almeida, entre outros. Esses intelec-
Entretanto, além da inluência do jazz, consideramos vários tuais, primeiros formandos e depois professores da Fa-
outros fatores que foram imprescindíveis para o surgimen- culdade de Filosoia da USP, foram os responsáveis pela
to da bossa nova, tais como o trabalho que estava sendo publicação da revista Clima na década de 1940, que
desenvolvido por diversos artistas na época que traziam reuniu ensaios acadêmicos em diversas áreas. Esta pu-
características inovadoras como os cantores Dick Farney blicação praticamente deiniu o destino intelectual do
e Lúcio Alves, o conjunto-vocal Os Cariocas, os violonistas grupo e representou a entrada de cena de uma geração
Garoto e Luis Bonfá, o arranjador Radamés Gnatalli, o pia- importante de críticos que iria convergir contato entre
nista e compositor Johnny Alf, os compositores da Geração universidade e público, cultura e comunicação.
de Ouro Dorival Caymmi e Ary Barroso (para icar somente
nesses nomes) e, como não poderia deixar de mencionar, Tivemos a oportunidade de pesquisar no Instituto de
a grande contribuição da música erudita brasileira, entre Estudos Brasileiros (IEB-USP) cerca de 344 resenhas de
outros, Villa-Lobos, Hans-Joachin Koellreutter e Cláudio música do Suplemento Literário do jornal O Estado de
Santoro, todos presentes na música de Jobim. S. Paulo, desde o primeiro número do suplemento, de
06/10/1956 até 29/06/1963, sete meses depois do famo-
Este último já se aliara em parceria com Vinícius de Mo- so concerto no Carnegie Hall, tempo suiciente, portan-
raes em 1955, cujo trabalho resultou na obra Canções to, para que houvesse alguma outra publicação sobre a
de Amor (para canto e piano), uma seleção de canções bossa nova nesse caderno. Não houve. O único texto que
musicadas por Santoro sobre poemas de Vinícius, que emite comentário sobre algum integrante do movimento
mostrou a Jobim quando se conheceram. Há, dentro do é o de José da Veiga Oliveira. Pela relevância da crítica e
ambiente musical, muitas ressalvas quanto à inluên- importância da publicação em jornal de grande projeção,
cia de Santoro sobre a obra de Jobim, inclusive os que detenhamo-nos à análise e transcrição parcial da crítica
defendem a possibilidade de plágio por parte de Jobim. sobre o lançamento do novo disco de Elizete Cardoso:
Não podemos nos esquecer de que, à medida que se es- A “Canção do Amor Demais” (Festa, LDV 6002) obteve grande acei-
tuda, analisa e aprende uma obra, a assimilação ocorre tação por quatro motivos: a música admiravelmente comunicativa
inevitavelmente. Acreditamos que a música de Jobim é de Antonio Carlos Jobim, a poesia de Vinícius de Morais, a voz

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cálida e lexível de Elizete Cardoso e um registro sonoro dos mais Desnecessário seria ressaltar tal circunstância em nossa canção de
perfeitos já produzidos no país. câmara. Daí a citação dos dois grandes poetas românticos alemães
do século XIX, cujos textos encontraram compositores à altura
Primeira indagação: será música popular ou erudita? Daquela (Goethe e Moericke; Schubert e Wolf poderíamos trazer, também,
possui todos os elementos de ritmo, imagens, motivos, colorido, à colação).
menos o primarismo do conteúdo poético, a harmonia grosseira,
defectiva e rudimentar. Música erudita ainda não é, muito embora Longe de mim a audácia de estabelecer apressadas equiparações
algumas das melodias estejam próximas aos melhores “Lieder”. A entre obras deinitivamente incorporadas ao patrimônio artístico
singularidade dessas partituras reside na ambivalência, situadas universal e o ciclo de Jobim-Vinícius, sobre o qual só o tempo dirá
na mui imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros. Poder- de sua permanência no repertório.
se-ia considerar a “Canção do Amor Demais” como um ciclo de
melodias (“Liederkreis”) à maneira dos de Schumann sobre textos Disse Marcel Beaurils a propósito do binômio verbo-música no
de Heine ou Eichendorff. Sem nenhum tema poético que sirva de “Lied”: “O Lied acha-se ligado a seu texto. O menor desvio da pa-
motivo-condutor (“Leitmotiv”) recorrente ou unitário, observa-se, lavra torna-se sua ferida, seu impudor, sua tolice. Tudo se passa
todavia, uma unidade de escrita musical (“durchkomponiert”) que numa concentração de espaço e dos sentidos, onde a atenção
permite ouvir todo o microssulco qual uma única melodia distri- nada dissocia, onde nenhuma icção desvia nem anestesia. Texto
buída entre várias partes, sem que o plano artístico se veja afetado e som: tudo é gravado. Quando o Lied se alarga para o grande
(OLIVEIRA, O Estado de S. Paulo, 28/02/1959). painel, a margem de liberdade reaparece. Quando ele se comprime
num medalhão, aí nenhum artifício é mais possível, nenhuma falta
Ao lançar um olhar à obra, o crítico expõe sua dúvida contra o pensamento e o bom gosto” (OLIVEIRA, 1959).
diante da música que encontra no disco, ao mesmo tem-
po que propõe uma leitura construtiva sobre a suposta Ao estabelecer comparações entre a letra-música de
fronteira entre o erudito e popular. Oliveira questiona o Vinícius-Jobim e o Lied alemão de Schumann-Heine, o
pertencimento do disco (“Primeira indagação: será mú- crítico consegue perceber “a fusão indestrutível de po-
sica popular ou erudita?”) ao propor uma questão, e não esia e música, funcionando uma como complemento da
airmar, como a maioria faz, com pontualidade e agudez, outra”, estabelecendo, desse modo, um elo entre a alta
em qual tipo de música esse disco estaria inserido, se na poesia de Vinícius de Moraes e Goethe, assim como a
música popular ou na erudita. O que ainda não sabíamos música soisticada de Jobim e Schubert. Em seguida, o
na época era que aquela música iria desencadear algo crítico faz um comentário de cada faixa do disco, ini-
novo no cenário da música popular no Brasil, uma espé- ciando sua análise por “Chega de saudade” (Jobim/Mo-
cie de erupção de criatividade no campo de uma música raes), a canção que abre o disco:
que não era erudita mais, era popular, mas um popular
mais soisticado, cerebral, sutil, inovador. Acreditamos “Chega de saudade”, um samba, abre a primeira faixa, introduzin-
do o ouvinte à “Serenata do Adeus”, uma das melodias mais apre-
que essa música popular nada mais é do que uma nova ciadas da série. “Pizzicatti” dos contrabaixos, saxofone em plan-
tradição da música popular brasileira com características gentes escalas descendentes, além de trombone em “staccato”. A
eruditas, dentro de um âmbito particularmente envolvido linha melódica converte-se, por vezes, num recitativo modulatório,
com questões de mercado e cultura de massa, cujo prin- que só uma artista como Elizete Cardoso poderia interpretar com
verdadeira dignidade artística (OLIVEIRA, 1959).
cipal representante é Tom Jobim.
Curiosamente, apesar de ter sido “Chega de saudade” a
Na primeira frase de sua crítica, Veiga Oliveira delineia os
canção que mais chamou a atenção do disco, lançada há
motivos pelos quais o disco tinha sido aceito: “a música
quase um ano antes desta crítica, seja pela riqueza e ori-
admiravelmente comunicativa de Antonio Carlos Jobim, a
ginalidade da composição ou pelo acompanhamento de
poesia de Vinícius de Morais (grafado com ‘i’ pelo crítico),
João Gilberto ao violão, ela não recebe qualquer análise
a voz cálida e lexível de Elizete Cardoso e um registro so-
do crítico, que segue sua análise com a próxima música,
noro dos mais perfeitos já produzidos no país”. Tínhamos
“Serenata do adeus” (Moraes). Nesta música o crítico des-
evidências, portanto, de que o crítico realmente tentou
taca a melodia do saxofone, mas na verdade o instrumen-
compreender a obra. Depois de airmar que, embora tenha
to que é tocado na gravação e tem destaque é o clarone,
elementos da música popular (ritmo, imagens, motivos,
seja na introdução, quando abre a faixa, acompanhado
colorido), seu conteúdo poético e harmonia estão mais
em seguida de cordas ou fazendo contracanto com a voz.
para o outro gênero musical (erudito), situando a obra na
Também têm evidência, em momentos distintos da músi-
“imprecisa fronteira que permeia os dois gêneros”. Não
ca, os trombones (com surdina), as madeiras (que prepa-
podemos deixar de mencionar que Jobim estudou com
ram o canto), a harpa e o violoncello (em pizzacato), em
professores da chamada música de vanguarda, erudita,
arranjo primoroso de Jobim. No arranjo, cada instrumento
como Koellreutter e popular, como Léo Perachi e sobre-
tem uma intenção, por vezes mínima, onde sobressai a
tudo Radamés Gnatalli. Este último foi um dos primeiros
voz da cantora Elizete Cardoso, formando, assim, um trio
músicos a transitar com luência pelos dois mundos da
perfeito de composição-arranjo-interpretação. Veiga Oli-
música, por isso essa capacidade dele em situar-se no
veira segue sua análise com “As praias desertas” (Jobim)
popular, apropriando-se ao mesmo tempo de elementos
e “Caminho de pedra” (Jobim/Moraes):
mais soisticados, próprios do mundo erudito, do qual o
crítico muito bem conhece. Oliveira segue seu texto com- “As praias desertas”: imagens poéticas de imensos horizontes mari-
parando o lied alemão com as canções do disco: nhos. A harmonia, como não poderia deixar de ser, é de feitio impro-
visatório, impressionista. Piano, discreta percussão. Flauta, iguras
O que mais me impressionou foi a fusão indestrutível de poesia e rítmicas das cordas no registro médio imitam o ranger do carro de
música, funcionando uma como complemento da outra. bois: “Caminho de pedra”. Nessa melodia encontramos a “Wande-

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rung” dos românticos alemães, a caminhada ininda. A música como destino, precedendo em alguns anos à temática samba/
que move-se, anda suavemente, ao ponto das palavras expirarem morro da bossa nova do começo dos anos 1960, com
em melismas imponderáveis, à distância (OLIVEIRA, 1959).
canções da parceria Baden Powel/Vinícius de Moraes ou
Enquanto “Serenata do adeus”, uma balada grave e mesmo Tom Jobim (“O morro não tem vez”), entre ou-
emocional, não recebe acompanhamento de seção rít- tros. Os acordes menores que se repetem dão essa ideia
mica, mas um arranjo farto de instrumentos orquestrais, de modalismo que o crítico escreve. Já a interpretação
a terceira faixa, “As praias desertas”, tem uma intro- de “Modinha” (Jobim/Moraes) de Elizete Cardoso só é
dução com lautas, com acompanhamento de bateria, comparável à de Elis Regina em Elis & Tom (1974), seja
contrabaixo e piano, este último faz contracantos com pela interpretação grave e intencional de ambas. Para
a voz durante toda a música. Aliás, como o próprio Vi- o crítico:
nícius de Moraes escreve que o disco é composto por
Chegamos à “Modinha”. Que a ninguém iluda o titulo despreten-
sambas e canções, esta faixa é um samba-canção, por sioso. Breve concisa na forma, o conteúdo poético é antes trágico,
assim dizer, moderno, com acompanhamento leve, sutil. de um supremo desconsolo. “Não! Não pode mais meu coração
O que o crítico escreve como “discreta percussão” são viver assim dilacerado, cruciicado a uma ilusão que é só desilu-
vários acordes arpejados que o piano faz interpondo- são...” Qual segunda voz, paralela e subjacente ao canto, o vio-
loncelo funciona magniicamente como apoio da linha melódica,
se à voz de Elizete Cardoso. Para ele, esses arpejos são de uma intensidade expressiva que desaia qualquer descrição
colocados como sussurros. Já em “Caminho de pedra” (OLIVEIRA, 1959).
(Jobim/Moraes), o violão é presente durante toda a mú-
sica desde a introdução com a lauta, enquanto que a Não temos dúvida de que o crítico tem conhecimentos
trompa é o instrumento que imita o ranger do carro de musicais, e que não são poucos. E para conseguir fazer
bois, de caráter impressionista. Novamente o crítico faz uma análise do disco cercou-se de seus conhecimen-
analogia ao Romantismo alemão, trazendo o disco para tos teórico-musicais para conseguir propor uma com-
o universo clássico, seguindo com sua análise: preensão acerca da obra. Pensamos, aliás, que é essa
qualidade que deve ser valorizada em um proissional
“Luciana” apresenta um tempo de valsa, o clássico ¾. Canção do jornalismo musical e é tema de pesquisa desta au-
embaladora, valsa brasileira. “Janelas abertas” realiza-se através
de belíssima poesia, repleta de luz e sombra, cativeiro e libertação tora (Bollos, 2007). Como dar conta de uma obra sem o
da alma. Jobim traduziu perfeitamente o texto de Vinícius. Mui conhecimento especíico de música? Vimos, acima, que
apreciado tornou-se “Eu não existo sem você”. No instrumental, Oliveira se cercou de conhecimentos sobre a canção ale-
predomina o violão. Rica harmonia das cordas, com apoio de “pi- mã Lied para fazer um paralelo com o disco de Elizete
zzicatti” dos contrabaixos. “Outra vez” é um samba-canção com
violinos em contracanto, violão e percussão. Canção nostálgica, Cardoso, visto que o próprio crítico se indaga de onde
dolente, reticente é “Medo de amar”: “Vire esta folha do livro e se provém aquele disco, do ambiente erudito da música ou
esqueça de mim...” (OLIVEIRA, 1959). do popular. O que nos surpreende é que ele, ao comen-
tar cada música, consegue compor o instrumentário de
Em “Janelas abertas” (Jobim/Moraes), temos novamen- cada faixa magistralmente, propondo uma escuta aten-
te um samba-canção de caráter pré-bossanovista, em ta, construtiva, impensável para os padrões atuais de
que a voz de Elizete Cardoso compõe o arranjo de for- crítica musical. Aliás, será que não poderíamos airmar
ma primorosa e envolvente. Apesar de ser um samba- que também para os padrões de crítica musical da época
canção, o arranjo leve e inovador de Jobim destoa dos (1959), sua análise era bastante diferenciada? Acredita-
arranjos pesados da época. Aqui, depois da exposição mos que para escrever críticas jornalísticas na imprensa,
do tema, vários instrumentos se interpõem e tocam a não basta somente escrever bem, mas acima de tudo,
mesma melodia da voz, porém um de cada vez, pro- ter conhecimentos musicais que o ajudem a entender
porcionando diferentes timbres ao arranjo. Em “Outra a mensagem da obra. E, para inalizar seu texto, Veiga
vez” (Jobim) João Gilberto conduz o acompanhamento Oliveira assertivamente airma:
da música ao violão, já em “Medo de amar” (Moraes)
o arranjo torna-se mais denso, compondo bem a in- Por im, a “Canção do amor demais”, que dá o título à coletânea,
terpretação da cantora com a poesia e, inalmente em não destoa do caráter conciso, sentido e dolorido da precedente
composição. Sobre fundo musical reticente, o violoncelo revela a
“Estrada branca” (Jobim/Moraes) Jobim acompanha a ininita riqueza de suas possibilidades, ao sustentar todo um edi-
cantora ao piano. Nas palavras de Veiga Oliveira: “re- fício harmônico. Palavra e música dão-se idealmente as mãos. A
tornamos à natureza, aos espaços inindos e solitários: obra de Vinícius-Jobim é um marco da música brasileira contem-
“Vou caminhando com vontade de morrer...” Ecos da porânea (Oliveira, 28/02/1959).
“Winterreise” schubertiana numa paisagem tropical
brasileira?” (OLIVEIRA, 1959). Apesar de tentar evitar equiparações entre obras dei-
nitivamente incorporadas ao patrimônio artístico uni-
“Vida bela”, para o crítico, “soa quase folclórico em seu versal, Oliveira profetiza sobre a dupla Jobim-Vinícius,
modalismo, numa rítmica persistente e sincopada, per- “sobre o qual só o tempo dirá de sua permanência no
cussão em destaque. Canção praiana, de matizes afri- repertório”. E parece que o tempo acabou mostrando
canos” (OLIVEIRA, 1959). De certa forma, esta canção que o crítico tinha razão, pois a parceria Jobim/Vinícius
destoa das outras composições do disco, de sambas e tornou-se uma das mais importantes obras da música
canções, imprimindo um ritmo cadenciado, quase nor- popular brasileira
.

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BOLLOS, L. H. Canção do Amor Demais: marco da música popular brasileira contemporânea. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.83-89.

4. Considerações Finais deste dentro do campo jornalístico, despertando inte-


Tanto o texto de Vinícius de Moraes na contracapa do resse em conhecer esta nova obra. Mas, principalmente,
disco quanto a crítica de José da Veiga Oliveira para por Veiga Oliveira ser um musicólogo e por atuar na im-
o jornal O Estado de S. Paulo reforçam a importância prensa escrita como crítico de um dos mais importan-
desse disco de Elizete Cardoso para o desenvolvimento tes jornais brasileiros na época, o jornal O Estado de S.
da música popular brasileira. Ambos demonstram que a Paulo. Ambos perceberam a relevância do disco, tanto
fronteira existente entre o popular e erudito ica me- do ponto de vista histórico quanto estético, por emergir
nos evidente por conta do alto grau composicional das justamente no momento anterior que o fenômeno bossa
canções e pelos arranjos assinados por Jobim. Não por nova, propondo um olhar atento às invenções e inova-
acaso esses dois textos de Vinícius de Moraes e Veiga ções que estavam surgindo.
Oliveira são colocados lado a lado neste trabalho a im
de que vários aspectos, sobretudo musicais, possam ser Mais do que o disco de apresentação da bossa nova,
avaliados em Canção do amor demais. porque, ainal, três grandes mentores do movimen-
to musical em constituição estavam juntos no mesmo
O primeiro por ser um dos mentores do disco, autor de projeto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilber-
letras e de várias músicas, mas também pela represen- to (como músico), Canção do amor demais é o marco
tatividade que tem diante da cultura brasileira, de modo que colaborou para renovar a música popular brasileira.
geral. Na capa do disco aparece ao lado do nome de Poucos anos depois o movimento bossanovista viria a
Vinícius de Moraes o termo poesia ao invés de letra, se tornar um sucesso internacional sem precedentes na
da mesma forma no seu texto da contracapa do disco. história da nossa música, demonstrando que sambas e
Já Oliveira impõe à crítica musical um olhar respeitoso canções podem ser levados a sério, com rigor e leveza,
diante do disco, o que colabora para a boa compreensão onde palavra e música dão-se idealmente as mãos.

Referências
BANDEIRA, Manuel. Literatura de Violão. Revista da Música Popular, Rio de Janeiro, n. 10, out. 1955.
BOLLOS, Liliana Harb. Um exame da bossa nova pela crítica jornalística: renovação na música sob o olhar da crítica. Tese
de Doutorado. PUC-SP, São Paulo, 2007.
CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim: uma biograia. Rio de Janeiro: Lumiar, 1997.
CARDOSO, Elizete. Canção do amor demais. Festa. FT 1801. 1958. 1 CD.
CASTRO, Ruy. Chega de saudade. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
GILBERTO, João. Chega de saudade. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1959. 1CD.
JOBIM, Antônio Carlos. Texto da contracapa do disco Chega de saudade. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1959.
MORAES, Vinicius. Certidão de nascimento III. Diário Carioca, Rio de Janeiro, 29 jan. 1965.
________. “Canção do amor demais”. Texto na contracapa do disco. Festa. FT 1801. 1958.
OLIVEIRA, José da Veiga. Canções e modinhas nossas. Suplemento Literário. O Estado de S. Paulo, 28 fev. 1959.
RODRIGUES, Caetano; GAVIN, Charles. Bossa Nova e Outras Bossas: A Arte e o Design das Capas dos LPs. São Paulo: Viva
Rio/Petrobrás, 2005.

Liliana Harb Bollos é Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP, 2007), Mestre e diplomada em Performance / Piano
Jazz pela Kunst Universität Graz, Áustria (1996) e Bacharel e Licenciada em Letras (USP, 1987). Desde 1999 é profes-
sora da Faculdade de Música Carlos Gomes onde leciona piano popular, língua portuguesa, harmonia popular e prática
instrumental pedagógica. É professora de harmonia popular e percepção no Conservatório de Tatuí e é professora de
história da música popular e pianista correpetidora da EMESP Tom Jobim. Como pianista já se apresentou com Al aíde
Costa, Mark Murphy, Orquestra Sinfônica de Santo André e Duo Fel, Fernando Corrêa Quarteto, Coralusp e Ruy Castro-
Sabá Quinteto, entre outros. Foi professora de piano popular do Festival de Música de Ourinhos (2005) e do Curso de
Férias de Tatuí (2007). Com o Quarteto Imago (com Renato Correa, Watson Clis e Fernando Corrêa) já atuou no Festival
de Inverno de Ouro Preto (2007), no Projeto SESI Música (Araraquara, Franca e Rio Claro, 2007) e em várias unidades
do Sesc. É integrante do Quarteto Sonoro (com Daniel Allain, Fernando Corrêa e Sérgio Schreiber) com o qual foi um
dos grupos premiados pelo ProAc da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Tem publicado diversos artigos em
revistas (Opus, Contemporânea, Música Hodie, Revista Comunicação & Sociedade, entre outras) e livros (Ensino, música
e interdisciplinaridade e Faculdade de Música Carlos Gomes).

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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.

Letra, melodia, arranjo: componentes


em tensão em O morro não tem vez de
Antonio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes

Silvio Augusto Merhy (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)


simerhy@globo.com

Resumo: O registro fonográico tornou mais fácil pensar uma produção musical como documento, não apenas como
objeto de apreciação estética. A gravação de canções populares permite prontamente decompor, recompor, analisar,
destacar partes e pensá-las como objeto pertencente a uma rede social de amplitudes quase ininitas. Ocasionalmente,
o modo como se combinam letra, melodia e arranjo faz brotar questões sobre a classiicação dos gêneros. O arranjo mu-
sical, suporte sonoro da canção, pode colocar em tensão a combinação letra e música e até mesmo deslocar o sentido
do conjunto. Algumas das gravações de O morro não tem vez de Tom Jobim e Vinícius de Moraes revelam contrastes e
tensões que tornam uma questão permanente o que se classiicou como Bossa Nova.
Palavras-chave: canção popular brasileira; samba; favelas cariocas; Bossa Nova; Tom Jobim; Vinícius de Moraes.

Lyrics, melody, arrangement: elements in tension in Favela by Antonio Carlos Jobim and
Vinícius de Moraes

Abstract: Records have made easier to think over a musical issue as a document, not exclusively as an aesthetic object.
Through song recordings it is possible to decompose, recompose, analyze, extract components, etc., and most of all
consider them as belonging to a vast social net. Putting together lyrics, melody and arrangement poses the question of
classifying genres. Musical arrangements, as a kind of song frame, can break apart the former sense of the combination
lyrics/melody. Some recordings of O morro não tem vez by Tom Jobim and Vinicius de Moraes disclose contradictions
and tensions in what is called Bossa Nova and make it a permanent question.
Keywords: Brazilian popular song; samba; slums in Rio de Janeiro; Bossa Nova; Tom Jobim;Vinícius de Moraes.

1 - A fruição e a análise das canções populares empreender processo de exame, interpretação, relexão,
Produzir música tem como principal inalidade proporcio- explicação, etc. A análise pretende isolar o objeto e, de
nar fruição e prazer aos ouvintes. Transformar música em certa forma, distanciar o ouvinte, ele próprio transforma-
objeto de análise caracteriza-se por ser atividade restrita do em um dos elementos da análise, junto com a fruição.
a um grupo qualiicado de pessoas. A audição crítica é
deixada de lado quando a fruição e o prazer prevalecem, Quando submetidas ao exame dos estudiosos, surgem nas
pois implicam em uma atitude distraída que une música e canções populares, logo ao primeiro olhar, tensões que não
ouvinte pelas sensações. Contudo, a análise e a crítica po- são percebidas na simples fruição e que agora, diante do
dem ser estimuladas pelo simples prazer de ouvir música. analista, revelam desarmonias intensas entre seus compo-
A determinação de isolá-lo da audição crítica nem sempre nentes. Antes ocultas ao prazer distraído, as tensões agora
é necessária, como ocorre na apreciação musical, em que surpreendem pela evidência. Os ouvintes muitas vezes nem
o gosto está sempre presente, enquanto que na análise se dão conta de que a produção de sentido sofre interfe-
isso nem sempre é possível. A análise musical aprofunda a rências com as desarmonias e desequilíbrios que ocorrem
apreciação e transforma todo o processo em objeto, envol- na produção ou nas performances das canções, tanto nas
vendo ao mesmo tempo produção, obra e fruição. gravações quanto nas apresentações em público.

No caso especíico do analista, ele pode escolher se ouve O conjunto letra – melodia é absorvido pelos consumi-
pelo prazer puro e simples ou se o deixa de lado para dores com naturalidade, uma espécie de unidade orgâ-

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 27/05/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.

nica resultante da união perfeita entre a palavra e os Em alguns aspectos o ambiente do Rio expõe o marco da
intervalos musicais. divisão urbana, revelando forte tensão entre grupos hu-
manos. A divisão e a tensão são visíveis na arquitetura –
A análise, no entanto, é compelida a considerar que a favela/bairro, no comportamento – violência/cortesia, na
unidade orgânica de tal conjunto – a canção – não pas- produção artística – música de concerto/música do mor-
sa na verdade de ideia naturalizada que não se susten- ro. No caso da música a divisão mais óbvia se exempliica
ta frente às suas condições de produção. No nível mais no contraste entre o ambiente da música de concerto,
imediato constata-se que letras de músicas podem ser centralizada na programação do Theatro Municipal do
criadas antes, durante ou depois da composição das me- Rio de Janeiro, e o ambiente do samba, fenômeno tri-
lodias, podem ser agregadas, montadas, modiicadas ou butário dos morros e das comunidades cariocas, onde se
simplesmente encomendadas, mudando o sentido da localizam as Escolas de Samba. Em alguns momentos, o
música. Em âmbito mais amplo as canções se colocam contraste entre música de concerto e samba carnavalesco
numa rede de produção que ata o processo de criação às é percebido como realidade indisfarçável. Durante o perí-
canções anteriores compostas pelo artista, ao sistema de odo de carnaval, os ensaios do Bloco Cordão da Bola Preta
reprodução das artes em que ele está inserido, aos seus podem ser ouvidos alegremente durante os intervalos dos
compromissos proissionais, à manutenção da sua ima- concertos no Theatro Municipal, localizado exatamente
gem junto aos pares, à critica, ao público, etc. em frente à sede do clube Bola Preta. Outro embate: a
Sala Cecília Meireles, importante casa de concertos, está
Revelar por completo a rede social de relações em que localizada no bairro da Lapa, tradicional reduto do samba
as canções populares estão inseridas não é, por certo, e da boemia carioca. Hoje revitalizada, a Lapa concentra
uma aspiração deste estudo, embora tal desejo assom- agenda signiicativa de shows de música popular, com su-
bre constantemente muitos dos pesquisadores que têm a cesso de público garantido. O samba e o choro podem ser
Música como objeto. Mas há evidências de que a realida- ouvidos até nas calçadas em frente à Sala.
de das relações sociais ou da vida em grupo não pode ser
simplesmente omitida ou ignorada, sem que se corram As temporadas de ópera, concertos e ballets com grandes
riscos de resultados insatisfatórios. Por isso consulta-se nomes internacionais e estrelas nacionais sempre izeram
o modo de pensar e de pesquisar dos proissionais de Ci- parte da programação da música clássica no Rio. O públi-
ências Humanas e Sociais, na esperança de buscar auxílio co se interessa pelas assinaturas de temporadas onde os
para as explicações e análises. grandes nomes internacionais se somam às estrelas locais.1

A caracterização das práticas musicais, por exemplo, A cultura do Samba tem sido noticiada desde o princípio
pode se tornar incompleta se, na descrição, o ambiente do século com relatos sobre as rodas de samba, os des-
em que ocorre é desprezado. iles carnavalescos e a formação das primeiras Escolas
de Samba. O panteão de nomes do samba tem sido sis-
É necessário que se descrevam os elementos característi- tematicamente cultivado e reverenciado.2
cos que estruturam o produto artístico considerando-se o
seu impacto no mundo social. As funções dos elementos Na cidade do Rio de Janeiro, a música de concerto e o
que estruturam a forma artística estão, de algum modo, samba não se limitam a constituir apenas opções de pro-
conectados ao tipo de prática e ao peril do grupo onde grama cultural, marcam comportamentos, modos de vida
ela ocorre. A análise pode revelar como se dão estas co- e até oposições sociais. A menção à temporada de ópera
nexões e que tensões elas podem criar. e às escolas de samba aponta para situações extremas,
contudo outras situações revelam oposições mais dissi-
2 - Divisão geográica e social da cidade muladas e contrastes menos intensos entre os gêneros
A cidade do Rio de Janeiro, capital federal brasileira até musicais. Alguns deles não carregam marcas tão óbvias
1959, tem sido vista, muitas vezes, como uma cidade par- de sua origem social. O samba O morro não tem vez de
tida, sendo o asfalto e a favela uma das metáforas mais Tom Jobim e Vinícius de Moraes de 1963 (MARCONDES,
eloquentes dessa divisão. A favela, modelo de urbaniza- 1977), em suas muitas versões, expressa os contrastes da
ção caracterizado pela precariedade, é o ambiente urba- cidade partida de forma menos explícita.
no predominante no recorte montanhoso. A uma partilha
que se apresenta visível entre asfalto e favela (o morro 3 - Modalidade de ocupação habitacional
constituiu-se como sinônimo de favela) correspondem A ocupação dos morros é um dos problemas que se
outras divisões: em classes sociais, em qualidade de vida, eternizaram e que se tornaram característicos do Rio
em regiões geográicas (a cidade também é dividida em de Janeiro. O descaso perdura no poder público e os
norte-sul), em universos culturais, nas estatísticas poli- moradores tiveram que se adaptar, criando condições
ciais. A gênese social e o impacto cultural dessa partilha de sobrevivência que se naturalizaram através da ge-
se perpetuam como marca da geograia, de modo que a ograia da cidade, brindada por recorte montanhoso
luta contra e em defesa das favelas já se consolidou numa privilegiado. Morro e favela são usados como sinôni-
história de décadas. E os valores, fruto da partilha, têm mos, embora favelas tenham sido plantadas também
sido igualmente combatidos e defendidos. em regiões planas.

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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.

A gênese das favelas é explicada por diversas hipóteses. de Serviços Sociais da Prefeitura, tem sido até hoje acu-
Uma das mais aceitas é a da expulsão dos moradores po- sada de causar o despejo truculento dos moradores.
bres, ocasionada pela execução do plano de saneamento
e urbanização do Governo Rodrigues Alves (1902-1906). O deslocamento gradual das favelas dos morros para os
A construção das avenidas Central e Presidente Vargas subúrbios ainda está na ordem do dia. Os estudos das
levou a demolições e impediu que os moradores pobres demandas dirigidas pelos moradores das favelas ao po-
permanecessem na região saneada.3 der público mostram deiciência na oferta de serviços
como escolas, luz elétrica, redes de água e esgoto, gás
Julio César Pino, professor associado do Departamento encanado, telefone, correio, etc.
de História da Kent State University, examinou, no artigo
Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro, fon- As soluções para os problemas de moradia no Rio de
tes documentais que lhe permitiram balizar a ocupação Janeiro têm sido encaminhadas por visões antagônicas:
ilegal de áreas no Rio de Janeiro desde 1898. O autor se retirada (quase sempre truculenta) de moradores para
queixa (PINO, 1997, p.112) de que o maior número de es- condomínios especialmente destinados a esta população
tudos foi conduzido por sociólogos estrangeiros, cientis- ou urbanização dos locais de ocupação.
tas políticos e criminologistas, ressentindo-se da falta de
estudos de história social que descrevam como as favelas Nos bairros pobres a presença da autoridade do Estado
foram construídas e quem são seus moradores. pode ser sentida, mesmo que de forma incipiente. Entre-
tanto, nas favelas ela sempre se caracterizou pela au-
PINO (1997, p.111) data 1940 como o marco de uma era ex- sência. A ideia de transformar as favelas em bairros se
plosiva no crescimento das favelas na capital federal. No es- assumiu como projeto governamental a partir de 1994.5
tudo observa-se que a maioria das fontes citadas é da década A ideia de favela-bairro resulta da discussão de legalizar
de 60 do séc. XX, talvez porque, neste período, a preocupação as favelas e tratar este modo de ocupação como modali-
da sociedade e das autoridades tenha se tornado mais aguda. dade não totalmente condenável.
Contudo, a situação das moradias ilegais se mantém até os
dias de hoje. O artigo registra levantamento de 1991, produ- 4 - A favela como tema
zido pelo Instituto de Planejamento do Rio de Janeiro (IPLAN- A ideia de “resgatar a cidadania” através de projetos
Rio), mostrando a cidade ocupada por 661 favelas. culturais tem sido muito difundida nas duas últimas dé-
cadas. Variados projetos com variadas feições culturais
As comunidades que habitam as favelas e os bairros po- surgem em todos as localidades brasileiras, inclusive por
bres dos subúrbios cariocas são estigmatizadas. As con- iniciativas governamentais. Nas favelas do Rio, alguns
dições de urbanização dos morros atestam a ausência deles icaram bem famosos, como o Grupo Cultural Afro
do poder público, que pode ser absoluta durante certos reggae, ONG localizada no bairro de Vigário Geral.6
mandatos. Em alguns deles prevalece a ideia de transfor-
mar as favelas em bairros; em outros, a de transferir os Outra ideia de promover a cidadania utiliza a defesa
moradores para condomínios especialmente projetados. da cultura local, dos valores dos próprios moradores
das “comunidades”. Não só os intelectuais e o governo
O interventor Henrique Dodsworth (1937-1945), nomeado como os próprios moradores fazem essa defesa, usando
prefeito por Getúlio Vargas, pretendia construir Parques Pro- o discurso da autenticidade para valorizar sua cultura.
letários Provisórios, projeto político do governo federal. Tal- “Comunidades”, termo que atualmente designa os gru-
vez tenha sido o primeiro prefeito a planejar a transferência pos sociais que habitam favelas, têm surgido em muitas
dos moradores das favelas para condomínios ou bairros. outras cidades brasileiras, não só no Rio. Mas é a marca
simbólica das favelas e morros cariocas que mais forte-
A Praia do Pinto4 era uma favela à beira da Lagoa Rodrigo mente tem repercutido na sociedade e ganhado visibili-
de Freitas, plantada ao nível do mar, em uma das regiões dade nos meios de comunicação.
mais nobres da cidade, conhecida hoje pelo mais alto índice
de desenvolvimento humano. Em 1955 Dom Hélder Câmara, O samba, há tempos elevado por consenso a traço de iden-
bispo de Recife e bispo auxiliar do Rio de Janeiro, lançou tidade nacional, é historicamente associado à gente que
a Cruzada São Sebastião, condomínio construído no bairro vive nas favelas e nos morros cariocas. É um gênero musi-
vizinho do Leblon, para abrigar os moradores da favela Praia cal exaltado como produto de prestígio para as “comunida-
do Pinto. O condomínio existe até hoje encravado no bairro. des” e incensado como criação “autêntica” destes grupos.

O prefeito Carlos Lacerda (1961-1964) desenvolveu pro- “Morro”, “favela”, ”barracão” aparecem em muitas letras
jeto semelhante de transferência compulsória dos mora- de sambas e de outros gêneros de canções brasileiras. Em
dores de todas as favelas da cidade. No projeto, objeto de muitas situações a presença dessas palavras é percebida
grande polêmica, foram criados vários bairros nos subúr- como proselitismo ou como retórica em defesa de de-
bios do Rio. Talvez tenha sido o momento em que mais terminados grupos sociais. Em certas canções elas têm
moradores foram transferidos em toda história da cidade. o ito de propagar os valores éticos das “comunidades” e
A deputada Sandra Cavalcanti, encarregada da Secretaria concorrer para elevar o mérito artístico das músicas.

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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.

Canções populares com esses temas foram produzidas o samba aparece como um dos vocais do grupo; no Cd
já nas primeiras décadas do século XX, algumas os ex- Garraieira ele surge na voz de Mariana Bernardes.
puseram até nos títulos, como os sambas: Favela, de
Roberto Martins e Valdemar Silva (lançado em 1936); A letra do samba é um dos aspetos importantes da análise:
Ave Maria no morro, de Herivelto Martins (lançado em
O morro não tem vez
1942); Barracão de Luis Antonio e Oldemar Magalhães, e o que ele fez já foi demais
(samba carnavalesco lançado em 1953).7 Alguns deles Mas olhem bem vocês
são tocados ainda hoje, outros já estão esquecidos. É Quando derem vez ao morro
possível compor lista numerosa, com canções de gêne- Toda a cidade vai cantar
Morro pede passagem
ros variados sobre o mesmo tema. Morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
No início dos anos 60, nos ambientes onde as canções Tamborim vai falar
populares eram produzidas, o tema da ocupação ilegal É um é dois é três é cem é mil a batucar
O morro não tem vez
para moradia transbordou das letras de canções e ganhou Mas se derem vez ao morro
tons de radicalização e de conlito público de ideias entre Toda a cidade vai cantar
os compositores e cantores.
6 - O poeta autor da letra
5 - O samba O morro não tem vez e a escolha A letra do samba é o elemento que, através da voz dos
das gravações artistas, permanece inalterado em todos os registros. O
O samba O morro não tem vez de Antonio Carlos Jobim autor da letra de O morro não tem vez, o poeta Vinícius de
e Vinícius de Moraes se destaca na numerosa lista sobre Moraes, não se envolveu com a canção popular brasileira
o tema por características que variam de gravação para da mesma maneira que Tom Jobim. Envolveu-se também
gravação. Selecionamos algumas das que podem eviden- intensamente, mas atuou de forma diferente. A peça Or-
ciar as diferentes concepções e as contradições que co- feu da Conceição, escrita por Vinícius, manifesta de forma
locam em questão a coesão da própria criação. O samba explícita a defesa cultural dos valores das comunidades
tem sido gravado e regravado em diferentes épocas e em do Rio de Janeiro. A associação da etnia às favelas e ao
diferentes situações. Ao ser examinada de perto, a his- samba permanece ainda hoje no nosso imaginário de
tória de suas gravações mostra que o seu sentido sofre modo muito semelhante ao que ele concebeu.
mudanças e se transforma sensivelmente.
A criação e a produção de Orfeu da Conceição, encenada
O jornalista Sérgio CABRAL (1997, p.497) listou trinta por atores negros, marcaram um episódio notável na bio-
e oito (38) lançamentos diferentes de O morro não tem graia de Vinicius. O próprio poeta descreveu como nasceu
vez. Examinamos aqui apenas seis deles, entre 1963 e a ideia da peça, quando se sentiu “particularmente impreg-
2004. A escolha recaiu sobre gravações que apresentam nado pelo espírito da raça”,8 quando guiava um amigo, o
fortes contrastes. Há contrastes no peril dos artistas de escritor americano Waldo Frank, em visita à favela da Praia
capa, na concepção e estilo dos arranjos, nas condições do Pinto.9 Os ritos de macumbas nas favelas, assistidos por
de gravação, no lançamento e consumo da canção. Duas ele, tinham algo a ver com a Grécia clássica. Sua intenção
das gravações examinadas, as dos Cds do BR6 (2003) e foi então prestar uma “homenagem ao negro brasileiro”. O
do Garraieira (2004), não aparecem na lista de Sérgio texto foi entendido como uma elevação dos dramas da po-
porque foram feitas após a edição do seu livro. Garra- pulação negra do Rio de Janeiro à condição de “universali-
ieira e BR6 são grupos musicais formados por músicos dade”. Além de uma carreira teatral de sucesso, tornou-se
cariocas jovens, mas experientes. O Garraieira nasceu argumento da produção cinematográica francesa L´Orfée
com a marca de ser predominantemente instrumental e nègre, ilme premiadíssimo de Marcel Camus lançado no
o BR6 exclusivamente vocal. Os integrantes do BR6 con- Brasil com o título de Orfeu do Carnaval.10 A montagem
tam que o grupo nasceu sob a inspiração do conjunto da peça reuniu os nomes dos artistas mais importantes
vocal americano Take 6. na época, como Oscar Niemeyer para a cenograia e Tom
Jobim para a música. A universalidade do drama foi enfa-
O cantor Jair Rodrigues incluiu O morro não tem vez como tizada pelo teatrólogo Guilherme Figueiredo no programa
faixa do Lp O samba como ele é; Elis Regina incluiu-a no da peça, que associa Orfeu, o músico grego, ao carioca da
pot-pourri inal do Lp No ino da bossa – ao vivo – vol.1 Conceição, o músico do morro.
(Agostinho dos Santos canta O morro de Tom Jobim e Billy
Blanco de 1955 [MARCONDES, 1977] na mesma faixa); 7 - A canção transigurada
Antonio Carlos Jobim estreou como cantor na faixa Fave- O morro não tem vez não faz parte do Lp Músicas
la incluída no Lp The Wonderful World of Antonio Carlos do Orfeu da Conceição,11 mas tem a mesma fonte
Jobim, com Nelson Riddle e sua orquestra; o próprio com- de inspiração, apesar de ter surgido bem depois.
positor criou para Favela belo solo de piano no Lp Antonio
Carlos Jobim, the composer of Desainado plays, gravado e A primeira gravação foi feita em 1963, na voz de Jair Rodri-
distribuído nos Estados Unidos e reeditado no Brasil pela gues, paulista do interior que chegou a São Paulo durante
Elenco com o título de Antonio Carlos Jobim; no Cd BR6 a década de 1950. O cantor ganhou fama nos anos 60, no

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apogeu da Bossa Nova e seu maior sucesso, Deixa isto pra quados. Contudo o conjunto oicial do programa, o Zimbo
lá, lançado em 1964, é considerado o primeiro rap brasi- Trio,15 saiu de cena substituído por um acompanhamento
leiro. O morro não tem vez é faixa do Lp O samba como ele ao violão, o qual lembra o clima intimista da Bossa Nova,
é,12 ao lado de O que se leva desta vida de Pedro Caetano, criando contrastes quando a euforia toma conta do grupo,
Meu fraco é mulher de Heitor de Barros e Conde e Feio não mantendo o caráter suave, melancólico e, com a voz de
é bonito de Gianfrancesco Guarnieri e Carlos Lyra. O morro Agostinho dos Santos, bastante lento em O morro.
não tem vez de Tom Jobim e Vinicius de Moraes é a oitava
faixa. O arranjo desta gravação é, dentre os comentados, o Elis Regina (1945-1982) mantém-se ainda hoje como o
único que não chama a atenção para a harmonia. Lembra modelo mais almejado de cantora brasileira. Sua carreira
os arranjos estilizados dos programas de auditório das Rá- artística é muito conhecida e muito difundida. Durante
dios, com vocal feminino e naipe de metais. A introdução o período em que atuou no Fino da Bossa na TV Record
com cavaquinho pretende mostrar que a origem do samba predominou, na sua interpretação, o estilo extrovertido
está nos morros cariocas e continua na Zona Norte da ci- de cantar, com energia em excesso e muita movimenta-
dade. Não há cavaquinho na Bossa Nova. ção de palco. O Zimbo Trio, que a acompanhou durante
vários programas, também não se caracterizava por um
No registro de Jairo SEVERIANO e Zuza HOMEM DE estilo intimista ou jazzístico e se expressava no palco
MELLO (1998, v.2, p.70) o sucesso de Jair Rodrigues está com muita intensidade, sem preocupação com sutilezas
listado no mesmo capítulo em que estão resenhados os de dinâmica. Dez anos mais tarde, em Los Angeles, Elis
mais famosos títulos criados por Tom Jobim e Vinicius de gravou com Tom Jobim um dos discos mais famosos e
Moraes: Garota de Ipanema, Samba do avião, Só danço reverenciados da MPB: o Elis e Tom (1974), tornado um
samba. O título do Lp O samba como ele é reivindica au- ícone da Bossa Nova, por sua sonoridade contida, sutil
tenticidade (o samba como ele realmente é), e contém re- e delicada em todas as faixas. O cuidado da produção,
pertório constituído basicamente de canções compostas que transparece em todas as músicas, marca ainda mais
por compositores não originários da Zona Sul do Rio de o contraste entre o clima expansivo do programa ao vivo
Janeiro, sem nenhuma semelhança com os sambas len- da TV Record e o disco de 1974.
tos e intimistas. A maioria dos compositores que criaram
os sambas lentos da Bossa Nova morava na Zona Sul da No pot-pourri do Fino da Bossa, o tema do morro não pa-
cidade ou circulava por ela. Tom Jobim, o compositor de rece ter sido escolhido como expressão de luta em defesa
maior prestígio, sempre habitou a Zona Sul. Jair Rodri- dos grupos sociais, dos moradores de favelas submetidos
gues e os compositores listados no seu Lp certamente não a condições de vida desfavoráveis. No entanto, reairma o
faziam parte deste grupo. gosto pelo samba e mostra a sua força de comunicação na
televisão, para um público mais diversiicado e numeroso,
A sua participação no programa O ino da bossa, propor- não restrito à classe média moradora da Zona Sul do Rio.
cionou-lhe um público mais amplo. A dupla Jair/Elis gra- O samba de Elis, extrovertido, alegre e com muita bossa,
vou inicialmente o Lp Dois na Bossa, cujo sucesso resultou não se assemelha ao ambiente das escolas de samba e dos
na criação do programa, estreado em maio de 1965 com compositores tradicionais dos morros do Rio. Sua atuação
grande e duradouro sucesso. Do programa surgiram três no auditório da Record não nos faz nem de longe pensar
Lps intitulados No ino da bossa e comercializados até com indignação na situação dos favelados do morro.
hoje. Em 2000, Jair voltou a reviver o clima extrovertido
das gravações de 1965 e apresentou O morro não tem vez O Lp The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim, com a
em show para reverenciar o Lp Dois na bossa. voz de Tom Jobim e arranjos de Nelson Riddle,16 foi gravado
O pot-pourri 13 inal de No ino da bossa - ao vivo – vol.1, e lançado nos Estados Unidos pela companhia Warner, ten-
cantado por Elis Regina, Elza Soares, Lucio Alves e Agosti- do como artista de capa o compositor brasileiro. Tom assi-
nho dos Santos, foi gravado em 30/11/1965 e tem o “mor- nou contrato com a gravadora e Nelson Riddle foi indicado
ro” como tema. A faixa reúne, além de O morro não tem para escrever os arranjos. Foi uma escolha ambiciosa, pois
vez, Despedida da Mangueira de Benedito Lacerda e Aldo Riddle era um dos mais conhecidos arranjadores america-
Cabral, Zelão de Sérgio Ricardo e O morro de Tom Jobim e nos, responsável pelos discos dos cantores e cantoras mais
Billy Blanco. O samba-canção O morro, gêmeo musical de famosos dos Estados Unidos e do mundo. O arranjador
O morro não tem vez, é anterior e foi criado por Tom Jobim era também conhecido no Brasil, em parte pelos fãs que
para a Sinfonia do Rio de Janeiro.14 É menos conhecido, compravam discos de Sinatra e de Nat King Cole. O morro
mas faz também a defesa dos “valores do morro” não re- não tem vez, cujo título foi traduzido para Favela, fez parte
conhecidos pelo “asfalto”. Está presente no pot-pourri pela do repertório selecionado para o disco. A tradução literal
voz de Agostinho dos Santos, que se apresentou, junto com para o inglês – Somewhere in the hills – está registrada
os demais, como convidado do programa O ino da bossa, na Ipanema Music Co, sociedade pertencente ao produtor
da TV Record, liderado por Elis Regina e Jair Rodrigues, em americano Ray Gilbert e é mencionada por Sérgio CABRAL
parceria. O ambiente da gravação é de festa e alegria eu- (1997, p.245). Mas o título escolhido para os dois discos
fórica e não de protesto. A expressão vocal de Elis é cheia produzidos nos Estados Unidos, Antonio Carlos Jobim, the
de bossa (o mote do programa), com trêmulos e outros composer of Desainado plays e The Wonderful World of
recursos vocais, que por vezes soam exagerados ou inade- Antonio Carlos Jobim, foi mesmo Favela, abandonando-se

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Somewhere in the hills. É fácil entender que uma tradução jazzístico e a qualidade musical. A crítica muito elogiosa na
literal poderia se afastar muito da ideia inicial de morro review de Pete Welding, o autor do texto disponível na con-
como sinônimo de favela e não como uma colina genérica, tracapa de Antonio Carlos Jobim da Elenco, fala em “bossa
que em certas regiões é local de moradias de privilegiados nova movement”. Pete WELDING (1963) airma que
e não de necessitados. O trabalho de Riddle foi recebido
Este é o álbum mais ‘curiosamente refrescante’. Curioso porque,
com restrições, mas se houve falhas não foi por desmerecer durante todo o disco, Tom Jobim se apresenta como solista no es-
o “samba de morro”, que jamais surgiria ali, mas por desen- tilo de one-inger piano. Refrescante porque é um dos álbuns mais
tendimentos quanto à estética bossanovista que deveria cheios de lirismo, mais encantadores e deliciosos que resultaram
predominar. Tom Jobim teria se queixado, mas concordou da onda da bossa nova, a qual nos tem inundado no último ano.20
em cantar, deixando notar um certo constrangimento.
Talvez a canção brasileira, imaginada por Riddle, tivesse O texto elogia apenas o Tom Jobim melodista e instrumen-
semelhança com os modelos americanos de gravação dos tista. O songwriter Tom Jobim e o letrista Vinícius foram
grandes astros ou das canções românticas feitas para dan- deixados de lado. One-inger piano é um elogio porque se
çar. O que se ouve em Favela, no Lp The Wonderful World refere ao despojamento da execução, cuja qualidade está no
of Antonio Carlos Jobim, é um samba acompanhado por big puro “feeling”. Aloysio de Oliveira escreveu, na contracapa,
band, escapando tanto da Bossa Nova quanto do “samba um breve texto de apresentação para dar espaço à crítica da
de morro”. Só que escapar do “samba de morro” não parece revista Downbeat,21 inserida no original e na íntegra.
ter contrariado ninguém.
A harmonização que se ouve nas gravações é um dos ele-
O Lp Antonio Carlos Jobim da Elenco, instrumental, com mentos que geram tensão, principalmente considerando-
solo de piano de Tom Jobim e arranjos de Claus Oger- se o proselitismo da letra. Esta airmação não se aplica à
man,17 foi lançado em reedição no Brasil em 1964, um gravação de Jair Rodrigues em que o elemento principal
ano depois do elogiado lançamento da matriz americana é a letra. Não há nenhuma menção ao jazz ou à Bossa
com o título de Antonio Carlos Jobim, the composer of De- Nova. O morro é o foco.
sainado plays. Um dos objetivos da reedição foi sem dú-
vida a soisticação e a qualidade da produção, apreciada A harmonia utilizada nos discos Antonio Carlos Jobim da
pelo próprio compositor. A sua insatisfação com Nelson Elenco e No ino da bossa com Elis Regina ainda mantém
Riddle18 e a sua satisfação com o trabalho de Claus Oger- a relação diatônica com a melodia como predominante,
man revelam a face mais soisticada da música brasileira, enquanto que nas outras gravações predominam a ree-
a face que, para muitos, a aproxima do jazz. laboração e a rearmonização. A progressão harmônica
Am7 Em7 em modo menor natural, que harmoniza o iní-
cio do samba no Lp Antonio Carlos Jobim, não é comum
Tanto que, o resultado do Lp, também distante do “samba
nas canções brasileiras gravadas na mesma época ou em
de morro”, deixou a todos entusiasmados com o traba-
épocas anteriores, mas tampouco contém as dissonâncias
lho do arranjador e com o estilo instrumental jazzístico
acrescentadas nas rearmonizações. Se examinarmos Fa-
que predomina no álbum. O próprio produtor, Aloysio de
vela, de Roberto Martins e Valdemar Silva, Ave Maria no
Oliveria, assinou a contracapa brasileira e Claus Ogerman
morro de Herivelto Martins e Barracão de Luis Antonio
tornou-se arranjador muito prestigiado por aqui, requisi-
e Oldemar Magalhães veremos que o estilo harmônico é
tado tanto por Tom Jobim como por João Gilberto.19
outro. A utilização do modo menor natural, que propor-
ciona à melodia um sabor modal através do uso do V grau
A letra brasileira de O morro não tem vez desapareceu na
menor Em7, não fazia parte do vocabulário de acordes da
gravação e com ela sumiram as reivindicações. O estilo ins-
maioria dos sambas. A harmonia inicial do pot-pourri de
trumental desautoriza pensar em qualquer conexão possí-
No ino da bossa acrescenta o acorde E7 produzindo dis-
vel com os versos do samba. O título Favela permanece nos
sonância de nona aumentada com a nota Sol da melodia.
créditos, mas soa exótico e distante.Talvez o compromisso
político de Tom Jobim com a luta contra as partilhas so- A harmonização, aparentemente despretensiosa já propor-
ciais injustas não fosse tão intensa quanto o do parceiro ciona, entretanto, um ambiente jazzístico na progressão do
Vinícius, embora as relações proissionais e de amizade inal da segunda parte F7(#9) E7(#9) D7(#9), com a cadên-
entre os dois o fossem. Considerando-se este dado, não cia em D7(#9), IV grau do modo menor melódico com nota
teria sido dramático o abandono da letra na concepção do estranha ao acorde. A progressão inal descrita aparece em
arranjo e da gravação americana de Claus Ogerman. todas as gravações, completamente incorporada à melodia.

8 - Os elementos de tensão não evidentes Os arranjos posteriores seguiram alterando a harmonia. No


A ideia da “inluência do jazz” surge quase sempre associada disco The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim a faixa
a um estilo harmônico determinado. Nas duas gravações de Favela foi rearmonizada e soisticou-se ainda mais. A har-
Favela, apresentadas com arranjos de Claus Ogerman e de monia inicial abandonou o modo menor natural, preferindo
Nelson Riddle, a harmonização mais simples é a de Claus A7 Bb7 A7 Bb7, a mesma progressão escolhida pelo con-
Ogerman, que por ser instrumental, parece ao contrário bem junto BR6. O grupo Garraieira preferiu utilizar a harmoni-
mais jazzística do que a de Nelson Riddle, mais orquestral e zação A7 G7 A7 G7 A7 G7 A7(#9) Dm7 G7(13) C#m7 C7 F6
harmonicamente mais elaborada. Nela se fundem o estilo E7 Am7 Em7 Am7. É esta a harmonização escolhida para

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a transcrição apresentada na coleção de Almir Chediak sendo tocada em andamento mais rápido que as demais
Tom Jobim (JOBIM, [1990], v.1, p.89). Em todos os padrões e tendo o swing como elemento importante. O balanço
descritos, a dominante E7 é pouco efetiva, porque a sen- apreciado na época em que se gravou No ino da bossa fez
sível Sol # não é usada na melodia. O estilo predominante um longo percurso até o swing proposto pelo Garraieira.
nas harmonizações tende a causar a impressão de que a Nas duas gravações, não só os arranjos são bem distintos,
harmonização “esqueceu” a retórica da letra, que profetiza como a maneira de tocá-los também. A harmonia, bastan-
que ”Quando derem vez ao morro toda a cidade vai cantar”. te valorizada pelo Garraieira, e o andamento mais rápido,
O contraste entre o estilo harmônico e a letra é evidente. imprimido pelos instrumentistas do grupo, garantem para
o samba a possibilidade de ser ouvido de outra maneira.
O arranjo ao vivo para Elis Regina No ino da bossa parece
ainda acreditar que o canto do morro vai descer para o Do ponto de vista dos ouvintes parece aceitável que
asfalto. Já no arranjo de Nelson Riddle para The Wonder- uma harmonia bastante soisticada possa sustentar po-
ful World of Antonio Carlos Jobim não há nenhum tambo- esia tão cheia de proselitismo. O gosto pela harmonia
rim e a percussão e os metais soam pesadamente sem ne- soisticada está bastante difundido e permite, sem so-
nhuma conexão com a letra. As cordas não lembram nem bressaltos ou contrariedades, o seu casamento com a
o samba nem o balanço da bossa. Teria a linha melódica defesa dos ideais sociais.
predominado sobre a letra e absorvido toda a atenção
do arranjador americano? Parece ser um divórcio que se
9 - Considerações sobre uma prática
acentua ainda mais na gravação do Lp Antonio Carlos Jo-
bim ao piano. O solo de piano se ambienta em um espaço naturalizada
no qual a “comunidade” do morro, acompanhada por mil A naturalização das categorias musicais ocorre como um
tamborins, jamais se sentiria em casa. O feeling é, sem processo constante. Algumas são construídas durante
dúvida, mais adequado aos clubes dançantes do que à anos, outras durante décadas, sancionadas pelas estrutu-
paisagem das favelas. Há certamente quem possa pensar ras políticas, culturais ou educacionais.
que a favela ganha “universalidade” quando inspira músi-
ca capaz de sensibilizar pessoas tão distantes quanto um A letra é o elemento mais estável da canção. Sob este
crítico exigente da revista Downbeat. ponto de vista, é o componente mais importante, porque
a identiica e restringe as possibilidades de adaptação ou
O morro cantado pelo Garraieira e pelo BR6 não causa modiicação dos versos.
espanto nem é desconcertante. Seguem o modelo de va-
lorização da harmonia e das notas estranhas aos acordes. No entanto, é preciso assinalar que a sua conexão ple-
Embora haja semelhança quanto à valorização da harmo- na com a melodia e a harmonia pode ser questionada.
nia e quanto ao gosto por acordes alterados, são grava- Sabemos que o choro Carinhoso de Pixinguinha, criado
ções que reproduzem climas bastante distintos, em 1917 como peça instrumental, recebeu apenas em
BR6 cultiva o gosto pelas alterações de maneira semelhante 1936 a letra de João de Barro que conhecemos.22 Muitos
à que o grupo Os Cariocas o fez nos anos 50 e 60. A tradição compositores oferecem suas músicas para poetas colo-
dos grupos vocais na canção popular brasileira é tributária carem letras ou, em movimento oposto, compõem melo-
dos grupos americanos e de Os Cariocas. São as duas prin- dias para letras já existentes. Podemos fazer uma longa
cipais referências na elaboração dos arranjos vocais, mesmo lista de situações semelhantes ou contrastantes com
quando se percebe o balanço da bossa alorando na voz esta. Algumas canções estrangeiras tornam-se grandes
do solista Eduardo Braga e a batucada ilustrando no início sucessos e, depois de receberem a versão em português,
da faixa a origem do samba. O arranjo de André Protásio são apropriadas pelo público como brasileiras. As ver-
mantém a tendência de valorização da harmonização com sões em português são às vezes as únicas gravações
acordes alterados, desenvolvida pelos Cariocas e retomada conhecidas pelo público. A cantora Marisa Monte i-
pelo Garganta Profunda, grupo de grande prestígio nas últi- cou famosa com o pop Bem que se quis do italiano Pino
mas décadas, criado pelo regente Marcos Leite. Daniele com versão de Nelson Motta, tocado na trilha
sonora da novela da Rede Globo O salvador da pátria de
Os arranjos vocais têm destinação prévia especíica. São 1989. O original italiano E po che fà pouco se conhece.
direcionados desde a concepção para o grupo que vai can-
tá-los, de modo que o tipo de conjunto funciona como um O que chama a atenção não são as situações eventuais,
dado previamente conhecido. Talvez por essa razão sejam mas o fato de que, mesmo dispondo desta informação,
menos autorais e mais instáveis ainda que os orquestrais. mantemos como real a ideia de que a canção possui uma
unidade orgânica de pertencimento recíproco: aquela le-
Garraieira se caracteriza por cultivar o samba urbano, so- tra pertence àquela canção e aquela canção àquela letra.
bretudo na forma instrumental, porém, apesar disso, con-
vocou a cavaquinista e vocalista Mariana Bernardes para Na prática ocorre que a canção é criada entre percalços
o solo vocal de O morro não tem vez. O Cd, que valoriza reais, que apagamos da memória em favor da ideia de
os instrumentistas, não dispensou a presença da letra de uma unidade orgânica natural. Acionada, a ideia de or-
Vinícius de Moraes na faixa gravada. De todas as gravações ganicidade ganha existência e age sobre a canção dando
já mencionadas, esta é a mais movimentada e animada, vida a um produto “pronto”.

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A canção – unidade de melodia e letra – é resultado de que se produz. A ênfase reiterada dos arranjos nas notas
naturalização tanto quanto o é o arranjo musical, cujas estranhas à harmonia diatônica não fez com que se dei-
deinições disponíveis ainda são insuicientes para dar xasse a canção de lado, mas antes parece ter estimulado
conta de suas especiicidades e para caracterizá-lo como as regravações, que se renovam desde 1970. É a melhor
prática distinta da criação musical e da composição. comprovação de que a existência de contrastes e tensões
entre elementos de uma mesma peça pode não causar
Os arranjos musicais são de fato composições porque estranheza nem se transformar em fator de rejeição. É
são criações, que, escritas ou não, corporiicam o mo- possível a aceitação de grandes contrastes no peril dos
mento da produção musical. O ponto de vista que con- artistas de capa e na concepção e no estilo dos arranjos.
sidera que o arranjador é um técnico coloca em risco Também são bem absorvidas as estratégias de gravação,
a igura do artista criador, personagem social muito divulgação e consumo, elementos que certamente deter-
valorizado. Os produtos dos arranjadores ainda não se minam o tipo de produto que se quer distribuir.
deiniram como obras autorais porque só interessam
aos instrumentistas que os executam, sendo sua função Não há do que se queixar. O samba continua sendo
restrita a esse momento. São tratados como trabalho gravado com sucesso e continua seduzindo músicos e
derivado e não como obras autorais autônomas, pois a ouvintes que desprezam todas as contradições e incon-
dimensão autoral se esvai após a performance. gruências. Ele permite que os arranjadores ajam como
compositores de fato.
No momento da produção de um disco, o artista que se
anuncia é o cantor e não o arranjador. É o cantor que dá Nem o próprio compositor, Tom Jobim, parece ter re-
nome ao disco, associado ao compositor das canções, a clamado das transformações. Ao contrário, deve ter
eles se atribui função autoral. Eles são os artistas e não o apreciado as harmonizações, pois a revisão dos song-
arranjador, transformado num colaborador a soldo. books, que contém rearmonizações da canção, passou,
O arranjo interfere na produção da canção como obra de é claro, pelas suas mãos. A preocupação com a “pre-
criação e tem força de signiicação para produzir sentido servação de valores autenticamente brasileiros”, com a
e modiicar a própria canção. No entanto, se aceita com “música de raiz” e com a “identidade do samba” ainda
tranquilidade a sua condição de categoria técnica e de não abalou o gosto por O morro não tem vez, nem sen-
trabalho derivado, naturalização que afasta a possibilida- tenciou sua rejeição.
de de inconformismo ou de luta efetiva pela condição de
obra artística e por um lugar no âmbito da arte musical. Se for escrita uma história da recepção das suas grava-
ções talvez se revele mais claramente como estas lutas
Nas gravações de O morro não tem vez os arranjos foram de representação se mantêm apaziguadas, pelo menos o
determinantes e interferem signiicativamente no sentido suiciente para não perturbarem o prazer dos ouvintes.

Referências
CABRAL, Sérgio. Antônio Carlos Jobim. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1997.
CALDEIRA, Jorge (org). A história contada por quem viu. São Paulo: Mameluco, 2008.
CASTELLO, José. O poeta da paixão. Rio: Companhia das Letras, 1999.
JOBIM, Tom. Song book Tom Jobim. Org. Almir Chediak. S. Paulo: Lumiar, [1990]. 3 v.
MARCONDES, M.(org). Enciclopédia de Música Brasileira. S.Paulo: Arteditora, 1977. 2v.
PINO, Julio C. Sources on the history of favelas in Rio de Janeiro. Latin American Research Review, Vol. 32, No. 3 pp. 111-122.
Pittsburgh: The Latin American Studies Association, 1997.
SEVERIANO, Jairo e MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo. 2. ed. S. Paulo: Editora 34, 1998, 2 v.
WELDING, Pete. Antonio Carlos Jobim. Texto na contracapa do disco. Elenco ME-9, 1963.

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MERHY, S. A. Letra, melodia, arranjo, componentes em tensão em O morro não tem vez... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.90-98.

Discograia
BR6. BR6. Biscoito Fino, 2003.
GARRAFIEIRA. Garraieira. Biscoito Fino, 2004.
JOBIM, Antonio Carlos. Antonio Carlos Jobim. Elenco ME-9, 1963.
_____. Antonio Carlos Jobim, the composer of Desainado plays. Verve, 1963.
_____. The Wonderful World of Antonio Carlos Jobim. Warner WS 1611, [1965].
_____. Antonio Carlos Jobim com Nelson Riddle e sua orquestra. Elenco MEV06, 1965.
REGINA, Elis. No ino da bossa - ao vivo – vol.1. Cd- Velas BR - 11-V030.V1, 1994.
RODRIGUES, Jair. O samba como ele é. Lp Philips (P 632.162 L), 1963.
_____. 500 anos de folia – vol.2. Trama T500/196-2. Cd, 2000.

Notas
1 O Theatro Municipal do Rio de Janeiro informa no seu site que, no seu concerto de estreia, a Orquestra Sinfônica do Theatro teve como solista o
tenor italiano Tito Schipa, sob a regência de Francisco Braga. O compromisso de temporadas de óperas, concertos e ballets que incluem artistas
internacionais se formou desde o momento da inauguração do Theatro.
2 Paulo da Portela é personagem principal nas histórias do samba. Ele compõe verbete da Enciclopédia de Música Brasileira onde se descreve com
muitas cores a sua participação nos desiles carnavalescos e nas rodas de samba do subúrbio de Osvaldo Cruz.
3 Interessante a introdução e a reportagem sobre a revolta da vacina no livro organizado por Jorge CALDEIRA (2008, p.447).
4 A favela da Praia do Pinto teria inspirado Vinícius de Moraes a criar a peça Orfeu da Conceição. (c.f. nota 8)
5 Informações completas no site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que idealizou e executa o projeto favela-bairro. (www.rio.rj.gov.br/
habitat/favela_bairro.htm)
6 No site do Grupo Cultural aparecem os dísticos “Música para combater a violência” e “Arte para transformar a realidade”.
7 As datas estão todas indicadas no livro de Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello.
8 A declaração aparece no programa da montagem de estreia da peça.
9 José CASTELLO (1999, p.125), seu biógrafo, descreve também a visita à favela.
10 O cineasta francês Marcel Camus transpôs Orfeu da Conceição para o cinema com o título de L’Orphé Nègre e teve uma premiação triunfante
em 1959, a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor ilme estrangeiro, representando a França. Foi uma excelente divulgação para a
música de Tom e Vinícius e para a canção popular brasileira.
11 Long Play 10”, Odeon MODB 3056, lançado em 1956.
12 LP Philips P 632.162 L.
13 Pot-pourri é sinônimo de medley, termo mais usado hoje.
14 1954 é a data indicada por Sérgio Cabral para o disco Sinfonia do Rio de Janeiro, produzido pela gravadora Continental. (1997, p.514)
15 O Zimbo Trio é um conjunto instrumental brasileiro surgido em 1964 e formado originalmente por Amilton Godoy ao piano, Luís Chaves no
contrabaixo e Rubinho Barsotti na bateria.
16 Nelson Smock Riddle, Jr. (1921 – 1985) foi um conhecido bandleader americano, arranjador e orquestrador cuja carreira se expandiu a partir
do inal dos anos 40. Ele produziu arranjos para vários cantores como Frank Sinatra, Dean Martin, Nat King Cole, Judy Garland, Peggy Lee, Ella
Fitzgerald, entre outros.
17 Claus Ogerman (1930 - ) é um músico de origem alemã, nascido na Prússia (hoje parte da Polônia). Arranjador, regente e compositor, trabalhou
na Alemanha, depois se ixou nos Estados Unidos. Tornou-se muito conhecido no meio musical brasileiro ao compor arranjos para discos de Tom
Jobim e de João Gilberto.
18 Sérgio Cabral conta que a expectativa de Tom Jobim foi frustrada. Ele não se entendeu musicalmente com o arranjador americano. (1997, p.242)
19 Ele fez os arranjos do LP Amoroso de João Gilberto.
20 “As the Schwepps man woud say, this is a most “curiosly refreshing” album. Curious, for during the entire length of the disc, Jobim, who is the
featured soloist, plays what amounts to one-inger piano. Refreshing, because it is one of the loveliest and most deliciously lyrical albums to
result from the bossa nova wave with which we’ve been inundated last year.”
21 “O texto habitual de contracapa que aqui deixa de igurar, é substituído neste caso pela transcrição da crítica de “DOWN BEAT”, “a mais
conceituada revista musical dos Estados Unidos, que considerou este disco um dos melhores da temporada, e que nós temos o privilégio de
oferecer a você.”
22 Severiano (1998, v.1, p.153-154) conta que o próprio Pixinguinha informou a data de 1917 como sendo o ano da composição. A peça instrumental
teve muitas gravações, contudo após receber a letra em 1936 o número de gravações cresceu muito, sendo a primeira a de Orlando Silva em 1937.

Silvio Augusto Merhy é Bacharel em Direito pela UFRJ (1968), Bacharel em Piano pela UFRJ (1968), Mestre em
Música pela UFRJ (1995) e Doutor em História Social pela UFRJ (2001). Atualmente, é Professor Associado II na
UNIRIO. Atua no ensino de música principalmente com Harmonia de Teclado, Transcrição da Canção e História da
Música Popular. Possui proiciência em russo, alemão, francês, inglês, espanhol e noções de grego. Ainda na UNIRIO,
foi Diretor do Instituto Villa-Lobos e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Música.

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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.

Chovendo na roseira de Tom Jobim:


uma abordagem schenkeriana

Carlos de Lemos Almada (UNIRIO, Rio de Janeiro, RJ)


calmada@globo.com

Resumo: O presente artigo examina a canção Chovendo na roseira, de Antônio Carlos Jobim, focando as relações estru-
turais aprofundadas existentes entre melodia, harmonia e forma. Isso é realizado através do método da análise schenke-
riana, que recebe aqui algumas adaptações, de maneira a se ajustar apropriadamente às características dessa peça
especíica. Como resultado do processo analítico observa-se uma integração consistente e hierarquizada entre diversos
fenômenos melódico-harmônicos presentes na superfície musical e em camadas estruturais internas, revelando relações
inusitadas para uma peça de música popular. É especiicamente marcante a onipresença do intervalo de quarta justa,
iniltrado nos mais diversos aspectos da construção musical, em todos os níveis estruturais observados.
Palavras-chave: Chovendo na roseira; Tom Jobim; análise schenkeriana.

Chovendo na roseira by Tom Jobim: a Schenkerian approach

Abstract: The present article examines the song Chovendo na roseira by Brazilian composer Antônio Carlos Jobim with
focus on the deep structural relationships that exist among melody, harmony, and form. This was accomplished by us-
ing procedures of the Schenkerian analysis, here adapted for better adjustment to the characteristics of this speciic
piece. From the analytical process, it is possible to observe a consistent and hierarchical integration among the several
melodic-harmonic phenomena present on the musical surface and some of the internal layers, which reveal relationships
that are unusual in a popular music piece. It is especially remarkable the ubiquity of the interval of the perfect fourth,
which is embedded in several of the aspects of musical construction, in all structural levels considered.
Keywords: Chovendo na roseira; Tom Jobim; Schenkerian analysis.

Introdução
A harmonia da bossa nova, em comparação com a de outros mais impressiona em algumas dessas peças, entretan-
gêneros da música popular brasileira (em especial, o samba), to, é a existência de relações melódico-harmônicas
é frequentemente qualiicada como “soisticada”, o que é “subterrâneas”, ancoradas em camadas estruturais
em geral atribuído a dois tipos de preferências construtivas: mais profundas, o que recebe ainda pouca atenção no
pelo acréscimo de tensões nos acordes (nonas, décimas pri- âmbito acadêmico.2
meiras e décimas terceiras, por vezes também alteradas) e
pela escolha de relações remotas entre estes e o centro tonal O presente artigo pretende examinar uma das mais pecu-
de referência (em especial, os acordes pertencentes à classe liares estruturas melódico-harmônicas dentro da música
dos chamados empréstimos modais).1 popular brasileira: aquela que dá corpo à canção jobinia-
na Chovendo na roseira. Para tal, a análise schenkeriana
Inúmeras canções de Antônio Carlos Jobim, reconheci- apresentou-se como o mais adequado método de aborda-
damente o principal compositor do gênero, formam um gem, o qual, no entanto, exigiu certas adaptações, tendo
perfeito exemplo desse tipo de tratamento harmônico, em vista algumas características da referida canção (tais
algo que não traz por si só qualquer novidade. O que adaptações serão explicitadas no decorrer do estudo).

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 27/11/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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ALMADA, C. L. Chovendo na roseira de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.99-106.

Cristóbal Gallardo, em um artigo online no qual exami- cendente (Urlinie), seja ela 8ˆ - 7ˆ - 6ˆ - 5ˆ - 4ˆ - 3ˆ - 2ˆ - 1ˆ
na o emprego da análise schenkeriana em peças do re- (no caso da opção pela centricidade em Lá) ou
pertório de música popular (GALLARDO, 2000), comenta 5ˆ - 4ˆ - 3ˆ - 2ˆ - 1ˆ (na alternativa Ré maior). Observa-se,
sobre a necessidade de que o próprio objeto de estudo ao contrário, uma prolongação da nota estrutural
forneça condições propícias que justiiquem tal opção Lá por quase toda a seção, seguindo-se de um mo-
metodológica.3 Segundo o autor, essas condições devem vimento ascendente em direção a Dó#, através da
corresponder, em diferentes medidas, às assunções mais nota de passagem Si. Deve-se atentar para o fato
fundamentais da teoria elaborada por Schenker, das quais de que o Dó# encontra-se associado não ao acorde
a mais importante e determinante para a justiicação do inicial (I grau em Lá mixolídio ou V em Ré maior),
emprego do método é que a peça a ser analisada apresen- o que implicaria uma simples prolongação harmô-
te uma linha melódica composta por notas que se subor- nica da fundamental à terça, mas a um acorde de
dinem a outras, e que isso possa se observar em relações qualidade de sétima dominante sobre a fundamental
recursivas, em diferentes níveis estruturais.4 Fá#, como sua quinta.8 Como se observa no Ex.1-b, a
tal progressão melódica de terça ascendente Lá-Dó#
É precisamente tal aspecto que justiica a presente abor- corresponde um movimento espelhado na linha do
dagem. Como será aqui demonstrado, a canção Chovendo baixo, descrevendo também um intervalo de terça,
na roseira apresenta um notável planejamento arquitetô- porém descendente (Lá-Fá#), em cujo âmbito a nota
nico em várias camadas de signiicação musical, mutu- Sol$, embora não presente na partitura, é nitidamen-
amente conectadas em nítidas relações de hierarquia, a te implícita. O Ex.2 resume sucintamente toda a se-
partir de sua própria superfície. ção A, revelando o interessante esquema de simetria
espelhada, cujo eixo é a própria Kopfnote Lá.
Chovendo na roseira possui algumas características inusi- • É consideravelmente signiicativa para a estrutu-
tadas dentro do universo bossanovista, como é o caso da ração global da canção a presença do intervalo de
métrica ternária5 e de sua grande extensão (62 compas- quarta justa descendente – justamente o motivo me-
sos). É possível subdividí-la em três seções: A (c.1-22); B lódico que inicia a peça – entre as notas Lá e Mi (c.1-
(c.23-36); C (c.37-51), após a qual segue-se um da capo 2) e Mi e Si (c.5-6, repetido nos c.9-10). Tal aspecto
(c.1-13) e uma coda (c.52-62). É também interessante a da melodia (saliente na própria superfície musical) é
organização harmônica da canção, que sugere (ao menos suportado pelo plano harmônico, o que se consta-
no plano supericial) dois pólos modais (nas seções A e C) ta através da proeminência de acordes de qualidade
intercalados por um trecho irmemente tonal (seção B).6 dominante com quarta suspensa:9 A7(sus4) (alter-
nando com A6 entre os c.1-18) e F#7 (sus4) (em al-
O Ex.1 apresenta a seção A da canção e três sucessivas ternância com F#7 entre os c.19-22). No exame das
reduções analíticas. demais seções a ubiquidade do intervalo de quarta
será ainda mais enfatizada, tanto nos aspectos me-
Sobre a análise do trecho é possível fazer as seguin- lódico quanto rítmico.
tes observações, de acordo com as diferentes camadas
consideradas: A análise da seção B (c.23-36) é apresentada no Ex.3,
compondo-se do nível supericial e de duas reduções.
• Uma evidente centricidade em Lá e a presença cons-
tante (na harmonia e na melodia) da altura Sol, a Observações:
despeito do Sol# expresso na armadura de clave da • É fácil perceber no Ex.3-a uma segmentação simé-
partitura, sugerem uma organização harmônica mo- trica dos 14 compassos da seção B em duas metades
dal (Lá mixolídio) para o trecho. Uma interpretação (c.23-29 e c.30-36), em um nítido esquema de se-
alternativa seria considerar toda a seção A como quenciação estrita de modelo por intervalo de se-
uma prolongação do acorde dominante de Ré maior. gunda maior descendente.
Em vista dos desdobramentos futuros, opto por dei- • Chama também a atenção no superfície musical a
xar temporariamente a questão em aberto. onipresença da relação intervalar de quarta justa
• Como se percebe no Ex.1-a, tensões (nonas) e ou- ascendente entre as fundamentais dos acordes em
tros acréscimos aos acordes (sextas e quartas, es- cada metade da seção.
tas em substituição a terças), idiomáticos na bossa • Como se observa no Ex.3-b, o motivo melódico prin-
nova (assim como na valsa-jazz), apresentam-se cipal da canção, o salto de quarta justa descendente
aqui como elementos harmônicos estáveis (i.e., sem (ver Ex.1-b), é aqui ampliado para quinta (inversão
necessidade de resolução), incorporadas às tríades intervalar da quarta), propagando-se em sequência.
diatônicas tradicionais.7 Fica evidente na redução a existência de uma me-
• A primeira redução (Ex.1-b) evidencia a importân- lodia composta, formada por duas linhas escalares
cia do Lá inicial como nota principal (Kopfnote, na descendentes que, como se constata no Ex.3-c, têm
terminologia schenkeriana). No entanto, ao contrário como objetivo prolongar os acordes principais em
do que se observa em uma análise schenkeriana tra- cada uma das duas metades da seção, respectiva-
dicional, tal nota não inicia uma linha diatônica des- mente, D7M9 e C7M9.

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Ex.1 – Chovendo na roseira, seção A (c.1-22): a) superfície; b) c) d) três níveis intermediários.

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• Sob uma perspectiva estrutural mais ampla, pode- • A centralidade em Lá é incontestável, o que inviabi-
mos considerar a primeira metade (centrada em Ré) liza a alternativa de Ré maior como tonalidade prin-
como hierarquicamente superior à segunda (em Dó). cipal da canção.
Isto se deve basicamente a dois fatos: (1) a Kopfnote • No lugar de uma Urlinie convencional, percebe-se
Ré consititui-se um objetivo esperado, a partir dos uma estrutura melódica básica descrevendo um arco
acontecimentos desenrolados na seção A, tanto no de quarta justa ascendente (em percurso diatônico),
plano harmônico – a prolongação de A7 – quanto no e que retorna ao ponto de partida de maneira quase
melódico – a ascenção Lá-Si-Dó# (ver Ex.2); (2) Dó, cromática, com um apoio intermediário no segundo
na metade da seção B, funciona, assim, como uma grau da escala (na seção C);
passagem não-diatônica entre as notas estruturais
Ré e Si, esta como cabeça da seção C (ver Ex.4). • O intervalo de quarta justa é também evidenciado
como relação proeminente entre os baixos estrutu-
Observações referentes à seção C (Ex.4): rais. O esquema permite considerar o até aqui “enig-
mático” Fá# da seção A como a dominante secun-
• A forte semelhança desta linha melódica com aquela dária do Si que encabeça a seção C (ver a ligadura
da seção A (comparar especialmente a atuação do prolongacional entre as duas notas no Ex.5), com a
motivo principal, Exs. 1-b e 4-b), bem como a ma- seção B (centrada em Ré) intermediando a resolução.
nutenção de um pedal sobre o centro de referência Um reordenamento dos baixos principais explicita
(neste caso, Si) sugerem para o trecho a função de ainda mais a importância do movimento de quartas
reexposição da parte principal, ainda que variada e como elemento estrutural na canção (Ex.6);
transposta por intervalo de segunda maior ascen-
dente. Contudo, tal paralelismo é atenuado por um
fator ao mesmo tempo distintivo e decisivo: uma
Conclusões
Este estudo buscou examinar as complexas relações
linha cromática descendente, de Mi3 a Mi2 (em des-
estruturais presentes na canção Chovendo na roseira.
taque no Ex.4-b), extraída como voz interna no en-
Para isso tornou-se necessário o emprego dos recursos
cadeamento dos acordes.10 De acordo com a presente
da análise schenkeriana que, a despeito das adaptações
análise, é justamente tal linha, associada ao pedal
efetuadas, em virtude das características especíicas da
em Si, que orienta a estrutura harmônica da seção
peça, mostrou-se como a ferramenta ideal para tal in-
e, consequentemente, a própria escolha dos acordes.
vestigação no grau de profundidade adequado. É espe-
• A linha cromática transforma-se, assim, de um cialmente marcante na análise da canção a presença do
elemento subordinado e relativamente oculto na intervalo de quarta justa, nos mais variados aspectos e
superfície musical em fator determinantemente es- níveis estruturais, desde o principal motivo melódico (na
trutural em níveis mais profundos, desmontando o superfície musical) à arquitetura harmônica básica (apre-
paralelismo mais evidente entre os fenômenos mu- sentada pelas relações de baixos primordiais), passando
sicais das duas seções. A prolongação do Mi (atra- pela organização formal das seções, pela constituição
vés da escala cromática) rivaliza-se em importância de vários acordes (aqueles com quarta substituta e com
àquela do Si da linha melódica principal, o que leva nonas acrescentadas) e pelo próprio contorno da – por
à conclusão de que, ao contrário do que acontece analogia – “Urlinie” resultante. É também interessante
na seção A, a harmonia prolongada não é a que constatar que o modalismo (mixolídio) presente nas se-
inicia o trecho (B7), mas sim a que o inaliza (E7), ções A e C é um fenômeno meramente supericial, sendo,
como evidencia o Ex.4-c. por assim dizer, neutralizado sob uma perspectiva mais
• O Ex.5 resume e agrupa as análises das três seções básica, o que se observa nas relações harmônicas da “Ur-
(Exs.1, 3 e 4), com o acréscimo da recapitulação da satz” da canção (ver Ex.5). Julgo que os resultados obti-
seção A e o subsequente pulo para a coda (que nada dos estimulam a aplicação de novas adaptações do mé-
mais é do que uma prolongação das sonoridades ini- todo schenkeriano em outras análises futuras de peças de
ciais), apresentando uma estrutura análoga à habi- Antônio Carlos Jobim, principalmente visando investigar
tual Ursatz da análise schenkeriana. se a extraordinária capacidade de organização musical
em camadas estruturais constatada neste trabalho está
Desse esquema podem ser extraídas algumas observa- também presente em outras obras do rico e variado re-
ções interessantes: pertório desse formidável compositor.

Ex.2 – Chovendo na roseira, seção A (c.1-22): plano geral

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Ex.3 – Chovendo na roseira, seção B (c.23-36): a) superfície; b) c) dois níveis intermediários.

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Ex.4 – Chovendo na roseira, seção C (c.37-51): a) superfície; b) c) dois níveis intermediários

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Ex.5 – Chovendo na roseira, estrutura primordial

Ex.6 – Chovendo na roseira, reordenamento da sequência dos baixos estruturais

Referências
ALMADA, Carlos de L. Samba de uma nota só: elementos musicais a serviço da expressão poética. In: XIX ENCONTRO
ANUAL DA ANPPOM, 2009. Curitiba. Anais ... Curitiba: UFPR, 2009. 1 CD-ROM (3 p.).
FORTE, Allen. The American popular ballad of golden era., 1924-50. Princeton: Princeton University Press, 1995.
GALLARDO, Cristóbal L. Garcia . Schenkerian analysis and popular music. Transcultural Music Review, nº 5, 2000.
Disponível em: http://www.sibetrans.com/trans/trans5/garcia.htm. Acesso em: 30/10/2009.
GAVA, José E. A linguagem harmônica da bossa nova. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
GILBERT, Steven E. Gershwin´s art of counterpoint. Musical Quaterly, Nº 70/4, p. 423-56, 1984.
INSTITUTO ANTÔNIO CARLOS JOBIM. Disponível em: http://www.jobim.org/jspui/acervo/acervodigital.jsp. Acesso em:
15/5/2009.
JOBIM, Antônio C. Chovendo na roseira. In: Songbook Tom Jobim (vol. 3). Partitura. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994, p. 32-34.
MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Buckingham: Open University Press, 2002.
PY, Bruno de Oliveira. Estrutura tonal na obra de Tom Jobim: uma abordagem schenkeriana da canção “Sabiá”. 2004.
Dissertação (Mestrado em Música) – Escola de Música, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Notas
1 Para análises harmônicas de peças bossanovistas ver, por exemplo, GAVA (2002).
2 Para uma análise estrutural de uma canção de Jobim (em parceria com Newton Mendonça) – Samba de Uma Nota Só –, com enfoque especial na
relação entre texto e música, ver ALMADA (2009). Ver também PY (2004), que realiza uma abordagem de Sabiá, outra famosa composição de Jobim,
a partir dos métodos da análise schenkeriana.
3 É também pertinente conhecer o pensamento de Richard Middleton sobre o assunto: “não há razões para que a análise schenkeriana não possa ser
aplicada em canções populares regidas pelo processo funcional tonal” (MIDDLETON, apud PY, 2004, p.21).
4 Outros pré-requisitos seriam: idioma tonal, estrutura harmônica calcada em tríades diatônicas (em especial, os graus I e V) e que a melodia da peça
possa ser reduzida a uma linha descendente diatônica e em graus conjuntos (Urlinie), iniciando-se em III ( 3ˆ ), V ( 5ˆ ) ou I ( 8̂ ). Contudo, o próprio
autor admite que tais “exigências” podem ser atenuadas ou até mesmo suprimidas de acordo com as particularidades de cada situação. É o caso, por
exemplo, do característico emprego de tensões harmônicas não resolvidas em certos gêneros da música popular – entre os quais, a bossa nova –, o
que concede a tétrades e pêntades estabilidade análoga à das tríades tradicionais. De acordo com Schenker, as dissonâncias presentes na superfície
de uma peça musical nascem dos movimentos contrapontísticos das vozes, a partir de consonâncias, hierarquicamente superiores. Segundo Gallar-
do, a discordância em relação a esse preceito schenkeriano não necessariamente desqualiicaria uma análise. Como será mencionado, a utilização
de tensões não resolvidas em acordes estruturalmente estáveis também acontece em Chovendo na Roseira
5 Em nome de uma maior precisão, talvez fosse mais apropriado classiicar Chovendo na Roseira como representante do gênero “valsa-jazz” (e não
como uma típica canção bossanovista), considerando não apenas os contornos rítmicos de sua linha melódica, calcados essencialmente em grupos
de colcheias, mas principalmente a execução destas, efetuada dentro do assim chamado jazz feeling (i.e., dividindo os tempos na proporção 2/3-1/3,
no lugar da notada 1/2-1/2). Contudo, seja qual for a opção escolhida para a classiicação do gênero da canção, trata-se de um fator de pouca ou
nenhuma relevância para os objetivos deste trabalho.
6 Como será demonstrado, o caráter modal das seções A e C representam fenômenos relativamente supericiais: estratos mais profundos revelam
novos papéis para essas seções no esquema global da estrutura harmônica.
7 Este aspecto é enfatizado por Gallardo como uma das adaptações necessárias em análise schenkerianas de peças de música popular. O autor cita
especialmente trabalhos de Steven Gilbert (1984), a partir de análises de obras de George Gershwin, e de Allen Forte (1995), sobre a balada popular
norteamericana, em cujo texto foi cunhada a expressão “dissonâncias estáveis” [stable dissonances] (FORTE, 1997, p. 43).
8 A presença desse acorde tem um caráter um tanto enigmático, já que não é resolvido da maneira convencional. A razão de sua existência, como
será visto, só se revela sob uma perspectiva mais global da estrutura da peça.
9 Ou seja, acordes de sétima dominante nos quais a terça maior é substituída pela quarta justa. Por exemplo, as notas que compõem A7(sus4) são:
Lá, Ré (substituindo Dó#), Mi e Sol. As mesmas notas dispostas como Mi-Lá-Ré-Sol constituem uma sucessão de três quartas justas ascendentes
(a inclusão da nona do acorde – Si – no grupo amplia ainda mais a sequência quartal).
10 O encadeamento de acordes baseado na escala cromática descendente é uma das características mais marcantes da construção harmônica de
Jobim. A condução cromática, no entanto, apresenta-se em geral na linha do baixo (por exemplo, em Samba de Uma Nota Só, Corcovado, Inútil
Paisagem, Brigas Nunca Mais, etc.). Para maiores detalhes, ver ALMADA (2009, p. 704-6).

Carlos de Lemos Almada é lautista, compositor, arranjador, professor e autor de livros sobre teoria musical e análise
(“Arranjo”, Editora da Unicamp, 2000, “A estrutura do choro”, Editora Da Fonseca, 2006 e “Harmonia funcional”, Editora
da Unicamp, 2009). É doutorando em Música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, cuja pesquisa visa
a análise da estrutura harmônica da Primeira Sinfonia de Câmara, op.9, de Arnold Schoenberg, dando continuidade a
estudo realizado sobre a estrutura formal da mesma obra, durante o mestrado. Atualmente é professor de Harmonia e
Análise na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

As características pós-modernas na obra


Rimsky de Gilberto Mendes

Vera Lúcia Rocha Pedron Peres (USP, São Paulo, SP)


verarochape@hotmail.com

Resumo: O pós-modernismo na música ainda busca critérios que permitam sua compreensão, entre eles traços como
fragmentação, descontinuidade, citação, justaposição de estilos e pluralismo. O presente estudo visa demonstrar as cara-
cterísticas pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes por meio da análise de suas referências existentes, tendo
em vista os procedimentos que norteiam as composições e os pressupostos pós-modernos. Além da identiicação dos
elementos paradigmáticos, e para ir além de uma abordagem indutiva (limitante, porque sincrônica), busca-se a identii-
cação da obra em relação ao modernismo (de crítica e de extensão), enfatizando suas diferenças constatadas na sintaxe,
na epistemologia e na ideologia. São abordados os limites conceituais que se aproximam e se distanciam do modernismo
buscando contribuir na relexão da arte na atualidade.
Palavras-chave: Gilberto Mendes; Rimsky; quinteto; pós-modernismo; sintaxe musical; descontinuidade musical; plu-
ralismo musical; fragmentação musical; citação musical.

Postmodern characteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes

Abstract: Postmodernism in music still needs criteria to facilitate its understanding, such as traits like fragmentation,
discontinuity, quotation, juxtaposition of styles and pluralism. This study aims at demonstrating the postmodern char-
acteristics in the work Rimsky by Brazilian composer Gilberto Mendes by means of analysing its existing references and
having in mind the procedures that organize postmodern assumptions and musical compositions. Besides the identiica-
tion of paradigmatic elements, and in order to surpass a simply inductive approach (restrictive because of its synchronic
nature), it tries to connect the work to modernism (in both criticism and extended ields), emphasizing its differences in
syntax, epistemology and ideology. The conceptual limits that make it closer and apart from modernism are discussed as
an attempt to contribute to the relection about the art today.
Keywords: Gilberto Mendes; quintet; Rimsky; postmodernism; musical syntax; musical discontinuity; musical pluralism;
musical fragmentation; musical quotation.

1. Introdução variável que se adote em relação ao modernismo gerou


Originalmente criado na década de 1930 por Federico de controvérsias entre os teóricos. Das discussões travadas
Onís1 a ideia de um estilo pós-moderno não tem atual- depreendeu-se a conclusão de que pós-moderno não é
mente nada da precisão que este lhe atribuía. Em nossa uma categoria que possa caracterizar nosso zeitgeist em
contemporaneidade pós-moderno é uma palavra com- todos os seus aspectos e com claros critérios deinidos.
posta que incorre em equívocos. Aplicado em várias áre- O termo “pós-moderno” cujo “moderno” está implícito
as diferentes, este termo ressurgiu nos anos 80 sem sua foi defendido a partir de vários posicionamentos sem
exata deinição. O que é pós-moderno? Como deini-lo? nenhum consenso. “Pós-modernismo”, portanto, deve
ser considerado como uma extensão do modernismo, do
É importante retermos que o preixo “pós” não signiica contrário, toda a música não-moderna desde o im do
apenas depois no tempo. ”Pós” admite aspectos estéti- século XIX poderia ser classiicada como pós-moderna.
cos de ruptura e de extensão do modernismo. A discus- Em termos estéticos, se fragmentação, justaposição, ci-
são sobre a imprecisão da palavra pós-moderno como um tação, pluralismo, não são categorias estritamente pós-
termo composto cujo signiicado depende do signiicado modernas onde devemos situar sua diferença?

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 27/10/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

O percurso adotado neste trabalho efetua a análise da reconhecimento de uso de referências que primam pela
obra Rimsky (2003) de Gilberto Mendes a partir da air- exclusão da intelectualidade e da seriedade.
mação dos autores Boudewijn BUCKINX2 e Rodolfo CO-
ELHO DE SOUZA3 que o apontam como um compositor Evidenciamos em sua fatura a preferência do autor pelo
pós-moderno para veriicar as principais característi- uso de acordes de 9a., que evocam o universo harmônico
cas que possam pontuar essa hipótese e que permitam do impressionismo e do jazz.
exempliicar, esclarecer, corroborar uma apuração objeti-
va dessa tendência estética, como tentativa de detectar A associação livre delineia-se incitando a imaginação e a
uma mudança estrutural. memória, permitindo ao ouvinte a possibilidade de efe-
tuar reconhecimentos. O luir dos acontecimentos novos
2. Apresentação da obra Rimsky de Gilberto se sucede até decorrer um terço da obra quando passa a
Mendes ser realimentado pelos fragmentos passados em sobre-
A obra Rimsky (composta em 2003, na 3ª. fase de Men- posição constituindo um ritornello sem inal conclusivo.
des) inicia-se com a introdução de uma série atípica (isto Apresenta diferentes andamentos relacionados em uma
é, não dodecafônica ortodoxa) que cria uma circunspec- única estrutura. A notação é tradicional. O aspecto tem-
ção na escuta. De desenvoltura rizomática4, descontínua, poral é métrico, os parâmetros são tradicionais (melodia,
implica na possibilidade de mudança que se transforma uso da barra de compasso). O aspecto harmônico é ora
numa ordem diversa, delineiam-se fragmentos de ci- tonal, ora atonal, ora modal, às vezes ambíguo (quando
tações, estilemas5 que se sucedem através de acordes/ veriicado na utilização da série e seus desdobramentos).
obstáculos, sem conexões. Aludindo períodos e estilos
diferentes e apesar da fragmentação e choques de signi- A formação instrumental é tradicional. Vale observar:
icados, resulta num só io condutor onde o clima impe- nesta, como em outras obras, o autor não dá nomes tra-
rante (salvo o trecho atonal, mais abstrato e mais denso) dicionais de formas às suas músicas, mas nome literário.
é de alegria (pertencentes ao repertório popular como: No entanto, Rimsky é um quinteto para piano e cordas.
ritmos de dança, música de cinema, bossa-nova), ou seja, Examinemos com exemplos musicais esses procedimen-
que promove o envolvimento direto do ouvinte através do tos que serão utilizados nas análises subsequentes.

3. Listagem das referências existentes:6


Os exemplos Ex.1 a Ex.16 trazem as referências em Rimsky de Gilberto Mendes discutidas nesse artigo.

Ex.1 – Citação de Sheherazade (recitativo) em Rimsky de Gilberto Mendes (c.6-7)

Ex.2 – Elementos inspirados em Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes (c.58-59)

Ex.3 – Elementos de Sheherazade transformada em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74-76)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex.4 – Elementos livres com fragmentos de citação de Sheherazade em Rimsky de Gilberto Mendes
(c.20-22)

Ex.5 – Minimalismo em Rimsky de Gilberto Mendes (c.23-24)

Ex.6 – Música para cinema em Rimsky de Gilberto Mendes (c.40-47)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex.7 – Trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes


(c.80 – 94, p.18)

Ex.8 – Cadenza para piano em Rimsky de Gilberto Mendes


(c.95 – 102)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex.9 – Fox trot em Rimsky de Gilberto Mendes (c.90-94)

Ex.10 – Ritmo (Nordestino Brasileiro) em Rimsky de Gilberto Mendes (c.13-14)

Ex.11 – Rock lento em Rimsky de Gilberto Mendes (c.38-40)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex.12 – Bossa Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c.56-57)

Ex.13 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em


Rimsky de Gilberto Mendes (c.48-50)

Ex.14 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.61-62)

Ex.15 – Tango em Rimsky de Gilberto Mendes (c.69-72)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Original (violino I, c.1-2)

Inversão (violino I, c.12-13)

Retrogradação (violino II, c.28-29)

Inversão Retrógrada (viola, c.36-37)

Ex.16 – A série e suas inversões em Rimsky de Gilberto Mendes

4. Percurso da escuta em Rimsky de Gilberto Mendes


O percurso de escuta de Rimsky de Gilberto Mendes é detalhado abaixo, com a listagem dos traços existentes encontra-
dos, sua localização por compasso e timing em cada uma das sete seções e recapitulação da obra:

SEÇÃO I: Part./compasso CD/counter

Apresentação da série original 1-2 00:01 – 00:07


Transição 3 00:10 – 00:24
Acorde de sexta 4 00:25
Motivo inspirado em Rimsky Korsakov 4-5 00:26 – 00:33
Citação de Sheherazade 6 00:34 – 00:40
Oscilação (acorde de la m com 7a, 9a, 11a) 8-10 00:40 – 00:58

SEÇÃO II:

Inversão da série 12-13 01:02 – 01:08


Evocação de ritmo brasileiro (piano e cordas) 13-17 01:09 – 01:49
Citação de Sheherazade (piano) 17-18 01:52 – 01:57
Citação de Sheherazade (violinoI) 19 01:59 – 2:05
Passagem livre com menção de Sheherazade 20-22 02:06 – 02:19
Minimalismo 23-27 02:20 – 03:30

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

SEÇÃO III:

Retrogradação da série 28-29 03:33 – 03:42


Passagem livre no piano 30-31 03:42 - 03:49
Ritmo (cordas) 32-34 03:51 – 04:07

SEÇÃO IV:

Inversão retrógrada da série 35-37 04:08 – 04:18


Ritmo de rock lento 38-40 04:19 – 04:28
Música de cinema (apoiada em acorde de 4a. e 7a.) 40-47 04:30 – 05:00
Citação do Quinteto para piano e sopros 48-50 05:01 – 05:25
Melodia no piano 51-54 05:26 -05:53
Início de bossa nova no piano 55-57 05:54 – 06:09
Elementos inspirados em R. Korsakov + bossa nova 58-59 06:10 – 06:26
Finalização de bossa nova no piano 60 06:27 – 06:34
Melodia derivada da série + rock lento (piano) 61-68 06:35 – 07:35
Tango (melodia derivada da série + ritmo/tango) 69-72 07:35 – 08:24
Bossa nova + Sheherazade transformada 73-76 08:24 – 08:52
Acorde menor c/ igura de improviso como clichê 77-79 08:53 – 09:03

SEÇÃO V:

Trecho atonal + rock lento (piano) 80-94 09:04 - 11:03

SEÇÃO VI:

Cadenza p/piano (com fragmento de bossa nova) 95-103 11:04 – 11:46

RECAPITULAÇÃO:

Tango (harmonia e ritmo) 102-104 11:47 – 11:52


Ritmo (cordas) 105-106 11:53 – 12:02
Bossa nova 107-108 12:03 – 12:13
Melodia derivada da série + rock lento (piano) 109-116 12:14 – 12:49
Lirismo 117-120 12:50 – 13:09
Final sem conclusão (acomp. de rock lento/piano) 121-123 13:10 – 13:28

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

5. Análise da obra: detalhamento da análise uma singularidade exige uma solução de percurso (na
pormenorizada dos procedimentos medida em que pode elaborar saídas feitas por infe-
rências locais). Inserida dentro de um sistema ato-
5.1. A citação e a sintaxe nal/tonal (cuja série o corrobora) sai dessa ambiência
Rimsky foi escrita por encomenda de Philip Rathé, di- ambígua e converge para a tonalidade usada por Kor-
retor do Spectra Ensemble, da Bélgica, para ser estre- sakov (Ex.18).
ada em 2000 em um Festival da Rússia. Tem, portanto,
um projeto extramusical de homenagem ao compositor Portanto, é importante notar que a melodia da “Shehera-
russo Nikolai Rimsky-Korsakov (1844-1908). As cita- zade de Mendes” é inalizada pela nota ré e não mi como
ções de temas em Rimsky têm um intuito evocativo e em Korsakov. Em Korsakov encontramos uma continuidade.
referem-se às obras de Rimsky-Korsakov: Sheherazade Em Mendes há uma descontinuidade e uma interrupção.
e Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros. Para
a veriicação do original, recorremos à sua redução para Outro exemplo neste sentido é a citação do Quinteto em
piano a duas mãos. Observemos a melodia que Korsakov Si bemol Maior para piano e sopros de Korsakov (Ex.19).
introduz no recitativo de Sheherazade, apresentado Este trecho de Korsakov acima demonstrado aparece citado
pelo solo de violino (Ex.17). em Mendes e com repetição idêntica (diferentemente do
trecho de Korsakov). Encontramo-lo entre o trecho onírico
Em seguida, observemos a 1ª. citação de Korsakov em (que o autor denomina de música para cinema (c.40-47))
Mendes (c.6). Veremos que a utilização desta como e um tema lírico feito pelo piano (c.51-55). Podemos notar

Ex.17 – Recitativo em Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c.14-15)

Ex.18 – Citação de parte do tema de Sheherazade de Rimky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.6-7)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex.19 – Solo de trompa no II Movimento do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov (c.5-8)

Ex.20 – Citação do Quinteto em Si bemol Maior para piano e sopros de Rimsky-Korsakov em Rimsky de Gilberto Mendes (c.49-51)

que estas são diferentes concepções que agora se tornam a diferentes estados afetivos. A fragmentação efetuada
equalizadas, convivendo paciicamente (p.8-11) (Ex.20). na obra se realiza através de um procedimento duplo:
promove o declínio da inteireza e da continuidade e ao
O que resulta diferente então, são as sintaxes como con- mesmo tempo propicia a uniicação na medida em que
cepções absolutamente opostas: a de Korsakov é teleoló- torna as frases musicais equalizadas onde as possíveis co-
gica, enquanto que a de Mendes é casual7. nexões não revelam seus pontos de ligação, tornando-os
imperceptíveis. O uso do fragmento não exige desenvol-
Outro ponto importante a frisar é que se a composi- vimento, não se submete a nenhuma forma, prevalecendo
ção de Mendes visa realizar uma homenagem, a citação o prazer do perder-se. Não há mais estruturação por re-
não pode ser irônica. A inalidade da citação é evocar gras sistemáticas. O tempo torna-se simultânea e para-
Sheherazade, o Quinteto em Si bemol Maior para piano doxalmente não-linear, sem se opor à continuidade, sem
e sopros de Korsakov e não desigurá-la, isto é, Mendes adotar a causalidade. Esta impressão é possibilitada pela
pretende torná-la audível, propiciar o reconhecimento admissão de fragmentos diferenciados que promovem a
de maneira lúdica, como evocação, fazendo um apelo à perda da totalidade e tornam-se indiferenciados em sua
memória, para produzir efeitos de verdade. Já a erudição coexistência, desaiando a noção de centro.
enciclopédica referente ao Quinteto em Si bemol Maior
não conigura a certeza de ser efetivada com a mesma Segundo Calabrese (1988), a citação pós-moderna torna-
eiciência. se um elemento de imprecisão. Nega a precisão e a ordem,
valorizando o conceito de “vago” (p.178). Como vimos,
Outros trechos evidenciam o aparecimento do mesmo com esse tipo de citação, passado e presente tornam-se
tema de Sheherazade transformados pela exigência ca- sincrônicos, improváveis. O passado necessitará sempre
sual da sintaxe em Rimsky de Gilberto Mendes (c.17-22). ser modiicado pelo presente, reatualizado, uma vez que
Aqui há também modiicações efetuadas nos conins precisa ser inserido em um novo contexto. Torna-se um
da citação (início e im) e inserção de elementos livres desaio à arte aurática , na medida em que se traduz num
que conluirão em novas descontinuidades, cuja linha de ready-made, num simulacro e numa contestação do esta-
fronteira em seu inal é estendida. tuto da arte enquanto originalidade e subjetividade. Não
existe preocupação com a precisão e sim com a evocação
É assim que através da utilização de materiais fragmen- da memória afetiva transposta imprecisamente e adapta-
tados constituiu-se essa sintaxe tipiicada como plura- da dentro da linha sonora em curso. A citação em Mendes
lista e inclusiva. A sintaxe é desconstruída em prol da não é perspícua, não se importando com a autenticidade
iguralidade onde as imagens preponderam dando lugar à da fonte. Esta é uma característica importante que joga
busca de novas sensações. Inverte-se a primazia da forma com a relação entre o verdadeiro e o falso. Apesar de im-
sobre o conteúdo: agora é o conteúdo que determina o precisa, necessita apenas da existência do saber enciclo-
processo composicional, possibilitando várias associações pédico do ouvinte, como mostrado nos pares de exemplos

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex.21a-Ex.21b e Ex.22a-Ex.22b. recer a natureza do “discurso”) (Ex.23).


O recurso do corte veriicado através da mudança brusca Veriicamos que Mendes se apropria do gesto de Kor-
(contraste) de andamento e dinâmica (mp/f; transmuta- sakov dentro de uma concepção de improvisação idio-
ção de semínima 60 para 120) corrobora a existência da mática introduzindo elementos (ritmico-melódicos)
subtração das conexões decorrente da opção pelo proce- rapsódicos transformados, que se apresentam como
dimento inclusivo (o que permite contribuir para obscu- iguras de clichê características da improvisação (c.78,

Ex.21a - Motivo apresentado pelo fagote no II movimento de Sheherazade de Rimsky-Korsakov (c.5-9)

Ex.21b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74-76)

Ex.22a – Motivo melódico-ritmico de Korsakov (IV Movimento de Sheherazade, c.54-69)

Ex.22b – Motivo de Korsakov (mostrado acima) transformado em Rimsky de Gilberto Mendes (c.58-59)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

p.17). A utilização do recurso do fragmento revela o re- Em Rimsky, a série introduzida por Gilberto Mendes sub-
torno à espontaneidade (ao eximir-se dos antigos códi- verte essa intenção. Mendes inicia sua obra sem indicação
gos de coerência da linguagem), conigurando-se como de tonalidade sugerindo uma audição atonal, tornando-a,
um jogo que ao mesmo tempo contém e se livra das entretanto, ambígua através da utilização predominante
regras, desempenhando na obra uma desenvoltura que de intervalos consonantes. Constatamos, portanto, logo de
airma o acaso . A sintaxe submete-se às imposições do início, uma intervenção do compositor que descarta a re-
desejo, da sensação, do sentimento. presentação rígida da série convencional para nos apontar
uma nova singularidade em relação àquela.
Em resumo, a heterogeneidade empregada desfaz a diferen-
ça entre os materiais. Em Rimsky, o uso da citação e das re- Ao não se constituir como série estritamente dodecafô-
ferências como fragmentos autônomos produz uma sintaxe nica, revela sua relação paródica com a arte do passado,
nômade, evitando as conexões, o centro e a ordem, resultan- sendo esta uma forte característica de sua linguagem.
do num perder de vista dos grandes quadros de referência. Sob este ponto de vista, sua postura implica a crítica
ao Modernismo tardio através da inclusão deste em sua
5.2. A série de Mendes como paródia pós- linguagem, mas com a série modiicada, reapropriada.
moderna A série de Mendes destitui-se de parte de seus pressu-
Sabemos que a série básica criada por Schoenberg, porta- postos teóricos intransigentes (daquela de Schoenberg),
dora de 12 sons distintos e irrepetíveis constituiu uma regra possibilitando a contaminação de sua pureza, mesclan-
rigorosa de controle da composição musical dodecafônica. do o tonal com o atonal. Examinemos de perto suas ca-
racterísticas no Ex.24.

Ex.23 - Recurso de corte através de mudança brusca de andamento e de dinâmica em Rimsky de Gilberto Mendes
(c.30-32)

Ex.24 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Veriicamos a ocorrência de: concomitantemente o percurso de Schoenberg, reinter-


• 4 intervalos de 3a. m; pretando-o. Utiliza-se dos procedimentos da vanguarda
• 3 intervalos de 4a. J; para criticá-la, mostrando-se avesso à teoria.
• 2 intervalos de 3a.M;
• 1 intervalo de 2a. M. Vimos que a série de Mendes não sendo antitonal possi-
bilita uma coniguração melódica que se generaliza, na
A série de Mendes despreza, portanto, o potencial inter- medida em que é reutilizada ao se somar com a referên-
valar que (em Schoenberg) preconizava a emancipação da cia introduzida pela rítmica do tango, propiciando seu
dissonância e o afastamento da tonalidade. Não há trí- reconhecimento pela escuta. Incorpora, desta forma, a
tonos, nem intervalos de 7a., 9a., 2a.m. Não é anti-tonal, utilização de códigos populares: (Ex.27).
possui duas terças menores em seguida (propiciadoras de
enunciação de arpejos). Enim, a série de Mendes é distor- A série de Mendes contesta a originalidade, recontex-
cida, ambígua, ambivalente e percorre o caminho contrário tualizando-a. Como no dizer de HUTCHEON (1991), é
ao de Schoenberg. A série usada por Mendes preserva as reverente e irreverente ao mesmo tempo, fazendo coa-
características formais da série dodecafônica (doze notas bitar a noção de sacralização e dessacralização, autori-
irrepetíveis e suas inversões) subvertendo ao mesmo tempo dade e transgressão, continuidade e mudança. A nosso
seu conteúdo (predominância de intervalos consonantes ver, habilita, contudo, o retorno daquilo que foi recal-
portadores de possibilidades tonais). Ao mudar o conteú- cado pelo modernismo (a compreensibilidade através do
do desta, veriicamos que a intenção de Mendes não é de que é cantável, a impressão de tonalidade, a memoriza-
se ater à pureza do pensamento original de Schoenberg. ção). Ela comporta, contudo, uma novidade que, como
Ao contrário, Mendes mantém as formas relexas da série tal, exige a familiaridade com antigas convenções para
(Ex.25), com vistas à criação de uma ilusão perceptiva, que que se possa averiguar sua discordância dos cânones
a torna híbrida, provocando sua desestabilização. prevalecentes e consequentemente invocar as conside-
Se Schoenberg objetivou a busca pelo singular, elimi- rações de intenção do autor, condição que o receptor
nando a noção de graus, de funcionalidade e hierarquia pós-moderno não possui, por viver numa época em que
promovendo a escuta da nota individualizada, Mendes o consumo imediato e o hedonismo não priorizam o co-
procura ativar o reaparecimento de conigurações reco- nhecimento e a teoria. A compreensão da ironia pressu-
nhecíveis. O conteúdo de Mendes apóia-se no signiicado, põe uma grande cultura por parte do ouvinte12.
na aceitação e no resgate da consonância, de mais fácil
assimilação. Desta forma, a série de Mendes se resseman- A série de Mendes questiona o ideal totalizante moder-
tiza, ironicamente, deslocando-se da abstração para in- nista, a tirania teórica, a racionalidade, o purismo, onde
troduzir posteriormente, a possibilidade de conigurações o autor procura propor uma abertura do texto cujo novo
melódicas (Ex.26). O autor utiliza a série, desconstruindo sentido evita prescrições, mas resgata fórmulas usadas.

Ex.25 – Retrogradação da série em Rimsky de Gilberto Mendes

Ex.26 – Melodias derivadas da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.28-29 e c.61-62)

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex. 27 – Tango derivado da série em Rimsky de Gilberto Mendes (c.65-68)

Ex.28 – Série em Rimsky de Gilberto Mendes. (c.12)

A série de Mendes é o elemento de diferença que distin- compatibilizar, não imprimir uma visão dualista entre o
gue o modernismo do pós-modernismo, por desestabilizar erudito e o popular. Pretende realizar para isto conexões
a intenção (dodecafônica) de sons isolados e da não repe- consideradas antes impossíveis, recusando a hierarquia e
tição, fazendo o percurso inverso do de Schoenberg. Ela é a hegemonia entre alta e baixa cultura.
introduzida sempre depois de uma fermata ou de um ral-
lentando, desconectada, portanto, do episódio anterior, Em sua autobiograia (1994) Mendes registra sua nature-
incrementando a descontinuidade da sintaxe (Ex.28). 13. za despreconceituosa que o acompanha desde a infância,
reconhecendo o alto nível alcançado pela música popular
5.3. Pós-Moderno e a atenuação das distinções – urbana da canção norte-americana e europeia dos anos
música popular/música erudita: 30 e 40 e seu entrosamento com a música culta, que
Rimsky apresenta a inserção de ritmos e harmonias ca- ele denomina ser um verdadeiro lied moderno. Pensan-
racterísticas da música popular brasileira procurando do desta forma é que o autor utiliza-se amplamente do
viabilizar o cruzamento de linguagens tradicionalmente elemento popular em suas composições. Baseando-se em
opostas, impossível em períodos históricos precedentes. suas memórias perceptuais, permite “contaminações” que
Intenta contrapor-se ao purismo, procurando não as in- abolem todas as proibições.

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Em Rimsky veriicamos o uso de superposições e “fu- 25. Caráter lúdico;


sões” entre o popular e o clássico veriicadas nos ele- 26. Proposta de inclusão da música culta e da música
mentos inspirados em Rimsky-Korsakov + bossa nova popular;
(c.58-60; Ex.29). Outras fusões são encontradas na série 27. Tendência predominante de exclusão da seriedade16,
transformada em melodia + rock lento no piano (c.61- hedonismo;
68); melodia de Sheherazade transformada + bossa 28. Anarquia, procedimento assistemático;
nova (c.74-79); trecho atonal + rock lento (c.80-94); 29. Repetições não variadas.
melodia da série + rock lento em recapitulação (c.109-
112); melodia em progressão + rock lento (c.117-120). 7. Conclusão
Utilizamos as evidências do exame feito por Omar Ca-
Mendes não só incita ao reconhecimento. A urdidura do labrese em seu livro “A Idade Neobarroca” (CALABRE-
trecho atonal (Ex.30) em meio à sua textura abstrata14 jun- SE,1988) sobre estética e teorias contemporâneas para o
tamente com a inclusão de elementos de referência (verii- esclarecimento das implicações do gosto e do pensamen-
cadas nos ritmos feitos pelo acompanhamento no piano de to dito pós-moderno que incidem na forma e na adoção
rock lento) ao mesmo tempo as obnubila (c. 80-94). de uma epistemologia anárquica. É importante realçar a
advertência de Calabrese sobre a citação como um modo
O tipo de linguagem utilizada em Rimsky, portanto, uti- tradicional de construir um texto que existe em todas as
liza-se da junção de elementos de origens diferentes15, épocas e estilos que, no caso pós-moderno, ele desconsi-
cujo procedimento pode ser caracterizado como inclusi- dera a computação da quantidade de citações como um
vo e democrático. Tal medida pressupõe a intenção de critério relevante para sua caracterização. Para Calabre-
um caráter de tolerância e diversidade como tentativa de se, nem a quantidade das citações nem o ecletismo são
questionamento das distinções. características estritamente pós-modernas. Em meio às
divergências teóricas existentes, o ecletismo (ou plura-
6. Características pós-modernas em Rimsky lismo) tem sido apontado como a principal característica
de Gilberto Mendes pós-moderna. Mas que tipo de ecletismo?
Sumariando a ocorrência dos traços pós-modernos em
Rimsky, constatamos as seguintes propriedades: Em feição pós-moderna, esse ecletismo não só institui
uma objeção da pureza e do elitismo, mas conjuga-os à
1. Série defectiva; ideia de desconstrução (derrideana) do signiicado que
2. Fragmentação, heterogeneidade, descontinuidade, abole a noção de origem e de verdade e deságua na
justaposição de estilos; ideia de que só existem signiicantes, decorrendo daí a
3. Impureza; hibridismo; contaminações; possibilidade de interpretações incessantes, onde todas
4. Ironia; se airmam válidas. Se como já foi dito, a maioria das
5. Ênfase nos processos primários, inconscientes (evo- características atribuídas ao pós-moderno já foram an-
cação, desejo, imagem); teriormente encontradas em períodos anteriores, o que
6. Paródia; o distingue de outras épocas é uma aposta na proscrição
7. Ambiguidade (questionamento e conciliação); (reve- da unidade estrutural e da teleologia em favor da des-
rência e dessacralização); continuidade e da atemporalidade possibilitados pela
8. Apropriação, citação distorcida; imprecisão; anomia da sintaxe. Não há mais uma direcionalidade
9. Ausência de unidade; ausência de conexões; visando pontos focais, oposições, pontos culminantes,
10. Estesia (ênfase nas sensações); não há mais a imposição do cânone modernista de proi-
11. Retorno à melodia; caráter melíluo (que impressiona bições, nem a elaboração de um “discurso” sistemáti-
agradavelmente); co, mas uma errância, uma ausência de fundamento,
12. Inexistência de desenvolvimentos musicais puros; de abandono da epistemologia e da teoria. Veriicamos,
13. Volta ao conteúdo; busca de signiicados; portanto, a suspensão do juízo em prol da casualidade,
14. Atemporalidade; da arbitrariedade, e da liberdade ilimitada. Colagem e
15. Consciência histórica vista como pluralismo, como citação subtraem as conexões e a citação que remete
presente sincrônico; à concepção de autoria (ou seja, que tem como parâ-
16. Simplicidade; metros a originalidade, a autenticidade e a autorida-
17. Uso de estilemas e estereótipos; de) é que é criticada. Dessa forma a citação, através do
18. Processo composicional determinado pelo material; procedimento da apropriação, por realizar uma altera-
19. Ênfase na superfície; ção, necessita subverter o contorno melódico dirimindo
20. Incerteza entre o verdadeiro e falso; a diferença das estruturas contraditórias. Não há mais
21. Antiacademismo; contra o rigor e a exatidão; contra sucessão temporal, porém, um contínuo de justaposi-
proibições; ções de materiais e estilos de diferentes épocas que
22. “Moderno” deixa de ser um substantivo para tornar- através de sua apropriação resultam presentiicados,
se um estilo (trecho atonal); indiferenciados, homogeneizados. Como decorrência, a
23. Sintaxe casual, antinarrativa; fragmentação resulta numa compilação de descontinui-
24. Imersão (ao invés de distanciamento); dades cuja autonomia dos momentos se traduz, segundo

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Ex.29 – Sheherazade transformada+ Bossa-Nova em Rimsky de Gilberto Mendes (c.74)

Ex.30 – Excerto do trecho atonal em Rimsky de Gilberto Mendes (c.80)

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ADORNO (1999), no fetichismo dos materiais, levando a Podemos sintetizar esta questão numa pergunta: qual é a
audição ao gozo meramente metonímico. Em outras pa- eicácia do excesso, se o que prevalece é a indistinção e a
lavras, promove a reabilitação do prazer e a diminuição textura? Ou, contrariamente, a proposta desse hibridismo
da crítica, escamoteando a transparência do modo de seria mitigar a tensão? O trecho atonal, representando
produção das obras. os parâmetros modernistas (mesmo com a inclusão do
elemento popular) não pode favorecer a aproximação do
Devemos considerar que um dos fatos signiicativos no público desacostumado à apreciação desse código. Rei-
pós-modernismo é que, através do desterro da lingua- tera apenas o procedimento (excessivo) de inclusão de-
gem (já iniciado no modernismo) na verdade o que ocorre fendido no pós-modernismo, de reairmar seu pretenso
(contrariamente a este) e contraditoriamente, é uma pro- caráter democrático para realizar o afastamento de uma
cura da signiicação (da comunicação perdida decorrente compartimentação maniqueísta.
do vazio e da abstração deixados pelo formalismo), res-
tando como única saída, a reabilitação dos materiais do Concluímos que as contaminações ou hibridações podem
passado. Daí porque a descontinuidade tornar-se siste- contribuir para diminuir ou amenizar as fronteiras entre
mática (o que, por outro lado, incorre na cilada de incidir o popular e o erudito, mas não conseguem sua supressão.
num outro tipo de normatividade). Para os sabedores de que devemos evitar o maniqueísmo
há também a necessidade de reconhecimento das contra-
Em Rimsky, constatamos a não utilização de uma sin- dições como impossibilidades de uma verdadeira fusão de
taxe tradicional teleológica. Os materiais utilizados categorias distintas. Os adeptos da atitude pós-moderna,
possibilitam a formação de presentes sincrônicos, onde no entanto, admitem as contradições sem questioná-las.
as “oposições” não mais se contradizem, somente se Dentro desta lógica, no entanto, estes podem recair em
chocam. A multiplicidade abole o ponto de vista único um só lado da antítese, fato que tanto negam, como ob-
para airmar a ausência de centro e de convergência. A serva Terry EAGLETON (1998). Admitir a contradição sig-
justaposição nega a dialética, airmando o caos. Não há niica supor que na medida em que não há mais restri-
desenvolvimento . No entanto, o uso de repetições de ções, não há mais conlito.
notas inseridas na série, como também as repetições dos
fragmentos apresentados em descontinuidade, parece A tentativa de desfazimento das oposições entre arte
uma tentativa de facilitar a assimilação que requisita a culta e arte inferior instaura a questão do uso de ele-
necessidade de ouvi-los de novo. Seria essa uma forma mentos característicos da cultura de massa que viabili-
de possibilitar (contraditoriamente) a ixação e a memo- zem o consumo da obra. Desta forma a arte pode cor-
rização perdida na descontinuidade? rer o risco de ser facilitada. Como conciliar soisticação
Constatamos que a arte para Mendes demanda espirituali- com o que é popular? Como dissemos, Mendes tenta
dade e transcendência em relação aos assuntos cotidianos solucionar essa dualidade resgatando a música popular
(MENDES,1994, p.62-63), despojamento ascético, liberda- norte-americana dos anos 30 e 40 naquilo em que esta
de, ética, contemplação. Porém, podemos também airmar é comparável à arte de elite, rejeitando a conjunção en-
que a utilização das contaminações que introduzem ele- tre arte e mercadoria. Sua concepção de arte vincula-se
mentos populares acaba favorecendo a eliminação da aura aos pressupostos modernistas de autonomia, de elitismo,
da arte por privilegiar a sensação e a imersão, negando a endereçada a seus pares, contrário à indústria cultural .
contemplação almejada por Mendes, embora este não veja Renega os pressupostos do grupo Música Nova (atrelado
aí uma irreconciliabilidade. Ao contrário, Mendes não pre- aos temas de atraso e progresso) e volta-se para o antigo
tende eliminar a aura da arte, mas defendê-la. desprezo vanguardista pela indústria cultural. Enfatizan-
do o aspecto semântico (referências, evocações) de suas
Em Rimsky, a “Sheherazade de Mendes”, cuja apropriação composições da 3ª. fase, ele pretende não ser acessível,
descaracteriza o ritmo original para sua transformação nem comunicativo (MENDES,1994, p.113) mas defende
numa versão ainda mais popularizada porque impregnada ao mesmo tempo a possibilidade de compreensão de sua
do balanço da bossa-nova (MENDES, 1994, c.74), acaba música pela classe operária (MENDES,1994, p.113). Tenta
por enfatizar mais o pólo popular do que o erudito, do escapar da polarização entre arte de elite e arte popular,
qual mantém somente a melodia em excerto. Já o tre- derrubar as barreiras do preconceito, procurando solucio-
cho atonal, como referente modernista (MENDES, 1994, nar as contradições na verdade insolúveis entre as classes
c.80), superposto ao acompanhamento do piano como sociais. Mendes procura evitar e rigidez e concebe a cons-
rock lento, contém uma densidade e complexidade que trução do sentido deslocada mais para o subjetivo, o pas-
acaba enfatizando melhor, como decorrência, o aspecto sional, o intuitivo do que para o racional (MENDES,1994,
abstrato do que permitindo desvelar o conteúdo referen- p.169-170). O cerne do problema está em desfazer a ri-
cial do ritmo do rock, cuja escuta quase não o reconhece, gidez e ao mesmo tempo não cair na vulgarização, na
diluindo-o na urdidura. Dito de outra forma: no trecho mediocridade corrente da arte de massa cuja inalidade é
atonal a opção pelo procedimento inclusivo acaba obli- entretenimento e comunicação. É assim que para evitar a
terando as referências populares, recaindo mais para o mediocridade Mendes volta-se para uma aristocracia do
efeito hermético, conformando-se em contraposição à i- espírito elevando o popular para a transcendência (MEN-
guração como elemento portador de compreensibilidade. DES,1994, p.171). Mas a fusão das esferas alta e baixa,

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

como dissemos, é utópica . Se airmarmos a inexistência transcendência, com o valor de culto, com a aura. A mo-
de fronteiras entre o erudito e o popular alegando que só dernidade, através da aceleração das forças produtivas
o que existe na verdade é a música (classiicada como boa e da consequente mutação das condições de produção,
ou ruim), estaremos caindo em polarizações que remetem aluiu na ideia de artista como trabalhador, matando a
a categorias de valor que rejeitam as demais atribuições originalidade da obra para possibilitar a fruição (em con-
concorrentes: reincidimos num dualismo e numa posição traposição à contemplação). Ao negar a produção e o
igualmente absolutista. Bom ou ruim demonstra, portan- consumo, Mendes posiciona-se contra a mutação da arte
to, a função social de suas respectivas legitimações. Não e do artista. A reintrodução da contemplação correspon-
reconhecer isso é uma forma de imprimir e sobrepor os de ao retorno da aura numa época secularizada a qual
conceitos das classes dominantes para as massas. Caberia mantém como consequência, a preservação das catego-
a pergunta: qual a verdade do oprimido? rias ideais. Esta constatação abala a crítica da metafísica
iniciada na modernidade. Neste período a arte atacou a
Devemos lembrar que a estética popular implica na su- materialidade da obra para atacar a aura, transformando
bordinação da forma à função e que a estética erudita o sagrado em profano. Concernente ao pós-modernismo,
propugna critérios de julgamento sobre o modo de pro- veriicamos por um lado, a quebra da seriedade (propi-
dução das obras a despeito da função. O gosto soisticado ciada pelas contaminações) e do rigor que favorecem e
pressupõe a aversão ao gosto vulgar, por supor sujeitos imersão e consequentemente diminuem a distância im-
sociais diferentes que traduzem suas posições de acordo posta pela obra imbuída de aura. Por outro, a constatação
com as distinções que os exprimem. Música popular e concomitante da existência de compositores críticos do
música erudita são separadas por conceitos sociológicos capitalismo, defensores da noção de criação, genialidade
que consideram diferentes performances, convenções e e arte contrária à instrumentalização. Perguntamos: faz-
instituições (a bossa-nova, por exemplo, é um fenômeno se música para que o ouvinte realize a semiose que quiser,
burguês). Portanto, a arte, se pensada em termos de pro- ou ainda existe a intenção do autor?
dução necessita que reconheçamos o binômio “produção/
consumo” ligado a processos formais que se constituem Compreendemos que em suas contradições, Mendes rele-
em músicas de diferentes tipos e separadas sociologica- te as da sociedade em que vive. As airmações de Mendes
mente. Mesmo com a introdução da banalidade, das refe- nos revelam as aporias em que se encontra o compositor
rências populares, dos estilemas, essa música (possuidora contemporâneo na necessidade de reescrever sua vida.
dessa sintaxe onde o procedimento inclusivo admite o
erudito) não é consumida e assimilável pelas classes po- Ao rejeitar a ideia de progresso o pós-modernismo elide
pulares . Como já frisamos, o hibridismo tem seus limites a vanguarda, encerrando a dissidência e o “make it new”.
veriicados no modo de produção, no consumo, na circu- Este, como transgressão, não poderia ser ininito. Não há
lação e na recepção das obras como forma de distinção mais rebeldia, nem revolução, nem recusa, nem negação.
(conforme BOURDIEU (1979) e BRACKETT (2002)). O que pode haver é a novidade que não mais tem mais
impacto, não é mais intempestiva. O novo não tem mais
Se, por um lado Mendes faz positivamente a crítica à me- poder de transformação porque o que outrora foi contun-
diocridade (do popular?) hoje existente na nossa sociedade dente, torna-se repetição. O que está aí não muda o que
de massa, denunciando sua estrita dependência da lógica já foi conquistado pela modernidade porque não contém
comercial onde ele nos confessa a diiculdade de sobre- mais o choque da estranheza, apenas a simples diferencia-
vivência a uma modernidade ilisteia, por outro lado, na ção. À medida que não há mais proibições, a utilização da
sua tentativa de resistência às tendências de dissolução do profusão de materiais torna-se equalizada, não havendo
belo e daquilo que ele chama de verdadeira arte, evitando mais necessidade de ruptura. Do lado da recepção da obra
a perda de sua qualidade, faz um esforço para garantir a o que constatamos é uma indiferenciação que não remete
perenidade do artista na procura de uma essência que se mais à perplexidade. De onde se conclui que os ready ma-
perdeu. Porém, em nossa contemporaneidade não há mais des de hoje não mais produzem impacto. Concluímos que
espaço para a realização de uma arte inteiramente autô- o procedimento de reabilitação dos materiais do passado e
noma. O mercado é uma instância intrínseca à produção a preocupação da transcendência podem levar ao distan-
que vê a arte como produto legítimo da sociedade capi- ciamento da realidade objetiva. A utilização da prática das
talista, o que faz com que a estética retorne à sua origem citações deve, portanto ser amplamente considerada. A ci-
mundana. Neste aspecto, paradoxalmente, Mendes defen- tação, ao tornar-se maneira de fazer, moda, pode tornar-se
de a reintrodução do belo na arte contemporânea aproxi- um perigo, como no consumo de mercadorias, onde o retro
mando-se de Adorno no sentido de uma estética que pode não causa nenhum impacto, mas acatamento, estabilida-
ser considerada contrária ao embrutecimento do homem e de, perda de contundência. O procedimento inclusivo de
de certa forma, saudosista. Ao defender o belo, contrapõe- materiais do passado pode apenas reintroduzir o antigo de
se à mudança da noção de obra de arte feita pela moder- forma fetichizada, lúdica e ornamental. Faz-se mister, por-
nidade que já realizara sua dessacralização. tanto, reletir sobre como não negar o consumo e ao mes-
mo tempo não ser consumido pelas imposições do capital.
Sabemos que o belo clássico salientou a preocupação Como dissemos, as concepções estético-ideológicas pós-
com a qualidade da obra, com a contemplação, com a modernas estão atreladas ao moderno sem superá-lo. O

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pós-modernismo não é uma ruptura, uma vez que não há deinido. Peter BURGER (1988) reconhece no pós-moderno
mais normas a quebrar. Nega a história, não tem compro- a atenuação de uma rígida dicotomia entre arte superior e
misso com a verdade, não comporta mais nenhuma ten- arte inferior onde não existem materiais avançados, uma
são entre presente e passado. A intenção pós-moderna é vez que todos os repertórios históricos de materiais estão
abater a austeridade, o hermetismo, o que assegura maior igualmente disponíveis ao artista. Ele alerta, no entanto,
facilidade de assimilação (requisitos encontrados nas ten- para que o fascínio dos materiais não seja transformado
dências da Nova Consonância e da Nova Simplicidade). Em em critério de apreciação estética, devendo se desfazer de
outras palavras, o pós-modernismo para evitar ser pres- um manuseio arbitrário para realizar uma relexão sobre a
critivo pretende, neste sentido, não propor nada. Recusa autonomia da arte e das condutas artísticas. Neste sentido,
a negatividade, sendo essa sua política apolítica. Vimos quanto à constatação de uma crise da arte ele adverte que,
que “pós-moderno” não é um termo que possa caracte- tanto a exigência de abolição da separação entre e vida
rizar nossa contemporaneidade como critério claramente quanto a aceitação destas, poderão incorrer no im da arte.

Referências
ADORNO, Theodor W. – “O fetichismo na música e a regressão da audição”. In: Coleção Os pensadores -Textos Escolhidos.
São Paulo: Nova Cultural, 1999, p.65-198.
BENJAMIN, Walter – “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”. In: Obras Escolhidas - Magia, Técnica, Arte e
Política. São Paulo: Editora Brasiliense,1996, v. 1.
BOURDIEU, Pierre – La distinction - critique sociale du jugement. Paris: Les Éditions de Minuit,1979.
BRACKETT, David – “Where´s It Art”: Postmodern Theory and the Contemporary Musical Field. In: LOCHHEAD, Judy and
AUNER, Joseph – Postmodern Music/Postmodern Thought. New York: Routledge, 2002, p.207-231.
COELHO DE SOUZA, Rodolfo – Encarte do CD Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky.
BURGER, Peter – “O declínio da Era Moderna”. In: Novos Estudos CEBRAP no. 20,, março de 1988, p.81-95
CALABRESE, Omar – A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1988.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix – O que é a Filosoia? São Paulo: Editora 34, 2004.
________ - Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2004, vol. 1, 3 e 4.
EAGLETON, Terry – As ilusões do pós-modernismo. RJ: Jorge Zahar Ed., 1998.
HUTCHEON, Linda – Poética do Pós-Modernismo – História. Teoria. Ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
MENDES, Gilberto – Uma odisséia musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco. São Paulo: EDUSP, 1994.
TEIXEIRA COELHO – Moderno pós Moderno - modos e versões. São Paulo: Iluminuras,2001.
Partituras:
MENDES, Gilberto – Rimsky, 27 p.(partitura com escrita de próprio punho do autor).
RIMSKY-KORSAKOV, Nikolai – Sheherazade – Suite Sinfonica op.35 (redução para piano) de Teodor Fuchs. Buenos Aires:
Ricordi Americana, 59 p.
________ - Quinteto em Si bemol Maior (op.post.) – para piano, lauta, clarineta, trompa, fagote. New York: International
Music Company, 64 p.

Documento eletrônico:
www.remue.net/cont/Blanchot_Hoppenot.pd Acesso em: 21/06/2006.

Reprodução sonora (CD):


Gilberto Mendes – Piano solo – Rimsky (edição do Programa Petrobrás de Música 2002, realizado pelo Laboratório de Acús-
tica Musical e Informática da ECA/USP, Março-Setembro de 2003). Quarteto de cordas da Cidade de São Paulo: Betina
Stegman (1o.violino), Nelson Rios (2o.violino), Marcelo Jaffé (viola), Robert Suetholz (violoncelo), Lídia Bazarian (piano).

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PERES, V. L. R. P C. As características pós-modernas na obra Rimsky de Gilberto Mendes. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.107-126.

Notas:
1 Escritor e crítico literário espanhol (1885-1966).
2 BUCKINX, Boudewijn – O Pequeno Pomo – ou a história do pós-modernismo. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
3 Referência veriicada na apresentação do encarte (assinada por este autor) do CD “Gilberto Mendes – piano solo – Rimsky.”
4 Empregamos a concepção de rizoma postulada por Deleuze por acreditarmos que esta traduz melhor a ideia de uma linha (justaposta, segmentada),
cujo “motor” é o desejo (CALABRESE,1988) que nega o princípio da unidade em defesa da multiplicidade de materiais. Deleuze prescreveu: “Faça o
rizoma e não a raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno, nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e não o ponto (...).” (Cf.
DELEUZE; GUATTARI, 2007, p.36). Nosso interesse é o de demonstrar que essa acepção de rizoma personaliza o imperativo de uma heterogeneidade
instaurada numa grande linha contínua que por sua lógica nômade simultaneamente a contém e a oblitera.
5 Estilemas: constantes estilísticas, traços de estilo, de códigos em desuso (TEIXEIRA COELHO, 2001, p.67).
6 Obs.: A citação do Quinteto para piano e sopros de Rimsky Korsakov, o “minimalismo”, “rock lento” e “música para cinema” foram existentes indi-
cados pelo próprio compositor. A presença de “fox trot” também por ele airmada, porém sem sua devida localização, nos levou a detectá-la, por
inferência, nos compassos 90-94 devido à similitude de seu componente rítmico.
7 Apesar de o autor incorporar uma recapitulação dos elementos apresentados.
8 Reiro-me à inaplicabilidade do critério de autenticidade da produção artística que deixa de ter valor de culto como objeto único (a questão da
originalidade anteriormente comentada) e se torna dessacralizado, explicitado por Walter BENJAMIN (1996).
9 Idioma: usado aqui no sentido de conter uma gramática (escalas, padrões, estruturas rítmicas e intervalos). Possui uma dupla função: simultanea-
mente alude e desfaz o reconhecimento.
10 Como no pensar de Deleuze, agora a riqueza em termos sintáticos não trata mais de impor uma forma à matéria, mas de manter juntos os hetero-
gêneos, sem deixar de ser heterogêneos (DELEUZE; GUATTARI, 1980, p. 141).
11 Aqui é necessário reportarmo-nos às observações de Linda Hutcheon sobre a duplicidade paradoxal do pós-moderno. Este está atrelado ao mo-
dernismo não rejeitando-o por completo mas, inserindo e subvertendo seus códigos: evidenciamos na paródia simultaneamente deferência e
transgressão (HUTCHEON,1991).
12 Esse é um requisito também necessário quanto à citação apropriada por requerer do ouvinte a erudição das obras em seus contextos para poder
avaliar a transgressão efetuada, pois do contrário esta não pode ser percebida.
13 Podemos fazer outra leitura da utilização da série feita por Mendes. Esta pode também signiicar uma alusão à rigidez (como medida irônica, uma
vez que a série de Mendes não a contém e cujo detalhe só se percebe através de sua análise) do modernismo (no caso a série como elemento de
ordem) ao prenunciar os demais elementos (livres, heterogêneos e casuais) que lhe seguem. Este procedimento pode ser visto como uma medida
conciliatória onde a oposição de precisão e imprecisão nos sugeriria a associação de dois gostos como a única maneira possível de tentar “orga-
nizar” a sintaxe. Também a existência de uma recapitulação veriicada depois da cadenza no piano (a partir do compasso 102 até o im da peça
promovendo o retorno do tango, do ritmo nas cordas, da bossa nova, da melodia derivada da série acompanhada pelo rock lento no piano) sugere a
intenção de recuperar uma retórica cujos princípios formais embora já estejam perdidos são reintroduzidos por Mendes. Devemos considerar que a
destruição da forma e dos nexos se traduz na descontinuidade, impedindo a capacidade de recordar pra frente, sendo a recapitulação a única ma-
neira de favorecer a rememoração do ouvinte (em contraposição ao modernismo) através da repetição dos elementos anteriormente apresentados.
14 Quanto mais a representação se desvincula de seu referente, mais o som representa a si mesmo, isto é, mais ele é concreto. Neste sentido, a pos-
sibilidade de abstração em música faz-se através do corte dos vínculos com as iguras tradicionais de reconhecimento.
15 Devemos lembrar que já no séc. XV, num outro contexto e com diferentes motivações, a melodia pagã “chanson de l´homme armé” foi amplamente
utilizada pelos compositores como cantus irmus e pretexto para o emprego da forma canônica na produção da polifonia (como referência pagã
nas missas religiosas, porém de difícil identiicação para os leigos em sua urdidura). Contudo, vemos nesse processo o intuito de exprimir o que era
conhecido como a ciência musical da época.
16 Devemos frisar que neste sentido encontramos exceções no pós-modernismo como no caso de Schnittke, compositor que melhor expressou sua
resistência intelectual e simbólica ao Comunismo através de sua atração pelo irracional e pelo seu extremo pessimismo. Desta forma, Schnittke
destoa do hedonismo pós-moderno ao optar pela expressão dramática.
17 O ecletismo inclui a citação, a mistura estilística, e o pastiche como formas que através de sua coexistência se tornam indiferenciados.
18 De acordo com HOPPENOT (cf. documento eletrônico na bibliograia) a fragmentação pós-moderna produz a desorganização do estado perceptivo
temporal que paradoxalmente não se opõe à continuidade causando, ao mesmo tempo, sua destruição. Ele airma: “cada fragmento é uma totali-
dade que nega a totalidade” (...) “onde a ausência de tempo leva à superabundância de tempo”.
19 Não nos esqueçamos, no entanto, que aquilo que Mendes considera como a boa música orquestral norte-americana desses anos foi um produto
historicamente situado, não afastado do cotidiano e que também respondia às manifestações de uma cultura de mercado.
20 David BRACKETT (2002) defende essa ideia ao constatar as diferenças de procedimentos existentes nessas esferas.
21 Observamos que John Zorn (1953), compositor norte-americano e saxofonista, que se utiliza de um verdadeiro caleidoscópio de materiais como
que acionados por controle remoto faz música que não pode ser considerada popular, sendo consumida no máximo por jovens intelectuais. Suas
composições receberam as etiquetas de vanguarda, jazz, experimental, free jazz, ruído.
22 “make it new” – termo proposto por Ezra Pound: signiica “tornar algo novo”, achar alguma ideia nova no sentido de não ter sido ainda pensada.

Vera Lúcia Rocha Pedron Peres é graduada em História pela FFLCH (USP) e mestre em Artes (programa de Música
em Processos de Criação Musical pela ECA - USP) sob a orientação do Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa. Estudou
harmonia e estética com o Prof. Hans-Joachim Koellreutter e piano com os professores: Sebastina Benda, Caio Pagano,
Amílcar Zani e Nahim Marun.

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

A memória e o valor da síncope:


da diferença do que ensinam os antigos e
os modernos1

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas (UNICAMP, Campinas, SP)


c2sprf@udesc.br

Resumo: A síncope é um tema privilegiado nos estudos da música popular que reaparece aqui em um conjunto de con-
siderações que, marcado pelo viés dos saberes das velhas disciplinas de Contraponto e Harmonia, sublinham a interação
e, principalmente, a inseparabilidade entre métrica (divisão, ritmo, acentuação, prosódia, etc.) e altura (notas, interva-
los, relação dissonância-consonância, acordes, notas auxiliares, etc.) na apreciação crítica das igurações sincopadas.
Na primeira parte percorre-se uma mínima memória da arte e da teoria da síncope na tradição ocidental culta para, na
segunda parte, observar-se que, em medida tácita e sutil, resíduos dessa tradição afetam juízos de valor em alguns dos
sincopados cenários da música popular atual.
Palavras-chave: síncope; análise musical; teoria e crítica da música popular.

Memory and value of syncopation: on the difference between what the old and the modern teach

Abstract: Syncopation is a privileged issue in popular music studies that reappears here in a number of considerations
that, marked by the bias of knowledge of the old disciplines of Counterpoint and Harmony, underline the interaction and,
especially, the inseparability between metric (division, rhythm, accentuation, prosody, etc.) and pitches (notes, intervals,
dissonance-consonance relationship, chords, auxiliary notes, etc.) in a critical analysis of the igures of syncopation. The
irst part covers up a minimum memory of the art and theory of syncopation in the Western erudite tradition, so that, in
the second part, it can be noted that, in tacit and subtle manner, residues of this tradition can affect the value judgment
in some of the syncopated worlds of popular music today.
Keywords: syncopation; musical analysis; theory and criticism of popular music.

“Mas, porque omitiste a ligadura? Já disse que não devemos perder


qualquer ocasião para usar uma síncope .
Johann Joseph Fux, 1725 (FUX, 1971, p. 60).

1 - Introdução: da síncope letrada e sua presença da síncope na música urbana da viragem para
coexistência em cenários conlituosos o século XX até nossos dias, a intenção de uma re-escuta
A síncope é assunto que se destaca nos “múltiplos discur- assim é sublinhar que tais artesanalidades cultas, insti-
sos” que, como mapeou TRAVASSOS (2005), conirmam a tuídas em cenários embaralhados, conlituosos, plenos de
condição da “música popular como tema privilegiado da interações negociadas e imprevisíveis, também se mistu-
cultura brasileira”.2 Procurando conversa com tais discur- ram nesse “um bocadinho de cada coisa” que compõem
sos o presente texto argumenta: a síncope é uma questão a sincopada música popular que podemos escutar hoje.3
de rítmica, mas é também, inseparavelmente, uma ques-
tão de alturas. Tal “ponto de escuta”, característico dos Nos centros musicais cultos da velha Europa, um lugar
antigos, especializados e consideravelmente privilegiados capital de onde partiu ainda jovem (em formação) para
textos e cursos formais do Contraponto e da Harmonia, conquistar novos mundos, a síncope veio se consolidan-
será reouvido aqui num percurso que delineia marcos da do como uma iguração de alto valor artístico na música
síncope letrada desde os inais do século XV até os iní- contrapontística culta da renascença. Quando madura,
cios do XIX. Sem deixar de valorizar a sempre lembrada essa será a síncope canônica, a síncope de catequização

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 02/10/2009 - Aprovado em: 13/03/2010
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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

(cristã, ocidentalizante): a síncope de escola que no geral etc.) possui qualidades que superam em muito tanto a
se aprende, desde o iluminismo, através da codiicação gravidade das síncopes do contraponto quanto os pre-
fuxiana inspirada no modelo quinhentista observado na ceitos modernos da bela ciência da harmonia (dita hoje
música de Palestrina. Por conta de sua primeira datação tradicional). Com isso, mesmo desconsiderando fatores
(séculos XIV ao XVI), a síncope já possui vasta cultura ar- históricos e sócio-culturais, tal exuberância “puramente
tística e teórica quando a incipiente tonalidade harmôni- musical” já é capaz de invisibilizar o fato de que a síncope
ca ensaia seus primeiros passos. Assim, se sabe, a síncope pré-século XIX também compõe aquilo que somos hoje.
do stile antico antecede a sistematização moderno-con- A tal ponto que, para um “ponto de escuta” musicológi-
temporânea dos compassos. Sem as barras do compasso, co mais incisivo: a síncope é “uma das mais importantes
mas não sem métrica, o deslocamento rítmico – que faz fórmulas rítmicas surgidas nas Américas no século deze-
a fama das iguras de síncope – se observa nessa música nove” e “pode-se airmar que a síncope característica de-
pré-tonal, basicamente, nos deslocamentos dos acentos senvolvida nas Américas não tem relação nenhuma com a
do texto cantado (prosódia) e nos desvios da pulsação antiga sincope europeia” (CANÇADO, 2000, p.6).
pendular (cujo padrão se constitui da alternância perió-
dica da consonância no tempo forte contra a dissonância Tal invisibilidade pode tornar-se um vício de método,
no tempo fraco), respeitando-se as convenções do anda- cercear consideravelmente nosso alcance crítico e com-
mento e das subdivisões rítmicas impostas pelos estilos prometer nossas estimativas da profundidade, duração
eruditos da polifonia vocal europeia.4 e repercussão dos processos de sincretismo que o nos-
so velho Novo Mundo atravessa nas diferentes fases da
Se, no nível da artesanalidade, a noção pré-tonal de sua interminável descoberta. Não valorizar a presença
síncope pertence a uma concepção de música que não do stile di Palestrina – considerando que “a música de
pôde imaginar o divórcio das alturas (notas e intervalos) Palestrina, devido ao seu caráter estritamente religioso
de seus desenhos rítmicos, em outro nível, tal música e seu conservadorismo, tornou-se o modelo ideal para a
também não pôde existir fora de um cenário ele próprio Contra-Reforma” (CARVALHO, 2000, p.49-50) – pode nos
sincopado. O mundo onde essa síncope modal, vocal e levar a não ouvir a presença da música da Igreja, essa su-
contrapontística convive, interage e abre espaço para a perestrutura distribuidora de síncopes que, naqueles anos
síncope tonal, instrumental e harmônica é o mundo onde da idade moderna (antecedendo e depois convivendo com
a Europa de um Tinctoris, passando por um Palestrina, se as menos lembradas músicas da ópera e das corporações
transforma na Europa de um Rameau, de um J. S. Bach militares e com a, sempre citada, sincopada “música das
e de um Beethoven. É também o mundo onde se desco- danças europeias de salão”) foi uma personagem institu-
bre que é possível forjar o Novo Mundo (Novi Orbis). Um cional com grande poder de barganha na mixagem nego-
cenário vivo, amplo, intenso, que sofre ligaduras de toda ciada que veio formando o ouvido musical destes lugares
ordem: musicais, sociais, culturais, linguísticas, econômi- ditos novos e populares.6
cas, cientíicas, mitológicas, ilosóicas, etc.
Nas disputas do moderno contra o antigo, a síncope é
Parte desse mundo que assiste o lorescimento da sínco- um dispositivo caro aos antigos que os modernos vão
pe pós-modal na Europa cosmopolita assiste também “a desapropriar e os contemporâneos vão transformar.
revolução mais radical da história da música ocidental” São muitos os registros para a apreciação desses apre-
(HARNONCOURT, 1993, p.27): a conversão da música ços, apropriações e reinvenções e, considerando que
determinada pelos cânones do Stylus gravis (primeira síncope “designa um conceito criado pelos teóricos
prática ou stile ântico) para a música do Stilus luxu- da música erudita ocidental [...], talvez não seja inútil
rians (segunda prática ou stile moderno). Re-sinalizar examinar como tal conceito foi formulado por estes”
as célebres tensões entre as duas práticas é necessário (SANDRONI, 2001, p.20).
numa revisão que deseje destacar a presença da síncope
colonizadora que se fez ouvir nas circunvizinhanças das Mesmo que, no presente artigo, o entendimento de quem
missões cristãs interferindo massivamente na primei- são esses “teóricos da música erudita ocidental” diira
ra idade da música popular que veio se inventando em do elenco já referenciado por Sandroni, e mesmo que a
paragens do Caribe, Cuba, México, EUA, Jamaica, Haiti, diacronia da síncope, com saltos e lacunas, seja re-deli-
Bolívia, Colômbia, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Chile, neada a seguir de maneira muito geral, defende-se aqui
Argentina, Brasil, etc. Territórios protetorados que se fa- a divulgação de um patrimônio conceitual e artístico (da
zem reconhecer hoje por sua típica (enraizada, nativa, humanidade) que, grosso modo, ainda se encontra for-
natural, pura, peculiar, característica, exótica ou estere- malmente alienado dos limites precondicionados (usual-
otipada) maneira sincopada de fazer música.5 mente sincrônicos e paramétricos) que vamos impondo
ao campo da música popular no âmbito acadêmico.
Em tais “regiões periféricas à Europa ocidental – ideal de
civilização e fonte de modelos culturais para as socieda- Algum apossamento desse legado histórico, teórico, técni-
des em sua órbita” (TRAVASSOS, 2000, p.24), a exuberan- co e culto (e por isso supostamente “desinteressante” para
te síncope popular contemporânea (pós-segunda prática, alguns dos “múltiplos discursos” que cuidam do “nosso po-
pós-barroca, pós-clássica, pós-romântica, pós-colonial, pular”) oportuniza também observar uma espécie de tra-

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jetória por inlação (aumento excessivo, superabundância Em Perotin [c.1160-1236] eram as consonâncias perfeitas [unís-
com desvalorização, banalização, etc.). Notar tal inlação sono, 8ª, 5ª e 4ªs] as que regiam os tempos fortes. Com os neer-
landeses, foram as consonâncias imperfeitas [3ªs e 6ªs], as tríades
– ou “diluição” no sentido de Pound (1986, p.42-43), ou maior e menor e o acorde de sexta [primeira inversão], as que con-
ainda “falsiicação” no sentido de Adorno (2004, p.36-38) quistaram para si esta posição. A dissonância também vai abrindo
– em dispositivos musicais como a síncope é tarefa mean- caminho em direção aos tempos acentuados e, nesta posição, a
drosa e imprecisa, mas pode ser útil nos estudos que abor- dissonância é percebida como um acontecimento sonoro, da mes-
ma maneira que a dissonância de passagem [colocada no tempo
dam as interações contínuas e prolongadas que, pratica- fraco] que se utiliza como uma via para ir de uma consonância a
das por muita gente e em vários lugares ao mesmo tempo, outra. Contudo, a dissonância se adentra nos tempos fortes com
contribuíram com a formação e consolidação dessa música extremada precaução. Em Josquim, as regras para o tratamento
que aprendemos a chamar de popular. das dissonâncias do tempo forte são extremamente rígidas [...].
Salvando-se umas poucas exceções, só existem três formas [Ex.1],
cada uma delas com duas variantes (LA MOTTE, 1998, p.76).
2 - Sobre a síncope do estilo antigo: quando
o muito longe se mostra muito perto7 Observa-se ainda que na música de Josquin e seus con-
Em seu Kontrapunkt, LA MOTTE prefere eleger Josquin temporâneos a síncope não se emprega em qualquer lugar
des Prés (c.1440-1521) como o “capítulo fundamental do nem o tempo todo. Essa estimada “dissonância acentua-
contraponto” (e não Palestrina como, desde Fux, se tor- da” tinha um uso mais reservado, uma função especíica
nou o mais usual). Considerando os méritos musicais de de “igura construtora de forma”.
Josquin (e de outros compositores nascidos no século XV,
Se quisermos nos aproximar da música de Josquin temos que es-
tais como Ockeghem e Isaak) e as diversas motivações de tudar o papel de construtoras de forma que desempenham as dis-
La Motte, esta re-datação da disciplina permite observar sonâncias acentuadas. A saber: essa forma de dissonância aparece
algo da arte e normalização da síncope europeia em fases em meio do contexto musical de modo manifestadamente singu-
ainda anteriores aos anos de 1500. Anteriores assim aos lar. Na maior parte dos casos se assinala com ela o inal de uma
frase ou de uma passagem (LA MOTTE, 1998, p.78).
tantos efeitos das misturas e contra-misturas cada vez
mais inevitáveis e densas resultantes das tensões provo-
cadas por ocorrências coexistentes e incisivas como a Re- Culto e comedido esse uso da dissonância sincopada
forma Protestante, o Atlântico Negro e as conquistas do como igura cadencial já está normalizado em 1477 no
Novo Mundo que – em enredos traumáticos, difíceis de Líber de arte contrapuncti de Johannes Tinctoris (c.1435-
descrever ou mesmo de imaginar – vão desterritorializar 1511): essa é “a suspensão sincopada”, “a sincopação
e re-signiicar a síncope para sempre. descendente para uma cadência que é usualmente en-
contrada na polifonia da metade e inal do século XV”
Ratiicando a convicção de que na teoria culta europeia, (TOMLINSON, 1998, p.403).8 La Motte (1998, p.78) ilustra
desde a mais elementar deinição, na síncope as alturas não essa função de “ixação quase tonal”, esse papel de “con-
se separam da métrica, La Motte (1998, p.76-89) argumen- ferir estabilidade momentânea”, com uma bela seleção
ta: “a síncope (ou retardo) é uma dissonância que conquista de fragmentos onde as iguras de síncope ornamentam
o tempo forte”. Assim, acompanhar a trajetória da síncope é inalizações sobre diferentes graus dos modos. O Ex.2 re-
também “contemplar a emancipação da dissonância”: produz algumas dessas pontuações.

Ex.1 - Tipiicação das formas básicas das iguras de síncope em Josquin.9

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Ex.2 - A síncope como igura de dissonância em cláusulas escolhidas nas obras de Josquin.10

A partir desse marco renascentista – que nos ensina que sonância acentuada em consonância justa. No segundo
“a força expressiva e a beleza da dissonância acentuada a ligadura ¯9–8 vem seguida da tradicional ¯7–6,
[retardo ou suspensão] se baseiam em parte em sua qua- uma espécie de síncope de compensação que atenua
lidade de síncope” (FORNER e WILBRANDT, 1993, p.128) o grau de perfeição da oitava. E o terceiro apresenta
– essa conjunção melos-rythmos vai conhecer um vas- uma sequência de síncopes onde a sonoridade ¯9–8
to percurso artístico e teórico. Mas no essencial estará se encadeia por elisão (inlação por justaposição) com
sempre distendendo (inlacionando) o limite mecânico- a síncope ¯7–6.
expressivo que podemos apreender aqui. O Ex.3 traz uma
síntese da fortuna crítico-teórica da síncope. Um concen- Dando um passo na história o Ex.5 traz uma mínima
trado de termos, conceitos e entendimentos considerados amostragem da síncope na engenharia contrapontística
importantes nas deinições que, salvo diferenças pontu- de Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594). Con-
ais, encontramos em diversos tratados e manuais. Grosso forme os estudos sobre o uso da dissonância em Pales-
modo, esta normalização serve como referência prelimi- trina publicados por JEPPESEN em 1946, a síncope (a
nar para a observação geral das síncopes na música culta dissonância acentuada) ocupa importância evidente no
europeia dos séculos XVI ao XIX e também das síncopes tecido palestriniano. Jeppesen demonstra tal qualidade
das músicas populares do século XX. quantitativamente: em 1489, 5 compassos examinados
nos Cruxiixus de 15 Missarum liber (livros de Missas) de
Entre a geração de Tinctoris (†1511) e Josquin (†1521) e Palestrina, são encontrados 1163 síncopes dissonantes,
a de Palestrina (†1594), surge um dos grandes referen- 1006 notas de passagem e 315 bordaduras, perfazen-
ciais do antigo: o Istitutioni harmoniche (1558 e 1573) do um total de 20,85% de dissonâncias. Examinando o
do teórico, compositor e clérigo franciscano Gioseffe mesma quantidade de compassos nos Benedictus desses
Zarlino (1517-1590). Zarlino cuida da síncope em várias 15 livros, Jeppesen encontrou 955 síncopes dissonantes,
passagens do Istitutioni... mostrando que o dispositivo 1469 notas de passagem e 445 bordaduras, num total
possui notável papel na música de seu tempo. O Ex.4, de 24,08% de dissonâncias (JEPPESEN, 1992, p.284-285).
extraído da terceira parte do Istitutioni..., discute três
diferentes casos de síncope. No primeiro temos a sin- O Ex.5b mostra uma resolução ornamentada, indício de
copação ¯9–8, i.e., a modernizadora resolução da dis- que, por inlação, os embelezamentos da desculpa (re-

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Ex.3 - Uma síntese da normalização tradicional da igura de síncope.11

solução) vão se tornar cada vez mais soisticados. Para da síncope renascentista já são suicientes para que a
comentar essa intensiicação da ornamentação na parte lição da “potência dos contrários” (ARISTÓTELES, 1998,
inal da síncope OWEN prepara dois grupos de igura- p.144) – lição de fundo da música (e da cultura) ocidental
ções hipotéticas. No primeiro (Ex.6 a, b, c, d, e) aparecem – se reairme: “A beleza é multíplice” escreveu Giordano
ornamentações da resolução típicas da suspensão pré- Bruno (1548-1600), o famoso teólogo, ilósofo, escritor,
século XVII (OWEN, 1992, p.47). E o segundo (Ex.6 f, g, h, frade italiano e contemporâneo de Palestrina:
i) adianta ornamentações que se consolidaram a partir do Entre coisas completamente similares, não existe beleza. [...] A
beleza se revela no engate das partes distintas: a beleza de tudo
século XVIII (OWEN, 1992, p.178).
consiste na própria variedade. [...] O princípio, o meio e o im, o
nascimento, o aumento e a perfeição de tudo o quanto vemos
Contudo, antes de adentrarmos de vez no período da sín- resulta de contrários, por contrários, em contrários e para os con-
cope tonal, importa notar que estes poucos fragmentos trários (BRUNO apud TATARKIEWICZ, 1991, p.374 e 377).

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Ex.4 - Figuras de síncope da p.198 do Istitutioni harmoniche de Zarlino: Sincope ottimamente risolte.

a) Tu nobis dona fontem lacrymarum

b) Sicut cervus

Ex.5 - Amostragem de iguras de síncope em dois fragmentos de obras de Palestrina.12

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Ex.6 - Ornamentação da resolução (desculpa) da suspensão segundo Owen.

Na teoria de Zarlino – comenta ABDOUNUR (1999, p.43) – metro e contra-metro, se pertencem: um não se realiza
a música, como a pintura, torna-se mais arrebatadora “se plenamente sem o outro. Entre o dito e o não dito, os “gê-
for pintada com várias cores”. A arte dos sons “proporcio- nios” da música culta europeia são justamente aqueles
nará maior prazer aos sentidos se proceder como a própria que dominam a arte da “conjunção dos opostos” (TOMÁS,
natureza, que gera seres semelhantes de uma mesma es- 2002, p.97). Arte que se realiza no manejo das síncopes
pécie, mas contrapõe essa semelhança introduzindo dife- e de tantos outros truques de deslocamento, distorção,
renças e traços variantes ininitos”. Mestre do Stylus gravis, desencaixamento e contra-norma. A norma (o Canon, a
Zarlino defende que a perfeição resulta do confronto de Lei), como airmava Tinctoris em 1477 em sua famosa oi-
elementos distintos, discordantes e contrários, possuindo tava (e última) “regra de uma condução de vozes ideal” é:
em suas partes, proporções, movimentos e tessituras va- “que em todas as vozes contrapontísticas reine a diversi-
riadas. Entende que a consonância precisa ser contraposta, dade melódica, rítmica e de qualquer tipo”, “a variedade é
valorizada pela oposição da dissonância: a harmonia não exigência urgentíssima em todo contraponto”(TINCTORIS
se dá entre coisas completamente semelhantes, “isso pre- apud FORNER e WILBRANDT, 1993, p.25).
cisa até ser evitado” (i.e., proibido por regras) “em nome
de poupar o ouvido da insistência dessa perfeição”. Mais 3 - Normalização da síncope no estilo
tarde vamos ouvir SCHOENBERG (2001b, p.58) redizer: “as moderno
expressões consonância e dissonância, usadas como an- Um belo registro dos inícios da era tonal, mostrando que
títeses, são falsas”. E DAHLHAUS (1990, p.21) reiterar: “o 150 anos depois de Tinctoris a síncope era tema de con-
pré-requisito de uma harmonia é a varietà ou a diversità” versas cultas (e não um pormenor de técnica restrito aos
especializados), se lê no Compendium musicae de 1618
Assim – artisticamente, tradicionalmente, eurocentrica- escrito ainda em Latim por um jovem, educado entre
mente –, é um equivoco supor que “dissonâncias sinco- jesuítas, que se tornou conhecido como o ilósofo René
padas” são aquilo “que não se pode fazer”. Sincopar não é Descartes (1596-1650).
algo “do outro”, não é um “não-belo” ou uma “discordân-
cia” ingenuamente entendida como uma escolha que, jo- A síncope se produz quando, em uma voz, o inal de uma nota se
ouve ao mesmo tempo em que o começo de uma outra nota da
gando contra o patrimônio, seria “indesejável”, “proibida”
parte contrária [outra voz]. Como se pode ver no exemplo exposto
ou mesmo uma “contravenção ao ocidental”. O conceito é [Ex.7], onde o último tempo da nota B está em dissonância com
bem mais nuançado e dinâmico. “Dissonâncias sincopa- o início da nota C; contudo, isto se tolera porque a lembrança da
das” são forças de movimento e contraste, são estímulos nota A se conserva nos ouvidos. E, assim, a B com respeito à C, é
só uma voz relativa na qual se suportam as dissonâncias. Mais
contrários, medidas de equilíbrio, dinamismo e risco que
ainda, a variedade destas faz que as consonâncias, entre as quais
dotam o discurso de expressividade, agudeza, engenho e estão situadas, se ouçam melhor e inclusive provoquem a atenção,
interesse. O fato do acento dissonante ser fruto de uma pois, quando se ouve a dissonância BC, aumenta a expectativa e,
relação (e não algo em si) não se confunde com “caco- em certa medida, se suspende o juízo sobre a doçura da sinfonia
até que se chegue à nota D, na qual se satisfaz mais ao ouvido
fonia” ou “anormalidade”. Dissonância e consonância,
e, todavia se lhe dá maior satisfação na nota E. Com esta, depois

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de que o inal da nota D manteve a atenção, a nota F, que vem Pouco antes, em 1722, Jean-Philippe Rameau (1682-
imediatamente após, forma uma perfeita consonância, pois é uma 1764) também destacou a síncope em seu Traité de
oitava. Estas síncopes são utilizadas nas cadências, porque agra-
da mais o que inalmente chega após ter sido esperado durante I’harmonie. No Livro 3 (“princípios de composição”), a
muito tempo; e por isso, depois de ter ouvido uma dissonância, síncope dá título ao Artigo 7, para o qual RAMEAU (1986,
o ouvido descansa melhor em uma consonância perfeita ou no p.296-299) escreve um hipotético trecho musical (Ex.9)
uníssono (DESCARTES, 1992, p.108-109). ilustrando várias situações de síncope.15 Esse trecho
tem interesse teórico, pois, mesmo se mantendo iel aos
O Ex.8 ilustra a sincopação idealizada por Johann Jo- números do contraponto e do baixo cifrado, concentra
seph Fux (1660-1741) cento e poucos anos depois do potencialidades bastante avançadas (inlacionadas) em
Compendium de Descartes. Nesta espécie de escritura relação ao que foi a antiga síncope de linhagem franco-
– que passou a ser a norma escolar do que é a síncope lamenga. Pelos números podemos ver que algumas li-
no contraponto modal renascentista – o tal processo de gaduras são efeitos rítmicos (cifradas com 3, 6, 5 e 8,
inlação se evidencia. A função cadencial da síncope se ou seja, são consonâncias) enquanto que outras mostram
diluiu e, seja por razões de eiciência didática ou pelo tensões notáveis: a ligadura já parte de intervalo disso-
distanciamento histórico e geográico, o aprendiz, afas- nante (o trítono, 4# ocupando posição de preparação!);
tando-se da arte dos antigos mestres da síncope, deve a resolução do intervalo dissonante (4#) se dá na outra
se preocupar menos com as funções construtoras de voz (baixo); o intervalo dissonante (2) se intromete na
forma e se esforçar ao máximo para encontrar o maior posição métrica de resolução; a voz que provocou a dis-
número possível de ligaduras.14 sonância se movimenta por grau ascendente (4# 6) ou
mesmo salta (2 6); o último 7, ao se resolver em um 5,
Em 1725, nos diálogos do Gradus ad Parnassum, Fux
ilustra também a ousada possibilidade de uma desculpa
cuida da síncope na “Lectio quarta”: “a quarta espécie
(resolução) cair sobre uma consonância perfeita, o que
do contraponto”
seria proibido no estilo polifônico rigoroso (CARVALHO,
é chamada ligadura ou síncope, e pode ser consonante ou disso- 2000, p.90; LA MOTTE, 1998, p.76-77). Deinitivamente o
nante. A ligadura consonante resulta quando as duas mínimas, a moderno Rameau não é mais um professor de contrapon-
no arsis [tempo fraco] e a no thesis [tempo forte] são consonan- to modal do século XVI, e muitas das licenças sugeridas
tes. [...] A ligadura dissonante resulta quando a mínima no arsis
é consonante (que deve sempre ser o caso), a mínima no thesis, nesse trecho só se tornaram arte na música dos inais do
contudo, é dissonante (FUX, 1971, p.55). século XVIII e ao longo do século XIX.

Ex.7 - A síncope segundo Descartes no Compendium musicae de 1618.

Ex.8 - Síncopes no Gradus ad Parnassum de Johann Fux (1971, p.61).

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Implicado com Rameau (e com a “Harmonia”, emble- pendiosa inlação de números) o fenômeno inlacionado
mas de um estado social causador dos males da con- das ligaduras em uma, duas, três ou mesmo quatro vozes.
dição humana) o philosophe-musicien Jean-Jacques
Rousseau (1712-1778) não deixou faltar um verbete Nesse mesmo período (séculos XVII e XVIII), no vasto cam-
para a “Syncope” no Dictionnaire de musique que pu- po das iguras retóricas da música barroca alemã – a cul-
blicou em 1768: tura musical matizada pelo viés reformista luterano –, a
síncope tem lugar assegurado no conjunto das “iguras de
Síncope é a prolongação sobre o tempo forte de um som começado
em tempo fraco; assim toda nota sincopada está em contratempo,
dissonância e deslocamento” (BARTEL,1997, p.446), ou “i-
e toda sucessão de notas sincopadas é uma marcha em contra- guras de dissonância que afetam a harmonia e a condução
tempo. [...] A síncope tem seus usos na melodia para a expressão e de vozes” (LÓPEZ-CANO, 2000, p.167-168). Vale notar que
o goût du chant; contudo sua principal utilidade está na harmonia Josquin também é referência para o mundo luterano, pois,
para a prática das dissonâncias. A primeira parte da síncope ser-
ve como preparação: a dissonância se ataca na segunda; e numa
por sua mestria, controle e ordenação dos recursos mu-
sucessão de dissonâncias, a primeira parte da sincopa seguinte sicais “esse primeiro músico de expressão moderna” (LA
serve, ao mesmo tempo, para salvar a dissonância que precede MOTTE, 1998, p.xi) personiica uma aspiração nascida já
e para preparar a que segue. [...] O senhor Rameau pretende que
esta palavra derive do conlito dos sons que se entrechocam de nos primórdios da época burguesa, de “compreender” com critério
alguma maneira na dissonância; porém as sincopas são anteriores de ordem tudo o que constitui o fenômeno musical e de resolver
à nossa harmonia, e muitos casos existem de síncopes sem disso- a essência mágica da música na racionalidade humana. Lutero
nância (ROUSSEAU, 2007, p.368-369).16 chama Josquin [...] “o mestre das notas que devem ter feito o que
ele queria, enquanto os outros mestres da música devem fazer o
que as notas queriam”. Dispor conscientemente de um material
Outro letrado que marcou a teoria musical na segunda natural signiica a emancipação do homem com respeito à coação
metade do século XVIII foi Johann Philipp Kirnberger natural da música e a submissão da natureza aos ins humanos
(1721-1783). Como uma espécie de prenúncio da era (ADORNO, 2004, p.57).
clássica seu trabalho é considerado uma síntese que re- Segundo BARTEL (1997, p.396-405), a síncope (syncopa-
úne e reavalia a antiga tradição contrapontística, a arte tio ou ligatura), uma suspensão com ou sem uma dis-
do baixo contínuo de viés bachiano e as modernas ideias sonância resultante, é um dos mais antigos dispositivos
do baixo fundamental de Rameau (KIRNBERGER, 1979; descritos pelos teóricos como um dos principais meios de
LESTER, 2006, p.773; WASON, 2006, p.57). Em 1773, formar e embelezar uma composição.19 Esse “ponto de
ocupado com os verdadeiros princípios para a prática escuta” da síncope foi registrado por diversos tratadistas
da harmonia, Kirnberger enfrentou sistematicamente as e professores, dentre os quais Bartel compila as passa-
suspensões dissonantes deixando um registro detalhado gens onde Susenbrotus,20 Burmeister, Nucius, Thuringus,
(minimamente referenciado no Ex.10) de como músicos Kircher, Bernhard, Janovka, Walter e Sheibe deinem e
de então poderiam entender, explicar e cifrar (numa dis- exempliicam a igura da síncope.21

Ex.9 - Demonstrações de síncopes modernas conforme Rameau em 1722.17

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Esse percurso de mais de três séculos – que separa (e O que deu cunho especíico à música do Barroco foi a experiência
une) as cláusulas sincopadas de Tinctoris, as cadeias de conjunta de toda a Europa que teve [...] na obra de Bach seu ponto
culminante. ‘E como toda a música alemã posterior remonta a Bach,
suspensões de Fux e as sincopações normalizadas por te- o gênio musical alemão, dominaria de futuro no mundo ocidental’
óricos da harmonia moderna e pelos cultores da retórica [...]. A obra de Bach é simultaneamente ponto de conluência e pon-
musical – dá pistas das transformações que a síncope so- to de partida. Ponto de conluência da música europeia e ponto de
fre no âmbito da própria música e teoria culta europeia. partida da música futura das nações. (NEUNZIG, 1985, p.9).24
Esse tipo de processo de re-funcionalização, diluição ou
deslocamento (onde um dispositivo anteriormente reser- Barroca, clássica e romântica, a síncope dessa universal
vado para um determinado papel se vê expandido para “música futura das nações” se faz representar minima-
papéis diferentes), ora desqualiicando e ora qualiicando, mente nos fragmentos reunidos nos Ex.11 e 12. Nesses
também se faz notar na formação disso que agora cha- fragmentos as três etapas da antiga síncope – prepa-
mamos de música popular urbana. Música onde a trans- ração, ligadura e resolução – vão sofrendo inlações de
formação modernizadora, airmadora, re-signiicadora ou todo tipo: mutações, implantes, variações, ornamenta-
trans-cultural surge em meio a percursos assim, de inla- ções e combinações com outras diferentes espécies de
ção, e não propriamente, ou exclusivamente, da invenção dissonâncias. A rítmica da síncope é usada em texturas
de algo que jamais se fez antes.22 homorítmicas sugerindo o caminho para a sincopação
das iguras de acompanhamento (Ex.11a). Entre a disso-
Tal processo de adesão excessiva a um determinado dis- nância e sua resolução surgem permeios bastante sois-
positivo pode carregar o valor negativo de maneirismo ticados (Ex.11b). Cadeias de síncopes agora já ocupam
(afetação, excesso, banalização, etc.). Estigma que con- papéis motívicos temáticos (Ex.11c). E certos mestres nos
tribui na desvalorização de uma artesanalidade que pode, surpreendem com resoluções ascendentes (Ex.11d).
por isso, ser vista como um stilus luxurians demais, um
No correr dos séculos XVIII e XIX a teoria se vê obriga-
estilo imoderado, misturado, popularesco, de mau gos-
da a distinguir coisas que estão se tornando indepen-
to, desinteligente, indiscreto, pobre e inculto justamente
dentes na síncope: de um lado o deslocamento métrico
porque deseja imitar o culto (o rico, o inteligente, o origi-
e de outro as espécies de dissonâncias. A dissonância
nal, etc.), e tal imitação se mostra, ou é percebida como,
ocupa a preparação (Ex.12a). O desenho rítmico ago-
ilegítima, exagerada e indecorosa.23
ra pode estar carregando dissonância de antecipação
(Ex.12b) e não mais exclusivamente de suspensão ou
4 - Retransformação: da síncope moderna retardo. Surgem novos usos para a síncope da antiga
para a síncope do estilo livre prática (Ex.12c). As suspensões não são explicitamente
Toda essa polifonia – as músicas e teorias que perpassam resolvidas (Ex.12d). Agora, rompendo a sisudez do esti-
os séculos XV ao XVIII – assiste o surgimento de uma sínco- lo estrito, já estamos ouvindo o galante estilo livre. E,
pe sincrética, um dispositivo novo (moderno) que se conso- como dizia o teórico musical alemão Heinrich Christoph
lidou no estoque das dissonância da tonalidade harmônica Koch (1749-1816) em 1782: “no estilo livre, dissonância
(notas de passagem, bordaduras, cambiatas, escapadas, não precisa ser preparada” (KOCH apud RATNER, 1980,
apojaturas, antecipações, etc.). Uma síncope expandida p.23). Agora, contando com esse “poderoso recurso para
que, em boa parte da narrativa contemporânea (séculos a produção de tensão expressiva, personiicando em si
XIX e XX) da história da música universal (i.e., da música o princípio estético essencial da tensão e relaxamento”
culta da Europa na Europa e nas suas colônias), vai se fazer (BENJAMIN, 1986, p.69), a musica burguesa europeia,
representar por aquilo que a síncope (ligadura, retardo ou caucasóide e culta, alcança a textura legítima e recor-
suspensão) se tornou na emblemática música de J. S. Bach. rente da sincopação plena (Ex.12e).

Ex.10 - O acorde perfeito maior e suas suspensões dissonantes segundo Kirnberger em 1773. 18

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a) Johann Gottfried Walter (1684-1748), Musicalisches Lexicon, 1732.

b) Johann Sebastian Bach (1685-1750), Concerto Italiano

c) Johann Sebastian Bach, Inventio 6 (BWV 777)

d) Johann Sebastian Bach, um caso de resolução ascendente

Ex.11 - Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderna. 25

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

Com esses poucos fragmentos vamos percebendo que, nas Composições, prescrevendo as partes que a Ligadura se deve
com acentos vários, a igura de síncope é uma ilha natu- dividir, não menos do que muitas inerentes circunstâncias, todas
importantes e precisas para o feliz êxito de uma bem ajustada
ral dessa “música das nações”, dessa babel pós-bachiana, Composição (SILVA GOMES in LANDI, 2006, p.184).
desta hegemônica tonalidade harmônica que nos cerca.
Vamos apreendendo que o “conlito com a métrica preva- Assim, Silva Gomes re-ensina a grande regra: tratar da
lecente” (SALZER e SHACHTER, 1999, p.67) e o atrito com síncope é tratar da variedade como valor estético, pois
a consonância predominante que se dão numa síncope “In omni contrapuncto varietas accuratissime exquien-
não são defeitos (arritmia, deformidade, imperfeição, fra- da est” – “a variedade é exigência urgentíssima em todo
queza moral, funcionamento irregular ou falho, carência contraponto” (TINCTORIS apud FORNER e WILBRANDT,
de linhagem, ou coisas do tipo). E que, embora seja uma 1993, p.25). Conforme o musicólogo alemão Heinrich
tarefa um tanto dispendiosa, é possível notar que os tra- Besseler (1900-1960), no século XV
ços de síncope estão mesmo certiicados em tanta arte e
registrados em tanta teoria. entendia-se por varietas uma modiicação da técnica musical de
qualquer tipo que se pudesse pensar, tendo essa modiicação o va-
lor de preceito principal. Quer dizer que a repetição de grupos ou
5 - Valoração: algumas síncopes são mais do desenhos de notas, a repetição do mesmo e de coisas similares ou a
reaparição de um determinado ritmo no compasso seguinte era mal
que outras vista. A ideia melódica deve apresentar a cada momento algo novo,
Um registro da síncope feito pelas elites letradas no Bra- inesperado, surpreendente. Não se busca a regularidade, mas sim a
sil nos inícios do século XIX foi deixado pelo mestre ca- irregularidade (BESSELER apud LA MOTTE, 1998, p.18).
pela da Sé de São Paulo, o tenente coronel André da Silva
Gomes (1752-1844). No seu tratado A arte explicada de Como os demais tratadistas, Silva Gomes distingue
contraponto, SILVA GOMES cuida da Ligadura nas lições duas qualidades principais de ligadura: A ligadura pre-
9ª a 13ª (LANDI, 2006, p.184-200). O zeloso espaço re- cisa (a síncope necessária, i.e., a dissonante) “refere-se
servado ao assunto evidencia que, mesmo aqui – num ao tratamento da suspensão, onde a nota ligada deve
Brasil dos idos anos de 1800 quando uma música popular ser preparada e seguida de sua resolução, ordinaria-
vem se formando ao redor das igrejas, das corporações mente, por grau conjunto descendente” (LANDI, 2006,
militares e das aglomerações urbanas – o efeito retórico p.41). A ligadura voluntária “refere-se ao tratamento
expressivo da síncope é algo de grande valor a ser apren- da síncope, pela qual ocorre apenas um jogo alternan-
dido com cuidado e diligência pelo músico que está so- te de consonâncias podendo a nota ligada ser tratada
frendo a sua devida catequese ocidentalizante. livremente, isto é, alcançada e/ou deixada por grau
conjunto ou salto” (idem).
Conhecedor dos segredos da arte que explica, Silva Gomes
sabe dos efeitos da síncope. Sabe que se trata de um con- Como o Ex.3 já pré-anunciou, tal distinção especíica é téc-
trário ao que é o regular, sabe do seu real deslocamento. nica, mas é também uma distinção de valor: agrega capital
Mas sabe também que esses efeitos não são impróprios, artístico, social, cultural, simbólico, linguístico, escolar. Con-
antes são valores artísticos altamente positivos na arte solidada no ambiente sacro erudito pré-moderno, tal dis-
católica, conservadora e ocidental. Como todo músico mi- tinção técnico-valorativa sofreu seus sincretismos e numa
nimamente treinado nos cânones da arte europeia, sabe espécie de repercussão impremeditada se fez qualidade de
que não se trata de tomar um único partido: tempo e con- grande apreço nos mundos contemporâneos das músicas
tra-tempo, acordo e tensão, não são valores excludentes, populares sincopadas. A distinção se fundamenta na con-
são forças constituintes da música que interagem numa cepção artística de que, embora não seja possível nem dese-
negociada síntese de opostos. “Essa ação e reação que da jável desenvolver tramas musicais só com a ligadura precisa
luta recíproca de forças discordantes extrai a harmonia do (a síncope dissonante), seu uso implica habilidade, beleza,
universo” (BURKE apud TOCH, 2001, p.146). esmero e maestria, implica em agudeza e engenho.

Ao inal da 9ª lição, Silva Gomes faz um precioso co- Não se trata, é claro, de excluir totalmente o uso da li-
mentário, “Preceitos concernentes aos Usos e Modos gadura voluntária (a síncope consonante). Trata-se de
de Formar a Ligadura”, que antecede as lições especí- colocá-la em seu devido lugar e proporção. Entre as duas
icas sobre a Ligadura: se estabelece uma relação intencionalmente assimétri-
ca: uma variedade equilibrada por uma desigualdade. O
Tendo estabelecido os Sábios a variedade de Espécies com que se
propuseram a organizar o corpo da Composição, admitidas e orde- conhecedor do ofício, o “gênio”, se faz reconhecer pelo
nadas as Agradáveis Consonâncias e aspirando a tornar aprazível uso da síncope mais difícil, expressiva, complexa, varia-
o som das mesmas Dissonantes fazendo que elas fossem índices da, inteligente e criativa, ou seja: a síncope de tipo dis-
sensíveis da bela Harmonia, querendo, parece de propósito, chocar sonante e/ou ornamentada. De maneira relativa, geral, e
primeiro o ouvido com a Dissonância, para que depois icasse mais
susceptível e recebesse com maior recreio a Consonância que se combinada com uma série de fatores diversos (musicais e
seguisse; nestes termos, proporcionando os Meios para que isso extra-musicais), vamos notar que estilos, gêneros, músicas
se conseguisse, eles estabeleceram experimentados preceitos en- e músicos que invertem tal assimetria – i.e., usam mais
tre os quais um deles muito especial e capaz de modiicar a dura ou usam demais as síncopes consonantes – são julgados
aspereza da Dissonância foi o uso e modo de unir estas Espécies
com Ligaduras, chegando por esta descoberta a ponto de intro- como algo de qualidade menos artística, mais pobre, infe-
duzir felizmente e com estimável apreço, as Falsas e Dissonantes rior, monótona, vulgar ou menor.

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

a) Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), fragmento do Quarteto, K. 387, Molto Allegro, 1782.

b) Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), Kurze und leichte Klavierstucke, n. 12.

c) Franz Joseph Haydn (1732-1809), Sonata n. 12.

Ex. 12 - Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderno-contemporânea. 26

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

d) Ludwig van Beethoven (1770-1827), Sonata, op.1, (Pathétique), Rondo, 1798-99.

e) Robert Schumann (1810-1856), Kinderscenen, op. 15, n. 10 (Fast zu ernst), 1838.

(Cont.) Ex. 12 - Mostruário de síncopes europeias emblemáticas da música culta moderno-contemporânea. 26

6 - Síncopes características: os garinhos na tudo isso tem validade delimitada –, tal distinção atua
música popular brasileira no nível do conhecimento tácito, subentendida, é uma
Não raro tal distinção – que, vale insistir, não é auto- espécie de segredo recôndito que contribui para alimen-
suiciente, pois é apenas uma das tantas especiicidades tar a crença estereotipada de que “algumas síncopes são
que atuam nos domínios de um campo – realça matizes superiores” e por isso devem ser “separadas e conser-
xenofóbicas e nacionalistas: a “melhor sincope” (a “boa”, vadas” como cultura autêntica e pura. Com isso, dentro
a “característica”) é a “mais brasileira” (ou, para outras deste campo da música popular, algumas músicas, seus
pessoas, em outros lugares, será a “melhor” ou a “mais” músicos e simpatizantes, podem perfeitamente não re-
caribenha, cubana, negra, portenha, jazzista, etc.). O cri- conhecer ou validar esse tipo de critério, enquanto que
tério está sutilmente presente na distinção entre o que é outros vão se identiicar totalmente com ele.
música sincopada mais ou menos “comercial” (síncopes
difíceis vendem menos, são menos dançáveis, e são per- O Ex.13 reúne algumas síncopes brasileiras intencional-
cebidas como tristes, problemáticas, etc.) e entre o que mente escolhidas em obras emblemáticas produzidas por
é mais ou menos “tradicional” (síncopes difíceis são mais mestres da “nossa” artesanalidade sincopada recente.
legítimas, antigas, originais, verdadeiras, de raiz, etc.). Antes, uma observação deve ser feita. Esses fragmentos
Não formalmente expressa – e sempre entre aspas, pois são grafados aqui de maneira simpliicada, sugestiva e

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

provisória e visam ilustrar o argumento (de que as combi- a iluminação, os olhares, todo o ambiente que um fato
nações das qualidades das alturas nos desenhos rítmicos musical evoca incluindo o tamanho, o comportamento
das síncopes inluem numa distinção valorativa). Como se e a adesão de algum público aicionado, etc. Enviesada-
sabe, nas músicas populares uma composição não se ixa mente os fragmentos amostrados no Ex. 13 realçam tão
com demasiada rigidez, já que na escrita, leitura, inter- somente os aspectos do controle das alturas que com-
pretação, arranjo ou improvisação que se pratica nesse põem a melodia (intervalos consonantes ou dissonantes,
campo tudo isso (notas, tessituras, divisões rítmicas, ar- notas do acorde ou notas auxiliares, tensões disponíveis,
ticulações, quantidades e qualidades dos acordes, tona- preparação, suspensão, resolução, etc.), mas o horizonte
lidades, instrumentação, andamentos, etc.) vai mesmo se de compreensão da questão das síncopes características
modiicando a cada singular recriação. Certamente tais (brasileiras ou outras) é, como se sabe, bem mais am-
impermanências implicam em medidas analíticas obje- plo e miscigenado. A síncope é também (ou muito mais)
tivas (quais intervalos são consonantes ou dissonantes, uma questão de elocução, um modo de expressar, assim,
quais igurações são sincopes ou não, etc.) que vão diferir não é propriamente uma questão exclusiva da composi-
substancialmente das medidas aferidas aqui. ção (notação, etc.), é um componente de interpretação e
performance, um tipo de pronúncia ou sotaque que atua
A intenção do Ex.13 é estimular associações entre, por também (ou muito mais) no tecido rítmico dos “acompa-
um lado, o que conhecemos destas obras e autores, o lu- nhamentos” destas melodias.
gar e o valor que estes “nomes” – o “feitiço do nome do
mestre” como dizia Walter Benjamin (apud BOURDIEU, 7- Em conclusão
2007, p.287) –, ocupam na música, na cultura, na eco- A visita a esta memória da síncope oportuniza notar
nomia, no mundo social em que vivemos. E, por outro que, na arte e na teoria, a síncope não é uma noção
lado, a ocorrência objetiva de letras “d” (dissonâncias) unívoca que se acha homogeneamente pré-estabelecida
contrapostas às letras “c” (consonâncias). Importa no- e paralisada em algum lugar. Como tantos dispositivos
tar a relação de proporção/desproporção entre “d” e c”, musicais que vão atravessando o processo da coloniza-
a variedade (riqueza, complexidade, originalidade) das ção ocidental, a síncope da tradição erudita não é um
combinações sequenciadas e a qualidade das posições patrimônio privativo e anistórico que, puro, ileso e au-
ocupadas. Por ex., “d” em preparações ou resoluções pode tônomo, vai percorrendo épocas e lugares sem sofrer re-
ser sinal de engenho, criatividade, modernização, virtu- deinições e experimentar novos usos e pronunciações.
osismo, impureza, etc.; “c” em lugar de suspensão pode Arguta, prestigiosa, institucional, dominadora e milenar,
ser sinal de imperícia, menor qualidade artística, humor, essa síncope letrada toma parte das “mestiçagens que
ironia, etc. Importa notar que o valor tradicional (tonal, nos constituem” (BARBERO, 2008, p.262), é uma das
ocidental) não está na opção por “d” ou por “c”, e sim no muitas “falas” – das muitas maneiras de pensar, de ver,
equilíbrio ou desequilíbrio conseguido entre elas. Combi- ouvir, fazer e julgar – que discursam nas longas e tortu-
nações “d” e “c” também dão indícios do desenvolvimento osas conversas que estão na linha do telefone-sem-io
causa-efeito da trama. Por ex., estereotipadamente, “c” das transformações do mundo.
pode indicar repouso ou distensão, enquanto que “d” im-
plica em tensão e movimento, etc. Mesmo correndo o risco de reelaborar o que já está
dito em alguns dos “múltiplos discursos sobre música
Contudo, é preciso frisar com clareza que tais associações popular”, vale concluir notando que observações desta
ou referências não são suicientemente alimentadas ex- natureza – a busca de uma historicidade formativa do
clusivamente pelo puro isolamento técnico-objetivo das que seria a síncope brasileira, a busca do que e em
combinações entre “d” e “c”. Como se sabe, o valor em que medida compõe uma espécie de DNA, ou de “alma”
música popular é uma grandeza relacional, depende de da musicalidade brasileira, etc. – dependem do cruza-
efeitos combinados onde aspectos incontáveis e diversos mento de um espesso caldo de considerações. E nesta
interagem. Assim, os parâmetros de ritmo e altura jamais densa trama de “impossível pureza” (BARBERO, 2008,
estão sozinhos na tarefa de julgar qual é ou não a boa p.263), de inúmeras e inacabadas interações transfor-
síncope. O ritual leva em conta quem está fazendo música mativas, as qualidades e posicionamentos das alturas
para quem, aonde e por que, o texto das canções, as qua- no interior do desenho rítmico da síncope são apenas
lidades da harmonia, o timbre, a tessitura, o vibrato, o an- mais alguns dos mínimos detalhes, frações pequeninas
damento, a instrumentação, o volume, os processamen- de artesanalidade sutil e subliminar, que se misturam
tos de mixagem, a mise-en-scène, a expressão corporal, nos nossos julgamentos de valor.

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

a) Ernesto Nazareth (1863-1934), Brejeiro, maxixe.

b) Pixinguinha (1897-1973), Carinhoso, choro-canção.

c) Pixinguinha, Lamentos, choro.

Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB. 31

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

d) Tom Jobim (1927-1993), Chega de Saudade.

e) Hermeto Pascoal (1936-), Surpresa.

(Cont.) Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

f) Edu Lobo (1943-) e Vinícius de Moraes (1913-1980), Só me fez bem.

g) Gilberto Gil (1942-) e Capinam (1941-), Soy loco por ti América.

(Cont.) Ex.13 - Mostruário mínimo do valor da síncope em desenhos melódicos da MPB.

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

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Notas
1 A expressão “da diferença do que ensinam os antigos e os modernos” foi tomada de LANDI (2006, p.122).
2 Considerando que “a música popular atrai os eruditos” e “pesquisadores vinculados às universidades”, TRAVASSOS (2005) mapeia a produção acadê-
mica que trata da música popular nos campos da etnomusicologia, antropologia, estudos literários, semiótica da canção, sociologia e historiograias.
Para SANDRONI, que tratando da “síncope brasileira” relê diversos estudiosos (tais como Edison Carneiro, Mario de Andrade, Andrade Muricy, Oneyda
Alvarenga, Nogueira França, etc.), “de fato, alguns musicólogos viram na síncope uma característica deinidora não apenas do samba, mas da música
popular brasileira em geral” (SANDRONI, 2001, p.19). Sobre a síncope como um tema privilegiado nos estudos da música brasileira ver ANDRADE
(1989; 2006), CANÇADO (2000), MACHADO (2007), NAPOLITANO (2007), SANDRONI (2001), SODRÉ (1979) e WISNIK (2003).
3 A expressão “um bocadinho de cada coisa” foi tomada de BESSA (2005).
4 Sobre as normas de adequação música e texto (Latim) na polifonia ver Benjamin (1979, p.9-10),
Carvalho (2000, p.105-107), Forner e Wilbrandt (1993, p.103-105), Jeppesen (2005, p.38-47) e La
Motte (1998, p.174-181).Tratando da “inclusão do ritmo” no estilo palestriano Forner e Wilbrandt
(1993, p.96-103) sugerem a unidade de tempo de 70 pulsações por minuto, nesse andamento a
igura de síncope ocupa duas unidades de tempo. O andamento é um fator a ser considerado na
re-signiicação da síncope. Para uma comparação acentuada com um caso atual de “síncope bra-
sileira” onde a igura de síncope ocupa uma unidade de tempo, temos que, “enquanto no Rio [de
Janeiro] a pulsação média dos sambas[-de-enredo], nos desiles [de carnaval], tem sido de 132 a
138 [pulsações por minuto], ela é de 138 a 144 em São Paulo, pela marcação de 1989” (IKEDA,
1990). Assim, no andamento, é vertiginosa a diferença que se observa entre uma suposta síncope
palestriniana e uma estereotipada síncope de samba-de-enredo.
5 O uso do termo massivo em contexto anterior aos meios de comunicação de massa foi sugerido por GARCÍA CANCLINI (2003, p.255-256): “A rigor
o processo de homogeneização das culturas autóctones da América começou muito antes do rádio e da televisão, nas operações etnocidas da
conquista e da colonização, na cristianização violenta de grupos com religiões diversas, – durante a formação dos estados nacionais – na escolari-
zação monolíngue e na organização colonial ou moderna do espaço urbano. [...] A noção de cultura massiva surge quando as sociedades já estavam
massiicadas”.
6 Uma alusão ao título de NEVES (1985). O próprio termo “católico” – do Latim catholice (universalmente), catholicus (universal, geral, regular),
catholicum (regra geral), catholica (propriedades gerais, o universo), (TORRINHA, 1942, p.130) – é útil para pensarmos a memória da síncope. No
cadinho que nos coube nesse Novo Mundo, aprendemos a falar da “síncope brasileira” (ou, conforme o narrador, da “síncope cubana”, da “sincope
jamaicana”, da “síncope do Ragtime norte-americano”, etc.) da mesma maneira que aprendemos a falar de um catolicismo “brasileiro”. Um sutil
contra-senso, já que o termo “católico” pretendeu dizer justamente aquilo “que é universal”. Mas esse contra-senso (esse universal vertido em
particular) deslocou-se frente ao fato de que, apesar das origens (já sincréticas) do termo e da própria religião, o Brasil, como outras paragens do
Novo Mundo, acabou negociando seu jeito particular de ser “católico”. E esse “jeito de ser”, esse “modo próprio de perceber e narrar, contar e dar
conta” (BARBERO, 2008, p.261) acaba sendo reconhecido como tal.
7 A expressão “muito longe, muito perto” foi tomada de SAFATLE (2007).
8 Datado de 1477 o Líber de arte... de Johannes Tinctoris (c.1435-1511) é um marco renascentista do registro teórico da síncope. Tal registro foi pre-
cedido – informa RIEMANN (1962, p.249-250) – por normalizações da síncope encontradas em tratados franceses cem anos mais antigos. Tratados
como o célebre Ars nova (c.1322), o Ars perfecta in musica e o Liber musicalium atribuídos a Philippe de Vitry (1291-1361), e também em trabalhos
atribuídos a Johannes de Muris (c.1290-c.1351) como o Libellus cantus mensurabilis (c.1340). No repertório as dissonâncias sincopadas também
estão presentes nessa música do século XIV, p.ex., em obras de Philippe de Vitry, Guillaume de Machaut (c.1300-1377) e Francesco Landini (c.1327-
1397). Cf. GROUT e PALISCA (1994) e PALISCA (1996). Observa-se com essas tão antigas iguras novas que, desde cedo, no “canto polifônico racio-
nal”, a síncope é um pormenor sui generis dentre os “meios técnicos de expressão” que, “com a inalidade de moldar a paixão”, decorrem daquilo que
o sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) chamou de “notação racional” (cf. LIMA REZENDE, 2009). Por volta de 1911, em seu “fundamentos ra-
cionais e sociológicos da música”, WEBER (1995) destacou correlações entre a “notação” e o “papel fundamental que a Igreja desempenhou em todo
o processo de racionalização” que culminou na moderna música ocidental – a música “condicionada” pela “Akkordhamonik” (harmonia de acordes).
E que isto tenha sido possível teve seu fundamento [...] nas soluções precedentes de problemas tecnicamente racionais. Assim particularmente na
criação da notação racional (sem a qual nenhuma composição moderna seria sequer concebível) e, já antes, na criação de instrumentos determi-
nados que impeliam à interpretação harmônica dos intervalos musicais, e sobretudo na criação do canto polifônico racional. Teve papel nessas
realizações na Alta idade Média o monacato dos territórios missionários do Norte-Ocidente, que sem suspeitar o alcance posterior de seus atos
racionalizou para seus ins a polifonia popular [...]. Foram particularidades absolutamente concretas – condicionadas sociologicamente e pela
história da religião – da situação externa e interna da igreja cristã no Ocidente que originaram ali, a partir de um racionalismo próprio apenas ao
monacato do Ocidente, esta problemática musical, que na sua essência era de tipo “técnico” (WEBER, 1995, p.50-51).
9 Adaptado de LA MOTTE (1998, p.76). No exemplo a letra “c” corresponde a um intervalo consonante e a letra “d” a um dissonante. Por conseguinte,
suspensões como ¯9-8, ¯2-1,¯4-5, ¯7-8, bem como as eventuais resoluções ascendentes (que aparecem mais tarde na música culta europeia), não
estariam ainda em uso na época de Josquin (LA MOTTE, 1998, p.77). Note-se ainda que o desenho de síncope não é puramente melódico, já que
depende de no mínimo duas vozes.
10 Conforme LA MOTTE (1998, p.78-81). Para estimular comparação com uma graia da síncope que aparece na música popular atual, as cláusulas
dos Ex. 2a e 2b foram reescritas (no destaque) em compasso dois por quatro.
11 O Ex.3 procura resumir diversas referências. Em um primeiro grupo – reunindo autores que seguem a normalização proposta por Fux, onde a
síncope ocupa a destacada posição de quarta espécie de contraponto – estão: CARVALHO (2000), FORNER e WILBRANDT (1993), FORTE e GILBERT
(2003), FUX (1971), JEPPESEN (1992; 2005), KENNAN (1987), OWEN (1992), SALZER e SHACHTER (1999), SCHENKER (1987) e SCHOENBERG
(2001a). Dentre os que não seguem as espécies fuxianas estão: BENJAMIN (1979), LA MOTTE (1998) e PISTON (1998). Os termos usados em tratados
brasileiros e portugueses nos séculos XVIII e XIX foram recolhidos em FAGERLANDE (2002) e LANDI (2006). Para estudos que abordam as relações
entre métrica e altura na tonalidade harmônica ver BERRY (1985), COOPER e MEYER (2000), KOMAR (1971), KRAMER (1985) e LA RUE (1989).

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

12 Conforme BENJAMIN (1979, p.150 e 173). Esses fragmentos não trazem todas as informações que constam na partitura e os comentários analíticos
são parciais.
13 O uso da dissonância é assim um critério de valor altamente positivo no julgamento artístico ocidental. Seu emprego denota risco, virtuosismo, habi-
lidade e maestria composicional. Com isso, Palestrina pôde ser considerado um dos grandes do seu tempo porque, entre outras coisas, conseguia usar
mais dissonâncias do que outros maestros da época. No ranking demonstrando estatisticamente a capacidade de uso de diversas dissonâncias (notas
de passagem, suspensões, bordaduras e antecipações) compilado por HUANG e CHEW (2005) com o auxílio de um software para análise musical,
vemos que Palestrina aparece em primeiro lugar com 18,37% de dissonâncias, em segundo vem Tomás Luis de Victoria (1548-1611) com 14,8%,
depois William Byrd (1540-1623) com 10,57% e por im Orlando di Lasso (c.1530-1594), com 7,84%.
14 Não se trata, é claro, de uma não percepção do ideal de diversidade defendido pelos grandes teóricos do renascimento como Tinctoris e Zarlino. Fux
conhece a importância artística da variedade, basta ir até à sua 5ª espécie, por isso mesmo chamada de “contraponto lorido” (FUX, 1971, p.64-67).
Mas é que o diligente Fux é um personagem do Iluminismo exercendo o poder de abstração e o melhor da concepção pedagógica de seu tempo: “a
maneira do Iluminismo conhecer [e logo ensinar] uma coisa era: identiicar, separar e classiicá-la” (GAINES, 2007, p.190). Fux trata do uso da síncope
em cláusulas (cadências) em diversas passagens ao longo do Gradus... , p.ex., no “Exercitii V. Lectio III. De trium partium Fugis”.
15 Ver ainda Livro 2 (da natureza e propriedade dos acordes) Artigo 1 e Artigo 4 (RAMEAU, 1986). Para Rameau o efeito de síncope é algo comparável a
uma colisão, daí a origem do termo. Síncope seria composta por duas palavras gregas: syn e copto (RAMEAU, 1971, p.78; ROUSSEAU, 2007, p.368).
Syn é um prepositivo que implica em juntamente (ao mesmo tempo, associação, etc.) que aparece em palavras como sincronia, sinergia, sinfonia,
sinônimo, síntese, simetria, simbiose, símbolo, etc. Já copto (-cope) signiica bater, colidir ou cortar e é usado como pospositivo no eruditismo latino
do renascimento em palavras como apócope (mudança fonética que consiste na supressão de um ou vários fonemas no inal de uma palavra, por
exemplo: cine, por cinema, bel por belo), perícope (trecho da Bíblia ou de um livro) e síncope (HOUAISS).
16 O texto “Syncope, en Musique” de Rousseau foi publicado primeiramente em 1765, no XV volume (p.747) da célebre Encyclopédie... editada por
Diderot e D’Alembert entre 1751 e 1772.
17 A partir de RAMEAU (1986, p.298; 1971, p.316).
18 A partir de KIRNBERGER (1979, p.172).
19 Adotando o termo “suspensão”, BARTEL (1997, p.396) não deixa de avisar que, em inglês, suspention é normalmente usado como tradução de
syncopatio ou syncopa. No entanto, suspention tem conotação de harmonic syncopation e, em inglês, este termo icou mais reservado para os
aspectos da síncope que implicam no controle das questões de altura. Por outro lado, o termo inglês syncopation é normalmente entendido como
uma alteração de ordem rítmica (não necessariamente implicando em dissonâncias no campo das alturas). Tal separação se mostrou necessária na
contemporaneidade, pois desde a síncope do estilo livre (ver itens 4 e 5), nem todas as dissonâncias acomodadas no desenho rítmico da síncope são
suspensões (ou retardos). A advertência de Bartel – igualmente lembrada nas notas do tradutor in FORTE e GILBERT (2003, p.60) – é determinante
para os estudos da síncope no Brasil referenciados em publicações de língua inglesa. Nos dicionários, enciclopédias ou outros textos em inglês,
possivelmente, as informações sobre a síncope estarão compartimentadas. Em parte as informações estarão no verbete síncope, onde, no geral, a
ênfase recairá nos aspectos de deslocamento métrico, pulso, rítmica, prosódia, etc. Mas serão os verbetes “suspensão” (Francês e inglês: suspension;
Alemão: vorhalt; Italiano: sospensione; Espanhol: suspensión) e “retardation” (retardo) que, provavelmente, trarão informações sobre a questão das
alturas da síncope tradicional (aquela que antecede o estilo livre). Na cultura viva das síncopes, parece inadequado, para dizer assim, especializar
ou compartimentar de maneira muito rígida as diferentes propriedades que compõem o denso entendimento das dissonâncias acentuadas. Mas,
dependendo de tendências e intenções, teóricos, críticos, professores, e artistas podem mesmo escolher o caminho da compartimentação paramé-
trica. E isso pode ser positivo ou não dependendo de inúmeras outras variáveis. Em qualquer caso o alerta de Bartel continua válido. Como leitores
e/ou pesquisadores vamos exercer nossas escolhas informados e informando sobre os riscos e benefícios desta compartimentação especíica que
carrega sequelas das estereotipadas compartimentações de fundo e mais gerais da nossa cultura atual (i.e. da musicologia de viés eurocêntrico ou
anglo-americano) que prefere realmente distinguir suspensão de síncope. Suspensão implica no reino das alturas, termo mais reservado à síncope
apolínea, a síncope caucasiana, pensante, letrada, europeia, ocidental, tradicional, histórica e de formação cristã, é a erudita síncope do Velho
Mundo, etc. Síncope implica no reino das rítmicas (a sincopada, a sincopação), termo mais reservado à síncope dionisíaca, a síncope rebolada,
negra, afro-miscigenada ou afro-latina, ocidentalizada, sincrética, oral, corporal e sem história – é a síncope de transe que encanta os corpos e as
palmas das mãos que se confundem nesse nosso Novo Mundo, todo ele tão quente e sincopado, etc. E assim vamos reairmando nossas crenças e
preconceitos inabaláveis: a música que pensa não é sincopada e a música sincopada não pode pensar.
20 Em torno de 1540 o professor e humanista alemão Joannes Susenbrot (c.1484-1543) dizia que “a syncope ocorre quando uma letra ou sílaba é
removida do meio de uma palavra” (BARTEL, 1997, p.396). Acepção idêntica se encontra no Vocabulário Portuguez & Latino de Raphael BLUTEAU,
publicado entre 1712 e 1728 e tido como “o mais antigo dicionário da língua portuguesa”. Segundo Bluteau a “Syncopa” é termo gramatical e ocorre
“quando se tira uma letra, ou sílaba do meio de uma palavra, dizendo duum em lugar de duorum, composius em lugar de compositus”. Já “Syncope”
é termo médico, “deriva-se do grego Syncoptein, cortar, porque corta o coração, e todas as faculdades vitais [...]” (BLUTEAU, 1712-1728, p.818).
Assim, instituída pelos eruditos da história literária, poética e linguística, essa noção de síncope interatua com a noção de síncope instituída para a
observação da música. A síncope da gramática é um recurso culto aceito na avaliação dos desvios, transformações e reinvenções que ocorrem com
as palavras em situações coloquiais e nas variações mais populares da cultura oral, como, por ex., nas célebres variações sincopadas que transfor-
maram “vossa mercê” em “vossemecê” em “vosmecê” e chegaram até o “você”, que por aférese (supressão de fonema no princípio da palavra) já
se reinventou como “ocê” ou “cê” e, que por apócope (supressão no inal da palavra), já tornou possível até o uso escrito do solitário “c” como um
pronome de tratamento. Tal maneira de entender o percurso das palavras em direção aos usos de caráter mais atual e popular (que notamos nos
estudos dos colegas que se ocupam da síncope fonética), em alguma medida, parece inluir naquelas soluções do campo acadêmico musical que,
numa espécie de simpliicação metodológica conveniente, pondo em plano bem mais secundário o aspecto das alturas, escolhe focar o aspecto
rítmico da síncope como um parâmetro essencial na apreciação das músicas de registro híbrido, oral e popular. Músicas historicamente recentes
(dos inais do século XIX para cá) que se desenvolveram no entorno dos centros urbanos do Novo Mundo passando por transformações análogas
aos desvios que, por síncope, se dão na língua falada.
21 Conforme BARTEL (1997, p.402), alguns desses autores preocupam-se com a etimologia da palavra. Para o musico poeticus tcheco Tomáš Baltazar
Janovka (1669-1741), syncopatio ou syncopsis, vem do grego Syncopo. Para o teórico e compositor alemão Johann Gottfried Walther (1684-1748) a
palavra grega é synkopto. E, para ambos, o termo grego foi traduzido para o Latim como ferio (ferir, golpear, lograr, enganar) ou verbero (atacar, fus-
tigar, deitar por terra, esmagar com palavras em um discurso). No Latim, conforme TORRINHA (1942, p.852), a palavra syncopa (ou syncope) signiica
desmaio; syncopo implica em cair com uma síncope; syncopatus: que tem uma síncope. A palavra suspensus pode signiicar algo preso em cima, algo
que se sustém nos ares, que está na expectativa, na incerteza, incerto, que depende, submisso, parado, retido, etc. (TORRINHA, 1942, p.850).
22 Em certa medida, esse fenômeno de inlação acompanha componentes diversos da tonalidade harmônica. Outros dispositivos moderno-contem-
porâneos que poderiam, rapidamente, ilustrar o argumento seriam, por ex.: A propagação da dominante (o V7 principal) para a ideia de dominante
secundária que inlaciona a tonalidade com diversos outros V7. O acorde diminuto que se transfere do locus especíico do VII grau do modo menor
(escala harmônica) para diversos outros locais do sistema (inclusive da tonalidade maior). O acorde de sexta aumentada (SubV7), a princípio re-
servado para a função dominante da dominante no modo menor que se expande, generalizando o recurso para incontáveis pontos de preparação.
O acorde de sexta napolitana (bII), original de uma mutação da tonalidade menor que empresta seu efeito diferenciado à tonalidade maior (como

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FREITAS, S. P. R. A memória e o valor da síncope... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.127-149.

bII7M ou como bVII7M). As vizinhanças de terceira (mediantes, submediantes) raras e especiais (i.e. inexplicáveis) nos séculos XVII e XVIII que se
tornaram estereótipos até banais ao longo dos séculos XIX e XX. Dispositivos da época da “saturação da tonalidade” ou “pós-tonais” (tais como
o “acorde de Tristão”, o “acorde de Scriabin”, o “modo de Liszt”, a “escala de tons inteiros”, a “escala octatônica”, os acordes por superposição de
quartas, etc.), também passam por esse tipo de processo e crítica quando ganham uso na música popular urbana.
23 Sobre a noção de decoro como um princípio básico não só da música, mas de toda a conduta humana no século XVIII ver o estudo de LUCAS (2003).
24 A arguta tese de que a música alemã solidiica a “experiência conjunta de toda a Europa” foi enunciada pelo compositor e lautista alemão
Johann Joaquim Quantz (1697-1773) em 1752: “Num estilo que, como o da Alemanha atual, consiste numa mistura dos estilos dos diferentes
povos, cada nação encontra alguma coisa com que tem ainidades”. Para Quantz, a música da Alemanha é “mais universal e mais agradável”, pois
conjuga e mistura os bons elementos da “pura música italiana”, que já não se assenta “sobre fundamentos tão sólidos como outrora”, e do “puro
estilo francês” que “permaneceu excessivamente simples” (QUANTZ apud GROUT e PALISCA, 1994, p.477). O bordão que apregoa J. S. Bach como
uma espécie de “ponto de partida” da música moderno-contemporânea, possui inúmeros registros. Conforme BENÉVOLO (2004, p.61-62), para o
teórico e historiador Johann Nikolaus Forkel (1741-1818), primeiro biógrafo de Bach e o primeiro a lutar pelo reconhecimento da sua genialidade
postumamente, Bach é o “príncipe dos clássicos passados e futuros”. Em um contexto de soerguimento nacionalista, Forkel declara a arte de Bach
como um “tesouro inigualável exclusivamente alemão” e dedica a sua biograia aos “admiradores patrióticos da verdadeira arte musical”. Conforme
KATER, Beethoven teria dito: “Bach não é um riacho, é um oceano!” Um jogo com a palavra “bach” que em alemão signiica riacho (In: WEBERN,
1984, p.89). Para Debussy, Bach é o “ancestral de qualquer música” (DEBUSSY, 1989, p.194). Para Anton Webern (1883-1945) “tudo acontece em
Bach”, “tudo o que veio após Bach já estava em preparação [...]”. “Aliás, Bach compôs de todas as maneiras possíveis, ocupou-se de tudo que pode
ser pensado!” (WEBERN, 1984, p.82, 66 e 84). Sobre a invenção de J. S. Bach como um dos pilares supremos do reino do espírito alemão, uma
espécie de “essência hereditária de um grande passado”, ver o estudo de DAHLHAUS (1999, p.116-125). No momento de nacionalização da música
brasileira, ecos desse culto ao nome de Bach (um mestre das sincopas) vão repercutir em nosso entorno. No seu Ensaio sobre a música brasileira, de
1928, Mário de Andrade (1893-1945) vê Bach (e também Haydn e Mozart) como um “espírito totalmente universal” (ANDRADE, 2006, p.14), e no
capítulo intitulado “Polifonia” declara: “a harmonização europeia é vaga e desraçada”. Nos anos de 1930 a 1945, nesse mesmo contexto de invenção
de um nacionalismo brasileiro e moderno, Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compõe as célebres Bacchianas Brasileiras expondo artisticamente sua
percepção de possíveis ainidades entre a música popular (sincopada) que se fazia no Brasil e a música de Bach.
25 O Ex.11a é citado em BARTEL (1997, p.404), o Ex.11b em PISTON (1998, p.54) e o Ex.11d em LA MOTTE (1988, p.58). Tais autores trazem uma vasta
coleção de exemplos minimamente referenciada aqui.
26 O Ex.12a é citado em PISTON (1998, p.85); o Ex.12b em KENNAN (1978, p.71-72); o Ex.12c em PISTON (1998, p.64); o Ex.12d em KENNAN (1978,
p.66) e PISTON (1998, p.74).
27 Sobre o sentido dos termos “distinção” e “capital” (artístico, social, cultural, simbólico, linguístico, escolar, etc,) no vocabulário teórico colocado pelo
sociólogo Pierre Bourdieu, ver BOURDIEU (2007), SHUKER (1999) e VALLE (2008). Sobre o sentido dos termos agudeza e engenho na crítica musical
setecentista, ver LUCAS (2007).
28 Leia-se, como documento datado, um trecho escolhido no verbete Síncope do Dicionário da Música do “musicólogo” francês Michel Brenet (pseu-
dônimo de mademoiselle Marie Bobillier, 1858-1918):
Modernamente, graças à música chamada negra e o sucesso alcançado pelas pequenas orquestras de jazz, convertidas em veículos de transmissão
da música dançante procedente da América do Norte, a síncope é algo consubstancial dessa música. A origem das complicadas combinações de
ritmos onde a forma sincopada adquire extraordinária preponderância, se encontra nas formas primárias da música própria dos povos africanos
que há alguns séculos foram levados à América. Em todos os povos de civilização rudimentar, um dos valores substantivos da música é o ritmo. Os
cantos, como as danças populares, oferecem sucessões e combinações de ritmos diversos nos quais reside o grande interesse que aos indígenas na-
turais despertam suas músicas. Daí, pois, que os negros, hoje completamente aclimatados e naturalizados em terras americanas, e particularmente
na América do Norte, por lei inevitável de atavismo racial, cantem e produzam sua música conservando em sua lírica a modalidade das escalas
pentatônicas africanas e a tendência a fazer do ritmo um meio expressivo. Na música popular e nas danças americanas, as fórmulas sincopadas
adquiriram um grau insuspeitável de riqueza desde há pouco mais de meio século. A síncope se transformou em elemento essencial da música de
dança. Os cake-walks e os foxtrotes não são outra coisa que combinações de ritmos nas quais se faz todas as formas de síncope imagináveis que
por superposição ou por cruzamento umas com as outras, produzem aspectos dinâmicos de irresistível efeito (BRENET, 1962, p.478).
29 Com o termo “campo”, Bordieu se refere a espaços especíicos de posições sociais nos quais um determinado bem é produzido, consumido e classiicado.
O campo se particulariza [...] como um espaço onde se manifestam relações de poder, o que implica airmar que ele se estrutura a partir da
distribuição desigual de um quantum social [capital social] que determina a posição que um agente especíico ocupa em seu seio. [...] A es-
trutura do campo pode ser apreendida tomando-se por referência dois pólos opostos: o dos dominantes e os dos dominados. Os agentes que
ocupam o primeiro pólo são justamente aqueles que possuem um máximo de capital social; em contrapartida, aqueles que se situam no pólo
dominado se deinem pela ausência ou pela raridade do capital social especíico que determina o espaço em questão (ORTIZ, 1983, p.21).
No “campo”, os agentes (indivíduos ou instituições) que ocupam a posição dominante tendem a adotar estratégias conservadoras ou ortodoxas que
visam manter (canonizar) os valores que lhes são favoráveis. Os agentes que ocupam posições inferiores no interior do campo (i.e., aceitam a hie-
rarquia do campo) tendem a adotar estratégias que objetivam alcançar os padrões de excelência dominantes ou a adotar estratégias heterodoxas
ou heréticas que visam a contestação e a subversão das estruturas hierárquicas vigentes. “A estratégia dos agentes se orienta, portanto, em função
da posição [atual e potencial] que eles detêm no interior do campo, a ação se realizando sempre no sentido da ‘maximização’” dos capitais (ORTIZ,
1983, p.22). Basicamente, o que está em jogo nesse “campo” da música popular são relações de poder entre o que é a “boa” e a “má” música, “quem
é” o “grande músico” e “quem não é”, e “quem são” os “autorizados” a julgar (classiicar, hierarquizar) os bens da música popular. Cf. BOURDIEU
(2007), CAVALCANTI (2007, p.19) e VALLE (2008, p.105).
30 Sobre esta temática ver o estudo de CAVALCANTI (2007).
31 As harmonias do Ex. 13b e 13c baseiam-se nas cifras de Edmilson Capelupi. O fragmento 13e foi retirado das transcrições de PRANDINI (1996, p.72).

Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC (Florianópolis) atuan-
do nas áreas de teoria da música, harmonia tonal, contraponto e análise musical. Atualmente é aluno do Doutorado em
Música da UNICAMP onde desenvolve pesquisa na área de Fundamentos Teóricos da Música Popular.

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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.

Música e infância no rádio: o programa


Serelepe na Rádio UFMG - Educativa1
Eugênio Tadeu Pereira (UFMG, Belo Horizonte. MG)
etadeu@ufmg.br; serelepe@eba.ufmg.br

Cristiane da Silveira Lima (UFMG, Belo Horizonte. MG)


crislima1@yahoo.com.br

Gabriel Murilo Resende (UFMG, Belo Horizonte. MG)


gabriel.murilo@yahoo.com.br

Reginaldo Santos (UFMG, Belo Horizonte. MG)


regisnaldosantos@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo tem como eixo temático a música infantil no rádio e faz uma relexão a partir das experiências
do programa Serelepe: uma pitada de música infantil, na Rádio UFMG Educativa, 104,5 FM, apresentado desde agosto
de 2005 em Belo Horizonte. Seu caráter experimental é derivado da tentativa em integrar as áreas de teatro, música e
comunicação, juntamente à proposta de difusão musical.
Palavras-chave: rádio, música infantil, criança, educação musical.

Music and childhood on radio: the Serelepe program at UFMG - Educativa station

Abstract: The main theme of this article is childhood music on the radio. It relects about the experiences of Serelepe:
uma pitada de música infantil (Serelepe: a pinch of kid’s music), a program broadcasted at 104.5 FM of the UFMG Edu-
cativa Radio Station, since august 2005, in Belo Horizonte, Brazil. Its experimental outline is derived from an attempt
to integrate the areas of Drama, Music and Communication, within the music broadcast proposal.
Keywords: radio, music for children, child, musical education.

1. Apresentação
O Serelepe: uma pitada de música infantil é um progra- Por estar inserido na programação de uma rádio edu-
ma de rádio para crianças, oriundo do Curso de Gradu- cativa, o projeto tem se caracterizado por um processo
ação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG, que contínuo de experimentação de diferentes linguagens,
vai ao ar todos os inais de semana2 pela Rádio UFMG buscando integrar, principalmente, as áreas de Teatro,
Educativa 104,5 FM, na região metropolitana de Belo Música e Comunicação. Em 2007, ele se tornou também
Horizonte, Minas Gerais. Ele pode ser ouvido também uma disciplina optativa no curso de Graduação em Teatro
pela Internet, de qualquer lugar do mundo, no link www. na EBA/UFMG, conigurando um espaço de pesquisa para
ufmg.br/online/radio. Contatos com o programa podem os alunos do curso que possibilita o improviso, a brinca-
ser feitos pelo e-mail serelepe@eba.ufmg.br e também deira, a atitude lúdica e, concomitantemente, uma visão
pelo blog http://programaserelepe.blogspot.com. crítica em relação à música, às formas de comunicação e
às artes produzidas para crianças.
O programa é divido em quatro blocos: o Mão na Cum-
buca – músicas daqui e acolá (dedicado exclusivamente Ainda em 2007, os idealizadores do programa – e ou-
a músicas brasileiras); o De Cabo a Rabo – quem conta tros artistas – representaram o Brasil no 8º Encontro da
um canto canta um conto (com histórias cantadas); o Canção Infantil Latino-americana e Caribenha, realizado
De Mala e Cuia – um passeio musical (com músicas de na cidade de Valparaíso, no Chile3. Nesta ocasião, vários
diferentes países) e, por im, o Balaio de Gato – de tudo contatos foram estabelecidos com realizadores de pro-
um pouco (no qual tentamos misturar músicas, histórias, gramas radiofônicos para crianças em diferentes países
brincadeiras, dicas culturais, dentre outros). da América Latina4.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 02/09/2009 - Aprovado em: 18/02/2010
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Sem a pretensão de tentar mudar o gosto dos ouvintes, Revela-se a questão da especiicidade do nosso público:
nem de transformar a produção musical e cultural vol- o que e quem determina o que é música para criança?
tada para as crianças, o Serelepe tem buscado abordar Criança gosta do quê? Como fazer uma programação mu-
o universo infantil sob um ponto de vista que tem a in- sical dedicada ao público infantil que respeite a sua sen-
tenção de criar diferentes possibilidades de escuta e de sibilidade e a sua inteligência? É sobre essas indagações
tornar acessível uma produção musical que julgamos de que este artigo relete.
interesse para qualquer ouvinte, mas que não se encontra
disponível em outros canais de comunicação. Dessa for- 2. “Pré-conceitos” e “pós-conceitos”
ma, o Serelepe não se constitui em um programa alter- sobre a relação música, infância e rádio:
nativo, mas uma proposta alternativa de difusão musical.
Objetivamos criar um espaço aberto para a divulgação de a ação do Serelepe
trabalhos feitos por, para e com crianças, buscando man- Antes de pertencer a uma faixa etária, as crianças são
ter um determinado padrão de qualidade, valorizando a seres humanos. A infância é uma fase da vida em que
inventividade dos artistas e dos ouvintes. Nosso interesse não apenas se assimilam informações e conteúdos, mas
está voltado para aguçar a sensibilidade auditiva e para em que se aprendem hábitos e valores que podem ser
incentivar a curiosidade musical, isto é, criar possibilida- levados por toda a vida. Erik Erikson (1976) nos instiga a
des e estímulos para uma escuta mais variada, rica e cria- pensar que a identidade do sujeito e de uma nação tem
tiva, em que a imaginação do ouvinte possa “criar asas”. início nos rituais de infância. É durante a infância que
os sujeitos mais desenvolvem suas habilidades básicas
A programação do Serelepe privilegia artistas de todo o cognitivas e motoras necessárias à vida. É nesse período
mundo com pouca inserção na grande mídia, mas tam- também que estruturamos a linguagem e compreende-
bém promovemos novas escutas de artistas já conhecidos. mos as “regras” que permitem a vida em comum. Por isso
Determinadas músicas feitas para adultos, por exemplo, é tão importante o acesso à cultura, à educação e à saúde
adotam uma linguagem que poderia ser igualmente apro- de qualidade, sobretudo nos primeiros anos. A formação
priada por crianças, por causa de seu jogo de palavras, que se tem na infância tem impactos diretos no futuro
pelo modo como brincam e fazem humor. Um exemplo jovem/adulto.
disso é a letra de As mariposa, de Adoniran Barbosa, cuja
letra diz o seguinte: Sendo assim, uma programação musical voltada para o
público infantil deve estar atenta a este caráter de for-
As mariposa, quando chega o frio/ Fica dando vor- mação mais amplo – e não deve se voltar exclusivamente
ta em vorta da lâmpida, pra se esquentar/ Elas roda, para “ensinar conteúdos ou boas maneiras” às crianças,
roda, roda e dispois se senta/ Em cima do prato da tais como contar até dez, tomar banho ou escovar os
lâmpida pra discansar/ Eu sou a lâmpida e as muié é dentes. Existem espaços mais apropriados e eicazes do
as mariposa/ Que ica dando vorta em vorta de mim/ que o rádio ou a música para esse tipo de orientação.
Toda as noite só pra me beijar.
Observa-se que as crianças tendem a gostar das músicas
Essa letra tem uma atmosfera que – a nosso ver – se re- às quais têm acesso pela sua família, pelos meios de co-
laciona com o universo infantil. O eu-lírico desses versos, municação (sobretudo a televisão) ou pelas inluências de
com seu português “ruim”, descreve como as mariposas amigos. Muitas crianças só escutam aquilo que seus pais
icam à sua volta, querendo lhe beijar. Mas não seria esta ou irmãos ouvem: uma música feita por e para adultos;
uma metáfora para falar do universo da sedução, da pa- na maioria das vezes, de fácil consumo.
quera? Também. Isso, entretanto, não exclui a apropria-
ção lúdica que a imagem da lâmpada rodeada de mari- No senso comum, o que deine se uma música é ou não para
posas permite. crianças é um critério temático/ pedagógico. Acredita-se
que música para crianças deve ser instrutiva (ensinando,
Já o grupo Secos e Molhados, para citar outro exemplo, por exemplo, a soletrar ou contar), deve ensinar hábitos
tem uma música bastante conhecida chamada O Vira, de de higiene pessoal e da boa educação (como escovar os
João Ricardo e Luli, baseada nas histórias de lobisomem. dentes, tomar banho, dizer “por favor” e “obrigado”, etc.),
Eis a letra: deve ensinar valores morais (como respeitar o próximo e
cuidar da natureza). Outra característica encontrada nas
O gato preto cruzou a estrada/ Passou por debaixo da es- letras das músicas para crianças é a frequência assombrosa
cada/ E lá no fundo azul/ Da noite da loresta/ A lua ilumi-
nou/ A dança, a roda, a festa/ Vira, vira, vira, homem/ Vira,
de animais (e quase sempre mencionados no diminutivo),
vira lobisomem. ou ainda, que versam sobre seres fantásticos, tais como
monstros, bruxas ou bicho papão. Luis Maria Pescetti (in
Essa é uma releitura de uma lenda, associada muitas ve- BRUM, 2005, p.31), discutindo a sua experiência em pro-
zes ao universo infantil. Mas quem canta é Ney Mato- gramas de rádio e com música para crianças, faz uma crí-
grosso, ainda no grupo Secos e Molhados, com seu rosto tica irônica e bem-humorada, airmando:
pintado e suas coreograias ousadas. Tanto O Vira quanto Nas canções infantis há mais animais do que na Arca de Noé.
As Mariposa são músicas que têm sido recebidas, com en- Estão cheias de bichos. Arainhas, galinhazinhas, cachorrinhos,
tusiasmo, pelas crianças. Mas por quê? mariposinhas, tartaruguinhas, gatinhos, lagartinhas, verminhos,

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vaquinhas, abelhinhas, pombinhos... Até vampiros. Basta! Por que te composta por uma bateria eletrônica e um teclado),
ninguém fez uma canção infantil sobre um pocinho de petróleo, acompanhadas quase sempre por coreograias, como se
por exemplo?5.
criança não conseguisse ouvir música sem se mexer. En-
Em seu texto, o autor apresenta também uma lista enor- im, faltam variedade e riqueza nos arranjos sonoros e nos
me de temas possíveis de serem abordados, que vão des- textos dessas músicas. O que se vê difundido nos grandes
de o liquidiicador, o telefone, os pés das girafas, uma centros comerciais são coletâneas de canções de domínio
briga entre os pais, à perda de um avô, etc. O problema é público, reunindo pela enésima vez Ciranda cirandinha,
menos o tema em si do que o modo como eles se torna- Sapo Cururu e O Cravo brigou com a rosa. Não é o caso de
ram exaustivos, padronizados e repetitivos, contribuindo desmerecer essas músicas, patrimônio cultural nacional,
muitas vezes para o estabelecimento de estereótipos e mas de convidar a trazer algo renovado ao rearranjá-las
preconceitos. O universo infantil é frequentemente abor- e regravá-las. A novidade objetivada não está meramente
dado de modo ingênuo e edulcorado, como se toda crian- no aparato eletrônico ou na orquestra sinfônica. Acredi-
ça fosse alegre e feliz por natureza e em tempo integral, tamos que essa novidade está em revelar, na própria mú-
como se não vivesse também seus dilemas e conlitos... É sica, aquilo que quase ninguém ouviu. Na própria música
uma espécie de infância idílica e inventada pelo adulto deve haver algo de novo, de frescor.
que não a viveu, pois ela nunca existiu e talvez, nunca
existirá. Essa infância é cantada em verso e prosa como Os argumentos e justiicativas que são dados para a re-
um mundo feliz idealizado. Mas quem de nós teve uma corrência desses padrões, normalmente, são a airmação
infância somente feliz? de que a mídia dá às crianças exatamente aquilo que elas
querem. Ora, a relação dos meios de comunicação com a
Outras vezes, as crianças aparecem como seres barulhen- sociedade não pode ser vista de modo tão mecânico, redu-
tos, inquietos e incapazes de icarem em silêncio, que cionista e linear: os meios de comunicação não fornecem
só sabem correr e fazer bagunça por todos os lados. São simplesmente os produtos desejados pelo público, nem
sempre ingênuos, pois vivem fazendo perguntas descon- lhes impõem com facilidade, os seus produtos (como se
certantes aos adultos, às quais só terão respostas quando o público não soubesse discernir e não tivesse autonomia
atingirem uma suposta maturidade. No entanto, temas alguma para reletir e escolher, entre os produtos ofere-
considerados sérios ou densos, tais como a perda, a morte, cidos, aqueles que lhe mais interessam, como se consu-
a dor, por exemplo, seriam mais apropriados para adultos. misse tudo indiscriminadamente6). Ainal, o que constitui
a comunicação é mais do que produzir e receber discur-
Se, por um lado, esses temas mais comuns são um mo- sos. O que estabelece o vínculo comunicativo é “a ação de
dus operandi no imaginário dos compositores de músicas afetar e ser afetado pelo outro através de materiais sig-
para crianças; por outro lado há um leque de produções niicantes. É produzir/ consumir discursos, representações,
musicais que têm como mote temas diversos e que dizem sentidos para e em decorrência do outro – e sofrer, junto
claramente, e com poesia, sobre temas gerais da vida. com ele (embora não necessariamente igual a ele), as con-
Walter BENJAMIN (1924, p.237), já em 1924, ao falar so- sequências” (FRANÇA, 2006, p. 86). Entendemos os meios
bre livros infantis, dizia que de comunicação como instrumentos sociais que dialogam
permanentemente com os valores e com os sentidos com-
a criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas partilhados, reproduzindo-os e também os modiicando.
não explicações infantis, e muito menos as que os adultos con-
cebem como tais. A criança aceita perfeitamente coisas sérias, No entanto, também não podemos negligenciar o fato de
mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas que as pressões de natureza econômica inluenciam sobre-
e espontâneas. maneira no tipo de programação oferecido e que isso não
implica necessariamente em uma preocupação com a qua-
Portanto, é de grande importância uma atitude sincera ao lidade ou com a riqueza dos produtos oferecidos. É notório
reletir acerca da ideia de infância que orienta as esco- que a mídia exerce uma grande inluência no sentimento
lhas em um programa infantil, seja do ponto de vista dos de massa, formando opinião, e operando no que GREEN
diálogos nas locuções, seja nas seleções musicais. Essa (1988; 1997) chama de signiicado musical delineado7.
honestidade é decorrente de um respeito às crianças e
aos demais ouvintes que procuramos ter. No que diz respeito à produção dedicada às crianças, te-
mos conhecimento de um conjunto substancial de artis-
Observa-se, também, uma falta de preocupação geral tas produzindo à margem dos grandes meios de comuni-
com a qualidade timbrística e com o nível de elaboração cação e que, por isso, não alcançam um grande público.
das produções musicais, quiçá artísticas de modo geral, As músicas apresentadas por nós vêm de diversas partes
voltadas para as crianças. A maior parte delas oferece do mundo. Muitos são os grupos espalhados pela Amé-
pouca ou nenhuma inventividade e curiosidade que insti- rica Latina. Citando alguns deles como: Los Musiqueros,
guem a imaginação do ouvinte: são frequentemente pou- Pro-Música do Rosário Niños, Mariana Baggio, Judith
co elaboradas, baseadas em padrões rítmicos, melódicos Akoschky e Luiz Pescetti, na Argentina; El Taller de los
e harmônicos bastante simplórios, com repetição exage- Juglares, na Venezuela; Julio Brum con los Pájaros Pinta-
rada de palavras no diminutivo, rimas fáceis e previsíveis, dos, no Uruguai; Cantoalegre, Fundación Nueva Cultura
com uma instrumentação pobre e reduzida (normalmen- e Coro Acuña, na Colômbia; Cântaro, Son de la Ciudad e

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Brenda Cervantes, no México. Em menor proporção, apre- a formação musical do ser humano desenvolve-se sobre
sentamos algo do que é produzido na América do Norte três principais pilares: composição, apreciação e perfor-
(como Pete Seeger, dos Estados Unidos), na Europa (Les mance; e dois secundários: literatura e habilidades. Se-
Petits Loups du Jazz, Bruno Coulais), na Ásia e na África gundo FRANÇA (1998, p.68-69):
(com músicas tradicionais encontradas nas pesquisas do
canadense Francis Corpataux, etc). A apreciação, espera-se, permeia toda experiência musical, sen-
do um mediador básico para o desenvolvimento musical [...] A
escuta sensível e atenta é determinante no fazer musical [...]
No Brasil há uma variada produção musical contem- Nestas circunstâncias, a apreciação estará monitorando a pro-
porânea: Adriana Partimpim, Cecília Cavalieri França, dução musical [...] 10
Cuidado que Mancha, Curupaco, Duo Rodapião, Hélio
Ziskind, Lydia Hortélio, Márcio Coelho e Ana Favaretto, A apreciação musical bem orientada desenvolve um sen-
Palavra Cantada, Teca de Brito, Viviane Beineke, dentre so crítico no ouvinte, permitindo-o julgar melhor o que
outros (sem mencionar os clássicos Arca de Noé, Saltim- ouve e o que se produz musicalmente. A programação do
bancos, Adivinha o que é). Serelepe busca oferecer oportunidades aos ouvintes de
construírem referências de expressão musical de modo
Ora, como as crianças poderiam gostar de tais artistas e de que, no futuro e no presente, possam fazer escolhas mais
suas músicas se elas sequer os conhecem? É preciso haver conscientes sobre o que ouvir. O problema não é uma es-
espaços de visibilidade para outros tipos de produção mu- colha certa ou errada e sim a falta de opção ou a incapa-
sical para que as crianças possam escolher do que gostar, cidade de escolher com critérios mais amplos e relevan-
um espaço para ampliar as possibilidades que fazem parte tes. Reimer, citado por FRANÇA (1998, p.71), acredita que
da sua formação. De um modo geral, o universo radiofôni- “escutar uma grande variedade de música funciona como
co é fundado em uma música de consumo rápido, dirigido um alicerce para decisões criativas”11 e, segundo FRANÇA
para uma comercialização imediata e de fácil substituição. (1998, p.71), a apreciação musical “nutre o repertório de
Pouco ou nada é produzido no rádio para crianças em Belo opções sobre o qual os estudantes agem criativamente,
Horizonte8. Já que o Serelepe não é regido por uma lógica transformando, reconstruindo e reintegrando ideias em
mercadológica, ele não está preso a padrões dessa natureza. novas formas e signiicados.”12

É claro que o objetivo é também o de agradar – mas o gosto A música é muito utilizada como plano de fundo para situ-
pode ser cultivado, criado, antecipado, descoberto, revis- ações variadas. A proposta de escuta do Serelepe é trazê-la
to. E ninguém gosta de uma coisa só: é possível gostar de para o foco da atenção, instigando o ouvinte ao desaio de
coisas muito diferentes, sem que uma exclua a outra. Luis discernir as propostas composicionais: um instrumento di-
PESCETTI (2005, p.29), escritor e músico, airma ter sido vá- ferente, o encadeamento dos sons, um tema de um perso-
rias vezes questionado sobre o fato de divulgar em seu pro- nagem, sons estranhos, estórias “sem pé nem cabeça”, etc.
grama músicas que não são originariamente voltadas para
um público infantil, o que poderia aborrecer as crianças. Ele Paynter, de acordo com FRANÇA (1998, p.70), argumen-
airma, retrucando: “qual o perigo do aborrecimento? O za- ta que “a música não pode ser apreendida por contem-
pping?”9 Se toda vez que a gente se aborrecesse com algo, a plação passiva: é necessário comprometimento, esco-
gente logo a abandonasse, não sairíamos do lugar. Ninguém lha, preferência e decisão.”13 E, para McAdams, segundo
abandona a leitura de um livro por não ter gostado de uma FRANÇA (1998, p.70), “a apreciação musical (bem como
única página. Ele airma, ainda, que essa pergunta sobre o apreciar artes visuais ou ler um poema) é e deve ser
aborrecimento é sempre feita por jornalistas, nunca pelos considerada seriamente por um artista como um ato
pais que escutam o programa com seus ilhos (2005, p.30). criativo por parte do participante”.14
E, pelo que parece, nem pelas próprias crianças.
4. Considerações sobre os nossos objetivos e
Nossa opinião está implícita naquilo que elegemos e in- a nossa experiência
serimos em nossos programas para que os ouvintes pos- O objetivo do Serelepe é fazer desse espaço aberto no
sam ouvir, apreciar e escolher estar em sintonia com o rádio um lugar de escuta e de invenção. Temos o obje-
programa ou buscar outra proposta. Portanto, o Serelepe tivo de experimentar outras linguagens, outros jeitos de
almeja oferecer aos seus ouvintes o variado leque de pos- fazer locução e de explorar as sonoridades, os textos e
sibilidades temáticas dedicadas à infância. os BGs15, bem como divulgar trabalhos considerados pe-
los próprios integrantes coerentes e bem feitos, mas que
3. A apreciação como pilar necessário ao não circulam na grande mídia – ou que até circulam,
desenvolvimento mas em outro contexto.
A música é uma linguagem de todos. Ela é um sistema
simbólico que atravessa limites culturais. Somos respon- Além disso, o Serelepe tem sido um espaço de experi-
sáveis pela reprodução do que já foi e pela produção do mentação de diferentes propostas por parte de seus in-
que virá. Como construir uma cultura musical de amplo tegrantes. O programa, na verdade, não conta com lo-
acesso, que não privilegie somente certos segmentos às cutores proissionais e nem está dentro de convenções
vezes pueris dessa arte? SWANWICK (1979) acredita que radiofônicas, como os das grandes rádios comerciais. É

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buscada, a cada programa, uma maneira diferente de nos do princípio ao im, ao contrário das práticas mais usuais
comunicarmos com o ouvinte. Desde sua estreia até hoje, do rádio que as cortam antes de seu término.
foram experimentadas diferentes formas de dizer o texto
e quase foram criados personagens recorrentes (como o Algumas vezes, os locutores chamam a atenção para a
distraído que adora cantar e sempre perde o seu momen- letra, outras vezes para os instrumentos. Em nossas gra-
to de falar ou a mal-humorada que às vezes é brava, ou- vações, a brincadeira com texto está sempre presente,
tras vezes, romântica...). Os textos, escritos previamente, pois, como o brincar faz parte do universo da criança, os
são elaborados de acordo com as músicas programadas, locutores usam esse meio como uma chave para entrar
mas podem também não se referir exatamente a elas. Ge- em contato com o universo infantil. Criamos diálogos
ralmente as locuções têm a função de ilustrar, comentar fantasiosos entre nós mesmos, inventamos rimas sem pé
e inserir informações extras sobre as músicas e também nem cabeça, até arriscamos cantar de vez em quando,
de incluir comentários que vão além do que a música porém sempre valorizando uma escuta atenta às nuances
apresenta. Em outras palavras: não há um roteiro rígido, de sentido, de ritmo, de sonoridades, respeitando a capa-
o que nos permite, a cada vez, reinventá-lo. cidade das crianças de compreenderem as brincadeiras
propostas e fazerem, elas mesmas, as suas próprias asso-
Quando a letra da música está em uma língua estrangeira, ciações. Queremos oferecer a elas alternativas, mas esta-
é de praxe descrever, em poucas palavras, o que ela diz. belecendo uma conversa, uma tentativa de aproximação.
O repertório é escolhido a partir das discotecas dos pró- Tal como escreve o músico e professor uruguaio Julio
prios integrantes do projeto (que desenvolvem um intenso Brum, o nosso trabalho (assim como o dele) é o de “via-
trabalho de pesquisa), das doações que o Serelepe recebe jar pela imaginação, de agitar a sensibilidade, de “fazer
por intermédio da Rádio UFMG Educativa, pelo acervo da cosquinhas” nas ideias e valores que o sistema nos mos-
própria Rádio e de um acervo de mais de 200 CDs, disponi- tra como imutáveis e permanentes; trata-se de convidar
bilizado pelo Duo Rodapião16, de Belo Horizonte - MG, que a nossa infância a construir e explorar outros mundos”
integra o Movimento da Canção Infantil Latino-Americana (BRUM 2005, p.67)17. Esse é o convite que o Serelepe faz
e do Caribe. Também informamos os dados sobre o intér- aos ouvintes, ao temperar as suas manhãs de sábado com
prete, o compositor e o CD de onde a música foi retirada. pitadas de música infantil, tentando “fazer cosquinhas”
Outra característica do programa é a de tocar as músicas nas ideias mais usuais de música e de infância.

Referências
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técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.235-243.
BRUM, Julio (Org). Panorama del Movimiento de la Canción Infantil Latinoamericana y Caribeña: Estúdios, relexiones y
propuestas acerca de las canciones para la infancia. Montividéo: Papagayo Azul, 2005.
ERIKSON, Erik. Identidade – juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
FRANÇA, Maria Cecília Cavalieri; SWANWICK, Keith. Composing, performing and audience-listening as symmetrical indi-
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FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunicação. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na
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Trad. Oscar Dourado.
MACHADO, Arlindo. Máquina e imaginário – o desaio das poéticas tecnológicas. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2001.
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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.

Leitura recomendada:
BENJAMIN, Walter. História cultural do brinquedo (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.1. Magia e técnica,
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______ . Brinquedo e brincadeira – observações sobre uma obra monumental (1928). In: BENJAMIN, Walter. Obras esco-
lhidas, vol.1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp.249-253.
GREEN, Lucy. Music on Deaf Ears: Musical meaning, ideology and education. Manchester and New York: Manchester
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___________. Music, Gender, Education. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
McADAMS, Stephen ‘The auditory image: a metaphor for musical and psychological research on auditory organization’.
In: CROZIER, W. R. and CHAPMAN, A. J. (eds) Cognitive Processes in the perception of Art, Amsterdam: Elsevier, 1984.
NACHMANOVITCH, Stephen. Ser Criativo – o poder da improvisação na vida e na arte. São Paulo: Summus, 1993.
PAYNTER, John. Music in the Secondary School Curriculum. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
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REIMER, Bennett. A Philosophy of Music Education, New Jersey: Prentice Hall, 1970/1989.
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Notas
1 Uma versão preliminar deste texto foi publicada na Presente! Revista de Educação, ano 17 n. 65, Salvador, Ago/Nov/ 2009. Para a Revista PerMusi
vários pontos foram acrescidos e revisados.
2 A partir de 08 de marco de 2008, o programa passou a ser apresentado aos sábados as 9h da manhã, tendo uma hora de duração. Os programas
“pilulas”, que duravam de 5 a 8 minutos e que eram apresentados diariamente às 9h45min, desde 07 de setembro de 2005. Atualmente o programa
está sendo exibido em partes aos domingos às 9 horas da manhã, conjuntamente a outros programas para crianças. O Serelepe começou suas ati-
vidades a partir de um convite do coordenador da rádio, prof. Elias Santos e por Rosaly Senra, no mesmo ano de inauguração da UFMG Educativa.
3 O 9º Encontro da Canção Infantil Latino-americana e Caribenha ocorreu entre 19 e 25 de outubro de 2009, no México. Outras informações no site:
http://9cancioninfantil.cnart.mx/. Último acesso em: 22/10/2009. Em 2011 o Brasil sediará o 10º Encontro, sob a coordenação de Márcio Coelho e
Ana Favaretto.
4 São eles: ARGENTINA: programa Taracatá, coordenado por Julio Calvo (www.radiodelaciudad.gov.ar), que, lamentavelmente, não está mais no ar;
Me extraña araña, na AM 750 - Radio Nacional Córdoba, sob coordenação de Coqui Dutto; Radio Mafalda, produzida por Alejo e Julio Villarroel
(http://radiomafalda.dynalias.net:86); Vampiro Negro, da Radio Nacional Argentina 870 AM, produzido por Luís Pescetti. URUGUAI: Para Escuchar-
te mejor, da Emisora del sur, sob coordenação de Suzana Bosch (www.sodre.gub.uy). MÉXICO: ¡Ay escuintles! (www.radioeducacion.edu.gob.mx),
programa de curta duração produzido por Gabriel Sanvincente; Hola Luis, da Radio Universidad Nacional Autónoma de México 96.1 FM, também
produzido por Luis Pescetti. PORTO RICO: Ambos a Dos, cuentos y canciones produzido por Nelie Lebrón (www.radiouniversidad.pr).
5 Tradução nossa, a partir do original: “en las canciones infantiles hay más animales que en el Arca de Noé. Están llenas de bichos. Añaritas, gallinitas,
perritos, maripositas, tortuguitas, gatitos, gusanitos, vaquitas, abejitas, palomitas... hasta vampiros. !Basta! ¿Por qué nadie hizo una canción infantil
a un pocito de petróleo, por ejemplo?”
6 Na tradição dos estudos em comunicação, existem diferentes abordagens da relação entre a mídia e a sociedade. Algumas dessas tradições de
pesquisa hoje são muito criticadas pelo seu mecanicismo e linearidade como, por exemplo, a Escola Funcionalista Americana, também conhecida
pela rubrica da Mass Communication Research, que pautava seus estudos a partir da ótica dos efeitos dos meios de comunicação sobre o público, e
a Escola de Frankfurt, ou “Teoria Crítica”, que desenvolveu toda uma abordagem acerca da Indústria Cultural, mas enfatizando o caráter ideológico
dos meios de comunicação. Ambas se sustentam no paradigma informacional, que aborda as instâncias de produção de mensagens e de recepção
como pólos isolados e separados, cabendo à produção um papel ativo e de controle sobre as mensagens, ao passo que o receptor é relegado ao
lugar de um consumidor passivo. Esse paradigma já não é consensual e uma nova perspectiva vem sendo desenvolvida, apoiando-se no chamado
paradigma relacional ou praxiológico. Para um breve panorama dessas teorias, cf. FRANÇA, Vera. Sujeitos da comunicação, sujeitos em comunica-
ção. In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.61-88. Para uma
relexão acerca da mídia, compreendida não apenas em sua dimensão de aparato técnico, mas também em seu caráter relacional, que permite uma
modalidade de experiência assentada no transporte e deslocamento de signos, cf. ANTUNES, Elton e VAZ, Paulo Bernardo Vaz. Mídia: um aro, um
halo, um elo. In: In. GUIMARÃES, César e FRANÇA, Vera (orgs). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. pp.43-60.
7 Lucy Green considera como signiicado musical inerente as relações dos materiais sonoros entre si em uma peça musical, ou entre as demais estru-
turas musicais de uma cultura; e signiicado musical delineado como a relação inseparável, consciente ou não, dos signiicados inerentes com seu
contexto social de produção, distribuição e recepção (GREEN, 1997b, p.27-29).
8 Uma das poucas referências que conhecemos foi o programa Carretel de Invenções, idealizado pro Francisco Marques, o Chico dos Bonecos e produ-
zido pela AMEPPE - Associação Movimento de Educação Popular Integral Paulo Englert e pela Fundação Fé e Alegria, que foi ao ar durante alguns
anos pela Rádio Favela e outras rádios comunitárias, no início da década de 1990. Esse programa ainda é ouvido em algumas rádios brasileiras. Mas
vale lembrar: a concessão da Rádio Favela também é de rádio educativa. Entre as rádios comerciais, desconhecemos outros programas.
9 Zapping: estratégia de mudar de canal possibilitada, sobretudo, pelo advento do controle remoto e que instaura uma nova modalidade de recepção,
no qual o espectador/ ouvinte não se ixa em um único programa, mas ao contrário, se desloca de um a outro livremente. “O zapping é mania que

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PEREIRA, E. T. et al, Música e infância no rádio: o programa Serelepe... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.150-156.

tem o espectador de mudar de canal a qualquer pretexto, na menor queda de ritmo ou de interesse do programa e, sobretudo, quando entram os
comerciais”. (MACHADO, 2001, p. 143).
10 Tradução nossa, a partir do original: Listening is expected to pervade any active musical experience, being a basic medium for musical growth. […]
Sensitive and discerning listening is determinant in musical making. […] In these circumstances, listening will be monitoring the musical output […].
11 Tradução nossa, a partir do original: Reimer believes that ‘listening to a great variety of music’ works as “fodder for creative decisions”
12 Tradução nossa, a partir do original: It nourishes student’s repertoire of options upon which to act creatively, transforming, reconstructing and
reintegrating ideas into new shapes and meanings.
13 Tradução nossa, a partir do original: Paynter argues, music cannot “be apprehended by passive contemplation: it calls for commitment; for choice,
preference, and decision.”
14 Tradução nossa, a partir do original: Musical listening (as well as viewing visual arts or reading a poem) is and must be considered seriously by an
artist as a creative act on the part of the participant.
15 BG é a abreviação do termo técnico background, usado para designar os sons ou músicas que estão de fundo, em segundo plano, acompanhando
a locução.
16 Duo formado por Miguel Queiroz e Eugênio Tadeu que, desde 1994, produz espetáculos e CDs dedicados ao público infantil.
17 Viajar por la imaginación, de agitar la sensibilidad, de “hacerle cosquillas” a las ideas y valores que el sistema nos muestra como inmutables y perma-
nente, se trata de invitar a nuestra infancia a construir y explorar otros mundos.

Eugênio Tadeu Pereira é Professor do Curso de Graduação em Teatro da Escola de Belas Artes da UFMG. Mestre em
Educação - FaE/UFMG, Doutorando em Artes Cênicas - ECA/USP; integrante do Duo Rodapião; idealizador e coordenador
do projeto Pandalelê - Laboratório de Brincadeiras – CP/UFMG (1993 a 2003) e integrante do Movimento da Canção
Infantil Latino-Americana e do Caribe.

Cristiane Lima é Mestre em Comunicação Social - FAFICH/UFMG, bacharel em Radialismo pela UFMG, professora de
Música no Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Proissional da UFMG e na Fundação de Educação Artística.

Gabriel Murilo Resende é Licenciado em Música pela UFMG, professor de música na Pró-Music e no Centro de Musica-
lização Infantil da Escola de Música da UFMG, compositor, arranjador e produtor musical.

Reginaldo Santos é Licenciado em Teatro pelo curso de Graduação da Escola de Belas Artes da UFMG, Professor de Teatro
do Galpão Cine Horto, onde também atua no projeto Conexão Galpão. Coordenador Artístico do Centro de Referência de
Cultura e Desenvolvimento Social de Matozinhos.

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PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre ilhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.

“Escute, pai”: diálogos entre ilhos(as) e


pais em canções populares brasileiras *

Maura Penna (DEM/UFPB, João Pessoa, PB)


maurapenna@gmail.com

Resumo: As relações entre pais e ilhos(as) coniguram um tipo particular de relação entre gerações, na medida em
que ocorrem no seio da família, instituição social marcada por vínculos de dependência e responsabilidade e por laços
emocionais. Diversas canções que têm essas relações como tema são reunidas no CD Como nossos pais (2008), que ex-
empliica a tendência, também presente na indústria fonográica, de preservação da produção musical, na medida em
que apresenta diversas gravações com datas entre 1966 e 1988. Deste CD, selecionamos três canções que claramente
coniguram uma fala ilial dirigida ao pai como interlocutor: Papai me empresta o carro (de Roberto de Carvalho e Rita
Lee); Já fui (de Marina Lima e Antônio Cícero); Pai (de Fábio Jr.). Numa análise que articula contribuições da sociologia
e da psicologia, mostramos como essas canções revelam diferentes momentos do processo de conquista da maturidade
e da autonomia pelos jovens, com suas contradições, reletindo também as transformações sociais na coniguração da
família e no comportamento sexual. Discutimos, ainda, com base na tipologia proposta por TATIT, como essas canções
tratam diferentemente a relação entre letra e melodia.
Palavras-chave: canção; família; relações entre pais e ilhos(as); indústria fonográica.

“Listen to me, dad”: dialogs between fathers and sons in Brazilian popular music

Abstract: The relationships between parents and their children conigure a speciic part of the relationship between gen-
erations, as they occur on the nucleus of the family, which is a social institution linked together by dependency, respon-
sibility and emotional bounds. Several songs which have these relationships as a theme are grouped on the album Como
nossos pais (2008) (Like our parents). This album exempliies a tendency, also present in the phonographic industry, of
the preservation of musical production, as it presents several recordings from dates varying between 1966 to 1988. From
this album, we have selected three songs that clearly its the scenario of a son/daughter speaking to his/her father: Papai
me empresta o carro (Dad lend me the car) (by Roberto de Carvalho and Rita Lee); Já fui (I’m gone) (by Marina Lima and
Antônio Cícero); Pai (Father) (by Fábio Jr.). In an analysis that articulates contributions from sociology and psychology,
we reveal how these songs show different moments of the process, with their contradictions, through which the youth
conquers maturity and autonomy. We also show how these songs relect the social transformations on the coniguration
of the family and sexual behavior. We also discuss, based on the typology proposed by TATIT, how these songs deal dif-
ferently with the relationship between lyrics and melody.
Keywords: song; family; relationship between father and children; phonographic industry.

1. A canção popular [...] em qualquer época, precisamos celebrar os encontros, la-


mentar as separações, anunciar e denunciar situações, retratar
Luiz TATIT (2004) discute, em seu livro O século da can- o lirismo e a estética do cotidiano. Já há história suiciente na
ção, como no Brasil, durante o século XX, a canção popu- canção popular para se depreender um certo revezamento dos
lar se consolidou e se disseminou como uma prática artís- modos de dizer – envolvendo sempre melodia e letra – que ser-
tica capaz de “traduzir os conteúdos humanos relevantes ve justamente para contemplar esses conteúdos psicoculturais.
(TATIT, 2004, p.232).
em pequenas peças formadas de melodia e letra” (TATIT,
2004, p.11). A seu ver, nesse período a canção se libertou Por sua vez, Monclar VALVERDE (2008, p.270-271) criti-
dos gêneros rítmicos predeinidos, na medida em que o ca essa concepção – tanto de Luiz Tatit quanto de José
maior compromisso passou a ser entre o modo de dizer Ramos Tinhorão, outro estudioso da música popular bra-
melódico e a própria letra (TATIT, 2004, p.229): sileira – da canção como “um formato musical que, bem

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 20/12/2009 - Aprovado em: 18/02/2010
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PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre ilhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.

ou mal, simplesmente espelha a dinâmica e a estrutura melódico e seu componente linguístico”, centrando-
da palavra falada”, encontrando sua força, portanto, na se então na composição1, ele também reconhece que:
“sua condição de veículo da mensagem”. Contrapondo-se “A harmonia, o arranjo instrumental e a gravação [...]
a este posicionamento, VALVERDE (2008) interpreta a im- são trocados a cada versão apresentada”, de modo que
portância adquirida pela canção como um acontecimento os “arranjos e as gravações podem produzir de novo a
da história da música, enfatizando os seus aspectos pro- canção, dando-lhe um peril nem sonhado pelo autor”
priamente musicais. Para este autor, a canção é uma for- (TATIT, 1986, p.1). Deste modo,
ma musical típica da cultura popular urbana que se tor-
A canção, como a música, transcorre e só tem sentido no tempo.
nou “o último reduto da tonalidade”. Por estar centrada na Ela precisa de tempo para se constituir. No entanto, mais que tudo,
melodia, o percurso narrativo da canção é mais simples e desaia a inexorabilidade do tempo, materializando-o em substân-
concentrado. Além disso, a simpliicação instrumental da cia fônica vocal. [...] O núcleo entoativo da voz engata a canção
música pop e o seu padrão de “acompanhamento” har- na enunciação produzindo efeito de tempo presente: alguém can-
tando é sempre alguém dizendo, e dizer é sempre aqui e agora.
mônico estabelecem uma relação solo-acompanhamento (TATIT, 2002, p.20)
em que a melodia é a igura, o que “acentua ainda mais a
unidade desta Gestalt temporal que é a canção e reforça Como consequência, TATIT (2002, p.20), ao considerar que
o seu poder expressivo” (VALVERDE, 2008, p.271-272). O o embrião entoativo “reproduz a circunstância de enun-
autor considera a canção, portanto, uma “microestrutura ciação a cada execução”, aproxima-se em certa medida da
tonal exemplar” (VALVERDE, 2008, p.275). noção de performance de ZUMTHOR (2007) acima discu-
tida e, através dela, da abordagem de VALVERDE (2008),
Indo além, VALVERDE (2008) enfatiza diversos aspectos cuja concepção valoriza mais o caráter musical da canção.
que são colocados em jogo através da mediação da per-
formance do cantor: No âmbito deste trabalho, enfatizamos, como TATIT
[...] enquanto forma musical e formato midiático, a canção não se (2004), a relação entre melodia e letra, mas tomando as
reduz ao feliz casamento entre palavra e música: a voz, pela sin- canções selecionadas na especiicidade das gravações
gularidade de seu timbre, torna presente o corpo e o desempenho apresentadas no CD Como nossos pais (FAOUR, 2008),
de alguém real; a melodia, a seu modo e sem dizer nada, conta
uma história envolvente, quando não arrebatadora; o arranjo e a
cujas características diferenciais abordamos adiante. Por
instrumentação datam e localizam o acontecimento que se canta, conseguinte, num primeiro momento, considerando os
conferindo concretude e familiaridade à icção; as palavras, enim, textos verbais – as letras – como narrativas, analisamos
formam o elo simbólico de uma comunidade de falantes que são como retratam as relações entre pais e ilhos(as), que
anônimos e se desconhecem, mas se reconhecem, enquanto falan-
tes. (VALVERDE, 2008, p.272-273 – grifos do original)
coniguram um tipo particular de relação entre gerações.
Num segundo momento, discutimos como essas canções
Assim, para VALVERDE (2008, p.275-276), a gestualida- tratam diferentemente a relação entre letra e melodia,
de vocal que se realiza através da canção pode ser mais com base nos processos de tematização, igurativização e
importante para a adesão do ouvinte do que o conteúdo passionalização (cf. TATIT, 1986, 2002, 2004).
veiculado por sua letra, o que permite o envolvimento
com a canção, mesmo que suas palavras estejam em uma 2. Gerações e famílias
língua que não dominamos. Dentre os vários signiicados do termo “geração”, apre-
sentados pelo Dicionário eletrônico Houaiss da língua
Desta forma, VALVERDE (2008) não aborda apenas a can- portuguesa, encontramos: “ação ou efeito de gerar(-se)”
ção como uma composição que articula melodia e letra, e “função pela qual um ser organizado produz outro
mas considera especiicamente a sua realização con- semelhante; procriação, germinação”. Por extensão de
creta, particular, ou seja, uma determinada ocorrência sentido, temos ainda “grau de iliação em linha direta”;
da composição, aproximando-se assim da concepção de “tronco familiar, grupo racial; ascendência, estirpe, gene-
performance de ZUMTHOR (2007), que também a vincu- alogia” – dentre outras acepções.
la à voz e ao corpo: “A performance dá ao conhecimen-
to do ouvinte-espectador uma situação de enunciação” Com base nesses sentidos de “geração”, podemos pensar
(ZUMTHOR, 2007, p.70). Entretanto, em se tratando de a família como uma instituição social que organiza e le-
um registro fonográico (como no material por nós ana- gitima a procriação. “A família é sempre um resultado das
lisado), é abolida “a presença de quem traz a voz”, além relações sexuais passadas ou correntes: sem sexo não há
de ser possível ultrapassar o “puro presente cronológi- família” – como indica THERBORN (2006, p.12). Ao mesmo
co”, pois a voz gravada “é reiterável, indeinidamente, de tempo, ela regula as relações sexuais, “determinando quem
modo idêntico” (ZUMTHOR, 2007, p.14). Na gravação não pode e quem deve ou não ter relações sexuais com quem”.
há, portanto, uma visão global da situação de enuncia- No entanto, não existe um modelo único e universal de fa-
ção, pois falta um elemento de mediação – no caso, o mília, embora ela seja correntemente vista como uma ins-
elemento visual (ZUMTHOR, 2007, p.69). tituição que contribui para a perpetuação da ordem social.

Mas é preciso salientar, comparativamente, que embo- Diante da existência de sociedades com práticas sexuais
ra TATIT (1986, p.3) caracterize a canção e analise sua e matrimoniais bastante diferenciadas, o antropólogo
eicácia a partir da relação entre “o seu componente LÉVI-STRAUSS (1980, p.14) considera a família como

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“uma das questões mais escorregadias dentro do estudo como amor, afeto, respeito, temor, etc”. Assim, do pon-
da organização social”, de modo que não deve ser tra- to de vista psicológico e da formação da personalidade,
tada de forma dogmática. Para o autor, a família pode esse processo de tornar-se adulto e ser capaz de construir
ser deinida como um grupo social que apresenta as se- novas famílias depende das próprias relações familiares
guintes características: que contextualizaram – melhor dizendo, constituíram – a
nossa formação.
1) Tem sua origem no casamento. 2) É formado pelo marido, pela
esposa e pelos ilhos(as) nascidos do casamento, ainda que seja Aos vinte, ou trinta e poucos anos, somos amantes, trabalhamos,
concebível que outros parentes encontrem o seu lugar junto do somos amigos. Somos parceiros num casamento, pais dos nossos
grupo nuclear. 3) Os membros da família estão reunidos por a) ilhos. Mas continuamos também a ser, sob ângulos que talvez não
laços legais, b) direitos e obrigações econômicas, religiosas e de nos convenham mais, ilhos dos nossos pais.
outro tipo, c) uma rede precisa de direitos e proibições sexuais,
além duma quantidade variável e diversiicada de sentimentos Pois nossa família, nossa primeira família, foi o cenário onde nos
psicológicos tais como amor, afeto, respeito, temor, etc. (LÉVI- tornamos indivíduos à parte. Foi também a primeira unidade social
STRAUSS, 1980, p.16) na qual vivemos. E, quando a deixamos, levamos conosco muitas
das suas tendências formativas. Ficamos ligados a ela interior-
mente, por mais que tentemos nos libertar. E a maioria das pes-
Nesta deinição, a instituição do casamento – que pode soas – mesmo que de modo distante, obrigatório e rotineiro – ica
ter diferentes formas, a depender da cultura – é um ligada a ela também externamente.
componente essencial. Já GIDDENS (2005, p.151) dei-
ne a família como “um grupo de pessoas diretamente Porém, mesmo mantendo a conexão – a conexão interna, a cone-
xão externa –, continuamos a lutar para nos libertar dessa primei-
unidas por conexões parentais, cujos membros adultos ra família. Aprendemos a ver o mundo com nossos olhos, e não
assumem a responsabilidade pelo cuidado das crianças”, com os dos nossos pais. (VIORST, 1999, p.229)
procurando, assim, contemplar as transformações que
ocorrem nas sociedades ocidentais contemporâneas – Num processo marcado por contradições, na oscilação en-
onde é grande a diversidade de formas de famílias e tre vínculos e rupturas, os jovens – os ilhos(as) – conquis-
de núcleos domésticos, inclusive no tocante a divórcios, tam sua autonomia e, por sua vez, podem se tornar pais/
recasamentos, coabitação, assim como a núcleos fami- mães. Por tudo isso, ica claro que as relações entre pais e
liares monoparentais ou construídos a partir de parce- ilhos(as) coniguram um tipo particular de relação entre
rias homossexuais. Desta forma, não se prendendo mais gerações, na medida em que ocorrem no seio da família,
à instituição do casamento, a conceituação de família instituição social marcada tanto por vínculos de depen-
enfatiza a importância da relação intergeracional, o que dência e responsabilidade, quanto por laços emocionais.
salienta o papel da mesma na reprodução, na educação
infantojuvenil e na socialização.
3. O CD temático Como nossos pais e o
Por outro lado, o Dicionário eletrônico Houaiss da língua mercado fonográico
portuguesa traz ainda, como signiicados da palavra “ge- Argumentando que a atuação do mercado fonográico
ração”, por extensão de sentido: “conjunto de pessoas não é tão simples e homogênea como pode parecer, TATIT
que têm aproximadamente a mesma idade” e “espaço de (2004, p.231-232) discute como, ao lado do investimento
tempo correspondente ao intervalo que separa cada um em “lançamentos explosivos” – e efêmeros –, há também
dos graus de uma iliação e que é avaliado em cerca de uma preocupação com a diversidade e com a preservação
25 anos”. Isto indica que, apesar dos vínculos de apoio à de gêneros, estilos, atuações e mesmo artistas:
geração mais jovem, dentro da família, há uma distância Tudo ocorre como se o mundo inanceiro, em interação com o
e/ou uma oposição entre gerações, na medida em que mundo artístico, captasse e ao mesmo tempo inluenciasse um
existe potencialmente a referência ao grupo com a mes- ritmo de alternância cultural que serve para manter vivas e atuan-
ma idade fora do núcleo familiar. tes todas as dicções (modos de compor e de cantar) que formam
o universo musical da nossa sociedade. Em outras palavras: não
se pode cultivar um só gênero ou uma só dicção por muito tempo
Nesse trânsito entre a família – a primeira unidade so- pois a sociedade é complexa e precisa dos gêneros e dicções aban-
cial em que vivemos, nosso primeiro campo de socia- donados para se reconhecer integralmente. (TATIT, 2004, p.232)
lização – e o “mundo lá fora” – a começar pela esco-
la – que nos traz novas referências, crescemos e nos Como uma das estratégias que exploram essa perma-
tornamos autônomos, adultos responsáveis, capazes de, nência, TATIT (2004, p.246) aponta, nos anos de 1990, as
por nossa vez, assumir a responsabilidade pelo cuidado regravações de antigos sucessos: desde “relançamentos
das crianças em novas famílias. Pois desta forma as so- de antigos LPs em formato de CD até as compilações dos
ciedades humanas se renovam e se preservam, passando melhores momentos da carreira, passando pelos Song-
suas tarefas de geração a geração. books e pelas reinterpretações de clássicos do cancionei-
ro nacional e internacional”.
Como diz LÉVI-STRAUSS (1980, p.16) na citação ante-
riormente apresentada, os membros da família estão reu- Também agrupando repertório já consagrado, o CD
nidos tanto por “direitos e obrigações econômicas, reli- Como nossos pais (FAOUR, 2008), de caráter temático,
giosas” ou de outra ordem, quanto por uma “quantidade produzido pela Som Livre em 2008, foi idealizado pelo
variável e diversiicada de sentimentos psicológicos tais jornalista, crítico e pesquisador musical – que também

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PENNA. M. “Escute, pai”: diálogos entre ilhos(as) e pais em canções populares brasileiras. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.157-166.

atua como escritor e produtor musical – Rodrigo Faour, 6. Papai me empresta o carro (Roberto de Carvalho/
também responsável pela seleção de repertório e pelos Rita Lee) – Rita Lee – do LP “Rita Lee” (Som Livre,
textos do encarte. Como informa a biograia disponível 1979)
em seu site pessoal, Faour tem trabalhado “no proces- 7. Já fui (Marina Lima/ Antônio Cícero) – Marina Lima
so de revitalização do acervo das principais gravadoras – do LP “Todas” (PolyGram, 1985)
brasileiras (Universal, SonyBMG, EMI, Warner e Som Li- 8. Pai (Fábio Jr.) – Fábio Jr.– do LP “Fábio Jr.” (Som Li-
vre), produzindo compilações e reedições de álbuns im- vre, 1979)
portantes da música brasileira, sempre acompanhados 9. Naquela mesa (Sérgio Bittencourt) – Nelson Gonçal-
de textos explicativos assinados por ele”2. Sem dúvida, a ves – do LP “Passado e presente” (RCA Victor, 1974)
coletânea Como nossos pais (FAOUR, 2008) relaciona-se 10. 14 anos (Paulinho da Viola) – Paulinho da Viola – do
com este trabalho: ela reúne gravações de vários intér- LP Élton Medeiros e Paulinho da Viola “Samba na
pretes, com datas entre 1966 e 1988, a partir de fo- madrugada” (RGE, 1966)
nogramas cedidos pela SonyBMG, EMI, RGE e Universal 11. Espelho (João Nogueira/ Paulo César Pinheiro) –
– como informa o encarte do CD. João Nogueira – do LP “Espelho” (EMI-Odeon, 1977)
12. De pai pra ilha (Martinho da Vila) – Martinho da
Neste ponto, vale ressaltar que tomamos o CD como um Vila – do LP “Verso… Reverso” (RCA Victor, 1982)
objeto cultural não estritamente musical ou sonoro, pois 13. Herança de meu pai (Benício Guimarães) – Jackson
imagens e textos verbais escritos, presentes no encarte, do Pandeiro – do LP “Isso é que é forró” (Polyfar/
também o integram e são por nós considerados. E o en- Philips, 1981)
carte traz, em sua contracapa, um texto de apresentação 14. Papai sabe-tudo (Leo Jaime/ Leandro) – Erasmo Car-
assinado por seu idealizador, que assim se inicia: los – do LP do especial infantil “Plunct, Plact, Zuuum
2” (Som Livre, 1984)3
As delicadas relações entre a igura do pai e seus ilhos foram
muito bem descritas através dos tempos por nossos compositores,
sempre argutos cronistas do cotidiano. Neste disco, selecionamos Como o próprio texto do encarte esclarece, apesar do tí-
faixas dos anos [19]60 para cá em que embates, admirações e tulo Como nossos pais (FAOUR, 2008) – que permite re-
relexões de várias ordens são postas à prova em forma de samba, meter também à igura materna –, a intenção é homena-
rock, balada, forró e outras levadas. (FAOUR, 2008 – encarte)
gear os pais – iguras paternas, masculinas. Mas é preciso
contextualizar essa homenagem e essa centralidade da
Dedicado por FAOUR (2008 - encarte) ao próprio pai,
igura masculina na relação com os ilhos, nas canções do
a caracterização deste CD como uma manifestação
CD, diante das transformações sociais da família no mun-
da preservação ou permanência da produção musical,
do atual. Como discutem CAVALCANTI e MELO (2008), na
acima discutida por TATIT (2004), evidencia-se por um
organização da sociedade brasileira, com as suas especi-
certo olhar para trás na história, que também se revela
icidades, há uma “grande variedade de ‘famílias alter-
nas ilustrações da capa do disco, com base em fotos
nativas’, de relacionamentos com outras conigurações,
de diversas épocas – pertencentes a acervos pessoais,
diversidades de classes, de etnias, etc”. Neste sentido,
conforme agradecimento no encarte – que retratam
o número de famílias cheiadas por mulheres em nosso
pais e ilhos(as) em diversas faixas etárias. Tais fotos
país cresceu 30% na última década, atingindo a marca
são evidentemente antigas, como também as gravações
de 14,6 milhões de lares, de acordo com o Instituto Brasi-
reapresentadas no CD em questão, pois a mais recen-
leiro de Geograia e Estatística (IBGE). Na imensa maioria
te data de vinte anos antes da produção da coletânea.
desses lares, a mulher é divorciada ou o pai abandonou a
Isso também reforça a colocação de TATIT (2004, p.232)
família (VALADARES, 2005, p.61).
quanto à preservação de diversos modos de compor e
de cantar (que chama de “dicções”) que fazem parte do
Um texto sobre a coletânea, disponível no site de Rodrigo
universo musical de nossa sociedade.
Faour e também assinado por ele, assim apresenta o disco:
Pela importância de evidenciar tais questões, especiica- Este CD mostra as relações de pai & ilho/ilha vistas pela lente
mos as 14 canções reunidas no CD, com as referências de da MPB de várias fases e vertentes. Pelo viés do respeito ou do
autoria e intérprete, além dos dados da gravação original: humor, nas mais diversas situações – das mais corriqueiras às saias
1. Coisinha do pai (de Jorge Aragão/ Almir Guineto/ mais justas (ou seriam calças?). Temos aqui os conselhos paternos,
a admiração por seus ensinamentos, a superproteção, as broncas
Luiz Carlos) – intérprete Beth Carvalho – gravação mútuas, a saudade do pai que se foi, o encanto do pai com os
original do LP “No pagode” (RCA Victor, 1979) ilhos pequenos e o mesmo atrapalhado em cuidar deles sozinho…
2. Papai vadiou (Rody do Jacarezinho/ Gaspar do Ja- Enim, uma bela história contada em forma de disco4.
carezinho) – Leci Brandão – do LP “Leci Brandão”
(Copacabana, 1985) Muitas dessas músicas, no entanto, falam sobre os pais
3. O mundo é um moinho (Cartola) – Cazuza – do LP ou sobre sua relação com seus ilhos ou ilhas, mas não
“Cartola bate outra vez” (Som Livre, 1988) chegam a explicitar um caráter dialógico, como é o caso
4. Como nossos pais (Belchior) – Elis Regina – do LP da conhecida canção Naquela mesa (BITTENCOURT,
“Falso brilhante” (Philips, 1976) 2008), composta pelo ilho do músico e compositor Jacob
5. Avôhai (Avô e pai) (Zé Ramalho) – Zé Ramalho – do do Bandolim, que canta a saudade do pai: “Naquela mesa
LP “Zé Ramalho” (Epic/CBS, 1978) tá faltando ele / E a saudade dele tá doendo em mim”.

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Para nossa análise, selecionamos três canções que cla- do ambiente doméstico. Por tratar tal divisão de tarefas
ramente coniguram uma fala ilial dirigida ao pai como domésticas como natural e inquestionável, a concepção
interlocutor, pois falam com o pai: Papai, me empresta de Parsons de família é atualmente considerada ultrapas-
o carro, de Roberto de CARVALHO e Rita LEE (2008); Já sada (GUIDDENS, 2005, p.152-153).
fui, de Marina LIMA e Antônio CÍCERO (2008); Pai, de
FÁBIO Jr.(2008). Mesmo que não tenhamos, aqui, a fala Por outro lado, no entanto, essa canção também relete
do pai como resposta, suas letras pressupõem o diálogo a “revolução sexual” que ocorreu no mundo ocidental, no
e, potencial e intencionalmente, esperam uma resposta. último terço do século XX, impulsionada por inovações tec-
Procuramos, então, discutir como essas três canções re- nológicas que permitiram dissociar sexo de procriação:
velam diferentes momentos do processo de conquista da
Em primeiro lugar, em termos culturais e legais, houve uma secu-
autonomia pelos jovens, com suas contradições: os vín- larização da sexualidade, libertando-a de regras religiosas ou de
culos afetivos, a dependência, a repressão, a rebeldia, o quaisquer outras normas apriorísticas que a considerassem “pe-
desejo de assumir a própria vida e a própria sexualidade; caminosa” ou condenável de algum modo, quando exercida fora
tornar-se adulto e, por sua vez, pai. do casamento e por puro prazer, sem intenção de procriação. [...]
A revolução real foi, é claro, a prática em si mesma. Ela se ma-
nifestou claramente em mais iniciações sexuais pré-maritais, em
4. Três momentos/movimentos na relação idades mais jovens. Ao passo que a idade do casamento aumentou,
a idade da primeira relação sexual diminuiu. A prática de sexo
pai–ilhos(as) pré-marital ampliou-se de forma signiicativa. (THERBORN, 2006,
Os ilhos que falam com seus pais nas três canções p.306-307)
escolhidas não são mais crianças, mas sim jovens (ado-
lescentes ou adultos) em diferentes momentos do seu Apesar de a expressão “tirar um sarro” poder ser tomada
processo de construção da individualidade – ou seja, de forma mais branda, há outras indicações – como as re-
no processo de se tornar indivíduos à parte, nos termos ferências ao motel e ao bordel – da aceitação do sexo pré-
de VIORST (1999, p.19) –, de conquista da independên- marital. Por outro lado, pelo caráter patriarcal da família
cia e da autonomia. representada e pela tradição machista de nossa sociedade,
é possível também considerar que tal aceitação poderia se
Em Papai, me empresta o carro (CARVALHO; LEE, 2008), um limitar aos ilhos do sexo masculino: o pai teria orgulho de
rapaz que ainda mora com a família – “aqui em casa é im- incentivar as manifestações de masculinidade de seu ilho
possível namorar” – e é dependente dela, inclusive inan- rapaz, que assim prova que “já é um homem”. A mesma
ceiramente, pede o apoio do pai para levar a sua “garota” liberalidade talvez fosse questionada, portanto, em rela-
ao cinema e “tirar um sarro”. Apesar de cantada pela voz ção às ilhas mulheres. Neste sentido, apesar de a canção
feminina da roqueira Rita Lee, o enunciador é claramente ter um enunciador masculino, a voz feminina de Rita Lee,
seu alter-ego masculino, pois, como mostra MAINGUE- pela singularidade de seu timbre, torna presente o corpo
NEAU (1996, p.85), nem sempre há coincidência entre o e o desempenho de uma mulher real, como indicam tan-
“produtor físico do enunciado (o indivíduo que fala ou es- to VALVERDE (2008, p.272 – trecho acima citado) quanto
creve)” – no caso, a cantora – e a categoria do “eu”, aquele ZUMTHOR (2007, p.83-85), para quem a voz “possui plena
que se coloca como enunciador – seu alter-ego. materialidade”, estabelecendo “uma relação de alteridade
que funda a palavra do sujeito”. Desta forma, a performan-
Papai, me empresta o carro
Papai, me empresta o carro
ce da cantora coloca em cena a dimensão feminina e, em
Tô precisando dele pra levar certa medida, a postura feminista: a mulher reivindicando
Minha garota ao cinema seus direitos e sua liberdade.
Papai, não crie um problema
Não tenho grana pra pagar um motel
Não sou do tipo que frequenta bordel
Na canção, a airmação de masculinidade do ilho é tam-
Você precisa me quebrar esse galho bém compartilhada pelo pai, que com a mesma idade tam-
Então, me empresta o carro bém “pintava o sete”, revelando-se assim uma tradição
Papai, me empresta o carro familiar: tal pai, tal ilho; ou ilho de peixe, peixinho é.
Pra poder tirar um sarro com meu bem! (CARVALHO; LEE, 2008)
Papai eu não fumo,
Gravada originalmente no inal da década de 1970, a Papai eu não bebo,
canção revela uma coniguração tradicional de família – Meu único defeito é não ter medo
De fazer o que gosto, u-hu!
nuclear e patriarcal –, onde o pai desempenha claramente Papai eu aposto
a função “instrumental” de provedor. Desta forma, é aqui Na minha idade você pintava o sete
retomada a visão da família nuclear como a unidade mais Mamãe tem ódio de uma tal Elizete
bem equipada para lidar com as demandas da sociedade Aqui em casa é impossível namorar
Então qual é a sua?
industrial, defendida pelo sociólogo funcionalista Talcott Eu só quero um sarro
Parsons. Nessa “família convencional”, a especialização Meia hora no seu carro com meu bem! (CARVALHO; LEE, 2008)
de funções determina que um adulto pode trabalhar fora
de casa enquanto o outro adulto cuida da casa e dos i- Se vinculado à família e de certa forma reproduzindo
lhos: enquanto o marido/pai atua como provedor, a mu- seus valores, inclusive provando ser um bom ilho – que
lher/mãe cumpre a função “afetiva”, emocional, dentro não fuma e não bebe –, o jovem rapaz reairma sua in-

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dividualidade – pois não tem medo de fazer o que gos- um relexo da “revolução sexual” das últimas décadas do
ta, o que pode ser visto como um “defeito”, pelo pai –, século XX, com indicações de mudanças comportamen-
fortalecendo-se no processo de conquista de autonomia, tais também para as mulheres. “Mais do que qualquer
preparando-se para o momento de deixar o lar. coisa, a revolução sexual tornou o longo período de sexo
pré-marital e a pluralidade de parceiros sexuais durante a
Esse momento de despedida e, em certa medida, de rup- vida um fenômeno ‘normal’, tanto no sentido estatístico
tura é retratado na canção Já fui (LIMA; CÍCERO, 2008), quanto no moral” (THERBORN, 2006, p.310).
gravada originalmente por Marina Lima em LP de 1985:
Tchau, coroa!
Tchau, coroa! Tchau, tchau, cara!
Tchau, tchau, cara! Sim, o tempo voa
Sim, o tempo voa Sou mulher já!
Sou mulher já! A gente se liga
Tem alguém à espera Tarde demais pra briga
Que vai icar uma fera Pra que icar rancor?
Se eu demorar demais Eu quero viver
Tem essa issura Sim, quero viver
Tem minha loucura Vou com meu amor
Tem a de vocês Mas vocês sabem que eu os amo
Vocês sabem que eu os amo E muito
E muito Mas, com licença, eu vou à luta
Mas, com licença, eu vou à luta Já disse
Sem limite E nem tem essa de culpa
Pois se a Terra é mesmo fruta E nem tem palpite
Eu tenho apetite (LIMA; CÍCERO, 2008) Tchau! (LIMA; CÍCERO, 2008)

A interjeição (tchau) com que a letra se inicia, sendo Retomando questões já apresentadas na primeira parte
logo repetida – e que irá também encerrar a canção – da canção, a segunda parte traz elementos que revelam
marca claramente a despedida, o momento em que a as tensões e diiculdades de todo esse processo, através
ilha deixa o lar. No entanto, é interessante notar que das referências a brigas, rancor, culpa... Como diz GIDDENS
seu sentido dicionarizado não é de adeus, mas sim de (2005, p.166), “a vida familiar circunscreve praticamente
até logo, até a vista5, o que indica que, embora assumin- todo o campo de experiência emocional”. Pois a família
do suas escolhas e sua própria vida, a ilha reconhece e tanto apóia a criança em seu processo de vida, quanto a
pretende manter os vínculos com os pais: “vocês sabem reprime; e os ilhos podem se acomodar e também se rebe-
que eu os amo”. O jogo com as palavras cara e coroa – lar. Convém lembrar que não é fácil se tornar “indivíduo à
os dois lados de uma moeda, mas também tratamento parte”, adulto autônomo, capaz de se autogovernar. Neste
informal dado a pessoas próximas – permite inferir que processo de amadurecimento pessoal e social, intelectual e
a ilha se dirige ao casal: ao pai (cara) e à mãe (coroa). emocional, neste processo de conquista da liberdade indi-
Mais uma vez, a coniguração familiar é nuclear. vidual, nossas escolhas não precisam ser ou de desaio ou
então de obediência em relação aos nossos pais: “A sepa-
Reairmando a sua individualidade e o direito às suas ração não exige que os repudiemos. Exige escolhas livres”
escolhas, a ilha declara: “com licença, eu vou à luta”. (VIORST, 1999, p.234-235).
Aqui, há uma clara relação intertextual com o título do
livro autobiográico de Eliane Maciel, publicado no i- Já em Pai (FÁBIO Jr., 2008), um ilho independente e mais
nal da década de 1970 com bastante repercussão, sendo velho – por sua vez já pai – reavalia a sua relação com
uma referência corrente, portanto, na época em que o seu pai e busca meios de reconstruir os vínculos afetivos,
LP de Marina foi lançado, e pouco depois, em 1986, a depois de ambos terem se distanciado, física e/ou emo-
obra foi adaptada para o cinema6. Assim, a ilha – que cionalmente.
podemos supor que conquistou alguma independên-
Pai
cia inanceira, inclusive – sai de casa e vai à luta para
Pode ser que daqui a algum tempo
buscar suas verdades, para atender a seus anseios, seus Haja tempo pra gente ser mais
desejos – sua “issura”, sua “loucura” –, num processo Muito mais que dois grandes amigos
que é também uma luta para se libertar da família e Pai e ilho talvez
Pai
aprender a ver o mundo com seus próprios olhos. “Pois o
Pode ser que daí você sinta
ato de sair de casa só se torna uma realidade emocional Qualquer coisa entre esses 20 ou 30
quando deixamos de ver o mundo com os olhos de nos- Longos anos em busca de paz (FÁBIO Jr., 2008)
sos pais”, como discute VIORST (1999, p.233).
Não é clara a razão do distanciamento entre os dois: se
“Sou mulher já!”, diz a ilha. E isto não tem apenas o sen- é o caso de um “pai ausente”, pelo papel de provedor ou
tido de “não sou mais criança”, mas também de maturi- por alguma forma de abandono do lar, por separação ou
dade sexual, pois “tem alguém” que a está esperando e divórcio (cf. GIDDENS, 2005, p.161). Até mesmo a possi-
ela vai embora “com seu amor”, como a segunda parte bilidade de o pai ter falecido se insinua na sequência, no
da letra explicita. Encontramos aqui também, portanto, pedido para que renasça, ao mesmo tempo em que ele

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é convidado a partilhar de atividades cotidianas – como Como mostra VIORST (1999, p.235), alterando antigas
jantar ou brincar –, o que fortalece a ideia de que esse perspectivas da infância do indivíduo, tornar-se pai pode
renascimento seja simbólico. ser uma fase construtiva do desenvolvimento, contri-
buindo para uma visão mais compreensiva das relações
Pai familiares e para a cicatrização de velhas feridas. Deste
Pode crer, eu tô bem eu vou indo
modo, o pai pode tornar-se “mais que um amigo”, sendo
Tô tentando, vivendo e pedindo
Com loucura pra você renascer possível, então, seguir em paz o próprio caminho.
Pai
Eu não faço questão de ser tudo
Só não quero e não vou icar mudo
5. Distintos tratamentos da relação entre
Pra falar de amor pra você letra e melodia
Pai Entendendo que a canção tem profundo vínculo com
Senta aqui que o jantar tá na mesa
a fala – tendo nela até mesmo a sua origem –, TA-
Fala um pouco, tua voz tá tão presa
Nos ensina esse jogo da vida TIT (2002, p.11-12) enfoca “a canção como produto de
Onde a vida só paga pra ver (FÁBIO Jr., 2008) uma dicção” e passa a estudar a “fala camulada em
tensões melódicas”. A fala cotidiana, o discurso oral, as
O ilho, que tenta resgatar os laços afetivos com o pai, coisas ditas de um indivíduo a outro são sonoridades
não quer mais reprimir nem esconder seus sentimentos, com caráter puramente utilitário, destinadas a desapa-
e ao mesmo tempo reconhece a experiência do pai e recer. Ao se tornarem canções, no entanto, entram em
a sua capacidade de aconselhar e ajudar. No entanto, outra dimensão.
também reairma sua própria autonomia, na medida que
A instabilidade e imprecisão das entoações de nossa fala cotidia-
não é mais a criança cujos medos eram superados no na indicam, entre outras coisas, que elas não foram criadas para
colo do pai. Porém, mesmo assim, quer o contato, quer o resistir ao tempo, a menos que sejam transformadas em algum
afeto de “recostar no peito”. projeto melódico digno de preservação. Trata-se justamente do
que ocorre com as canções: suas melodias são inspiradas nos con-
Pai tornos da fala, mas acabam adquirindo um “sentido musical” – ou
Me perdoa essa insegurança seja, uma direção estabilizada por leis de condução – que, este
É que eu não sou mais aquela criança sim, merece ser perenizado. (TATIT, 2004, p.123)
Que um dia morrendo de medo
Nos teus braços você fez segredo Assim, em diversas obras (cf. TATIT, 1986, 2002, 2004)
Nos teus passos você foi mais eu
trata dos “tipos de compatibilidade entre melodia e letra”
Pai
Eu cresci e não houve outro jeito (TATIT, 2004, p.76), destacando os processos de igurativi-
Quero só recostar no teu peito zação, tematização e passionalização.
Pra pedir pra você ir lá em casa
E brincar de vovô com meu ilho
Interessante notar que as três canções aqui estudadas
No tapete da sala de estar (FÁBIO Jr., 2008)
exempliicam esses processos. Já analisamos como cada
uma expressa uma relação distinta com o pai, um modo
E se ele não é mais criança, pois cresceu – como é inevitá- de se dirigir a ele, na medida em que reletem diferen-
vel na vida –, o seu ilho ainda é criança, e desse modo o tes momentos no processo de amadurecimento pessoal
afeto buscado pode ser encontrado na relação avô e neto. do jovem, implicando em mudanças na sua relação com
[..] o fato de nos tornarmos pais ou mães pode atuar como uma a família e, especiicamente, com o pai. Mas cada uma
reconciliação, destinando aos nossos pais melhores papéis, li- dessas canções também trata diferentemente a relação
bertando-os para que sejam – como avô e avó – mais amorosos, entre letra e melodia.
pacientes e generosos do que foram como mãe e pai. Não mais
preocupados em instilar valores morais, não mais encarregados
da disciplina e das regras, não mais responsáveis pela formação O processo de igurativização é o que mais explicita a re-
do caráter, assumem o que há de melhor neles, e nós – felizes lação básica da canção com a fala coloquial, fazendo uso
com tudo o que podem oferecer aos nossos ilhos – começamos de recursos que visam mostrar que “a situação locutiva,
a perdoar os pecados deles, reais ou imaginários. (VIORST, 1999,
criada por uma determinada canção, é viável e poderia
p.235-236 – grifos nossos)
estar acontecendo durante o tempo e o espaço de sua
execução” (TATIT, 1986, p.25).
Então, esse ilho que se tornou pai pode, a partir desse
novo papel, dimensionar melhor a sua própria relação com Na medida em que coniguram uma fala ilial dirigida ao
seu pai – seu herói e seu bandido –, marcada pela ambi- pai, as três canções analisadas fazem uso do processo de
valência, pelos sentimentos conlitantes de amor e ódio. igurativização, que sugere “ao ouvinte verdadeiras ce-
nas (ou iguras) enunciativas”. Todas elas fazem uso, por
Pai
Você foi meu herói, meu bandido exemplo, de vocativos – papai; cara, coroa; pai – que con-
Hoje é mais, muito mais que um amigo tribuem para presentiicar o tempo e o espaço da voz que
Nem você nem ninguém tá sozinho canta (TATIT, 2002, p.21).
Você faz parte desse caminho
Que hoje eu sigo em paz Pela igurativização captamos a voz que fala no interior da voz
Pai, paz (FÁBIO Jr., 2008) que canta. Pela igurativização, ainda, o cancionista projeta-se na

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obra, vinculando o conteúdo do texto ao momento entoativo de muito mais as variações – e mesmo os contrastes – de
sua execução. Aqui, imperam as leis de articulação linguística, de dinâmica. Desta forma, portanto, busca-se que o ouvinte
modo que compreendemos o que é dito pelos mesmos recursos
utilizados no colóquio. (TATIT, 2002, p.21) se emocione com a canção.

No entanto, em Papai me empresta o carro (CARVALHO; Por sua vez, é em Já fui (LIMA; CÍCERO, 2008) que se
LEE, 2008) e Pai (FÁBIO Jr., 2008), que são musicalmente encontram menos presentes os recursos de concentra-
contrastantes, esse processo de igurativização se articu- ção temática ou de expansão passional dos contornos:
la a outros recursos musicais de estabilidade melódica7. há pouca reiteração ou sustentação vocálica. É apre-
Na primeira, predomina a tematização e, em Pai, o pro- sentada “a voz do enunciador dizendo algo considerado
cesso de passionalização. oportuno” (TATIT, 2004, p.77), no caso a ilha falando
diretamente com os pais em tom de despedida e, em
O instrumental característico do rock, o caráter rít- certa medida, de desaio. O canto é lento e pausado, e
mico da canção e a interpretação animada e enérgica embora em alguns momentos se mostre mais expressi-
de Rita Lee evidenciam a prevalência da tematização vo, não chega a construir uma continuidade melódica
em Papai me empresta o carro (CARVALHO; LEE, 2008), que progressivamente leve a um crescendo de expressão
processo que sustenta as “canções aceleradas, centra- emotiva, como acontece em Pai. O acompanhamento
lizadas no refrão e repletas de recorrências melódicas”, instrumental comedido, que não chega a criar uma base
que estimulam o movimento corporal e a dança (TATIT, rítmica capaz de estimular corporalmente, deixa a voz
2004, p.62-63). constantemente em primeiro plano para apresentar o
que tem a dizer. É apenas na ausência da fala que os
A forma acelerada de estabilização melódica privilegia os acentos encadeamentos rítmicos e harmônicos dos instrumentos
e, portanto, as vogais salientes e breves, entre as quais percutem ganham importância e se expandem – entre as partes
intensamente as consoantes. Essas características favorecem a da letra e especialmente ao inal, quando se combinam
constituição de células rítmicas bem deinidas que vão se agru-
pando num processo denominado tematização. (TATIT, 2004, p.43 com a voz (já sem texto) que explora, inclusive expres-
– grifo do original) sivamente, vocalizes e a interjeição tchau (cuja função
entoativa veremos a seguir).
Já a passionalização se caracteriza como a forma desace-
lerada de estabilização, que valoriza o percurso melódico Nesta canção (LIMA; CÍCERO, 2008), portanto, a igura-
em seus desdobramentos progressivos. tivização é o processo predominante, atuando na criação
de uma cena enunciativa que se apresenta, aqui e agora,
A dominância da passionalização desvia a tensão para o nível como viável. Neste processo, além da função dos vocati-
psíquico. A ampliação da frequência e da duração valoriza a so- vos “cara” e “coroa” (acima mencionada), cabe destacar
noridade das vogais, tornando a melodia mais lenta e contínua.
A tensão de emissão mais aguda e prolongada das notas convida o papel da interjeição “tchau” – cuja importância para
o ouvinte para uma inação. Sugere, antes, uma vivência intros- marcar o momento em que a ilha deixa o lar já foi dis-
pectiva de seu estado. Daqui nasce a paixão que, em geral, já cutida na seção anterior. Aqui, convém ressaltar que a in-
vem relatada na narrativa do texto. Por isso, a passionalização terjeição constitui um verdadeiro nó “de entrelaçamento
melódica é um campo sonoro propício às tensões ocasionadas
pela desunião amorosa ou pelo sentimento de falta de um objeto do texto com a melodia”, pois esse som vocal “não é nem
de desejo. (TATIT, 2002, p.23) bem um texto nem bem uma melodia. É uma unidade
entoativa por excelência, com valor, ao mesmo tempo,
Embora não se reira ao amor sensual, a canção Pai (FÁ- musical e linguístico” (TATIT, 1986, p.23).
BIO Jr., 2008) é marcada pelo alto envolvimento emo-
cional na relação com o pai. Como analisamos na seção Retomando, agora, a citação de TATIT (2004, p.232) apre-
anterior, com base na letra, o enunciador é um ilho já sentada no início do texto, podemos constatar que as três
adulto que, depois de ter se distanciado física e/ou emo- canções analisadas exempliicam o revezamento, presen-
cionalmente de seu pai – um estado disjuntivo, portanto, te na história da canção popular, de modos de dizer – en-
nos termos de TATIT (1986, p.26-27) –, busca os meios de volvendo sempre melodia e letra e os diferentes modos de
reconstruir os vínculos afetivos, ou seja, busca um novo tratar a relação entre elas – que serve justamente para
“estado de conjunção”, que permita recobrar o equilíbrio. contemplar os conteúdos psicoculturais relativos às rela-
O processo de passionalização também se evidencia pela ções afetivas e familiares.
emotividade da interpretação vocal de Fábio Jr.– própria
de um “cantor romântico” –, articulada a um acompanha- Se as diferentes dicções que formam o universo mu-
mento instrumental que progressivamente se enriquece sical da nossa sociedade dizem respeito aos modos de
e se torna mais denso, mas sempre deixando a voz em compor e de cantar, é interessante notar que as grava-
primeiro plano. Desta forma, constrói-se gradativamente ções das canções selecionadas são realizadas por seus
um clímax sonoro, através do crescendo em intensidade, compositores (pelo menos um deles). TATIT (2002, p.13)
densidade e expressividade emotiva. Ressalte-se, inclusi- apresenta o fato de os compositores se tornarem natu-
ve, que a intensidade constitui “um parâmetro de dosa- ralmente cantores – “Ainal, a voz que fala é a voz que
gem do afeto investido”, como diz TATIT (2002, p.15). Em canta” – como um elemento que reforça sua concepção
comparação com o rock de Rita Lee, esta canção explora de que a canção popular tem sua origem na fala. No

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caso em estudo, isto permite pressupor que as realiza- Como destruidores construtivos da unidade mãe-ilho. Como fo-
ções especíicas analisadas – o arranjo e a gravação – mentadores da autonomia e da individuação. Como modelos de
masculinidade para os ilhos. Como conirmação da feminilidade
são suicientemente iéis à composição. para as ilhas. E como a igura outra-que-não-a-mãe que fornece
uma segunda fonte de amor constante. [...] E quando não temos
“Arranjos e gravações trabalhadas podem não só intensiicar a com- pai, sentimos sua falta. (VIORST, 1999, p.77)
patibilidade entre os componentes [letra e melodia] como também
podem criar outros graus de adequação e outros espaços de com-
patibilidade”. [...] Cabe apenas a constatação de que os trabalhos Contemplando conteúdos psicoculturais ainda presentes
de arranjo e gravação mais bem sucedidos, em nível de eicácia da – por serem, até certo ponto, questões existenciais – tais
comunicação, têm sido aqueles que aproveitam a compatibilidade já canções podem permanecer, sendo retomadas e manten-
existente [na composição] entre o texto e a melodia e a valorizam,
aumentando a cumplicidade com o ouvinte. (TATIT, 1986, p.63) do-se signiicativas. Deixam, assim, o seu recado.

Entretanto, “utilizar cada composição para deixar um


6. Considerações inais recado de ordem existencial, conceitual, comportamen-
As três canções analisadas, que trazem uma fala ilial di- tal, enim, essencial, representa um outro modo de en-
rigida ao pai como interlocutor, integrantes de um CD carar a melodia e, consequentemente, de se relacionar
temático datado de 2008 – que exempliica a estraté- com a letra” (TATIT, 2004, p.230). Nesse outro modo,
gia mercadológica de investir também na permanência sem estar mais preso aos gêneros rítmicos predeinidos,
–, tiveram gravações originais há mais de 20 anos. No “em vez de produzir um samba, um blues, um baião ou
entanto, mostram-se ainda representativas das relações um rock, o compositor propunha diretamente um modo
entre ilhos(as) e pais, relações inter-geracionais que se de dizer melódico que só mantinha compromisso com a
desenvolvem no interior da família, com grande peso própria letra” (TATIT, 2004, p.229).
emocional. Como aponta GIDDENS (2005, p.170), apesar
da enorme variação de relacionamentos sociais e sexu- Assim, ao mesmo tempo em que, nas cenas que constro-
ais nas sociedades ocidentais contemporâneas, a família em, as três canções analisadas dão recados aos pais (dos
continua sendo uma instituição irmemente estabelecida, enunciadores), para nós elas deixam recados que rele-
ainda que submetida a grandes tensões. Pois as crianças tem as mudanças nas relações familiares e nos compor-
das gerações mais novas sempre precisarão ser cuidadas, tamentos em nossa sociedade. Por outro lado, também
e, do ponto de vista psicológico, os pais homens têm um exempliicam distintos modos de cantar, de compor e de
papel especíico e importante a desempenhar no desen- tratar a relação entre melodia e letra – ou seja, expressam
volvimento da criança – e, por extensão, da pessoa: diferentes dicções presentes na canção popular brasileira.

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FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de Janeiro: Som Livre, 2008. CD.
LIMA, Marina; CÍCERO, Antônio. Já fui (intérprete: Marina Lima) In: FAOUR, Rodrigo (Org.). Como nossos pais. Rio de
Janeiro: Som Livre, 2008. CD. faixa 7.

Notas
Este texto apresenta uma versão revista e ampliada de PENNA (2009). Agradecemos à Profa. Eurides Santos e aos Profs. Carlos Sandroni e Luis
Ricardo Silva Queiroz pela sua leitura crítica e valiosas contribuições para o processo de reelaboração.
1 “O próprio registro autoral de uma composição incide sobre os versos e o contorno melódico emitidos pela voz do cantor.” (TATIT, 1986, p.1)
2 Conforme biograia de Rodrigo Faour, disponível em: http://rodrigofaour.com.br/quem-e-rodrigo-faour. Acesso em: 13 set. 2009.
3 Conforme informações disponíveis em: http://rodrigofaour.com.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. 2009.
4 Disponível em: http://rodrigofaour.com.br/cats/discos/coletaneas Acesso em: 13 set. 2009.
5 De acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
6 Conforme informações disponíveis em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Com_Licença,_Eu_Vou_à_Luta Acesso em: 13 set. 2009.
7 Como mostra TATIT (1986, p.60), há os protótipos de canções que exploram predominantemente cada um dos processos: igurativização, temati-
zação e passionalização (ver tb. TATIT, 2002, p.26 – sobre a arquicanção como canção-modelo). No entanto, usualmente, cada canção faz uso dos
três processos, sendo por vezes difícil identiicar qual deles é predominante.

Maura Penna é Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco, Mestre em Ciências Sociais pela Uni-
versidade Federal da Paraíba, Graduada em Música (licenciatura e bacharelado) e Educação Artística pela Universidade
de Brasília. Atualmente é Professora Adjunto I do Departamento de Educação Musical da Universidade Federal da Para-
íba. Tem experiência na área de Música, Arte e Educação, Estudos Culturais, com ênfase em Educação Musical, atuando
principalmente nos seguintes temas: educação musical, política educacional para arte e música, prática pedagógica em
música, pesquisa em educação, além de manifestações culturais e artísticas na contemporaneidade – especialmente mú-
sica popular e midiática. É autora de Música(s) e seu ensino (Sulina, 2008), entre outras obras já esgotadas, e de inúmeros
artigos publicados em coletâneas, periódicos cientíicos e anais de congressos.

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SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.

Corporalidade musical na música popular:


uma visão da performance violonística de
Baden Powell e Egberto Gismonti

Jorge Luiz Schroeder (Unicamp, Campinas)


schroder@unicamp.br

Resumo: Recorte da tese de doutorado (SCHROEDER, 2006) em que proponho o conceito de corporalidade musical para
poder explicar as performances de cinco músicos populares. Através da investigação das relações que dois deles (Baden
Powell e Egberto Gismonti) constroem com seus instrumentos (violão popular) e linguagens (música popular instrumen-
tal), pretende-se enfatizar a performance como um jogo de tensões entre as possibilidades particulares dos músicos
(tanto de realização quanto de entendimento musical) e as linguagens, gêneros e instrumentos musicais escolhidos por
eles para expressão. Estes instrumentos são marcados por regras oriundas de um processo histórico e coletivo que não se
realiza num só indivíduo, e os músicos, marcados por possibilidades e diiculdades que não permitem a realização plena
de uma exigência coletiva. Deste jogo complexo nasce a música.
Palavras-chave: corporalidade musical; performance musical; música popular; Baden Powell; Egberto Gismonti.

Musical corporality in popular music: a view of Baden Powell e Egberto Gismonti´s performances
on the guitar

Abstract: Study based on the doctoral dissertation (SCHROEDER, 2006) in which I propose the concept of musical
corporality to be able to explain the performances of ive Brazilian popular musicians. Through the investigation of the
relations that two of these musicians (Baden Powell e Egberto Gismonti) construct with their instruments (the popular
acoustic guitar) and languages (instrumental popular music), we intend to emphasize the performance as a game of ten-
sions between the particular possibilities of the musicians (for the realization as well as for the musical understanding)
and the languages, genres and musical instruments chosen by them for expression. These instruments are marked by
rules derived from a historical and collective process that does not happen in one single individual. On the other hand,
the musicians are marked by possibilities and dificulties that do not allow the full realization of collective requirements.
Music is born from this complex game.
Keywords: musical corporality; music performance; popular music; Baden Powell; Egberto Gismonti.

1 - Palavras iniciais
Este artigo é um recorte da minha tese de doutorado noções e conceitos, importantes com referência ao corpo
(SCHROEDER, 2006), onde tentei esboçar um conceito, o e à oralidade surgidos em outras áreas do conhecimento,
de corporalidade musical, tendo como base a análise da para o mundo da música. Uma espécie de tradução.
obra fonográica de cinco violonistas populares (Baden
Powell, Egberto Gismonti, Ulisses Rocha, André Geraissati Tentando, portanto, tornar minhas considerações mais
e Michael Hedges). Hoje considero mais prudente deno- aprofundadas, poderia começar dizendo que a corpora-
minar a corporalidade musical de noção. Ainda que aos lidade musical é fruto de um trabalho interdisciplinar.
poucos uma trilha para o status de conceito possa ir se Por muitos anos minha atividade musical se deu na área
formando, conforme eu puder deixar mais precisos seus da dança. Tocando em aulas de técnicas de dança di-
contornos com artigos e pesquisas posteriores, talvez a versas, compondo peças para coreograias, ministrando
noção de corporalidade musical seja por enquanto apenas aulas de música para bailarinos, foi inevitável que a pre-
o resultado de um esforço de adequação de outras várias ocupação com o corpo e com as formas de concebê-lo

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 06/10/2009 - Aprovado em: 20/02/2010
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SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.

contagiasse minhas inquietações como músico. Na área O fato de “descobrir” o corpo, ou melhor ainda, as preo-
da dança se fala muito sobre o corpo, e por vários vie- cupações com o corpo por inluência direta do trabalho
ses, como os da anatomoisiologia, das terapias corporais, com a dança, contudo não me deixava à vontade. Por
da educação somática, das teorias sobre o movimento, e um lado, sentia o entusiasmo da novidade de poder fa-
das próprias técnicas de dança (balé clássico, dança con- lar do corpo como algo de fundamental importância na
temporânea, dança moderna, danças do Brasil, danças do realização musical, em todos os sentidos. Por outro lado,
oriente etc.). Mergulhado nesse universo seria difícil icar percebia o distanciamento da pessoa que dança ou toca
imune à inluência de destacar o corpo como produtor de que essa visão de corpo-instrumento parecia trazer. Se
danças e, mais difícil para mim, mergulhado nesse am- para a música o corpo era considerado apenas no seu
biente, não acabar por considerar o corpo como produtor aspecto funcional, então emprestar a visão mais apro-
efetivo e fundamental de músicas. fundada do corpo provinda da dança, mas que a meu ver
pertencia a um mesmo ideário “maquinal”, talvez não
Dito dessa maneira parece óbvio que o corpo possa assu- ajudasse muito a mudança de cenário. Suspeitava do
mir a responsabilidade da realização de músicas, criando perigo de estar deslocando um equívoco surgido numa
ou executando. Mas as consequências dessa aparente- área para um outro local.
mente simples mudança de eixo podem ser avassaladoras,
do ponto de vista das concepções tradicionais da música. Este conlito se tornou crônico no processo de investiga-
Trazer o corpo, na sua totalidade, para dentro das discus- ção da tese, fazendo-me oscilar entre o total encanta-
sões musicais, ou mais, para o centro dessas questões, mento com relação à importância do corpo na música e a
requer um esforço de relexão considerável, já que em enorme frustração de ter que tomar o corpo na sua acep-
grande parte dos casos, o corpo do músico é tomado ape- ção maquinal. Destituído de suas principais prerrogativas,
nas como meio necessário para a concretização de ideias quais sejam, aquelas que o tornam único e reconhecível
musicais. Aliás, atualmente com o desenvolvimento dos na sua expressão, o corpo concebido como instrumento
recursos digitais, outros meios para essa concretização aparece limpo daquele grupo de qualidades e característi-
vão sendo instituídos a partir da diluição da interferência cas que o complexiicam e o tornam ambíguo como texto
mais direta do corpo. Já é possível, por exemplo, compor (e também na sua expressão). Se isto facilita o trabalho
e executar músicas digitalmente sem que se saiba tocar de formação tradicional de dançarinos e músicos, redu-
algum instrumento. Portanto, considero a discussão sobre zindo bastante a quantidade de estratégias (ou ferramen-
o lugar que o corpo ocupa nos campos de relexão da mú- tas) necessárias para a “construção” ou “moldagem” dos
sica não apenas necessária mas, acima de tudo, urgente. alunos, conforme parâmetros previamente estabelecidos
e processos de formação rigidamente sistematizados; por
Contudo, algo me incomodava no modo como os bailarinos outro lado diiculta o diagnóstico e a solução dos impas-
se referiam ao corpo. Como se fosse um instrumento. As ses a que este processo abstrato chegou nos dias atuais.
comparações entre a manutenção dos instrumentos mu- Principalmente na formação de novos artistas.
sicais (ainação, regulagem, limpeza etc.) e a manutenção
do instrumento-corpo para a dança eram fácil e frequen- Ainda que o corpo seja socialmente constituído, tanto
temente evocadas. O incômodo começou cedo. Isto porque nas expressões quanto nas dissimulações ou contenções,
eu compreendia a distinção entre meu corpo, por exemplo, essa constituição coletiva permite e deseja que ele seja
e a materialidade de meu instrumento (o violão), mas não também individualidade. Permite e deseja a atualização
entendia como era possível fazer uma dissociação seme- do coletivo, que pode vir das opções pessoais. Permite
lhante entre a pessoa que dança e seu corpo. “Mas é ela e deseja a distinção, sem as quais grande parte o jogo
mesmo quem dança!”, pensava, “então como é que a pes- social atual se dissolve. Portanto, como vim compreender
soa consegue pensar-se de fora, como que manipulando depois, meu incômodo apontava para a existência de um
um mecanismo que é o seu próprio corpo?” processo de homogeneização na formação dos dançari-
nos e músicos que, paradoxalmente, se alinhava (à sua
Ao tentar transferir o que ouvia sobre o corpo na dança maneira) à tão criticada “massiicação” produzida pela
para a música, com vontade de desenlear os nós que indústria da cultura. E essa homogeneização parecia pro-
surgiam entre as duas artes no meu trabalho diário, vir, por mais absurdo que pareça, de uma facção da “alta
confrontava a conveniência de poder-se distinguir o cultura” da dança, que eu identiicava mais facilmente
corpo “dançante” ou “tocante” da própria pessoa que talvez por não ser minha área de formação artística. En-
dança ou toca. Desse modo, pessoa de um lado e corpo tretanto, fazia pensar nesse processo igualmente instala-
do outro, parece mais fácil enaltecer o trabalho técni- do na “alta cultura” musical, quando concebe o intérprete
co, e por isso abstrato e padronizado, da preparação do instrumentista como um meio de transmissão das ideias
corpo. A metáfora da máquina se encaixa perfeitamente dos compositores para o público, e apenas isto.
nesse modo técnico de pensamento e preparação dos
artistas (“você ainda não está pronto”). Mas nutria dú- Ao contrário da anulação da pessoa em favor do corpo,
vidas fortes quanto à qualidade “maquínica” que, deste pensava na possibilidade da inserção do corpo em favor
modo, devia se exigir dos bailarinos e, por consequência da pessoa, do músico neste caso. Por isso tentei inverter a
direta, também dos músicos. equação erigida pela dança (o corpo como instrumento)

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e pensar o instrumento musical como parte do corpo. As foram essas pequenas pistas que acabei por perseguir du-
diiculdades foram grandes, mas considero os resultados, rante o trabalho de pesquisa.
ainda que incipientes, bastante promissores.
Em primeiro lugar, estabeleci uma ênfase maior na me-
2 - Realinhamento teórico metodológico todologia empírica, na observação mais cuidadosa e
Para que isto pudesse acontecer foi necessário um gran- extensiva dos músicos em ação, na pronúncia de seus
de desvio teórico, no sentido da alteração radical da respectivos discursos. Os dados obtidos através dessas
fundamentação epistemológica e do procedimento me- observações empíricas e analisados a partir de outras
todológico da pesquisa; processo que se tornou difícil, fontes teóricas permitiram comparações com outras aná-
confuso e complexo. Tive que deixar de lado tudo aquilo lises feitas sobre as mesmas peças ou músicos por analis-
que estava mais à mão no que diz respeito à bibliogra- tas de outras vertentes teóricas.
ia, por exemplo. Textos sedutores como os processos de
associação entre o desenvolvimento de técnicas instru- Em segundo, deixei de lado as teorias do corpo, mais pro-
mentais e programas de conscientização corporal (como pícias às inluências biológicas, e passei para as teorias da
o caso do método do professor de violão Enrique PINTO, ação centradas na cultura, no que diz respeito aos mú-
2001; ou o de piano de José Alberto KAPLAN, 1987); ou sicos, e para as teorias do discurso e da enunciação, no
as associações entre ensino de instrumento e aborda- que diz respeito às músicas. Nessa dimensão foi possível
gens psicosomáticas (como o caso dos textos de Violeta estabelecer um local de observação que permitiu o livre
GAINZA, 1988; ou mesmo as relexões psicoisiológicas trânsito entre níveis distintos de análise musical e con-
musicais de Edgar WILLEMS,1969) visando a reorgani- textual. Foi possível, por exemplo, criar um elo entre as
zação postural, o redirecionamento nos caminhos do informações harmônicas e melódicas das peças analisa-
movimento, a reestruturação do pensamento técni- das e os modos particulares dos músicos pronunciarem os
co com base na consciência articular, na economia de discursos (sotaques, dicções). Foi possível também esta-
energia ou no domínio do peso, todos eles tiveram que belecer paralelos entre escolhas sonoras e rítmicas, e cer-
ser evitados. Não por falta de valor ou utilidade naquilo tas atitudes de renovação, atualização, desconstrução ou
a que se propõem, mas pelo fato de se enfraquecerem manutenção de certos padrões de discurso (que podemos
quando utilizados numa dimensão investigativa para as também chamar de gêneros de discurso), ajudando a si-
quais não foram construídos. tuar mais claramente a posição de cada músico analisado
dentro de um cenário musical maior. No caso particular
Aos poucos me desestimulei a buscar nos métodos de da minha análise, este cenário maior foi o campo da mú-
ensino de instrumento as chaves para uma concepção sica popular instrumental.
menos mecanicista e psicossomática do corpo. Embora a
Educação Musical tenha se debruçado com mais demora Em terceiro, foi possível superar algumas falsas dicoto-
nas questões sobre o corpo, temia que os empréstimos mias presentes no ideário musical, que aloja convenien-
teóricos das ciências biológicas ou médicas, que cons- temente em pólos opostos e conlitantes o individual e
tatava realizarem-se nesta área, acabassem por trazer a o coletivo, o singular e o plural, o inteligível e o sensível,
reboque as preocupações e objetivos taxionômicos, ex- a vontade e a possibilidade, a ideia e a realização. Por
plicativos e terapêuticos das suas áreas de origem, rene- meio da mudança epistemológica foi plenamente possí-
gando a um segundo plano (por vezes até abandonando) vel considerar esses elementos todos como constituin-
questões de maior interesse especiicamente musicais tes igualmente fundamentais das realizações musicais.
(como, por exemplo, os processos criativos ou a dimensão Em outras palavras, foi possível enxergar que o indiví-
discursiva da música). duo não se constitui fora de uma coletividade, e que o
coletivo não anula o indivíduo; que a obra musical é
Para esta investigação interessava menos observar quais singular e ao mesmo tempo faz parte de um gênero de
processos corporais os músicos utilizavam para solucionar discurso determinado, que possui padrões de procedi-
seus problemas de postura, condicionamento, resistência, mento, valores e desenvolve percepções e sensibilidades
longevidade técnica, evitando ou até mesmo curando le- especíicas, compartilhadas; que tanto a razão quanto
sões mais sérias. Importava saber quais os fatores que os a sensibilidade são resultado de construções culturais;
levavam a fazer certas escolhas musicais e não outras; os que a vontade de tocar se ajusta às possibilidades de to-
motivos pelos quais certas opções, dentre as muitas pos- car, incorpora as diiculdades e através delas é desenvol-
síveis, eram usadas enquanto outras eram descartadas. vida; e, inalmente, que a ideia musical se dá no mesmo
Desconiava que as escolhas de linguagens musicais a se- movimento, ou impulso, com a qual vai sendo realizada
rem utilizadas, de propostas estéticas a serem oferecidas, em sua concretude, e não há primazia ou hierarquia ixa
de sonoridades a serem desenvolvidas, até mesmo de so- entre essas duas dimensões da realização musical (entre
luções técnicas a serem implementadas, não provinham o pensar e o fazer).
apenas das vontades pessoais ou das ideias musicais de
cada músico. Alguns outros fatores, condicionantes das Com este material teórico-metodológico nas mãos foi pos-
realizações musicais, permaneciam ocultos, não explica- sível, então, partir para a análise do material fonográico
dos. Contudo davam indícios de existirem. E penso que dos cinco músicos, violonistas populares, que escolhi, ten-

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do como principal motivo o modo explícito como, dentro de falsa dicotomia entre individualidade (o gênio) e coleti-
um mesmo gênero de discurso musical, cada um deles se vidade (o gênero), reformulando a ideia de genialidade
portava de modo único, pessoal, idiossincrático, frente a um em função de um controle de uma linguagem musical
mesmo grupo de exigências musicais, presentes numa mes- especíica, dentro da qual, e somente ali, a genialidade
ma linguagem musical que todos igualmente partilhavam. faz sentido e é reconhecida como tal.

Por questão de espaço, resolvi, para este artigo, concen- A partir desses conceitos foi possível erigir um alicerce so-
trar-me apenas em dois dos cinco músicos analisados: bre o qual as especiicidades musicais puderam ser devi-
Baden Powell e Egberto Gismonti. Existem algumas razões damente colocadas. Entretanto, atualmente alguns outros
para esta escolha. Deixando de lado o fato dos dois mú- autores puderam se juntar a esses três primeiros, oferecen-
sicos terem carreiras consolidadas no mundo da música do a oportunidade de lapidar um pouco melhor a noção da
popular brasileira (tanto instrumental quanto cancionista, corporalidade. Um deles foi Paul Zumthor, quando discute
visto que ambos compuseram indiscriminadamente pe- a oralidade; mais especiicamente a vocalidade. Este tema
ças instrumentais e canções) e serem reconhecidos como já havia sido abordado na tese por meio de Michel De Cer-
marcos importantes na consolidação da legitimidade da teau, contudo de modo não convenientemente aprofun-
música brasileira internacionalmente, acho muito impor- dado. Encontrei uma identiicação quase imediata entre a
tante o fato de que ambos se conheciam pessoalmente vocalidade e a corporalidade no que diz respeito à forma
e conheciam um a obra do outro. Egberto não esconde a única, viva e circunstanciada (ou contextualizada) da pro-
grande admiração que tem por Baden e tampouco a inlu- núncia (da fala ou do canto, no caso de Zumthor e da per-
ência que dele recebeu como músico, compositor e vio- formance instrumental, no meu caso). Esse momento con-
lonista. Essa identiicação musical e afetiva entre os dois creto da realização é igualmente enfatizado por Zumthor
músicos propicia uma análise comparada entre suas obras, pela presença imprescindível do corpo. Ao localizar a voz
de modo a favorecer um esclarecedor cotejamento ponto “entre o corpo e a palavra” (2007, p.85), abre o precedente
a ponto que, para a dimensão deste artigo, permite a in- para que eu possa localizar a corporalidade entre o corpo
clusão de maior quantidade de informações ao se comen- e a música. Então a corporalidade, de uma certa maneira,
tar de uma só vez os aspectos concernentes às duas obras. deixa de coincidir com o corpo e passa a ser manifestação
Outra razão é o fato da obra fonográica dos dois músicos do corpo concretizada em som, em música. Dessa forma,
ser de mais fácil acesso do que dos outros três analisados. muito embora o instrumento tocado não seja a voz pro-
Isto permite a complementação que o leitor pode fazer priamente dita (emanação direta do corpo, como airma
das minhas análises, ouvindo as peças sugeridas. ZUMTHOR, 2007, p.27), ele adquire propriedades “corpo-
rais”, se integra de tal forma ao corpo (torna-se parte dele,
3 - Sobre as contribuições teóricas altera suas dimensões MERLEAU-PONTY, 1999, p.198-199)
Antes de entrar nas análises dos músicos, gostaria de fa- que torna perfeitamente utilizável no contexto instrumen-
zer um pequeno parêntese apenas para situar algumas tal a airmação do autor: “dizendo qualquer coisa, a voz se
contribuições que considero fundamentais para a elabo- diz” (ZUMTHOR, 2007, p.86). Para nós, se torna: “tocando
ração da ideia de corporalidade musical. qualquer música a corporalidade se diz”. Ou seja, o músico
se mostra ao mostrar sua música.
Durante o processo de investigação da tese foram três
os autores que se sobressaíram como fornecedores de A transubstanciação dessa exposição própria do músico
pistas para a construção da corporalidade. Maurice em linguagem musical permite a apreensão, porque for-
Merleau-Ponty, com sua ideia de corpo próprio, me aju- nece indícios fortes da sua presença, dessa corporalidade.
dou na inversão dos termos da equação (instrumento Mesmo na forma de gravação, em fonogramas, sem a pre-
como parte do corpo ao invés de corpo como instru- sença visual do corpo. É fato que, tanto quanto na leitura
mento). Neste caso especíico a ordem dos fatores altera de um texto escrito, a escuta de um fonograma exige com-
radicalmente o produto. Pierre Bourdieu cujas noções plementação de seu ouvinte. Tanto quanto a revitalização
de habitus e campo de atividade social foram cruciais da entonação necessária para a leitura de um texto, para
para entender os limites dentro dos quais os músicos a compreensão de uma fala congelada no papel, uma re-
escolhidos se movimentavam (no caso, a música popu- vitalização da imagem gestual do músico tocando talvez
lar instrumental) e a importância de suas respectivas seja necessária para a “leitura” da corporalidade. E é aí que
contribuições para a instituição, ampliação e renovação entra, tanto num caso quanto no outro, o conhecimento
desse campo musical. Mikhail Bakhtin, que inicialmen- da língua e a familiaridade com o gênero de discurso uti-
te contribuiu com o conceito de carnavalização, per- lizado, para que essa complementação (a aproximação da
mitindo perceber certa nuance nos comportamentos performance viva que originou o texto) possa acontecer.
musicais, principalmente desses dois músicos que irei Então eu beneiciei-me do fato de tocar violão, ao inves-
apresentar em seguida, que atestam, de um (Baden), sua tigar violonistas. Violão popular, em primeiro lugar; em
reverência irreverente e, do outro (Egberto), sua rebel- segundo, o fato de já ter visto esses violonistas tocando
dia disciplinada, em relação à uma tradição consagrada. (Egberto ao vivo, Baden por meio de imagens de vídeo). Em
Mas também com as ideias de gênero de discurso e esti- terceiro, através do esforço de tentar executar algumas de
lo, que conirmaram, por um outro viés, a dissolução da suas músicas. Estas foram as estratégias que utilizei para

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tentar recompor, o mais ielmente possível, alguns traços pai, logo, porém, passou a ter aulas com um “verdadei-
marcantes das suas respectivas corporalidades. Traços, ro professor de violão” (segundo a expressão usada por
evidentemente, eleitos (certamente construídos), mas que Baden no DVD Velho amigo), James Florence, conhecido
não invalidam minhas análises. como Meira, amigo e companheiro de grupo musical do
pai de Baden. Completou seus estudos na Escola Nacional
Outro autor, podemos dizer tardio, que veio a contribuir de Música do Rio de Janeiro, estudando arranjo, harmo-
com minha investigação foi Davi Le Breton. Com sua socio- nia, contraponto, orquestração e composição. Tendo um
logia do corpo (2006) e antropologia das emoções (2009), desenvolvimento e envolvimento bastante rápido com a
forneceu argumentos poderosos no que diz respeito à am- música e com o violão, logo se tornou proissional, a partir
biguidade e complexidade das expressões (e porque não dos 15 anos. Como violonista proissional, acompanhou
dizer também das emanações) através do corpo. várias cantoras e cantores famosos na Rádio Nacional,
em excursões pelo país, e em casas noturnas e boates,
A sociologia, cujas pesquisas têm no corpo seu io condutor, não constituindo gradualmente uma carreira promissora que
deve nunca esquecer da ambiguidade e da efemeridade de seu ob- se solidiicou principalmente na década de 1950, quando
jeto, a qualidade que possui de incentivar questionamentos muito iniciou parcerias com grandes nomes da música popular,
mais que de constituir fontes de certezas (BRETON, 2006, p.33). como Billy Blanco, Vinícius de Morais, Paulo César Pinhei-
ro, entre outros. A partir daí, formou-se como um dos
Concebendo as expressões do corpo como construções so- grandes nomes do violão no Brasil, tendo extrapolado sua
cioculturais, apreendidas através de modos especíicos de fama até a Europa, principalmente França e Alemanha,
mediação comportamental; exercidas através de modelos países onde viveu por muitos anos. Morreu em setembro
gestuais limiares entre “mostrar” e “esconder”; essas ex- de 2000 deixando vasta obra fonográica atualmente dis-
pressões constituem um sistema simbólico complexo, ins- ponível em discos LP e CDs.
tável, por onde circulam mais ou menos livremente inúme-
ros componentes tanto condicionantes quanto libertários, Baden se orgulhava de dizer que estudou todo o mé-
contudo signiicantes para quem as exercita, utiliza, reco- todo de violão de Tárrega (Francisco de Asís Tarrega
nhece, vive. Nesta dimensão procurei localizar a corporali- Eixea, 1852-1909, violonista e compositor espanhol)
dade musical. Daí a diiculdade em delineá-la claramente, ainda menino, como consta em seu depoimento no
de constituí-la em conceito, de abstrair ou generalizar seu DVD Velho amigo. Por ser menino humilde de cidade
alcance. Contudo ela se mostrou válida neste cenário de- pequena, o fato de dominar rapidamente as habili-
senhado para sua elaboração: a performance violonística dades necessárias ao bom desempenho do violonista
de músicos populares, dentro do gênero da música popu- clássico certamente despertou seu interesse em face a
lar instrumental. Neste pequeno âmbito, a contribuição da aprovação quase unânime de todos que o ouviam tocar
corporalidade parece permitir algumas inferências difíceis (DREYFUS, 1999). Acompanhando o pai nas “noitadas”
de conseguir através das análises exclusivamente musi- de festas e serestas, manteve contato com músicos
cais, ou eminentemente corporais (no sentido biológico do importantes e já amplamente considerados dentro da
termo). Espero que o próprio leitor possa corroborar essa música popular, como Pixinguinha, Jacó do Bandolin,
airmação com as análises que farei a seguir. Dino 7 Cordas, entre outros.

4 - Carnavalização Ainda que não seja minha intenção detalhar sua biogra-
Como já mencionei acima, a perspectiva da corporalidade ia aqui, podemos inferir, em outras palavras, que Ba-
musical, do modo como a concebo, cria algumas oportu- den se formou como músico a partir de um mergulho no
nidades não só de descrição e explicitação de caracterís- encontro das águas de duas tradições fortes do violão:
ticas discursivas presentes nas performances mas, tam- a erudita e a popular brasileira. Inluências de Tárrega,
bém, de comparação entre performances, que considero Fernando Sor e Andrés Sergovia, por um lado, Dilermano
proveitoso para o caso dos nossos dois músicos. Aspectos Reis e Garoto, por outro, foram sempre airmadas por
e atitudes peculiares numa certa dimensão podem se ele (DREYFUS, 1999, p.21). Portanto, é possível airmar
mostrar interligadas numa outra. Estilos e características que Baden se projetava a partir da apropriação de parâ-
apresentados como idiossincráticos podem ocultar pro- metros de qualidade (sonoridade, agilidade, inventivida-
cessos ou ideários com alto grau de proximidade. E este de) e valores artísticos provindos dessas duas vertentes
é o caso da carnavalização nos dois músicos. Ela aparece principais que, aliás, mantinham canais irmes e dinâmi-
em ambos, contudo de modo particular em cada um de- cos de trocas simbólicas.
les. Comecemos com Baden.
A partir dessa situação especíica, deste cenário musical
4.1 - Carnavalização em Baden por onde Baden circulava, é possível detectar em suas
Baden Powell de Aquino nasceu em Varre-Sai, pequeno performances um traço pessoal, bastante sutil mas muito
município próximo à cidade do Rio de Janeiro, no dia 6 presente, a qual dei o nome de carnavalização. O termo,
de agosto de 1937. Terceiro ilho de pai violinista ama- emprestado de BAKHTIN (2002) veio a calhar por conta
dor, cedo se interessou pela música. Tendo inicialmente de uma característica a ele atribuída pelo autor, a partir
aprendido alguns rudimentos do violão com o próprio de sua interpretação das festas populares da idade média.

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Essa visão, oposta a toda ideia de acabamento e perfeição, a toda Um dos traços mais aparentes onde é possível inferir
pretensão de imutabilidade e eternidade, necessitava manifestar- esta carnavalização anunciada é o andamento acelera-
se através de formas de expressão dinâmicas e mutáveis (protéi-
cas), lutuantes e ativas. Por isso todas as formas e símbolos da lin- do que Baden imprime à peça. É possível comparar essa
guagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância diferença de andamento com uma outra interpretação
e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades da mesma música no CD Baden Powell, uma coletânea
e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela da gravadora Movieplay (faixa 4), em que é mantido
lógica original das coisas “ao avesso”, “ao contrário”, das permu-
tações constantes do alto e do baixo (“a roda”), da face e do tra- um andamento mais próximo das versões cantadas,
seiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, mais lento e cadenciado. A aceleração proporciona uma
profanações, coroamentos e destronamentos bufões. A segunda forte instabilidade rítmica, perceptível tanto na difícil
vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa sincronia entre os instrumentistas quanto nas impre-
forma como paródia da vida ordinária, como um “mundo ao revés”
(BAKHTIN, 2002, p.9-10). cisões que acontecem nas transições entre as seções
da música. Pode parecer, numa primeira audição, que
Bakhtin se refere a um momento especíico, o das festas Baden decide bruscamente mudar de trecho e que seus
populares, onde a ordem do poder se altera, pelo me- acompanhantes, atentos e acostumados a esse tipo de
nos temporariamente. O grotesco se sobrepõe ao belo, o rompante do violonista, o seguem prontamente como
provisório ao perene, a instabilidade se instala e o torto que num impulso de reação imediata. Não parece ha-
supera o reto. As partes baixas, sujas, íntimas do corpo ver, nesta versão, uma preocupação muito grande com a
aparecem; a alma desce ao submundo do material e os obediência rígida da quadratura de frases da peça. Com
tronchos tornam-se reis. exceção da seção da melodia principal e do refrão, as
outras passagens intermediárias (pontes e improvisos)
Na obra de Baden esse momento não é instituído clara e parecem acontecer de uma forma mais livre, em que a
abertamente como nas festas as quais Bakhtin se refere. regularidade de ciclo harmônico e frasal dá lugar à in-
Baden defende a ordem, se alinha com a tradição, enal- tensidade e a efervescência do clima a ser atingido em
tece-a. Mas deixa que nas issuras do seu “bem tocar” se cada momento. Isto diiculta, por mais bem ensaiados
iniltrem pequenos jorros do grotesco, do incontido. O in- que possam estar os músicos, a execução mais preci-
controlado aparece em sua obra não como erro ou equí- sa das transições entre as partes, criando um provável
voco, mas como uma presença rarefeita, um murmúrio de clima de relativa insegurança (vencido pela atenção do-
resistência daquilo que é o avesso da perfeição, daquilo brada dos músicos acompanhantes), o que pode enfati-
que instiga a ordem, daquilo que balança o equilíbrio, zar ainda mais a sensação de urgência já estabelecida
sem chegar a desfazê-lo, mas usurpando-o de sua segu- pelo andamento rápido.
rança absoluta. Baden talvez seja aquele mal necessário
que ao desestabilizar uma lei, renova-a, atualiza-a, e am- Baden procede dessa maneira em muitas outras ocasiões2,
plia seu signiicado, invertendo sua direção ideológica a acelerando os andamentos, desestabilizando a métrica,
favor daqueles que ela supostamente prejudica. borrando a plasticidade das massas sonoras, as transições
entre seções das músicas, tudo isto parecendo desaiar os
Como isto acontece? Quais seriam os prováveis indicado- músicos que o acompanham e a sua própria habilidade no
res dessa atitude carnavalesca? Um bom exemplo, para instrumento. Esse excesso, a meu ver, faz eco com as con-
começar, é a interpretação que Baden faz da música Be- siderações de Bakhtin. Baden, ainda que numa situação
rimbau, uma de suas composições mais conhecidas, no diferente daquela desenhada por Bakhtin sobre a Idade
CD Ao vivo no teatro Santa Rosa (faixa 5). Embora te- Média, utiliza desse processo de deformação da regula-
nha recebido letra de Vinícius de Morais, nesta versão ridade das músicas para “sujar” a limpeza exigida pelas
ela aparece em seu estado instrumental. Baden inicia a regras oiciais de execução, às quais ele, apesar de tudo,
performance da peça com uma introdução solística (so- parece querer continuar atrelado. A sonoridade de seu
zinho), os outros instrumentistas (piano, baixo acústico violão, na aceleração desmedida do andamento, ica dis-
e bateria) vão entrando gradativamente até que a seção torcida pela inclusão inevitável dos ruídos de raspagem
introdutória se torna uma espécie de improvisação rítmi- das unhas nas cordas e na madeira do violão, indo mui-
ca coletiva sobre o tema principal da música (que na ver- to além do limite de sonoridade consensualmente aceita
são cantada recebe a palavra “berimbau”). Depois disso para o instrumento (esses ruídos de excesso os violonistas
inicia-se a melodia principal (por volta dos 46 segundos chamam de trastejamento). Limite a partir do qual os vá-
na gravação) seguida do refrão (capoeira me mandou, di- rios sons que o violão emite, voluntária e involuntaria-
zer que já chegou, chegou para lutar/Berimbau me conir- mente, se avolumam e quase se igualam numa espécie
mou, vai ter briga de amor, tristeza camará...), essas partes indistinta de percussão violonística, em que o ataque das
apresentadas numa ordem mais comumente conhecida notas passa a valer mais do que a ressonância; o barulho
pelo público1. Volta o tema principal seguido novamente se equipara ao som.
do refrão; depois disso aparece uma seção de improvisa-
ção solística (por volta dos 2min02s) que termina numa Assim temos uma inversão da regra, o contrário da lim-
ponte para um novo aparecimento do refrão. Volta o tema pidez, o ruído; o contrário da linha melódica, a percus-
principal numa última aparição e tem-se então o inal, são rítmica; o contrário da previsão, o inusitado. O tema
numa coda curta que retoma o tema do “berimbau”. do berimbau, que não deixa de ser um instrumento meio

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melódico e meio percussivo, vem bem a calhar como nando os encadeamentos de acordes menos nítidos em
pretexto que justiica o excesso, que permite a “gros- suas transições (é quase como tocar piano com o pedal
seria” (que, no entanto, ganha um toque de virtuosismo de sustentação apertado).
com Baden) e a inversão tolerável da hierarquia tradi-
cional da música popular. Baden troca o alto (o som Mas para que esta sonoridade aberta das cordas soltas
musical) pelo baixo (o barulho). se efetive e se torne predominante no resultado inal da
performance é preciso escolher cuidadosamente os acor-
O que impressiona é o jorro de vitalidade que Baden con- des (e, por consequência as tonalidades) mais propícios,
segue impor nesse controle descontrolado que iniltra nas ou seja, a escala e seu grupo de notas que permita maior
issuras das regras do “bem tocar”. Ele, sem dúvida, de- utilização das cordas soltas; aquela em que um número
monstra técnica, habilidade e vigor, ou seja, alguns dos maior de acordes, ou de possibilidades de construção de
elementos mais preciosos na avaliação dos músicos, pelo acordes, permita a inclusão de cordas soltas. Esta não é
menos no meio musical no qual Baden se tornou aprecia- uma escolha simples. Mesmo quando a tonalidade ade-
do. Entretanto esses mesmos elementos são transigura- quada já está determinada para a execução de certa peça
dos, estimulados até seu estado limítrofe, sem que o medo musical, isto não garante que toda a peça possa ser to-
de perverter a ordem impeça sua exacerbação. Contudo, cada com a ajuda das cordas soltas; alguns trechos po-
Baden paradoxalmente distorce a música, mas não a que- dem oferecer diiculdades para se manter uma igualdade
bra. Não chega a descaracterizar sua coniguração, mas sonora (é bom sempre lembrar que estamos falando do
borra. Usando uma força avassaladora da carnavalização gênero instrumental popular!). Nesse caso, ainda existe o
da interpretação (a abundância de vigor, sonoridade e recurso das rearmonizações (troca de acordes).
velocidade, o exagero da técnica que vai além das pro-
priedades obedientes do instrumento) Baden oferece uma Podemos dizer, rapidamente, que são pelo menos dois os
alternativa grotesca, mas aceitável (e até admirável), aos motivos principais para a troca de acordes numa peça
modos valorizados e se exprimir no violão. Melhor ainda, de música popular: (1) para incluir uma marca especíi-
ele insere o grotesco cuidadosamente em suas perfor- ca, pessoal, na interpretação da peça (descobrir um novo
mances de tal modo a se misturar e se confundir com os caminho harmônico, inusitado ou característico que, por
sinais de virtuosismo, ou neles se fundir, a ponto de, por sua vez, não desigure a melodia e não descaracterize o
um lado, ser aceito e admirado graças a esses mesmos gênero musical, mas identiique seu executante); e (2)
sinais (e que inclusive o identiicam, o individualizam, o para adaptar alguma passagem especíica às possibilida-
instituem como músico consagrado e único) e, por outro, des mecânicas de execução do instrumento. Baden soma
manter um rastro de rebeldia e ousadia, marcas reconhe- a esses dois motivos básicos um terceiro: a conquista de
cidas e reconhecíveis nos considerados grandes artistas. uma sonoridade particular. Ele parece procurar muitas
vezes aquelas soluções harmônicas em que prevalecem
Mas a carnavalização não aparece apenas na aceleração as sonoridades mais abertas e intensas das cordas soltas,
e na sonoridade peculiar de Baden. Ela se manifesta tam- alterando frequentemente suas interpretações. Mesmo
bém na dimensão harmônica e melódica. Isto é possível quando executa suas próprias músicas, Baden procura
notar pela opção que ele faz por um tipo de sonoridade constantemente soluções que parecem caminhar nesse
violonística melhor conseguida quando se estimulam sentido, alterações perceptíveis quando comparamos as
as cordas soltas. Esta sonoridade possui algumas ca- várias versões que gravou das mesmas peças (Berimbau
racterísticas que a diferencia da sonoridade das cordas é um bom exemplo dessa busca, mas também Garota de
presas. Uma das prováveis razões para essa escolha de Ipanema e Samba de uma nota só são bons exemplos des-
Baden é o fato de que as cordas soltas, por vibrarem na se procedimento em Baden).
sua máxima extensão, mantêm suas ressonâncias mais
intensas e por mais tempo do que quando são “encurta- No campo melódico, por sua vez, a rebeldia carnavalesca
das” pela digitação da mão esquerda (ou seja, quando as de Baden se mostra numa mistura às vezes insólita de
cordas estão presas). Uma outra característica é que, ao velocidade e ecletismo. Explico melhor. A ideia comum,
contrário das cordas presas, o timbre das cordas soltas e equivocada, de que a música se constituiria numa “lin-
é mais aberto, mais metálico, mais exuberante, então guagem universal” é um argumento que, mesmo quando
permite maior intensidade de toque porque responde tenta elevar a música a um patamar diferenciado dentre
com mais intensidade ao toque. Há uma última carac- os inúmeros sistemas simbólicos existentes, concebe o
terística nas cordas soltas: elas diicultam o controle. músico, em contrapartida, como um verdadeiro “poliglo-
As cordas presas são mais facilmente abafadas em suas ta” musical. Coisa que, na prática, raramente acontece; e
vibrações, já que um pequeno alívio na pressão de sua sempre com limitações. Baden parece aceitar essa crença
digitação a faz cessar de vibrar. As cordas soltas, por sua no ecletismo quando escolhe (ou concorda) em gravar
vez, precisam da ação de abafá-las para que silenciem. uma grande diversidade de gêneros musicais, como mos-
Essa diiculdade geralmente causa um efeito sonoro na tra seu legado fonográico. Baden gravou desde samba
execução que são espécies de “sobras” de sons vibrando. tradicional (Na baixa do sapateiro e Inquietação, de Ary
Quando se muda de acorde, no violão, este fenômeno Barroso), marchinhas de carnaval (Pastorinhas, de Noel
pode acontecer se estão presentes as cordas soltas, tor- Rosa e João de Barro), chorinho (Lamento e Carinhoso de

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Pixinguinha), bossa nova (Garota de Ipanema, de Tom Jo- Desse modo, é possível incluir na lista de rebeldias car-
bim e Vinícius de Moraes; Samba de uma nota só, de Tom navalescas de Baden, contra um padrão de atitudes já
Jobim e Newton Mendonça), standards do jazz tradicio- previamente determinado e valorizado, a inclusão de ci-
nal (Stella by starlight, de Ned Washinton e Victor Young; tações de vários outros gêneros musicais dentro do sam-
My funny valentine, de Richard Rogers e Lorenz Hart), bee ba, e também do samba dentro desses outros gêneros
bop (Round midnight, de Thelonious Monk, Cootie Willia- que pronunciava. Penso nessa atitude como uma espécie
ms e Bernie Hanighen), canções populares (Chão de es- de “paródia a favor”. Isto porque, além de remeter a um
trelas de Silvio Caldas e Orestes Barbosa; Dora, de Dorival conhecimento considerado “autêntico” e “legítimo” pela
Caymmi) e música erudita (Prelúdio em ré menor, Double inteligência musical de sua época (como o da música eru-
e Jesus, alegria dos homens de Bach; Adágio de Albinoni), dita, para os tradicionais, e do jazz, para os progressistas),
entre outras. Também nas suas improvisações ele mistu- e que Baden mostrava dominar e reconhecer sua legitimi-
rou desde linhas mais jazzísticas, padrões de blues, melo- dade citando-o, trabalhava a seu favor na medida em que
dias de chorinho, até passagens eminentemente bachia- delegava a ele, por força das circunstâncias, essa mes-
nas e improvisos rítmicos com acordes nos sambas. Aqui ma autenticidade e legitimidade que ia aos poucos con-
também é possível interpretar essa enorme liberdade que quistando como músico. É bom salientar que Baden não
Baden parecia sentir em transitar por uma diversidade desdenhava a música “legítima” ou mesmo seus padrões
grande de gêneros musicais, muitos deles contraditó- do “bem tocar”, visto que era através deles que sua con-
rios entre si (no sentido da incompatibilidade de solu- sagração era aos poucos alcançada. Mas não unicamen-
ções melódico-harmônicas ou rítmicas características de te através deles. Ao contrário disto, ele parecia querer
cada gênero abordado), como um traço de rebeldia, de conirmar essa legitimidade mostrando respeito e até um
perversão às regras (neste caso particular, das regras de certo grau de reverência aos gêneros mais consagrados
“purismo”, visto que o ecletismo tornou-se, na época em na sua época (a música erudita e o jazz).
que Baden iniciou sua carreira, meta a ser almejada pelos
intérpretes; e que continua ainda hoje). Todos esses fatores, embebidos nas suas possibilidades
(facilidades e diiculdades) e entendimento (apropriações
Embora participasse de perto do movimento da bossa e recusas) criam, a meu ver, uma proposta discursiva e es-
nova, na década de 1950, ele não se iliou deinitiva- tética que caracteriza sua produção artística, tanto quan-
mente em nenhuma corrente musical das épocas em do interpreta músicas alheias quanto nas suas próprias
que atuou. composições. Passemos agora ao outro músico.
Baden Powell nunca pertenceu a nenhum movimento, a nenhuma
congregação. Ele nunca se ajustou a nenhum molde, nunca seguiu 4.2 - Carnavalização em Egberto
nenhuma orientação e, sobretudo, nunca se limitou a um gênero. Egberto Gismonti nasceu no Carmo, pequena cidade no
Quando a marca registrada da bossa nova era aquela famosa ba- interior do estado do Rio de Janeiro, no dia 5 de dezem-
tida [do violão de João Gilberto], à qual todos os músicos da dé- bro de 1947. Filho de pai libanês e mãe italiana fez o
cada de 60 se amarraram, Baden continuava percorrendo todos os
ritmos, inclusive o da bossa nova, com um sotaque ininitamente percurso tradicional de estudos musicais em conserva-
pessoal e original (DREYFUS, 1999, p.67). tórios, estudando piano e violão. Depois de ter passado
por 15 anos de estudos tradicionais, teve a oportunida-
Ainda que exagerada, a citação acima não deixa de de de estudar, em Paris, com Nadia Boulanger (profes-
constatar esse ecletismo cultivado, ou pelo menos in- sora de vários músicos consagrados em vários gêneros
centivado, pelas atitudes e escolhas musicais de Baden. e linguagens musicais, tais como Almeida Prado, Quincy
Em todo caso, ao nos aprofundarmos um pouco mais Jones, Raul do Vale, Frank Zappa entre muitos outros)
sobre sua obra fonográica, é possível inferir que esse e Jean Barranqué (discípulo de Schoenberg e Webern).
ecletismo mantém um centro ao redor do qual todas Retornando ao Brasil, inicia sua carreira pública parti-
essas outras linguagens abordadas por Baden circulam, cipando do Festival da Canção de 1968, com a canção
num movimento centrípeto. Este centro de atração é o Sonho 70, interpretada na ocasião pelos Três Moraes, já
samba. Podem advir certas dúvidas em considerar Baden aqui demonstrando certa dose de transgressão e van-
como jazzista, quando toca jazz, ou violonista erudito, guarda assimilada provavelmente em seus estudos pa-
quando toca Bach. Contudo certamente não aparecem risienses. Grava seu primeiro LP com a mistura da mú-
muitas dúvidas quando o consideramos sambista. Muito sica erudita da vanguarda do século 20 com a música
da sua produção criativa se manifestou nesse gênero. brasileira, utilizando ritmos tradicionais do frevo, choro,
Inclusive um grupo fundamental de músicas que com- maracatu, batuque, samba, dentre outros. Possui, atual-
pôs com Vinícius de Moraes, conhecidos como Afro- mente, a gravadora Carmo, que se dedica ao lançamento
sambas (que podem ser ouvidos nos CDs Os afro-sambas de novos talentos da música instrumental brasileira.
de Baden e Vinícius; Os afro-sambas – Baden Powell; e A dimensão carnavalesca, sutil e insistente em Baden,
uma versão de Paulo Bellinati e Mônica Salmaso Afro- com Egberto assume proporções bem maiores. Aqui o
sambas – Baden Powell e Vinícius de Moraes). Conjunto grotesco bakhtiniano também aparece principalmente
de canções que atualizou o gênero quando fundiu, num como a exacerbação, o excesso de atuação, que atin-
mesmo cadinho, o samba tradicional com elementos ca- ge um estado limítrofe tanto da obra que se propõe a
racterísticos da música dos candomblés. executar (ou criar) quanto do gênero musical na qual se

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instala, ou do qual irradia suas intervenções artísticas. Di- presente, algumas vezes transigurado em arpejo repetiti-
ferentemente de Baden, Egberto não tem a preocupação vo (como na seção que inicia por volta dos 2min08s, que
de instalar seus excessos nas issuras da ordem “oicial” chamei na análise de “ponte estendida”, ou na segunda
musical. Ao contrário, ele explode essa mesma ordem seção de improviso, por volta dos 4min33s).
estabelecida através da instauração de uma outra, que
constrói a partir de suas misturas e experiências entre O desenvolvimento dessa peça permite que ampliemos
linguagens e gêneros, que acabam por constituir uma um pouco mais a ideia das notas rebatidas, generalizan-
proposta estética (podemos dizer também, um universo do-as como bordão. A ideia do bordão, nesta peça em
sonoro discursivo, ou um dialeto) particular. particular, é sempre apresentada de maneiras diferen-
tes. Na introdução, por exemplo (até por volta dos 42s),
Sua exasperação temporal, por exemplo, que ele utiliza aparece logo de início como função da primeira nota
com frequência no violão, não estremece uma organi- grave que, a partir do momento da entrada de uma série
zação musical preestabelecida, não borra seus limites de acordes repetidos (uma melodia de acordes), se aco-
bem delineados, mas habita um mundo já praticamen- moda com intensidade diminuída por detrás da melodia
te beneiciado pela existência dos borrões, pelas ha- de acordes. Passa de igura a fundo até a entrada do
churas e pelas linhas fragmentadas e indeinidas. Em tema principal (aos 42s). Já na entrada do tema secun-
outra palavras, Egberto toma a liberdade de construir dário (por volta dos 58s), o bordão é transferido para a
um universo musical, uma proposta estética, que con- tumbadora (instrumento de percussão tocado por Naná
tém, ou pelo menos pressupõe, a possibilidade do ex- Vasconcelos, acompanhante de Egberto nesta versão),
cesso (na verdade, exige). Vários exemplos poderiam que transforma o bordão melódico/harmônico do violão
ser citados, entretanto considero a peça Dança das ca- em bordão rítmico da tumbadora. Os acordes iniciais,
beças (faixa 2 do LP Dança das cabeças) suiciente para transformados em arpejos na seção que inicia por volta
ilustrar minhas airmações. dos 2min08s, passam de protagonistas a acompanhan-
tes durante todo o trecho, e assim as alterações vão se
Numa arquitetura complexa (são oito minutos de música sucedendo por toda peça.
ininterrupta), na qual apresentações dos dois temas prin-
cipais são intercaladas com seções novas e com trechos As notas rebatidas, contudo, não são exatamente o tra-
de improvisações e desenvolvimentos, Egberto costura ço rebelde na execução da peça, mas sim um elemento
uma sequência na qual alterna diversos climas sonoros. estrutural na sua arquitetura. Entretanto, a insistência,
Imagens sonoras múltiplas surgem em correspondência a repetição praticamente ininterrupta, a obstinação
direta com as várias articulações que elabora com aqui- por esse fundo reiterativo, enfatizado pela sensação de
lo que podemos chamar de elementos principais eleitos urgência suscitada pelo andamento ágil e pela rítmi-
para a confecção da peça. Com um material estrutural ca pontilhada que praticamente a percorre do início ao
reduzido, ele consegue apresentar uma gradação ampla im, este sim poderia exempliicar um traço grotesco
de matizes sonoros (timbrísticos, de intensidades, de ar- (bakhtiniano) de Egberto. Só que, diferente de Baden,
ticulações, de texturas e tonais), elaborando verdadeiras essa agitação toda consubstancia um terreno já “carna-
paisagens sonoras em constante transformação, em que valizado”, com o qual os elementos de rebeldia que ele
ora um, ora outro elemento toma a frente do discurso, apresenta na execução não se mostram em conlito, mas
estabelecendo uma dinâmica intensa num jogo de trocas sim em relação de cumplicidade.
entre igura e fundo durante toda a peça.
Embora Egberto, assim como Baden, extrapole o anda-
Um desses elementos, por exemplo, é o que chamamos mento com o qual executa a peça (há várias frases ex-
de “notas rebatidas”. É um recurso que, muito usado por tremamente rápidas, principalmente no tema secundário,
violonistas, consiste de notas repetidas continuamente, que aparece por volta dos 58s, 1min32s e 6min11s, e em
formando uma espécie de ressonância reiterativa cuja algumas seções de improvisação, por volta dos 4min33s e
função principal, na peça analisada, é a de preencher os 6min43s, onde é possível perceber auditivamente traços
vazios deixados pela costura dos temas melódicos apre- desse exagero temporal, quando não ouvimos nitidamen-
sentados, adensando sua textura sonora. São repiques de te todas as notas que ele toca, mas captamos seu gesto
notas que se interpõem às notas da linha melódica, como espasmódico), exagere os contrastes abruptos de inten-
acontece num outro exemplo conhecido desse procedi- sidades (variando em instantes de um pianíssimo quase
mento que são os ponteados da viola caipira, que podem inaudível para um fortíssimo trastejado) e abuse do uso
ser tocados apenas sobre uma corda, alternando notas da das cordas soltas (em busca de uma sonoridade também
corda presa com notas da corda solta, intercaladas geral- aberta, ressonante e intensa), ele faz tudo isso dentro de
mente uma a uma. Na Dança das cabeças a nota rebatida um terreno previamente arquitetado que sustenta e dá
é elemento constituidor e fundamental na sua estrutura. corpo e sentido estrutural a esses excessos. Em Egberto
Ela aparece quase sempre provinda de uma corda solta; a os exageros não são traços de rebeldia dissimulada, mas
depender do trecho da peça ora é corda aguda, ora é cor- elementos próprios da sua linguagem. Enquanto Baden
da grave. Mesmo nas seções de improvisação e desenvol- parece querer se apossar de um discurso oicial de um
vimento mais livres, o mote da nota rebatida se mantém modo não-oicial, se é que se pode dizer isso, Egberto

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parece já estar de posse de um discurso não-oicial em nalmente ainada na nota sol). Um outro indício impor-
que suas “grosserias” musicais só ajudam a reairmar esse tante da relação especial que Egberto mantém com o
universo especial que cria. violão pode ser constatado no fato de que ele raramente
toca músicas que não as suas próprias no instrumento.
Na dimensão melódico-harmônica, Egberto mantém a pre- Ainda que alguns exemplos contrários possam ser ga-
ferência pelas cordas soltas, já assinalada na sonoridade de rimpados na sua discograia, é signiicativo como esta
Baden Powell. Mas também nesse quesito Egberto desfruta preferência por suas próprias criações se mantém desde
de uma relação diferenciada, já que teve contato prolon- os primeiros discos por ele gravados. O mais curioso é
gado com a vanguarda contemporânea erudita em seus constatar que esta mesma atitude não acontece quando
estudos na Europa e pôde, com certeza, reorganizar suas Egberto se dedica ao piano. São bem conhecidas suas
expectativas harmônicas para dissonâncias mais ousadas, interpretações de vários outros autores ao piano. Uma
de certo ponto de vista não tão próximas das sonoridades interpretação possível para esta atitude aparentemente
populares cultivadas no Brasil3. Egberto utiliza abundan- reservada, dedicada ao violão, origina do fato de que
temente não só dos ostinatos e bordões em cordas soltas, pode haver uma diferença signiicativa no tipo de vín-
acrescentados de acordes que vão se movimentando e al- culo que ele estabeleceu com o violão em comparação
terando as relações dissonantes com esses bordões utiliza- com o piano. No programa Ensaio, produzido pela TV
dos, mas também das mudanças de acordes em paralelo, Cultura em 1992, Egberto esclarece que seu violão pos-
onde se ixa uma fôrma de mão e faz com que ela pas- sui esse número avantajado de cordas para que ele, “um
seie pelo braço do violão livremente (estratégia que utiliza pianista, possa tocar violão. Só isso”5. Ou seja, Egberto
acordes paralelos na forma de frases melódicas e que, se se considera um pianista que toca violão e isto o obri-
acrescentados de cordas soltas, causam efeitos inusitados ga a tomar certas providências, por exemplo o aumento
de dissonâncias). Os exemplos de utilização dessa estraté- do número de cordas, para que ele possa se expressar
gia são vários, como na peça Em família (faixa 3 do CD Em “como um pianista” ao violão.
família, tocada muitas vezes na forma de solo de violão
nas apresentações ao vivo4), ou nas versões que elabora Essa declaração do próprio Egberto oferece uma pis-
de Aquarela do Brasil, de Ari Barroso (faixa 1 do LP Duas ta importante sobre sua corporalidade ao violão. Ao
vozes) e de Fé cega, faca amolada, de Milton Nascimento e contrário de Baden, que era violonista, Egberto utiliza
Ronaldo Bastos (faixa 9 do CD Dança das cabeças). o violão (e alguns outros instrumentos como lautas,
percussão, violoncelo) como fonte de expressão, quase
Um outro sinal que parece comprovar essa airmação é como um complemento necessário à concretização de
a constituição de seus violões. Dentre vários que possui, suas ideias musicais. A meu ver isto indica uma consci-
alguns dos que mais usa possuem mais do que as seis ência bastante nítida das limitações que Egberto perce-
cordas do violão padrão. Um deles é um violão com dez be em si mesmo como violonista. Esta airmação pode
cordas de nylon e o outro possui quatorze cordas de aço, parecer equivocada à primeira vista, mas se reletirmos
mas não na disposição dos violões de doze cordas que um pouco mais sobre o assunto podemos constatar que
encontramos no mercado. Esses últimos possuem seis (1) isto não diminui em nada a qualidade musical de
cordas duplas que são estimuladas par a par, já que o Egberto ao violão, ao contrário, esclarece a sua inte-
par funciona como se fosse uma única corda (a ainação ligência em saber aproveitar de modo artístico suas
é feita em uníssono ou oitavada, a cada par, seguindo limitações no instrumento (digo limitação porque os
geralmente a ainação tradicional EADGBE). Então, re- recursos que ele se utiliza no violão não são típicos de
tomando, o violão de dez cordas de Egberto funciona um violonista tradicional, como a independência total
como um violão tradicional, de seis cordas, onde foram das mãos na produção de sons, técnica apenas recen-
acrescentadas outras quatro acima da corda mais gra- temente desenvolvida principalmente pelos guitarristas,
ve, primeira e terceira mais inas e a segunda e quarta e aqueles recursos dos violonistas tradicionais não são
mais graves. A ainação desse violão obedece a ainação explorados por Egberto); e (2) esta atitude deixa mani-
tradicional, variando apenas as ainações das cordas festa aquilo que chamei de corporalidade musical, que
acrescentadas (no caso da peça Em família a ainação é a elaboração discursiva feita a partir dos recursos ad-
é FAAG-EADGBE). O violão de quatorze cordas de aço quiridos, das possibilidades articulares tornadas possibi-
obedece o mesmo padrão do anterior, com a diferença lidades expressivas, e da consciência dos limites dentro
de que as quatro primeiras cordas (as mais agudas) são de um plano de ação expressiva que, embora Egberto
duplas, enquanto as demais permanecem únicas. O sis- não enfoque o instrumento (já que ele não se considera
tema de ainação desse violão é igual ao anterior e varia violonista), direciona toda a energia expressiva para a
conforme a peça a ser tocada. construção de peças que extravasam vigor e reletem
Nesse quesito em especial, Egberto demonstra uma uma relação tranquila e consciente com um instrumen-
relação mais individualizada com seu instrumento, na to secundário (entretanto bastante usado, e com pro-
medida em que o altera de forma mais contundente. priedade, pelo músico).
Baden altera mais frequentemente a ainação da sexta
corda (tradicionalmente ainada na nota mi) e menos A corporalidade musical é a chave para a compreensão
frequentemente a ainação da terceira corda (tradicio- desse uso, podemos dizer engenhoso e astuto, dos recursos

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mecânicos, possibilidades articulares, agilidade digital etc., esfumaçado, borrado, visto que muito do que se desen-
como componentes fundamentais da realização musical. volveu em matéria de concepções musicais favorecidas
A música não parte apenas de uma ideia. Ela está mer- pela possibilidade da escrita musical ou já estava conta-
gulhada nas possibilidades de realização, a ponto da ideia minado pelas práticas orais, ou acabou por contaminá-
inicial poder ser totalmente modiicada (ou até abandona- las. Isto ocorrendo em graus diferenciados de dosagem
da) se sua realização esbarra numa diiculdade insuperável. para cada linguagem ou gênero musical especíico (em
O próprio Egberto airma, na mesma entrevista já citada, alguns casos, para cada músico ou peça musical). O fato
que as inversões dos acordes com que está acostumado de um gênero sobreviver através de sua transmissão oral
no piano, ao serem transferidas para o violão demandam não implica necessariamente que ele não incorpore pro-
“muito malabarismo” que ele não apreciaria fazer. Por isso cedimentos desenvolvidos graças à escrita. E, por sua
a inclusão de mais algumas cordas em seu violão. Nesse vez, o fato de um gênero adotar a escrita como forma
sentido, as músicas poderiam ser pensadas como fruto de de propagação e conservação não implica isolamento
uma tentativa de equilíbrio entre possibilidades, desejos e total de procedimentos de caráter oral. Em todo caso,
imposições do instrumento e a vontade de conduzi-lo para talvez evitemos o equívoco de estagnar a oralidade no
a concretização de um discurso signiicativo e expressivo. analfabetismo musical (que, no entanto, existe em parte
Novamente aparecem os três pontos do triângulo dinâ- considerável dos músicos populares) ou no primitivismo
mico de forças que atuam sobre as realizações musicais: (considerando a música conservada e desenvolvida sem
as exigências corporais contidas nas linguagens musicais, registro escriturístico menor do que a música escrita).
nos instrumentos e as possibilidades e características dos Baden e Egberto estudaram em escolas tradicionais de
músicos. Digo triângulo dinâmico porque ele se equilibra a música e, portanto, ambos dominam a escrita, a leitura
cada vez de uma forma diferente, para cada músico espe- e a teoria musical. Pretendo dar apenas um exemplo de
cíico, para cada peça realizada e para cada versão de cada procedimento que, se envolve concepções escriturísticas,
peça. E é justamente disso que iremos falar a seguir. também envolve vestígios de oralidade. E isto será feito a
partir de algumas versões gravadas de uma mesma peça.
5 - Oralidade e escrita No caso de Baden, utilizaremos a já citada Berimbau, e no
Como um último ponto abordado em relação à corpora- caso de Egberto, Salvador.
lidade tomaremos a relação intrínseca que ela mantém
com o que alguns pensadores deinem como oralidade Reiro-me às versões de Berimbau gravadas nos CDs (1)
e com sua contrapartida, a escrita. A oralidade comu- Ao vivo no Teatro Santa Rosa – faixa 5; (2) Baden Po-
mente é colocada em oposição à escrita. A partir, então, well à vontade – faixa 2; (3) Baden, Márcia, Originais
dessa falsa oposição, várias associações equivocadas do Samba Show/Recital – faixa 5; (4) Os afro-sambas
vão sendo construídas entre, por exemplo, oralidade e de Baden e Vinicius – faixa 9; (5) Baden live à Bruxelles
analfabetismo, ou oralidade e primitivismo. Como nos – faixa 11. As versões de Salvador estão nos seguintes
alerta Paul Zumthor: CDs e Lp (1) 1969 – faixa 1; (2) Violões – faixa 9; (3)
Solo – faixa 2, lado B.
É inútil julgar a oralidade de modo negativo, realçando-lhe os
traços que contrastam com a escritura. Oralidade não signiica
analfabetismo, o qual, despojado dos valores próprios da voz e de Sem querer estender demais as análises, é possível per-
qualquer função social positiva, é percebido como uma lacuna. ceber numa primeira audição, mesmo que não apro-
Como é impossível conceber realmente, intimamente, o que pode
ser uma sociedade de pura oralidade (supondo-se que tenha exis- fundada, as diferenças que cada uma dessas versões
tido algum dia!) [...] Daí ser frequente, nos autores que estudam as sustenta em relação às outras. A primeira versão de
formas orais da poesia, a ideia subjacente – mas gratuita – de que Berimbau, já comentada anteriormente, se destaca pela
elas veiculam estereótipos “primitivos” (ZUMTHOR, 1997, p.27). velocidade e pela quantidade de intervenções de seções
de improviso, estabelecendo um clima de urgência e, ao
Não é minha intenção aprofundar essa discussão neste mesmo tempo, de liberdade na costura dos temas prin-
espaço, isto exigiria um artigo especíico, mas apenas cipais da peça. A segunda versão, mais cadenciada (an-
lembrar rapidamente os perigos de opor a oralidade à es- damento médio) e tocada apenas com violão e pandeiro,
critura. Tomando as palavras de Michel de Certeau: parece oferecer um desenho mais nítido de suas ideias
Referir-se à escritura e à oralidade, quero precisar logo de saída, principais (introdução, melodia principal e refrão, que
não postula dois termos opostos, cuja contrariedade poderia ser nesta versão é cantado). Baden não deixa de aproveitar
superada por um terceiro, cuja hierarquização se pudesse inver- a oportunidade para improvisar, entretanto, diferente da
ter. [...] A oralidade se insinua sobretudo como um desses ios de primeira versão, seus improvisos são executados sobre
que se faz, na trama – interminável tapeçaria – de uma econo-
mia escriturística (CERTEAU, 1994, p.233, a ordem das frases foi os temas principais, obedecendo de modo mais conti-
invertida por mim). do, o ciclo regular das quadraturas de cada seção. Na
terceira versão, tocada ao vivo como a primeira, inicia
No que concerne aos nossos estudos da música popular, também com um andamento mais cadenciado, próxi-
a oralidade é algo que se estabelece em relação à escri- mo da segunda versão. A introdução é executada com
ta musical, ou seja, existe como um pensamento musical o violão e um berimbau e lá já se ouve uma improvisa-
híbrido, mas que não é homogêneo, no sentido de perfei- ção rítmica sobre a célula principal de berimbau. Uma
tamente misturado em doses proporcionais. É manchado, ladainha tradicional é iniciada e terminada enquanto

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o improviso rítmico continua como fundo (ou acom- tema principal num andamento vertiginoso (quase não se
panhamento). Começa um jogo de pergunta e resposta escuta a melodia tal sua velocidade). O tema secundário é
entre melodias improvisadas ao violão e frases entoadas apresentado no mesmo luxo vertiginoso. Retorna o tema
pelo cantor. Logo depois desse momento o andamento principal seguido de uma seção de improviso. Retorna
acelera, começam a tocar os atabaques, mas os impro- novamente o tema principal seguido por nova seção de
visos do violão continuam, desta vez alternando frases improviso que rompe com a urgência rítmica dos temas
rítmicas com frases melódicas. Nesta versão a melodia principais. Volta novamente o tema principal seguido do
principal só inicia depois de mais de cinco minutos de secundário e da repetição do principal. Há um improviso
improvisação, é repetida e logo seguida por nova seção inal onde a música Berimbau de Baden é citada e uma
de improvisação melódica. Não aparecem aqui nem o coda inal. A terceira versão contrasta com as anteriores
tema secundário e nem o refrão, substituídos por im- principalmente no andamento, bastante mais lento do que
provisações melódicas e rítmicas. Na quarta versão até as outras duas. O clima que se estabelece nesta versão é
mesmo o nome da peça foi alterado para Variações so- contrastante com as outras porque transforma a urgência
bre Berimbau. Inicia-se a peça com um toque de berim- presente nas primeiras versões em melancolia profunda.
bau, logo seguido pelo violão. O andamento é também Nesta versão não aparece o tema secundário, apenas o
cadenciado (de médio para lento). Inicia a percussão e o principal entremeado de seções de improvisação. No inal
violão faz um pequeno improviso que se transforma em Egberto chega a improvisar um canto, que anuncia o im
acompanhamento para uma ladainha tradicional, can- da peça, seguido por uma pequena coda.
tada desta vez pelo próprio Baden. O andamento é leve-
mente acelerado, outros cantos tradicionais de roda de Ainda que estas descrições sucintas das várias versões de
capoeira são cantados. Nova aceleração do andamento cada peça possam ter sido enfadonhas para o leitor, elas
é feita, um improviso do violão marca levemente o ritmo foram necessárias para tentar mostrar o nível de liberdade
forte da percussão que permanece presente e constante de execução de que partilham esses dois músicos. Mesmo
durante toda a peça. Aqui também as melodias princi- sendo as duas peças bem conhecidas do público que acom-
pal, secundária e do refrão não são tocadas, sustentan- panha a carreira e as apresentações dos dois violonistas,
do a peça apenas os improvisos e referências aos can- eles frequentemente tomaram a liberdade de alterá-las a
tos tradicionais das rodas de capoeira. A última versão, ponto de desconstrui-las quase que totalmente. No caso
também ao vivo, tocada apenas com o violão, aparece de Baden acontece uma versão em que nenhum dos temas
num andamento um pouco mais lento. Uma introdução principais da peça são tocados (talvez por isso a mudan-
forte, com acordes recheados de cordas soltas, é seguido ça do nome de Berimbau para Variações sobre Berimbau
da mesma ladainha de capoeira (presente também nas que atribuiu a essa versão), e uma outra onde apenas o
versões 3 e 4). O andamento acelera e um novo canto tema principal é citado. Em Egberto a versão mais lenta (a
é cantado, logo seguido pelo canto próprio da música, terceira) perverte não apenas a sequência dos temas apre-
com letra de Vinícius. Por essa razão as melodias todas sentados nas outras versões, mas também o clima total da
são apresentadas na forma cantada, acompanhada com peça, transformando-a praticamente numa outra. Esta li-
variações rítmicas e de registro do violão. Um impro- berdade, que ambos demonstraram em várias outras opor-
viso aparece depois de cantadas a estrofe, o refrão e a tunidades, executando outras peças, é algo que remete à
repetição da estrofe. A partir daí o violão apresenta o liberdade do orador, do contador de histórias, do narrador.
tema principal na forma instrumental, seguido de uma Os dois músicos conhecem profundamente o discurso mu-
improvisação que adia o refrão. Este último aparece no- sical que irão pronunciar, sabem de sua organização pois,
vamente cantado e depois disso um retorno ao tema não por coincidência, são os compositores dessas peças.
principal instrumental termina a peça. Executaram essas mesmas peças (executa ainda, no caso
de Egberto) inúmeras vezes, tornando-as conhecidas das
A primeira versão de Salvador, a primeira gravada por audiências, entretanto, concedem a elas a possibilidade
Egberto no seu primeiro disco, aparece num andamento de alterações radicais, a depender das situações especiais
médio, acompanhado apenas pela percussão, recurso bem onde esse discurso determinado vai ser pronunciado, ou
próximo de algumas gravações do próprio Baden, que publicado (no sentido de tornado público).
interpretou várias peças apenas com violão e percussão.
Aparecem, depois de uma introdução rítmica, os temas Essa situação de alterações constantes, que no entanto
principal, secundário e novamente o principal, seguidos por não descaracterizam as músicas, faz pensar numa relação
uma mudança do instrumento percussivo acompanhante com as peças que leva em conta o ato de sua pronúncia.
(de bateria para atabaque), anunciando a seção de impro- E esse “levar em conta a pronúncia” inclui possibilidades
visação. Volta a seção do tema principal sem, entretanto de execução que podem estar fora do planejamento ini-
que ele apareça. Segue-se o tema secundário, novamente cial que os dois izeram para as execuções das músicas.
o tema principal, dessa vez com sua respectiva melodia Esse traço é que remete a um trato que eu considero de
presente, e uma coda parecida com a introdução. A segun- caráter oral das realizações. Ainda que a complexidade
da versão, tocada ao vivo, inicia com uma longa seção de dessas peças remeta à um tipo de concepção que con-
introdução (mais de dois minutos) onde o primeiro tema diz com uma visão teórico-escriturística da música. Que
é citado, seguido por um improviso. Segue a entrada do ique claro que com isto não estou negando a existência

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de vestígios dessa oralidade naqueles músicos que tocam portanto, se soma a tentativa que outros conceitos e
lendo partitura, ou executam uma organização previa- noções vêm fazendo no sentido de religar opostos, tais
mente determinada com maior rigor (que pode ou não como oralidade e escrita, indivíduo e sociedade, músi-
estar ixada numa partitura, entretanto soa com um grau co e corpo, gênero de discurso e estilo pessoal, ação e
maior de organização e exige maior rigidez na execução). pensamento, música e signiicação.
Mesmo nesses casos são várias, embora mais sutis, as es-
colhas e alterações que acabam por serem feitas. No caso 6 - Algumas considerações
de Baden e Egberto essas alterações soam mais claras, São ainda muitas as arestas a serem ajustadas, no que
suas escolhas são mais perceptíveis na comparação das diz respeito à ideia de corporalidade musical. Entretan-
várias versões, as mudanças são mais abruptas e mais ra- to, ela já aponta um caminho na direção de se levar em
dicais, conforme a versão. Isto não deixa de ser, além de conta a inseparabilidade entre ideia ou ideal musical e
um indício dessa presença híbrida de oralidade e escritura as possibilidades concretas corporais de realizá-las. As-
(visto que as duas peças citadas se originam de um tra- sim podemos observar com mais clareza o elo que une
balho musical soisticado, proporcionado pela tradição da as possibilidades corporais com as necessidades expres-
teoria escriturística musical, realizado por dois músicos sivas, ou seja, a busca da coincidência entre o que de-
escolados), mais um sinal de carnavalização, no sentido sejo dizer e o que consigo dizer, empreendida pelos mú-
de que o texto é conhecido, os papéis estão distribuídos e sicos analisados. Mas outras situações de performance
determinados, mas as performances são sempre novas, tal musical precisariam ser investigadas com esse mesmo
qual o contador de histórias que conta sempre a mesma instrumento analítico (o que já estou realizando na mi-
história e ela sai sempre diferente. nha atual pesquisa sobre a corporalidade na canção po-
pular). Entretanto, acredito que algo aponte para uma
Esta é uma característica da performance que, segun- percepção, embora ainda incipiente, da performance
do Paul Zumthor, “implica tudo o que, em nós, se en- musical como uma totalidade complexa e plural. Com-
dereça ao outro” (ZUMTHOR, 1997, p.203). Para ele, “o plexa no sentido da instabilidade da realização musical,
intérprete, na performance, exibindo seu corpo e seu e plural porque cada nova versão, ou audição, de uma
cenário, não está apelando somente à visualidade. Ele mesma peça coloca em funcionamento sistemas de sen-
se oferece a um contato” (ZUMTHOR, 1997, p.204). E tidos diversos, visto ser a performance e sua recepção
esse contato com o público certamente modiica aque- diretamente inluenciadas pelo contexto real (tempo e
le plano inicial embutido no discurso a ser pronun- espaço) em que acontecem. O que implica em constru-
ciado, o que torna a audiência parte integrante desse tos conceituais e teóricos capazes de conduzir um pro-
discurso no ato de sua publicação. Este envolvimento cesso de explicitação dessa complexidade e pluralidade
parece estar presente, ou melhor, consciente, nos nos- em termos de possibilidades de análise efetivas. Creio,
sos dois músicos a partir dos indícios que eles nos for- portanto, que a corporalidade musical pode ser conside-
necem das atitudes que tomam quanto à realização de rada mais um passo na direção do estabelecimento de
suas performances musicais. A corporalidade musical, um pensamento complexo musical.

Referências
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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
DREYFUS, Dominique. O violão vadio de Baden Powell. São Paulo: Ed. 34, 1999.
GAINZA, Violeta Hemsy de. Estudos de psicopedagogia musical. São Paulo: Summus, 1988.
KAPLAN, José Alberto. Teoria da aprendizagem pianística. 2ª ed. Porto Alegre: Editora Movimento, 1987.
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SCHROEDER, Jorge Luiz. Corporalidade musical: as marcas do corpo na música, no músico e no instrumento. 2006. Tese
(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Campinas.
WILLEMS, Edger. Las bases psicológicas de la educación musical. Buenos Aires: Editora Universitaria de Buenos Aires, 1969.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
______. Performance, recepção e lectura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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SCHROEDER. J. L. Corporalidade musical na música popular... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.167-180.

Referências discográicas
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p1995. 1 CD.
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GISMONTI, Egberto e VASCONCELOS, Naná. Dança das cabeças. Muchen, GE: ECM, p1977. 1 disco analógico.
______. Duas vozes. Muchen, GE: ECM, p1985. 1 CD.
GISMONTI, Egberto. 1969. Rio de Janeiro: Universal Music, p1969. 1 CD.
______. Em família. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, p1981. 1 CD.
______. Solo. Muchen, GE: ECM, p1979. 1 disco analógico.
POWELL, Baden. Baden live à Bruxelles. São Paulo: Lua Music, p2005. 1 CD.
______. Baden Powell à vontade Rio de Janeiro: Universal Music, p1967. 1 CD.
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______. Baden Powell. Rio de Janeiro: Movie Play Music do Brasil, p2002. 1 CD.
______. Baden, Márcia, Originais do Samba Show/Recital. Rio de Janeiro: Universal Music, p1968. 1 CD.
______. Os afro-sambas de Baden e Vinícius. Rio de Janeiro: Universal Music, p.1966. 1 CD.
______. Os afro-sambas. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, p.1991. 1 CD.

Referências videográicas
POWELL, Baden. Velho amigo: o universo musical de Baden Powell. Rio de Janeiro: Universal Music, c2003. 1 DVD.
GISMONTI, Egberto. Ensaio. São Paulo: Radio e Televisão Cultura, c1992. Fragmento citado disponível em http://www.
youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E acessado em 18/12/2009.

Notas
1 Isto porque o próprio Baden alterou de várias maneiras, em outras interpretações da mesma peça, a ordem de suas partes principais, chegando ao
ponto de suprimir totalmente o refrão, como na versão de Berimbau no CD Baden, Márcia, Originais do Samba show/recital (faixa 5).
2 No mesmo CD Ao vivo no Teatro Santa Rosa podemos destacar outros exemplos, como no Prelúdio em Ré menor de Bach (faixa 4) e Consolação
(faixa 6) em que os andamento são exageradamente acelerados.
3 Lembremos que o movimento “ruidístico” da tropicália iniciaria na mesma época em que Egberto iniciava sua carreira.
4 Fragmento disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E>. Acesso em: 20 dez. 2009.
5 É possível ver essa declaração no trecho do vídeo já citado anteriormente. <http://www.youtube.com/watch?v=kpRwEulQ62E>

Jorge Luiz Schroeder é Bacharel em Composição (1987), Mestre em Educação (2000) e Doutor em Educação (2006) pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente atua como proissional de Pesquisa do Instituto de Artes da
Unicamp. Coordena o grupo de pesquisa Música, Linguagem e Cultura (Musilinc) (www.cnpq.br). Atua como professor do
Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes (Unicamp). Suas publicações principais são: Música e conhe-
cimento. Revista Digital Art&, v.09, p.09, 2008. Música e Ciências Humanas. Pro-Posições (Unicamp), Campinas, v.15, n.1,
p.209-216, 2004. Junto com Sílvia Nassif Schroeder; A construção do conhecimento em arte. In BITTENCOURT, Agueda
(org). Estudo, pensamento e criação. Campinas: Gráica da Faculdade de Educação, 2005, v.1, p.75-82; O dentro e o fora
da música. Ensinarte: revista das artes em contexto educativo, Braga-Portugal, n.3, p.02-14, 2004.

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NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.

O estudo cultural da música popular


brasileira: dois problemas e uma
contribuição

Álvaro Neder (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro/IFRJ, RJ)
alvaroneder@ig.com.br

Resumo: No estágio em que se encontram os estudos de música popular no Brasil, é crucial discutir a deinição de
“música popular” e as abordagens teóricas usadas para fundamentar sua análise. Ambas as questões são tratadas aqui
por meio de uma articulação crítica que envolve estruturas musicais, sociedade e cultura. Propõe-se, portanto, uma
contribuição teórica aos estudos de música popular brasileira, e não uma análise do conteúdo de tais estudos. A partir
de uma discussão das principais classes de deinições de música popular empregadas usualmente, defende-se uma con-
cepção dinâmica e relacional de música popular, inserida em sociedades contemporâneas complexas e contraditórias.
Metodologicamente, discutem-se diferentes abordagens que vêm se propondo a estudar culturalmente as contribuições
singulares da música popular, irredutíveis aos métodos analíticos desenvolvidos para as músicas erudita e tradicional. O
ensaio conclui com a defesa de uma musicologia renovada pelas discussões travadas no âmbito dos estudos culturais,
para uma adequada investigação da música popular em sua especiicidade.
Palavras-chave: música popular; estudos culturais; metodologia; deinição; sociedade e cultura.

The cultural study of Brazilian popular music: two problems and a contribution

Abstract: At the current state of popular music studies in Brazil, it is crucial to discuss the deinition of “popular
music”, and the theoretical approaches employed to ground its analysis. Both issues are examined here through a criti-
cal articulation involving musical structures, society and culture. Thus, what I propose is a theoretical contribution to
Brazilian popular music studies, not an analysis of the content of such studies. Starting with a discussion of the prin-
cipal classes of deinitions of popular music usually employed, a defense is made of a dynamic, relational conception
of popular music as currently practiced in complex, contemporary, contradictory societies. Methodologically, I discuss
different approaches for the cultural study of the singular contributions of popular music, which are irreducible to the
analytical methods developed for art and traditional music. The essay concludes with a defense of a musicology reno-
vated by the debates held in cultural studies circles, for an adequate investigation of popular music in its speciicity.
Key Words: popular music; cultural studies; methodology; deinition; culture and society.

Introdução
Os estudos acadêmicos e institucionais de música popular 1977; SCHWARZ, 1970). No terreno da musicologia, no
(a canção popular aí incluída com destaque), considerada entanto, fora iniciativas isoladas, não houve um interesse
em sua especiicidade e complexidade, são recentes no deinido pelo desenvolvimento de ferramentas metodoló-
mundo inteiro. O ano de 1981 poderia ser considerado um gicas que dessem conta da música popular enquanto tal,
marco, em razão da ocorrência da primeira Conferência e que objetivassem relacionar suas estruturas musicais a
Internacional sobre Pesquisa em Música Popular, na Uni- questões sociais, históricas ou culturais.
versidade de Amsterdã (JOSEPHS, 1982). No Brasil, a can-
ção popular, em seus aspectos culturais, passou a chamar Assim, no estágio em que se encontram os estudos de
a atenção de acadêmicos de diversos setores que não a música popular no Brasil, torna-se crucial discutir a dei-
música a partir dos anos 1960, com o advento da cha- nição de “música popular” e as abordagens teóricas usa-
mada MPB (ver, por exemplo, GALVÃO, 1968; SANTIAGO, das para fundamentar sua análise. Propõe-se, portanto,

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 06/12/2009 - Aprovado em: 20/02/2010
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NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.

uma contribuição teórica aos estudos de música popular ção a este duplo problema deinicional-teórico. A falta
brasileira, e não uma análise do conteúdo de tais estudos. deste entendimento prejudica a adequada compreensão
Como em qualquer disciplina ou campo de conhecimen- do objeto e estimula o diletantismo, consequentemente
tos, os dois problemas – deinição e teoria – estão inter- impedindo o desenvolvimento e consolidação dos estudos
ligados. Uma determinada concepção do objeto organiza de música popular como campo legítimo e autônomo de
um feixe de ferramentas teóricas especiicamente apro- investigação, que necessita dedicação especial, especiali-
priadas para dar conta das características consideradas zação e formação especíicas.
por esta concepção, ignorando outras que não se incluam
aí. Os métodos analíticos – que não serão objeto deste Em suma, o termo “música popular” é vago o bastante
ensaio – são, por sua vez, decorrentes das escolhas dei- para ser deinido de maneira bastante discrepante, de-
nicionais e teóricas, sendo igualmente apropriados para pendendo de quem o emprega. Isto tem levado pesqui-
certas características e inadequados para outras. Fica, sadores a abandoná-lo quase por completo, adotando
assim, conirmada a necessidade de debater os dois pro- denominações individuais que terminam por aumentar a
blemas mencionados antes de se começar a empreender confusão, fragmentar ainda mais o campo e desunir os
a análise ou mesmo optar pelo método a ser empregado. especialistas nesta área. Respondendo a este problema,
a partir de uma compilação e discussão das principais
Neste sentido, por exemplo, entendendo-se “música po- classes de deinições de música popular empregadas usu-
pular” como aquela que vem “do povo” (categoria sempre almente, argumenta-se aqui que o termo música popular
inventada e frequentemente idealizada), critérios como é contraditório justamente por evidenciar as contradições
“autenticidade” e “identidade nacional” ou “regional” são sociais a que está exposta a própria música popular. Se-
priorizados, e o que não se encaixa aí é desprezado. Ou ria impossível encontrar um termo livre de tais contra-
seja, desconsidera-se a maior parte da produção das classes dições, uma vez que tanto música como sociedade são
populares contemporâneas, e que desenvolve experiências atravessadas por elas. Por conseguinte, muito embora o
sônicas não passíveis de apreensão segundo métodos ide- termo “música popular” não carregue nenhum signiicado
ados para músicas tradicionais. Além disso, essas músicas essencial que obrigue seu uso, é uma denominação útil
são especialmente importantes por expressar suas condições justamente por designar um terreno de trocas, diálogos e
objetivas de existência ou o mundo em que desejariam viver. embates pela signiicação.

Se, no entanto, entende-se que “música popular” – ou, pelo A música popular se constrói e se deine pela sua plurali-
menos, a “boa música popular”, ou a única música popular dade, justamente no contato e confronto com outras mú-
que mereceria ser estudada – é uma elaboração erudita sicas, por meio de seu uso por sujeitos concretos, por sua
de materiais “populares”, deixa-se de lado o que pareceria vez mediado por categorias históricas, sociais e culturais.
ser “primitivo” ou “mal feito” segundo estes critérios eru- Em consequência, a compreensão de seu signiicado de-
ditos – e vimos na frase anterior o que é desconsiderado. verá, necessariamente, passar pela discussão de tais con-
Na medida em que os musicólogos voltados ao repertório frontos, sujeitos e categorias. Como todos estes elementos
dito erudito entendem por “música popular” de interes- estão sempre em movimento, diicilmente o termo “mú-
se apenas aquelas músicas que apresentam “soisticada” sica popular” indicará um conjunto fechado de músicas e
organização – segundo os critérios eruditos, derivados de suas características, que seja válido em todo tempo e lugar.
matrizes europeias –, estes musicólogos tendem a acredi- Portanto, não se pode deinir música popular por meio das
tar que os métodos desenvolvidos para a música erudita características idealizadas pelos românticos do século XVIII
são pertinentes para a análise de toda a música popular. – origem rural, tradição oral, autoria coletiva, “espontanei-
dade”, “autenticidade”, e assim por diante. Também não se
Para referendar esta visão que reprime a especiicidade pode fazê-lo atribuindo-se ao popular supostas qualida-
do popular, invoca-se a noção, frequentemente mencio- des inerentes de “resistência”. Nem tampouco por meio de
nada, de que “a música popular não é uma área, é um categorias como “manipulação”, “imposição” ou “colonia-
objeto”. Os problemas decorrentes deste equívoco são lismo cultural”. O “popular”, segundo esta concepção, não
inúmeros: a perda da especiicidade da música popular e é uma coisa, um produto, um artefato, mas um terreno
de suas contribuições (as experimentações sobre o tim- onde múltiplos vetores de forças se encontram e colidem,
bre, a microtonalidade, as inlexões rítmicas mínimas, as transformando-se continuamente. Segundo Stuart Hall,
métricas não-europeias, e diferentes modelos de escuta,
por exemplo), a carência de ferramentas analíticas para [a] cultura popular não é nem, em um sentido “puro”, as tradições
populares de resistência . . . nem são as formas que são impostas
lidar com esta especiicidade, a aplicação forçada de pa- sobre e a elas. É o terreno no qual as transformações são operadas.
râmetros estéticos da música de concerto de origem eu- (HALL, 1981, p.228)
ropeia ao popular, e o recalcamento e desvalorização de
um número enorme de gêneros, músicas e pessoas que Assim, a busca da pureza de uma deinição rigorosa equi-
resistem a este leito procustiano. valeria igualmente à puriicação da própria música, reti-
rando-a do cenário histórico especíico onde ocorrem sua
Portanto, na situação brasileira atual, é sensível a neces- elaboração e seus confrontos, sempre e a cada vez, o que
sidade de estabelecer um entendimento sólido com rela- resultaria em seu empobrecimento e reiicação.

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O fato de que todos os sentidos são social e histo- erudita (de origem europeia). Esta visão é claramente ex-
ricamente marcados (o que uma pessoa defende ser pressa no famoso Ensaio.
popular pode ser contestado por outra pessoa ou outro
tempo) ressalta a constatação de que o uso do termo Uma arte nacional já está feita na inconsciencia do povo. O artis-
ta tem só que dar pros elementos já existentes uma transposição
“música popular” nunca será desinteressado, portanto erudita que faça da música popular, música artistica, isto é: ime-
“objetivo”. Este nome será usado de maneira diferente diatamente desinteressada. (ANDRADE, s.d., p.16)
dependendo da pessoa que o proferiu, em cada mo-
mento, em cada local; e seu caráter e características Assim, a música folclórica é guindada à condição de de-
serão deinidos e construídos com referência a seus tentora da essência nacional. No outro pólo da dicoto-
outros in absentia, notadamente a música erudita e a mia, a música “popularesca” (como ele se referia à música
música tradicional. Adota-se aqui, então, uma outra popular-comercial, como vimos), eivada de internaciona-
maneira de compreender a música popular em seu di- lismos, não conduziria à efetivação de sua utopia, seu
namismo: através de suas relações. projeto teleológico de superação do atraso tecnológico
brasileiro rumo ao progresso, mas sem perda da “essência”.
Uma deinição altamente inluente do termo “música po- Só o que poderia realizar esta condução adequadamen-
pular” como música rural, e que perdura de certo modo te, da “música interessada” dos festejos, rituais religiosos
até hoje, foi dada por Mário de Andrade. Estando muito e cantos de trabalho para a “música desinteressada” do
bem informado sobre as técnicas e a história da música puro deleite estético seria a música erudita.
e da literatura eruditas, Mário interessou-se também, de
maneira especial, pela música tradicional rural. Isto ica Temos assim, em Mário, uma clara hierarquia: a “músi-
evidenciado na síntese de sua contribuição proposta pelo ca popular” (tradicional) detém o “caráter nacional”, mas
etnomusicólogo Gérard Béhague. é, em si, insuiciente; é preciso conclamar as normas do
mundo desenvolvido – a música erudita – para poder
Seu ensaio sobre música brasileira (ANDRADE, s.d.) foi o primei-
ro intento perceptivo de delinear e analisar os vários elementos
fazer dela música “artística”. Já a música “popularesca”
sonoro-estruturais da música folclórica brasileira. Sua concep- seria de escasso interesse, se algum. Vemos aí uma de-
ção de música era dinâmica, em oposição às visões prevalen- inição, como foi dito, altamente inluente e duradoura
tes em sua época. Em seus estudos de música luso-brasileira, de música “popularesca”, que é – continua sendo – um
afro-brasileira e, em menor grau, música indígena brasileira, ele
concebia a dinâmica musical como multidirecional. Seus estudos
real obstáculo para o desenvolvimento da musicologia da
de danças dramáticas, que ele denominou bailados . . . e “música música popular no Brasil. As críticas, ubíquas ainda hoje,
de feitiçaria” . . . permanecem sendo os mais estimulantes da contra as supostas “dominação cultural” estadunidense e
literatura etnomusicológica brasileira porque, com seu estilo de “manipulação” da indústria cultural são, em grande parte,
prosa único, conseguiu combinar questões socioculturais e mu-
sicais. Andrade considerou a base etnográica e a justiicativa de
devedoras daquela deinição (sendo que a noção de “ma-
contextos de performance musical, o que o tornou um verdadeiro nipulação” recebe, também, reforço considerável por par-
etnomusicólogo em conceito, senão em método, propriamente. te do pensamento adorniano). Ambas as críticas são, já há
(BÉHAGUE, 1993, p.483-484) vários anos, problematizadas pelos popular music studies
por meio de aprofundadas relexões teóricas e empíricas
Não seria possível fazer, aqui, justiça ao inestimável le- (algumas das quais a ser mencionadas no decorrer deste
gado do polígrafo. Busca-se, apenas, indicar um dos mais ensaio), razão pela qual tais discussões não podem pres-
poderosos vetores que conluíram para a consolidação de cindir deste aporte.
um dos sentidos preferenciais da ideia de música popular.
Com certeza uma tal concisão, em se tratando de igura Como foi dito, a concisão inescapável desta referência a
de tão vasta, complexa e multifacetada obra, é problemá- Mário impede que se investigue a complexidade de seu
tica – mas, aqui, inescapável. pensamento com relação à música popular. Pode-se, con-
tudo, indicar esta complexidade por meio de alguns frag-
Para Mário, como foi dito, o termo “música popular” se mentos, como o seguinte, em que Mário declara que se
referia às músicas das comunidades rurais tradicionais, podem encontrar núcleos de música popular mesmo nas
e ele o opunha à “música popularesca”, urbana e media- maiores cidades do país.
tizada, exatamente aquela que, hoje, é mais geralmente
compreendida como “música popular”. A maneira pela Nas regiões mais ricas do Brasil, qualquer cidadinha do fundo ser-
tão possui água encanada, esgotos, luz elétrica e rádio. Mas por
qual Mário entendia a “música popular” (tradicional) es- outro lado, nas maiores cidades do país, no Rio de Janeiro, no
tava imbricada em seu projeto político nacional e inter- Recife, em Belém, apesar de todo o progresso, internacionalismo
nacional. Ela teria responsabilidades no processo que, em e cultura, encontram-se núcleos legítimos de música popular em
sua visão, levaria o país do atraso à equiparação com os que a inluência deletéria do urbanismo não penetra. A mais im-
portante das razões dêsse fenômeno está na interpenetração do
países “desenvolvidos”. rural e do urbano. . . . [Quase] todas as cidades brasileiras estão
Esta preocupação com o campo folclórico – que detinha, em contato direto e imediato com a zona rural. . . . Por tudo isso,
em sua visão, a identidade nacional – foi mobilizada por não se deverá desprezar a documentação urbana. Manifestações
força do ideal utópico de Mário: a condução progressiva há, e muito características, de música popular brasileira, que
são especiicamente urbanas, como o Chôro e a Modinha. Será
do “povo brasileiro” de um estado de atraso tecnológico preciso apenas ao estudioso discernir no folclore urbano, o que
até a superação deste, e que seria presidida pela música é virtualmente autóctone, o que é tradicionalmente nacional, o

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que é essencialmente popular, enim, do que é popularesco, feito baseados em departamentos de História, Literatura ou Política), e
à feição do popular, ou inluenciado pelas modas internacionais. virtualmente não haja revistas cientíicas brasileiras especializa-
(ANDRADE, s.d., p.166-167) das em estudos de música popular. (STROUD, 2008, p.186)

Esta mesma linha é seguida em Música, Doce Música, Corroborando o que diz Stroud, em outros campos aca-
quando Mário explica que dêmicos que não o da música, a música popular brasilei-
ra goza de apreciável prestígio, não sendo incomum que
[o] verdadeiro samba que desce dos morros cariocas, como o ver-
dadeiro maracatu que ainda se conserva em certas nações do Re-
destacados proissionais desses outros campos tenham
cife, esses, mesmo quando não sejam propriamente lindíssimos, produzido importantes contribuições para a área em
guardam sempre, a meu ver, um valor folclórico incontestável. questão. Podem-se citar historiadores (CONTIER,1985,
Mesmo quando não sejam tradicionais e apesar de serem urbanos. 1986, 1991 e 1998; NAPOLITANO, 1999, 2001, 2003), crí-
(ANDRADE, 1976, p.280)
ticos literários (BRITO, 1972; CAMPOS, 1993; FAVARETTO,
1979; GALVÃO, 1968; MATOS, 1982; PERRONE, 1988;
No Macunaíma, Mário faz seu herói procurar, sem pre- SANT’ANNA, 1986; SANTIAGO, 1977, 2000; SCHWARZ,
conceitos, o terreiro de Tia Ciata – em cuja casa teria 1970; VASCONCELLOS, 1977; WISNIK, s.d., 1982, 2004),
nascido, segundo consta, aquele que é considerado o sociólogos (NAVES, 1998); linguistas (TATIT, 1986, 1994,
primeiro samba urbano carioca gravado, Pelo telefone. 1996, 1997, 2001); antropólogos (VIANNA, 1988, 1995);
Sem ser, de fato, merecedor desse pioneirismo, Pelo te- e semioticistas (SANTAELLA, 1984), entre outros.
lefone foi, entretanto, fundamental do ponto de vista
das transformações que operou no mercado (CABRAL, Além disso, o trabalho desses pesquisadores tem a vir-
1996, p.32-33). Além disso, os frequentadores assídu- tude de articular a música a contextos sociais, culturais
os da casa de Tia Ciata incluíam virtualmente todos os e históricos, produzindo interessantes comentários so-
sambistas cariocas dessa época comprometidos com o bre diversos aspectos da sociedade e cultura brasilei-
mercado de massas. No Macunaíma há ainda referên- ras obtidos ao se fazer falar a música. Ao contrário, as
cia a Pixinguinha, artista da maior importância para o discussões sobre música popular no âmbito dos cursos
mercado discográico e a nascente cultura de massas no universitários de música estão voltadas, prioritariamen-
Brasil (MUSEU DA IMAGEM E DO SOM, 1970). Sabe-se te, à técnica musical, e nisto parecem não se diferenciar
também que Pixinguinha foi parceiro, colaborador, co- do que ocorre no restante do mundo ocidental1. Nestes
lega e/ou amigo de boa parte dos sambistas cariocas cursos busca-se, preferencialmente, analisar a música
daquele tempo, também intimamente envolvidos com popular com vistas ao domínio técnico dos recursos,
os mass media, como Donga, João da Baiana e muitos sejam de execução vocal ou instrumental, sejam de
outros. Finalmente, há o trecho inal de “Macumba”, em composição, harmonização, improvisação ou arranjo. É
Macunaíma, que reunia no terreiro de Tia Ciata “ad- incipiente ainda – com exceções dignas de menção (ver,
vogados taifeiros curandeiros poetas o herói, gatunos, por exemplo, ARAÚJO, 1987, 1992, 1999, 2000; CARVA-
portugas, senadores” (ANDRADE, 1978, p.56) – ou seja, LHO, 1991) – a produção musicológica que visa articular
uma alegoria da sociedade brasileira como um todo. elementos propriamente musicais a questões culturais e
Aqui o narrador faz uma defesa do samba urbano. sociais da música popular, preferencialmente de manei-
ra crítica e problematizadora.
E para acabar todos izeram a festa juntos comendo bom presun-
to e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes
se alegraram com muitas pândegas liberdosas. (ANDRADE, 1978,
Mais uma vez, isso é decorrência de escolhas teórico-
p.63, grifo meu) metodológicas que são, por sua vez, decorrências de
deinições: se entendermos música popular como puro
Apesar dessas e de outras evidências, no entanto, nem fato musical, deixamos de vê-la como possibilidade de
sempre a dialética do pensamento andradiano foi consi- iluminar aspectos da vida social e cultural mais ampla,
derada por seus seguidores, resultando em uma visão da de acordo, por exemplo, com conceitos como o de “fato
“música popularesca”, no mínimo, pouco favorável. social total” e de “jogo absorvente”.2
Esta parece ser, talvez, uma das importantes razões para
o desprestígio da música popular (tal como a entendemos Sem pretender questionar a validade de análises da músi-
hoje, com todas as suas contradições – não apenas a mú- ca popular voltadas exclusivamente à pedagogia técnica,
sica “soisticada” como a de um Tom Jobim, mas também nos cursos universitários de música, argumenta-se aqui
a música “brega” como a de um Lindomar Castilho, além em favor de uma adição, um alargamento dos interesses
de muitas outras) no espaço institucional acadêmico bra- musicológicos institucionais com relação a essa música.
sileiro da música. Esta preocupação é explicitada pelo Esta ampliação da abrangência do enfoque investigativo
musicólogo Sean Stroud, indicando, no estranhamento musicológico nos cursos universitários brasileiros, neces-
de seu olhar estrangeiro, a visível contradição entre a so- sariamente inter- ou transdisciplinar, procuraria compre-
ciedade e a academia neste país. ender os elementos musicais singulares da música popular
e correlacioná-los a questões culturais, sociais e históricas
. . . [É] realmente paradoxal que, em uma nação que parece tanto
valorizar a música popular, não haja departamentos dedicados a
mais amplas. A musicologia institucionalizada ocuparia,
estudos de música popular em universidades brasileiras (os poucos assim, um espaço que é seu, um espaço que não foi coberto
acadêmicos brasileiros que trabalham no campo estão, em geral, consistentemente pelos acadêmicos de outras disciplinas

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devido à complexidade e especiicidade de manipulação Pistols sejam “acessíveis”, que a obra de Frank Zappa seja
do instrumental musicológico. Além disso, a formação de “simples” ou que a de Billie Holiday seja “fácil”.
quadros competentes nesta área apenas poderia se dar no
âmbito do ensino universitário e de pós-graduação, com A terceira deinição é uma crença derivada do conceito
sua demanda de rigor e integração multidisciplinar. marxista de determinação da superestrutura pela infra-
estrutura, conceito superado entre os marxistas de linha
É sempre bom lembrar, também, que o estudo cultural da gramsciana, entre outros (para eles, haveria uma relativa
música popular é eminentemente crítico, e, embora a contri- autonomia da cultura com relação à economia. Esta de-
buição que possa fornecer à compreensão da música, socie- inição falharia por que o campo musical não poderia ser
dade e cultura brasileiras seja potencialmente inestimável, reduzido à estrutura de classes, ou seja, os tipos de músi-
diicilmente poderá ser implementado se deixado na depen- cas e as práticas musicais nunca são propriedade privada
dência do mercado e do leitor leigo. Os títulos não acadê- de um contexto social particular. A mobilidade social e a
micos sobre música popular atestam uma preferência por luidez interclasses, além do caráter cada vez mais indi-
abordagens meramente descritivas, factuais, jornalísticas, ferenciado da difusão midiática e dos mercados culturais,
raramente analíticas e interpretativas. Isso é corroborado tornariam isso óbvio hoje. No entanto, mesmo no século
pela etnomusicóloga Suzel Ann Reilly a propósito de uma 19 as músicas burguesas eram apreciadas por trabalha-
das séries editoriais mais ambiciosas dedicadas à música po- dores, a música erudita sendo executada por bandas e em
pular, Ouvido Musical/Todos os Cantos (Editora 34). desiles. Ao mesmo tempo, a chamada “música folclórica”
era objeto de disputa entre “camponeses”, operários da
Se bem que em seu conjunto estas publicações sejam muito deta- indústria, escritores e artesões da pequena burguesia e
lhadas, a maioria dos autores da série são jornalistas e seus inte- colecionadores das classes altas (MIDDLETON, 1997, p.4).
resses giram mais em torno da documentação meticulosa do que
em redor do debate teórico. (REILLY, 2003, p.20)
Para ser válida, a quarta deinição haveria que compro-
var: 1) que os modos de difusão em massa (inicialmente
2. Deinições: delimitando um campo de impressos, a seguir eletromecânicos e eletrônicos) teriam
estudos afetado apenas a música popular, tornando-a mercadoria,
Segundo BIRRER (1983, p.104), há quatro tipos de deini- o que não se veriica (hoje as gravações de música erudita
ções para música popular, e que podem ocorrer de manei- e tradicional são vendidas em bancas de jornal e disse-
ra pura ou combinada: minadas pelo rádio e outros media, tornando a deinição
ineicaz); e 2) que a música popular estaria excluída da
1. Deinições normativas: Presume-se, de maneira disseminação por métodos face a face (por exemplo, con-
apriorística, que a música popular seja uma expressão certos, música de “barzinho”) e estaria indissoluvelmente
cultural inferior; agrilhoada à sua condição de mercadoria, impossibilitada
2. Deinições negativas: Música popular é a música que de propagar-se gratuitamente e de ser fruto de produção
não é de outro tipo (geralmente música “erudita” ou “fol- coletiva. Ao contrário, a música popular circula maciça-
clórica”); mente em ambientes que celebram exclusivamente seu
3. Deinições sociológicas: Música popular é aquela as- valor de uso (em detrimento de seu valor de troca): gru-
sociada com (produzida por ou para) um grupo ou classe pos de amadores, festas particulares e cultos religiosos
social particular; podem ser citados, entre muitos outros.
4. Deinições tecnológico-econômicas: Música popular é
aquela disseminada por meios de comunicação de massa Middleton comenta também algumas das combinações
e/ou em um mercado massiicado.3 destas deinições, encontradas tanto no senso comum
como em abordagens acadêmicas. Não seria ocioso res-
Marcadamente ideológicas e essencialistas, nenhuma des- saltar, mais uma vez, a inter-relação entre deinição, teo-
sas deinições poderia comunicar rigorosamente o sentido ria e método, evidente no exame destas sínteses.
do termo “música popular”. É visível a arbitrariedade da
primeira. Quanto à segunda, embora se possa concordar A primeira seria a positivista, que se concentra no aspec-
que a música popular não seja o mesmo que música eru- to quantitativo do “popular”. Como ilustração deste enfo-
dita ou folclórica, suas margens são luidas, pois as três que, Middleton oferece o exemplo do musicólogo Char-
músicas partilham seus elementos entre si. Para MIDDLE- les Hamm, que propõe “a lidar com as peças que sejam
TON (1997, p.4), há também arbitrariedade na deinição demonstravelmente os itens mais populares da ‘música
da natureza de cada tipo de música: em geral, parte-se do popular’, com os itens mais largamente disseminados da
princípio de que a música erudita seja exigente, comple- música disseminada nos mass media” (HAMM apud MI-
xa, difícil. Por oposição, a música popular seria entendida DDLETON, 1997, p.5). A síntese positivista, portanto, de-
como “acessível”, “simples”, “fácil”. No entanto, muitas rivaria da categoria 4, mas também, em alguma medida,
peças comumente compreendidas como eruditas (o coro das categorias 2 e 3.
“Aleluia” de Handel, muitas canções de Schubert, mui-
tas árias de Verdi) possuem qualidades de simplicidade. A segunda síntese é denominada por Middleton de es-
Da mesma maneira, não parece que as gravações dos Sex sencialismo sociológico. Aqui, a “essência” do popular

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é tida como constante; no entanto, há marcada varia- sitivista. Isto seria problemático porque os jovens des-
ção, de acordo com a ideologia do observador: ou esta pendem uma quantidade desproporcionalmente grande
“essência” é proferida de cima ou engendrada de baixo. de sua receita em mercadorias para o lazer, como CDs.
Ou “o povo” é considerado um ingênuo manipulado, ou Isso levaria a negligenciar grupos de faixas etárias mais
um sujeito histórico progressista e ativo (ver TINHORÃO, avançadas que podem usar músicas diferentes, e de
1972, 1974, 1999). Esta síntese derivaria da categoria maneiras diferentes. O musicólogo aponta ainda como
3 mas também, de certa maneira, das categorias 1 e 4 falhas dessa síntese: o foco no “momento de troca”, em
(MIDDLETON, 1997, p.5). oposição ao “momento de uso” (por exemplo, dissemi-
nação através da audição ao rádio, música de fundo,
A “objetividade” prometida pelo enfoque positivista cedo performance ao vivo e circulação gratuita entre ami-
se revela uma ilusão, evidenciando que esta abordagem gos de gravações feitas em casa); similarmente, práti-
não é menos livre da ideologia que qualquer outra. Vol- cas musicais não centradas na forma mercadoria são
tando-se à mensuração do mercado, deixa escapar tudo ignoradas; e a tendência a padronizar diferentes escalas
o que não se conforma a estes parâmetros e práticas – temporais (um álbum pode vender um milhão de cópias
ignorando a extremamente intensa atividade musical que em uma semana, mas outro pode fazer o mesmo no de-
transita por outros circuitos. Citado por Middleton, o et- correr de alguns anos). A consequência é a reiicação da
nomusicólogo Charles Keil explicita estas outras práticas música popular. Canções são tratadas meramente como
silenciadas pelo método positivista na resenha em que objetos, e seu papel na cultura é negligenciado. A dei-
critica o livro de Hamm, descrevendo-o como nição positivista não poderia, então, informar o sentido
. . . um reportar contínuo de nomes, datas, títulos de canções,
do termo “música popular”, pois tal sentido, repleto por
exemplos musicais de uma procissão de canções em forma merca- múltiplas camadas de ideologia, não é o foco da inves-
doria que começaram . . . em 1789. O autor exclui excessivas ten- tigação, que são os dados em si próprios.
sões dialéticas do livro desde o início: nenhuma música de igreja
será considerada; também não é permitida nenhuma preocupação
com aqueles estadunidenses que não podiam adquirir partituras e
Por sua vez, os métodos e deinições essencialistas parti-
um piano; e não há lugar para música primariamente instrumental riam de premissas qualitativas, não quantitativas. A es-
como marchas, ragtime, jazz ou polca até 1950. Deixar de fora sência seria formulada pela elite (“de cima”) e transmiti-
cristãos estadunidenses brancos e negros é deixar muita coisa de da para as classes populares (“para baixo”) ou o inverso. O
fora. Deixar de fora pessoas pobres e operários não parece correto.
(KEIL apud MIDDLETON, 1997, p.5)
primeiro caso empregaria conceitos como “manipulação”
e “padronização”, e o popular seria aproximadamente
Mesmo tomando a abordagem positivista em seus pró- equivalente a “massiicado” ou “comercial”. Já no segun-
prios termos de referência, não se encontra consistência. do caso, os conceitos operativos seriam “autenticidade” e
A coniabilidade de números de vendagem de CDs e esta- “espontaneidade”, e “popular” signiicaria “do povo”.
tísticas de execução em rádio é notoriamente suspeita. A
metodologia de contagem não é divulgada pela indústria Em ambas as situações, a riqueza potencialmente ofe-
e os números estão sujeitos a manipulação. A execução recida pelo exame da cada caso especíico é perdida em
nas rádios e TVs é, muitas vezes, dependente do pagamen- função de esquemas generalizantes e apriorísticos. Os
to de verbas extras às emissoras e/ou a seus funcionários exames de casos especíicos evidenciam que não existe
ou agenciadores pelas gravadoras (o chamado jabá; nos esta abstração de um “popular” em estado puro – que
EUA, payola; ver, por exemplo, SILVA, 2007, que analisa a música folclórica brasileira, com exceção da música in-
chamada Lei Anti-Jabá, e, nos EUA, COASE, 1979). dígena tradicional, se assim considerada, poderia se dizer
totalmente independente da música europeia introduzi-
Além disso, pouca atenção é dada ao comportamento de da por portugueses e outros? Evidenciam também que a
setores especíicos que podem contradizer o que ocor- presença de elementos da “alta cultura” ou de culturas
re nos segmentos mais massiicados. Um exemplo deste estrangeiras nas culturas populares diicilmente se colo-
caso foi a situação estudada pelo antropólogo Herma- ca em termos de “manipulação” ou “massiicação”, sendo
no VIANNA (1983) no universo do funk carioca. Segundo mais adequadamente investigada como produto de apro-
Vianna, este gênero se desenvolveu a partir da iniciativa priação ativa, transformação e incorporação por parte
de equipes de som que promoviam bailes de subúrbio no das classes populares de algo que passa a lhe pertencer
Rio de Janeiro utilizando discos comprados pessoalmen- de fato e direito – a exemplo da harmonia no samba, no
te, de um em um, nos EUA, e mantidos em segredo dos cururu, na moda de viola e em muitas outras músicas
concorrentes. Logo, trata-se de um fato social e cultural tradicionais. É um processo eminentemente contraditó-
da maior importância que, no entanto, seria insigniican- rio, em que todas as faixas de cultura (inclusive as várias
te, naquele momento, do ponto de vista mercadológico. culturas populares) se reorganizam continuamente, esta-
Misturadas às avassaladoras iguras do mercado mais co- belecendo relações de poder entre si.
mercial, experiências interessantes como essa, em merca-
dos segmentados, se diluem e se perdem. Neste sentido é fundamental e suiciente consultar o que
escreveram os mais destacados pesquisadores da cultura
Middleton lembra também a tendência de se privilegiar popular na Idade Média, Renascimento e Idade Moderna
a categoria do “jovem” no âmbito da metodologia po- (ver, por exemplo, BAKHTIN, 1993 e BURKE, 1989). A cultu-

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ra popular (desde pelo menos estes períodos), além de dei- plo, TAGG, 1982; SHEPHERD, 1982; MIDDLETON, 1997 e
nir-se pela heterogeneidade, se caracterizou pela mistura e 2000; MCCLARY e WALSER, 1990).
permeabilidade com relação ao que seria hoje denominado
“estrangeiro” ou “das classes dominantes”, com o luxo de Entre estes problemas, pode-se mencionar o jargão téc-
informações seguindo nos dois sentidos. É nesta direção nico inapropriado ou ideológico. A referência, na citação
que Middleton conclui sua crítica aos esquemas essencia- acima, a “clusteres pandiatônicos”, associa a música dos
listas que vão “de cima para baixo” e “de baixo para cima”. Beatles à de Stravinsky, mas não se veriica, na verdade,
uma identidade de propósito, natureza ou função da téc-
Em ambos os casos, o problema é que processos culturais con- nica em uma e outra música. A qualiicação de “primitiva”
cretos, localizados historicamente de maneira especíica, são é ideológica por assumir que a música popular seja regida
reduzidos a esquemas abstratos. Ignoram-se contradições no in- pelos critérios de inovação e complexidade harmônica da
terior do processo produtivo. Os consumidores são vistos como
receptores passivos, pelos teóricos da cultura de massas, ou como música erudita, quando seus critérios são outros.
uma classe inerentemente oposicional, por ultra-esquerdistas em
busca de um puro proletarianismo. Mas, na prática, nem a música Uma diiculdade especíica da musicologia tradicional
popular, de qualquer modo que seja compreendida, nem seus Ou- para lidar com a música popular diz respeito à valoriza-
tros – “canção folclórica”, “música tradicional”, “música erudita”,
“música burguesa”, ou o que quer que seja – caminham no palco ção desigual de elementos básicos, decorrente do desen-
histórico nesta forma não-contaminada. (MIDDLETON, 1997, p.6) volvimento histórico contrastante entre música popular
e erudita. A música popular favoreceu historicamente o
O que isso importa, em termos de premissa, deinição, aspecto corporal (a dança, o movimento físico) e social (a
teoria e metodologia de estudo da música popular, é, de experiência coletiva, a conexão da música ao aqui e agora
acordo com MIDDLETON (1997, p.6), que a “música popu- dos acontecimentos e práticas sociais, como o trabalho e
lar” (ou o nome que se desejar) apenas pode ser pensada as críticas a ele, o ritual religioso e a festa). Ao contrário,
no contexto da totalidade do campo musical (estenden- a música erudita (na tradição que remonta ao domínio da
do-se para o passado, em diálogo com a “música erudita” Igreja, no período medieval) tomou para seu modelo os
e com a “música folclórica”, e também para o futuro), e trabalhos de Pitágoras e Boécio, privilegiando o acesso à
este campo nunca permanece estático, está sempre em música através da contemplação de relações numéricas,
movimento. Se os sentidos do termo “música popular” se com a abstração dos contextos corporal e sócio-histórico.
constroem continuamente em relação com seus outros
musicais, de acordo com cada sociedade em questão, o Mais tarde, com a ascensão da burguesia no século XIX,
termo é situado socialmente. Mas como os sentidos se de sua ideologia da satisfação postergada e do controle
modiicam numa mesma sociedade, em diferentes perío- dos apelos corporais em nome da racionalidade, sendo
dos históricos, o termo é também situado historicamente. informada pelo idealismo alemão, surge a musicologia
como disciplina orientada para uma música transcen-
3. Teoria e metodologia: lidando com a dente e autônoma, “desinteressada” como havia proposto
KANT (2000). Seu valor não seria o de meramente propor-
singularidade da música popular cionar prazer corporal ou interação social, mas acesso à
Muito do estudo musicológico da música popular no
verdade por meio de sua soisticação cognitiva. Pode-se
mundo anglo-saxônico, em seus primórdios, buscou seus
tomar como comprovação desta airmação um dos im-
métodos na musicologia tradicional. Musicólogos erudi-
portantes formuladores da estética musical erudita no
tos provavelmente sentir-se-ão à vontade com a leitura
século XIX, Eduard Hanslick.
de trechos como o seguinte, escrito por William Mann na
aurora do fenômeno representado pelos Beatles.
Para Hanslick, o conteúdo da música não deveria ser bus-
. . . [A] canção lenta e triste sobre This Boy, que igura proeminen- cado na emoção (ele ataca especiicamente a chamada
temente nas apresentações dos Beatles, é expressivamente inco- “estética da emoção”, então em voga), mas na própria
mum por sua música lúgubre, mas harmonicamente é uma de suas forma, concebida como espírito e essência.
mais intrigantes, com suas cadeias de clusteres pandiatônicos, e
o sentimento é aceitável porque vocalizado de maneira clara e A partir disso, a preeminência que o conteúdo ideal assume em
bem deinida. Mas o interesse harmônico é típico de suas canções música com respeito às categorias de forma e conteúdo se tor-
mais rápidas, também, e ica-se com a impressão de que eles pen- na aparente. Evidentemente, as pessoas costumavam considerar
sam simultaneamente a harmonia e a melodia, tão irmemente que um sentimento a lutuar através de uma peça musical era
são construídos em suas canções os acordes maiores de tônica o sujeito, a Ideia, o conteúdo intelectual, e, por outro lado, as
com sétimas e nonas, e as inclinações para o tom da submediante sequências tonais bem deinidas e artisticamente criadas eram
bemol, tão natural é a cadência eólia ao inal de Not A Second consideradas a mera forma, a imagem, a vestimenta sensual da
Time (a progressão de acordes que inaliza a Canção da Terra, de concepção supersensual. Entretanto, a parte “especiicamente
Mahler). . . . Pode também ser signiicativo que a canção de George musical” é precisamente a criação do espírito artístico, com o qual
Harrison Don’t Bother Me seja um bocado mais primitiva, harmo- o espírito contemplativo se une em completo entendimento. O
nicamente . . . (MANN, 1963, não paginado) conteúdo ideal da composição está nestas estruturas tonais con-
cretas, não na vaga impressão geral de um sentimento abstrato. A
Os problemas da aplicação dos métodos de análise estru- forma (como estrutura tonal), em oposição ao sentimento (como
suposto conteúdo), é precisamente o conteúdo real da música, é
tural desenvolvidos para a música erudita, contudo, logo
a música em si, enquanto o sentimento produzido não pode ser
se izeram notar, e foram discutidos por vários musicó- nem conteúdo nem forma, mas efeito real. Da mesma maneira, o
logos especializados em música popular (ver, por exem- suposto material, aquilo-que-representa, é precisamente o que é

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estruturado pela mente, enquanto o que é supostamente aquilo-


que-é-representado, ou seja, a impressão do sentimento, é ineren-
contextos, contrastam com a visão expressa acima por
te ao substrato físico dos sons e em grande parte conformado a Hanslick. Em especial quando este busca reduzir o sentido
leis isiológicas. (HANSLICK, 1986, p.60) a efeitos da estutura musical ou a leis isiológicas.

Esta longa citação é extremamente importante por con- Como consequência da preocupação primordial com a for-
densar algumas premissas cruciais da musicologia erudita ma e a estrutura, surge, na musicologia tradicional, uma
tradicional, que entram em conlito inconciliável com a ênfase na partitura que foi denominada por Philip Tagg
análise da música popular. de “notaciocentrismo” (notational centricity, TAGG, 1979,
p.28-32). A tradição da notação musical na sociedade oci-
Primeiramente, se o conteúdo da música não está na dental surgiu em conexão com as funções litúrgicas da
emoção, por implicação não se encontra também nos música nos primórdios da igreja cristã. Tal como a palavra
âmbitos corporal e social4. Como se viu, para Hanslick, o de Deus, a música dedicada a seu serviço deveria igual-
conteúdo da música estaria na própria forma, concebida mente ser imutável. Para isso foi desenvolvido um siste-
como espírito e essência. Esta compreensão é reforçada ma de armazenamento que fosse coniável, em oposição
por DAHLHAUS (1995, p.52), para quem Hanslick entende às vicissitudes da tradição oral. Mesmo considerando os
que “forma” é um análogo da “ideia musical”, “um conceito diferentes graus de observação da partitura de música eru-
puramente e completamente presente em sua realidade”. dita (mais literal ou menos), dependendo do período his-
Como consequências imediatas da priorização da noção tórico, é forçoso concordar que este foi o único meio de
de forma, a musicologia possui alto reinamento para lidar armazenamento dessa música por mais de um milênio. Já
com a própria forma, além de alturas e harmonias, pouco a música popular não foi concebida nem para ser armaze-
reinamento para lidar com ritmos e é pouco eiciente para nada, nem para ser comercializada sob esta forma (tanto
lidar com timbres. Em contraste, a música popular coloca a representação de música popular por meio de notação
ênfase no som concreto (timbre, tratamento eletroacústi- gráica quanto a comercialização de partituras são pou-
co, processamento tecnológico do som, ornamentação), no co representativas quando comparadas à representação e
ritmo e em variações microtonais, não devotando especial comercialização na forma de áudio em diversos suportes).
interesse a arquiteturas soisticadas da forma.
Com isso surge o problema de que muitos parâmetros
Em segundo lugar, explicita-se na citação acima, de Hans- expressivos importantes na música popular não podem
lick, uma estética abstracionista, o que vai de encontro à ser representados adequadamente usando partituras.
fruição popular. Esta busca nos sons características que ex- Como descrever aí múltiplas e dinâmicas regulagens de
pressem seus estados emocionais, e que simultaneamente captação de som (tipos de microfones, tipos de posi-
sejam coadjuvantes na expressão corporal destes estados, cionamento deles, tipos de superfícies reletoras ou ab-
tudo isso variando segundo os diferentes contextos so- sorventes, etc.), processamento de som (reverb, langer,
ciais. Se a escuta ideal da música erudita é distanciada, phaser, equalização, etc.), timbres (de sintetizadores, de
corporalmente inerte, imersa no silêncio e contemplação samplers, de guitarras e outros instrumentos eletroa-
da sala de concerto ou do lar burguês, a música popular cústicos, de ampliicadores, etc.)?
é ouvida em uma multiplicidade de situações, indicando
diferentes modelos de escuta. Estas situações podem in- Evidentemente, esta centralidade da partitura na cultura
cluir uma festa em que se dança, se come e se conversa, erudita evidencia a premissa de que há uma hierarquia
um jogo de futebol em que uma batucada contribui para a entre a obra, tida como essencial e detentora de valor de
empolgação, uma situação em que a introversão se mistura culto, e a performance, colocada no plano das meras apa-
ao desempenho de funções no mundo exterior tal como rências (remetendo à metafísica). Ao contrário, a música
possibilitadas pelo walkman dos anos 80 e, modernamente, popular relativiza o papel fundacional do compositor e
pelo Ipod/MP3, e muitas outras. da obra ao permitir modiicações radicais desta (harmo-
nia, melodia, ritmo, gênero, letra) em cada situação de
Cada um destes contextos de escuta propicia diferentes performance. Relacionada à questão do contexto aludida
sentidos para a mesma música. A mesma bateria de esco- acima, uma performance popular estará, em grande parte
la de samba produzirá diferentes associações, represen- das vezes, incada em seu momento, seu tempo e espaço,
tações, sentimentos e ações se ouvida durante a compe- incorporando novos detalhes especiicamente musicais e/
tição anual no Sambódromo do Rio de Janeiro, num jogo ou modiicando a letra para comentar fatos da atualidade.
de futebol, no bar da quadra da escola durante um ensaio,
ou, gravada, no rádio do carro em meio ao trânsito, em Como decorrência do notaciocentrismo, a escuta é mo-
casa ou numa festa com amigos. nológica. A análise musical, tal como efetuada tradicio-
nalmente na música erudita, se prende à partitura e não
Esta importância da multiplicidade de contextos de es- à performance, como foi dito. Portanto, exclui de seus
cuta para a música popular, bem como a aceitação im- interesses a maneira como a obra é efetivamente expe-
plícita da multiplicidade de sentidos e emoções que se rimentada pelos diversos ouvintes, em suas diferentes
constroem a partir das diversas experiências corporais e versões e contextos, e favorece a noção de “arte” em
de interações com outros sujeitos permitidas por estes oposição à de “prática”.

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NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.

A leitura de uma partitura musical por um musicólogo ta ocidental e à maneira predominante de ouvi-la, sendo
envolve muitos anos de treinamento, e este tradicional- adequadamente representado pela notação convencional.
mente coloca grande ênfase na percepção da harmonia Já a ideia de “sentimento engendrado”, de Keil, refere-se
funcional. Logo, é lícito supor que, para a maior parte dos ao impulso que faz a música tornar-se viva, levando o ou-
musicólogos formados desta maneira, é extremamente vinte ao movimento, e que não pode ser captado por uma
difícil ouvir música sem fazer o baixo assumir um papel notação. Para Keil, não se trata de processos sintáticos,
central na condução da harmonia, e sem um padrão de mas do uso, por parte dos músicos, de microvariações rít-
expectativa harmônica tonal-funcional. Ambos podem micas em nível subsintático.
ser fundamentais para muita da música erudita conside-
rada mais importante, mas o mesmo não ocorre necessa- Esta distinção em termos de pertinência seria conirmada,
riamente na música popular, especialmente em músicas mais tarde, como extremamente relevante para a história
como dance, trance, house, soul, funk ou mesmo o rock. da constituição dos estudos de música popular. Recolo-
A respeito desse último, o musicólogo Alf Björnberg de- cando a questão em outra formulação inluente, Andrew
clara: “Em geral, pode-se argumentar que a harmonia é CHESTER (1970, p.75-82) propôs diferenciar a forma de
um parâmetro menos importante da expressão musical construção da música erudita como extensional. Isto é,
no rock do que, por exemplo, ritmo, melodia e timbre” como desenvolvimento sincrônico e diacrônico através
(BJÖRNBERG, 1985, não paginado). Susan McClary vai da combinação de partículas musicais básicas rumo a
ainda mais longe, ao criticar a cadência como represen- uma complexidade crescente nos dois sentidos. Diferen-
tação do poder patriarcal, valorizando, ao contrário, mú- temente, a construção da música popular seria intensio-
sicas que a evitam e produzem uma estrutura harmônica nal (termo em inglês relativo a intensividade, criado por
simples ou mesmo inexistente (MCCLARY, [1991] 2002). Chester): ao invés de combinar as unidades básicas rumo
a uma complexidade formal/estrutural, essa música atin-
Na discussão dos problemas da análise da música po- giria a complexidade em seus próprios termos, através da
pular, salienta-se a questão da pertinência. Por meio do modulação intensiva das frequências e inlexões rítmicas
conceito de pertinência, ao invés de reiicar “a música” destas unidades. No entanto, tais dinstinçoes não devem
e dela abstrair critérios ideais de análise e valoração, o ser vistas como mutuamente excludentes, mas de ma-
analista vê-se obrigado a especiicar de que música está neira variavelmente complementar, deinindo a diferença
falando, e sob que ponto de vista. Ainal, cada música que entre o popular e o erudito por meio de um critério de
seja signiicante para uma dada comunidade o é segundo grau (de predominância de cada processo), e não de na-
os critérios especíicos desta comunidade. tureza. Nesse sentido, a noção de pertinência passou a ser
importante para os estudos de música popular, como for-
Com relação ao ponto de vista, como vimos, a aplicação da ma de entender e analisar cada música em sua especii-
musicologia tradicional à música popular tem se concen- cidade, através do levantamento dos aspectos relevantes
trado nos interesses de produção (ou seja, de compositores, para os envolvidos na prática musical em questão.
intérpretes, arranjadores, etc.). Diferentemente, no âmbito
dos estudos de música popular, a ênfase está na crítica cul- Isto implica em um deslocamento da centralidade da
tural, e então o foco se desloca para o ouvinte. No entan- “obra” original e de sua representação gráica (não mais
to, esta oposição produtor versus ouvinte não é dicotômica vistas como “a música”), e do “autor” como instância fun-
mas dialética, visto que os papéis dos ouvintes, executantes dacional. O olhar se dirige à realidade complexa na qual
e mediadores muitas vezes se superpõem. As tecnologias se insere uma música hoje: impossível falar dos senti-
atuais contribuíram muito para isso, ao possibilitar que o dos de uma canção popular sem se remeter aos múltiplos
leigo produza suas próprias versões – remixes – de músicas discursos que a representam; aos vários tipos de media
lançadas comercialmente, através do uso de diferentes tipos que a veiculam; às tecnologias que os tornam possíveis;
de software amigáveis. Estas músicas são amplamente dis- entrevistas, merchandising, fotograias, promoções; ins-
seminadas pela internet, abolindo a igura do intermediário tituições; processos de produção; contextos de recepção;
e as determinações econômicas impostas por este. organização social; relações de poder; transformações
culturais; e assim por diante. Os sentidos constroem-se
Abordando as diferenças entre música erudita e popular, intertextualmente (KRISTEVA, 1974, p.340) pelo sujeito
o etnomusicólogo Charles KEIL (1966) produziu uma di- confrontado por todas estas instâncias.
ferenciação inluente que pode ser entendida como re-
lacionada ao que está se denominando aqui pertinência. Mesmo assim, este sujeito continua atribuindo o seu pra-
Discutindo o conceito de “sentido incorporado” (embodied zer aos sons musicais, aos efeitos por eles provocados em
meaning), de Leonard MEYER (1956), Keil propôs a noção seu corpo (individual e social). Em consequência, parece
de “sentimento engendrado” (engendered feeling). Segun- recomendável que os sons de cada canção, em sua espe-
do Meyer, os ouvintes criam o sentido de um luxo sonoro ciicidade, sejam valorizados pela análise, sob pena de se
relacionando um som a outro, construindo sequências que recair em uma generalização abstrata.
comunicam uma sensação de tensões e relaxamentos que
estariam “incorporados” nessas sequências. Este aspecto Portanto, reconhece-se tanto a natureza radicalmente
“narrativo” está intimamente associado à música erudi- interdisciplinar/ transdisciplinar dos estudos de música

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NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.

popular quanto a necessidade de atentar para a descri- simbolização, de maneira que nossa relação com a música
ção/ análise/ interpretação das estruturas musicais (de não pode ser inteiramente explicada por meio da conven-
superfície e profundas) em sua concretude, bem como cionalização de estruturas musicais pelo discurso verbal.
ao excesso que as transcende. Devido a isso, aqui serão Tampouco a música seria “inata” em nós. O que ocorre em
mencionados alguns exemplos que vêm demonstrando a um bebê prestes a ser inserido no mundo da signiicação é
multiplicidade de direções teóricas (com consequências uma complexa dialética entre estruturas biológicas e so-
metodológicas) que têm se mostrado capazes de efetivar ciais, que segmentam o contínuo dos sons experimenta-
aproximações plausíveis em relação a este objeto fugidio. do por ele, associando-o a diferentes sensações oriundas
tanto do corpo como da cultura. Isto é explicado, entre
Deve-se notar que algumas destas, como o feminismo, outros, pela psicanalista e linguista Julia Kristeva.
já foram mencionadas, neste caso por meio do trabalho
de Susan MCCLARY ([1991] 2002). Entre as importantes Obstruída pelas constrições das estruturas biológicas e sociais,
a carga pulsional sofre estases. A facilitação pulsional se ixa
contribuições do feminismo para os estudos de música provisoriamente e marca descontinuidades naquilo que se pode
popular igura a preocupação em desvelar as codiica- chamar de os diferentes suportes materiais suscetíveis de se-
ções do corpo culturalizado (a construção do gênero miotização – a voz, os gestos, as cores. As unidades e diferenças
sendo parte da cultura). Nisto se inclui a desmistiicação fônicas (mais tarde, fonêmicas), cinésicas ou cromáticas, são as
marcas de tais estases da pulsão. Conexões ou funções estabe-
da ideia de que a música seria qualitativamente “femi- lecem-se então entre estas marcas discretas, sustentadas pelas
nina” (pertencente ao “corpo”). Mesmo que a música e o pulsões, e se articulam segundo sua semelhança ou oposição,
discurso sejam dependentes de processos corporais para seja por deslocamento ou condensação. Encontramos aqui os
seu estabelecimento (discutiremos isso adiante), este princípios da metonímia e da metáfora, indissociáveis da econo-
mia pulsional que os sustentam. (KRISTEVA, 1974, p.28)
corpo é sempre mediado por discursos social-históricos,
inclusive verbais e musicais. Ao relacionar dialeticamente corpo (desde sempre cultu-
ralizado) e sociedade por meio do simbólico, a psicaná-
Outra das abordagens que os estudos de música popular lise compreende uma experiência do corpo variável em
têm experimentado é a etnograia. Procura-se aqui arti- relação ao lugar, história e cultura, portanto nunca dada
cular detalhes especíicos da(s) prática(s) musical(is) em de maneira essencial. O sentido musical situa-se na ex-
questão à performance cultural estudada. Um exemplo periência corporal, mas essa experiência é mediada pelo
pode ser encontrado em NEDER (2007). Aqui, a multiplici- discurso verbal, pois tanto o corpo quanto o mundo físico
dade de gêneros em uma mesma classiicação da faixa de não podem ser experienciados ou concebidos fora da lin-
recepção (a MPB), fato inédito na história da música po- guagem. Tanto o próprio funcionamento da linguagem se
pular brasileira, é entendida de maneira mais abrangente baseia em processos corporais – metáfora e metonímia
do que simplesmente um fenômeno musical. O autor pro- originando-se, respectivamente, de condensação e des-
põe que as modiicações culturais especíicas do momen- locamento das pulsões, como expresso acima – quanto
to histórico dos anos 60, no contexto brasileiro e global, o experimentar gestos musicais como gestos físicos ou
produziram um diálogo entre diversas faixas culturais e emocionais depende das operações discursivas que pos-
sociais. Entre estas faixas iguram as várias minorias re- sam tornar tais gestos musicais signiicativos.
presentadas no discurso da MPB (nordestinos, favelados,
“caipiras”, a mulher – discutida no trabalho de Nara Leão Assim, questões identitárias, políticas, estéticas, corpo-
e Maria Bethânia, entre outras), a música negra estadu- rais, de etnicidade, nacionalidade, classe e outras esta-
nidense (representada, já em 1963, pela música de Jorge belecem entre si uma relação complexa, no âmbito dos
Ben), o rock, a poesia culta (Chico Buarque, Caetano Velo- discursos verbais. Esta relação servirá como um contex-
so, etc.), música paraguaia, boliviana, e assim por diante. to para apreender, classiicar e criticar os sons musicais,
Por meio da análise da relação entre gênero musical e quaisquer que sejam. Por outro lado, os discursos musi-
subjetividade, é sugerido que, ao contrário da construção cais (gênero, estilo, retórica, técnicas e tecnologias, in-
de um sujeito monológico, tal como ocorreria na sociali- tertextualidades entre idioletos, etc.) se conectam tanto
zação realizada no âmbito de um gênero, a MPB, com sua a processos corporais como culturais, tal como discutido
porosidade radical entre diversas faixas culturais, seria o acima. Isso torna possível que WALSER (1993), BRACKETT
indício de (e predisporia para) subjetividades mais pro- (1995) e NEDER (2007) proponham que os sentidos mu-
pensas ao diálogo com o outro. sicais não apenas sejam constituídos por discursos extra-
musicais, mas também sejam constitutivos deles.
Ainda outra dessas abordagens é a representada pelas te-
orias do discurso. Aqui, tanto os discursos “extramusicais” Por sua vez, as teorias da mediação têm também repre-
quanto os discursos especiicamente musicais são vistos sentado uma corrente importante dentro dos estudos de
como interativos. Estas abordagens, ao invés de reduzir o música popular. Elas representam o ceticismo dos pes-
discurso musical ao linguístico, buscam entender a inter- quisadores deste campo com relação à ideia de que os
dependência e a inluência recíproca de ambas instâncias. sentidos musicais encontram-se nas obras “em si” (pen-
Trabalhos de linguistas e psicanalistas ressaltam a evidên- samento substancialista proposto de maneira especial-
cia de que voz (com todos os seus parâmetros de altura, mente inluente por Hanslick, como vimos, e extrema-
duração, intensidade e timbre) e gesto são anteriores à mente disseminado no mundo da música erudita). Contra

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NEDER, A. O estudo cultural da música popular brasileira... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.181-195.

esta noção, que remete todo o valor da música à suposta relexão sobre a atividade do amador (o praticante e/ou
autoridade fundacional do compositor individual (o gê- ouvinte dedicado, não proissional). Isto é essencial em
nio), as teorias da mediação, de caráter sociológico, pro- sua análise, e se diferencia da crítica sociológica pro-
curam entender de que maneira as instituições, os canais posta por BOURDIEU (1984), descrita por Hennion nos
de disseminação, os meios de comunicação, os forma- seguintes termos:
dores de opinião, a aprovação/crítica do público, e, em
[Segundo Bourdieu,] a cultura é uma fachada que disfarça meca-
última análise, a estrutura social mais ampla, contribuem nismos sociais de diferenciação, os objetos artísticos sendo “ape-
para a construção do que se entende por “a música”. nas” meios para a naturalização da natureza social dos gostos; os
julgamentos estéticos são apenas denegações deste trabalho de
naturalização, que só pode ser realizado se desconhecido enquan-
Um primeiro proponente a se destacar com uma teoria to tal. (HENNION, 2002, p.81-82)
da mediação da música foi Theodor Wiesegrund Ador-
no, buscando, com isso, evitar o reducionismo primário Ao contrário, Hennion acredita tanto na produtividade do
à noção de “classe”, recorrente nas análises marxistas amador quanto na da obra, declarando que
anteriores. Para Adorno, os efeitos da obra sobre o re-
ceptor são apenas um aspecto da totalidade social em precisamos reconhecer o momento da obra em sua dimensão espe-
que ambos estão inseridos. cíica e irreversível; isto signiica vê-la como uma transformação,
um trabalho produtivo, e permitir-se tomar em consideração as
(altamente diversiicadas) maneiras pelas quais os atores descre-
. . . [O]s efeitos das obras de arte, das formações espirituais de um vem e experimentam o prazer estético. (HENNION, 2002, p.81-82)
modo geral, não são algo absoluto e último, [e que supostamente]
seriam suicientemente determinados pela referência ao receptor. A consequência é a relativização do papel das determina-
Pelo contrário, os efeitos dependem de inúmeros mecanismos de ções sociais, designando um papel signiicativo à agência
difusão, de controle social e de autoridade, e, por im, da estrutura dos sujeitos envolvidos no processo. Assim, por exem-
da sociedade, dentro da qual podem ser examinados seus contex- plo, ao invés de entender o rap como produto da “falsa
tos de atuação. Dependem também dos estados de consciência e consciência” burguesa ou das maquinações da indústria
inconsciência – que são socialmente determinados – daqueles sob – apesar dos altos lucros que o gênero, atualmente, a ela
os quais o efeito se exerce. (ADORNO, 1986, p.108) proporciona –, Hennion o discute em função da crítica
que este dirige ao rock, às suas técnicas soisticadas e à
Portanto, de acordo com a teoria da mediação de Adorno, sua dependência de idolização. Ao contrário do rock, o
não é possível acesso à obra “em si”, seja pela audição, rap (ao menos em sua fase inicial) teria encontrado na
seja pela análise: ambas são experiências mediadas por performance de palco não a grandiosidade dos megacon-
toda a vivência social. Esta teoria poderia servir para es- certos de rock, mas a celebração do imediato e da comu-
clarecer muito das atitudes (des)valorativas com relação nidade local, transformando
à música popular, bem como proporcionar recursos para
entender suas transformações. Mas teve escasso aprovei- rivalidades e lutas em uma disputa improvisada sustentada por um
dado fundo musical, executados em um equipamento cuja quali-
tamento nesta área, porque, para Adorno, quanto melhor dade não importa contanto que seja alto o bastante, para serem
a história das formas de uma música e sua inserção em ouvidos no calor do momento por colegas, companheiros, iguais.
uma grande tradição representarem a totalidade social, (HENNION, 2002, p.88)
em todas as suas contradições, tanto mais autônoma será
esta música. Este critério postula uma discutível totali- O levantamento das opções teórico-metodológicas prati-
dade para a música de tradição austro-germânica (por cadas no âmbito do campo inter e transdisciplinar aberto
deinição, centralizada na tradição vienense, portanto recentemente pelos estudos de música popular poderia
parcial). Este mesmo critério, ao deinir a música popular se estender indeinidamente. Os exemplos selecionados
por seu caráter necessariamente parcial, não autônomo, e comentados buscam apresentar as abordagens que pa-
a excluiu de qualquer consideração por parte do ilósofo recem mais representativas e frutíferas, mas tal seleção
que pudesse ser útil para o campo. é evidentemente parcial e sempre sujeita a discussões e
complementações adicionais. No entanto, para os efeitos
Entre uma sociologia da música que, em seus aspectos deste ensaio, é necessário delimitar tal levantamento, e
mais radicais, tende a reduzir a música às determinações é em consideração a esta delimitação que encerramos a
sociais impostas aos artistas e fruidores, e, de outro lado, presente exposição.
a estética, com seus postulados da obra de arte trans-
cendental, não-mediatizada, subjetivizante, fundacional, 4. Conclusões
autônoma – escasso valor heurístico poderia ser produ- Entende-se, portanto, o estudo da música popular como
zido para a análise da música popular. É nesse contexto, empreitada complexa, entrecruzamento das palavras,
como alternativa e diferencial, que se insere o trabalho do dos sons instrumentais, dos gestos, dos corpos, das
sociólogo Antoine HENNION (2002). vozes, das condições de produção, comercialização e
transmissão, das mediações, das interferências produzi-
Hennion se propõe a estudar a música sem deixar de das pelos receptores que assim se inscrevem produtiva-
identiicar no especiicamente musical parte do objeto mente no texto, e muitas outras variáveis, tudo se dando
de pesquisa. Ao mesmo tempo, coloca grande esforço na dentro do terreno complexo da cultura.

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À demarcação rígida de fronteiras nesta área corres- ao contrário, ressaltar exatamente a necessidade de se
ponderia fatalmente o empobrecimento de sua com- explorarem múltiplas e diferentes abordagens teórico-
preensão. Para evitar este empobrecimento, foi em- metodológicas à música popular, cuja inserção na pes-
preendida uma revisão das diferentes deinições de quisa acadêmica é recente, como foi salientado.
música popular e suas limitações.
A problematização das limitações da aplicação de uma
Tendo em vista o risco de reiicação da ideia de música estética musical tradicional ao objeto música popular,
popular por meio do problema deinicional, a condução não obstante, não nos libera da necessidade de lidar com
da pesquisa nesta área precisa se defrontar com as di- a materialidade da música. Há um momento em que os
iculdades teórico-metodológicas enfrentadas por uma sons impactam o corpo (físico e cultural) – e o estudo
tradição herdada da musicologia tradicional. Responden- destes sons, em sua irredutível especiicidade, em cone-
do a este desaio, foram descritas algumas alternativas xão com este impacto, é possibilitado por uma musicolo-
que vêm sendo empregadas de maneira profícua no caso gia que leve em conta a especiicidade da música popular,
especíico da música popular. Buscou-se aqui não o fe- uma musicologia renovada pelas discussões travadas no
chamento do campo em torno destas alternativas, mas, âmbito dos estudos culturais.

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Notas
1 Para Simon FRITH (1996, p.267), “a musicologia produz música popular para pessoas que desejam compô-la ou executá-la”. Ver também COOK (1990).
2 Com a noção de “fato social total”, Mauss produziu enorme inluência sobre a antropologia, sustentando que certos eventos sociais são a síntese
da sociedade e de suas instituições, o que tornaria a análise desses eventos especialmente estratégica para uma disciplina que visaria especialmen-
te a totalidade social. Já Geertz, com o conceito de “jogo absorvente”, entende que tais jogos são eventos investidos com sentidos especialmente
importantes para a cultura dos envolvidos, que vão muito além da mera situação concreta presenciada, e que precisam ser adequadamente inter-
pretados para evidenciarem-se em toda sua magnitude a um observador externo. A respeito desses dois conceitos, ver, respectivamente, MAUSS,
1974 e GEERTZ, 1973).
3 É necessário esclarecer as diferenças entre o normativo e o negativo. O normativo é compreendido como aquilo que não é nem mesmo colocado
em discussão, sendo imposto como verdade genérica antes do exame dos casos especíicos. Se o normativo “tem qualidade ou força de norma”,
segundo o Dicionário Aurélio, norma é por ele deinida como: “6. Filos. Tipo concreto ou fórmula abstrata do que deve ser, em tudo o que admite
um juízo de valor” (FERREIRA, 1999). Ao contrário, no caso das deinições negativas, que propõem o que a música popular “não é”, pode-se discutir
se uma determinada música popular não é “música folclórica” (dentro desta, se não é “folclórica urbana” ou “folclórica rural”, como vimos em Má-
rio de Andrade) ou não é “música erudita”, “música religiosa”, “música de propaganda”, “música burguesa” ou “música proletária” além de outras
possibilidades. Evidencia-se assim que o normativo não se confunde com o negativo e vice-versa.
4 Importantes correntes de pensamento compreendem a emoção como construto oriundo da dialética entre corpo, ou instância biológica, e so-
ciedade, ou instância cultural (lembrando-se que, no humano, o biológico é culturalizado). Entre seus proponentes, destacam-se, na sociologia,
Norbert ELIAS (1993, 1994a, 1994b, 1995 e 1998); na psicologia, Lev Semenovich VIGOTSKI (1996, 1998 e 2000); e, na psicanálise, Sigmund FREUD
(1957). Conferir, a este respeito, os conceitos freudianos de pulsão, energias originadas no corpo, e de superego, instância constituída a partir da
interiorização das interdições sociais.

Álvaro Simões Corrêa Neder é musicólogo e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
de Janeiro, onde é coordenador da Pós-Graduação em Produção Cultural. Possui Doutorado Multidisciplinar em Letras
(Literatura Brasileira, Linguagem e Teoria da Literatura) pela PUC-Rio (2007) e inalizará em 2010 seu segundo doutorado,
na UNIRIO, em Música. Foi Teacher Assistant na Universidade Brown durante parte de seu estágio de doutoramento de
18 meses nesta universidade, ministrando o curso Introduction to Ethnomusicology. Publicou o livro Creativity in Educa-
tion: Can Schools Learn with the Jazz Experience? (WCP, EUA, 2002). Sua tese de doutorado sobre a MPB dos anos 60 foi
selecionada pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio para representar o programa no Grande Prêmio Na-
cional Capes de Teses de Doutorado 2008. Como crítico musical, publicou textos para vários livros de referência lançados
nos EUA e acima de 2.300 artigos na imprensa norte-americana. Desde 1980 atua como professor de música, músico e
produtor musical, tendo sido membro da Old Time String Band, coordenada pelo etnomusicólogo Jeff Titon.

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Circular cidade: poesia e groove na


expressão musical de quatro grupos da
região do mangue nordestino

Yukio Agerkop (Centro de La Diversidad Cultural, Caracas, Venezuela)


yukioagerkop@gmail.com

Resumo: Apresentação do fenômeno musical de três grupos de Aracajú - Sulanca, Naurêa, Maria Scombona - e um
de Recife - Chico Science e Nação Zumbi, que realizam uma hibridização musical de elementos locais e regionais com
elementos transnacionais. Os músicos e os apreciadores da música destes grupos desenvolvem um senso próprio de lo-
cal, enfatizando as particularidades da sua região como as tradições musicais, a arte verbal, a linguagem do Português
regional e o aspecto lúdico na atuação. Desenvolve-se um olhar especíico sobre uma região culturalmente similar, a
região do mangue de Aracaju e Recife, a partir da música e da poesia da geração contemporânea, inspirados na vida
urbana, nas expressões culturais da região e nas correntes musicais não-brasileiras ou transnacionais.
Palavras-chave: performance; discurso musical;arte verbal, poética; música popular brasileira; música do mangue.

Circular cidade: poetics and groove in the musical expression of four groups from the mangue
(mangrove) of northeastern Brazil

Abstract: Introduction to the phenomenon consisting of three music groups from Aracaju (Brazil) - Sulanca, Naurêa,
Maria Scombona - and one group from Recife (Brazil) - Chico Science e Nação Zumbi, which developed a musical hy-
bridization based on local and regional elements on one hand, and transnational elements on the other. The musicians
and their fans are constructing an own sense of locale, stressing the characteristics of the region where they live, with
its musical traditions, the current verbal arts, the regional Portuguese, and the playful character of the different musi-
cal expressions. This study aims at providing an alternative vision of a speciic cultural space, the mangue (mangrove)
region of Aracaju and Recife, focusing on different kinds of artistic expressions, the discourse of the musicians who are
inluenced by urban life, regional cultural expressions and non-brazilian - or transnational - musical trends.
Keywords: performance; musical discourse; verbal art; poetics; Brazilian popular music; mangue music.

1 - Introdução
Na metade dos anos 1990, o nordeste brasileiro chama a A performance, em especial o uso particular da arte
atenção nacional por um fenômeno musical particular e verbal, determina o senso de identidade de cada grupo
inovador, sendo depois o modelo ou a base para fenôme- musical e interage com a intenção e a mensagem que
nos musicais similares em outros grandes centros urba- estes pretendem transmitir para o público. O aspecto
nos do Brasil. A performance1 forma uma parte essencial temporal e a repetição são expostos de uma maneira
dos grupos musicais deste movimento, onde os músicos peculiar na estrutura das músicas. Para abordar os as-
se reapropriam de expressões culturais de suas regiões, pectos musicais, entra-se no conceito do groove, que é
combinando-as com gêneros musicais urbanos não brasi- utilizado nos discursos verbais e musicais dos músicos
leiros como o funk e o punkrock. Neste artigo, veremos o do mangue e dos grupos de Aracaju abordados neste ar-
fenômeno sócio-musical de três grupos musicais de Ara- tigo. Primeiramente, veremos o conceito de “identidade
caju e um de Recife, respectivamente: Sulanca; Naurêa; mangue” e as fronteiras em que o fenômeno musical da
Maria Scombona; e Chico Science e Nação Zumbi. região do mangue se vê inserido.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 10/10/2009 - Aprovado em: 20/02/2010
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AGERKOP. Y. Circular cidade: poesia e groove... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.196-202.

2 - Identidade mangue regionais. O conjunto que serviu de modelo para os três


Na minha visita ao Nordeste do Brasil nos anos de 2004 primeiros grupos mencionados anteriormente foi Chico
até 2007, realizei uma pesquisa de doutorado em etno- Science e Nação Zumbi, da cidade de Recife.
musicologia, e iquei interessado nos fenômenos musi-
cais de grandes centros urbanos, em conjuntos musicais Depois da morte do líder Chico Science, em 1997, o gru-
que misturam expressões musicais rurais com correntes po continuou com o nome simpliicado Nação Zumbi. Este
musicais transnacionais. O cenário é a região do man- grupo começou no início dos anos 1990 uma nova corren-
gue e esta denominação se origina dos manguezais, que te musical chamado (movimento) mangue, um fenômeno
caracterizam o litoral de diversos estados do Nordes- sócio-musical, caracterizando-se por jovens músicos que
te como os Estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e começaram a misturar as mais diversas expressões musi-
Paraíba. Logo no interior destes estados do Nordeste, cais nordestinas, em especial as de Pernambuco, com uma
no chamado agreste encontra-se uma variedade de ex- grande variedade de correntes musicais transnacionais. O
pressões culturais de caráter rural; e, no litoral desta caráter de vanguarda do chamado mangue teve um papel
região, encontramos as cidades de Aracaju e Recife, que fundamental na formação de outros fenômenos musicais
são cercadas por manguezais e se caracterizam por rica como a moda nova do Estado de São Paulo, os três grupos
biodiversidade. A região também se distingue pela di- musicais de Aracaju abordados neste artigo, e o tecno-
versidade de expressões culturais, razão pela qual mú- brega de Belém do Pará.
sicos de Recife assinalam a similitude entre a riqueza
cultural da região e a riqueza natural dos manguezais. 3 - Fronteiras culturais
Os textos cantados dos grupos abordados neste traba- Os grupos musicais abordados neste artigo estão situa-
lho utilizam frequentemente referências à paisagem da dos numa esfera fronteiriça em diferentes níveis. O con-
cidade e também da região rural. texto sócio-geográico no qual se situam é o Nordeste,
região em desenvolvimento, que se encontra entre a
Na área do Caribe, autores como Édouart GLISSANT modernidade e contemporaneidade dos grandes centros
(1981, 1997) e Jean BERNABÉ (1993) teorizam sobre o urbanos e a vida rural e arcaica. Também se encontra
mangue (manguezais) como símbolo da nova comunida- entre o rico Sul e Sudeste do País e a Europa, e os Esta-
de humana pluricultural caribenha. Ao abordar o concei- dos Unidos, no hemisfério norte. No grande centro ur-
to da crioulização2, eles contrapõem enfoques monocul- bano, observe–se a fronteira entre o centro e a periferia,
turais, entre outros, a negritude, e a pluriculturalidade. ambos formando a temática nas mensagens emitidas
Glissant substituiu o conceito monolinguísta da identida- pelos músicos destes grupos abordados aqui.
de de raiz pelo conceito do rizoma (rhizome-identity): o
“creole” é ao mesmo tempo absolutamente original, mas As tradições musicais da região rural de Sergipe e Pernam-
cresce como um rizoma sem raízes ixas. Uma situação buco representam o valor histórico, e são apropriadas pelas
semelhante se revela na região do mangue no fenômeno novas gerações de músicos adaptadas às novas tendências
de formação de grupos musicais por jovens que adotam musicais de contextos urbanos. As cidades de Laranjeiras e
abordagens pluriculturais, tanto na sua criação musical São Cristóvão, por exemplo, são cidades históricas, que se
quanto na sua performance. Não existe uma identidade opõem ou contrastam com Aracajú, cidade contemporâ-
do “creole”, mas os jovens músicos selecionam, através nea de 150 anos de existência. O aspecto histórico destas
dos meios de comunicação, as mais recentes tendências cidades se relete nas tradições musicais que mantêm um
musicais dos Estados Unidos, Caribe e Europa. caráter arcaico e estático. De outra forma, os grupos mu-
sicais de Aracaju estão na fronteira entre a periferia da
Os quatro grupos que receberam minha atenção nesta cidade e o centro: como eles se posicionam na fronteira
pesquisa são: Sulanca; Naurêa; e Maria Scombona, de entre o histórico e o contemporâneo? Talvez possam ser
Aracaju; e Chico Science e Nação Zumbi, de Recife. O pri- considerados como mediadores, “cultural brokers” entre a
meiro grupo com o qual tive contato foi Sulanca, e este cultura da periferia e a cultura do centro da cidade.
grupo é formado por sete músicos. Eles utilizam instru-
mentos de percussão, uma guitarra e um baixo elétrico.
4 - O groove e a arte verbal
Às vezes, o cantor Jorge Ducci usa um megafone para
modiicar a voz, e imitar os cantores da região campei- ...A gente ouve aquela voz rouca, do cara no meio da multidão
querendo ser ouvido. Daí vem o drive dele, gritando aargh, no limi-
ra do nordeste. Misturam a música campeira sergipana
te da voz... (DUCCI, Jorge, em entrevista concedida ao autor deste
com elementos do rock. Naurêa, também de Aracaju, é artigo, junho 2005)
um grupo de sete músicos que interpretam baiões3, côcos,
sambas, misturando-os com elementos de correntes mu- Esta frase do cantor Jorge Ducci do grupo Sulanca, revela uma
sicais transnacionais dos Estados Unidos e do Caribe, que característica do fenômeno sócio-musical de grupos musicais
se destacam pelo uso de roupas diferenciadas. Maria de Aracaju e dos grupos do mangue de Recife: o drive ou
Scombona é um conjunto que interpreta principalmen- groove - a percepção de um ciclo em movimento ou uma for-
te blues e blues-rock norte-americano, abrindo exceções ma de organizar padrões que se revelam da música regional
para músicas nordestinas como a embolada. O líder e do Nordeste que é reairmada, ressaltada na criação musical
cantor do grupo enfatiza as características linguísticas destes grupos do contexto urbano da região do mangue.

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Parte da força musical dos grupos da região do mangue A poesia criada por Chico Science é diferente da forma tra-
está ligada a alguns conceitos, como a palavra groove e dicional de se interpretar os côcos, maracatus7 e embola-
a mistura de elementos de correntes musicais brasilei- das, por quebrar as regras de acentuação do português, ou
ras e não brasileiras. Apresenta-se, a seguir, como estes o encadeamento de palavras, como, por exemplo, o enca-
aspectos são trabalhados pelos grupos. A palavra groove deamento das palavras ”já” e “não” no verso “[...] as balas
regularmente surge no discurso de músicos de Aracaju e já não mais atendem ao gatilho”. Nas discussões ao redor
de Recife, como Jorge Ducci e os músicos do Chico Scien- da arte verbal, desenvolve-se a noção de que a linguagem
ce e Nação Zumbi. Este último grupo mencionado gravou poética desvia-se da linguagem normal: o uso inventivo da
uma música chamada Quilombo Groove. linguagem poética em músicas atrai a atenção do ouvinte
e é percebido como não usual (BAUMANN, p.17). Na poesia
Nos anos 1990, surgiram estudos com o objetivo de teori- das músicas de Chico Science, percebe-se uma linguagem
zar o conceito do groove, que está relacionado a elemen- não usual que atrai a atenção do ouvinte, por seus disposi-
tos como a repetição e a redundância, bem como à expe- tivos e pelo seu ritmo próprio, criando uma tensão rítmica
riência participativa por parte do músico e do receptor. O entre o canto e o padrão rítmico - neste caso o do maraca-
termo se refere a um senso intuitivo de um estilo em pro- tu de baque virado - dos tambores alfaia e caixa. Uma das
cesso, à percepção de um ciclo em movimento ou a uma formas pela qual a linguagem poética se revela é através
forma de organizar padrões que se revelam (FELD, 1994, do paralelismo, que envolve a repetição com variações sis-
p.109). Existem vários termos para designar estilos com temáticas de estruturas fônicas, gramaticais, semânticas
seus processos, que incluem um senso sonoro, uma bati- ou prosódicas. O uso luente da linguagem é um veículo
da como o mangue, o afrobeat, o reggae-beat e outros. efetivo para a exposição de competência comunicativa
Cada cultura musical possui um groove com seus próprios (BAUMANN, p.18-19).
signiicados musicais, e este groove tem a particularidade
de atrair, arrastar o ouvinte, ou seja, chamar a atenção: Uma das características do Nordeste é uma luência es-
pecial no uso da linguagem, que se relete nas diversas
[...]Todos os grooves e batidas se apropriam de maneiras de cap-
turar a atenção do ouvinte; o sentido intuitivo do senso do groove
formas de arte verbal, na maneira criativa de construir
ou batida é o reconhecimento de estilo em movimento [...] termos frases, e no uso de paralelismos. Na embolada e no côco,
linguísticos como ‘groove’, som ou batida – signiicantemente co- com suas inlexões, a nasalidade e o timbre da voz do
diicam um senso não especiicado, mas organizado como algo falar português rural não devem ser subestimados. Ocor-
suspenso numa maneira distintiva, regular e atrativa, atuando
para prender a atenção do ouvinte. (FELD 1994, p. 112)4.
re um fenômeno especial, pois, para poder encaixar as
palavras, as sílabas, ao padrão “irregular” dos tambores
Na arte verbal do Nordeste, reletida em gêneros como a alfaias, desenvolve-se um ritmo cantado diferente, não
embolada5, côco6 ou no canto de Chico Science, os sons como o usual da tradição do maracatu de baque virado.
das palavras são o que chama a atenção: o encadeamento Os versos desta música foram criados por Chico Science,
das palavras, em certos momentos, entra no contratempo que não vinha originariamente da tradição do maracatu.
do padrão rítmico. Esta característica também pode ser
observada no funk norte-americano. As frases cantadas O jogo de sílabas e palavras, em que a repetição de síla-
por Chico Science, por exemplo, são emitidas em uma bas e sons das consoantes chama a atenção do ouvinte,
respiração, colocando pressão nas cordas vocais. Desta também é uma das características do funk norte-ameri-
forma, consoantes como /s/, /t/, /b/ e /g/ são evidencia- cano8. O funk norte-americano aqui referido é também
das. Um bom exemplo desta técnica pode ser percebida chamado p-funk, ou pure funk9, interpretado pelos mú-
na música Maracatu de Tiro Certeiro (de Chico Science): sicos e grupos como James Brown, Funkadelic, Parlia-
ment, George Clinton e seu grupo e Bootsy Collins e o
É de tiro certeiro, é de tiro certeiro, seu próprio grupo. Estes grupos são praticamente forma-
Como bala que cheira a sangue
Quando o gatilho é tão frio
dos por afro-americanos, e o funk também se inclui na
Como quem ta na mira, oh, morto! chamada Black Music, a música dos afro-descendentes
Ehh, foi certeiro oh, se foi norte-americanos. Característica do funk ou p-funk é o
O sol é de aço, a bala escaldante, forte caráter lúdico, expresso com o uso de roupas extra-
tem gente que é como barro ,
que ao toque de uma se quebra,
vagantes, como astronautas de naves espaciais, e óculos
outros não, escuros coloridos enormes, expressões faciais com risos,
ainda conseguem abrir os olhos e no outro dia assistir TV além da dança funk, às vezes efetuada por quase todos os
Mas comigo é certeiro, meu irmão músicos em um concerto, maneira particular de dançar
Não encosta em mim, que hoje não estou pra conversa.
Seus olhos estão em brasa,
onde o corpo marca o timeline, o pulso básico do padrão
Fumaçando, fumaçando!, fumaça, rítmico do funk. Em entrevistas, os músicos de funk fazem
Não saca a arma não, arma não! diversas brincadeiras e a linguagem usada é o inglês afro-
Já ouvi, calma! americano, com características e gírias próprias.
As balas já não mais atendem ao gatilho
Já não mais atendem ao gatilho, já não mais atendem… hêêê
O aspecto lúdico de diversas tradições musicais campei-
Ex.1 - Maracatu de Tiro Certeiro (Chico Science e ras do Nordeste - a exemplo do maracatu rural, cavalo
Nação Zumbi, 1994) marinho, dança de São Gonçalo10 de Laranjeiras e a arte

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de Chico Science - têm diversas semelhanças com a tra- caju. Aqui, ainda cabe a observação de que num encon-
dição do funk ou p-funk: a dança está presente em todas tro cultural ou feira, nos centros urbanos do Nordeste,
elas, o uso de roupas diferenciadas, e expressões verbais podem-se ouvir diferentes ritmos e timbres ao mesmo
e brincadeiras corporais para provocar risos no público. tempo ou alternadamente, devido aos diferentes grupos
Um exemplo é a música do baixista estadunidense Bootsy que desilam concomitante nas ruas da cidade. A músi-
Collins, que inclui um forte espírito lúdico nas suas atu- ca dos grupos como Sulanca e Naurêa, com as camadas
ações no palco e nos seus textos, estabelecendo um jogo rítmicas e sonoras alternadas, é em parte o relexo deste
verbal. Na música Shine-o-Myte (Rag Poping), observa-se fenômeno nas feiras e encontros culturais.
um mesmo fenômeno com um jogo de palavras e sílabas
que destacam consoantes como /i /z/, e /f /s. 5 - Discurso musical do groove e da vida urbana
Bootsy gonna shine like the light from shiny shoes Um elemento particular na música de Sulanca é a aproxi-
Shine o Myte mação da guitarra e baixo aos timbres dos instrumentos
Hit me percussivos regionais. A intenção dos músicos é adotar os
Ootsy-be that-play unke-fe ritmos de tradições musicais sergipanas para a guitarra e
Is Ootsy-bezay, is that plezay, is unke-fezay
Ootsy-be that-play unke-fe baixo, mas com a distorção comum da música funk e har-
Unky-fe drock. O grupo Sulanca é o único grupo em Sergipe, entre
Is unky-fezay, ha ha ha os eleitos nesta pesquisa, que a executa desta maneira, e
a mistura de estéticas transnacionais com a música re-
Ex.2 - Shine o Myte (Bootsy Collins, 1982) gional começa com o uso de um megafone para ampli-
icar e distorcer a voz. Numa entrevista, Jorge, do grupo
Percebe-se, então, uma semelhança entre o jogo de pala- Sulanca, explica sobre o uso da voz ligada à palavra drive,
vras e a repetição de palavras, as palavras com sintática outro conceito ligado às teorias sobre o groove:
semelhante, e consoantes similares entre as palavras des-
ta música de Bootsy Collins com as cantadas por Chico Porque, aquela história, quando a gente está pesquisando o folclore,
a gente ouve aquela voz rouca, do cara no meio da multidão e o
Science. A música Fé e Umbigada, do grupo Naurêa, apre-
cantor querendo ser ouvido. Daí o drive dele, da voz que canta, gri-
senta um caso parecido na maneira silábica de cantar, tando “aaaahhhrrg” no limite da voz, rasgando a voz, pra ser ouvido.
emitida numa respiração, à maneira de Chico Science. As E respondido pelo coro. Aquele solo e resposta, que é característica
frases são emitidas de maneira staccato, de maneira bas- da música tradicional de Sergipe. Aí ele quer ser ouvido, no meio
de tanta gente. E aí ele vai ao limite. Na banda, quando boto um
tante rápida, que é característica do côco ou embolada.
drive na voz, colocando uma ‘postura’, é bebendo isto, esta coisa
Os fonemas imprimem o caráter especial desta música, e do cantante no meio da manifestação [...] trago este registro, como
as consoantes /v/, /g/ e /z/ são pronunciadas precisamen- José de Jorge do ‘terreiro José do Jô’, porque é o limite dele. E nós
te, de maneira staccato, em frente da boca com os lábios queremos fazer este registro dentro da banda. Além do megafone,
que registro muito bem isto, e o megafone já tem uma distorção
e ênfase na garganta. As palavras “volta” e “vai” são pro-
natural. Ele ajuda a trazer este grito do cantor no meio do povo. É
nunciadas com ênfase. A letra é a seguinte: saber destas particularidades do povo, da música sergipana. (DUCCI,
Jorge, em entrevista concedida ao autor deste artigo, junho 2005)
Volta neguinha, o leite taiou
Volta neguinha, não sei não senhô A palavra groove, surgida no meio musical do funk ameri-
Volta neguinha, viver sem fulô cano, é conhecida por músicos como Jorge Ducci e usada
Volta neguinha, não sei não sinhô
por ele no seu discurso sobre a sua própria música. No funk,
Vai ter festa umbigada vai ter fé é o swing, a força rítmica que atrai o ouvinte para dançar.
Vai ter festa umbuzada vai ter fé A inluência deste gênero pode ser observada na maneira
Tem novena e congada vai ter fé como a música é construída em camadas sonoras e rítmi-
Umbigada e umbuzada vai ter fé
cas, às vezes alternadas, efetuadas pelos grupos musicais
Ex.3 - Fé e Umbigada (Naurêa, 2001) Chico Science e Nação Zumbi, Mestre Ambrósio, Sulanca e
Naurêa. Estas camadas rítmicas são formadas por instru-
Característica da letra é a repetição quase idêntica das mentos percussivos como alfaias, tambores, tambores de
frases, com pequenas diferenças silábicas, por causa da onça, triângulo, além do uso da guitarra e baixo elétrico
proximidade sintática das palavras, como umbigada, um- e sons eletrônicos produzidos com computador e sampler.
buzada e congada.
A estrutura da música do grupo Sulanca é basicamente
No caso das novas correntes musicais de Recife e de Ara- formada pelos ritmos das diferentes tradições musicais
caju, pode-se observar como um conjunto de maracatu rurais sergipanas com os seus instrumentos. A guitarra
chama a atenção quando passa pela rua em um dia de e baixo elétrico tocam as fórmulas rítmicas e melódicas
carnaval, com o som potente das suas alfaias, caixas e curtas das tradições musicais rurais. Aqui, se mostram
gongues. Em Sergipe, os tambores de onça, zabumbas elementos de gêneros transnacionais, o funk e pop nor-
e vozes dos cantores populares chamam a atenção nas te-americanos combinados com ritmos campeiros. Os
festas do calendário católico ou feiras populares. Estes padrões melódicos e rítmicos de um, dois ou três com-
elementos instrumentais e vocais são explorados pelos passos são repetidos várias vezes como uma igura, o
jovens músicos de centros urbanos como Recife e Ara- chamado leitmotif, para o resto da música, característi-

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ca do funk e pop. No funk estadunidense estas fórmulas modo medieval (ou nordestino). O modo é Dórico (Frí-
são executadas na guitarra ou baixo elétrico, acompa- gio – E) alterado, com a sexta menor. A música começa
nhado pela bateria. com uma nota em Mi em forma de drone, uma nota
fundamental que serve de base para as outras notas que
Chico Science e Nação Zumbi trabalhavam com pa- a têm como referência. Observa-se que os inais das li-
drões rítmicos e melódicos diferentemente de Sulanca. nhas melódicas terminam nesta nota fundamental. Esta
Padrões rítmicos e melódicos da guitarra ou baixo do abordagem melódica pode ser encontrada em diversas
funk e pop estadunidense foram transferidos para os partes da Europa Sul-oriental e Sul da Europa, em ilhas
instrumentos de percussão (alfaia ou conga). No caso de como Sardenha, Sicília, na Grécia, Albânia, Macedônia e
Sulanca, padrões rítmicos de tradições musicais rurais outras. Em Circular Cidade, a nota Mi do começo é dis-
e de tradições afro-sergipanas são transferidos para a torcida e tocada com tecnologias do computador como
guitarra e baixo elétrico. A semelhança entre os dois o sampler. O caráter destes modos nordestinos com o
grupos é o uso de uma base harmônica simples de dois a uso do drone poderia ser interpretado como relexo do
quatro acordes, para desenvolver a força da percussão e meio ambiente seco e quente do Nordeste, como as re-
ressaltar os timbres produzidos através de distorções na giões secas ou semi-áridas do Sul da Europa. É uma das
guitarra e sons eletrônicos, mas também por intermédio representações musicais do sertão do Nordeste. Aqui se
do uso de instrumentos de percussão e pífanos alter- encontra também outra semelhança com o mangue de
nando as partes da guitarra e baixo. Jorge explica isto Recife dos anos 1990, ao abordar a vida urbana viven-
ao abordar o processo de misturar diferentes padrões ciada por jovens das classes populares e um pouco mar-
rítmicos das tradições afro de Sergipe: ginalizados. A música Circular Cidade, do Naurêa:

Geralmente os ritmos estão em 4 por 4. A primeira coisa que eu faço Bateu carteira na feira
em compor, é pegar uma manifestação, por exemplo o samba de
Aprontou estripulia
parelha. Ou qualquer outra manifestação. A partir daquela batida
dele, começo a formatar a música, a partir da minha vivência, de- Tomou quatro pinga e meia
pois começo compor dentro daquela música, dentro daquela batida. Por causa da brincadeira
Depois aí começo fazer cruzamentos; que eu posso introduzir den- Parou na delegacia
tro dessa primeira batida; aí venho trazendo elementos de outras
Tomou ônibus trocado
tradições, por exemplo a caixa do bacamarteiro: ‘Tum tutum tu-
tum’. Aí já tem um acento do cacumbi que combina com a caixa do Por causa da correria
bacamarteiro:’cutúm cutúm tum’; isso já dá o caminho para botar o O carro foi assaltado
baixo: ‘gujam gujam jam’; voltando para o caso do rock, não é rock, Ganhou buraco de bala
é o acento do cacumbí; aí vou combinando, aí trago o pandeiro da
Sem saber da onde vinha
chegança. No inal uso o violão, para ver os acordes. A música é
feito a partir desta formatação. Se você ouvir o disco, não ouve a Iê iê iê iêê...cidade, iêê, cidade (2x)
manifestação como ela é tocado no interior; por exemplo se pegar Iê iê iê iêê na cidade
o cacumbi ela tem caixa, ganzás, tambor de onça, tamborim. Cinco Tomou a última dose
instrumentos na tradição. Que é que eu faço: tenho cinco instru-
Sozinho sem companhia
mentos; uso o tambor da batucada e fazemos combinações. A ideia
de Sulanca é fazer combinações de batidas folclóricas. E uma batida Morreu toxoplasmose
que é de caixa, você bota o tambor ou a guitarra ou baixo fazer. E Na veia via virose
Sulanca passa por essas vertentes aí. É esse universo aí. (DUCCI, A cabeça que ardia
Jorge, em entrevista concedida ao autor deste artigo, junho 2005)
Viu a moça na janela
Tão bela que comovia
O uso de poucos acordes tem algumas razões: os textos
Paixonou-se de verdade
cantados têm inluência da tradição do repente ou da
De manhã foi pra cidade
embolada. A característica do repente é o canto de im-
Cantar “lôa” de alegria
proviso em cima de um acorde de sustentação, em um
Iê iê iê iêê...cidade, iêê, cidade (4x)
modo nordestino.
Iê iê iê iêê na cidade
Por outro lado, há a inluência do rap, funk e punk, onde
os textos são cantados em cima de poucos acordes, e o Ex.4 - Circular Cidade (Naurêa, 2001)
timbre da guitarra distorcida e dos tambores dão des-
taque. Os textos cantados pelos grupos aqui abordados Ocorre a combinação da melodia em modo nordestino,
geralmente se referem à vida urbana com todas as suas um padrão melódico da tonalidade em mi-maior com a
peculiaridades. As descrições de situações cotidianas são sétima abaixada. O acorde, o primeiro por efeitos ele-
logo bem recebidas pelos jovens dos grandes centros ur- trônicos, executado provavelmente pelo computador
banos, podendo se identiicar e espelhar nas diversas si- ou sampler, cria um drone11, termo inglês para designar
tuações representadas nas músicas. o tom mais importante e geralmente o mais grave do
padrão melódico, que soa continuamente, como guia
As composições do grupo Naurêa revelam um uso par- para a melodia do instrumentista ou do cantor se de-
ticular de frases que rimam, com um próprio ritmo de senvolver. O tom Mi é que é a base, na qual a melodia
palavras e o uso de temas ligados à cidade. Um exemplo instrumental e a voz terminam depois de cada frase ou
é a música Circular Cidade, um tema que faz uso do quatro frases.

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6 - Palavras inais na dimensão sonora. A interação do grupo que efetua a


Neste artigo, observa-se o uso da poesia e o groove na performance com o público é uma maneira intrínseca de
arte verbal na região do mangue com suas peculiarida- ver as sutis maneiras de produzir signiicados que são
des, tais como o jogo de palavras, a repetição, a rima, reconhecidos pelo público. Sobre este aspecto, Small
uma característica, tanto nas tradições musicais das re- observou o seguinte:
giões rurais do Nordeste, quanto no contexto do mangue
Human beings are constantly devising new meanings for existing
e outros grupos urbanos. Além disto, percebe-se uma gestures and new gestures for existing meanings, and it is this
semelhança desta arte verbal: a de correntes musicais element of indeterminacy, of choice, even of a degree of arbitra-
transnacionais como o funk e o rap norte-americano. Foi riness, that leaves room for creative development and elabora-
também possível observar como o conceito do groove tion. In fact, in neither verbal nor gestural languages is there a
complete one to one relationship between signiier and signiied;
adquire uma dimensão própria na música destes grupos, meanings are constantly slipping and sliding into new meaning,
com as particularidades rítmicas dos instrumentos de mainly, as we shall see in a moment, through the power of meta-
tradições como o maracatu de baque virado12, o mara- phor (SMALL, 1998, p.60).14
catu de brejão13, o côco e a embolada.
Nas novas cenas musicais recifenses e aracajuanas,
Percebe-se, no processo de misturar elementos musi- novos signiicados são criados a partir de tendências
cais locais e nacionais com elementos transnacionais, transnacionais e nacionais, e são elaborados na poesia
o desenvolvimento de novos signiicados na atuação e com jogos verbais e/ou metáforas.

Referências
AGERKOP, Yukio. Fronteiras e Movimento Cultural entre o Caribe e Salvador: o Samba-reggae, o Merengue e o Reggae.
Revista Brasileira do Caribe, Brasilia, Vol IX, No 18, jun 2009, p.389-400.
BAUMANN, Richard (1977) - Verbal Art as Performance. Illinois: Waveland Press.
BERNABÉ, J.; CHAMOISEAU P. and CONFIANT, R. 1993.Eloge de la Creolité. 2nd edition. Paris: Gallimard.
CLARKE, Richard W. (2005) - Root versus Rhizome: an Epistemological Break’ in (Francophone) Caribbean Thought. Dispo-
nível em: <http://www.rlwclarke.net>. Acesso em: jun. 2008.
DEPESTRE, René. Una Ejemplar Aventura de Cimarroneo Cultural. In: El Correo de la UNESCO, No 34, Diciembre 1981.
p 16 – 21.
FELD, Stefen and Charles Keil. (1994) - Music Grooves: Essays and Dialogs. Chicago: The University of Chicago Press.
GLISSANT, Edouard 1997. El Discurso Antillano. Caracas: Monte Ávila Editores Latinoamericana.
________Una Cultura Criolla. In: El Correo de la UNESCO, No 34, Diciembre 1981. p 32 – 38.
SMALL, Christopher (1998) - Musicking: the Meanings of Performing and Listening. Hanover: Wesleyan University Press.
SWIEGER, Andrea Hiepko. Creolization as a Poetics of Culture. Edouard Glissant´s “Archipelic” Thinking. In: A Pepper-Pot
of Cultures: Aspects of Creolisation in the Caribbean, ed. Gordon Collier & Ulrich Fleischmann (Matatu 27-28), Ams-
terdam: Editions Rodopi, 2003.

Referências de áudio
Bootsy Collins.”Shyne o Myte”, in Shyne o Myte. 1982. USA
Chico Science e Nação Zumbi. “Maracatu de Tiro Certeiro”, in Da Lama ao Caos.1994. Brasil.
Sulanca. Megafone. 2004. Brasil. www.sulanca.com.br
Naurea. “Fé e Umbigada”, e “Circular Cidade”, in Circular Cidade ou Estudando o Plagio. 2003. Brasil
Maria Scombona. Grão. 2001. Brasil www.mariascombona.com.br

Referências de entrevistas
DUCCI, Jorge. Aracajú, 21 de junho 2005, 2 itas cassete (60 min). Entrevista concedida a Yukio Agerkop.

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Notas
1 A performance é um termo que aborda tópicos essenciais como o ato de fazer música, a práxis corporal, a temporalidade, conhecimentos discursi-
vos e a repetição. Numa performance musical procuramos compreender o que o homem faz quando participa de uma ação musical, para entender
a sua natureza e a função que desempenha na vida humana.
2 O conceito de creolização primeiramente se estabeleceu depois da descoberta europeia das Américas, para descrever o processo pela qual formas de
vida do Antigo Mundo se tornaram autóctones no Novo Mundo. Hoje em dia, o termo “creolização” aparece em escritos sobre a globalização e pós-
modernidade como sinônimo de hibridismo e sincretismo para ilustrar as misturas que acontecem em sociedades na era de migrações e telecomuni-
cações. A designação histórica do termo, no entanto, se refere aos efeitos de adaptação de seres humanos quando vivem em um novo ambiente.
3 O baião é uma forma musical do nordeste que inclui dança e canto acompanhado por um acordeom (sanfona), uma zabumba, um triangulo e
eventualmente um baixo eletrônico e outros instrumentos. Forma uma parte integral da expressão musical forró, do nordeste do Brasil. O padrão
rítmico e melódico do baião é amplamente explorado por grupos musicais brasileiros.
4 All grooves and beats have ways of drawing a listener´s attention; one´s intuitive sense of a groove or beat is a recognition of style in motion […].
Linguistic shorthands-terms like groove, sound, or beat – signiicantly code an unspeciiable but ordered sense of something that is sustained in a
distinctive, regular, and attractive way, working to draw the listener in (FELD 1994, p.112). (Tradução nossa, grifos do autor)
5 A embolada é uma tradição musical, arte verbal do litoral do nordeste onde dois cantores alternam versos cantados de forma silábica, com acom-
panhamento de dois pandeiros.
6 O côco é uma tradição musical do nordeste, e inclui danças y cantos acompanhados por pandeiros y zabumbas e outros instrumentos. Em cada
região do litoral do nordeste, o coco é interpretado de forma diferente com uma instrumentação própria.
7 O maracatu é uma expressão musical do estado de Pernambuco (também no interior do estado de Sergipe), sendo tocado especialmente na época
de carnaval. Existem duas variedades, sendo o maracatu rural e o maracatu de baque virado da cidade de Recife, caracterizado por tambores alfaias,
os taróis e o gongue.
8 O funk norte-americano se origina do soul e rhythm and blues dos anos ´50 e ´60 nos Estados Unidos, onde as linhas do baixo e os padrões repeti-
tivos da guitarra elétrica assumem um papel importante. É uma expressão musical por excelência para ser dançada.
9 Pure funk signiica funk puro, a interpretação do gênero funk na sua essência, para se diferenciar dos gêneros ligados ao funk, o disco, o soul e o
rhythm and blues.
10 A dança de São Gonçalo de Laranjeiras é uma expressão musical rural do interior do Estado de Sergipe, com mais ou menos 7 cantos e danças
acompanhados por uma caixa, um violão, um cavaquinho e dois caraqajés ou puítas. Caracteriza-se por sua dança espetacular e lúdica, onde os
homens estão vestidos de saias e pintados como mulher.
11 O drone é um termo inglês para designar a nota mais importante de um sistema melódico, usualmente executada em um instrumento no caso da
música clássica indiana, ou em uma corda de um instrumento de cordas.
12 O maracatu de baque virado é uma tradição musical afro-brasileira da cidade Recife, organizado em uma corte com um rei, uma rainha, príncipes,
soldados e outros; inclui dança e é acompanhado pelos tambores alfaias e taróis, e o gongue.
13 O maracatu de brejão é uma tradição musical do interior de Sergipe, de Brejo Grande, onde existe uma comunidade quilombola Brejão dos Negros.
O maracatu de brejão é tocado com tambor zabumba, tambor de onça ou cuíca de porca, chocalho e apito.
14 SMALL, Christopher. Musicking: the Meanings of Performing and Listening, 1998. Os seres humanos constantemente inventam novos signiicados
para gestos existentes e novos gestos para signiicados existentes, e é este elemento de indeterminação, de escolha, até certo grau de arbitra-
riedade, que possibilita o desenvolvimento e elaboração criativa. De fato, tanto na linguagem verbal quanto na linguagem gestual, ocorre uma
relação mútua entre o signiicante e o signiicado; signiicados constantemente se convergem em novos signiicados, principalmente, como se
vê, através da força da metáfora.

Yukio Agerkop é Doutor em Etnomusicología pela Universidade Federal da Bahia, defendendo a tese com o título
“Poética de Uma Paisagem: Discurso e Atuação de Quatro Grupos Musicais da Região do Mangue” (junho, 2007).
Depois dos estudos de Musicologia na Universidade de Amsterdam (Holanda, 1996), trabalhou como pesquisador
musicológico na Fundação de Etnomusicologia e Folclore (FUNDEF, Caracas). Atualmente, trabalha como pes-
quisador no Centro de la Diversidad Cultural em Caracas, Venezuela. Está produzindo documentários sobre as
ilhas Dominica y St. Lucia do Caribe oriental. Realiza palestras sobre a música venezuelana e das ilhas Dominica
y St. Lucia. Desenvolveu um método para a aprendizagem da bandola cordillerana de Venezuela. Participou dos
Encontros Nacionais da ABET e do Encontro de Estudos Caribenhos em Salvador em 2007.

202
CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.

Axé music: mitos, verdades e world music

Armando Alexandre Castro (UFBA, Salvador, BA)


armandocastro@ufba.br

Resumo: O artigo discute a Axé music, oferecendo elementos na tentativa de desconstrução de três mitos nela eviden-
ciados: monocultura, baixa qualidade técnica e sua decadência. A metodologia utilizada privilegia a análise de conteú-
do, tendo como meios de veriicação e coleta de dados entrevistas semi-estruturadas com músicos, técnicos, produ-
tores e empresários musicais de Salvador, além de pesquisa documental relacionada ao campo musical baiano atual.
Palavras-chave: Axé music; música popular brasileira; produção musical; world music.

Axé Music: myths, truths and world music

Abstract: The article discusses Axé music providing elements in an attempt to deconstruc three myths related to it:
monoculture, low technical quality and its decadence. The method used focuses on content analysis, departing from
veriication of data collected through semi- structured interviews with musicians, technical staff, producers and music
business executives from Salvador (Brazil), along with documental research related to the musical scene of Bahia today.
Keywords: Axé music; Brazilian popular music; musical production; world music.

1. Introdução
Em El Milagro de Candeal (2004), o diretor espanhol Fer- ro e entusiasmado “(...) Então seja bem vindo à Bahia.
nando Trueba, centrando sua argumentação em essencia- Terra da Felicidade!”. Em seguida, surge a imagem da
lizações acerca da musicalidade, da cultura e religiosidade estátua de Vinícius de Moraes instalada em Itapuã. Após
da Bahia, apresenta o encontro entre o pianista cubano o desembarque no Pelourinho, a ida a uma das Igrejas
Bebo Valdez e Carlinhos Brown. Ainda nas primeiras cenas, Católicas deste, onde presencia um ensaio musical de
Bebo Valdez conidencia ao músico, compositor e pesqui- Mateus Aleluia e integrantes do Grupo Musical Gêge
sador baiano Mateus Aleluia – Grupo Tincoãs, Cachoeira, Nagô1. Na cena seguinte, eis que surge Carlinhos Brown
Bahia -, o conselho ofertado a ele, em 1947, por uma Ya- e o Grupo Zárabe, numa espécie de aquecimento pelas
lorixá - também cubana -, caso prosseguisse em sua inves- ruas e becos do Candeal Pequeno, como num ensaio a
tigação musical e antropológica motivada por questiona- céu aberto do que aconteceria mais adiante na apresen-
mentos identitários: conhecer a cidade de Salvador, Bahia. tação e aparição destes numa das festas mais tradicio-
nais de Salvador: a festa de Yemanjá.
À beira mar, o diálogo entre os músicos é precedido de
inúmeras outras cenas que apontam indícios e entrela- As imagens apresentam alguns elementos emblemáticos
ces dos aspectos religiosos, culturais e musicais baia- da marca Bahia no mundo globalizado: música, performan-
nos inscritos ao longo do tempo e história, como que ces, criatividade, diversidade, onde tradição e modernidade
atendendo às expectativas de parcela considerável de dialogam, não raro, sem maiores incidentes. Por outro lado,
estrangeiros e suas imagens/impressões de uma Bahia revela as estratégicas arquiteturas de veiculação e inscri-
mítica e paradisíaca plasmada nestes aspectos. A pelí- ção de elementos simbólicos a marcas territoriais distinti-
cula segue. Do simpático taxista, ele recebe um sono- vas, como no caso Bahia, a partir da seleção de elementos

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 14/10/2009 - Aprovado em: 20/03/2010
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que atendem e redimensionam a imagem de uma Bahia de conteúdo, tendo como meios de veriicação e coleta
marcadamente étnica, exótica e espontânea, tal como de dados, entrevistas semi-estruturadas com músicos,
apontaram viajantes, brasilianistas e naturalistas que por técnicos, produtores e empresários musicais de Salvador,
estas terras se aventuraram em outros tempos. pesquisa documental e de campo, além de inscrição em
boletins eletrônicos relacionados ao campo musical baia-
Das surpresas e entusiasmo dos primeiros viajantes es- no e da indústria musical brasileira.
trangeiros, passando pelas cantigas de capoeira e re-
quebros da portuguesa/brasileira/hollywodiana Carmem 2. Breve História da Axé music
Miranda, e chegando aos refrões pop´s da Axé music, a A breve história aqui apresentada se faz pela necessidade
Bahia (re)airma sua inscrição e presença em parte con- de contextualização, não se conigurando como objeto
siderável do cenário cultural internacional. Na MPB, sua central de análise3. Procura evidenciar a década de 1980,
presença é central, podendo ser percebida enquanto te- enquanto temporalidade de legitimação dos chamados
mática e inscrição vultosa de artistas e autores que a ela blocos de trio4 no carnaval soteropolitano – ampliando
se reportaram. Numa perspectiva histórica, cantaram, consideravelmente o alcance comercial e mercadológico
compuseram e corroboraram com tal participação, nomes deste – fato que possibilitou o surgimento de novos gru-
como Tia Ciata, Donga, Xisto Bahia, Dorival Caymmi, As- pos e bandas musicais.
sis Valente, Carmem Miranda, Ary Barroso, João Gilberto,
Vinícius de Moraes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Cos- Estimuladas e contratadas por empresários destes blocos
ta, Tom Zé, Raul Seixas, Moraes Moreira, Maria Betânia, carnavalescos, e, seguindo parâmetros estético-musicais
Roberto Mendes, entre outros2. apontados pelos Novos Baianos, Dodô e Osmar, Moraes
Moreira, Pepeu Gomes, Armandinho, e da religiosidade e
Desta fonte diversa e multicultural, o surgimento de uma força percussiva apontada por blocos afro como Filhos de
Bahia plural em sua produção musical contemporânea, Gandhi, Muzenza, Badauê, Ilê Aiyê e Olodum, iniciou-se
com trânsito entre o samba-chula do Recôncavo ao Rock a formação de um relevante conjunto de novos artistas e
and Roll, de onde ainda se faz ouvir nas inúmeras cenas estrelas de trio em Salvador, tais como Luiz Caldas, Sa-
musicais soteropolitanas o grito Viva Raul! Bahia do sé- rajane, Ademar e Banda Furtacor, Virgílio, Jota Morbeck,
culo XXI, naturalmente plural e plugada em links e wire- Djalma Oliveira, Lui Muritiba, Daniela Mercury, Zé Paulo,
less, consensos e conlitos, timbaus e guitarras. Marcionílio, Banda Pinel, entre outros.

Entretanto é aí que se percebe o maior desaio da produção A estética musical herdada pela Axé music é composta
musical baiana contemporânea, onde poucos olhares midi- por diversos estilos e gêneros musicais locais e globais,
áticos têm conseguido perceber tal diversidade. Não raro, como o frevo, o ijexá, o samba, o reggae, a salsa, o rock
esta escassa visibilidade midiática destes diversos fazeres e lambada, entre outros. Percussão e guitarras – baianas,
musicais locais e suas complexas redes de pertencimento preferencialmente5 - temperavam o “caldeirão” de uma
e conectividade têm corroborado com o desconhecimento cidade que reverbera música e etnicidade. MOURA (2001,
ou a disseminação de discursos e textos que omitem – al- p.221) conceitua Axé music, a partir desta pluralidade em
guns casos – e/ou distorcem as cenas musicais soteropoli- sua gênese, como não sendo um gênero musical, mas “in-
tanas, reiterando a necessidade de que não basta somen- teface de estilos e repertórios”.
te produzir canções, grupos e elaborações estéticas, mas
executá-las e publicizá-las a um maior número possível de Trataremos desta questão mais adiante, mas cabe salientar
pessoas, tal como airma Nando Reis na obra Itaim para o que apesar desta diversidade, havia duas predominâncias
Candeal – faixa que encerra Timbalada - primeiro disco no carnaval soteropolitano até a primeira metade da déca-
desta banda, lançado em 1993: “(...) Gosto de tocar no rá- da de 1980: Dodô e Osmar no quesito trio-elétrico; e o Fre-
dio, o que parece óbvio, é fundamental”. vo, enquanto gênero musical massivo. É Luiz Caldas quem
desloca consideravelmente estas referências, inscrevendo
Neste sentido, se evidenciarão neste trabalho, outras não somente o trio-elétrico Tapajós, mas o ijexá nas rádios
possibilidades de compreensão da Axé music, tendo como comerciais da cidade. O Tapajós - propriedade de Orlando
prerrogativas centrais a díade estética e mercado. O gê- Tapajós -, é palco, inclusive, da banda Acordes Verdes, que
nero baiano massivo enquanto produção, fruição e apre- tinha Luiz Caldas como seu cantor e idealizador6.
ciação estética, mas também sua relevante participação
e interação com as tramas mercadológicas e organiza- Em 1985, Luiz Caldas lança o LP Magia, magistral regis-
cionais. Mais uma vez, da Bahia para o mundo, música. tro comercial de um artista que logo alcançaria as para-
Desta vez, com articulação empresarial. das de sucesso de boa parte do Brasil com a faixa Fricote
(Nêga do cabelo duro). Tendo como autores o próprio
O objetivo deste artigo é apresentar a produção musical Luiz Caldas e Paulinho Camafeu, Fricote representava
baiana contemporânea denominada Axé music, ofertan- uma musicalidade baiana de entretenimento. A ampla
do elementos na tentativa de desconstrução de três mi- receptividade da obra e deste artista com visual exótico
tos (monocultura, baixa qualidade técnica e sua suposta reforçava as dinâmicas musicais locais já existentes em
decadência). A metodologia utilizada privilegia a análise Salvador, tais como a musicalidade e a territorialidade

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dos blocos-afro – relevantes enquanto referência esté- nacional que, prontamente, se voltaria para a mais nova
tica para autores, artistas e sociedade. produção musical soteropolitana. É neste contexto que
surge e se substancializa no cotidiano da cidade, mais
A intensa presença midiática de Luiz Caldas no cenário tarde Brasil, a música Faraó (autoria de Luciano Gomes),
musical e sua associação, à época, com o jovem e promis- elencando o Olodum e seus ensaios no Pelourinho, como
sor Bloco Camaleão; a ascensão dos blocos-afro espalha- vitrine de músicas, artistas e compositores emergentes.
dos pela cidade; o interesse e incursão das gravadoras no Nestes ensaios, artistas e autores, apresentavam e expe-
campo artístico local; o apoio de empresários e radialistas rimentavam suas músicas, em busca de legitimação po-
também locais, com relevante destaque para Wesley Ran- pular. A ocorrência de tal aceitação representava alcançar
gel7 e Cristóvão Rodrigues8, respectivamente; o início de outras etapas da produção musical que desembocaria em
uma aliança entre artistas e as forças políticas, são ape- proissionais como Wesley Rangel e Cristóvão Rodrigues.
nas alguns elementos e indícios que corroboram, à época,
com a situação privilegiada da Bahia no campo cultural e Neste breve relato, vale o registro de que o Olodum, me-
artístico nacional. diante a pronta aceitação popular de suas obras, cantores
e de seu ensaio na famosa “Terça da Benção”, passou a
O novo cenário musical baiano de meados da década promover duas modalidades deste: aberto e fechado. O
de 1980 necessitava de nome, paternidade e referên- “ensaio aberto” era realizado nas noites de domingo, no
cias para registro. Convencionou-se, então, a partir de Largo do Pelourinho; o “fechado”, nas noites de terça-fei-
inscrições e iniciativas jornalísticas: Luiz Caldas, o pai; ra, na quadra do Teatro Miguel Santana, sendo necessária
o LP Magia e a música Fricote, marcos iniciais. Vamos a a aquisição comercial de ingressos.
eles: a expressão Axé music é reforçada coletivamente
a partir de textos e críticas do jornalista baiano Haga- Neguinho do Samba, percussionista experiente e respon-
menon Brito que procuravam negativar tal produção sável pelos arranjos percussivos da banda Olodum, apre-
musical. Na relação inicial de seus primeiros artistas e sentava boa parte de suas “experimentações” sonoras,
a Imprensa, a diminuta compreensão acerca do gênero fundindo o samba-duro baiano e o reggae jamaicano,
contemplava a dependência desta com o setor fonográ- chegando às células rítmicas do samba-reggae – base
ico nacional, e, quase sempre orientavam para a supos- rítmica predominante e característica da Axé music.
ta ausência de criatividade e baixa qualidade técnica de
seus músicos e intérpretes. Neste sentido, GILROY (2001, p.92-98) relete acerca da
modernidade a partir das culturas do Atlântico Negro,
A correlação de forças midiáticas e musicais, à época, caracterizada pelo seu aspecto híbrido, e não restrito
procurou, sem sucesso, ofuscar que na nomenclatura Axé a etnicidade e nacionalismo. A Axé music pode ser in-
music, para além dos preconceitos e estereótipos, conti- corporada às relexões deste autor, assim como, alguns
nha a possibilidade de fusão, do encontro entre estéticas elementos de sua gênese – por exemplo, o fenômeno
e instrumentos musicais distintos: Axé, representando o disseminador dos blocos afro-soteropolitanos -, como
afro, o tribal, o negro, o candomblé; Music contemplava mote, ou, sendo a estas pertencentes. Parte considerável
o pop, o world music, neste caso, estilizado pelo encontro de artistas da Axé music procurou se desvencilhar desta
de guitarra e timbau, além da mediação pela voz em re- temática, enquanto outros a tomaram como temática
frões fáceis e repetitivos. central de seu repertório.

Quanto à necessidade de instituir paternidade e refe- LIMA (2002, p.77-96) corrobora com esta discussão, a
rências, há controvérsias. Luiz Caldas, o álbum Magia e partir de três exemplos soteropolitanos emblemáticos -
a obra Fricote não podem ser considerados marcos ini- Ilê Aiyê, Olodum e Timbalada -, airmando existir entre
ciais, mas indícios relevantes na historiograia da Axé estes, trajetórias discursivas distintas envolvendo mú-
music, enquanto suas primeiras e magistrais referências sica e etnicidade. A ampla atuação nacional e interna-
mercadológicas. Deve-se considerar o caráter processu- cional do Grupo Cultural Olodum realçou e impulsionou
al deste fenômeno, tal como Norbert Elias sugere: “(...) sua dinamicidade e complexidade organizacional, dialo-
nada mais inútil quando lidamos com processos sociais gando tradição e modernidade a partir de ideais vincu-
de longa duração, do que a tentativa de determinar um lados à etnicidade, e, em especial, aos dilemas e dramas
começo absoluto” (ELIAS, 2001, p.234). Artistas atuais, do afrodescendente baiano e brasileiro, como observou
à época, já se apresentavam e registravam lançamento DANTAS (1994, p.36).
de discos antes mesmo de Luiz Caldas – Chiclete com
Banana, por exemplo, lançou em 1983 dois discos: Traz Acerca da percussão enquanto elemento da Axé music,
os Montes e Estação das Cores. ainda hoje se pode perceber a predominância desta nos
blocos afro, blocos de trio, artistas e bandas responsáveis
O fato mais marcante é que em 1986, o álbum Magia pela música dos blocos de corda - ainda que alguns blo-
atinge a marca de 120 mil cópias vendidas, e a exposição cos afro tenham se aventurado e solidiicado experiências
midiática e musical de Luiz Caldas, à época, represen- percussivas a instrumentos harmônicos e melódicos. Um
tava novas possibilidades para a indústria fonográica dos principais precursores desta transformação, o bloco

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Ara Ketu, chegou a ser acusado e criticado por se distan- de suas produções, deixando na história fonográica deste
ciar dos seus elementos e objetivos iniciais, como num gênero álbuns e gravações de questionável qualidade.
processo acentuado de descaracterização registrado por
GUERREIRO (2000, p.33-39). Numa outra perspectiva, sua extensão efetiva aos dias
atuais encontra-se diretamente relacionada ao próprio
As transformações não estavam restritas ao universo da desenvolvimento do carnaval soteropolitano, e suas múl-
Axé music, mas à própria cidade... A década de 1980 tiplas atividades inter-relacionadas. Dentre elas, desta-
não apresentou somente o início da aparição midiática que para os blocos de cordas, e o conjunto de organiza-
e estruturação empresarial do gênero em questão, mas ções empresariais advindos das estrelas e artistas deste
o início de um conjunto de transformações socioeconô- segmento musical, motivando discussões e embates ideo-
micas e culturais no Estado, tais como os primeiros anos lógicos acerca de elementos presentes e constituintes de
de atividade do Complexo Petroquímico de Camaçari; da aspectos circunscritos a tradição e modernidade.
implantação de Shoppings Centers; do maior complexo
de comunicação do Estado (Rede Bahia); da aparição Entretanto, ainda hoje, não raro, a constante presença e
e fortalecimento de grandes organismos empresariais legitimação da Axé music no cenário musical local e nacio-
carnavalescos, chamados blocos de trio (MIGUEZ, 2002, nal é marcado por dissensões e mitos – estes, compreen-
p.252-304); do surgimento dos blocos afro e ampliação didos enquanto ideias não correspondentes com a verdade
de suas atividades, contando, inclusive, com registros do fato social. Dentre os mitos, neste trabalho, destaque
fonográicos; de encontros musicais inusitados até en- para o da monocultura, da suposta baixa qualidade técnica
tão, como o Concerto da Orquestra Sinfônica da Bahia e de sua tão propagada crise/decadência/desaparecimento.
com o Afoxé Filhos de Gandhi - fruto de provocações
e reivindicações de artistas e compositores baianos; de 3. Mito I – Monocultura da Axé Music
Carlinhos Brown e seu Vai quem Vem, grupo que se des- A compreensão de que a produção musical baiana atual
dobraria posteriormente, em sua perspectiva musical e é restrita ao Axé music é equivocada (Ex.1), e, não raro,
multi-étnica intitulada Timbalada. amparada no desconhecimento da relevante diversidade
presente no campo musical baiano. Ora silenciosa, ora
MOURA (2001, p.120) sinaliza parte destas transfor- invocando os meios de comunicação, parte considerável
mações enquanto modernização da cidade de Salvador, da diversa produção musical baiana é exportada diaria-
sendo, inclusive, motivo e tema para outras formas de mente, seja na virtualidade, seja nas remanescentes lojas
visibilidade e inscrição no/do carnaval soteropolitano, as- tradicionais de CD´s e DVD´s, ou nos inúmeros shows e
sinalando a força relacional deste enquanto experiência participações de artistas baianos que se apresentam fora
social comunitária que se estende aos novos modelos de e dentro da Bahia.
convivência urbana contemporânea. Para MIGUEZ (ibid.,
p.265), a década de 1980, então, se conigura enquanto Composta por inúmeros artistas esteticamente vincu-
consolidação do mercado de bens simbólico-culturais no lados ao mundo do Rock, Reggae, Forró, Samba, Samba
Brasil, iniciado nas duas décadas anteriores e, no caso Junino (semelhanças rítmicas ao Samba Duro de bairros
Bahia, duas dinâmicas se consolidam, prioritariamente, como o Engenho Velho de Brotas), Pagode, Partido Alto,
na formatação e legitimação da Axé music: os blocos afro MPB, Salsa/Merengue, Jazz, Erudito e Pop, a Bahia dia-
(estética e temáticas) e os blocos de trio (mercado). loga sua textualidade e inscrição no competitivo campo
das marcas, a partir da relação tradição e modernidade. É
Na década de 1990, é este mercado que ativa seus me- bem verdade que, dentre inúmeros gêneros e estilos mu-
canismos, personagens e teias midiáticas, e eleva a Axé sicais, é a Axé music o maior exemplo de estruturação e
music, e seus principais interlocutores, ao topo das pa- organização empresarial, mas não o único. Monocultura
radas musicais nacionais, reposicionando no tabuleiro pressupõe unidade e ausência de outros discursos e ele-
competitivo da indústria fonográica o gênero sertane- mentos estéticos – não sendo este, o caso da Bahia. A
jo. Aliando a percussividade dos blocos afro aos acor- Bahia, e em especial Salvador, congrega produção e frui-
des e harmonias de bandas e artistas como Luiz Caldas, ção de inúmeros gêneros musicais (Ex.1).
Sarajane, Relexu’s, Daniela Mercury, Banda Eva, Banda
Beijo (Netinho), Chiclete com Banana, Asa de Águia, Os elementos simbólicos podem conferir à Bahia sentidos
entre outros, consolidou-se na agenda dos programas do Pop - de popular -, massiva e carismática, onde os
televisivos, de rádio, do mercado fonográico nacional, registros do percussionista do Olodum erguendo o instru-
sendo alvo dos interesses das gravadoras majors em mento de percussão com as cores da África já não mais
atividade no país. lhe pertencem... Conigura-se enquanto arquivo sempre
disponível a downloads, evidenciando e disseminando a
O repentino sucesso comercial e midiático da Axé music marca de um Estado com produção musical diversiicada
também oportunizou comportamentos isomóricos no que, não raro, agrega e agrada, ixa e desloca constante-
mercado, e inúmeros registros negativos. Um deles, a pro- mente sentidos identitários, (re)orientando olhares, sen-
liferação de considerável contingente de bandas, intérpre- sações, experiências e as próprias (re)signiicações iden-
tes e empresários que não privilegiaram o lado artístico titárias (HALL, 1999; CANCLINI, 2003).

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Quadro I – Bares, Boites e Casas de Shows/Eventos em Salvador9

Bairro Espaço/Casa de Show Gêneros Musicais


Boomerangue
Casa da Mãe
Tom do Sabor MPB, Salsa, Forró, Pop, Rock, Reggae,
Rio Vermelho Espaço Jequitibar/Varanda do SESI Eletrônico, outros.
Borracharia
All Music Bar
The Twist Pub
Bahia Café Hall Axé music, Pagode, Sertanejo, Salsa,
Paralela Wet’n Wild Forró, Pop, Rock, Reggae, Eletrônico,
Parque de Exposições Gospel, outros.
Museu du Ritmo
Comércio Axé music, Pop Rock, MPB.
Cais Dourado
Mamagaya
Orla Pagode, Axé music, outros.
Beach Beer
Bahia Marina
Avenida Contorno Axé music, Pop Rock, MPB.
Cais Dourado

Ribeira Marina da Penha Pagode e Arrocha.

Barris Beco de Rosália MPB.

What’s Up
Rock It
Pituba Pop Rock, Forró, Reggae.
Pra Começar
Hit Music Bar
Barra Club Lotus
Eletrônico, Forró, Pop Rock, Axé music.
Bohemia
Jardim dos Namorados Forró, Axé music, Pop, Funk, Pagode,
Madrre
Eletrônico, MPB.

Boca do Rio Empório Forró, Pagode e Axé music.

Garibaldi Pagode, Forró, Axé music, Pop Rock e


Estação Ed Dez
Gospel.
MPB, Reggae, Axé music, Forró, Rock,
Campo Grande Concha Acústica do TCA
outros.

Fonte: Pesquisa de campo do autor realizada entre os meses de março e setembro de 2009.

A Axé music, assim como os demais gêneros musicais ção e funcionalidade das marcas na contemporaneidade,
produzidos na Bahia contemporânea, constitui-se en- identiicando, distinguindo, localizando, enquadrando e
quanto marca distintiva e agregadora de signiicantes, incorporando sentidos diversos em seu processo de exis-
relações físicas/metafísicas e potencialidades, tal como tência, sendo a marca, um campo simbólico que se ali-
qualquer outro gênero musical. Para NORBERTO SILVA menta do real (o histórico de seus produtos e obras) e
(2003, p.208), as signiicações sociais são estruturantes, do imaginário (através da comunicação). Ou seja, as es-
constituindo utilidade e tessituras identitárias diversas tratégias corporativas pertencentes à gestão de marcas
que favorecem consumo e distinção. Não obstante, a au- englobam bens tangíveis e intangíveis que se locupletam
tora aprofunda as discussões acerca da criação, utiliza- e se (re)signiicam socialmente (ibid., p.188).

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Esta relação - consumo e lógica social – também é ana- Eis, então, que a telemática e as convergências em redes
lisada por BOURDIEU (1989, p.36) em considerações eletrônicas realçam o poder do simbólico contemporâneo,
acerca do fenômeno da distinção social e da sociedade contribuindo para conigurar o âmbito das políticas neoli-
de consumo. SAHLINS (2003, p.128-161) amplia esta berais. Nesta lógica, no campo baiano, são inúmeras as ini-
discussão evocando conceitos estruturantes do capita- ciativas governamentais, não somente relacionadas à Axé
lismo industrial e pós-industrial. Para SAHLINS (ibid., p. music, mas a outros gêneros. Da extinta Secretaria de Cul-
209), objetos e pessoas estão “unidos em um sistema tura e Turismo do Governo do Estado da Bahia, até 2006,
de avaliações simbólicas, sendo o próprio capitalismo projetos como o Emergentes da Madrugada, Bahia Singu-
um processo simbólico”. CASTORIADIS (2000, p.142), ao lar e Plural, Sons da Bahia, permitiram o registro fonográi-
descrever as ordens racionais existentes nos campos co de boa parte desta diversidade cultural do Estado.
simbólicos especíicos, adota a expressão “universo sig-
niicativo” para tal assunto. A visibilidade, mais uma vez, no caso Bahia, ressalta
apoios do Estado aos seus artistas, uma vez que, não raro,
Neste sentido, a lógica social do consumo enquanto ele- dada à força midiática e massiva de seus repertórios e
mento distintivo e possuidor de signiicações sociais e incursões, estrelam campanhas publicitárias estratégicas
sentidos, pode ser incorporada ao conigurar a Axé mu- que destacam as potencialidades culturais e naturais do
sic enquanto marca impulsionadora de novas lógicas e Estado para seus principais centros emissivos de turistas.
atores sociais. ELIAS (1995, p.50) advoga que a condição É a música e a etnicidade como elementos simbólico-cul-
humana é desejosa de diferenciação e status, a partir de turais, e fatores motivacionais de deslocamento turístico.
regras socialmente instituídas e legitimadas de valores
e hierarquizações distintivas mediante o consumo. Para O simbólico, neste caso, produzindo reconhecimento,
ELIAS (ibid. p. 50-51), tais valores “são sempre determi- afetividade, representatividade – política, inclusive –
nados também pela nossa esperança de ver que os ou- e ignora o arbitrário, o descrédito e o ilegítimo. Ainda
tros têm consciência do nosso mérito, ou pelo aumento assim, compreendendo desta forma o campo simbólico,
do nosso prestígio pessoal”. A produção cultural, neste não se pode excluir as outras forças e poderes nele ins-
sentido, se constitui como elemento distintivo, tipii- critas, dentre estes, a produção artística e as relações
cando sujeitos e suas representações sociais desejadas a e conlitos daí advindos. Um deles é a competitividade
partir deste com o outro. entre os próprios estados brasileiros, tendo como su-
porte, as suas produções artísticas e culturais de um
Compreendendo o campo simbólico como a territoriali- lado, e, do outro, a força dos meios de comunicação
dade mediada pelos signos e símbolos, enquanto elemen- aí instalados enquanto atores relevantes nas tramas da
tos “por excelência da integração social” que possibilitam Indústria Cultural. MOURA (1996, p.07), no caso Bahia,
o consenso acerca do sentido do social (BOURDIEU, 1989, observa que descartar ou não procurar evidenciar suas
p. 07-16), o próprio sentido de contemporâneo é cons- potencialidades, seria equívoco:
tantemente ressigniicado mediante as transformações
econômicas, tecnológicas e sociais também constantes. O produtor, o mercador e a mercadoria são um mesmo todo, con-
Não obstante, a espetacularização (DEBORD, 1997, p.13) traditório e desigual. Em descartando a participação desse todo
na sua diversidade, que signiica inclusive potencialidades ainda
é um dos sinais contemporâneos mais incisivos, e, sendo não cogitadas e exploradas, estaríamos arriscando um capital
assim, a produção musical baiana contemporânea aqui humano fantástico, o que poderia adquirir cores sombrias em
apresentada se locupleta desta estrutura que mundializa tempos de vacas tão magras.
cultura(s), atribuindo novos sentidos à contemporaneida-
de, ao espetáculo. Em outras palavras, envolve outras possibilidades de be-
nefícios não restritos ao Carnaval – enquanto dinâmica e
Sendo assim, a Axé music, enquanto produção simbólica, temporalidade. Enquanto dinâmica, a Axé music se subs-
corrobora com a inscrição do produto Bahia mundo afora, tancializa em artistas/empresários locais consagrados
como é comum em outras territorialidades que articulam nacionalmente, suscitando novas atividades, necessida-
elementos e feixes constitutivos de seu patrimônio cultu- des, proissionais, consensos e conlitos... Enquanto tem-
ral como estratégia de atratividade e mercantilização de poralidade, a Axé music extrapola o circuito do carnaval
produtos turísticos formatados, dinâmicos e globalizados. soteropolitano, numa extensa programação de shows e
Para IANNI (1999, p. 124), a obtenção de renda mediante micaretas que se inter-relacionam com o carnaval de
negociação do seu espaço, das suas culturas e produções Salvador, numa espécie de retro-alimentação não restrita
simbólicas, além de provocar deslocamentos, integra-se às sonoridades, mas às corporações locais – produtoras,
ao contemporâneo, onde: agenciadores, editores musicais, etc.

Em todas as esferas da vida social, compreendendo as empresas É o mercado do entretenimento, da indústria cultural
transnacionais e as organizações multilaterais, os meios de comu-
centrada especialmente em Salvador e seu Recôncavo,
nicação de massa e as igrejas, as bolsas de valores e os festivais de
música popular, as corridas automobilísticas, as guerras, tudo se que corroboram com os alinhaves identitários, tanto no
tecniica, organiza-se eletronicamente, adquire as características sentido dos arcabouços sociológicos quanto naquele dos
do espetáculo produzido com base nas redes eletrônicas, informá- temas econômicos. Em outras palavras, que Bahia é esta,
ticas, automáticas, instantâneas e universais.

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capaz de competir com transnacionais da indústria fono- As origens embrionárias da Axé music são distintas, e,
gráica, por exemplo, tensionando a partir de uma produ- quase numa rítmica antropofágica/tropicalista, consegue
ção musical e fruição estética próprias? Novos e velhos unir, fundir céluas rítmicas e melodias, popularizando
vetores de sentido (NORBERTO SILVA, 2003, p.203-223) e entretendo sem maiores relexões ou preocupações –
se inscrevem, e são estimulados, junto ao imaginário na- fato que acentua seu caráter massivo e de entretenimen-
cional e internacional acerca do lócus e ethos Bahia. to. Ainda segundo MOURA (ibid., p.221):

Vejo aí, também, o próprio ecletismo dos elementos que passam


Por outro lado, houve críticas à participação estratégica
a se encontrar nesse intrigante repertório que tantas páginas tem
da Bahiatursa nos últimos anos, quando de seu apoio a merecido de jornalistas, críticos, comunicólogos e cientistas so-
alguns artistas da Axé music em shows por outros pa- ciais. A axé music apresenta-se como texto identitário difuso e
íses, tendo como contrapartida, a divulgação da marca aparentemente aproblemático e consensual, referindo-se à Bahia
como um todo, já desde o início contando com a participação de
Bahia e de suas ferramentas publicitárias, tais como
músicos de várias origens e estilos.
portais eletrônicos de divulgação turística10. O fato é
que a mesma Bahiatursa também proporcionou a via-
Passando ao campo organizacional, boa parte dos artistas
gem internacional do grupo folclórico baiano Zambia-
da Axé music se articulou, empreendendo suas próprias
punga, entre outras iniciativas governamentais de apoio
empresas relacionadas à gestão cultural – administração
e fomento às produções artísticas e culturais.
das carreiras artísticas e atividades a estas relacionadas,
tais como, selos fonográicos, editoras musicais, agências
O mito da monocultura pode estar atrelado à força po- de publicidade, estúdios de gravação, produtora de shows
lítica, econômica e empresarial dos principais artistas e eventos, entre outras.
deste gênero baiano. No aspecto político, se articula-
ram relações, benefícios e interesses com governantes Pode-se perceber a preponderância dos artistas relacio-
e meios de comunicação. O carnaval soteropolitano, por nados ao universo Axé music, onde boa parte dos seus
exemplo, vem passando por complexas modiicações de artistas é proprietária de editoras musicais, situando a
modo a atender interesses dos gestores culturais vincu- Bahia de forma representativa e relevante junto aos te-
lados à iniciativa privada, no campo música. O tradicio- mas pertinentes ao direito autoral.
nal e gratuito encontro de trios da Praça Castro Alves
não mais existe, e o tradicional circuito do Campo Gran- A Bahia vem se conigurando como o terceiro estado
de apresenta sinais de decadência e de pouco interesse em número de Editoras Musicais no país (revista Su-
dos principais artistas. cesso CD/Show Business/ECAD/UBC–2008), sexto em
arrecadação pública, inscrevendo alguns de seus Au-
A concentração econômica dos principais artistas da Axé tores na liderança de rankings nacionais e regionais no
music no carnaval soteropolitano é considerável. Bandas quesito recebimento de Direitos Autorais – categoria
e artistas como Ivete Sangalo, Asa de Águia e Chiclete Execução Pública.
com Banana, individualmente, são representantes empre-
sariais de inúmeros blocos e camarotes. No campo da edição musical soteropolitana, boa parte
das Editoras Musicais é de propriedade dos artistas locais,
Passando ao campo simbólico, Axé music pressupõe diver- sejam cantores ou autores, aproximando-se do quadro do
sidade e dela se (retro)alimenta, onde é comum seus artis- Sudeste do País onde estas organizações - líderes deste
tas experimentarem em seus repertórios músicas inteiras, mercado - estão divididas entre as de propriedade das
fragmentos, ou combinações entre gêneros presentes na majors12 e dos artistas locais. Em Salvador, esta atividade
produção musical baiana. Nada extraordinário, até então, é mais um dos desdobramentos evidenciados a partir da
uma vez que a polissemia conceitual das experimentações proissionalização do Carnaval Baiano e da legitimação
e encontros dos gêneros musicais é inerente ao próprio da música denominada Axé music.
conceito de gênero, numa perspectiva de que suas fron-
teiras estéticas do gênero musical enquanto apropriação e A monocultura do Axé music em Salvador não proce-
categoria são tênues, distintivas e subjetivas. de, mas apresenta indícios de que este gênero musical
apresenta evidências de proissionalização, tendo, ainda,
Nesta direção, a conluência das formas rítmicas e melódi- objetivos deinidos e articulação social entre os atores,
cas de uma musicalidade das ruas de Salvador, Recôncavo fortalecendo o campo. DiMAGGIO e POWELL (2005, p.31)
e demais regiões se interfacia com elementos da cultura airmam que o campo organizacional só pode ser consi-
mundial pop, multiétnica, multicultural e world music11, derado se houver legitimação empírica e com deinições
representando a própria “interface de estilos” sugerida por institucionais. Para tal, os autores airmam que são ne-
MOURA (2001, p.220). Para GUERREIRO (2000, p.117), a cessários quatro elementos:
centralidade da produção musical baiana contemporânea
assentada na percussividade é que garante sua inscrição ao a) um aumento na amplitude da interação entre as orga-
universo da world music, onde funcionam mais facilmente nizações no campo;
as fusões entre células rítmicas, entre timbres sonoros, per- b) o surgimento de estruturas de dominação e padrões de
formances, corporalidades e novos sentidos de pertença. coalizões interorganizacionais claramente deinidos;

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CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.

c) um aumento na carga de informação com a qual as Rock - realizado no Carnaval de Salvador, bairro de Piatã,
organizações dentro de um campo devem lidar; onde frequência superior a oito mil pessoas por ano14.
d) o desenvolvimento de uma conscientização mútua en-
tre os participantes de um grupo de organizações de A receptividade do Reggae e do Forró na Bahia, por exemplo,
que estão envolvidos em um negócio comum. despertou o surgimento de eventos especíicos e inúmeras
bandas destes gêneros com relevante diversidade, inclusive.
Em 1999, visando ao maior grau de proissionalismo, so- Bandas e artistas com repertórios que transitam entre o tra-
lução de problemas coletivos do setor e ampliação dos dicional reggae - raiz, ou reggae roots -, aos mais híbridos,
destinos e públicos da Axé music, surge a APABahia – As- com destaque para Edson Gomes, Sine Calmon, Diamba,
sociação dos Produtores de Axé para o Desenvolvimento Adão Negro, Massai, Palmares, Mosiah, entre outros.
da Música da Bahia -, comumente chamada de APA.
O Forró também soube consolidar seu cast de artistas e
O surgimento e desenvolvimento da Axé music e de organis- agenda de contratantes. Dentre as bandas baianas, des-
mos coletivos como a APA Bahia, tanto nos aspectos esté- taque para Estakazero, Colher de Pau, Adelmário Coelho,
ticos quanto organizacionais, remete, em boa parte, à pro- Flor Serena, Virado no Mói de Coentro, A Volante do
issionalização e dinamismo da produção artística e musical Sargento Bezerra, Cangaia de Jegue, Sobe Poeira, Acara-
no Estado da Bahia. Dentre as atividades da APA, o monito- jé com Camarão, Tio Barnabé, são exemplos verossímeis
ramento da execução de seus repertórios em localidades es- de que outros gêneros musicais se estruturaram, estéti-
tratégicas, assim como a própria empresarização de horários ca e mercadologicamente, em paralelo à Axé music, e se
nas rádios comerciais de outros estados, visando à exposição fazem presentes na mídia.
e execução musical dos seus associados. Não obstante, atua
no campo político, tendo representação no Cluster de Cultu-
ra e Entretenimento do Estado da Bahia. 4. Mito II – Baixa qualidade técnica
O segundo grande mito relacionado a Axé music é esta-
J.R., produtor da banda Rapazzolla, sobre a diversidade belecido a partir de sua suposta “baixa qualidade téc-
musical soteropolitana e organização empresarial da Axé nica”. Mas o que caracterizaria e fundamentaria esta
music, comenta13: expressão? Arranjos mal elaborados? Canções repetiti-
vas? Músicos tecnicamente pouco habilitados? Excesso
[...] o Axé é a grande referência musical atual da Bahia, mas sabe- de unidade temática composicional? A participação no
mos que existem outros ritmos acontecendo na cidade. Viajamos campo permite airmar que tais críticas estão alicerça-
toda semana, mas, em Salvador, frequentamos eventos de outros
gêneros, e sempre divulgamos isso nas entrevistas. (...) A produção
das a partir da disseminação do senso comum plugado
de uma banda de Axé Music é muito organizada. Mais até que o em desconhecimento e preconceito.
Pagode, por exemplo. Posso falar porque trabalhei como produtor
de pagode por dez anos. A sensibilidade e qualidade técnica dos músicos, arran-
jadores e diretores musicais em atividade nas bandas de
Não obstante, Salvador, a partir de iniciativas de artistas Axé music são relevantes no processo de legitimação des-
e da própria sociedade civil, vem apresentando inúmeros ta, ainda que tais informações sejam restritas ao meio
eventos relacionados a outras musicalidades. Tanto quan- musical. Assim, como em qualquer outro gênero musical
to o Axé music, o Rock é merecedor de destaque frente a popular massivo, o virtuosismo não é regra fundante para
sua estética e organização. Dedicação, proissionalismo alcance do sucesso, necessitando, ainda, de elementos
e amor ao Rock izeram surgir na cena soteropolitana a outros - rede de relacionamentos, carisma, oportunismo,
Associação Cultural Clube do Rock da Bahia – ACCRBA -, sorte, inteligência, habilidade e senso estético.
em 1991. Exemplo emblemático no Brasil, esta associa-
ção sem ins lucrativos atua incisivamente na produção
Na Axé music, autodidatas e doutores atuam inten-
e organização de eventos culturais, prestação de serviços
samente numa rotina nacional e internacional de
em forma de cooperativa, captação de convênios e asses-
ensaios, shows, viagens, gravações, estúdios, etc. O
soria junto às bandas de rock. Pioneira dentre as associa-
ecletismo na formação destes proissionais só corro-
ções de Rock no Brasil, são de sua responsabilidade ações
bora com a requisitada diversidade constituinte da Axé
que se solidiicam na realização do Primeiro Festival de
music, potencializando, inclusive, oportunidades, como
Rock do Carnaval do Brasil (1994); Primeiro Dia Muni-
airma MOURA (2001, p.197):
cipal do Rock do Brasil – 28 de junho, em homenagem a
Raul Seixas -, através da Lei 5404/98. A princípio, o trio-elétrico tocava frevo, dobrado, marcha e passo
doble. Com a introdução de recursos do rock no instrumental e no
Caracteriza-se, ainda, pela articulação e intransigência repertório, e em seguida do canto, ampliaram-se consideravelmente
quando o assunto é desrespeito ao Rock no Estado, as- as possibilidades de sucesso e a demanda de consumo da banda.
sim como, quando se trata de reivindicar maiores espaços
para este segmento. A ACCRBA possui site, rádio/podcast, Músicos vinculados ao universo Axé, não raro, também
comunidade virtual de relacionamento, msn, fotolog, ví- acumulam experiências proissionais em outros estilos e
deos no youtube, grupos de discussão na rede, entre ou- gêneros musicais em Salvador, tais como o Choro, Jazz,
tros. Dentre suas realizações, destaque para o Palco do Samba, Rock, Funk, Forró, Eletrônico, entre outros.

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O Rock, por exemplo, estabelece diálogo constante com a ta, arranjador e diretor musical que acompanhou Netinho
Axé music, proporcionando informações relevantes a bandas de 1989 a 1998, declara15:
como Asa de Águia, Netinho, Ivete Sangalo e Jammil e uma
Noites. Estas inluências são percebidas nos arranjos, nos Jomar entrou no grupo em 1996... A decisão de termos dois tecla-
distas foi uma sugestão minha, pois usávamos muito sequencer
fraseados, timbres e agressividade de alguns efeitos, distor- (programação), e sempre quis muito ter outro tecladista tocando
ções e riffs de guitarra. Adail Scarpelini, natural de Aracajú/ comigo, por conta dos muitos detalhes de teclados que minhas
SE, guitarrista e diretor musical da banda Voa Dois – banda duas únicas mãos não conseguiam executar. O primeiro tecladista
Revelação do Carnaval de Salvador 2008 -, informa que a que tocou com a gente foi Glauton Campelo - um excelente pia-
nista jazzista carioca que morou 8 anos nos EUA e que tocava com
centralidade da produção musical para Sergipe era – para Djavan ao lado de Paulo Calazans.
muitos, segundo ele, ainda é - a Bahia. Visibilidade e retorno
inanceiro, mas, acima de tudo, pela experiência de estar ao Arranjos, neste sentido, corroboram com a lógica de identi-
lado de músicos que sempre respeitou e admirou. icação e diferenciação do artista, e são inúmeros os exem-
plos de arranjos que se tornaram referências, remetendo,
Por muito tempo toquei e dirigi musicalmente bandas e cds de for-
ró. Calcinha Preta (SE), Caviar com Rapadura (CE), Colher de Pau diretamente, músico/arranjador a artista, e vice-versa.
(BA), mas sempre quis ter a experiência da Axé Music, da união
entre percussão/harmonia. Toquei com Netinho, e agora estou com A estética musical da Axé music encontra-se nos referen-
a Voa Dois, além de sempre estar produzindo e gravando com ou- ciais de timbragem e sonoridade contidos nos arranjos,
tros artistas. Quando as bandas de Axé iam a Aracajú, a gente ia
aos shows, procurava conversar com os músicos, lia os encartes. A mas, também, a partir do entrosamento musical das ban-
Bahia era nossa maior referência musical. das e artistas que souberam aliar a força da sonoridade
percussiva à variedade de timbres e recursos tecnológicos
Em 2008, o Prêmio Multishow de Música Brasileira premiou contidas na organologia ocidental tradicional, como gui-
um destes renomados músicos, Radamés Venâncio, na cate- tarra, bateria, contrabaixo, saxofone, etc. Em outras pala-
goria Melhor Instrumentista, enquanto Ivete, representante vras, o encanto se dá pela magia e carisma do artista, seu
de uma vertente acentuadamente pop da Axé music, foi entrosamento com seus pares, repertórios selecionados e
agraciada nas categorias de Melhor Cantora e Melhor DVD previamente testados nas dezenas de shows e micaretas
(Multishow ao Vivo – Ivete Sangalo no Maracanã). realizadas durante o ano, dentro e fora do Brasil.

Detentor de inúmeros prêmios nacionais e internacionais, Entrosamento, carisma, virtuosismo e sensibilidade são
Carlinhos Brown consegue aproveitar estas situações para elementos referenciais nas justiicativas de obtenção do
discursar sobre uma Bahia sempre planetária e referencial sucesso por parte dos artistas e bandas de Axé music. O
na música nacional, exaltando a capacidade de diálogo es- virtuosismo, na contemporaneidade, nem sempre é ga-
tético da produção musical baiana contemporânea. rantia de êxito – reconhecimento pessoal e comercial. As
musicalidades desta são frutos do encontro entre músi-
Sua ampla concepção musical não dispensa os ensina- cos formados nos conservatórios e academia, nas igrejas
mentos e provocações herdadas de músicos contemporâ- e terreiros de candomblé, na generosidade presente nos
neos - baianos ou radicados na Bahia -, como Ernest Wi- conselhos informais, e, principalmente, nas dinâmicas das
dmer, Walter Smétak e Lindemberg Cardoso, assim como, ruas da cidade que se pretende mundial a partir de seus
numa escala internacional, negocia espaços mediante fazeres e saberes artísticos, em especial, a música.
novos encontros musicais. De sua parceria com o DJ Dero,
em 2004, resulta o disco com forte inluência eletrônica 5. Mito III – Fim da Axé music
Candyall Beat, que tem como principal hit a obra “Ma- A relação arte/espaço, nesta discussão, a partir da per-
riacaipirinha”. Lançados inicialmente na Espanha, disco cepção imponente da produção musical baiana contem-
e obra alcançam sucesso, remetendo, neste mesmo ano, porânea no certame das condições geográicas nacionais,
Carlinhos Brown - naquelas plagas conhecido por Carli- evidencia uma territorialidade resoluta em suas convic-
to Marron -, à condição de convidado musical do Fórum ções de airmação artística perante o outro - nacional ou
Universal das Culturas, realizado em Barcelona. estrangeiro; local ou global.

Da parceria feita com Sérgio Mendes, em 1985, A especulação, neste sentido, acerca da decadência, ou im
conseguiu emplacar cinco composições no álbum da Axé music é antiga e pode ser melhor percebida a partir
“Brasileiro” – ganhador do Grammy de melhor disco do início do século XXI, e os maiores argumentos encon-
de World Music. Em Salvador, neste mesmo ano, tram-se centrados no declínio de vendas dos produtos fo-
recebe também o Troféu Caymmi. Inúmeros outros nográicos, e na escassez e ausência de renovação de seus
prêmios vieram nos anos seguintes, coroando Bro- quadros artísticos. Seus principais defensores parecem ig-
wn como um dos maiores nomes da Axé music, ora norar que a crise é do setor fonográico mundial - mais
como músico, produtor ou compositor. acentuadamente, do formato CD -, irrompendo-se em inú-
meras fusões e desaparecimentos de gravadoras interna-
A preocupação com a qualidade proissional dos músicos cionais, além da migração dos artistas para as plataformas
acompanhantes também se constitui verossímil no mo- de música online. Sendo a crise fonográica mundial, evi-
mento da formação das bandas. José Raimundo, tecladis- dente que haveria repercussão na produção musical baiana

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contemporânea, promovendo quebras de contrato e desli- Desde a segunda metade da década de 1990, os respon-
gamentos de artistas dos casts das gravadoras – fato que sáveis pelo Festival de Montreaux, Suíça, agendam apre-
impulsionou o surgimento e fortalecimento da produção sentações de artistas baianos da Axé music, corroborando
fonográica local, com inúmeros selos, editoras, produtores com o processo de expansão e internacionalização da
e distribuidores de menor porte. carreira de seus artistas. Margareth Menezes, Olodum,
Araketu, Ilê Aiyê, entre outros.
As agendas de shows, as estratégias de diferenciação e
inscrição estética e mercadológica são elementos rele- Também o Brazilian Day – Rede Globo como uma de suas
vantes e não podem ser desconsiderados em tais rele- maiores empresas articuladoras – reserva a participação
xões. Não obstante, inúmeros artistas e bandas musicais de artistas da Axé music como protagonistas. A atuação da
vêm sendo incorporadas ao texto da Axé music, o que maior empresa de comunicação e entretenimento da Améri-
demonstra sua capacidade de renovação estética junto ca Latina junto à Axé music tem sido crescente nos últimos
às suas células matrizes advindas do samba-reggae, en- anos, principalmente a partir da parceria com a Rede Bahia
quanto marca e território simbólico em processo airma- – organização e registro de boa parte dos shows no Festival
ção, expansão e internacionalização. de Verão, cabendo à Rede Globo a divulgação e distribuição
comercial através de sua gravadora, a Som Livre.
A Axé music transcendeu, rompendo fronteiras e barreiras
mercadológicas e territoriais. Por outro lado, impulsionou o Outro vetor relevante na expansão dos mercados da Axé
surgimento de setores e atividades que corroboram com o music é o próprio Carnaval soteropolitano que - apesar
desenvolvimento da música no Estado, além de disseminar a das recentes controvérsias acerca de seus custos e acen-
marca Bahia nos quatro cantos do mundo. Nos campos es- tuação de seu viés comercial -, ao se proissionalizar e
téticos ou organizacionais, inovou, criando novos mercados internacionalizar, corrobora e termina por disseminar, a
e possibilidades de experiências. Novas redes de proissiona- reboque, as musicalidades e artistas presentes no even-
lidade foram, e continuam sendo implementadas na Bahia, to. A lista internacional de convidados famosos é exten-
assim como a tessitura de uma ampla teia de relações a par- sa, mas só para citar os anos de 2007 e 2008: a banda
tir da legitimação deste gênero em outras localidades. irlandesa U2, o produtor musical Quincy Jones, Naomi
Campbell, Arto Lindsay, e tantos outros que ou não foram
Por outro lado, a Axé music dinamizou o surgimento e de- captados pelas câmeras ou preferiram o anonimato, se é
senvolvimento de carnavais extemporâneos pelo Brasil - que é possível, mas que representam a possibilidade de
mais conhecidos como micaretas -, o mercado de trios elé- maior publicização, nível internacional, de uma dinâmica
tricos e carros de apoio, a promoção de eventos, produção centrada, mas não exclusiva à Axé music.
fonográica, tecnologia aplicada à musica, entre outros.
Não obstante, a presença de celebridades nacionais tam-
A Axé music está presente em eventos nacionais ou interna- bém corrobora neste processo, pois revela a também ex-
cionais relevantes no showbusiness musical contemporâneo, tensa programação de shows, lavagens, festas populares,
comprovando sua vertente pop repleta de inluências e in- feijoadas e ensaios, reforçando, em grande medida, a
formações. Em eventos como o Axé Brasil (BH) – exclusivo ideia mítica de existencialidade exclusivamente festiva
do gênero -, Brazilian Day, Festival de Montreux, Rock in Rio, do território baiano e sua gente. Nesta lógica de retro-
a Axé music conquista espaços. Nas edições 2008 do Rock in alimentação das marcas - Axé music e Carnaval -, como
Rio Lisboa e Madrid, artistas como Carlinhos Brown e Ivete que numa espécie de feedback, também é apontada por
Sangalo foram recebidos por um público que, em sua maio- DANTAS (2005, p.20), quando airma a disposição da nova
ria, conhecia e cantava seus principais sucessos. geração de artistas da música baiana em “cruzar frontei-
ras”, corroborando no processo de legitimação e amplia-
Dentre as primeiras iniciativas de internacionalização do ção do receptivo turístico no carnaval:
gênero baiano, está a Copa do Mundo de 1990, na Itália,
O carnaval baiano dobrou de tamanho nos anos 90: de um para
como assinala o tecladista José Raimundo16: dois milhões de foliões por dia participando da festa. Isso se deveu
a políticas públicas de atração de turistas? Não. Ainda que, efe-
Fomos para Copa do Mundo, na Itália, em 1990. Foi uma grande tivamente, as políticas públicas tenham sido fundamentais para
estratégia comercial da Perdigão que levou o Trio-elétrico para viabilizar infra-estrutura, equipamentos e capacitação de pessoal
Torino. Foi o primeiro trio-elétrico que chegou na Europa de na- para receber turistas, o que duplicou a presença desses turistas foi
vio e montado. Na época em que estivemos na Itália, a lambada a música baiana. Foi Daniela Mercury, que se tornou a maior ven-
estava no auge por lá com o grupo Kaoma. Música brasileira eles dedora de discos do Brasil no início da década de 1990, levando
só conheciam Caetano, Gil, Benjor, Djavan, etc. Enim, MPB. O Axé todo o país a se apaixonar pelo samba reggae “O canto da Cidade”;
era conhecido por uma minoria de italianos que frequentavam o foi o Olodum, que levou a um patamar de prestígio internacional
carnaval da Bahia. Quando começamos a tocar ninguém dançava, essa sonoridade rítmica, que conquistou ícones do pop interna-
pois eles têm uma cultura de assistir ao espetáculo e nunca ti- cional, como Paul Simon e Michael Jackson; foi o Chiclete com
nham visto um caminhão com um som daquele tamanho. Há um Banana, a Banda Cheiro de Amor, a Banda Eva, que ajudaram a
ponto interessante nisso, pois tinha gente lá de todas as culturas, “nacionalizar” o carnaval baiano.
pois era uma Copa do Mundo. Eles começaram a icar fascinados
com o ritmo da música e, meio desajeitados, imitaram muitos bra-
sileiros que estavam lá dançando, e começaram a entrar no clima A etnicidade é elemento pujante neste processo, onde
de festa que a Axé proporciona. não somente os blocos afro são seus representantes,

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mas artistas como Daniela Mercury, Margareth Mene- xandre Peixe e Beto Garrido, além de Paulo Prata, tem
zes, Timbalada, Motumbá, Ara Ketu, entre outros, se fornecido à banda inúmeros sucessos que, após experi-
apropriam mais incisivamente de seus discursos, símbo- mentações em micaretas e shows, logo caem no gosto
los e temáticas musicais. do público, integrando rapidamente o acervo de sites
e programas que distribuem arquivos peer to peer, vide
Sobre a receptividade de turistas nacionais e internacio- Youtube, e-mule, entre outros.
nais com a Axé music, e demais artistas soteropolitanos
com relevante participação no carnaval soteropolitano, Ainda que não se constituam referências em técnica e
o empresário Paulo Roberto, ex-proprietário da Aky Dis- virtuosismo musical, a banda estruturou sua carreira cal-
cos, que até o ano de 2001 se constituía a maior rede cada no entrosamento do grupo, no carisma de seu líder e
de lojas de discos da Bahia, conirma o interesse dos na escolha de um repertório sempre atualizado com o seu
turistas pela Axé music 17: público. A capacidade de performance, diálogo e constru-
ção de repertório, neste sentido, apresenta a Chiclete com
Uma espécie de encanto... Os gringos e turistas nacionais che-
gavam na loja procurando por Olodum, Daniela Mercury, Chicle-
Banana como das mais relevantes bandas da Axé music,
te com Banana, e quem mais da Axé Music a gente oferecesse em se tratando de discograia, inclusive (Ex.2).
eles compravam. O fornecimento de CDs do Olodum para as lojas
do Centro Histórico, por exemplo, tinha de ser semanal. Era de Em contrapartida ao fato de, historicamente, não ter
300/400 unidades para as maiores lojas, e volumes menores para
as lojas pequenas, toda semana. apresentado altos índices de vendas no quesito fono-
gráico como Ivete Sangalo, Netinho e Banda Eva, por
Outro aspecto relevante na argumentação contrária ao exemplo, a banda mantém uma sequência regular de
im da Axé music, é a cobertura midiática internacional registros (Ex.2) que atende seu público mais iel, ape-
do Carnaval de Salvador, que registra números ascen- lidado de Nação Chicleteira, Chicleteiro, Maluquetes
dentes de proissionais cadastrados - fato incontestá- do Chiclete, etc. Chicleteiro convicto e apaixonado, o
vel de que boa parte do mundo já manifesta interesse promotor de eventos e produtor musical soteropolitano
no maior evento de rua do mundo e sua musicalidade Jader Santos, comenta esta relação18:
maior. Não raro, seus artistas excursionam por diversos
A empatia de Bell Marques sempre supera as expectativas. O cara
países, conigurando Espanha e Portugal como líderes e a banda são demais. Sempre acompanho o Chiclete, e, além das
neste receptivo. músicas, nunca vi Bell começar uma puxada de trio sem pedir paz
e agradecer a presença e carinho do público, do proissionalismo
Sua inscrição no mercado de bens simbólicos também que vai dos cordeiros aos empresários. Participo de dois fã-clubes
do Chiclete, um em Salvador e o outro, via internet, com alguns
contempla registros de não aceitação, aversão e restri- amigos e amigas da Espanha. (...) Posso dizer que trabalho com
ção de sua execução pública, inclusive com leis, como música hoje, graças a minha paixão pelo Chiclete com Banana.
nos casos dos carnavais de Recife e Olinda, que proi-
biram artistas e repertórios vinculados ao gênero com Artista e defensora da Axé music em suas inúmeras
argumentos que contemplam o respeito e valorização entrevistas, Ivete Sangalo pode ser considerada a pro-
aos costumes locais. A medida visa salvaguardar laços tagonista de maior sucesso mercadológico do gênero.
identitários com o frevo, e as danças deste, enquanto Mesclando elementos da música pop internacional,
dinâmicas culturais. Contudo, não se pode argumentar como efeitos de guitarra e teclados, à percussividade
que Pernambuco não contribua para a disseminação e local, a artista e empresária Ivete Sangalo coleciona
legitimação da Axé music pelo Brasil, ao contrário. O fama, poder, publicidade, prêmios, discos de ouro, pla-
Recifolia, carnaval fora de época, encontra nos artistas tina, platina duplo, platina triplo, e sua presença na
baianos, seus trios elétricos, performances, refrões e re- mídia televisiva é certeza de audiência para uma artis-
pertórios, os moldes do carnaval soteropolitano. ta que já supera a marca de oito milhões de unidades
fonográicas comercializadas19.
Relevante exemplo de carisma na Axé music, e, natural-
mente ambientada em apresentações nacionais e inter- A sua inscrição e permanência no universo da Axé music
nacionais, a Chiclete com Banana recebeu o Prêmio Press é intencional e motivo de orgulho, como se pode perceber
Award 2007, na categoria de Show Brasileiro, pelo seu na resposta dada ao jornalista baiano Osmar Martins -
destaque nos EUA, e, em julho de 2008 apresentou-se nas comumente chamado de Marrom -, publicada no Correio
cidades de Roma, Milão, Porto e Lisboa, em eventos de da Bahia, em 24/05/2007:
grande porte e com ingressos esgotados antecipadamente.
Osmar Martins – Ultimamente até os críticos mais ferrenhos reco-
nhecem e escrevem: “Ivete Sangalo, se quisesse, já teria migrado
Artistas e empresários estrategistas, os responsáveis
para o pop ou até a MPB”. Mas você faz questão de airmar que é
pela banda Chiclete com Banana estão sabendo impri- uma cantora de Axé. Por quê?
mir uma imagem e identidade musical com relevante Ivete Sangalo – Porque sou. Nunca tentei me deinir nem ser de
personalidade e apresentam um histórico de diálogo forma diferente, estou aí na estrada e feliz. Isso mostra o quanto
o seguimento da Bahia tem poderes especiais. Sou feliz fazendo o
com obras de novos e emergentes compositores. Dentre
que faço. A Bahia está em mim de forma inteira, e isso traz reali-
eles, e em épocas distintas, destaque para Val Macambi- zações e muita felicidade. Viva o Axééééééééé’!!!!!!
ra, Carlinhos Brown, e, mais recentemente, a dupla Ale-

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Quadro II – Discograia Banda Chiclete com Banana

Ano Disco/CD/DVD Gravadora

1983 Traz os Montes Continental

1983 Estação das Cores Continental

1984 Energia Continental

1985 Sementes Continental

1986 Fissura Continental

1987 Gritos de Guerra Continental

1988 Fé Brasileira Continental

1989 Tambores Urbanos Continental

1990 Toda mistura será Permiida Continental

1991 Jambo BMG/Ariola

1992 Classiicados BMG/Ariola

1993 Chiclete com Banana BMG/Ariola

1994 13 BMG/Ariola

1995 Banana Coral BMG/Ariola

1996 Menina dos Olhos BMG/Ariola

1997 Para Ti BMG/Ariola

1997 É Festa BMG/Ariola

1998 Bem me quer BMG/Ariola

1999 Borboleta Azul BMG/Ariola

2000 São João de Rua BMG/Ariola

2000 Universo Paralelo BMG/Ariola

2001 Santo Protetor BMG/Ariola

2003 Chiclete na caixa, banana no cacho (CD) BMG

2004 Chiclete na caixa, banana no cacho (DVD) BMG

2005 Sou Chicleteiro BMG

2007 Tabuleiro Musical Sony/BMG

Fonte: Mazana/Chiclete com Banana, 2008.

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6. Considerações Finais O desempenho econômico do Estado - amplamente es-


A mera e descontextualizada compreensão, neste sentido, truturado no setor de serviços -, reconhece a relevância
da suposta “crise” da Axé music, tendo como argumenta- da Axé music e carnaval soteropolitano e, não raro, trans-
ção central os índices e estatísticas da indústria fonográ- forma seus principais artistas em estrelas de comerciais
ica é errônea, como já foi dito. Mas cabe reiterar, ainda, turísticos, numa missão de disseminar a marca Bahia,
que os shows se coniguram a fonte maior de renda des- mas, também, de atender àqueles que, em níveis diferen-
tes artistas, não a vendagem de produtos fonográicos. ciados, possuem percepção acerca desta territorialidade.
A indústria fonográica é relevante no mercado de bens
simbólicos, é bem verdade, mas sua participação não se Por outro lado, pensar a Axé music com exclusividade
conigura determinante e exclusivo fator ao sucesso. Seus no âmbito das relações comerciais, via indústria fono-
principais interlocutores parecem saber disso, e através gráica, de produtos individualizados e personalizados é
de ações individuais ou coletivas (APA, ABT, entre outros) outro equívoco, uma vez que, anualmente, inúmeras co-
vêm se articulando junto a outras formas de promoção letâneas deste gênero musical são lançadas no mercado
dos seus artistas e repertórios. nacional e internacional.

Entretanto, é inegável que o rápido sucesso deste gênero Pop e World Music, a Axé music é dinâmica articulada
musical baiano contemporâneo estimulou comportamen- e rizomática no mercado de bens simbólico-culturais,
tos isomóricos envolvendo mercado e estética, que ter- satisfazendo parcela relevante de um mundo ávido por
minaram por estimular o surgimento de inúmeras produ- dinâmicas musicais cotidianas do outro, do estranho, do
ções com baixa qualidade técnica, inclusive. exótico, do efêmero e diverso.

Enquanto World Music, a musicalidade baiana denomi- O estranhamento produz a interculturalidade neces-
nada Axé music conjuga, exemplarmente, dois aspectos sária, que, luída que é não se limita exclusivamente à
fundamentais: referência rítmica original (percussão) e relevância religiosa e étnica presente nas canções dos
fusão de gêneros, estilos e células musicais. O constante Filhos de Gandhi, Malê de Balê e do Olodum, numa in-
diálogo entre tradição e modernidade, onde tambores e teração constante Bahia/Mundo/Bahia; do Ilê Aiyê, pelo
guitarras encontram-se devidamente ensaiados e dispos- pioneiro posicionamento étnico-estético; da inluência
tos para embates, ora sonoros, ora silenciosos. do funk no repertório da recém chegada banda Negra
Cor; do repertório e utilização de instrumentos relacio-
A Axé music, em diversas unidades de análise, conseguiu nados a outros gêneros, como o violino, e sua adapta-
estabelecer e manter relação com os principais orga- ção à percussão - Vixe Mainha; de Daniela Mercury, seu
nismos de comunicação e entretenimento do país, para “balé mulato”, discursos, atitudes e sensibilidade artís-
muito além daquilo que se efetivava como seu período tica e organizacional; de Ivete Sangalo, carisma ímpar,
de festa e auge fonográico. O preconceito estético rela- repertórios e articulação empresarial.
cionado à Axé music não encontra lastro em seu campo
real de shows, ensaios e estratégias competitivas visando Acima de tudo, de pessoas que cantam, dançam e atestam
sobrevivência no acirrado mundo dos negócios deste seg- a larga barra de uma Bahia notabilizada por suas próprias
mento da indústria cultural. Artistas e empresários deste canções, compositores, músicos e artistas. Artistas que se
gênero musical souberam estruturar estéticas, mas tam- tornaram empresários, e aprenderam a fazer e exportar a
bém a proissionalização e autonomização de um campo. música de um Estado com larga barra no assunto Brasil.

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CASTRO, A. A. Axé music: mitos, verdades e world music. Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.203-217.

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Notas
1 Grupo Musical de Cachoeira, Bahia, liderado por Valmir Pereira. Com forte inluência dos Tincoãs, o Gêge Nagô segue sua trilha musical fazendo a
ponte entre música, religião e os universos barroco católico e do candomblé afro-brasileiro presentes no Recôncavo Baiano.
2 Necessário reconhecer que não somente a música, mas outros agentes estéticos e artistas também inscreveram e colaboraram com a inscrição da
Bahia no cenário artístico local/global. Dentre eles, Hansen Bahia (xilogravura); Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro (literatura); Glauber Rocha
(cinema); Carybé (artes plásticas); Mário Cravo e Mário Cravo Neto (escultura);entre outras, que não se integram ao escopo deste artigo.
3 O historiador Milton Moura é a maior referência neste assunto, a partir de sua Tese de Doutoramento (2001).
4 Paulo Miguez (1996) sinaliza que os primeiros blocos de trio no Carnaval de Salvador surgem na primeira metade da década de 1970, a partir da
iniciativa de jovens de classe média-alta da cidade. A expressão remete à substituição das atrações musicais tradicionais, tipo charangas e orques-
tras carnavalescas, pelo trio-elétrico enquanto palco móvel para apresentação de bandas e artistas locais emergentes.
5 Na organologia, é uma variante eletriicada do bandolim, com uma estética que remete a uma miniatura de guitarra. Foi criada na década de 1940,
pelos amigos Dodô e Osmar, sendo inicialmente denominada de pau elétrico, e rebatizada como guitarra baiana no inal dos anos 70. O performá-
tico músico baiano Armandinho é seu maior executante.
6 Fundada inicialmente em 1980, a banda Acordes Verdes teve duas formações. Inicialmente com Luiz Caldas (Voz e Guitarra), Jota Morbeck (Voz), Toinho
Bipbop (Contrabaixo), Tan e Eduardo (Percussão). Posteriormente, a formação apresentava Luiz Caldas (Voz e Guitarra), Carlinhos Brown e Tony Molla
(percussão), Cesinha (Bateria), Alfredo Moura (Teclados), Carlinhos Marques (Contrabaixo), Paulinho Caldas e Silvinha Torres (Backing Vocals).
7 Proprietário do maior estúdio de Salvador deste período (Estúdio WR), promove a partir da década de 1980, uma articulação de suas ati-
vidades de empresário e produtor musical, corroborando com inúmeros projetos musicais que integraram a Axé Music, impulsionando o
desenvolvimento desta música baiana.
8 Um dos primeiros radialistas locais que acreditou na Axé Music enquanto movimento estruturado e com perspectivas de proissionalização
(MOURA, 2001).
9 Quadro elaborado pelo autor, a partir de visita ao campo e entrevista com músicos e promotores de eventos. Para a compreensão deste quadro, é
necessário reiterar que se tratam de espaços com capacidade para pequenos, médios e grandes shows, além de: i) Os locais acima não evidenciam
a totalidade dos bares, boites e demais espaços com capacidade de realização de shows em Salvador; ii) A coluna referente aos gêneros musicais

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contempla os estilos mais preponderantes dos espaços agrupados em bairros, a partir da fala dos próprios administradores destes, e informações
eletrônicas disponibilizadas através de boletins por alguns sites de eventos. Neste quadro, não se considera a intensidade dos eventos musicais em
teatros em Salvador, ainda que, haja registros de shows nestes espaços.
10 O governo do Estado da Bahia é o mantenedor e gestor do site www.bahia.com.br, e disponibiliza faixas indicativas, banners e folders aos grupos
e produtores musicais que excursionam por outras cidades e países com apoio oicial.
11 A expressão world music compreende a fruição estética musical dos países, sendo o elemento étnico quase sempre preponderante neste processo
dialogal envolvendo gêneros e estilos musicais.
12 Corporações Fonográicas nacionais e transnacionais, vide Sony/BMG, Warner Chappell, Universal Music, Som Livre e EMI.
13 Entrevista concedida ao autor em 22/07/2008.
14 www.accrba.com.br
15 Entrevista concedida ao autor em 29/07/2008.
16 Ibid., 2008.
17 Entrevista concedida ao autor em 05/08/2008. Já tendo sido responsável por 75% do mercado da venda de discos e itas na Bahia e alguns estados
do Nordeste. O avanço indiscriminado da pirataria virtual e física levou à redução desta rede em 2002 e encerramento das atividades no comércio
varejista em 2007. O empresário continua vinculado ao showbusiness musical, via Estação CD, atuando no setor de distribuição atacadista de cds e
dvds. Nos últimos anos, distribuiu as produções fonográicas de bandas como Timbalada, Olodum, Pimenta Nativa, Cheiro de Amor e Babado Novo.
18 Entrevista ao autor em 04/07/2008. O entrevistado se refere ao Maluquetes Chicleteiros Fan Club Sur Europa, sediado na cidade de San Sebas-
tián, Espanha.
19 Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Discos – ABPD/2007. Unidade fonográica entendida entre as mídias de suporte para os fonogramas,
podendo ser CD, DVD ou até mesmo o antigo vinil.

Armando Alexandre Castro é Doutorando pelo Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da
Bahia (NPGA/UFBA), com objeto de tese sobre o desenvolvimento do mercado de administração e edição musical baiano.
É Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC/UFBA), Especialista em História Social e
Educação e Licenciado em Música pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). É Professor Assistente do Instituto de
Música da UCSAL, e integrante do Grupo de Pesquisa O Som do Lugar e o Mundo (FFCH/UFBA). Autor do livro Irmãs de fé:
tradição e turismo no Recôncavo Baiano (E-papers, 2006) que trata do processo de turistiicação da secular Irmandade
da Boa Morte, em Cachoeira, Bahia.

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A palavra em movimento: algumas


perspectivas teóricas para a análise de
canções no âmbito da música popular

Conrado Vito Rodrigues Falbo (UFPE, Recife, PE)


conradofalbo@gmail.com

Resumo: O presente artigo apresenta as linhas gerais de algumas perspectivas teóricas que podem ser úteis para a
análise de canções no âmbito da música popular. O eixo orientador das perspectivas teóricas aqui apresentadas é a
abordagem da canção a partir da performance da palavra cantada, ou seja, o conjunto de interações que se estabelece
entre o corpo do intérprete, notadamente sua voz, e o público no momento em que ocorre a performance da canção,
seja esta performance presencial ou mediatizada. Partimos das ideias de Paul ZUMTHOR (1993; 2005; 2007) sobre per-
formance e vocalidade procurando estabelecer um diálogo interdisciplinar com outros campos do pensamento estético,
sobretudo os estudos literários, as artes cênicas e os estudos da performance.
Palavras-chave: música popular, canção, performance.

The word in motion: some theoretical perspectives for the analysis of the song within the
framework of popular music

Abstract: The present paper outlines some theoretical perspectives that can be useful to the analytical practices that
focus on the song within the framework of popular music genres. The core of the theoretical perspectives presented here
is an approach of the song based on the performance of the sung word, that is, the ensemble of interactions that take
place between the performer’s body, especially his/her voice, and the audience at the moment of the performance, may
it be presential or mediatized. We began with Paul ZUMTHOR’s ideas (1993; 2005; 2007) on performance and vocality
to try to establish an interdisciplinary dialogue with other ields of knowledge, especially literary studies, theater and
performance studies.
Keywords: popular music, song, performance.

1. Introdução: a canção como objeto de estudo


Apesar dos recentes avanços no campo dos estudos voltados A canção possui uma característica de versatilidade que
para a música popular, ainda carecemos de um instrumental a permitiu passar por diversas mudanças ao longo do
teórico e analítico mais consistente no que diz respeito ao tempo, assimilando novas tecnologias, novos padrões
exame dos procedimentos estéticos utilizados por composi- estéticos e novas funções sociais, mas sempre mantendo
tores e intérpretes no processo criativo da canção, a forma seu extraordinário poder comunicativo. Do universo tra-
expressiva mais utilizada pelos artistas da música popular. dicional dos acalantos, cantigas de roda e cantos de tra-
Como já alertava o pesquisador e compositor Luiz Tatit, uma balho ao modismo descartável das paradas de sucesso,
análise estritamente musical da canção não é capaz de re- a canção é uma forma expressiva de ampla inserção so-
velar toda sua riqueza de signiicados, o mesmo podendo ser cial, seja por meio de sua transmissão oral ou por meio
dito de um exame que se restringe à letra da canção (TATIT, do rádio, da televisão, dos discos e dos shows. Na so-
2007). Outros trabalhos demonstram que, além da relação ciedade de consumo contemporânea, a canção continua
dinâmica entre melodia e letra, a performance desempenha tendo um papel preponderante na chamada indústria do
um papel fundamental na construção dos signiicados, po- entretenimento, ocupando lugar de destaque no debate
dendo chegar até a transformar completamente o sentido sobre novas possibilidades de utilização comercial da
original de uma canção (VALENTE, 2003). internet, para citar apenas um exemplo.

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jul. - dez., 2010 Recebido em: 15/11/2009 - Aprovado em: 20/03/2010
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Um importante movimento de valorização do estudo da ignoramos que são numerosas e signiicativas as relações
canção vem tomando forma em diferentes áreas do co- entre letras de canções e textos literários 2: ambos guar-
nhecimento e um dos resultados disto é o crescimento da dam entre si semelhanças essenciais, sobretudo devido à
IASPM (International Association for the Study of Popular manipulação artística de palavras e sons. Não é por acaso
Music), instituição fundada em 1981 e formada por pesqui- que o presente artigo parte dos estudos literários tomando
sadores de várias áreas do conhecimento, contando desde como ponto de partida a performance da palavra cantada,
o ano 2000 com uma seção latino-americana da qual fa- e muitas vezes adaptando à análise da canção perspecti-
zem parte inúmeros pesquisadores brasileiros. Entretanto, vas teóricas originalmente voltadas para o estudo de obras
a diversidade das disciplinas envolvidas neste processo e literárias. Entretanto, ressaltamos que nosso escopo não é
a falta de comunicação entre os inúmeros setores acadê- comparar obras literárias e letras de canções, mas apontar
micos faz com que as pesquisas que vêm sendo realizadas perspectivas teóricas que permitam a análise de canções
acabem por ter uma inluência dispersa, não contribuindo (consideradas em sua totalidade multimodal) de acordo
para um maior diálogo entre as distintas áreas acadêmi- com parâmetros e critérios especíicos ou devidamente
cas nem para a construção da visão transdisciplinar que a adaptados às suas peculiaridades formais.
canção demanda enquanto objeto de estudo, por suscitar
questões relativas ao texto, à música, à performance e a A análise da canção realizada à luz dos estudos literários
outros aspectos da expressão artística. costuma focar-se exclusivamente nas letras, ignorando
os aspectos musicais e performáticos que são igualmente
A canção é encarada no presente artigo como uma for- fundamentais na construção dos signiicados das can-
ma expressiva que produz signiicados de uma maneira ções. Estudos como o de Walter J. ONG (1999) e Paul
especíica, na qual todos os seus elementos constitutivos ZUMTHOR (1993; 2005; 2007) representam importantes
(letra, melodia, acompanhamento instrumental, perfor- marcos teóricos, pois redeinem antigos padrões vigen-
mance etc.) guardam uma relação dinâmica. Deste modo, tes na pesquisa com textos literários, ampliando alguns
o texto não pode ser dissociado da melodia (ou mesmo da conceitos de uso corrente e oferecendo um novo alcance
ausência desta), assim como ambos não podem ser consi- à própria compreensão do que entendemos contempo-
derados de maneira abstrata, mas em sua interação plena raneamente por literatura. Estas modiicações não sig-
no momento da performance, seja ela presencial (em uma niicam apenas uma mudança de enfoque no trabalho
apresentação ao vivo) ou mediatizada (capturada e trans- com a análise de textos literários, mas também abrem
mitida por meios tecnológicos). espaço para que manifestações artísticas como a canção
também possam ser analisadas sob o prisma dos estudos
Não pretendemos justiicar o estudo da canção com a literários, colocando todo um referencial teórico à dispo-
airmativa de que as letras de canções da música po- sição de uma visão ampla da palavra, que compreende
pular podem ser analisadas como obras literárias. O sua multiplicidade de expressão: não apenas a palavra
principal motivo desta impossibilidade está no fato de escrita, mas também a palavra vocalizada em diferentes
que, diferentemente do que ocorre com o texto literá- contextos, seja recitada, encenada ou cantada.
rio, a letra de canção não é a canção, mas um de seus
vários elementos constitutivos, que alcançará plenitude 2. Voz: o corpo e o som da subjetividade
expressiva apenas quando percebido de forma conjun- O corpo pode ser considerado a dimensão espacial da
ta com os demais elementos. O pesquisador americano identidade humana. Ocupamos um lugar no espaço, so-
Charles Perrone, em estudo pioneiro sobre a poesia da mos matéria, mas não apenas isso: também percebemos
canção na música popular brasileira, airma que “as le- o mundo de forma espacial, em sua rica multidimensio-
tras de canção são destinadas à transmissão oral num nalidade, e interagimos com nosso ambiente através de
cenário musical. Se o texto é criado com a inalidade relações essencialmente espaciais. Para a artista plástica
de ser cantado, e não para ser lido ou recitado, ele deve e pesquisadora Fayga Ostrower, as vivências do espaço
ser estudado na forma dentro da qual foi concebido” são determinantes na construção do senso de identidade
(PERRONE, 2008, p.23-24). Além disso, ao justiicar sua e sociabilidade das pessoas:
adoção da perspectiva dos estudos literários na análise
As formas de espaço constituem tanto o meio como o modo de
da canção, Perrone chama atenção para as especiicida- nossa conscientização, ou seja, o espaço torna-se, simultanea-
des formais da canção ao mencionar o termo “literatura mente, forma das experiências vividas e imagem de seus conte-
de performance”, utilizado por Betsy BOWDEN (1982)1 údos [...] E do mesmo modo, quaisquer conteúdos afetivos que
para designar certas características das canções que queremos expressar e comunicar aos outros são por nós tradu-
zidos intuitivamente como imagens de espaço. Mesmo quando
não aparecem na página impressa, como lexões vocais, essa comunicação se dá a nível verbal. Ao dizermos, por exem-
rima forçada de voz, onomatopeia, pronúncia, duração, plo, que algo nos toca de modo profundo ou apenas supericial,
entoações estranhas, pausas etc. (PERRONE, 2008, p.26). usamos intuitivamente imagens de espaço. Quando falamos das
qualidades de um indivíduo (um ser in-divisível), como sendo
aberto ao mundo ou fechado, como sendo expansivo ou intro-
Ressaltamos que não há qualquer juízo de valor nas ob- vertido, desligado, envolvente, atraente, repulsivo, distante, pró-
servações acima, mas apenas o reconhecimento de que ximo, usamos sempre imagens de espaço. Não há outra maneira
estamos tratando de uma forma expressiva (a canção) que possível de conscientizar, formular e comunicar nossa experiên-
demanda um olhar analítico atento a estas diferenças. Não cia (OSTROWER, 1999, p.86. Grifos da autora).

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A observação da artista nos permite vislumbrar uma ex- existe outra coisa na voz, uma vez tratadas as dimensões fonológica
periência de espaço mais ampla e complexa, não restrita a e idiossincrática da fala. A marca individual justaposta à marca do
signiicante não faz toda a voz. É este resto, nem locução nem locu-
uma acepção puramente visual, como tendemos a pensar tor, nem língua nem indivíduo, que faz o ‘Homem’ e torna a instân-
no caso das artes plásticas, mas apontando para uma ação cia da voz problemática. A instância da voz na fala, compreendida
conjunta e complementar de todos os sentidos na percep- no sentido em que Lacan fala da instância da letra no inconsciente.
ção dos múltiplos aspectos da realidade. Trata-se de uma Aproximação que outros já operaram, forjando o belo neologismo
‘inSOMsciente’, ‘um equivalente do inconsciente pelo som’. É esta
perspectiva orgânica do espaço, no sentido de sua vivência dimensão infralinguística e supra-individual que convém estudar
plena pelo ser humano, sem divisões e separações. para revelar o que está em jogo na voz (BERTHIER, 1998, p.61)4.

Se, como diz Ostrower, o espaço é “tanto o meio como o O trecho acima deixa entrever a complexidade e muta-
modo” de nossas experiências vivas, podemos dizer que o bilidade dos fatores envolvidos nas relações entre voz e
corpo, enquanto dimensão espacial da condição humana, identidade. Berthier ressalta que nossa voz não é herdada
é também nosso meio e nosso modo de ser e de estar no geneticamente, sendo antes um “construto psico-históri-
mundo. O corpo nos fornece ferramentas de percepção e co” em constante desenvolvimento.
interação com o ambiente e com outros indivíduos: ao
mesmo tempo em que nossos órgãos captam estímulos A voz é considerada um objeto de estudo “fugidio” no
externos, também os iltram e permitem que elaboremos dizer de Elizabeth Travassos, ao analisar algumas pers-
respostas e formulemos perguntas, em forma de novos pectivas teóricas ligadas ao estudo da voz nos campos
estímulos sensoriais num ciclo comunicativo que se es- da musicologia e etnomusicologia. Ela constata a grande
tende até o im da vida. Entre estes sinais produzidos pelo carência de termos técnicos precisos que permitam uma
corpo com inalidade de comunicação (os gestos, por abordagem analítica satisfatória das várias modalidades
exemplo) nos interessa particularmente a voz. de expressão vocal, sobretudo do canto, chamando aten-
ção para o fato de que
Podemos entender a voz como uma extensão de nosso
corpo, revelando características próprias de cada indiví- na literatura acadêmica e cientíica, encontram-se pelo menos
três grandes vertentes de abordagem da voz e do canto: descri-
duo. Paul Zumthor, ao comentar as relações entre a lín- ções naturalizadoras do corpo e do som, que não se pode ignorar
gua escrita e falada, nos diz que: nem incorporar irreletidamente; tipologias vocais válidas para o
canto erudito, repletas de orientação para a prática e compro-
Não se pode imaginar uma língua que fosse unicamente escrita. metidas com uma pedagogia vocal; estudos etnográicos da fala,
A escrita se constitui numa língua segunda, os signos gráicos re- do canto ‘popular’ e ‘étnico’. Começam a desenvolver-se, também,
metem, mais ou menos, indiretamente às palavras vivas. A língua inventários e análises dos recursos vocais técnicos e estilísticos
é mediatizada, levada pela voz. Mas a voz ultrapassa a língua; é dos cantores populares (TRAVASSOS, 2008, p.117).
mais ampla do que ela, mais rica [...] Assim, a voz, utilizando a
linguagem para dizer alguma coisa, se diz a si própria, se coloca
como uma presença (ZUMTHOR, 2005, p.63).
A pesquisadora conclui pela necessidade de promoção de
um maior diálogo entre estas distintas áreas do conhe-
Esta observação de Zumthor pode ser relacionada com cimento como forma de se alcançar uma compreensão
as ideias de Barthes sobre o que este último chamou de mais abrangente da voz e de suas manifestações.
“grão da voz”, como veremos mais adiante, no sentido
de que a “presença da voz” também signiica a presença Esta complexidade que cerca a voz também pode ser ob-
de um indivíduo que faz uso de sua voz (seja falando, servada no que diz respeito à plurifuncionalidade dos ór-
cantando, gritando etc.). Na voz está inscrito o corpo de gãos que compõem o aparelho fonador humano. A boca,
quem a emite, pois a voz também está ligada ao aspec- como exempliica Lucia Santaella, serve à satisfação de
to material, concreto, corporal da identidade individual, necessidades isiológicas (comer, beber, respirar), mas
explicitando traços pessoais e culturais desta identidade. também está envolvida com o prazer, sendo difícil separar
estes dois aspectos nas funções que desempenha, sobre-
A voz é um dos primeiros instrumentos de que dispo- tudo no processo que origina a fala, já que esta
mos como meio expressivo, o som vem antes do gesto não se coloca apenas a serviço da comunicação e interação dos
ou da escrita e conigura-se como o primeiro traço de seres humanos entre si e destes com o mundo. Ela também pode
nossa identidade. As crianças choram ao nascer: uma produzir um excedente de prazer. Assim como da função de comer
se acresce o prazer da degustação, na fala está inscrita a possi-
primeira manifestação de vida, inegavelmente sonora. bilidade do canto. Encantamento do canto: fala transmutada em
Esta relação de identidade que estabelecemos com a prazer (SANTAELLA, 2002, p.37-38).
voz, entretanto, é mais complexa do que pode aparen-
tar. O pesquisador Patrick BERTHIER, ao comentar as Além disso, sabemos que é impossível falar da voz como
inovações tecnológicas voltadas para atividades como fenômeno isolado, sobretudo quando percebemos a in-
a decodiicação acústico-fonética e reconhecimento do tensidade de sua conexão com a audição: não podemos
locutor3, chama atenção para o fato de que existe uma produzir sons vocais se não formos capazes de ouvi-los.
grande variedade de elementos que fogem ao alcance Desde antes de seu nascimento, o feto humano já é capaz
da análise acústica e tornam estes processos extrema- de ouvir sons, notadamente a voz de sua mãe, e a audição
mente complexos, quando não impossíveis do ponto de desempenha um papel fundador nesta fase primária de
vista técnico. Conforme Berthier: percepção do mundo. “De acordo com o musicólogo Iegor

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Reznikoff é o ouvido, quando percebe as diferentes frequ- Se o grito é a primeira expressão afetiva, a voz vai lhe suceder,
ências sonoras (alturas), que constrói a noção de espaço introduzindo fenômenos sonoros especiicamente humanos, como
as vibrações harmônicas. Ela é mediadora entre o corpo e a lin-
no ser humano, e não o olho, ao contrário do que se tem guagem [...] A voz é mediação, não apenas para o sujeito em si
airmado até agora” (VALENTE, 1999, p.102). mesmo, entre seu corpo e a língua, mas com a voz do outro. Ela se
encarna em um ‘discurso vivo’, para retomar a expressão de André
A voz desempenha funções determinantes em situa- Green. A fala levada pela voz é diferente do pensamento, pois ela
é resultado de uma descarga motora. Falar de viva voz ao outro é
ções que envolvem o bebê desde muito cedo na vida se descarregar (CASTARÈDE, 2004, p.134).
humana. O pesquisador Gil nuno Vaz cita o exem-
plo do acalanto, modalidade de canção que mistura Por meio da voz (e da escuta, evidentemente) o ser hu-
o canto, a fala e o movimento corporal em síntese mano vai construir seu estatuto de sujeito. A voz desem-
harmoniosa e eficaz: penha um papel essencial no desenvolvimento da noção
de Eu, que vai possibilitar sua interação com o Outro; ela
A canção é realizada em sua plenitude apenas pela voz da mãe, pro-
duzindo sons com certo modo de emissão (canto) e intenção (fala) e representa uma espécie de ponte entre corpo e lingua-
usando os braços (movimento) para imprimir um balanço ao corpo gem, identidade e alteridade.
da criança, embalando-a até adormecer. A contenção desses modos
em um campo expressivo mínimo, representado pela Canção, serve
à repetição contínua, e quase que hipnótica, de uma forma simples e 3. Música das palavras: som, signiicado e signo
curta que induz ao estado de sonolência (VAZ, 2007, p.19). Podemos pensar o caminho do som ao signiicado como
uma série de “estágios” que levariam o ser humano da vo-
Percebemos que, no exemplo do acalanto, a voz desem- calidade pura do bebê (a princípio, apenas sons sem qual-
penha um papel central que conjuga elementos de natu- quer vinculação necessária com signiicados linguísticos)
rezas diversas (música, linguagem verbal e movimento), até o desenvolvimento destas potencialidades vocais em
canalizando sua força expressiva para uma inalidade es- linguagem verbal, codiicada, convencional. Este trajeto
pecíica. Esta capacidade agregadora da voz é de extrema pode ser interpretado como uma passagem, ou evolução,
importância para a análise da canção e de sua perfor- de um uso “natural” da voz, onde há uma clara preva-
mance, como veremos mais adiante. lência do som, até seu uso “cultural”, determinado pela
dinâmica simbólica da linguagem. Entretanto, a prática
A cantora e psicanalista Marie-France Castarède, em nos mostra que esta separação é reducionista e esconde
busca de uma abordagem psicanalítica da voz, associa mecanismos mais complexos na utilização da voz pelo ser
a forma do acalanto entoado pela voz materna ao “sen- humano. O músico e professor canadense Murray Schafer
timento oceânico” considerado por Freud a base da reli- propõe uma gradação entre dois pólos extremos: de um
giosidade humana. Nesse sentido, o acalanto seria para- lado os vocábulos isoladamente considerados e sons vo-
digmático como restituidor da sensação de plenitude do cais manipulados eletronicamente (representando o má-
bebê no ambiente do útero materno, perdida logo após o ximo de som), de outro, a fala deliberada e articulada em
nascimento. Assim escreve Freud: linguagem (o máximo do signiicado) (SCHAFER, 1992,
p.240). Esta gradação não implica um caminho sem volta
Uma criança recém-nascida ainda não distingue seu ego do mun- do som à linguagem, mas nos permite vislumbrar uma
do externo como fonte das sensações que luem sobre ela. Apren-
de gradativamente a fazê-lo, reagindo a diversos estímulos. Ela série de formas de expressão intermediárias entre som
deve icar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes de e signiicado que são usadas simultaneamente, de dife-
excitação, que posteriormente identiicará como sendo seus pró- rentes maneiras em diferentes contextos sociais, sem que
prios órgãos corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer guardem entre si qualquer relação hierárquica.
momento, ao passo que, de tempos em tempos, outras fontes lhe
fogem - entre as quais se destaca a mais desejada de todas, o
seio da mãe -, só reaparecendo como resultado de seus gritos de Toda linguagem verbal tem uma musicalidade própria. A
socorro (FREUD, 1976, p.84). articulação das palavras e seus signiicados na fala reve-
la elementos essencialmente musicais como o ritmo e a
O grito do recém-nascido representa bem mais que um variação das frequências sonoras, ou alturas (melodia). A
sinal de descontentamento ou protesto, ele assinala a característica melódica da fala é identiicada pelos tone-
descoberta de um novo meio de expressão que passará mas, deinidos como “traços entoativos localizáveis em de-
a ser utilizado de maneira cada vez mais deliberada e terminados pontos do discurso. A airmação, a resignação
articulada pelo indivíduo. Um meio de expressão que ul- e a constatação implicam no movimento melódico descen-
trapassa o utilitarismo da comunicação para inscrever-se dente, enquanto contentamento, exclamação e surpresa
também como ferramenta de tradução do indizível: a voz. determinam o movimento melódico ascendente. É nessa
Do grito à fala articulada em linguagem, o longo e com- medida que um ouvinte, ignorante de uma dada língua, é
plexo percurso da voz acompanhará o desenvolvimento capaz de captar algo da mensagem comunicativa, pois é
do sujeito e sua transmutação em um ser capaz de mani- sensível à expressividade da enunciação” (VALENTE, 1999,
pular relações simbólicas por meio da linguagem. p.110). Assim, não podemos falar de uma separação entre
som e signiicado, pelo contrário, ambos mantêm uma rela-
A partir dos processos descritos por Freud, Marie-France ção complementar na expressão vocal. Por mais elaborado
Castarède posiciona a voz como agente mediador entre o que seja, o discurso verbal não prescinde destes elementos
corpo e a linguagem no processo de formação do sujeito: musicais para complementar ou reforçar expressivamente

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os conteúdos que quer veicular. Mesmo em uma soisti- Média na Europa, a pesquisadora Margit Frenk conclui que,
cada exposição oral, ainda podemos ouvir pulsar ritmos e naquele contexto histórico e social, a palavra escrita não
sons que remontam àqueles primeiros balbucios do bebê, pode ser compreendida de outra forma senão como suce-
extremamente ricos em articulação sonora, mas ainda não dâneo da fala e/ou canto (FRENK, 2005, p.16-17). Sua pes-
adaptados (ou reduzidos) ao sistema simbólico da lingua- quisa, alicerçada em fartas referências documentais e lite-
gem. Podemos, então, aplicar a este caso a já mencionada rárias, nos permite perceber o processo de transformação
gradação proposta por Schafer para relacionar os pólos de uma cultura essencialmente oral, que vai sendo paula-
ideais da entoação (voz falada) e do canto (utilização mu- tinamente modiicada a partir da difusão da linguagem es-
sical da voz), percebendo que existem igualmente várias crita e, mais tarde, com o advento da imprensa. Entretanto,
gradações de mistura entre eles e que uma separação com- o longo período de coexistência entre os universos oral e
pleta seria impossível. escrito é marcado por uma preponderância do primeiro so-
bre o segundo, já que os textos eram escritos para serem
Alfredo BOSI chama atenção para o som no signo lin- lidos em voz alta (ou oralizados) para uma outra pessoa
guístico5 lembrando a célebre expressão de Ferdinand de ou grupo de pessoas, e mesmo a leitura individual não se
Saussure, quando este referiu-se à linguagem humana confundia com leitura silenciosa, pois era de praxe que os
como “pensamento-som”. Conforme Bosi, os signos da textos fossem lidos em voz alta mesmo quando o leitor o
linguagem escrita estão profundamente ligados à sua fazia de forma solitária. A leitura tal como a praticamos
origem sonora, mais especiicamente vocal: contemporaneamente, ou seja, leitura solitária (ou priva-
da) e silenciosa, é fruto de vários séculos de transforma-
O signo vem marcado, em toda sua laboriosa gestação, pelo es-
cavamento do corpo. O acento que os latinos chamavam anima
ções dos hábitos sociais ligados à transmissão da palavra.
vocis, coração da palavra e matéria-prima do ritmo, é produzido A pesquisadora ressalta a característica de mobilidade que
por um mecanismo profundo que tem sede em movimentos abdo- possuem os textos dentro de uma tradição oral:
minais do diafragma. Quando o signo consegue vir à luz, comple-
tamente articulado e audível, já se travou, nos antros e labirintos Por sua indissolúvel ligação com a memória e com a performan-
do corpo, uma luta sinuosa do ar contra as paredes elásticas do ce, em um momento e lugar dados, toda literatura vocalizada
diafragma, as esponjas dos pulmões, dos brônquios e bronquíolos, - seja ou não oral em seu modo de composição, esteja ou não
o tubo anelado e viloso da traqueia, as dobras retesadas da laringe registrada, além disso, em um papel - se encontra em contínuo
(as cordas vocais), o orifício estreito da glote, a válvula do véu movimento. Não há texto ixo, mas um texto que a cada vez vai
palatino que dá passagem às fossas nasais ou à boca, onde topará modiicando-se. Quando se transcreve um texto desta índole em
ainda com a massa móvel e víscida da língua e as fronteiras duras um manuscrito (ou, mais tarde, em um impresso), o que se regis-
dos dentes ou brandas dos lábios. tra é apenas uma versão, versão efêmera, que se pronunciou em
certa ocasião e que difere mais ou menos das pronunciadas em
O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e outras ocasiões (FRENK, 2005, p.36).
o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo. O percur-
so, feito de aberturas e aperturas, dá ao som inal um proto-sentido,
orgânico e latente, pronto a ser trabalhado pelo ser humano na sua
Neste contexto, percebemos que os textos escritos, ape-
busca de signiicar. O signo é a forma da expressão de que o som do sar de estabelecerem variadas relações com a palavra fa-
corpo foi potência, estado virtual. (BOSI, 2008, p.52-53). lada e/ou cantada, não poderiam ser concebidos de forma
independente das manifestações orais. Seja para poste-
Desta maneira, a voz é responsável por inscrever o cor- rior oralização ou para registro de uma performance oral
po no signo linguístico. A força da ligação entre som e ocorrida em determinada ocasião, a escrita sempre se co-
linguagem pode ser observada também na linguagem locava como serva da voz, ou como “língua segunda”, na
escrita, onde percebemos a presença do som na palavra já citada expressão de Paul Zumthor.
enquanto signo visual. Podemos dizer que o desenvolvi-
mento da linguagem escrita acontece paralelamente ou As observações de Frenk sobre os “textos em movimen-
posteriormente ao desenvolvimento linguístico da voca- to” também podem ser estendidas ao universo da canção,
lidade humana, mas não prescinde desta, a não ser nos pois esta resiste em assumir uma forma ixa, tendendo
casos em que há uma incapacidade isiológica que afeta a a ser constantemente transformada a cada performance.
audição e impõe a necessidade de substituir os estímulos Os registros escritos da canção (a simples transcrição da
sonoros pelos visuais e táteis. letra ou a letra acompanhada da partitura com a melo-
dia), tendem a ser insuicientes para a compreensão da
Um exemplo que pode ajudar a compreender melhor totalidade dos seus signiicados, e demandam sempre
esta ligação entre som e signo diz respeito ao desen- a observação da performance propriamente dita como
volvimento da leitura no mundo ocidental. A leitura, forma de suprir as limitações da linguagem escrita. Este
como é praticada na sociedade contemporânea, é uma ponto será desenvolvido mais adiante.
atividade solitária e silenciosa na qual é ressaltado o
aspecto visual da percepção sensorial. Este é um dos As relexões sobre o desenvolvimento da leitura, fruto da
motivos pelos quais a linguagem escrita tende a ser vis- disseminação da linguagem escrita no mundo ocidental,
ta como separada do universo sonoro das manifestações nos levam a uma maior consciência do aspecto origina-
da voz. Entretanto, a palavra escrita nunca deixou de riamente sonoro da palavra. Em conhecido estudo origi-
estar intimamente ligada à voz e à possibilidade de sua nalmente publicado em 1982, o pesquisador Walter J. Ong
transformação em sons por meio da leitura em voz alta. demonstrou que as diferenças entre os domínios da ora-
Ao analisar os hábitos de escrita e leitura durante a Idade lidade e da escrita eram muito mais profundas do que se

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suspeitava até então. Ao analisar características de cultu- eram essenciais para a satisfatória compreensão dos sig-
ras marcadas pelo que ele denominou “oralidade primária” niicados da obra. A transmissão oral que acontece com
(grupos de indivíduos totalmente não familiarizados com a a performance e que, hoje sabemos, afeta diretamente
escrita), ele observa algumas características psicodinâmi- o próprio estilo do texto pode ser citada como exemplo
cas que diferenciam radicalmente os processos de comuni- de um elemento que era rejeitado como contingencial e
cação nos universos da oralidade e da escrita, não apenas secundário em relação à palavra escrita. O clássico estudo
no que diz respeito ao aspecto formal das mensagens, mas de Paul Zumthor sobre “literatura” medieval8 é um exem-
sobretudo nas maneiras de estruturar o pensamento e a plo de como o papel central conferido pela academia ao
consciência da realidade por meio da linguagem. Conforme texto escrito impedia a satisfatória compreensão das ma-
o pesquisador, as diferenças entre o pensamento de base nifestações poéticas deste período histórico.
oral e escrita têm suas raízes na própria natureza do som,
identiicado por ele como “poder e ação” dadas suas carac- Um dos pontos de maior relevância no trabalho de Walter
terísticas intrinsecamente dinâmicas: Ong é justamente chamar atenção para o fato de que a
expressão de base oral não pode ser analisada de acordo
O som existe apenas quando está deixando de existir. Não é sim- com critérios provenientes de um pensamento de base
plesmente perecível, mas essencialmente evanescente, e é sentido
como evanescente [...] Não há meio de parar o som e ter som. letrada: dadas as diferenças intrínsecas de cada modo de
Posso parar uma câmera de ilme e deter uma imagem ixada na consciência e estruturação da expressão, não é possível
tela. Se eu parar o movimento do som, nada terei - apenas silêncio, traçar entre eles uma divisão hierárquica. Esta percep-
absolutamente nenhum som. Toda sensação acontece no tempo, ção não apenas modiica a maneira como encaramos a
mas nenhum outro campo sensório resiste deste modo à ação sus-
pensa, à estabilização (ONG, 1999, p.32). produção artística e intelectual de sociedades orais, mas
também nos oferece uma ferramenta valiosa para rever o
A partir da constatação destas características particula- modo como enxergamos nossa própria produção escrita.
res do som, Ong inicia um exame da inluência que elas A percepção de que oralidade e escrita inluenciam de
exercem na percepção sensorial e na transmissão de men- formas diferentes o pensamento e a expressão possibilita
sagens vocais, mapeando os modos segundo os quais se uma visão histórica, portanto crítica, do nosso modo de
estrutura a comunicação baseada na palavra oralizada 6. expressão centrado na escrita.

A escrita na civilização ocidental contemporânea (in- A predominância do texto escrito na análise acadêmica
cluindo suas formas impressa e eletrônica) encontra-se da canção é percebida pela antropóloga Ruth Finne-
completamente interiorizada nos indivíduos por seu am- gan, quando ela diz que “não é de surpreender que a
plo e corrente uso: nas expressões de Ong, trata-se de palavra escrita ou passível de ser escrita tenha com
uma sociedade de mentalidade “quirográica” (baseada tanta frequência tido lugar central no estudo das can-
na escrita), ou mais especiicamente, “tipográica” (base- ções - é ela que pode ser isolada para análise e trans-
ada na imprensa). Ong conclui que a escrita é uma forma missão” (FINNEGAN, 2008, p.19). Conforme a pesqui-
de tecnologia ligada à palavra, e esta tecnologia foi res- sadora, este foco no aspecto textual das canções está
ponsável por uma reestruturação tão profunda da cons- relacionado com uma tendência recorrente no pensa-
ciência humana, que tornou especialmente difícil para os mento ocidental em identiicar o aspecto intelectual
indivíduos letrados contemporâneos a compreensão do do humano com a linguagem, em oposição ao aspec-
modo de pensamento das sociedades de base oral. to emocional que estaria identiicado com elementos
não-verbais:
O “escritocentrismo”7 da sociedade ocidental contempo- Nesta visão, a performance musical representa o aspecto sensório,
rânea coloca o texto escrito em uma posição de destaque. incontrolável e até perigoso da natureza humana (especialmente,
A escrita passa a ser encarada como uma ferramenta le- é claro, quando manifestado na música popular ou não-ocidental)
gitimadora das ideias, sendo identiicada com a moderni- [...] Alguma música, no entanto, escapou dessas associações: os
gêneros eruditos mediados pela notação musical (FINNEGAN,
dade e com o valor da produção artística e intelectual as- 2008, p.21).
sim veiculada. Este movimento de valorização da escrita
teve como contrapartida o desprezo pelas formas orais de Percebemos aqui o poder normalizador da escrita, domi-
expressão, consideradas durante muito tempo inferiores nando os elementos não-verbais e reduzindo-os a uma
às formas de expressão escrita, pois, entre outros motivos linguagem passível de ser convenientemente transmitida
alegados, não permitiriam a transmissão das ideias com e analisada nos meios acadêmicos.
a mesma soisticação proporcionada pela escrita. Os re-
lexos deste movimento foram sentidos de maneira bas-
tante intensa no âmbito acadêmico: no campo dos estu- 4. Tripla perspectiva analítica: texto, música
dos literários, por exemplo, a atenção exclusiva ao texto e performance
escrito fazia com que se ignorasse toda uma produção O exame da canção como forma expressiva é útil quando
poética que não estava baseada nesta forma de trans- analisamos as maneiras pelas quais a voz é utilizada para
missão. Além disso, as análises “escritocêntricas” tendiam a produção de signiicados, tanto linguísticos quanto mu-
a desconsiderar alguns aspectos de determinados textos sicais. Porém, como aponta Gil Nuno Vaz, a canção não é
literários que, apesar de escaparem ao registro escrito, um objeto de fácil deinição:

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A canção, no senso comum, é entendida como a reunião de letra p.237). Barthes compreende a voz na canção (sobretudo na
e música em uma forma simples. Essa noção generalizada decorre canção erudita) como elemento produtor de signiicados
da importância que elas detêm no processo de criação artística [...]
Quando se fala do signiicado de uma canção, contudo, o binômio que ultrapassam a simples veiculação musical da língua para
‘letra e música’ deixa margem para alguns questionamentos. Ainal, representar a materialidade de um corpo que fala/canta:
expressões como ‘canção instrumental’ ou ‘canção sem palavras’ são
usadas costumeiramente quando uma composição musical é senti- O ‘grão’ da voz não é - ou não é apenas - seu timbre; a signiicân-
da e referida como tal, mesmo sem a letra. E muitos poemas são cia que ele abre não se pode deinir mais precisamente que pela
denominados canções, ainda que as palavras não sejam cantadas própria fricção da música e de outra coisa, que é a língua (e de
com qualquer melodia [...] Fazendo-se uma compilação de diversas forma alguma a mensagem). É preciso que o canto fale, ou ainda
deinições de canções, é possível reunir oito elementos ligados a ela melhor, escreva (BARTHES, 1982, p.241-242. Grifo do autor).
com maior frequência: (1) o canto / (2) de um texto poético / (3)
geralmente acompanhado por um instrumento / (4) dentro de uma
Podemos dizer que o “grão da voz” foi a forma que Bar-
determinada forma musical / (5) de duração geralmente breve / (6)
com certa interação entre música e poesia / (7) relacionado com thes encontrou para pensar o modo especíico por meio
diversos contextos, como dança, trabalho, acalanto, reza / (8) de do qual a canção produz seus signiicados, por meio da
âmbito erudito ou popular (VAZ, 2007, p.11-13). realização de uma “escritura cantada da língua” (BAR-
THES, 1982, p.242). Obviamente, quando o autor utiliza
Todos os componentes da canção complementam-se as palavras “escrever” e “escritura”, o faz de acordo com
para construir seus signiicados, o que pede uma abor- o conceito amplo de texto tal como concebido pela se-
dagem analítica especíica. O fato de podermos diferen- miótica, de maneira alguma restrito à linguagem escrita.
ciar na canção componentes verbais (o texto, ou letra) e
musicais (a melodia e o acompanhamento instrumental) Temos na canção uma mensagem linguística e uma
não quer dizer necessariamente que ela seja uma for- mensagem musical, ambas veiculadas simultaneamente
ma simples de superposição de linguagens. É verdade pela voz; acontece que a voz não é capaz de veicular
que, em alguns casos, podemos encontrar poemas que esta mensagem complexa sem transformá-la por meio
foram posteriormente musicados, mas que não tiveram da materialidade do corpo do emissor (o cantor ou in-
originalmente nenhuma intenção musical por parte térprete). Para compreender o alcance das palavras de
do autor; ou ainda melodias compostas inicialmente Barthes, basta escutar versões de uma mesma canção
como temas instrumentais que, mais tarde, inspiraram executadas por diferentes intérpretes (os exemplos se
a composição de uma letra. Em todo caso, dada a si- multiplicam na proporção direta da popularidade da
multaneidade de sua expressão, os elementos verbais e canção escolhida): em muitos casos é simples perceber
musicais presentes na canção afetam-se mutuamente, como os signiicados da canção podem ser completa-
modiicando seus signiicados originários e criando uma mente alterados pelas qualidades vocais (inclusive qua-
nova forma de linguagem, não necessariamente sujeita lidades idiossincráticas) de cada intérprete - precisa-
às dinâmicas de funcionamento das linguagens que fo- mente “a voz e o mood” mencionados por Augusto de
ram conjugadas para criá-la. Campos em seu já citado poema-prefácio.

Por não ser apenas texto, nem apenas música, as análises Dadas estas peculiaridades formais, a composição de can-
puramente literárias ou estritamente musicais da canção ções no âmbito da música popular segue parâmetros pró-
acabam por não considerá-la em sua plenitude e riqueza prios, que nem sempre coincidem com os parâmetros utili-
de signiicados. Augusto de Campos, no poema-prefácio zados por poetas e músicos em sua atividade criativa. Para
que escreveu para o livro Os últimos dias de paupéria, de Luiz Tatit, o cancionista (maneira pela qual ele faz referên-
Torquato Neto, escreve: cia ao compositor de canções ou compositor popular), não
se considera músico nem poeta; mistura um pouco de tudo
Estou pensando e não encontra muita orientação para sua atividade criati-
No mistério das letras de música
Tão frágeis quando escritas
va nem nos conservatórios nem nos cursos de letras, dadas
Tão fortes quando cantadas as especiicidades de seu processo de criação, inclusive no
Por exemplo ‘nenhuma dor’ (é preciso reouvir) que diz respeito ao registro escrito de suas composições,
Parece banal escrita já que as canções são geralmente refratárias a um padrão
Mas é visceral cantada
A palavra cantada
único de execução (TATIT, 2007, p.100-101) 9.
Não é a palavra falada
Nem a palavra escrita Como a canção é tomada pelo domínio da voz, em toda
A altura a intensidade a duração a posição sua multiplicidade e mutabilidade, ela tende a ser re-
Da palavra no espaço musical
A voz e o mood mudam tudo
transformada por quem canta a cada nova interpretação.
A palavra-canto Esta característica se relete na diiculdade em registrar as
É outra coisa (CAMPOS, 2005). canções sob forma escrita: cada forma de notação deixa
de fora algum elemento importante para a compreensão
Podemos traçar um paralelo entre o texto de Augusto de dos signiicados da canção. Voltando ao já citado exem-
Campos e o que Roland Barthes chamou de “grão da voz”, plo das várias versões de uma mesma canção, podemos
ao escrever sobre determinados gêneros da música cantada encontrar casos em que a canção é registrada da mes-
nos quais “uma língua encontra uma voz” (BARTHES, 1982, ma maneira (por exemplo, uma partitura com a melodia

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e a letra, além das indicações para o acompanhamento Além de fazer referência à performance na acepção já
instrumental) e ser cantada de maneiras completamen- citada de apresentação artística (citando a expressão
te opostas por seus intérpretes. Diferentemente do que “arte de performance” que poderia ser aplicada ao teatro,
ocorre com a música (no caso de uma peça instrumen- dança ou música), este trecho nos fornece mais um caso
tal) e com a poesia, o que ica de fora do registro escrito de emprego da palavra “performance” como modalidade
é essencial para a canção, não podendo ser considerado de expressão artística diversa do teatro, da dança e do
elemento contingencial ou secundário. cinema, identiicada pela expressão “arte-performance”
(performance art na expressão original inglesa) ou sim-
Estas observações nos levam ao conceito de performance, plesmente “performance”.
por meio do qual a necessidade de uma abordagem espe-
cíica da canção pode ser mais bem compreendida. Ainal, No caso da arte-performance, o termo “performance” é
é apenas com a performance (modo pelo qual acontece utilizado para identiicar não a atividade genérica de apre-
a execução da canção) que acontecerá a expressão plena sentação de um trabalho artístico, mas um gênero espe-
de seus conteúdos linguísticos, musicais e subjetivos. cíico de arte. A chamada arte-performance, ou apenas
performance, tem raízes tanto no teatro quanto nas artes
5. Sobre os conceitos de Performance plásticas. Sob esta denominação encontra-se um amplo
A etimologia da palavra “performance” remete a uma espectro de manifestações artísticas, extremamente difícil
ação por meio da qual se atribui uma forma a alguma coi- de ser agrupado segundo características comuns. O pesqui-
sa ou se revela a forma de algo (do latim, formare: formar, sador Renato Cohen, em pesquisa dedicada a este gênero,
dar forma a). O dicionário também nos oferece sinônimos destaca como ontologia da performance a aproximação
como “interpretação”, “atuação” e “desempenho”, apon- entre vida e arte, apontando suas ligações com um movi-
tando para uma pluralidade de signiicados e acepções mento maior, chamado live art, denominação que começou
da palavra (HOUAISS, 2007). Desta maneira, podemos a ser utilizada no Reino Unido em meados dos anos 1980
empregar o termo “performance” para fazer referência a para designar um novo modo de encarar a arte, incluindo
uma apresentação artística (a performance de um músi- expressões como, por exemplo, o happening:
co/bailarino/ator) ou para caracterizar o desempenho de A live art é a arte ao vivo, mas também a arte viva. É uma forma
um indivíduo na realização de determinada tarefa, não de se ver a arte em que se procura uma aproximação direta com a
necessariamente de natureza artística (a performance de vida, em que se estimula o espontâneo, o natural, em detrimento
um atleta, a performance de um estudante em um teste). do elaborado, do ensaiado.
A live art é um movimento de ruptura que visa dessacralizar a arte,
O mesmo termo pode ser aplicado até mesmo quando nos tirando-a de sua função meramente estética, estilista. A ideia é
referimos a uma ação não-humana (a performance de resgatar a característica ritual da arte, tirando-a de ‘espaços mor-
uma máquina ou de um carro, por exemplo). Esta diversi- tos’, como museus, galerias, teatros, e colocando-a numa posição
dade de utilizações do termo implica esforços especíicos ‘viva’, modiicadora.
Esse movimento é dialético, pois na medida em que, de um lado,
no sentido de buscar conceitos de performance adequa- se tira a arte de uma posição sacra, inatingível, vai se buscar, de
dos aos respectivos contextos dentro do quais serão utili- outro, a ritualização de atos comuns da vida (COHEN, 2007, p.38).
zados (artes, esportes, física aplicada etc.).
Cohen chama atenção para o posicionamento da perfor-
Mesmo quando direcionamos o foco para uma área es- mance como “arte de fronteira”, aglutinando inúmeras
pecíica do conhecimento (em nosso caso, as artes) a linguagens artísticas (teatro, dança, pintura etc.) e refra-
complexidade conceitual permanece. Examinando com tária a deinições e categorizações, dadas suas atitudes
mais atenção o primeiro exemplo dado por nós para experimentais no sentido de romper convenções. O pes-
as utilizações da palavra “performance”, ou seja, uma quisador airma que a performance é uma atividade de
apresentação artística, é simples perceber que esta ex- natureza essencialmente cênica, com antecedentes his-
pressão engloba uma imensa variedade de manifesta- tóricos que remontam a experiências análogas no campo
ções expressivas. Marvin Carlson, em texto originalmen- das artes plásticas e do teatro10. Entretanto, o autor res-
te publicado em 1996, chama atenção para exemplos salta que “a ideia de interdisciplina como caminho para
contemporâneos desta complexidade, ao perceber a di- uma arte total aparece na performance como uma espécie
ferenciação dos usos do termo no âmbito da imprensa de reversão à proposta de Gesamtkunstwerk de Wagner.
ligada às artes e espetáculos: Na concepção da ópera wagneriana, esse processo de uso
O The New York Times e o Village Voice [jornais norte-america-
de várias linguagens é harmônico [...] Na performance [...]
nos de grande circulação] ambos agora incluem uma categoria utiliza-se uma fusão de linguagens (dança, teatro, vídeo
especial de ‘performance’ - separada de teatro, dança e ilmes etc.) só que não se compondo de uma forma harmônica,
- incluindo eventos que frequentemente também são chamados linear. O processo de composição das linguagens se dá
de ‘arte-performace’ ou até ‘teatro de performance’. Para muitos,
este último parece tautológico, já que em dias mais simples con-
por justaposição, colagem” (COHEN, 2007, p.50).
siderava-se que todo teatro estava envolvido com performance,
sendo o teatro, de fato, uma das ‘artes de performance’. Este Também é interessante falar sobre como a academia
uso em grande parte ainda está conosco, como também está a tem se comportado no sentido de desenvolver ferra-
prática de chamar qualquer evento teatral especíico (ou, para
este im, eventos especíicos de música ou dança) de uma ‘per-
mentas analíticas que contemplassem a imensa va-
formance’ (CARLSON, 2008, p.71). riedade de produções artísticas reunidas sob o termo

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“performance”. Neste sentido, são pioneiras as ideias guagem escrita, ou centradas em manifestações orais e/
de Richard Schechner no sentido de propor um “novo ou ritualizadas da palavra (recitações, cantos, cerimônias
paradigma” que deslocava o foco do teatro para a etc.). O antropólogo Victor Turner, ao comentar ritos de
performance (considerada uma categoria mais ampla, passagem de tribos africanas nos quais certos indivíduos
dentro da qual estaria compreendida a noção clássi- são submetidos a um período de isolamento para poste-
ca de teatro), reformulando os programas de estudo riormente serem devolvidos ao convívio social, aponta para
das universidades norte-americanas e permitindo o a característica da “liminaridade” (liminality na expressão
surgimento do que contemporaneamente se denomina original inglesa, do latim limen = limiar) que este isola-
performance studies. A abordagem proposta por Sche- mento confere aos indivíduos enquanto estão passando
chner tornou-se conhecida como Broad Spectrum Ap- pelo rito. Escreve Turner que “os atributos da liminarida-
proach (abordagem de amplo espectro) deinida pelo de ou das personas liminares (pessoas-limiar) são neces-
foco transdisciplinar na performance: sariamente ambíguos, pois esta condição e estas pessoas
eludem ou escorregam através da rede de classiicações
Em vez de treinar proissionais da performance não-empregá-
veis, departamentos de dança e teatro deveriam desenvolver
que normalmente localizam estados e posições no espa-
cursos que mostrassem como a performance é um paradigma- ço cultural” (TURNER, 2008, p.89). Ao mesmo tempo em
chave em muitas culturas, modernas e antigas, não-ocidentais que a ordem social é temporariamente suspensa para estes
e euro-americanas. indivíduos, tornando-os completamente despossuídos (in-
[...]
O pensamento performativo precisa ser visto como meio para
clusive de sua identidade), forma-se entre eles um profun-
análise cultural. Matérias de estudos de performance precisam ser do senso de igualdade que vai além da solidariedade entre
ensinadas fora dos departamentos de artes de performance, como membros de uma mesma sociedade. Conforme Turner, o
parte do núcleo do currículo (SCHECHNER, 2008, p.8). estado liminar responsável pelo senso de igualdade (que
ele chama de communitas) entre os indivíduos submetidos
Conforme Schechner, a tradição ocidental do teatro e ao rito, é importante na dialética social de igualdade/desi-
dança (tanto do ponto de vista do estudo acadêmico gualdade, homogeneidade/diferenciação.
como da formação de proissionais) precisa ser repensada
tendo como referência a performance, do contrário irá A liminaridade é frequentemente destacada como uma
desmoronar. “A alternativa feliz é expandir nossa visão caracterísica da performance, seja quando consideramos a
do que é performance, estudá-la não apenas como arte, performance como gênero artístico (a “arte de fronteira”,
mas como meio de entender processos históricos, sociais que aglutina várias linguagens sem se identiicar espe-
e culturais” (SCHECHNER, 2008, p.9). ciicamente com nenhuma delas) ou como apresentação
artística (atividade essencialmente efêmera, relacionada à
A questão da performance de fato tem sido estudada sob presença do artista e do público em determinado espaço-
diferentes pontos de vista, em diferentes áreas acadêmi- tempo, que não pode ser repetida e diicilmente pode ser
cas. Como exemplos situados fora do âmbito das artes de reproduzida, capturada ou registrada de maneira eicaz).
performance, podemos citar a linguística e a antropologia O trabalho de Victor Turner com as tribos africanas gerou
como campos em que a performance tem sido utilizada outras importantes contribuições à performance como pa-
como paradigma teórico. radigma teórico, sobretudo no que diz respeito ao conceito
de “drama social” que extrapolou os limites da etnograia
No caso da linguística, as ideias de J. L. Austin representam para alcançar uma aplicação muito mais ampla dentro do
um divisor de águas: conhecido por seu conceito de “atos panorama das ciências sociais.
de fala” (speech acts), o eixo central de seu trabalho es-
teve na consideração de que a fala é uma forma de ação. Também no campo dos Estudos Culturais ou Teoria Cul-
Em seus escritos, AUSTIN fala sobre certas elocuções, que tural a noção de performance (utilizada sob as denomi-
qualiica como “performativas”. Entre estas elocuções (ut- nações performance cultural ou intercultural) vem sendo
terances), que teriam apenas a aparência de declarações utilizada como paradigma no entendimento de processos
ou airmações, o autor dá o exemplo da frase “Eu aceito” ligados à construção de identidades dentro dos contextos
dita no curso de uma cerimônia de casamento: (multi/inter/trans)culturais contemporâneos.
Aqui poderíamos dizer que, ao dizer estas palavras, estamos fa-
zendo alguma coisa - a saber, casando, em vez de declarar alguma Uma vez traçadas as linhas gerais da evolução dos con-
coisa, a saber, que estamos casando. E o ato de casar-se, como, ceitos de performance e de sua utilização por parte de
digamos, o ato de apostar, é, ao menos preferivelmente (embora algumas áreas do conhecimento acadêmico, é chegado
ainda não precisamente) descrito como dizer certas palavras, em
vez de realizar [to perform] uma ação diferente, interna e espiritu-
o momento de deinir a abordagem que utilizaremos na
al, da qual estas palavras são meramente o signo externo e audível presente pesquisa, tendo em vista seu direcionamento
(AUSTIN, 2008, p.177. Grifos do autor). para a análise teórica da canção.

A performance também tem ocupado um lugar central Preliminarmente, podemos entender a performance como
no campo das ciências sociais. Inicialmente o conceito foi a atividade complexa que ocorre no momento da execu-
utilizado na antropologia, auxiliando as práticas etnográ- ção de um texto (tomando o termo no sentido de men-
icas voltadas para culturas não-familiarizadas com a lin- sagem poética, não necessariamente escrita), da mesma

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forma como dizemos que um músico ou cantor executa preservando a identidade do texto sem com isso torná-
uma peça musical quando este toca ou canta baseado, ou lo fechado às interferências ambientais de cada situação
não, nas indicações escritas de uma partitura. performática (ZUMTHOR, 2007, p.65).

No caso da canção, um primeiro elemento que se apre- É interessante notar que Paul Zumthor inicia suas investi-
senta na estrutura da performance é a presença do intér- gações sobre a vocalidade11 a partir de estudos no campo
prete: através do corpo e de sua expressão viva por meio da “literatura” medieval. O importante papel desempe-
da voz, dos gestos ou de expressões faciais (e, eventual- nhado por elementos como a voz e a música na constru-
mente, outros elementos visuais ligados ao corpo, como ção dos signiicados desta “literatura” levou-o a propor
igurinos, adereços, maquiagem etc.), o artista vai “dar uma divisão entre “texto” e “obra”: o primeiro seria uma
forma” ao texto e transmiti-lo ao público num só ato. Po- “sequência linguística que tende ao fechamento, e tal
demos retomar a ideia já citada de Fayga Ostrower para que o sentido global não é redutível à soma dos efeitos
dizer que o corpo é, ao mesmo tempo, “o meio e o modo” de sentidos particulares produzidos por seus sucessivos
pelos quais ocorre a performance, ressaltando o papel componentes” e a segunda, “o que é poeticamente comu-
central da voz neste processo. nicado, aqui e agora - texto, sonoridades, ritmos, elemen-
tos visuais; o termo compreende a totalidade dos fatores
A presença do artista remete a uma característica teatral da performance” (ZUMTHOR, 1993, p.220).
da performance, no sentido de que o texto apenas alcan-
ça a plenitude de seus signiicados quando, à semelhança Um paralelo com o pensamento de Roland Barthes pode
da encenação, são acrescentados à palavra escrita uma ser interessante neste caso: lembramos o ensaio De
série de elementos que potencializam e complementam l’oeuvre au texte (BARTHES, 1984), originalmente publi-
seu conteúdo expressivo. Do mesmo modo, podemos en- cado em 1971, no qual BARTHES desenvolve conceitos
carar o exemplo da partitura musical, código escrito que semelhantes utilizando a mesma denominação mais tar-
necessita ser complementado pelo intérprete no momen- de empregada por Zumthor. A diferença é que a “obra”,
to da execução da peça. Tanto o exemplo da música como para Barthes, seria fechada em si mesma, enquanto o
do teatro ilustram bem a pluralidade deste texto, que “texto” seria plural, aberto e dinâmico. A ironia presente
transborda o que está registrado na forma escrita ao se no fato de Barthes e Zumthor utilizarem palavras tro-
desdobrar em outros elementos relevantes para a análise cadas para denominar ideias semelhantes é facilmente
da construção dos signiicados. compreendida se levarmos em conta a diferença entre
as perspectivas teóricas adotadas por cada um: Barthes
Nas palavras de Paul Zumthor, toma o texto escrito como ponto de partida e de che-
Introduzir nos estudos literários a consideração das percepções
gada, enquanto Zumthor parte deste mesmo texto para
sensoriais, portanto, de um corpo vivo, coloca tanto um problema ir além do que está escrito e examinar as manifestações
de método como de elocução crítica. De saída, é necessário, com expressivas da voz humana. Mesmo com estas diferenças,
efeito, entreabrir conceitos exageradamente voltados sobre eles o diálogo entre as formulações revela uma preocupação
mesmos em nossa tradição, permitindo assim a ampliação de seu
campo de referência (ZUMTHOR, 2007, p.27).
comum em pensar a literatura como algo que escapa a
conceitos e fórmulas teóricas fechadas, apontando para
Em um de seus livros mais conhecidos, A letra e a voz uma abertura conceitual que revela novos caminhos na
(1993), Zumthor utiliza o termo “literatura” (entre aspas) análise das manifestações da palavra (seja escrita ou ora-
como forma de sinalizar que a deinição conteporânea de lizada) e leva a dissecar deinições tradicionais para ree-
literatura - ligada ao texto escrito, à leitura silenciosa e xaminar sua instrumentalidade teórica, tendo em vista a
individual e a uma cultura livresca - está muito aquém do multiplicidade e dinamismo das manifestações artísticas
que ele prefere chamar simplesmente de “poesia”, apon- produzidas pelo ser humano.
tando para uma ideia mais ampla de manifestação poé-
tica da palavra, que engloba outros elementos além da Este ensaio de Barthes é comentado pelo pesquisador W.
linguagem escrita. A “poesia” estaria, assim, intimamen- B. WORTHEN (2008), que explora a relação entre textu-
te ligada à ideia de ritualidade ou performance, e seria alidade e poder. Para Worthen, Barthes consegue dife-
identiicada por ele através da expressão “texto poético” renciar dois aspectos da textualidade frequentemente
(não necessariamente escrito). Zumthor distingue vários confundidos: o primeiro diz respeito ao papel dos textos
momentos na existência de um texto poético: a forma- como “veículos canônicos de intenção autoral” (aspecto
ção (criação ou composição do texto); a transmissão, que relacionado ao conceito barthesiano de “obra”), enquan-
propiciaria a recepção por parte do público, e a reitera- to o segundo estaria mais diretamente ligado à intertex-
ção, já que esta recepção pode acontecer repetidas vezes tualidade (relacionado ao conceito de “texto”). Worthen
sem que seja percebida como redundante pelo ouvinte. A procura repensar oposições relativas à textualidade e à
possibilidade de reiteração do texto poético é extrema- performance, inserindo na discussão as relações de po-
mente relevante para o conceito de performance, já que der que permeiam estas questões: “Palco versus página,
as condições de cada performance não são estáticas e po- literatura versus teatro, texto versus performance, estas
dem chegar a modiicar os signiicados do próprio texto. oposições simples têm menos a ver com a relação entre
Apesar disso, certas características gerais são mantidas, escrita e atuação do que com poder, com os meios pelos

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quais autorizamos a performance, fundamentamos sua O pesquisador Gil Nuno Vaz sublinha o papel central do
signiicância” (WORTHEN, 2008, p.12). corpo na estrutura básica da canção ao estudá-la como
campo sistêmico. Segundo ele, a gênese da canção esta-
Neste sentido, a performance aproxima-se da dimensão ria no movimento corporal: gestos que se desdobram em
dinâmica do “texto” barthesiano, já que este gestos sonoros, entre os quais o gesto vocal que, por sua
vez, produz a fala (gesto verbal) e o canto (gesto musical).
tenta se colocar exatamente atrás do limite da doxa (a opinião
corrente constitutiva de nossas sociedades democráticas, potente-
Conforme o pesquisador,
mente ajudadas pelos meios de comunicação de massa, não é ela
é altamente provável que a canção tenha emergido, historicamen-
deinida por seus limites, sua energia de exclusão, sua censura?);
te, da necessidade de conjugar toda a potencialidade expressiva
tomando a palavra ao pé da letra, poderíamos dizer que o Texto é
do corpo humano [...] de modo mais autônomo possível, em um
sempre paradoxal (BARTHES, 1984, p.74. Grifos da autor).
campo expressivo mínimo, para cumprir uma função especíica,
como o acalanto, por exemplo (VAZ, 2007, p.21).
Aplicando estas relexões sobre a performance à canção,
encontramos nesta forma expressiva um veículo comple- Partindo destes elementos essenciais da canção (fala,
xo em termos formais, além de altamente versátil, tanto canto e movimento), percebe-se os efeitos de duas forças
do ponto de vista da utilização do corpo como ferramenta agindo sobre eles, pois, “se de um lado a canção busca, no
artística/comunicativa como de sua capacidade de inser- processo evolutivo, intensiicar a conectividade entre seus
ção social, estabelecendo uma relação de comunicação elementos para garantir a continuidade sistêmica (for-
com diversos públicos. ça centrípeta), de outro, ocorre uma ação desintegradora
(força centrífuga) de cada um desses modos primitivos de
Ao analisar alguns aspectos relativos à performance da manifestação corporal em busca de seu campo expressivo
canção, Christian Marcadet chama atenção para a dis- próprio” (VAZ, 2007, p.25). Sob esta perspectiva da canção
tinção conceitual entre “performance” e “interpretação”. como forma expressiva primitiva ou embrionária, modos
Para ele, especíicos de expressão ligados ao corpo (como música,
A performance abrange um quadro mais amplo com o seu am- dança e poesia) seriam formas derivadas da canção e não
biente social e humano, as condições contextuais (históricas, o contrário (ideia da canção como superposição de lingua-
sociológicas, técnicas e midiáticas) que a tornam possível, en- gens especíicas). Deste modo, pensar a performance da
quanto a interpretação refere-se mais precisamente ao artista canção seria voltar ao início de um caminho expressivo, na
em cena, aos meios artísticos (vocais, corporais e gestuais) que
o mesmo mobiliza e à relação singular que estabelece com os busca pela reintegração de linguagens corporais cada vez
públicos (MARCADET, 2008, p.11). mais independentes e soisticadas, mas que guardam entre
si uma origem comum, ligada a uma visão orgânica e não
Entretanto, a concepção de “interpretação” desenvolvida compartimentalizada do corpo humano.
por Marcadet muito se assemelha à ideia de “performan-
ce” tal como apresentada por Paul Zumthor, vejamos: A canção é capaz de se adaptar a diversas formas do dizer
poético e aos mais distintos suportes, mantendo os traços
A interpretação das canções é por essência o cerne do que é fun-
damental na performance. É corrente de sentidos em atos como há
de sua estrutura original ao mesmo tempo em que con-
corrente de lava. A performance induz uma relação entre um artista segue absorver inúmeras inovações tecnológicas relativas
e uma audiência, que convém analisar, e o conceito que permite tanto à atividade de composição e gravação como aos
essa análise é o de modo de comunicação cena/plateia – ou in- circuitos de divulgação artística e distribuição. A perfor-
térprete/público, que marca a natureza e a intensidade da relação
estabelecida entre os diferentes atores da performance. Disso decor-
mance da canção, com todas as mudanças por que passou
rem novos campos de investigação: relações cantor/público e no- no último século, continua sendo fonte de prazer artístico
ções secundárias e lexíveis de participação, adesão, identiicação, e espaço de comunicação entre artistas e público, sempre
interação, intrusão, até mesmo co-criação. A interpretação é funda- pronta a absorver novidades e fazer uso delas a serviço da
mentalmente uma arte de síntese que combina encenação, enun-
ciado, personalidade, mito, pulsões do público e contexto. O artista
expressão artística do ser humano.
deve pensar globalmente as suas performances cênicas, atendendo
a seu repertório, a sua personalidade, às personagens que represen-
ta, os meios artísticos aos quais recorre, como os públicos aos quais
6. Canção, mercado e mídias
seus espetáculos são destinados (MARCADET, 2008, p.13). Por ser extremamente versátil como forma de expressão
artística, a canção adaptou-se a inúmeras mudanças
Como podemos perceber, a atenção especíica ao aspecto relativas aos suportes técnicos que utiliza, ensejando a
cênico que o termo “interpretação” quer denotar apenas criação de um mercado especíico voltado para a sua pro-
complementa as ideias de Paul Zumthor sobre a perfor- dução e consumo.
mance e as situa no panorama especíico da canção. As
palavras de Marcadet, à semelhança de Paul Zumthor, Inicialmente, temos a presença simultânea do cantor e
apontam para uma compreensão mais ampla de “texto do(s) ouvinte(s) em um mesmo espaço e tempo como
poético”, o que ocorre por meio de um exame atento das requisito essencial para a performance da canção. Ape-
condições nas quais este texto será efetivamente perfor- sar desta modalidade de performance ainda persistir na
matizado. Esta abordagem é necessariamente transdis- sociedade ocidental contemporânea na forma de shows,
ciplinar e abrangente, não podendo se resumir a um ou festivais e recitais, ela já não é mais a única possibilidade
outro aspecto formal da performance da canção. de performance da canção desde que foram desenvolvi-

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dos meios de captar, ixar e transmitir o som à distân- dos signiicados da obra de arte apresentada, sendo esta um
cia. Em seu estudo histórico sobre o desenvolvimento da conjunto complexo de elementos expressivos.
“paisagem sonora” (soundscape na expressão original em
inglês), o canadense Murray Schafer aponta o período do O desenvolvimento de tecnologias de gravação e re-
século XIX, por ele chamado de “revolução elétrica”, como produção do som também abriu a possibilidade de no-
decisivo no desenvolvimento das tecnologias relativas ao vas formas de exploração comercial da canção: além
som, destacando entre elas o telefone, o fonógrafo e o da venda de partituras e ingressos para óperas e reci-
rádio: “com o telefone e o rádio, o som não estava mais tais, também se tornou possível vender itas e discos
ligado ao seu ponto original no espaço; com o fonógrafo, que registravam a performance dos cantores, ou pelo
ele foi libertado de seu ponto original no tempo” (SCHA- menos parte desta performance (o som). Desde estes
FER, 1994, p.89). Estas tecnologias tornaram possível o primeiros tempos, a indústria fonográica já passou por
surgimento do fenômeno batizado por Schafer de “esqui- inúmeras etapas na consolidação de um mercado espe-
zofonia”, ou seja, a desvinculação entre o som original e cíico voltado para a produção e consumo da canção.
sua transmissão ou reprodução eletroacústica: Este trajeto da canção no mercado foi examinado de-
talhadamente pela pesquisadora Heloísa Duarte Valen-
Originalmente, todos os sons eram originais. Eles ocorriam em
apenas um tempo e espaço. Sons eram indissoluvelmente ligados
te, que propõe a denominação canção das mídias em
aos mecanismos que os produziam. A voz humana viajava tão lon- substituição à corrente expressão canção popular ou
ge quanto alguém pudesse gritar. Todo som era inimitavelmente canção pop, dadas as especiicidades dos papéis atri-
único [...] Desde a invenção dos equipamentos eletroacústicos para buídos à canção dentro do panorama de uma socieda-
transmissão e armazenamento do som, qualquer som, por mínimo
que seja, pode ser ampliicado e executado em todo o mundo, ou
de que ela chama de “midiática”:
gravado em ita ou disco para as gerações futuras. Nós separamos
Ao nos referirmos à canção das mídias, estamos [...] tratando da
o som do produtor do som (SCHAFER, 1994, p.90).
canção em uma gama de modalidades que tem uma orientação
comum: ter nascido no âmbito de uma sociedade já dominada pe-
A esquizofonia representa um importante divisor de águas los meios de comunicação de massas (as mídias). Isto se traduz,
para a performance da canção, trazendo mudanças tanto sucintamente falando, numa canção composta, executada, difun-
dida e recebida segundo os recursos oferecidos pelo conjunto de
para os intérpretes como para os ouvintes. Com a possi-
técnicas de som (e/ou do audiovisual) vigente que, por sua vez,
bilidade de gravar e posteriormente reproduzir o som em está condicionado à esfera político-econômica das gravadoras.
discos e itas, foi iniciado um processo tecnológico que Acrescente-se que, em relação aos séculos precedentes, a can-
começou com as gravações lo-i, passou pela era hi-i 12 ção das mídias atenderá a um público cuja sensibilidade cambiará
mais rapidamente ao longo dos anos, graças à implantação de
e continua até hoje com os arquivos sonoros digitais vei-
novas tecnologias do som e da imagem [...] Posto isto, podemos
culados pela internet. Este caminho de captação e mani- airmar que a canção das mídias segue as mesmas normas que
pulação do som foi trilhado também, de maneira diversa, deinem a indústria do entretenimento (VALENTE, 2003, p.60).
no campo das imagens (fotograia, cinema, televisão e
vídeo-tape). Na época da esquizofonia, a performance da Ainda conforme a pesquisadora, as inovações técnicas re-
canção passou a ser também mediatizada. lativas às mídias sonoras também criaram novos padrões
estéticos para atender às demandas do mercado. Tais pa-
Para Paul Zumthor, drões acabam por afetar diretamente a performance das
canções, interferindo em todo o processo: desde a escolha
é indiscutível que a transmissão midiática retira da performance do repertório, passando pela gravação, até a reprodução
muito de sua sensualidade [...] o que falta completamente, mesmo
na televisão ou no cinema é o que denominei tatilidade. Vê-se um por meio de discos, itas e das rádios. A crescente popula-
corpo; o rosto fala, canta, mas nada permite este contato virtual que rização das mídias torna as canções e seus meios de repro-
existe quando há a presença isiológica real [...] Uma performance dução acessíveis a um número cada vez maior de ouvintes
mediatizada não é verdadeiramente teatral, no sentido que a en- (ou consumidores), tornando este mercado ainda mais pro-
tendo; no entanto, essa performance se faz bastante diferente do
que poderia ser qualquer forma de escrita (ZUMTHOR, 2005, p.70). missor e atraente para investimentos. Os artistas passam a
ser encarados sob uma perspectiva essencialmente comer-
Esta airmação relaciona-se com as ideias de Zumthor so- cial: eles e suas obras são devidamente “adaptados” com
bre o que poderíamos chamar de graus de performaticidade vistas às exigências mercadológicas e todo um aparato de
presentes nos diversos textos poéticos. Deste modo, o tex- marketing passa a atuar interferindo diretamente em todas
to escrito e a performance ao vivo representam os pontos as etapas de criação e veiculação de suas canções.
extremos desta escala, respectivamente, de menor e maior
grau de performaticidade. Em todos os casos, porém, a per- Em artigo publicado originalmente em 1990, mas ainda
formance pode ser entendida como uma interação entre pertinente em relação ao atual panorama da música po-
texto poético e leitor, daí a ainidade entre o pensamento pular, Luiz Tatit14 analisa o funcionamento deste mercado
Zumthor e as teorias literárias conhecidas como “estética e alguns fatores decisivos para o estudo da nova perfor-
da recepção”13. O leitor (expressão tomada no sentido de mance da canção:
também incluir o ouvinte/espectador) é um componente
o novo artista deixou de ser o estímulo inicial para o investimen-
chave no desenvolvimento da performance, desempenhan- to das empresas de gravação e se tornou o resultado, repentino
do uma atividade criativa que caminha lado a lado com o aos olhos do público, de uma cadeia de diligências mercadoló-
trabalho do artista, e que é fundamental para a produção gicas e promocionais, quase infalíveis, que produzem os artistas

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com características já preestabelecidas para assegurar o míni- das condições sensoriais de uma situação de performan-
mo de sucesso necessário ao retorno do capital investido. E no ce presencial. Porém, as possibilidades técnicas à dispo-
centro deste novo estado de coisas formou-se igualmente uma
nova competência: o homem de estúdio. Aquele que, sendo ou sição do artista de hoje não se resumem aos aparatos
não músico, sabe converter uma canção, por mais simples que eletrônicos de manipulação do som. Com o desenvolvi-
seja, num produto expressivo e agressivo que invade a sala do mento do mercado fonográico, foram elaboradas outras
ouvinte com a mesma exuberância de um som ao vivo. Chamado maneiras de veiculação da performance, sendo o vídeo-
de produtor, diretor, técnico ou engenheiro de som, este persona-
gem oculto, cuja habilidade é completamente desconhecida do clipe a mais notável entre elas. Além das gravações, das
grande público, está por trás de inúmeros êxitos do mercado do fotos nas capas dos discos e das apresentações ao vivo
disco. Sem esse respaldo de qualidade sonora, caminhando pari (cada vez mais soisticadas em termos de performance),
passu com as convenções eletrônicas e assegurando um acaba- o artista agora podia ter sua obra traduzida nas imagens
mento técnico impecável, de nada adiantariam as mais perfeitas
estratégias de marketing (TATIT, 2007, p.132). em movimento do vídeo-clipe, inicialmente criado como
peça publicitária para divulgação comercial de lança-
As observações de Tatit demonstram como as regras do mentos musicais, mas logo desenvolvendo padrões es-
mercado interferem diretamente na performance da can- téticos próprios e conquistando espaços especíicos no
ção, não apenas nas etapas de veiculação e divulgação mercado. À semelhança das gravações em áudio, os ví-
junto ao público, mas também durante o processo de deo-clipes não se limitaram a reproduzir as performan-
criação/gravação. Sob este ponto de vista, o trabalho do ces ao vivo, mas desenvolveram suas potencialidades no
produtor de estúdio torna-se tão importante quanto o do sentido de complementar e até mesmo transformar o
compositor, já que altera diretamente a obra (ou, em ter- sentido das canções a que estavam vinculados.
mos mercadológicos, o produto) que chegará aos olhos e
ouvidos do público. Paul Zumthor acredita que a ausência do artista na
performance mediatizada “carrega uma expectativa ir-
Hoje existe todo um soisticado aparato tecnológico es- remediável para a integridade do corpo” (ZUMTHOR,
pecialmente desenvolvido para as mídias audiovisuais, 2005, p.94); expectativa esta que seria responsável por
que permite desde a manipulação de sons e imagens desencadear um processo de recomposição da situação
originais até sua própria criação por meios digitais. Toda da performance ao vivo através justamente dos recursos
esta riqueza de possibilidades técnicas representa o es- tecnológicos que se encontram à disposição dos artistas.
tágio atual de um longo caminho percorrido desde os Entretanto, não se pode negar que os novos suportes téc-
primeiros e precários registros fonográicos e que tem nicos terminaram por criar linguagens próprias, interfe-
por objetivo principal permitir ao público a reprodução rindo diretamente na recepção do público.

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gens sobre a canção. H.de Araújo Duarte Valente (Org.) 1 ed. São Paulo: FAPESP/Via Lettera, 2007.
WORTHEN, J. B. Disciplines of the text: sites of performance. In. The Performance Studies Reader. H. Bial (Ed.) 1 ed. Lon-
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ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. 1 ed. São Paulo: Companhia das letras, 1993.
_____. Escritura e nomadismo. 1 ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005.
_____. Performance, recepção, leitura. 2 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Notas
1 Bowden realizou um estudo sobre as canções de Bob Dylan, tendo como foco a dimensão performática dos textos deste compositor.
2 Veja-se, a título de exemplo, o caso de textos literários que são posteriormente musicados e transformados em canções, ou dos inúmeros escritores
que se dedicam também a compor letras de canções.
3 Os dois processos referidos por Berthier procuram, respectivamente, “identiicar uma mensagem linguística no luxo fonatório, independentemente
das particularidades e variações individuais, a im de, por exemplo, transformar diretamente a fala em escrita” e “identiicar o locutor, qualquer que
seja o teor linguístico de sua fala” (BERTHIER, 1998, p.60).
4 Todas as traduções são de minha responsabilidade.
5 O som no signo, ensaio contido no livro O ser e o tempo da poesia, originalmente publicado em 1977.
6 Walter Ong compara sociedades de base oral e letradas, tendo como resultado um elenco exempliicativo de características do pensamento e
expressão de base oral. Assim, em contraste com sociedades letradas, a oralidade seria: aditiva em vez de subordinativa; agregadora em vez de
analítica; redundante ou copiosa; conservadora ou tradicionalista; próxima ao mundo vivenciado (lifeworld); de tom agonístico; empática ou par-
ticipativa em vez de objetivamente distanciada; homeostática; situacional em vez de abstrata (ONG, 1999, p.37-57).
7 A expressão é de Margit FRENK (2005).
8 A letra e a voz (ZUMTHOR, 1993).
9 Vocação e perplexidade dos cancionistas, texto originalmente publicado em 1983 no jornal Folha de São Paulo.
10 Como exemplos destes antecedentes históricos, o autor cita os chamados happenings, iniciados nos anos 1960 nos EUA e relacionados às experi-
ências surrealistas dos anos 1920 na Europa, e a body art (arte do corpo) que encara o corpo do artista como suporte expressivo e instrumento de
interação com o espaço e com a plateia. No campo das artes plásticas, a chamada action painting praticada por artistas como o norte-americano
Jackson Pollock, ao destacar os movimentos do artista por meio de suas pinceladas, também contribuiu com o movimento que tentava repensar as
artes, oferecendo uma visão menos estática e segmentada da criação artística.
11 Diferentemente de Walter J. Ong, que sempre utilizou o termo “oralidade” para fazer referência às manifestações sonoras da palavra, Zumthor
introduz o termo “vocalidade”, preferindo-o ao anterior por situar melhor esta dimensão sonora da palavra, relacionando-a especiicamente à voz
humana.
12 lo-i e hi-i, respectivamente, abreviações das expressões inglesas low-idelity e high-idelity, utilizadas geralmente como referência a uma menor
ou maior idelidade de reprodução do som.
13 Teorias identiicadas também pela expressão inglesa reader-response criticism, elaboradas por autores como Stanley FISH, Wolfgang Iser e Hans-
Robert Jauss.
14 Canção, estúdio e tensividade, artigo originalmente publicado na Revista USP, 1990.

Conrado Falbo é Mestre em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
Pernambuco (2009). Atua proissionalmente como músico (violonista), professor e escritor, além de preparador vocal de
atores. Seus principais focos de pesquisa acadêmica e criação artística são: performance, corpo e vocalidade; intersemio-
se (relações entre poesia, música e artes cênicas); e música popular. Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado sobre
as dimensões performáticas da poesia brasileira desde o modernismo.

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BORÉM, F. Entrevista com Ana Taglianetti, Daniel Souza e Fernando Bustamante... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.232-239.

Entrevista com Ana Taglianetti, Daniel


Souza e Fernando Bustamante sobre o
Projeto Teatro Musical na UFMG

Fausto Borém (UFMG, Belo Horizonte)


fborem@ufmg.br

Palavras-chave: teatro; musicais; música popular; canto; belting; Broadway; Disney.

Interview with Ana Taglianetti, Daniel Souza and Fernando Bustamante about the Teatro
Musical Project at UFMG

Keywords: theatre; musicals; popular music; singing; belting; Broadway; Disney.

Ana Taglianetti e Daniel Souza (Monitores do Projeto Teatro Musical na UFMG)


e Fernando Bustamante (Diretor Convidado do Projeto Teatro Musical na UFMG)

PER MUSI – Revista Acadêmica de Música – n.22, 239 p., jan. - jul., 2010 Recebido em: 21/08/2009 - Aprovado em: 19/04/2010
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BORÉM, F. Entrevista com Ana Taglianetti, Daniel Souza e Fernando Bustamante... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.232-239.

1 - FAUSTO BORÉM: Primeiro, gostaria que vocês 3 - FAUSTO BORÉM: Historicamente, a ópera acompa-
falassem um pouco sobre os musicais, este gênero nhou a estética de cada época (barroco, classicismo, ro-
de tanto sucesso e ainda tão pouco estudado aca- mantismo, expressionismo etc.), com também valorizou
demicamente, no contexto da história da música e as expressões culturais fortes de alguns países, como a
principais centros de produção. dança na França, o bel canto na Itália e a literatura na
Alemanha. Há um paralelo na história dos musicais?
DANIEL SOUZA: A música tem um papel primordial
nos espetáculos teatrais desde os tempos mais remo- DANIEL SOUZA: A história dos musicais é bem mais recente
tos. Na Grécia Antiga, o canto era comumente utili- do que a história da ópera, mas a evolução do gênero a partir
zado e Aristóteles já se referia à música como um dos dela, de outras expressões musicais e da dança é eviden-
seis elementos fundamentais das tragédias gregas. te. A opereta e o cabaret foram os grandes inspiradores dos
Com o passar dos tempos, na Idade Média, podemos primeiros musicais e a linha que separa um gênero do ou-
observar também os dramas litúrgicos ou religiosos e tro nos primórdios do teatro musical é, muitas vezes, tênue.
outras representações, como jograis, saltimbancos e Alguns exemplos são os musicais Jesus Cristo Superstar e
malabaristas que se utilizavam da linguagem musi- Hair, fortemente enraizados no pop e no rock. Outros, como
cal e dramática na mesma representação. No renas- Dreamgirls, Raisin, Purlie, The Wiz, Ragtime e A Cor Púrpura
cimento e barroco, houve uma grande propagação de trazem uma grande inluência da cultura norte-americana
gêneros teatrais cantados, culminando no surgimento afro-descendente. Na França, a literatura e as guerras inspi-
das primeiras óperas. Com a chegada do século XIX, a raram criações como Les Misérables e Miss Saigon. Em Lon-
ópera, a opereta e o cabaret tornam-se cada vez mais dres, Andrew Lloyd Webber inspirou-se na literatura para
criativos e mais populares. Na Broadway, em Nova as composições de Cats e O Fantasma da Ópera e na vida
Yorque, EUA, o teatro musical ganhou sua versão mais de Eva Perón, da Argentina, para a composição do musical
próxima do que conhecemos hoje. Mas outros centros Evita. Óperas do século XIX, como Madame Butterly, La Bo-
artísticos no mundo têm também grande importância hème e La Traviata também foram inspiradoras de enredos
na produção de musicais, como o West End, em Lon- de musicais, como em Miss Saigon, Rent e Moulin Rouge,
dres e diversos teatros franceses. este último um longa-metragem de 2001 que ainda não re-
cebeu versão para o palco. Mas, certamente, uma das mais
2 - FAUSTO BORÉM: Podem citar alguns dos principais fortes expressões culturais que inluenciaram a produção de
compositores e letristas/roteiristas do teatro musical? musicais foi o cinema e suas grandes produções, que ora
reproduziam um grande musical dos palcos, ora inspiravam
DANIEL SOUZA: No teatro musical internacional, po- outros que fariam temporada em teatros do mundo inteiro.
demos destacar compositores como Jerome Kern, Cole A própria Disney transformou alguns de seus grandes clás-
Porter, Irving Berlim, George e Ira Gershwin, Vincent sicos de animação e longa-metragem, como A Bela e a Fera,
Youmans, Alan Jay Lerner, Leonard Bernstein e Andrew O Rei Leão, A Pequena Sereia e Mary Poppins, em musicais
Lloyd Webber, Cole Poter, Richard Rodgers Hammers- de sucesso no palco. Devemos citar os musicais criados em
tein, Frederick Loewe, Stephen Sondheim (que também cima de grandes coletâneas de canções de sucesso do sé-
era um grande letrista), John Kander, Fred Ebb, Clau- culo XX, como Mamma Mia!, inspirado nas músicas do gru-
de-Michel Schoenberg, Elton John (por seus trabalhos po Abba, We will rock you com músicas do grupo Queen,
para a Disney Theatrical), Marvin Hamlisch, Stephen Movin´Out, baseado nas melodias de Billy Joel, Good Vibra-
Schwartz, Jonathan Larson, entre muitos outros. Entres tions, com músicas dos Beach Boys e All Shook Up, baseado
os letristas e roteiristas, não podemos esquecer nomes em sucessos de Elvis Presley.
como Oscar Hammerstein II, o próprio compositor Son-
dheim, Tim Rice, Jerry Herman, também compositor e 4 - FAUSTO BORÉM: Quais são as diferenças estéti-
Alain Boublil. cas e mercadológicas entre os musicais para adultos e
para crianças?
ANA TAGLIANETTI: Como veem, são muitos! Mas
a gente sempre tem os nossos preferidos... Rodgers e FERNANDO BUSTAMANTE: Historicamente, existe um
Hammerstein, Shoenberg e Boubil, Stephen Sondheim preconceito sobre a montagem de espetáculos para crian-
são os meus eleitos! ças, muitas vezes considerada uma arte menor. Entretanto,
os artistas que investem nesse segmento têm mostrado
FERNANDO BUSTAMANTE: Já o teatro musical bra- a importância de uma boa equipe de criação em um es-
sileiro, desde o final do século XIX, também teve gran- petáculo, seja ele destinado ao público adulto ou infan-
des compositores. Destaco Chiquinha Gonzaga (gran- til. Deve haver uma preocupação com todos os elementos
de referência para o Teatro de Revista), Carlos Gomes, que compõem a encenação (qualidade do texto, música,
Ary Barroso e Assis Valente, que também musicaram cenário, igurino, iluminação, elenco de atores, cantores e
peças e revistas teatrais. A partir da década de 1960, bailarinos etc.), seja qual for o gênero da peça. Portanto,
Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Tim as diferenças estéticas estão relacionadas aos mecanismos
Rescala estão entre os mais importantes compositores utilizados para articular esses elementos na encenação. Em
do gênero no Brasil. termos de mercado, podemos airmar que existe uma forte

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tendência de, nos espetáculos infantis, criar um interesse nica na Casa de Artes OperÁria 1, em São Paulo e da minha
também nos pais e acompanhantes presentes na plateia. decisão de morar em Belo Horizonte, acabaram por me
Não acontece o inverso no musical adulto. convidar para desenvolver com eles um projeto de monta-
gem, que acabou intitulado Uma noite na Broadway. Este
5 - FAUSTO BORÉM: No Brasil, e em Belo Horizonte, projeto frutiicou, se tornou o Projeto Teatro Musical na
especiicamente, houve um processo continuado de de- UFMG, foi apresentado em várias cidades de Minas Gerais
senvolvimento dos musicais? Quais são as perspectivas? e, no ano seguinte, acabamos encenando o Uma noite na
Broadway II. O projeto se desdobrou em duas frentes, este
FERNANDO BUSTAMANTE: O Teatro de Revista é a que continuei coordenando e outro, com o diretor Fer-
maior referência do teatro musical no Brasil. Depois da nando Bustamante, que foi convidado para coordenar a
sua decadência na década de 1950, o gênero retorna aos montagem de A Pequena sereia. Ambos projetos contaram
palcos em algumas adaptações do modelo da Broadway, praticamente com o mesmo elenco. Em 2010, começare-
a partir da década de 1960. No período do regime militar mos a encenação do projeto Uma noite na Broadway III.
vimos seu recrudescimento pela ação da censura oicial
em montagens como as de Chico Buarque (Roda Viva, Ainda do ponto de vista de inserção dos musicais na univer-
Gota d’Água e pera do Malandro). Ainda assim, o gênero sidade, devo dizer que a UFMG é a primeira universidade
parecia não ter o mesmo espaço na preferência do públi- brasileira a incluir este tópico em um currículo de um curso
co, como ocorreu no inal do século XIX. superior de música. E isto só foi possível com o apoio do
Professor Lucas Bretas, como Diretor da Escola de Música
No início do século XXI, espetáculos voltam a importar o da UFMG e como Professor que implantou esta disciplina no
modelo americano da Broadway e recebem versões brasi- currículo. Para 2011, temos a previsão da vinda do maestro e
leiras com o trabalho de Cláudio Botelho e Charles Möel- Doutor em Música norte-americano Barry Kolman, com lar-
ler. A precisão técnica e o virtuosismo chamam a atenção ga experiência no repertório sinfônico e de musicais, como
do público e a demanda por proissionais para compor o pesquisador e professor visitante da Fullbright.
elenco destes espetáculos têm contribuído para o desen-
volvimento dos musicais no Brasil. 7 - FAUSTO BORÉM: Como se dá a seleção dos elencos
e quais são os requisitos para participar do projeto. Há
Em Belo Horizonte, destacamos o trabalho do diretor Pe- preferências por tipos de voz, tipos físicos, personali-
dro Paulo Cava em montagens musicais adultas e infantis a dades etc.? Há um predomínio de atores que cantam e
partir da década de 1970. Outros nomes do teatro mineiro dançam, de músicos que atuam e dançam ou de baila-
contribuíram para fomentar o desenvolvimento do gênero rinos que atuam e cantam?
no estado. O Grupo Galpão, Grupo Ponto de Partida, Ernani
Maleta, Fernando Muzzi, Maurício Tizumba são alguns deles. ANA TAGLIANETTI: A seleção de elenco para um musical
de grande porte, especialmente para os “importados enla-
6 - FAUSTO BORÉM: E você próprio, Fernando [Bus- tados”, parte de alguns pré-requisitos. Para um determi-
tamante], não podemos esquecer, que tem desenvol- nado papel, o diretor procura, por exemplo, uma jovem de
vido aqui em Belo Horizonte um trabalho referencial 20 a 24 anos, magra e negra, que seja cantora e bailarina
no teatro musical, com prêmiações como diretor, pro- proissional. Se for isso que ele precisa para aquele deter-
dutor, ator, preparador corporal, entre outras. Dá para minado papel, não adianta artistas com outros peris dese-
se perceber que há um sopro novo na cidade em torno jarem fazer o teste, estão claras as demandas do diretor. Na
da produção e aprendizagem do gênero musical. Você maioria das audições, quando as provas são divulgadas, já
Ana, que fundou a principal escola de preparação de se sabe precisamente o que se espera para os papéis, inclu-
cantores-atores para musicais no país [a Casa de Ar- sive a extensão e tipo vocal. Portanto, com as partituras do
tes OperÁria, em São Paulo] e tem vasta experiência repertório em mãos, um cantor pode, por exemplo, saber
no exterior com o canto lírico e o belting, mudou-se se consegue atingir os limites melódicos inferior e superior
para a cidade há dois anos. E você, Daniel [Souza], das canções, com a intensidade e qualidade necessárias.
que trabalhou na Disney dos EUA e graduou-se em Costuma ser tudo muito especíico.
regência orquestral, concentra boa parte de suas ati-
vidades nesta área. Como surgiu a ideia de iniciar um No caso de produções menores, ou montagens originais,
núcleo de produção de musicais, integrando o ensino ou de textos brasileiros, isso pode ser diferente. As au-
do teatro, música e dança na universidade brasileira? dições podem ter um caráter mais aberto, mais livre. Em
geral, os candidatos passam por uma pré-seleção de currí-
ANA TAGLIANETTI: Tudo começou espontaneamente, a culo e, então, são chamados - ou não! - para serem ouvi-
partir da disposição do maestro Daniel Souza e da soprano dos, e isso acontece em quase todos os casos. No caso do
Fabíola Protzner de criarem um espetáculo de highlights Projeto Teatro Musical na UFMG, a coisa é bem diferente.
de musicais com os alunos do Bacharelado da Escola de Estamos selecionando elencos para projetos educativos.
Música da UFMG. Isso foi em 2008, ano em que ingressei Nossos testes não são eliminatórios, mas sim classiica-
na UFMG e me mudei de São Paulo para BH. Como soube- tórios. Qualquer um pode participar, guardadas as dimen-
ram da minha longa experiência com esta linguagem cê- sões do que tem para oferecer ao artista em formação.

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BORÉM, F. Entrevista com Ana Taglianetti, Daniel Souza e Fernando Bustamante... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.232-239.

FERNANDO BUSTAMANTE: Gostaria de acrescentar 9 - FAUSTO BORÉM: Poderiam situar o Projeto Tea-
que, não raro, o diretor de musicais enfrenta imprevistos tro Musical no contexto brasileiro, tanto em relação
– como doença, acidentes, viagens etc.- que acarretam às praças consolidadas de São Paulo e Rio de Janeiro,
a substituição de membros do elenco. Por isso mesmo, quanto a outros possíveis pólos emergentes?
é comum, e mais seguro, a preparação de dois elencos:
o principal e o substituto ou alternante. Só para dar um ANA TAGLIANETTI: Sem dúvida nenhuma, o Projeto Te-
exemplo, na estreia da versão estendida de A Pequena atro Musical na UFMG possibilitou a descoberta de incrí-
sereia (inspirada no repertório musical e roteiro da Bro- veis talentos mineiros para o teatro musical. E agora, com
adway) em Minas Gerais, tínhamos cerca de 50 pessoas tantos jovens artistas de Belo Horizonte preparados para o
no elenco, entre cantores-atores, bailarinos, músicos de trabalho com essa linguagem, essa cidade se torna um cal-
orquestra e pessoal de iluminação e de gerenciamento deirão de possibilidades maravilhosas para que os diretores
de palco. Por outro lado, a lexibilidade brasileira ajuda locais possam contar com estes artistas, agora mais prepa-
nestas horas. Só para dar um exemplo, na versão abre- rados para lidar com a linguagem do musical. Os talentos
viada de A Pequena sereia (inspirada no texto original de que descobrimos aqui são de alta qualidade, e acredito que
Hans Christian Andersen e músicas do ilme da Disney) Belo Horizonte tem tudo para se tornar a próxima cidade
minha atriz-cantora Jai Baptista faz três papéis com brasileira, depois de Rio de Janeiro e São Paulo, a entrar no
peris diferentes, o que exige muita agilidade na tro- circuito dos grandes musicais. Basta que os produtores lo-
ca de igurinos e caráter das falas e canções: uma das cais queiram investir em montagens e que os atores quei-
irmãs-sereias, a noiva que pretere Ariel e a gaivota-ma- ram permanecer em BH e trabalhar localmente. Há uma
cho Sabidão. Mas o improviso tem também o seu lugar: grande tradição do canto em Minas Gerais, e este parece
quando a Jai, que é negra, faz o papel de Sabidão e en- um bom momento para que o estado pare de exportar seus
toa um agudo áspero e desainado, o siri Sebastião faz melhores talentos. Como educadora com quase 20 anos de
um aparte – “Cala a boca, Elza Soares!”, que se tornou experiência no ensino de musicais, já formei centenas de
um bordão que só pode ser apreciado no Brasil. artistas, e confesso que poucas vezes me deparei com o ní-
vel dos jovens talentos para o musical que encontrei aqui.
8 - FAUSTO BORÉM: Uma questão delicada na rela-
ção diretor versus elenco: como se dá o processo de
10 - FAUSTO BORÉM: Quais as diferenças entre o mu-
cortes no elenco por insuiciência na expressão ou
sical norte-americano e o teatro de revistas brasileiro?
demandas do personagem? Como o diretor aborda
Porque o primeiro se tornou um mercado milionário e o
a questão da competição e da humildade entre os
segundo entrou em decadência após uma época de ouro?
membros do elenco?

FERNANDO BUSTAMANTE: Normalmente, fazemos au- FERNANDO BUSTAMANTE: O teatro de revista retratou
dições para avaliar as condições técnicas e o peril de a sociedade da época, tornou mais acessível o gênero ao
cada integrante do elenco a ser escolhido. Entretanto, se grande público e contribuiu para difundir modos e costu-
houver a necessidade de cortes, “diplomacia” é a palavra- mes através da linguagem composta pela crítica apimenta-
chave para resolver a questão. Vivemos num meio cheio de da e personagens alegóricos. Entretanto, o apelo para o es-
vaidades e é preciso medir as palavras na hora de tomar cracho e para o nu explícito, em detrimento da comicidade,
qualquer atitude. Acredito que a “competição” deve ocorrer foi o grande responsável pela sua decadência. Já o musical
somente no momento das audições. Durante os ensaios, é norte-americano apostou na versatilidade de estilos musi-
essencial ter consciência da importância do coletivo e do cais, no apuro técnico e na miscigenação de estilos e raças.
trabalho colaborativo de cada integrante. Esses fatores reunidos foram essenciais para o desenvolvi-
mento de um mercado milionário do entretenimento.
DANIEL SOUZA: A modificação de um elenco durante
a construção ou durante a temporada de apresenta- 11 - FAUSTO BORÉM: Quais são os desaios de dirigir
ções de um espetáculo é sempre um processo com- cenicamente um musical?
plicado. As decisões devem levar em consideração
os prós e os contras no caso de cortes ou trocas de FERNANDO BUSTAMANTE: É muito importante para o
papéis no elenco. Às vezes, o corte é necessário e até diretor/encenador esclarecer para todos os membros da
indispensável, mesmo com as rupturas que causa no equipe de criação que a “música”, nos musicais, torna-se
trabalho ou nos relacionamentos dentro do próprio um adjetivo do substantivo teatro, ou seja, tudo deve ser
elenco. Porém, é sempre importante lembrar que as planejado em função da cena. Muitas vezes, a canção ou
questões pessoais devem ser colocadas de lado para trecho instrumental pode ser uma verdadeira obra pri-
que prevaleça o profissionalismo. ma, mas pode não permitir a intenção ou expressão do
personagem. Isso se aplica a todos os outros elementos
ANA TAGLIANETTI: Na minha experiência, vi isso acon- cênicos. Outros fatores importantes são o acabamento, o
tecer raras vezes, uma vez que no próprio processo de planejamento das transições, entradas e saídas de cenário
seleção os escolhidos costumam ser eleitos por serem ca- e elenco, as coreograias etc. Cada detalhe é importante
pazes de dar conta do recado. para compor um grande espetáculo.

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12- FAUSTO BORÉM: Quais são os desaios de se fazer instrumento, a voz, com a maior destreza possível, o que
um musical com música ao vivo? só é possível com o desenvolvimento de uma técnica
muito sólida. Assim como acontece na música erudita,
DANIEL SOUZA: Existem vários desaios para se fazer a técnica vocal para o teatro musical tem o canto lírico
um musical ao vivo, que geralmente dura cerca de 140 em sua base. Entretanto, a técnica belting é a mais uti-
minutos. O primeiro e maior deles é o inanceiro: além lizada nesta manifestação artística.
dos cantores/atores, é preciso contratar os músicos para a
formação instrumental desejada, além de, minimamente, O belting consiste numa expressão vocal da “fala-canta-
técnicos de som. O ideal é que todo espetáculo de tea- da”. Estamos falando o texto, mas uma fala que se expres-
tro musical seja microfonado (cantores, instrumentistas e sa em frequências sonoras especíicas, as notas musicais.
atores), para se obter um melhor equilíbrio sonoro e evi- A clareza do texto teatral está em primeiro plano. Aqui,
tar um grande desgaste das vozes. Em caso de tempora- o objetivo é fazer teatro, é contar uma história. O texto
das de pelo menos quatro apresentações por semana isso precisa ser entregue para o público com absoluta clareza.
se torna essencial para a saúde vocal do ator/cantor, para A técnica do belting foi desenvolvida com este propósito.
se obter melhores resultados na performance. Por outro É, na verdade, uma mistura de estilos que acabou resul-
lado, a formação instrumental de um musical geralmente tando numa técnica muito apropriada para a linguagem
é reduzida por questões inanceiras ou de espaço. O pró- teatral. Há também o objetivo de se mostrar virtuosismo,
prio equipamento de sonorização é uma questão inan- mas dentro de uma concepção bem diferente, em que a
ceira delicada: microfones, caixas e mesas de som especí- cena possui uma importância maior. Raramente a exten-
icas costumam elevar muito os custos em uma produção. são vocal feminina, por exemplo, é usada nos seus ex-
A própria necessidade de economizar acaba atrapalhan- tremos. Por outro lado, sopranos de graves abertos são
do, pois costuma-se ensaiar sem os equipamentos de som essenciais para os grandes papéis dos musicais. Muitas
para diminuir custos, o que, depois, gera problemas para vezes, no que diz respeito aos homens, se requer tenores
equilibrar solistas, coro e orquestra no palco. com graves privilegiados, ou barítonos com agudos pri-
vilegiados para a execução das canções. Existe até uma
13 - FAUSTO BORÉM: Quais são os desaios de tradu- expressão no meio musical que utiliza o belting que de-
ção dos textos originais para o português? nomina esses cantores de “baritenors”.

FERNANDO BUSTAMANTE: Traduzir é muito diferente A técnica para a execução de música popular brasileira
de “versionar” uma música, o que é o ideal. Na versão, tem similaridades e diferenças em relação ao canto líri-
existe a preocupação em aproximar a sonoridade das pa- co e ao belting. Como no canto lírico, o cantor de MPB
lavras originais. O sentido das frases tem que ser mantido. tem sua atenção voltada principalmente para a música,
O nosso vocabulário possui palavras muito extensas, es- mas precisa de outros recursos musicais soisticados,
pecialmente em relação ao inglês, e isso diiculta ainda como a improvisação, que é praticamente inexistente
mais o trabalho. Outro fator que deve ser considerado é no teatro musical e, mais ainda, na música erudita tra-
o contexto onde os textos e as músicas originais estão dicional. Por outro lado, o cantor de MPB se aproxima
inseridos. Uma piada em inglês pode não funcionar em mais do teatro musical pela preocupação com o enten-
português, se não for adaptada à realidade brasileira. Re- dimento das palavras, daí a restrição na utilização de
ferências a gírias, costumes e hábitos na cultura da língua vibrato e a moderação do virtuosismo.
original devem ser cuidadosamente avaliadas e adaptadas
para fazerem sentido no português brasileiro. A MPB, na maioria dos casos, não precisa que seus intér-
pretes usem uma grande extensão vocal, o que não quer
14 - FAUSTO BORÉM: Podem falar sobre as diferenças dizer que eles não a possuam. A voz torna-se um instru-
entre as técnicas vocais do musical, da música popular mento do grupo, um instrumento que emite palavras, mas
e da ópera? Há uma relação entre técnicas vocais e sempre com a música em primeiro plano. Não há cena
clareza na expressão do texto? teatral, ou quando há, é bastante sutil. Não é necessária
uma grande projeção da voz, pois a MPB está associada
ANA TAGLIANETTI: A ópera utiliza a técnica lírica de ao recurso de ampliicação. O cantor popular precisa sa-
canto, que consolida uma linha que privilegia o vibra- ber usar bem o microfone e que deve ser tratado como
to contínuo associado a uma impostação da voz bas- um outro instrumento musical. Não é assim tão fácil usar
tante característica. O repertório operístico é bastante corretamente o microfone. Novamente, isto não quer di-
especíico no que diz respeito à tipologia das vozes e à zer que o cantor popular não saiba projetar a voz, mas
extensão vocal necessária. Da mesma forma, as deman- não faz parte do estilo contemporâneo da música popu-
das de resistência vocal costumam ser grandes. O cantor lar, especialmente a brasileira. Além das questões técni-
lírico costuma oferecer ao seu público seus malabaris- cas, é importante ressaltar que cada uma destas formas
mos vocais particulares: suas notas mais graves ou mais de utilização da voz – lírico, belting ou popular - possui
agudas, suas coloraturas, todo o virtuosismo que é re- estilos com características próprias. Bem próprias. Mas o
sultado de muito trabalho e que leva uma vida inteira que também não signiica que não sejam intercambiáveis
para lapidar. Mas o objetivo é fazer música, “tocar” este e possam trocar inluências entre si.

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15 - FAUSTO BORÉM: É possível para um cantor inte- 17 - FAUSTO BORÉM: Ainda se observa bastante pre-
grar as diferentes técnicas vocais? conceito de ambas as partes, música erudita e a músi-
ca popular, permeando seu espaço de convivência, seus
ANA TAGLIANETTI: Quero esclarecer que, embora haja valores estéticos, repertório, práticas de performance
certo preconceito disseminado sobre estereótipos no meio etc. Como se situa o musical dentro deste embate?
musical – cantor lírico, cantor popular, cantor de musicais,
é um mito dizer que o uso de uma técnica impossibilita o FERNANDO BUSTAMANTE: O teatro musical aparece
uso de outra. São como chaves liga-desliga, por mais que nesse contexto como um mediador, já que torna possível
alguns discordem. São maneiras diferentes de usar o apa- o diálogo entre a música erudita e a música popular den-
relho vocal. Não há razões que impeçam o ajuste do apare- tro de uma mesma encenação.
lho vocal de acordo com a necessidade. Como o instrumen-
tista de cordas, o cantor pode iniciar, graduar e interromper 18 - FAUSTO BORÉM: O Projeto Teatro Musical é um pro-
o vibrato, como forma de expressão. Pode, também como jeto que demanda uma grande dedicação artística por parte
o instrumentista de cordas que aproxima ou afasta o arco de todos os envolvidos: estar disponível para centenas de
do espelho ou do cavalete, mudar o timbre e intensidade horas de ensaio, aprender as falas, canções e coreograia dos
da voz, aumentando ou diminuindo o espaço oro-faríngeo colegas e cobri-los em emergências etc. Poderiam comentar
e laríngeo ou, mesmo, mudando o formato dos lábios. Mas, sobre este ambiente de artistas ecléticos que se parece com
é claro, deve se conhecer os mecanismos para fazê-lo. Não uma grande família, em que todos se ajudam mutuamente
adianta o cantor achar que pode cantar ópera se nunca no sucesso e no fracasso de realizar um papel?
estudou a técnica do canto operístico e a cultura da ópera!
Para dominar qualquer uma destas técnicas, são necessá- FERNANDO BUSTAMANTE: O artista de musicais tem
rios muitos anos de prática e estudo. que ser, obrigatoriamente, um proissional versátil. Saber
cantar, dançar e interpretar minimamente são os princí-
Por isso, o cantor que desenvolve uma técnica lírica consolida- pios básicos no peril de quem deseja trabalhar um dia
da, que talvez seja a mais complexa, não terá diiculdades em com o gênero. E o saber não exclui a necessidade de es-
transitar pelas outras técnicas, desde que resguarde algumas tudar diariamente para garantir a manutenção do corpo,
coisas. Tecnicamente falando, o canto lírico é o que apresenta voz e canto do ator. E por estarmos sujeitos a limitações
maior diiculdade de execução. Assim, se o cantor quiser se e imprevistos físicos - como rouquidão, distensões etc.
aventurar pelas três técnicas, aconselho o estudo do canto - voltamos àquela questão da necessidade de um corin-
lírico, antes de mais nada. É recomendável que o cantor de ga para todos os papéis. A gente acaba sempre voltando
musicais possua técnica lírica, especialmente porque o reper- àquela máxima: “O espetáculo não pode parar!”
tório mais antigo de teatro musical exige essa versatilidade. A
técnica lírica correta também proporciona uma grande saúde 19 - FAUSTO BORÉM: Falem sobre o show Uma noite
vocal e permite desenvolver uma resistência vocal ímpar, qua- na Broadway.
lidade que o cantor de belting precisa para sobreviver a mara-
tonas típicas da agenda dos musicais, como oito espetáculos ANA TAGLIANETTI: Uma noite na Broadway é apenas o
consecutivos por semana, às vezes dois no mesmo dia. produto inal, apresentado em público, de um processo de
aprendizagem vivencial que procurou instrumentalizar os
16 - FAUSTO BORÉM: Quais são os desaios de adap- participantes nas técnicas necessárias para a performance
tar uma partitura orquestral de um musical para a ins- em teatro musical. Corpo, movimento, técnica vocal, in-
trumentação disponível em uma escola de música na trodução ao teatro e vivência de montagem de espetáculo,
universidade pública brasileira? tudo isso condensado em um só curso que resultou em uma
DANIEL SOUZA: No Brasil, as condições oferecidas para montagem de highlights de grandes musicais da Broadway.
se produzir um musical não são fáceis. Para que a sua
produção não se torne inviável, é necessário que os or- 20 - FAUSTO BORÉM: Quais são os planos futuros
ganizadores adaptem os custos à realidade orçamentária para o Projeto Teatro Musical?
que dispõe. Muitas vezes, não há dinheiro para fazer os
espetáculos com música ao vivo. Assim, recorre-se a play DANIEL SOUZA: Para 2010, o Projeto Teatro Musical de-
backs prontos ou encomenda-se a sua gravação. Mas fa- verá produzir o espetáculo Uma Noite na Broadway III –
zer o espetáculo com música ao vivo é sempre mais inte- Jazz!, que incluirá muitas das mais famosas músicas do
ressante para o público e para os cantores, pois se pode repertório de jazz da Broadway. A coordenação do curso,
lexibilizar os andamentos, as intensidades, as articula- oferecido como uma disciplina em nível de graduação,
ções, a priorização das vozes etc. e levar em consideração estará centrada nas questões pedagógicas, buscando te-
a acústica de cada teatro ou sala. No caso de arranjos máticas diferentes e aprendizados complementares para
ou re-orquestração, a música deve ser analisada princi- os alunos a cada novo espetáculo. Quanto a outros planos
palmente em relação às questões de equilíbrio sonoro e futuros, eles dependem de patrocínio e parcerias dentro
timbres pretendidos na narrativa do espetáculo. Assim, e fora da UFMG, mas incluem principalmente seminários,
qualquer adaptação da partitura deve considerar cuida- masterclasses nacionais e internacionais com grandes
dosamente as intenções da composição original. nomes do teatro musical e da música em geral.

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BORÉM, F. Entrevista com Ana Taglianetti, Daniel Souza e Fernando Bustamante... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.232-239.

Notas
1 A Casa de Artes OperÁria é o principal centro especializado no ensino e pesquisa da linguagem de musicais no Brasil. Foi criado por Ana
Taglianetti em 2003. Alguns de seus trabalhos envolveram a preparação de mais de 30 espetáculos musicais, como A Palavra, e a formação
de artistas do teatro musical como Alexandre Lima, Keila Bueno, Kátia Barros, Gianna Pagano, Julio Mancini, André Loddi, Luana Bichique,
entre muitos outros.
2 Para uma discussão aprofundada sobre a substituição histórica do portamento pelo vibrato na música erudita veja LEECH-WILKINSON em
Per Musi, n.15 (2007, p.7-25).

Ana Taglianetti é professora, cantora, atriz e diretora teatral especializada em ópera e teatro musical. Mestranda em
Performance Vocal pela City University of New York e Bacharel pela Escola de Arte Dramática da ECA / USP. Em Nova Ior-
que, especializou-se em Teatro Musical pela Lee Strasberg Theatre Institute, Regência de Ópera na Juilliard School of Mu-
sic e Ópera na Mannes College of Music. Foi aluna de canto de Rosiris del Bianco e Leila Farah no Brasil e, em New York,
foi aluna de Dodi Protero, Conrad Osborne, Trish McAffrey, Richard Barrett e Julian Kwok. Foi estagiária da Amato Opera,
atuando com o maestro Tony Amato. Participou quatro vezes do programa VOICExperience com Sherrill Milnes, cantando
no Players Club de New York e nos parques da Disney, na Flórida, e coordenou este programa no Brasil em 2006. Fundou a
Casa de Artes OperÁria (www.operaria.com.br) em 2003, centro de formação para o teatro musical e ópera, na cidade de
São Paulo, a partir da qual dirigiu mais de 30 espetáculos musicais. Sua montagem do musical A Palavra recebeu o prêmio
de Melhor Espetáculo e indicações para os prêmios de Melhor Direção e Melhor Iluminação do Festival de Limeira de
2007. Recebeu o prêmio de Atriz Revelação em 1987, ao ser dirigida por Gabriel Villela em A Capital Federal. Também foi
dirigida por Silnei Siqueira, Luis Damasceno, Rodrigo Santiago, Beth Lopes, Joaquim Goulart e Carlos Alberto Soffredini.
No Teatro Mvnicipal de São Paulo interpretou os papéis de Nedda (I Pagliacci, 1998), Leila (Pescadores de Pérolas, 1999)
e Susanna (Bodas de Fígaro, 2000). No Brooklyn Center of Performing Arts, em Nova Iorque, interpretou Mrs. Maurrant
(Street Scene, 2000), Cherubino (Bodas de Figaro, 2000), Zozo (A Viúva Alegre, 2001), Cherubino (Three Little Pigs-2001).
Na Amato Opera, em Nova Iorque, interpretou os papéis de Sacerdotisa (Aida, 1997), Musetta (La Bohème, 1998), Sally
(O Morcego, 1999), Contessa Ceprano (Rigoletto, 1997), Giovanna (Rigoletto, 1997), Pagem (Rigoletto, 1997), Nedda (I
Pagliacci, 1998). Com a Bronx Opera interpretou Toy Lamb Seller (Hugh the Drover, 1998) e Sally (O Morcego, 1999). Na
Mannes College of Music interpretou Mrs. Pinkerton (Mme. Butterly, 1997), Margherite (Mephistophele, 1998), Mimi(La
Bohème, 1998). De 2002 a 2004 interpretou a Sra. Potts em A Bela e a Fera da Disney Theatrical Productions em São Paulo
e integrou o elenco de Cole Porter: Ele Nunca Disse Que Me Amava. Em 2007, protagonizou e foi assistente de direção do
musical José e Seu Manto Technicolor, dirigido por Iacov Hillel. Desde 2008, coordena o Projeto Musicais na UFMG, em
Belo Horizonte, onde já dirigiu duas edições do espetáculo Uma Noite Na Broadway. Versionou o texto para o português e
dirigiu a ópera A Serva Patroa de Pergolesi, apresentada na abertura do I Festival de Teatro Musical de Belo Horizonte em
2009 e do I Festival de Música de Divinópolis, em 2010. Atualmente, interpreta o papel de Úrsula, na premiada montagem
de A Pequena Sereia, dirigida por Fernando Bustamante.

Daniel Souza é regente e diretor musical do Projeto Teatro Musical - Programa de Musicais na UFMG. Em 2008, foi um
dos seis regentes selecionados para o 39º Festival de Inverno de Campos do Jordão, onde teve a oportunidade de estudar
com os Maestros Kurt Masur (Alemanha) e Ronald Zolmann (Bélgica). Estudou também com Roberto Tibiriçá, Charles
Roussin, Suely Lauar, Iara Fricke Matte, Hoger Kolodziej (Alemanha), Osvaldo Ferreira (Portugal), Florin Totan (Romênia)
e Lincoln Andrade e outros. É Bacharel em Regência pela Escola de Música da UFMG. Dedica-se ao estudo do teatro
musical, piano, harpa, interpretação teatral, sapateado, dança de salão e canto (lírico e belting com a professora Ana
Taglianetti). Coordenou diversos cursos e eventos de música erudita em Belo Horizonte que tiveram a participação de
Neyde Thomas, Gilberto Tinetti e Fábio Zanon. Em 2007, criou, coordenou e dirigiu o Projeto Don Giovanni nas Ruas, com
a versão “pocket” da ópera de Mozart. Em parceria com Ana Taglianetti, coordenou Uma Noite na Broadway, em 2008 e
Uma Noite na Broadway II – O Baú dos Sonhos em 2009. Fez a direção musical de A Pequena Sereia (com direção geral de
Fernando Bustamante) em 2009 e A Serva Patroa: A Ópera ao alcance de todos (com direção geral de Ana Taglianetti) em
2009-2010. Regeu as Orquestra Acadêmica do Festival de Campos do Jordão, Orquestra de Câmara de Itaúna, Orquestra
de Ópera e de Câmara das II, III IV Semanas da Música de Ouro Branco, Orquestra Sinfônica da Escola de Música da UFMG,
Orquestra de Musicais da UFMG e a Orquestra Drammato.

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BORÉM, F. Entrevista com Ana Taglianetti, Daniel Souza e Fernando Bustamante... Per Musi, Belo Horizonte, n.22, 2010, p.232-239.

Fernando Bustamante é Licenciado em Artes Cênicas pela UFMG. Ator, produtor, diretor e coreógrafo proissional, trabalhou
em cerca de 30 peças de teatro e musicais desde 1995, muitos das quais foram premiadas. Em 2008, dirigiu e produziu
o espetáculo A Arca de Vinicius, que recebeu os prêmios SESC/SATED de Melhor Espetáculo, Melhor Diretor e USIMINAS/
SINPARC de Maior público, Melhor Espetáculo e Melhor Iluminação. Em 2005, produziu o musical Lampiãozinho e Maria
Bonitinha, que recebeu os prêmios SESC/SATED de Melhor Espetáculo, Melhor Ator, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante,
Melhor Atriz Coadjuvante e os Prêmios USIMINAS/SINPARC de Melhor Espetáculo, Melhor Texto, Ator Revelação, Melhor
Iluminação, Melhor Figurino e Melhor Trilha Sonora. No mesmo ano, foi indicado como Melhor Preparador Corporal com a
peça Sem Vergonhas no Prêmio SESC/SATED. Em 2004, atuou e produziu Os Saltimbancos, que recebeu o prêmio de Melhor
Espetáculo Infantil e Melhor Atuação no 1º Festival Nacional de Teatro de Juiz de Fora. Em 2004, recebeu o prêmio de Melhor
Ator na peça O Menino Maluquinho, concedido pelo SESC/SATED. Em 2003, dirigiu e produziu A Pequena Sereia, recebendo
os Prêmios SINPARC e SESC/SATED de Melhor Espetáculo, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante, Melhor Cenário e Maior
Público. Em 2003, foi indicado à Melhor Coreograia do Prêmio SATED com a peça Sonho Dourado. Em 2001, recebeu o
Prêmio de Melhor Ator Coadjuvante pela AMPARC com a peça O Mistério da Princesa Feiurinha. Em 2000, foi indicado como
Melhor Ator Coadjuvante com a peça Com Jeito Vai pela AMPARC e SESC/SATED.

Fausto Borém é Professor Associado da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde criou
o Mestrado em Música e a Revista Per Musi. É pesquisador do CNPq desde 1994 e seus resultados de pesquisa incluem
um livro, três capítulos de livro, dezenas de artigos sobre práticas de performance e suas interfaces (composição, análise,
musicologia, etnomusicologia e educação musical) em periódicos nacionais e internacionais, dezenas de edições de
partituras e apresentação de recitais nos principais eventos nacionais e internacionais do contrabaixo. Recebeu diversos
prêmios no Brasil e no exterior como solista, teórico, compositor e professor. Acompanhou músicos eruditos como Yo-Yo
Ma, Midori, Menahen Pressler, Yoel Levi, Fábio Mechetti, Luiz Otávio Santos, Arnaldo Cohen, Antônio Menezes e músicos
populares como Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Henry Mancini, Bill Mays, Kristin Korb, Grupo UAKTI, Toninho Horta,
Juarez Moreira, Tavinho Moura, Roberto Corrêa, Maurício Tizumba e Túlio Mourão. Suas gravações incluem o CD Brazil-
ian Music for the Double Bass, o CD e DVD O Aleph de Fabiano Araújo Costa, os CDs da Orquestra Barroca do Festival
Internacional de Juiz de Fora de 2005 a 2009 (com Luiz Otávio Santos), a Suite for Flute and Jazz Piano de Claude Bolling
(com Maurício Freire, Tânia Mara e Eduardo Campos) e No Sertão (com o violista Roberto Corrêa) e Cidades Invisíveis (com
o saxofonista Daniel d´Olivier)

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