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Beijos não bastam: breve reflexão sobre, e para, as travestis

“Um beijo para quem é travesti”, escrevem em cima de algumas fotos e imagens por telas de
computador.

E eu me pergunto, com alguma inocência e curiosidade sincera, se alguma destas pessoas, de fato,
já beijou uma travesti. Se conhece alguma travesti, até, ou se já conversou com alguma por alguns
minutos.

Não sei. E, ao não saber, começo a refletir sobre algumas coisas:

Quem manda estes beijos apresentaria, enfim, uma travesti à sua família? Como companheira, como
amiga, como amante?

Quem manda estes beijos empregaria ou contrataria uma travesti para uma posição profissional
compatível com suas qualificações? Respeitaria sua identidade de gênero (feminina) antes, durante
e após sua eventual contratação?

E aquelas pessoas que não mandam beijos, então? Consideram-nas humanas, dignas de tratamento
respeitoso, dignas da plenitude de seus direitos?

Tampouco saberia responder tais perguntas. Acredito, porém, que os beijos – figurados, reais ou
inexistentes – possam trazer à tona discussões importantes.

A pessoa que aqui escreve se considera uma pessoa travesti – e não somente isso. Uma mulher
travesti. E refletir sobre esta identificação tão marginalizada é, inevitavelmente, pensar sobre uma
parte considerável de minha vida, em seus tormentos, dilemas e anseios, bem como nas vidas e
realidades sociais de muitas outras pessoas. Travesti não é bagunça, parafraseando outra célebre
frase, mas as sociedades contemporâneas fazem uma bagunça danada na vida de boa parte das
travestis.

Embora não haja critérios objetivos para se dizer quem é travesti (tentativas de delimitar estes
critérios não faltaram, no entanto), costuma-se associar as vivências travestis aos hormônios, às
cirurgias plásticas, às ruas em que o sexo é negociado, aos assassinatos cotidianos, além de diversos
termos ofensivos relacionados a estas pessoas. Mais que tudo, entretanto, acredito que as vivências
travestis estejam associadas à ideia (equivocada) de que as travestis não têm direito às suas
identificações como mulheres e/ou como pessoas femininas, quando não à sua humanidade mesma.

Ao serem desumanizadas, ao serem simplificadas àquilo que uma sociedade ávida por menosprezar
deseja – ao lugar da abjeção, da marginalidade, da disponibilidade e abuso do sexo pago e
descompromissado –, ao terem seus nomes sociais desrespeitados, as travestis seguem caminhos
individuais repletos de problemas, tão complexos quanto se esperaria de qualquer grupo humano
mas compartilhando uma série de características comuns.

Processos de desumanização e simplificação não são novidade em nosso mundo. Eles foram
particularmente presentes em um longo projeto idealizado na Europa Ocidental, historicamente
referenciado como o projeto colonial. Ou 'os projetos coloniais'. Em que a história deste(s)
projeto(s) detestável(is) – com consequências nefastas até os dias de hoje – poderia contribuir ao
entendimento crítico das vivências travestis?

Desumanizar e simplificar foram crimes massivamente cometidos contra pessoas que não
pertenciam ao grupo social (branco, europeu, cristão) que tinha como projeto dominar e explorar
terras alheias. Tais crimes foram, frequentemente, camuflados como ações supostamente bem-
intencionadas, como 'catequizar', 'civilizar', 'salvar'. Como se as sociedades europeias tivessem um
direito divino à exploração de outras sociedades humanas. Como se as pessoas exploradas fossem
as culpadas pela sua situação desumanizada após o 'contato' com colonizadores. Como se estas
pessoas tivessem de se adequar a um mundo pensado por, e para, pessoas europeias.

Falam de um projeto para 'preparar travestis e transexuais para disputar empregos', e não deixo de
pensar, como economista com alguma experiência profissional e por certo tempo desempregada ou
subempregada (uma situação bastante privilegiada dentro do contexto das pessoas travestis), que a
'preparação' do mercado de trabalho às diversidades é algo mais fundamental e relevante que a
preparação das pessoas trans a este mercado (o que não torna, evidentemente, o acesso a recursos
educacionais inútil; pelo contrário, especialmente se consideradas as discriminações existentes
contra pessoas trans em ambientes escolares).

Querem definir o que somos a partir de patologias, transtornos e imoralidades, tentando nos impor
algumas poucas narrativas simplificadoras da ampla diversidade do que sentimos. Penso, então, nos
absurdos do racismo 'científico', das lobotomias corretivas e das prisões de amores ilegais, e em
como tudo isto é incompatível com algumas sociedades pré-coloniais onde 'gênero' não se definia
exclusivamente entre 'homem' e 'mulher'. Em como tudo isto é incompatível com sociedades que,
agora discretamente envergonhadas de seu passado criminoso, se apresentam como promotoras de
uma certa igualdade humana.

É preciso questionar as verdades e identidades que tentam nos impor na medicina, no direito e na
sociedade em geral. É preciso construir uma nova história a partir destas supostas verdades
dominantes, destruindo-as, quando necessário, com as armas resgatadas de passados esquecidos ou
de futuros desejados.

É imprescindível compreender cada morte de uma irmã travesti, seguida de desrespeitos vários nos
meios de comunicação, como uma extensão palpável do projeto colonial europeu, cinicamente
cristão, violentamente esbranquiçador, e comprometido com a regulação dos corpos e suas
interações sexuais.

E, a partir destes questionamentos e compreensões, a conclusão é inequívoca: beijos,


definitivamente, não bastam para superar a desumanização das travestis neste contexto histórico.

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