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Três conversas com

RUY CASTRO
ARTHUR MUHLENBERG
ROBERTO ASSAF
O que mudou
na identidade
rubro-negra
de 1981 a 2019?

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Torcedor do Liverpool, o vado pela contratação do
filósofo Simon Critchley es- técnico Jorge Jesus, o time
creveu em 2017 que a imen- do Flamengo fecha o ano
sa importância que o fute- com uma tríplice coroa - o
bol conquistou no mundo Estadual, com Abel Braga,
se deve a duas razões. o Brasileirão e a Libertado-
Como esporte, proporciona res. A campanha irresistí-
aos jogadores uma experi- vel magnetizou a Nação ru-
ência inigualável de asso- bro-negra, que bateu recor-
ciação. Como evento, gera des de público, promoveu
uma vívida sensação de co- cenas de amor maciço nos
munidade àqueles que se aeroportos e migrou para
reconhecem como fiéis a Lima a fim de testemunhar
uma bandeira. Para quem um bicampeonato pelo qual
torce pelo Flamengo, nada esperou 38 anos.
disso é novidade. Mas será Entre o triunfo de 1981 e
que a identidade rubro-ne- a epopeia de 2019, as quase
gra é a mesma? quatro décadas mudaram
Em 2019, as incríveis de- profundamente o futebol, o
monstrações de força do Brasil e a vida cotidiana.
time e da torcida do clube Em 1981, ninguém telefona-
mais popular do Brasil fica- va de dentro de um estádio.
ram incrivelmente paten- Hoje, não só liga como pode
tes. Reforçado no início do ver, na palma da mão, se
ano, turbinado com quatro havia impedimento num
jogadores em julho e aditi- lance qualquer. Ao mesmo

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tempo em que a vida se tor- desta equipe fizeram derre-
nou algo ainda mais ime- ter cada uma dessas máxi-
diato, a hiperexposição ao mas, e ainda pôs outras,
futebol europeu reduziu a muito queridas, em xeque:
maioria das ligas domésti- se craque o Flamengo faz
cas a algo próximo do fol- em casa, por que nenhum
clore. Mesmo no cenário in- dos titulares é cria da Gá-
terno, não bastava ter tradi- vea, ou do Ninho? Qual é o
ção; era preciso reafirmá-la. peso da camada mais popu-
Preso a algumas máxi- lar da torcida, se o clube,
mas, o Flamengo acabou para fazer face à elite da
estagnado nesses 38 anos: a bola, elitiza cada vez mais
eterna busca por um her- seus ingressos?
deiro de Zico, a necessidade O GLOBO levou essas
de ter profissionais “identi- perguntas a três pessoas
ficados com o clube”, o peso que, além de torcerem
transcendente da camisa, a como poucos, assumiram
falsa certeza do mero “dei- com notável competência a
xou chegar”. Havia época tarefa de fazer a crônica do
em que a solução estava até Mais Querido do Brasil. O
em botar o time para trei- que você lerá nas próximas
nar, às vésperas de jogos páginas é o pensar verme-
grandes, na Gávea... lho e preto do século 21.
A montagem e o sucesso

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5 Pablo Jacob
RUY CASTRO

“O torcedor nunca
precisou que
o Flamengo fosse pobre
para se identificar
com ele”

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O escritor Ruy Castro, 71 River Plate evocou nele os
anos, é um dos principais momentos mais doentes de
biógrafos do país. Conheci- sua vida de torcedor.
do por obras como “Estrela Quando se encontrava
solitária”, “Chega de sauda- em viagens pelo exterior,
de” e “Carmen”, esse cario- em Nova York ou Paris, ha-
ca de Caratinga-MG é tam- bituou-se a recorrer ao es-
bém autor de “O vermelho e critório da finada Varig
o negro”, em que conta a para saber dos resultados
história do Flamengo. dos jogos. Quando o Fla-
– Sou Flamengo desde mengo e Ruy estavam na
antes de nascer. Uma de mesma cidade, porém, vira-
minhas estreias foi a parti- va um verdadeiro hooligan.
da final do tricampeonato – Naquele jogo elimina-
carioca de 1953-54-55, Fla- tório com o Grêmio no Pa-
mengo 4x1 América, que caembu, pela Libertadores
escutei pelo rádio, com Jor- de 1984, eu e meu colega
ge Curi. Ainda tenho as Marcos Augusto Gonçalves
meias do Flamengo com chegamos atrasados ao es-
que jogava pelada quando tádio. Já não havia ingres-
era criança – diz Ruy, como sos, e os portões estavam
se precisasse de mais cre- fechados. Então não con-
denciais além da sala reple- versamos, pulamos o muro.
ta de memorabília rubro- Não era um comportamen-
-negra em seu apartamento to dos mais sóbrios para
de Leblon. A vitória sobre o um homem de 36 anos e pai

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de filhas, como eu. Mas, de cho, que não seriam Fla-
há muito para cá, estou mengo nem se jogassem lá
mais sossegado. A última por 200 anos. Já Rafinha,
vez em que estive num está- Rodrigo Caio, Pablo Marí,
dio foi na despedida de Pe- Éverton Ribeiro, Bruno
tkovic. Desde então, sou Henrique, Gabigol, todos
membro da Fla-Sofá. Mas eles parecem ter nascido no
só olho para a tela quando a Flamengo.
bola está com o Flamengo.
Se você fosse comprar
Esse time campeão uma camisa hoje, ela te-
da Libertadores é prati- ria o nome de quem?
camente um time for- Ao comprar a primeira
mado em 2019. Alguns camisa, por volta de 1958,
jogadores são muito re- pedi à minha mãe que cos-
centes para a gente fa- turasse o 10. Era a camisa
lar em identificação ru- do Dida – os números ti-
bro-negra? nham de ser comprados à
Neste momento, não im- parte e, claro, não se usava
porta muito se esses joga- o nome impresso. Depois,
dores se identificam com o foi a do Zico, já com o nú-
Flamengo. O Flamengo – mero, mas ainda sem o
leia-se a torcida – já se nome. Hoje eu compraria a
identificou com eles. Eles do Bruno Henrique, que
são diferentes de Edmundo, deve ter um número esqui-
Alex ou Ronaldinho Gaú- sito, como 39 ou 74.

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9 Pilar Olivares
Quando você sentiu cisou que o Flamengo fosse
que esse time era Fla- pobre para se identificar
mengo de verdade? com ele. Ao contrário, a
Logo depois da chegada prosperidade de outros clu-
do Jorge Jesus e da implan- bes brasileiros, comparada
tação de um tipo de jogo à nossa histórica pindaíba,
que não se satisfaz com o sempre nos humilhou. Mas
que já tem no placar. A du- agora o jogo virou, e eles
pla Gabigol e Bruno Henri- que corram atrás.
que me lembra a dupla Dida
e Henrique, que jogou de Você escreveu “O
1957 a 1961. Até a chegada Anjo Pornográfico” e
do Zico, eles eram os maio- fez a curadoria das
res artilheiros da história grandes crônicas do
do Flamengo, com mais de Nelson Rodrigues. Na
300 gols cada, e jogaram crônica “Flamengo Ses-
juntos no mesmo ataque. sentão”, Nelson escre-
veu que um dia bastaria
Como esse Flamengo a camisa rubro-negra
rico, comprador e de “pendurada na baliza,
certa forma elitizado como uma Bastilha
vai dialogar com o pas- inexpugnável”. Durante
sado e a identidade do muitos anos acreditou--
clube do povão? se nesse peso da cami-
Não tem o menor proble- sa, e muitas vezes não
ma. O torcedor nunca pre- foi suficiente. Como é

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que você reinterpreta E como você, um ver-
essa profecia do Nel- dadeiro escriba da ci-
son, à luz desse 2019? dade do Rio, vê essa
Acho “Flamengo sessen- coisa de a torcida esco-
tão” o maior texto escrito lher o Palmeiras como
sobre o Flamengo – fui eu rival preferencial na
quem o repôs em circula- hora da zoação? Isso
ção, naquele livro de Nelson vai durar?
que editei, “À sombra das Lamentei muito aquela
chuteiras imortais”, em atitude e quero crer que
1993. Por sinal, li-o em tenha sido um eco da ori-
“tempo real”, quando saiu gem paulista do Gabigol. De
no número 1 da revista que me interessa o Palmei-
“Manchete Esportiva”, em ras ou o Botucatu? O Fla-
1955. Foi nele também que mengo precisa é que o Vas-
Nelson falou na camisa que co, o Fluminense e o Bota-
jogava sozinha. Acho óti- fogo sejam fortes. Foi a
mo, é uma imagem bem grandeza deles que nos aju-
Nelson, mas prefiro que dou a construir a nossa.
haja um craque dentro dela.

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ARTHUR MUHLENBERG

“Dificilmente a gente
aceitará algo menos
intenso do que Jesus.
Vamos querer
sempre mais”

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Aos 55 anos, o publicitá- Rubro-Negra da América”,
rio Arthur Muhlenberg é ele já mandou para a gráfi-
um dos principais cronistas ca “Heptacular”, sobre o tí-
rubro-negros da internet. tulo brasileiro. Quem é Fla-
Ex-titular do “Urublog”, no mengo e navega pela inter-
GloboEsporte.com, escreve net já deve ter esbarrado –
atualmente no República- e gargalhado – com algum
PazeAmor.com.br. Este ex- texto de Muhlenberg, na vi-
diretor de Comunicação do tória ou na derrota, quiçá
clube é um dos mais assídu- no empate.
os tradutores da vida ru-
bro-negra, em tempo real e A gente sabe que você
em livros. começa os livros no iní-
Autor de “Manual do Ru- cio da temporada.
bro-Negrismo Racional”, Quando você sacou que
“1981 – O primeiro ano do estava escrevendo as
resto de nossas vidas” e páginas de um time
“Hexagerado”, Muhlenberg campeão?
abusa de seu humor afiado A partir daquele 2 a 0
e de hilariantes referências contra o Internacional [pela
da história e da cultura, em Libertadores, no Mara-
textos de rubro-negro para canã], a confiança aumen-
rubro-negro. Neste ano, seu tou muito, porque tínha-
périplo de lançamentos tem mos certeza de que poderí-
rodada dupla: além de “Li- amos vencer qualquer ad-
bertador – A reconquista versário e já estávamos

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bem no Brasileiro. A partir res que vieram de fora nos
daí, o livro se tornou uma anos anteriores. Em 2019, o
certeza, e já comecei a fazer time está repleto de jogado-
os contatos. Só tinha o re- res caros, mas o que viabili-
ceio do quanto aquilo pode- zou tudo isso foi a venda de
ria atrapalhar o meu torcer, Lucas Paquetá e Vinicius Jr.
mas deu tudo certo. Foram eles que permitiram
que o Flamengo investisse
O Flamengo constrói em nomes de peso. As gera-
muito de sua identida- ções que estão surgindo na
de com o time de 1981, base conquistaram tudo
reforçando a ideia de esse ano. O Flamengo con-
que “craque, o Flamen- tinua fazendo craques. Só
go faz em casa”. Nesse que, no nível de disputa
título, o prata da casa atual, também precisamos
mais usado é um reser- dos supercraques, os que
va precoce, o Reinier. vêm prontos. Esses, tem
Que identidade emerge que ir ao mercado buscar.
desse Flamengo rico,
que contrata quatro re- Já que falamos da
forços e agarra a taça? base, como o capítulo
É bem paradoxal essa do incêndio do Ninho,
questão, porque, se for ob- que matou dez meni-
servar, em 1981 a gente ti- nos, entra para a iden-
nha muita gente formada tidade rubro-negra?
em casa, mas havia jogado- É a maior tragédia da

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história do Flamengo. Juri- da história. O Aerofla
dicamente nós não sabe- virou moda. Mesmo as-
mos como está, porque o sim, nas redes sociais,
clube mantém sigilo e tam- a gente vê o rubro-ne-
bém precisa se resguardar. gro mais comedido,
Todo mundo sabe que essas menos oba-oba, com
famílias precisam de uma medo do que pode
indenização, que o clube acontecer. Como você
tem dinheiro e que não há define a atual torcida
dinheiro que pague a vida rubro-negra, em todas
de ninguém. É complexo, as suas facetas?
de difícil resolução. Mas era A torcida do Flamengo
importante que fosse resol- que vai ao estádio certa-
vido logo. Porque afeta o mente mudou, porque ir ao
sentimento de todo torce- estádio deixou de ser o que
dor. Envolve crianças, e os era, subiu o nível, do ponto
elementos dramáticos são de vista de custo. O futebol
muito fortes. Em um ano se profissionalizou, o Mara-
tão maravilhoso desporti- canã se tornou um espaço
vamente falando, é um es- diferenciado, menos popu-
pinho profundo na alma. lar. Com isso, tem muita
gente que não pode mais
A gente sabe que o in- ver o jogo. Só que os torce-
gresso está mais caro, dores têm entendido o
mas as médias de pú- quanto esse submundo do
blico são as mais altas dinheiro influencia na or-

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Henry Romero

ganização, e, por isso, têm isso acontece o ano inteiro,


feito suas próprias festas. não precisa o juiz apitar. É
Cada vez mais, a tendência similar aos Aeroflas: a tor-
é que os clubes invistam cida gosta de ver a si mes-
nesse conceito de Fun Fest, mo, de ser parte do espetá-
de reunir as pessoas para culo. Em relação à expecta-
ver um jogo. Porque, por tiva, hoje em dia não há
mais que se queira estar no mais surpresa. A competi-
estádio, o que atrai o torce- ção está muito restrita, o
dor é ter a si mesmo, assis- nível dos adversários não
tir ao espetáculo da própria traz uma grande competiti-
torcida. E, com o Flamengo, vidade...

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Se você comprasse time, que, por sua vez, só
hoje uma camisa desse deu resultado com ele.
time, seria de qual jo- Aquilo é um psicopata do
gador? trabalho. Aquela coisa dele,
De Arrascaeta. Sem dúvi- de se esgoelar com o time
das. Primeiro pelo jogador mesmo com um placar con-
que ele é, que faz o passe fortável, é algo que rompeu
inesperado, o cara genial do paradigmas no futebol na-
time, que pensa o jogo. E cional. Por mais que tam-
também pela mística dessa bém haja muitas novidades
camisa 14, que, para mim, nos treinos, Jesus conse-
tem muita simbologia, por guiu passar uma gana para
conta daquela geração ho- os jogadores, que repassa-
landesa que fez a gente re- ram essa gana para a torci-
pensar o futebol, liderada da. Isso é um ganho filosó-
pelo craque, que era o fico para o futebol. Não sei
Johan Cruyff. se ele conseguirá implantar
uma escola, mas ao menos
O que o Jorge Jesus impôs um parâmetro no fu-
trouxe para o Flamen- tebol do Flamengo: dificil-
go? O que ele resgata, e mente a gente aceitará algo
onde ele surpreende? que seja menos intenso do
Ele é determinante. Todo que a proposta de Jesus.
o trabalho de reestrutura- Vamos querer sempre mais.
ção do clube só apresentou Isso é a cara do Flamengo.
resultado com um grande

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Esse já é o maior Fla- gente divide nossa história
mengo da história? em AZ [antes de Zico] e DZ
O time de 81 está no [depois de Zico]. O time de
Olimpo. Esse time de agora 2019 pode até superar, mas
está tentando chegar lá. E sempre estará à sombra
nem digo por conta do dele.
Mundial. O grande lance da
geração do Zico era que o O Flamengo tem con-
time ficava melhor a cada dições de encarar de
ano. Em 1981 veio Mundial, igual para igual o Li-
mas as conquistas foram verpool, caso vá à final
enfileiradas nos anos se- no Qatar?
guintes, e o clube foi fican- O Liverpool é freguês do
do ainda maior, e o sarrafo, Flamengo, essa é a grande
cada vez mais alto. Essa ge- verdade. Na única vez que
ração de agora precisa se eles encontraram com a
consolidar, ela pode con- gente, levaram um pau.
quistar mais títulos. Mas Acho, sim, que chegamos
esses times que se transfor- em igualdade de condições.
mam em paradigmas são O Liverpool tem jogadores
construídos ao longo dos mais bem pagos, mais co-
anos. Esse time pode che- nhecidos, mas a gente tem
gar lá? Tem tudo para isso. um modelo de jogo e uma
Mas sempre haverá uma di- superioridade aqui similar
ferença: Zico, nosso Rei. A à que eles têm lá na Europa.

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ROBERTO ASSAF

“Quando não há
alegria, um time
que ganha faz uma
falta danada”

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Aos 64 anos, o jornalista namorada te ligou e queria
e escritor Roberto Assaf diz saber onde você estava”. Eu
que teve duas grandes de- fiquei puto. “Porra, essa
cepções no futebol. Uma foi mulher mora onde, em
com o Brasil no estádio Marte?!”. Aí depois ela falou
Sarriá, em 1982, mas não aquela frase que acaba com
foi por causa da seleção tudo: “Ah, mas isso é ape-
brasileira. nas um jogo de futebol...”
– Foi porque havia três Hoje ela é minha amiga.
caras do Flamengo que me- Nunca foi só um jogo; fo-
reciam ser campeões da- ram vários. Morador de Co-
quela Copa: Zico, Júnior e pacabana, ele fez disso so-
Leandro. Eu estava atrás do brevivência, tendo sido re-
gol, já como jornalista. pórter por mais de 30 anos,
A outra, no mesmo ano, seja no “Jornal do Brasil”,
foi uma semifinal com o seja no “Lance!”, seja como
Peñarol, em que o Flamen- comentarista do SporTV.
go perdeu a chance de ir É autor de sete livros que
para a final da Libertado- envolvem o rubro-negro da
res, ser bicampeão e pegar Gávea, entre eles o “Alma-
o Aston Villa, da Inglaterra. naque do Flamengo”, “Seja
Nesse dia, ele terminou um no mar, seja na terra” e uma
namoro, mas isso não gerou biografia dos 50 anos de
o menor remorso. Zico. Atualmente, trabalha
– Minha mãe, dona Ma- no livro “Ninguém segura
ria Luísa, me falou: “Tua esse país”, sobre sua visão a

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respeito do Brasil de 1970, Leblon, ali perto do Jardim
entre o futebol e a ditadura de Alah, era uma terça-feira
militar. e ninguém estava vendo um
jogo da seleção. Alguém
Você tinha 25 anos perguntou: “Tão jogando
em 1981. O que os dois contra quem?”
títulos, de 1981 e o de É evidente que os tempos
agora, têm de parecido? são outros, e as pessoas que
Acho que esse título rea- torcem para outros times
firma o Flamengo como podem até querer negar,
uma representação da iden- mas eu acho que até para
tidade nacional. Aquele eles está sendo importante.
sentimento a que as pesso- Os outros clubes estão rea-
as recorrem como uma vál- gindo. O Vasco fez uma
vula de escape. Quando campanha que atraiu mais
você vê aquele Aerofla que a de 170 mil sócios-torcedo-
torcida fez para o embarque res, o Fluminense botou 40
do time rumo ao Peru, você mil pessoas num jogo de úl-
se lembra de como o futebol tima rodada do Brasileirão
é importante. E o Flamengo que não valia nada, o Bota-
acabou recriando aquele fogo também. É um reflexo
sentimento que já houve em do sentimento que o Fla-
1970, quando a seleção era mengo despertou.
realmente a pátria em chu-
teiras. E a mística do clube,
Outro dia eu estava no também muda?

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22 Guito Moreto
Olha, o Zico continua vão, depois virou elite de
sendo o grande ídolo. Ele novo. E isso me permitia
foi, é e continuará sendo o confraternizar com um
sujeito que melhor repre- monte de gente. Eu morava
senta o Flamengo. Ele é a na Barão de Jaguaripe e jo-
figura. Eu cresci em Ipane- gava bola com o pessoal da
ma, estudei em colégio de Praia do Pinto, da Cata-
rico, o Padre Antônio Viei- cumba, aquelas favelas da
ra. Na minha turma, devia Lagoa que foram removi-
ter uns 20 tricolores e uns das, e conheci gente que só
20 botafoguenses. Só dois tinha o Flamengo. Aí você
alunos eram Flamengo, eu e vê que o Flamengo é uma
um outro, e eu tinha duas grande peça de sustentação
famílias tricolores. Cansei num país falido, corrupto.
de ouvir que o Flamengo Porque o cara vê que ele
era time de preto, aquele ra- não precisa de muito para
cismo brabo da classe mé- ser feliz.
dia. Aquilo nunca me pe- Eu moro com a minha
gou, e eu sempre fui fanáti- mãe, que tem 93 anos e pre-
co e nunca escondi. cisa de cuidados. Quando o
E eu gosto do Flamengo Flamengo ganhou, eu fui
por todas as muitas facetas ver o Pavão-Pavãozinho
que ele teve: já foi um time descer. E o morro desceu,
de classe média nada as- comemorando essa ligação
cendente, virou time de eli- com uma entidade que não
te, depois virou time do po- dá nada pra eles, além de

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alegria. Quando não há ale- Eu acho que há mais fa-
gria, um time que ganha faz natismo. Muito mais. Em
uma falta danada. 1981, o Flamengo botava
150 mil pessoas no Mara-
Onde você viu o jogo canã, mas era contra o Vas-
contra o River Plate? co. Era em jogos especiais.
Vi na minha casa, sozi- Se você pegasse um jogo de
nho. No primeiro gol do Ga- Carioca em Itaperuna, ti-
bigol eu não comemorei, nha 7 mil pessoas. Hoje, em
não. Porque achei que esta- qualquer jogo, o Flamengo
va impedido, e como eu bota quase 70 mil pessoas.
passei mais de 30 anos co- Além disso, o futebol ficou
brindo jogos, eu sei me con- mais globalizado. Na minha
trolar e ver uma partida época, as mulheres não
com senso crítico. Mas eu ligavam muito para futebol.
vou te dizer: raras vezes na Há pouco tempo, eu ainda
minha vida eu gritei tanto dava aula de jornalismo es-
quanto no segundo gol. portivo numa universidade
Acho que só gritei igual no e, muitas vezes, as mulhe-
gol do Rondinelli [contra o res eram mais da metade
Vasco, na final do Carioca da turma.
de 1978].
O que acha de a torci-
A torcida do Flamen- da ter apontado a zoa-
go mudou muito de ção para o Palmeiras?
1981 para cá? Isso tem a ver com esse

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momento rico do Palmei- pedra dura, né? Nós fomos
ras, que foi campeão ano achincalhados por anos, di-
passado e entrou como fa- minuídos, os clubes de São
vorito. Aconteceu também Paulo, BH e Porto Alegre
o Atlético-MG, nos anos ganhando uma Libertado-
1980. Acho que é sazonal. res atrás da outra... mas o
clube foi se reestruturando.
Durante muito tempo Eu acho que o Jorge Je-
o Flamengo acreditou sus foi muito feliz quando
em sua própria mitolo- disse que o clube é gigan-
gia, em coisas como "a tesco, mas também precisa
camisa que joga sozi- ser grande em termos de
nha", em frases que o conquistas. Você tem que
tempo acabou desgas- alimentar essa mística com
tando... títulos. Até porque essa
Nossa, são muitas. Quer mística não surgiu ontem.
ver outra? “Deixou chegar”. Ela foi alimentada por anos
Que papo é esse de “deixou e anos de campanhas vito-
chegar”? Eu perdi a Copa riosas, os tricampeonatos
do Brasil de 1997 para o cariocas dos anos 1940 e
Grêmio, num 2 a 2 no Ma- 1950. Por isso eu fico com
racanã, meses depois de raiva de quem diz que
perder um Rio-São Paulo “quem vive de passado é
para o Santos. O Flamengo museu”. Eu ouvia falar do
foi figurante por anos. O tri de 1955, do time do
lance é que é água mole em Dida, mas eu nunca tinha

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visto isso. E é claro que eu A gente se livrou de um far-
queria ver. É claro que o su- do. Eu me lembro de ter ou-
jeito também torce por cau- vido no rádio a última vez
sa do passado. Pega esse em que o Flamengo tinha
Bragantino aí, que subiu vencido o Athletico na Bai-
para a Série A: vai investir xada. Eu tinha QUINZE
milhões de reais em contra- anos. Estou com 64 anos.
tações e jogar para quem?
Duas mil e 300 pessoas? Quem é o jogador que
mais te representou
Quando sentiu que nessa Libertadores?
esse time era digno do O Rodrigo Caio. Ele caiu
Flamengo? como uma luva nesse time.
Quando começou a ga- Não consegui até agora en-
nhar sem parar fora de tender como esse jogador
casa. Eu já fiz um levanta- não foi mais utilizado no
mento, na época em que eu São Paulo. E você vê que ele
tinha blog. O retrospecto do é um cara tranquilo, não
Flamengo fora de casa, em gosta de exposição, não é
toda a sua história, é muito essas coisas de Gabigol. Ele
triste. Vai para Porto Ale- era o espírito disso tudo.
gre, Curitiba, é um horror. Claro que o Gabigol é im-
Pega aquela vitória [2 a 0] portante, embora perca gol
neste ano contra o Athletico pra caralho, mas o Rodrigo
Paranaense, lá na Baixada. Caio foi fundamental.

26
24 Marcelo Régua
É publicado pela Editora Globo S/A.

Rua Marques de Pombal, 25 - Cidade Nova - Rio de Janeiro, RJ


CEP 20.230-240 –Tel.: 2534-5000 Fax.: 2534-5535

Dezembro de 2019

TEXTO
Márvio dos Anjos
Luciano Ferreira

DESIGN
Ivan Luiz

REVISÃO
João Pedro Fonseca
Luciano Garrido

DIRETOR DE REDAÇÃO E EDITOR RESPONSÁVEL


Alan Gripp

oglobo.globo.com

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