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Josué e Juizes David M. Gunn Conexao formal e enredo Visto em termos simples, o Livro de Josué relata a entrada do povo de Israel na Terra Prometida, Canaa, a terra dos amoritas/cananeus. Ele retomaa historia ~uma histéria que vai do Génesis a II Reis - onde 0 Deuterondmio para: 0 povo deixou o Egito, a terra do cativeiro, atravessou o Mar Vermelho, recebeu a lei de YHWH no Sinai, atravessou o Deserto, tomou posse da terra a leste do Jordio (Nim. 32) e agora esta prestes a receber o restante da promessa. Da mesma forma que o Deuteronémio culmina com a morte de Moisés, o Livro de Josué vai culminar com a morte deste. Assim, vai comegar “apés a morte de Moisés” Qosué 1:1), como o Livro dos Juizes, por sua vez, comecard “apds a morte de Josué” (Juizes 1:1, cf. Il Samuel 1:1). Os capftulos 1-12 falam da guerra decorrente em um estilo relativamente prolixo, marcado pelo detalhe descritivo e o discurso indireto, embora enxugado perto do final para um discurso indireto despojado (ver 10:28-39) que insinua a prosa caracteristica das secdes seguintes, capitulos 13-22. Entretecidos nos relatos de Jericé e Ai encontram-se, primeiro, o relato calculado e ritualistico da travessia do Jordao e, em seguida, a historia da transgressao e execucao de Ac4, enquanto uma outra histéria de fraude, o tratado dos gibeonitas, liga-se naturalmente ao fim da campanha (“Os habitantes de Gibeom ouviram falar da 16 Guia literdrio da Biblia maneira pela qual Josué havia tratado Jericé ¢ Ai” 9:3 [RA]); os principais episddios seguintes estado ligados de modo semelhante (por exemplo, “Ora, aconteceu que Adonisedeque, rei de Jerusalém, soube que Josué havia tomado Ai...”, 10:1; “Quando Jabim, rei de Hazor, ouviu isso...”, 11:1. Uma enumera¢ao sumaria dos reis derrotados e terras tomadas, a leste e oeste do Jordao, traz o constante movimento da narrativa (com seus verbos reiterados de passar sobre/por/através, ir, retornar/voltar, ¢ assim por diante) a uma pausa. Os capitulos 13-22 sao postos formalmente entre parénteses, por assim dizer (“Ora, Josué se tornou idoso e avancado em anos” 13:1 [RA], retomado em 23:1,2), como se formalmente estabelecesse uma parada, um deslocamento da narrativa de aco para a retorica de listagem e ordenacao. Como em Numeros (ou Crénicas), aqui alistagem subjuga a narrativa, construindo uma terrae uma comunidade a partir de nomes e conectivos, embora ocasionalmente discurso e atividade narrados intervenham, como quando Calebe (14:6-15) eas filhas de Salfaade (17:3-6) lembram Josué do tratamento especial prometido por Moisés, ou a tribo de José reclama de seu quinhio (17:14-18), e agrimensores sio enviados no interesse de sete tribos relutantes (18:2-10). Mas estaremos perdendo algo da textura especial do livro se deixarmos que nosso gosto pela ago ou pelo desenvolvimento da personagem nos desvie da prosa mais estatica, administrativa. Pois dela emerge um forte sentido da miriade de elementos que constituem “o povo”. “Israel” adquire substancia, assim como a tarefa que tem diante de si; pois o desafio de Israel é traduzir essas listas e distribuigées em uma comunidade real na posse real da Terra Prometida. A tomada de Jericé e de Ai, eas outras campanhas dramaticamente relatadas nos capitulos 1-12, nos empolgam em uma visio de sucesso facil. Os capitulos 13-21 sugerem implici tamente que a ocupa¢do exige muito mais. Eles também criam uma sensacdo de ambivaléncia que nao sera prontamente resolvida. InstrugGes para distribuir a “heranca” de cada tribo anteriormente decidida por Moisés no perfodo prescritivo do Deserto (Ntim. 34) sdo agora escrupulosamente seguidas — talvez. Nosso dominio do tempo narrativo tende a afrouxar com essa prosa. Estamos lidandocom 0 ideal ou 0 real? E dentro de que moldura temporal — com referéncia ao tempo narrado, o tempo do narrador ou o tempo do leitor implicito - pode essa realidade ser localizada? Ou nos movemos entre prescricao e realizacao? Os capitulos 23-24 fecham o livro com um relato de todo Israel reunido, discursos programaticos de Josué e YHWH (relatados por Josué), o compromisso renovado do povo para com a Alianga, a breve despedida de Josué ao povo, que volta a sua heranca e, em seguida, sua morte. Numa visdo simples, Juizes é um relato do inicio da ocupa¢do da Terra Prometida por Israel, no perfodo anterior 4 ascensao da monarquia, 0 qual ficou conhecido, a partir das principais personagens do livro, como o Periodo dos Juizes. Ele est formalmente ligado ao Livro de Josué nao somente pela frase de abertura: “Depois da morte de Josué”, mas também por sua recapitulagio de Josué 24:28-31 (despedida e morte) em Juizes 2:6-9 (cf. 2:21-22 com Josué 23), Josué e Juizes 7 seguindo-se a reiteragao de ainda mais material de Josué em Juizes 1. O livro continua em I Samuel (de acordo com a Biblia hebraica) ou Rute e depois I Samuel (de acordo com as antigas versdes gregas € a Biblia crista).! Se Josué parece ter um enredo reconhecivel, embora frouxamente construido ~ Israel entra na Terra e supera obstaculos importantes (na forma de cidades fortificadas e povos indigenas), a Terra cai sob seu dominio e os territérios tribais sao distribuidos — Juizes é menos obviamente coerente em termos lineares ou de causa-e-efeito.” Ele tem sido muitas vezes descrito como uma antologia de contos reunida ao acaso, na melhor das hipéteses como ilustracio de um padrio ciclico de pecado, opressio, arrependimento e salvacdo, expri- mindo uma rigida teologia determinista de recompensa e punicao do editor- compilador. Mas descrevé-lo assim é perder ou ler erradamente trés caracteris- ticas destacadas do livro (as quais voltaremos mais adiante). Primeiro, um padrao determinante de resposta de Deus nao é explicito na assim chamada estrutura editorial ou passagens formulares (tais como 2:11-19), nem inerente aos préprios contos. Segundo, os contos se emaranham por meio de motivos ¢ temas compartilhados. Terceiro, ha uma nitida tendéncia para os modelos de lideranca e comunidade desenvolvidos nos primeiros livros (Nimeros-Josué), bem como nas histérias de abertura do préprio Juizes (como Otniel e Etide), que se torna cada vez mais imprecisa e distorcida conforme o livro continua. Como temos em mente que YHWH pretende testar a fidelidade do povo por meio das “nacdes” invasoras (cap.2), e como lembramos as ferozes injungdes contra o reptidio a YHWH (cf. Josué 23-24 e Deut. 28-29), podemos comecar a ver que essa deterioracao cria uma tensao que transcende os contos constituin- tes e, desse modo, gera ao menos um enredo potencial para o livro todo. Seré a promessa da Terra revogada e 0 povo expulso? Juizes 1:1-3:6 introduz o livro todo. Primeiro relata o que parece ser as etapas finais da tomada da Terra, recapitulando parcialmente, desse modo, Josué, embora 0 foco esteja agora sobre os habitantes da Terra que nao foram desapossados (ver 1:27-36). Esse foco é entao desenvolvido em termos teolé- 1 Nao ha liames retéricos formais entre esses livros e Juizes tao explicitos como os existentes entre Josué e Juizes, mas I Samuel. 1:1 ressoa notavelmente com Juizes 13:2, 0 inicio da histéria de Sansio, 0 ultimo juiz narrado; e que se segue relata, como Juizes 13, a dadiva de uma crianga a uma mulher estéril. De modo semelhante, o Livro de Rute, “no tempo em que os Juizes governavam” (1:1), relata o nascimento de um filho paraa vitiva Noemi (4:13-17);a ironia € que ela ja tem uma nora que para ela vale “mais do que sete filhos” (4:15). 2. Para uma leitura atenta de Jufzes, minha maior divida é para com meu aluno de doutorado, Barry Webb; ver seu estudo pioneiro, The Book of Judges: An Integrated Reading, Sheffield, 1987. Também importante foi a andlise formalista de Josué e Juizes, de Polzin, R. M., Moses and the Deuteronomist. A Literary Study of the Deuteronomic History, Part One: Deuteronomy, Joshua, Judges, New York, 1980, Independentemente de meu trabalho, hé um estudo estimulante de Klein, L. R. The Triuinph of irony in the Book of Judges. Sheffield. Um comentério geral itil sobre Josué é 0 de Trent C. Butler, Joshua, World Biblical Commentary, Waco, Texas, 1983, p.7. u8 Guia literério da Biblia gicos por um anjo de YHWH, pelo préprio YHWHe pelo narrador: 0 acordo de Israel com os cananeus pds em perigo sua relagdéo com YHWH € levara a deterioragao ulterior, enunciada de maneira sumaria em 2:11-19, que podemos reconhecer (pelo fim do livro) como um resumo teoldgico da obra toda, A seco seguinte, 3:7-16:31, relata os contos dos jufzes (alguns s4o chama- dos “salvadores”) que julgam Isracl ou livram o povo (alguns fazem ambas as coisas) da opressao: Otniel (3:7-11); Eide (3:12-30); Sangar (3:31 — dificilmen- te um conto); Débora (e Baraque) (caps.4-5); Gidedo (caps.6-8) junto com o “rei,” Abimeleque (cap.9); Tola ¢ Jair (10:1-2, 3-5); Jefté (10:6-12:7); Ebsa, Elom e Abdom (12:8-10, 11-12, 13-15); e Sansdo (caps.13-16). Seis relatos extensos sao entremeados com seis noticias breves no padrao 1:2:3 (Sangar; Tola e Jair; Ebsa, Elom e Abdom). Esse padrao, nos relatos menores, corres- ponde a extensao consideravel dos contos principais, o inverso do que vimos em Josué. Um dos efeitos, talvez, seja focal, colocando a histéria culminante de Sans&o em uma rela¢ao especial com a histéria de Jericé e chamando a atencao para o movimento que ocorre entre as capturas de Jericé e de Sansao, em cujo centro reside a “conclusio” (na verdade, inconclusao) da captura da Terra (Juizes 1) e as formulacées teoldgicas de Juizes 2. Ligando os episédios principais ha uma estrutura retérica (assim chamada) compreendendo alguns ou todos os seis elementos (eles ocorrem dentro de 2:11-19 e recorrem dentro dos episédios comegando em 3:7. 3-12, 4:1, 6:1, 10:6 e 13:1): (1) Israel pratica o que é mau aos olhos de YHWH; (2) YHWH dé/entrega © povo nas mios de opressores; (3) Israel clama a YHWH; (4) YHWH cria um salvador/libertador; (5) 0 libertador derrota o opressor; (6) a Terra tem descan- so. De fato, essa formula é tao variada como constante, nado apenas porque em alguns casos certos elementos s4o redundantes no contexto especifico, mas também porque o préprio padrao de respostas nfo se prende rigidamente a cla. Assim, nem a histéria de Gidedo nem a de Sansao afirmam que a Terra recuperou o “descanso”, nem tampouco, na histéria de Sansio, opovo se lembra de clamar a YHWH, ademais, 0 préprio Sansdo morre no cativeiro do opressor (em contraste com o elemento 5). Essa estrutura, portanto, estabelece uma norma que pode ser solapada, oferecendo-nos pistas interpretativas estratégicas tanto para os contos associados quanto para a obra como um todo. Outro conjunto de conectivos retéricos dentro da seco central de Juizes deriva de um esquema cronolégico difuso,3 embora também seja detectavel uma certa coeréncia espacial. Ecoando (embora nao precisamente) a seqiiéncia no capitulo 1, do sul ao norte, Juda a DA, esto as afiliacdes tribais dos protagonistas nos capitulos 3-16, de Otniel, o judaita, a Sansao, o danita. Com Sansio nos 3. So dados detalhes do tempo passado sob o opressor (3:8. 3:14, 4:3, 6:1, 10:8, 13:1), duragio do servico como juiz (10:2, 3: 12:7, 9, 11, 14; 15:20; 16-31; ef. 9:22) e periodos de “descanso” desfrutados pela Terra (por exemplo, 3:11, 3:30, 5:31, 8:28). Josué e Juizes 119 capitulos 13-16, contudo, nao estamos no norte, onde se localiza Da, mas no centro (oeste), o territério dividido; essa localizacao permite desdobrar a histéria subseqiiente de Mica e a migracdo para o norte dos danitas nos capitulos 17-18. A disjungao aqui entre lista e conto é tematicamente significativa, sublinhando o fracasso de Da diante dos habitantes da Terra, um paradigma do fracasso de Israel. Os mais simples recursos conectivos, em estilo paratatico cléssico, sao, primeiro, a varia¢do crucial da formula introdutéria “Os filhos de Israel fizeram © que é mau aos olhos de YHWH” (2:11) para “E [eles] recomegaram a fazer [ou “eles continuaram a fazer”) 0 que é mau aos olhos de YHWH” (3:12; cf. 4:1, 10:6, 13:1); e, segundo, o uso da expressdo “depois [dele]” para introduzir e integrar seqiiencialmente os juizes “menores” (3:31; 10:1, 3; 12:8, 11, 13). Esses recursos sao semelhantes aos muitos que aparecem em Josué 1-12: primeiro, como um dispositivo de ligacao de episddios maiores, o narrador usa uma férmula introdutéria tal como “E aconteceu, quando todos os reis que estavam aquém do Jordao ... ouviram” (Josué 9:1; ver também 10:1, 11:1); segundo, para enumerar as noticias de campanha breve ao mesmo tempo em que retém uma seqiiéncia de a¢do, o narrador usa repetic¢des em cadeia, tais como “E de Laquis Josué passou a Eglom ... ¢ atacou-a ... como havia feito a Laquis. E Josué foi de Eglom ... até Hebrom ... e atacou-a ... como havia feito a Eglom” (10:34-37 [RA]). Dispositivos de ligagao associativos, tais como motivos ou jogos de palavras, sdo numerosos. Alguns deles funcionam quanto a associar episddios adjacentes ou quase adjacentes; outros funcionam em extensdes muito mais amplas. Na primeira categoria est o assassinato de um Eglom desprevenido por Elide, com a inesperada arma “cravada” (taqa’) no ventre do rei (3:21), em paralelo como assassinato de um desprevenido Sisera por Jael, com a arma inesperada (uma estaca de tenda) “cravada” (taga’) na témpora do rei (4:21); ou os “vadios aventureiros” (‘anashim regim) que apdiam Abimeleque (9:4), em paralelo com os seguidores de Jefté na histéria seguinte (11:3). Da mesma maneira a promessa nazirita, implicita na fala do anjo 4 mae de Sansao (13:3-5), invoca a lembranca do juramento profético e fatal de Jefté na histéria precedente (11:30-31). Em outro caso, 0 cintico (cap.5) que coroa o relato em prosa da facanha de Jael (cap.4; os dois sdo geralmente tratados como fontes separadas pelos criticos biblicos) enfoca a narrativa em prosa da morte de Sisera pelo jogo de palavras, bem como pela repeticao precisa. “Ele pediu-lhe Agua: leite lhe trouxe” (5:25) destila a ironia do mais prosaico 4:19 (“Disse-lhe ele: ‘Dé-me um pouco de agua, peco-te: tenho sede’. Ela abriu o odre onde estava o leite, deu-lho a beber e 0 cobriu de novo”). No relato em prosa, Jael finca a estaca da tenda na témpora de Sisera (raqah, 4:21, 22); a cangdo apanha o termo e joga com a silaba rag e 0 som q, especialmente através do h gutural (duro, como no escocés “loch”). “Ela rachou-lhe a cabega [ro’sh], /e perfurou-a através [halaf; cf. halav, “leite”] de sua tempora [raqah]” (5:26); & mae de Sisera a astuta mulher 120 Guia literdrio da Biblia responde confiante: “Eles nao estao encontrando/ e dividindo [halag] os despo- jos?/- um titero (mo¢a) [raham] , dois titeros [rahmatayim], /por cabeca [ro’sh], por herdi;/ despojos de tecido tingido para Sisera,/ despojos de tecido tingido, tecido bordado [riqmah],/ tecido tingido, duas pecas de tecido bordado [riqma- tayim],/ para o pescoco do saqueador” (5:30). Assim como ocorre com as passagens de estrutura, os motivos paralelos servem nao somente a uma fun¢ao coesiva formal, mas também a um tipico proposito heuristico, neste caso convidando a avaliacao comparativa ao chamar a atencao para similaridades e contrastes em situacGes e personagens. Funcdes semelhantes sio realizadas por varios dispositivos de ligacao de longo alcance, tais como a captura das passagens no Jordao (Etide, Gidedo, Jefté) e 0 motivo associado do conflito entre as tribos de leste e oeste do Jordao (Gidedo, Jefté). Este tiltimo motivo também encontra expressao proeminente em Josué (cap.22) € por sua vez se associa ao motivo da guerra civil em Juizes (envolvendo, de acréscimo, a historia de Abimeleque e desabrochando no relato da guerra contra Benjamim e os habitantes de Gibed-Gileade, nos capitulos 20-21). No nivel de cena ou episddio, igualmente, encontramos conexées significativas: por exem- plo, a visita do anjo a Manué e sua mulher em Juizes 13 (Sansio) lembra muito © comeco da histéria de Gidedo no capitulo 6 (que por sua vez invoca o paradigma de Moisés na sarca ardente, em Exodo 3:1-12). Os capitulos 17-21 tém sido vistos freqiientemente como um suplemento a Juizes, com uma conexdo apenas superficial com o corpo principal do livro. Por certo, 0 esquema cronoldgico e as passagens estruturais terminam na historia de Sansio; tampouco ha outra men¢io ulterior a um juiz. Contudo, o termo coda pode descrever melhor essa seco, que tem fortes ligacdes tematicas com o resto do livro (ver a tiltima se¢do deste ensaio). (No nivel ret6rico formal, a formula introdutéria em 17:1 talvez esteja ligada a 13:2, o inicio da historia de Sans4o.) Outras repeticdes ligam internamente os capitulos 17-21. Desse modo, o preliminar “Nesse tempo nao havia rei em Israel” (18:1) associa o conto de Mica e os danitas com a seguinte do levita e sua concubina (ver 19:1), servindo assim a uma dupla fun¢ao: como comentario conclusivo envolvendo © conto maior (caps.19-21), em que a histéria do levita/concubina se desen- volve, e como um convite a continuar a leitura no livro seguinte. E podemos observar que o jovem levita de Belém, que viaja & terra montanhosa de Efraim, em uma histéria (17:7-8), da lugar, na outra, ao levita visitante na terra montanhosa de Efraim, que viaja a Belém (19:1-3). Conexao tematica Josué-Juizes 3 Em poucas palavras, Josué é um relato da entrada dos israelitas na Terra Prometida. Juizes, um relato de seu periodo inicial de ocupagdo. Como jd vimos, Josué e Juizes rt contudo, essa descri¢do permite um vislumbre do que aviva esses livros, um pequeno indicio de suas singulares complexidades ~ e é nas complexidades que muitas vezes descobrimos o significado tematico. Fonte consideravel de com- plicagdo é a questo que comeca a emergir em Josué e é enfocada com nitidez em Juizes 1-2, a saber: teriam os israelitas sido inteiramente bem-sucedidos na tomada da Terra?* Os estudiosos da Biblia estao habituados a discernir duas concepcdes dispares da ocupa¢do: enquanto Josué apresenta o relato de uma conquista devastadora e bem-sucedida, com a eliminacdo da populacdo nativa, Juizes reflete um processo mais gradual, incluindo um fracasso crucial quanto ao deslocamento de elementos cananeus significativos. Essa é, porém, uma divisio simplificada, pois elementos de uma histéria de ocupasao parcial aparecem no proprio Josué. Certamente o narrador de Josué parece asseverar explicitamente a total realiza¢do por YHWH de sua promessa no que diz respeito 4 Terra. Por exemplo: “E YHWH deu a Israel toda a terra que ele havia prometido dar a seus pais, e eles tomaram posse dela e nela se estabeleceram ... Nem uma palavra foi quebrada de todas as boas palavras que YHWH dissera A casa de Israel; todas se cumpriram” (21:43-45) é ecoado pelas palavras do préprio Josué perto do final do livro (23:14-15). Contudo, j4 perto do fim do capitulo 9, ficamos cientes de que os gibeonitas permanecem, protegidos por uma alianga israelita; em 11:22 ficamos sabendo que nenhum dos enaquinos foi deixado na terra do povo de Israel — exceto em Gaza, Gate e Asdode!® De modo semelhante, os gesureus € os maacateus “estdo ainda hoje no meio de Israel” (13:13), da mesma forma que “os jebuseus ainda hoje habitam em Jerusalém, ao lado dos filhos de Juda” (15:63), enquanto os cananeus de Gazer, que nao foram expulsos, “permane- ceram no meio de Efraim até o dia de hoje, sujeitos a trabalhos for¢ados” (16:10; ver também 17:11-12). Neste ponto devemos lembrar que, de acordo com as prescriges para a implementacdo da promessa (como em Deut. 7:1-2, 20:16-18), a posse da Terra significa nao apenas seu confisco mas também a remogio total de seus habitantes. “Josué tomou toda a terra, exatamente como YHWH havia dito a Moisés”, lemos em 11:23. Contudo, em 13:1, quando o livro passa para a segunda fase (caps.13-21), YHWHdiz a Josué que “ainda resta muita terra para conquistar” [TA]; e, se observarmos as ambigiiidades temporais produzidas pelos relatos da 4 Sobre essa questo como um problema heuristico, ver especialmente Eslinger, L. M. Strategy and Conquest in the Book of Joshua, Perspective: From Deuteronomy to Kings, Sheffield; também Polzin, R. M. The Book of Joshua, in: Moses and the Deuteronomist; € cf. Freheim, T. E. Deuteronomic History, Nashville, 1983, p.49-68. A questo também emerge de uma leitura de Génesis-Deute- rondmio: ver Clines, D. J. A. The Theme of the Pentateuch, Sheffield, 1978. 5. Essas cidades sfo parte da Terra Prometida, de acordo com Moisés (Niim.34:1-12), dentro da parte que cabe a Judd em Josué 15:1-12, e especificamente atribufdas em 15:45-47. 122 Guia literdrio da Biblia distribuicdo ¢ enumeracdo esporddica das nacdes remanescentes, ficaremos me- nos surpresos ao descobrir, no capitulo 18, que sete tribos ainda esperam mesmo pelo processo de distribuicao, sem falar da tomada de posse de sua heranca. “Até quando”, diz Josué as tribos relutantes, “negligenciareis tomar posse da terra, que vos deu YHWH, Deus de vossos pais?” (18:3[TA]). Diante dessa gama de vozes discordantes, podemos chegar A conclusao de que as sugest6es de vitdria devastadora talvez impliquem limitacOes geograficas estritas (“ele tomou toda aquela parte especifica da terra"); sio, no minimo, a linguagem da hipérbole e, mesmo, irdnicas. Uma vez sintonizados com as vozes de realizagao incompleta, somos obrigados a rever o que pode ter antes passado despercebido. A preservasao de Raabe e sua familia é, por certo, uma infracao 4 ordem de “consagrar” (“inter- ditar", “destruir decisivamente”) os que caissem nas maos de Israel (ver Deut. 7:2. 20:10-18). Nao importa que o acordo alcangado pelos espides pareca razoavel e reciproco; é um tratado ilegal segundo as leis que governam a guerra de ocupagao, a lei de YHWH, a lei apenas mediada pela voz de Moisés, 0 servo de Deus, em Deuteronémio, a lei que reside no cerne da exortac¢aéo de Deus (esplendidamente concéntrico) a Josué no comeco de seu livro (1:5-9) de agir segundo a lei que Moisés ordenou, de modo que ele possa ter sucesso em fazer que 0 povo herde a Terra A inapelavel execugao do israelita Acd e seus companheiros (cap.7) por infringir a proibicéo de tomar butim reforcga o ponto. O fato de pouparem a cananéia Raabe compromete a lei. E 0 inicio do relato de como os cananeus permaneceram na Terra. Do mesmo modo, o fato de os cananeus de Gibeom terem sido poupados torna-se outro episédio na histéria do fracasso de Israel em tomar posse por inteiro da Terra. Também aquele acordo vai contra a letra da lei. No cerne do discurso de YHWH a Josué, na abertura do livro, esta a lei. No cemne dos discursos finais de Josué, no fim do livro (caps.23-24), esta a questao que acima de tudo o mais vincula lei e Terra na ordem de expulsar completa- mente os habitantes (23:6-8; ver também 24:14-15, 19-20): Esforgai-vos, pois, muitissimo [diz Josué], para guardar e cumprir tudo o que esté escrito no livro da Lei de Moisés ... sem vos misturardes com estas populacdes que ainda restam no meio de vis. Nao pronunciareis o nome dos seus deuses, nio 0s invocareis nos vossos juramentos, nao os servireis ¢ nao vos prosternareis diante deles. Ao contrario, vés vos apegareis a YHWH vosso Deus, como o fizestes até 0 dia de hoje. [TA] Isso lembra discursos anteriores, mais notavelmente em Deuterondmio 20:17-18: Josué e Juizes 123 Sim, sacrificards como andtema os heteus, os amorreus, os cananeus, os fereseus, os heveus, os jebuseus conforme YHWH teu Deus te ordenou, para que nao vos ensinem a praticar todas as abominagGes que elas [as cidades) praticavam para seus deuses; estarieis pecando contra YHWH vosso Deus. [TA] A questo diz respeito a esséncia da alianga que liga YHWH e 0 povo (por isso ambos os discursos nos capitulos 23-24 desembocam naturalmente na alianga de 24-25). Traira Israel YHWH por outros deuses? A injun¢do contra um remanescente expressa um pessimismo fundamental da parte de YHWH: so- mente um povo vivendo em um mundo isolado parece prometer muita espe- ranga e lealdade duradoura; um povo que se acotovela com outros povos e com outros deuses inevitavelmente romper a fé. Por outro lado, a prépria alianca é uma expressio de otimismo, como 0 éa promessa que dé forma a nossa histéria De interesse central, portanto, é 0 modo como esse Deus otimista enfrentara a realizacao de seu pessimismo. No hiato entre a retérica da realizacdo e a retorica da incompletude desco- brimos uma confluéncia de quest6es basicas. A promessa da dadiva de terra aos ancestrais é verdadeiramente incondicional? Ou a punicdo conseqiiente ao fracasso do povo em observar estritamente os mandamentos de YHWH anula a promessa? O sucesso depende da adesao 4 lei (cf. Josué 1:8)? Se YHWH, como Deus da alianga, permite modificaso ou acomodacio dos mandamentos divi- namente emitidos (cf. Raabe ou os gibeonitas ou a conscri¢do dos cananeus remanescentes), essa liberdade de a¢4o nao ameagaré o préprio relacionamento que os mandamentos devem proteger, sobretudo 0 de que sé YHWHé 0 Deus de Israel? Se a historia de Aca modela a aplica¢ao estrita da justi¢a da alian¢a, que perspectiva ha de que o povo, cuja propensao a apostasia foi amplamente narrada nos livros precedentes, chegara a entrar na Terra para herdar a dadiva, sem se falar de sua permanéncia nela? Estamos a apenas um passo narrativo das maldic6es devastadoras que reforcam o livro da Lei (Deut. 28:15-16 e 24:19-20), entre as quais se destaca a ameaga de remo¢io forcada para fora da Terra. Embora a dadiva seja gratuita, a lei a reforcava também com béngaos (Deut. 28:1-14). A tarefa de realizar a promessa é imensa em termos humanos, como Josué 13-21 deixa bem claro, mas é uma questao de proporcOes meramente mundanas em termos divinos. Trata-se verdadeiramente de uma dadiva, como © narrador e YHWH se esfor¢am para mostrar: Ninguém te poderd resistir durante toda a tua vida; assim como estive com Moisés, estarei contigo: jamais te abandonarei e te desampararei. (Josué 1:15 (RA]) Vé! Entrego nas tuas maos Jericé ... eas muralhas da cidade cairao... (6:2, 5; ver também 8:1; 10:10-11; 10:29, 32) 4 Guia literdrio da Biblia Todos esses reis, com suas terras, Josué os tomou de uma sé vez, porquanto IHWH, Deus de Israel, combatia por Israel, (10:42; ver também 24:1 1-12) Como mesmo Josué busca as cegas e com cuidado a dadiva (“E Josué, filho de Num, enviou de Sitim, secretamente, dois homens como espias, dizendo: ‘Ide, examinai a terra eJerico’”. 2:1 [RA] - uma espantosa reminiscéncia daquela desastrosa missao anterior em Num. 13); como os israelitas parlamentam com os cananeus; como Aca busca a seguranca dos bens materiais, e como as sete tribos demoram-se nos limites da Terra, ficamos cientes de que a dadiva esta ainda sendo ofertada depois de uma jornada ao longo de muitos livros repletos de relutancia e procura por uma seguran¢a mais tangivel que a presenca esquiva de YHWH. Em outras palavras, um fator complicador subseqiiente nessa con- fluéncia de fatores sao as jé abundantemente citadas lealdade, misericérdia e propensao 4 compaixao de YHWH. No hiato entre realizacao e nao-realizacdo descobrimos também a tensio entre justiga e misericérdia divinas. “YHWH é lento a célera e rico em bondade, tolera a falta e a transgressdo, mas nao deixa ninguém impune, ele que castiga a falta dos pais nos filhos até a terceira e quarta geracdes” (Nim. 14:18[TA]; cf. Deut. 5:8-10). A tensdo nessa formulago é também uma das tensoes centrais nos livros de Josué e Juizes. A questo da realiza¢io e nao realizagdo é enfocada nitidamente em Juizes 1-2, onde o equilibrio desloca-se decisivamente para esta ultima a despeito da premissa ostensiva sobre a qual a histéria continuaa ser construida, a saber, a de que a Terra foi de fato ocupada, a dadiva finalmente recebida. Localizados no centro dos dois livros, esses capitulos, juntamente com Josué 23-24, assumem uma qualidade um tanto programitica, influenciando nossa leitura para a frente e para tras. Para leitores que esperam progressdo temporal ordenada, essa prosa é intrigante; e, de fato, geracées de criticos das fontes ordenaram-na engenhosa- mente, removendo hipotéticos acréscimos editoriais e perdendo completamen- te todo o senso da retérica. Nao ha uma maneira unica de ler esse texto, mas uma delas, que ajuda a expor sua coeréncia (e a dar conta do que de outra maneira pode parecer tratar-se de certas mudancas temporais abruptas), toma Josué 23 e 24 como ponto de partida e observa uma ampla medida de corres- pondéncia entre esses capitulos e Juizes 1:22-36 e 2:1-10, respectivamente. Dentro desse invélucro encontra-se um relato ligeiramente concéntrico das campanhas de Judé (e Benjamim). Assim, 0 arranjo como um todo aparece perfeitamente. A YHWH desalojara as na¢des remanescentes, mas se Israel se misturar a elas, YHWH as deixard como uma armadilha que levard a destrui¢ao de Israel fora da Terra (Josué 23). D’ Josué e Juizes ns YHWH (via Josué) relata a histéria de Israel desde Abrado; Josué pressiona © povo para escolher entre Deus ou os deuses; 0 povo escolhe YHWH; & jurada uma alianca (24:-27). Josué remete o povo a sua heranc¢a; morre e é enterrado; sumario: Israel serviu YHWH todos os dias de Josué e todos os dias dos ancidos que sobreviveram a Josué (24:28-31). Os ossos de José sio trazidos do Egito e enterrados; Eleazar morre ¢ é enterrado (24:32-33). Juda combate (com Simedo) os cananeus: Bezeque e Adonibezeque; Jerusalém; Hebrom; Debir — a dadiva de Calebe (Juizes 1:1-8). Os descendentes do queneu, sogro de Moisés, estabelecem-se com Juda no deserto de Juda (1:16). Juda combate (com Sime4o) Zefate, Gaza etc.; Hebrom é dada a Calebe; Benjamim nao expulsa os jebuseus de Jerusalém (1:17-21). As outras tribos nao conseguem desalojar e expulsar varios grupos de habitantes que sao catalogados (1:22-36). O anjo de YHWH narra a historia a partir do Egito e critica 0 povo por ter rompido o mandamento de nao se aliar aos habitantes; portanto, seus deuses se tornardo uma armadilha para Isracl. O povo lamenta-se ¢ sacrifica a YHWH (2:1-5). (1) Josué enviou 0 povo para tomar posse de sua heranga; (2) eles serviram YHWH todos os dias de Josué e todos os dias dos ancidos que sobreviveram ale; (3) e Josué morreu e foi enterrado (2:6-9). “E quando toda aquela geracio, por seu turno, se reuniu a seus pais, sucedeu-lhe uma outra geracdo que nao conhecia a YHWH nem o que ele tinha feito por Israel” (2:10 [RA]; cf. “Depois José morreu, bem como todos os seus irmos e toda aquela gera¢ao ... Levantou-se sobre o Egito um novo rei, que nao conhecia José”; Exodo 1:6-8 [RA]). Entre os diversos pontos de potencial exegético expostos por essa ordenagio do texto estdo, primeiro, o declinio inequivoco da possibilidade de otimismo em A eB para a pressaga exclusio de opcées, por Israel ou por YHWH, em A’ e B’; e, segundo, o estabelecimento de um esquema de geracSes - 2:10 equipara, de novo agourentamente, o preliidio a historia do cativeiro no Egito. O esquema sugere uma nova historia dentro da historia principal. Ele tem também 0 efeito amb(guo de confirmar a linha de nio-realizacio (ou realizacio parcial) do Livro de Josué e de elevar a geracdo de Josué ao status de modelo. Quaisquer que tenham sido os erros dessa gera¢ao, eles tornaram-se relativos, nao se compa- rando aos pecados da nova geracio; e isso é apenas o comeco de uma espiral 126 Guia literario da Biblia descendente assinalada pela afirmacdo inequivoca do narrador de que cada geracdo sucessiva “comportava-se pior do que seus pais” (2:19). A leitura de 1:27-35 (fracasso em desalojar) e 2:1-10 (a acusacio do anjo de que a alianga foi rompida ¢ seu anuincio de que as nagGes se tornardo uma armadilha) em termos dos discursos e da realizacao da alianca em Josué 23 e 24, como a concentricidade nos exige, torna evidente o que de outro modo nao fica explicito no texto de Juizes, a saber, o resultado confiantemente previsto de tal comportamento por parte de Israel — que Israel perecera fora da Terra (23:12-13, 15-16; 24:20). Nesse ponto, o fim da histéria principal (em II Reis 25) é enfocado diretamente para o ptiblico contemporaneo do narrador, néo porque o pliblico necessariamente conhega Il Reis 25, mas porque quase certamente estd no exilio, expulso da Terra. Nessa ocasiao, israelitas e cananeus compartilham o mesmo destino. Nenhum deles merece a Terra. Ela é uma dadiva. Eis uma conclusao comedida demais para 0 leitor que encontraria mais satisfacao em ouvir uma histéria simples do bem contra o mal (0 escolhido contra o rejeitado), ou em achar justificativa contemporanea para a ago humana no modelo do despojamento impiedoso. Isso talvez explique por que essa pode ser uma histéria tanto para o possuidor quanto para o despojado. padrao de declinio que ja fora sugerido como o padrao das novas gerasdes é enunciado em 2:11-3:6. Os versiculos 11-13 confirmam o fato da apostasia, os versiculos 14-19 narram o conto espiralado que deve ser a histéria do novo livro. Repetindo o versiculo 14 (“E a ira do Senhor acendeu-se contra Israel”) no versiculo 20, o narrador explica entdo a decisio de YHWH de abster-se de continuar ajudando Israel a expulsar as nacGes remanescentes como uma decisio para “testar” Israel, nogdo um tanto ambigua que deixa em aberto se se trata de uma punicdo ou oportunidade para um relacionamento renovado ou, de fato, ambas as coisas. Repetindo o versiculo 14 mais uma vez em 3:8, 0 narrador nos conduz novamente ao comeco da espiral e 4 primeira das histérias no corpo principal do livro, a histéria de Otniel. Conexao tematica: Juizes 3-21 A historia de Otniel nada mais é que um esqueleto com um pouco de carne nos ossos — alguns nomes, uma linhagem, um curto perfodo de tempo. O povo de Israel faz 0 que é mau aos olhos de YHWH, esquecendo Deus e servindo outros deuses; YHWH fica irado e os entrega nas maos de Cusa-Risataim (=Chushan-Dupla-Maldade?), rei da Mesopotamia (“Aram dos Dois Rios”, isto é, norte da Mesopotamia /leste da Siria); 0 povo serve esse rei por ito anos; eles clamam (za’aq, “pedem socorro”) a YHWH, que suscita um libertador, Otniel; ele (YHWH ou Otniel - a sintaxe é, talvez deliberadamente, ambigua; também em 2:18, embora nao em 2:16) os liberta - 0 espirito de YHWH desce Josué e Juizes n7 sobre Otniel, ele os “julga” (hd ébvias conotacées de “governo” no uso desse termo) e parte para a guerra; YHWHentrega o rei em suas maos de modo que Otniel prevalece sobre ele; em conseqiiéncia disso, a terra tem descanso por quarenta anos antes de Otniel morrer (3:7-11). Como ja foi notado, a histéria desenvolve-se naturalmente da narrativa anterior até os versiculos 7-8, que imitam 2:13-14 e 2:20 (0 mal de Israel ea ira de YHWH). A linguagem caracteristica da espiral descrita no capitulo 2 — “suscita”, “j liberta” (ou “salva”) - é imediatamente reconhecivel. Ja encontramos Otniel antes. A histéria € modelar nao apenas no sentido de que da substancia ou especificidade as abstragdes do sumario do capitulo 2, mas também no sentido de que é um paradigma ideal. Otniel é filho de Calebe, uma linhagem dificil de ultrapassar nesse ponto na histéria (cf. Nim. 14:21-24, 30; Josué 14:6-15; Juizes 1:20). O espirito de YHWH iniciaa agao, diz o narrador, e é YHWH quem entrega © rei inimigo em suas mos, convidando a uma compara¢ao favoravel com os paradigmas anteriores de guerra do proprio YHWH contra as nacGes em Deute- ronémio e Josué. Notamos sobretudo que o povo, tendo-se desviado para o servico de outros deuses, clama em atraso pela ajuda de YHWH, reconhecendo portanto a impoténcia de seus novos deuses e sua dependéncia do poder soberano de YHWH. Talvez uma razio pela qual o episddio de Otniel funciona bem como modelo seja que nem Otniel nem o povo ganham vida nele. Dotemos um ou dois personagens de carne e ha toda probabilidade de eles afrouxarem os nés da perfeico, especialmente se seu narrador-criador aprecia uma histéria sobre duas pessoas, um deus e um jardim. A medida que esses contos em Juizes se ampliam, cresce a imagem da humanidade imperfeita e vulneravel, as imperfei- Ges pertencendo tanto ao juiz quanto ao povo. Ademais, para além do fim do conto, do livro ¢ da histéria principal da qual ele ¢ uma parte, est 0 puiblico contemporaneo, em sua maioria provavelmente judeus, da Mesopotamia, alta- mente consciente dessa vulnerabilidade. Para eles a historia modelar de Juda e seu opressor mesopotamico deve ter transmitido uma ironia especialmente comovedora. A sensibilidade as variagées sobre o modelo de Otniel e seus desen- volvimentos pode ajudar-nos a mapear nosso caminho ao longo dos contornos do livro. Assim, por exemplo, a auséncia daquele clamor por ajuda no sumario do capitulo 2 aparece imediatamente em retrospecto ¢ a discrepancia se revela premonitoria. A despeito da recorréncia na estrutura quadrupla das historias seguintes (3:15, 4:3; 6:6-7, 10:10), o clamor esta significativamente ausente antes do climax que ¢ a histéria de Sansio (a tiltima das histérias da estrutura), em que 0 povo nao s6 deixa de recorrer a seu Deus para sair da opressao, como & mesmo incapaz de reconhecer 0 “juiz” sobre quem desceu o espirito divino. Os homens de Juda (a tribo de Otniel!) o entregam nas maos dos opressores 128 Guia literdrio da Biblia filisteus com o exasperado comentario (a ironia escapa As personagens ¢ é 36 para fruicao do leitor) “Nao sabes que os filisteus dominam sobre nés?” (15:11). Aqui estamos a um passo dos homens de Israel que reagem a vitéria sobre os madianitas convidando Gideao: “Reina sobre nés, tu, 0 teu filho eo teu neto, porque nos tiraste das maos de Mi (8:22). O leitor tem outra versio: foi de fato YHWH quem libertou Israel, pela mao de Gidedo (ver 7:7, 7:9, ou 7:14, onde até um madianita reconhece isso). A conseqiiéncia das precaugdes de YHWH, “Israel poderia gloriar-se disso 4 minha custa e dizer: ‘Foi a minha prépria mao que me livrou!’” (7:2 ~ sua motivacdo para reduzir os nimeros das tropas de Gidedo), foi desviar a adulacdo para Gidedo! E Gidedo mesmo retruca aos homens: “Nao serei eu quem reinara sobre vés, nem tampouco meu filho, porque é YHWH quem reinard sobre vés” (8:23); embora insistindo nas conve- niéncias, 6 de uma reticéncia encantadora quanto ao tema da liberta¢do. (Também nao se sabe, a0 menos momentaneamente, se a réplica constitui recusa cabal ou aceitacao condicional da parte de Gidedo, significando algo como “Muito bem, eu aceito, mas lembrem-se de que nao serei eu nem meu filho, mas YHWH quem sera 0 verdadeiro governante”.) O narrador nos provoca ainda mais. A a¢do seguinte de Gidedo é comportar-se como rei (“Que cada um de vés me dé um anel de ouro de seu despojo’... O peso dos anéis de ouro que ele pedira chegou a 1.700 siclos de ouro” 8:24-26), evocando fortemente a adverténcia de Moisés de que um rei nao deve “multi- plicar excessivamente sua prata e seu ouro” (Deut. 17:17). Em seguida depa- ramos com um apéstata em potencial, um Aaro no Sinai fazendo um bezerro de ouro fundido com os brincos de ouro de seu povo (Exodo 32). “Gidedo fez com isto um éfode e o colocou na sua cidade, Ofra [onde, ironicamente, fica 0 altar de Gidedo erguido para YHWH na fase inicial da histéria, 6:24]. Todo Israel ali se prostituiu depois dele, ¢ isso veio a ser uma armadilha para Gidedo ¢ a sua casa” (8:27).° “Meu filho nao reinard sobre vos”, diz Gidedo; mas a historia vai contar exatamente isso no capitulo seguinte, 0 conto sangrento de Abimeleque (="“Meu Pai é Rei!”), filho de (Gidedo=) Jerobaal (=“Deixe Baal Litigar”; ver 8:33) Que é YHWH quem liberta, YHWH quem governa, YHWH quem é rei em Israel, j4 ndo é mais um dado de conseqiiéncia para 0 povo que agora povoa o livro. “Naquele tempo nic havia rei em Israel”, observa o narrador no refrao que pontua os contos finais (18:1, 19:1), prolongando assim a ironia conjurada 6 Aalusao a Exodo se estende ainda mais. “Este é o teu Deus, 6 Israel, 0 que te fez subir da terra do Egito”, dizo povo contemplando o bezerro (Exodo 32:4; ver também v.8). A historia de Gidedo se iniciou com a visita de um profeta que proclamou: “‘Assim diz YHWH, Deus de Israel. Eu vos fiz subir do Egito, da casa da servidio' (‘avadim, ‘servidao’, jogando com um tema chave, de que servir a outros deuses é convidar servidao, como agora sob os madianitas]” (Juizes 6:8; ver também 6:13). Josué e Juizes 19 pelos captores judeus de Sansdo. Uma ironia semelhante também encerra 0 livro: “Naqueles dias nao havia rei em Israel, e cada um fazia o que bem lhe parecia” (21:25). Lembramos a formula que prefacia 0 conto modelo, de Otniel, bem como todos os contos subseqiientes, mas palpavelmente ausente dos capitulos 17-21: “E 0 povo de Israel fez o que era mau aos olhos de YHWH” (3:7; ver também 2:11). O padrao de avaliacao j4 nao é divino, mas humano e individual. Estamos bem longe da nagdo de YHWH que marchava em procissio atras da Arca da Alianca para a Terra Prometida. Estamos bem longe dos decretos de YHWH que arruinaram Jericé e levaram Aca a morte. Foi YHWH quem entregou 0 povo as maos (ao poder) do rei da Mesopota- mia, YHWH quem pos o rei da Mesopotamia nas maos de Otniel. A questao da soberania 6, ao menos em parte, uma questio de poder, e o motivo das mos/poder pode ser tracado ao longo do livro. Ele constitui, por exemplo, um dos motivos centrais na histéria de Eide e Eglom (3:12-30), seguindo-se imediatamente ao paradigma de Otniel. Etide, o Benjaminita (isto é, 0 “filho da mio direita”, ou “destro”), é um “homem preso, restrito 4 sua mio direita”, isto é, canhoto! O povo decide enviar tributo (minhah, “presente” ou “dadiva”, ‘ou mesmo “oferenda”) “por sua mio” a Eglom, rei de Moabe, a quem eles serviram por dezoito anos. Mas Eide traz uma adaga oculta sob as roupas, presa a sua coxa direita; alcancando-a com a mao esquerda ~ e portanto insuspeito de algum truque -, ele a crava no ventre de Eglom. Sem saber, 0 povo enviou a Eglom, pela mao de Etide, uma “dadiva” de fato (talvez haja a inten¢o de um trocadilho - © minhah, “tributo,” pode apontar para menuhah, “descanso” ou “lugar de descanso”). Escapando, Etide convoca o povo de Israel a segui-lo, “porque YHWH entregou o vosso inimigo, Moabe, nas vossas maos” (v.28). Essa maneira de narrar 0 que ocorreu convida a uma vigorosa compara¢ao com o didlogo posterior entre Gidedo e os homens de Israel em 8:22-23. Elide, 0 libertador, muda nosso enfoque (e 0 do povo de Israel) de si mesmo para YHWH, 0 libertador, e para 0 povo, que sio os verdadeiros beneficidrios da dadiva de poder de YHWH. No cerne da libertacao de Etide reside o poder das palavras - 0 poder do narrador de moldar nossas percepcGes, 0 poder de Etide de enganar o bezerro gordo (Eglom conota ‘egel, “bezerro”). A rara palavra bari’ (v.17), significando “gordo”, j4 ocorreu antes, bem para tras na histéria principal, mas entéo de modo memorével, seis vezes em Génesis 41, para descrever as sete vacas gordas e o trigo estragado a ser devorado pelas sete vacas magras (ver também I Reis. 4:23, Eze. 34:3, Hab. 1:16, Zac.11:16). Eglom e bari’ sao uma fértil combina¢ao! Quanto a Etide, verdadeiro homem de YHWH, ele da as costas (shub, “se volta,” “arrepende-se!”) as Imagens (ou {dolos, Pesilim; VRJ: “lousas”) perto de Gilgal. “Tenho uma davar secreta para ti, 6 rei”, diz ele (3:19); e Eglom, esperando talvez um ordculo (davar, “palavra”) dos deuses préximos de Gilgal, ordena “Siléncio!” A réplica de Eide confirma a expectativa: “E uma palavra divina [devar-’elohim] que trago para ti, 6 rei!” (v.20). Mas 0 leitor 1é diferentemente: BO Guia literdrio da Biblia a “palavra divina” (ou “palavra dos deuses”) ¢, na verdade, a “palavra de Deus [YHWH]” ou entao, mais uma vez, quando Eide empunha o punhal, torna-se uma “coisa” (davar) de Deus. Como 0 punhal que Etide fez para si, suas palavras tém dois gumes (“Etide fez para si um punhal de dois gumes”, v.16). Assim, contra a expectativa, Eglom é tranqiiilizado por uma “palavra” que para ele, na verdade, significa siléncio. E assim Etide “passa pelos {dolos” (v.26 [TA]) e YHWH liberta Israel. A histéria de Débora e Baraque comega com a reincidéncia de Israel e sua entrega por YHWH as mos de Jabim, rei de Canaa. Novamente nos é dito que © povo clamou a YHWH por ajuda, “porque Jabim tinha novecentos carros de ferro e tinha oprimido duramente os filhos de Israel durante vinte anos” (4:3). Um leitor com a viso distorcida poderia se assombrar com a extensdo do tempo decorrido antes do renovado interesse em YHWHe também com a motivacido desse stibito interesse. Ele deriva da opressao, nao parece tratar-se de interesse em YHWH por YHWH ou de reconhecimento de alguma obrigacao da alianga por parte do povo. A men¢ao aos carros de ferro, além disso, lembra as palavras de Josué referentes a esse mesmo vale de Jezrael: “Expulsards os cananeus nio obstante possuam carros de ferro e sejam fortes” (Josué 17:18). Por tris das palavras de Josué jazem as palavras de YHWH bem no inicio de seu livro: “Sé firme e corajoso, porque fards este povo herdara terra... [Cuide de] agir segundo toda a Lei que te ordenou Moisés, meu servo” (1:6-7). O inicio do capitulo 4 (vv.1-3) transmite uma sensacdo de hiato entre as palavras de Moisés e esse povo que, mais uma vez oprimido, clama novamente ao deus de sua conveniéncia. As palavras de YHWH, Moisés e Josué so lembradas apenas obscuramente, se tanto. A alianga de Siquém (Josué 24) ha muito esta rompida. Nao sera 0 povo que testemunhava contra si mesmo enquanto jurava (vv.22- 23), mas o profeta de YHWH que primeiro os lembrar4 de sua desobediéncia Quizes 6:7-10). Entre as palavras mais devastadoras do livro estao as de Jefté - nio seu acordo com os anciios para assegurar a lideranga sobre 0 povo de Gilead (11:5-11), nem seu elaborado exercicio de retérica diplomatica (w.12-27) que termina com a lacénica observacao do narrador de que “o rei dos amonitas nio deu ouvido as palavras que Jefté Ihe mandara dizer” (v.28) -, mas o juramento proferido a YHWH ao avangar contra os amonitas, com o espirito de YHWH so- bre ele, de sacrificar quem ou o que saisse primeiro das portas de sua casa para encontrd-lo, se YHWH lhe garantisse a vitéria.” O juramento envolve um dos grandes temas do livro (e do resto da histéria), o da tensio entre a ansia humana por seguranga e a inseguranga provocada pela 7 Sobre essa histéria, ver Phyllis Trible, The Daughter of Jephtah: An Inhuman Sacrifice, in: Texts of Terror: Literary-Ferainist Readings of Biblical Narratives, Philadelphia, 1984, p.93-116; tam- bém Exum, J. C. Biblical Tragedy: The Case of Jephtah, Semeia. Josué e Juizes BI lealdade e obediéncia a uma divindade sem imagem e insondavel. A histéria principal oferece projetos de seguranga - uma nacao (e um sistema de filiagdo tribal), uma terra, instituigdes de lideranca (juiz, rei, sacerdote, profeta e patriarcado) ou culto (arca, éfode e templo) ~ apenas para solapi-los e fraturé- los denunciando sua fragilidade, corrup¢ao ou irrelevancia. Mesmo a lei e os mandamentos esto sujeitos 4 revisao critica, quando a paciéncia e a compaixao de YHWH desgastam sua reivindicacdo ao absoluto. Aqui na histéria de Jefté talvez seja a inseguranca do rejeitado “filho de Gilead” (ver 11:1-3) que o estimula a se arriscar no sentido de assegurar a vitéria e a lideranca sobre os que o rejeitaram. (E hd aqui um certo paralelo intrigante entre a rejei¢io ea lembranga de YHWH, em 10:6-16, e de Jefié, em 10:17-11:11.) Assegurar-se da vitéria significa assegurar-se de YHWH. Mas 0 esquema de composicao expée a superfluidade do juramento isolando-o por meio de com- posicao circular (“ele avancou contra os amonitas”, v.29, retomado no v.32 — havera aqui a ironia de que o juramento pudesse ser enquadrado por tal lade potencial?). A seqiiéncia dos verbos “passar/atravessar sobre” (‘abar) que acompanha o juramento no versiculo 29 é prefaciada pelo anincio de que o espirito de YHWH desceu sobre Jefté e termina (v.32) com a entrega por YHWH do inimigo em suas maos. Isto ¢, o movimento rumo A vitéria ja comegou. juramento, porém, inicia uma nova linha do enredo: ¢ como as palavras de Eide, as de Jefté se revelam de duplo gume quando sua filha sai (como Miria no Mar Vermelho, Exodo 15:20) para encontra-lo — sua filha tinica, sua tinica crianga (v.34; cf. Isaque em Gén. 22:2, 12, 16). Tendo arriscado tudo pela vitéria, ele é incapaz de arriscar sua anulacdo ofendendo YHWH ao renegar seu jura- mento; ¢ da perspectiva de Jefté a seqiiéncia juramento-vitoria deve ser cativan- te. Ele é prisioneiro de suas palavras (“Abri minha boca a YHWHe nao posso voltar atrds [arrepender-se?]”, v.35, assim como é prisioneiro de sua compre- ens&o da imutabilidade do juramento (ver Num. 30:1-2) ede YHWH. (A palavra de YHWH é também assim imutavel?) Onde Eide pdde voltar as costas [arre- pender-se?] aos fdolos com uma palavra mortal mas libertadora, Jefté é incapaz de voltar atrds (arrepender-se) da palavra-idolo mortal e aprisionadora que ele proprio criou. Em conseqiiéncia, sua filha suporta sua injusta repreensao (v.35), fala o que cle precisa ouvir (v.36), ¢, sem receber isencao paternal (ver Nim. 30:3-5), paga o terrivel prego de sua promessa (para ela, nenhuma mao do céu detém a tocha) ~ e desloca 0 centro emocional da histéria toda de Jefté para ela. Justaposto a histéria da palavra excessiva, esta o relato burlesco da palavra negligenciada (12:1-6), em que os homens de Efraim repreendem Jefté por no os ter chamado e amea¢am queimar sua casa sobre ele (como alguns capitulos adiante os “companheiros” de Sansao ameacarao queimar pai e filha, 14:15; cf.15:6), e 42 mil efraimitas morrem nas maos dos companheiros israelitas, por causa de uma palavra: “Sibolet” (12:5-6). 2 Guia literdrio da Biblia Na histéria de Sansao, muitos dos interesses tematicos do livro se fundem.® A soberania de YHWH é realmente desfeita aqui. Igualmente exposta é a fragilidade do conhecimento, tio suscetivel aos caprichos e preconceitos da percep¢ao e aos matizes de linguagem. A mulher inominadade Manué, satisfeita em reconhecer a presenca do mensageiro de Deus e que nem sequer lhe pergunta o nome (13:6), sabe muito mais (¢ lhe é dito muito mais) do que seu marido, cujo interrogat6rio ansioso procura assegurar o futuro. Discursos-chave refletem o jogo ea forca das palavras, palavras enigmaticas, palavras lisonjeiras, palavras insinuantes, palavras de devo¢do. Invocado pela fala do anjo visitante (13:3-5; ver Nam. 6:1-20), o juramento nazireu permeia a narrativa e por meio dele 0 autor manipula a personagem e o leitor, expondo e rompendo expecta- tivas e normas. Sansdo, impelido pelo espirito de YHWH, luta com nossa expectativa do que deve ser dedicado a/por Deus. O padrao de sua vida é de fato separaco (nazir, “separado,”, “dedicado”), mas nao como poderiamos ter suposto. Isolado de todas as relacoes duradouras, ele morre, agente de YHWH, cego e sé entre uma multiddo zombeteira. Lemos que Sansio “comegara [yahel] a salvar Israel das maos dos filisteus” (13:5; 0 uso de yahel, da raiz halal, “comeg¢a”, joga apropriadamente com 0 outro sentido da raiz, “polui”, “profa- na”). Procuramos um “juiz” - um Otniel ou Gidedo conduzindo uma guerra heréica de independéncia — e encontramos, em vez disso, uma figura singular destruindo, quando derruba sobre os filisteus o templo de Dagom, um deus e uma convengao teolégica. “O nosso deus entregou em nossas mios Sansio, 0 nosso inimigo”, reiteram eles em 16:23-24. Mas 0 leitor sabe (e um leitor do Exilio poderia ponderar) que nao é 0 deus dos captores, mas 0 do cativo que 0 entregou em cativeiro, e que em sua morte o cativo revela a impoténcia de Dagom e o poder de YHWH. Se o Israel da historia reconhece essa manifestac¢io de YHWH, nao nos é dito. O siléncio é agourento. Pelo contrdrio, a tinica pessoa a invocar YHWH aqui ~ ou em qualquer parte na histéria ~ é Sansdo. Ausente da exposi¢ao em 13:1 esta o esperado clamor do povo por ajuda; a sujeic¢ao, além disso, nao é mais “opressdo”, mas um modus vivendi, que quietamente zomba do conto de Josué sobre a posse da Terra. E sobre o fim do conto? Os familiares que vio enterra-lo (16:31) olham para as ruinas do templo e refletem sobre o autor da derrota de Dagom? E, entao, a instituicdo do juizado um fracasso? Teria sido 8 Em anos recentes, a histria de Sansdo tem atraido mais atengao critico-literdria do que talvez qualquer outra das historias em Juizes. Ver especialmente Crenshaw, J. L.Samson, Atlanta, 1978; Exum, J. C. Aspects of Simmetry and Balance in the Samson Saga, Journal for the Study of the Old Testament, v.19, 3-29 e 20, 1981 e 90; idem, The Theological Dimension of the Samson Saga, Vetus Testamentum, v.33, p.30-45, 1983; Greenstein, E. L. The Riddle of Samson, Prooftexts, v.1, p.237-260, 1981; Vickery, J. B. In Strange Ways: The Story of Samson, in: Long, J. B. (Ed.) images of Man and God, Sheffield, 1981, p.58-73. Josué ¢ Juizes 333 rompida a espiral de declinio apenas para tornar-se uma queda vertical? Onde, em tudo isso, para o Israel da histéria, jazem os primérdios da libertacdo de Israel? Acoda (caps.17-21) édesolada. Os capitulos 17-18 apresentam uma parédia do culto caseiro. No levita, o efraimita Mica encontra seguranca. “Agora sei que © Senhor me fara bem, porque tenho um levita como sacerdote”, exclama ele com ironia inconsciente (17:13). No porta-santudrio seqiiestrado com seu ordculo embutido os saqueadores daneus encontram seguranca. Ea perspectiva de uma congregacao vastamente numerosa deixa o sacerdote exultante: “Entao © sacerdote se encheu de alegria, tomou o éfode”, acrescenta o narrador sardonicamente, “e os terafins, bem como a imagem de escultura [peset, “imagem” ou “idolo”, lembrando a histéria de Etide, 3:19,26], ese encaminhou para o meio do povo” (18:20). A histéria da concubina do levita (caps.19-21) lembra a da filha de Jefté, pois também ela é vitimada por palavras idélatras.? Uma prolongada disputa na pratica de oferecer e receber hospitalidade (junto com o preconceito contra os jebuseus cananeus) leva ao atraso na chegada dos viajantes a Gibed; por sua vez, as palavras de hospitalidade oferecidas pelo visitante efraimita levam ao sacrificio da concubina, quando a Gibed israclita revela-se a nova Sodoma. As palavras e a seguranca da hospitalidade sao absolutas — isto é, se for homem. Essa sociedade j4 esti dividida e uma parte oprimida, sem um opressor estrangeiro e mesmo antes de a concubina ser violentada, retalhada e usada como desculpa para a orgia de guerra civil e estupro que se segue. YHWH, consultado apenas quando as decisées vitais j4 foram tomadas, desempenha com distanciamento irénico seu papel como um deus de conveniéncia. “Quem de nés subird primeiro para 0 combate contra os benjaminitas?”, pergunta 0 povo. “Juda subiré primeiro,” replica YHWH (20:18). Aqui fecha-se o circulo. Estamos de volta a abertura do livro (1:1-2), exceto que agora Israel luta contra Israel e, presos em armadilhas como Jefté por palavras precipitadas, homens israelitas apoderam-se de mulheres israelitas (cap.21; cf. 3:6). As passagens estruturais terminam com a abertura da histéria de Sansio (cf. 13:1). Com os capftulos 17-21, a opressdo estrangeira se foi, a sujeisio estrangeira se foi, até os Baals e Astarotes se foram. O narrador nao precisa mais exibir aquela formula para nos lembrar de que “o povo de Israel voltou a fazer 0 que era mau aos olhos de YHWH”. Pois essas sao histérias de Israel “desfrutando” a Terra, histérias elaboradas a partir da vida cotidiana na Terra — um pequeno roubo de familia, um levita errante procurando um lugar para ficar, uma briga doméstica e uma questo de hospitalidade. Aqui, revelada em 9 Ver, também, Trible, P. An Unnamed Woman: The Extravagance of Violence, in: Texts of Terror, p.65-91. B4 Guia literdrio da Biblia detalhe devastador, esté a comunidade cuja realidade mundana vislumbramos na ordenagao e distribui¢ao de Josué 13-22. O refrao inicial do narrador é agora desnecessario, pois essas histérias sao a formula transformada. SugestGes de leitura ESLINGER, L. M. Perspective: From Deuteronomy to Kings. (No prelo). KLEIN, L. R. The Triumph of Irony in the Book of Judges. (No prelo). POLZIN, R. M. Moses and the Deuteronomist. A Literary Study of the Deuteronomic History, Part One: Deuteronomy, Joshua, Judges, New York, 1980. TRIBLE, P. Texts of Terror: Literary-Feminist Readings of Biblical Narratives, Philadelphia, 1984, WEBB, B. G. The Book of the Judges: An Integrated Reading, Sheffield, 1987. Columbia Theological Seminary

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