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JEAN HYPPOLITE GENESE E ESTRUTURA DA FENOMENOLOGIA DO ESPIRITO DE HEGEL Tradugfo de Andrei José Vaczi, Denilson Soares Cordeiro, Gilberto Tedéia, Luis Sérgio Repa, Rodnei Antonio do Nascimento, com a coordenagao de Silvio Rosa Filho Prefécio de Bento Prado Jr. a rg discurso editorial CONSULADO GERAL MINISTERIO. DA FRANGA/SP DA CULTURA, 1999 Copyright © by Abie, 1946 ‘holo orginal em tanets: Genesee sircture de la Pénaménologie de I’Expit de Hegel Copyright © 6a wadto bela Dscursa Editorial, 1999 [Neahusa parte dest pblicagio poe sr gravads, ‘smzenads cm sistema cletoniean, foe reproitada por mor mecico o otros qual sem 2 aitorizplo pevin dn elon, Projeto editorial: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP __Divegda editorial: Milton Meira do Nascimento "Projet grafiene edtoragao: Guilherme Rodrigues Neto ‘Revirdo: Alesandee Morales Mustragto da copa: Christian Biancaediak ‘Tiragem: 1.000 exemplares io; ret detent Pra Je Sao Paes ‘sme Batra 1998 168. (Clea ¢ Comentseres) “Trad de: Gets et sacar de a Th20- mésolople de spit de Hepel 158 85.5659015.0 | Faso Conemportien 2 Hist da = Tosa 3 Hepe Til. I Rosa Fo, Slo Is Prado Je Beto 1V. See ‘CDD9.) 109 19. 1s tl discurso editorial ‘As. Prot. Lcano Guatbene 315 (la 1033) {5509-900 Sie Paslo— SP Tel. 818-3709 (anal 222) Teh FAX: B14 3305 E-mail lscusoG@org asp be Classicos €* Comentadores SUMARIO PREFACIO DE BENTO PRADO JR. 1 I GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 1, SENTIDO E METODO DA FENOMENOLOGIA 19 2. HISTORIA E “FENOMENOLOGIA” 43 3. ESTRUTURA DA “FENOMENOLOGIA” 67 ET A CONSCIENCIA OU A GENESE FENOMENOLOGICA DO CONCEITO INTRODUGAO 93 1. A CERTEZA SENSIVEL 95 2. A PERCEPCAO 115 3. 0 ENTENDIMENTO 133 iL DA CONSCIENCIA DE SI NATURAL A CONSCIENCIA DE SI UNIVERSAL INTRODUGAQ, PASSAGEM DA CONSCIENCIA A CONSCIENCIA DE SI 1. CONSCIENCIA DE St E VIDA. A INDEPENDENCIA DA CONSCIENCIA DE SI 171 2. A LIBERDADE DA CONSCIENCIA DE SI. ESTOICISMO E CETICISMO 193 3. A CONSCIENCIA INFELIZ 205 157 Iv A RAZAO SOB 0 ASPECTO FENOMENOLOGICO 1. A RAZAO E 0 IDEALISMO 2. A OBSERVAGAO DA NATUREZA 3. A OBSERVAGAO DA INDIVIDUALIDADE HUMANA 4. 4 RAZAO ATIVA, © INDIVIDUALISMO MODERNO 5. 4 OBRA HUMANA EA DIALETICA DA ACAO Vv © ESPIRITO: DA SUBSTANCIA ESPIRITUAL ‘AO SABER DE SI DO ESPIRITO INTRODUCAO 1.0 ESP{RITO IMEDIATO 2. A PRIMEIRA FORMA DO SI ESPIRITUAL 3. 0 MUNDO DA CULTURA E DA ALIENAGAO 4. A AUFKLARUNG OU 0 COMBATE DAS LUZES CONTRA A SUPERSTICAO 5. A LIBERDADE ABSOLUTA E O TERROR, OU 0 SEGUNDO TIPO DE SI ESPIRITUAL VI DO SABER ABSOLUTO DO ESPIRITO ‘AO ESPIRITO ABSOLUTO 1. A VISAO MORAL DO MUNDO. 2. © ESPIRITO CERTO DE SI MESMO. © SI OU A LIBERDADE 3. A RELIGIAO. MISTICISMO OU HUMANISMO. CONCLUSAO “FENOMENOLOGIA E LOGICA”. (© SABER ABSOLUTO REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 233 247 275 289 315 343 357 389 401 453 481 495 519 557 599 635 NOTA DOS TRADUTORES ESTA traducdo ¢ resultado de um trabalho coletivo. Teve int- cio ha 6 anos, quando, reunidos, alguns escudantes de filosofia da Universidade de Sao Paulo, comesavamos a leitura da Fenomenolo- sia do espirito de Hegel e fomos descobrindo, nos comentarios e es clarecimentos de Jean Hyppolite, um indispensavel interlocutor. Pa- Feceu-nos entdo que, ao percorrer este caminho, o que valia para nés pudlesse valer para muitos. Vem dat, pois, nosso empenho em ofere- cer esta versio brasileira de Gendse et structure de la Phénoménologie de Vesprit. Fomos beneficiados pelo cotejo com a publicagdo espanhola (Francisco Fernandez Buey, Peninsula, 1974), para a Génese, e, para as citagées da Fenomenologia, pela traducao brasileira de Paulo Meneses (Vozes, 1992). Neste tiltimo caso, em busca de nos manter- mos fitis a0 texto de Hyppolite, sempre nos conduzimos de modo a adotar menos as solugdes terminolégicas do que aquelas cujo teor ~ sintatico ou estilstico — estivesse o mais préximo de nosso autor; ain- da assim, tendo em vista o estudioso de Hegel, todas as remissdes & tradugo francesa da Fenomenologia do espirito vem acompanhadas, ‘em nota, pela referéncia a traducao brasileira, entre parénteses. Ade. mais, a intervengao dos tradutores em notas de radapé esteve pauta- da pela parciménia. PREFACIO A EDIGAO BRASILEIRA BENTO PRADO JR. NUM telatério sobre “o estado dos estudos hegelianos na Franga", escrito em 1930, o fildsofo russo, radicado em Paris, Ale- xandre Koyré, comegava por sublinhar a pobreza dos trabalhos con- sagrados ao filésofo em seu pais de adocao. E explicava: “E que, ao contrério do que ocorreu_na Alemanha, na Inglaterra e na Iedlia, jamais pode formarse uma escola hegeliana | ica, Hegel jamais.. ceve lé tim discipulo como teve Schelling na pessoa tk 0 _prépric neo-hegelianismo, que desempenhou, papel de pimord’al imporcaneia ta ovoleea de peroaren fico da leilia © nos palies anglo Impée-sethe assim uma violéncia desnecessaria; e a ciéncia, por seu turn, parece situar-se além da consciéncia de si. Nao ha duivida de que a critica de Hegel vise aqui a Schelling. Nao seria posstvel comecar brusca- mente com o saber absoluto, rejeitando as posigées diferentes ¢ de- clarando, delas, nada querer saber. E preciso portanto adotar, como Kant e Fichte, o ponto de vista da consciéncia, estudar o saber prdprio a essa consciéncia que supée a distingdo entre 0 sujeito e o objeto. O saber absoluto nao é abandonado; sera 0 término do desenvolvimento préprio & consci- éncia que ocupa aqui o lugar de filosofia critica. Porém, ao voltar 20 ponto de vista da consciéneia, a uma espécie de teoria do conheci- ‘mento, Hegel nao se limita a acrescentar uma propedéutica ao saber absoluto de Schelling; modifica a prapria concepgao desse saber desse Absoluto. Em sua io sera apenas subs- ‘ancia, mas ainda, sult, Nis de stiperaro sspinosismo de Schelling: voltat ede Fichte. GvAbsolizo nie mals ctr, ent, para além de todo o saber ser saber de si no saber da consciéncia. O saber fenoménico sera o saber progressive que o Absoluto tem de si mesmo. Assim, a manifestacao ou 0 fendmeno que é para a consciéncia nao sero estranhos 8 es- sénciay desta, serao a revelagio. nversnmente, tials stone tania area Absoluto, Tal parece ser o sentido geral dessa 5 srt um momen pon” ‘to de vista do Eu ou an consciéncia, na filosofia do Absoluto de anv a pari, ndo da oaturera, as da constiencl, do Eu, aprofundando o subjetivismo de Fichte. 9 FELL. 24 G45), 4 Jean HyPpouire Que o ponto de vista da Fenomenologia corresponda a0 ponto de vista de uma filosofia da consciéncia, anterior ao saber da identi- dade, é algo de que o proprio Hegel di testemunho quando, na En- ciclopédia das ciencias filosoficas, observa que a Fenomenologia repre- senta exatamente a posicao de Kant e mesmo a de Fichte. “A filosofia Kantiana € uma fenomenologia", um saber do saber da conscién- cia, enquanto esse saber € somente para a consciéncia. Mas a Feno- ‘menologia constitui um momento essencial da vida do Absoluto, momento segundo o qual-o Absoluto é sujeito ou consciéncia de si A fenomenologia da consciéncia ndo esta ao lado do saber absoluto. Ela propria € uma “primeira parte da ciéncia’, porque é préprio & esséncig.de Absoluto manifestar-se & consciéncia, ser, ele mesino, consciéncia de si. Se contudo Hegel adora aqui, de certo modo, © ponto de vis- ta de Kant e de Fichte, pelo que precede ja se vé que seu estudo do saber fenoménico, de suas condicées subjetivas, serd diferente do es- tudo feito por eles. De uma parte, essa critica de seu proprio saber pela consciéncia ¢ considerada de modo original; de outta, amplia consideravelmente a nogdo de experiéncia, de tal modo que, em Hegel, a critica da experiéncia estende-se & experiéncia ética, jurfdi- ‘ca, teligiosa, ndo mais se limitando & experiéncia teorética, Em Kant, a critica do conhecimento era uma eritica efetuada pelo fil6sofo sobre a consciéncia comum e cientifica, no sentido de que tal ciéncia ndo era ainda sendo uma ciéncia fenoménica, aquela de Newton, diferente da metafisica, Nao era a consciéncia comum que se criticava a si mesma, mas a reflexao do filésofo que se acres- centava a essa consciéncia, O entendimento fenoménico, oposto & natureza, era entéo conduzido pela reflexao filoséfica a0 entendimen- to transcendental que funda toda experiéncia (teorética), como uni- dade originariamente sintétiea. Esse entendimento tornava-se, por- tanto, entendimento objetivo. O fildsofo descobria sua identidade com a objetividade dos abjetos. E assim que a experiéncia se demons- trava possivel. Em Fichte, na parte de sua Wissenschaftslehre da qual cle queria fazer uma *histéria pragmética do espicito humano” - ¢ que se denomina deducio da representagdo -, encontra-se um primei- ro modelo do que ser a Fenomenologia do espirito de Hegel. Nessa dedusio da representagao, Fichte se propée, com efeito, a conduzir a conscincia comum do saber sensivel imediato ao conhecimento 10 Hegel, Eneyclopiie(S..W., ed. Lasson, V, p. 370). GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 25 3 | de si filossfico. © que o filésofo atingira, por sua reflexio e na pri- meira parte da doutrina da ciéncia, deve ser reencontrado pela pro- pria consciéncia em seu desenvolvimento. "Nao ¢ mais", diz M. Guéroule, “9 filésofo que reflete de fora sobre 0 eu, & 0 eu inteligente que reflete realmente sobre si mesmo. Aqui comeca a histéria prag- matica do espirito humano. Quando o eu inteligente tiver apreendi- do a si mesmo na agao em que ele se determina como determinado pelo ndo-tu (isto é, coincida com o ponto de vista do filésofo sobre si), ele seré para si mesmo eu tedrico?.!! Em seu idealismo transcen- dental, seguinda as épocas da formagao da consciéncia de si filos6fi- ca, Schelling adotara a mesma démarche.!? Uma ver pressuposta 2 conscitncia de si filoséfica, tratava-se de fazer com que fosse reen- contrada pelo eu empitico. Mas precisamente nessas duas obras, . Nao é a experiéncia da consci- éncia comum que é levada em consideracdo, mas as refle neces- que ela é em si até aquilo que ela é para si, Pelo contrario, Hegel wratard de descrever a consciéncia comum, muito mais do que cons- ttuir tal consciéncia. O fildsofo desaparecera diante da experiéncia ‘que apreende. E verdadeiramente a propria consciéncia ingenua que fara sua experiéncia, ¢ assim vera transformar-se seu objeto ¢ a si mesma. A reflexao nao sera algo acrescentado a ela do exterior como em Kant, nem algo posto nela, de um modo mais ou menos attifici- al, como em Fichte ou mesma em Schelling; a reflexdo seré literal- ‘mente uma histéria dessa consciéncia. Em suma, sera interiorizada (Erinnerung), ao set recolhida no “meio” do pensamento filosfico. Teremos a ocasio de ver como é posstvel que o pensamento filoséfi- co nao intervenha ao descrever essa experiéncia da consciéncia. E Hegel insste. particularmente neste ponto: "N&o precisamos trazer conosco nossos padrées de medida, nem aplicar nossas idéias pesso- ais ou pensamentos no transcurso da investigacdo; pelo contrario, a0 afasta-os é que chegaremos a considerar a coisa como é em sie para si mesma”.!3 IL M, Gueoule, L'évoluton et La seuceure de la Doctrine de la Science chey Fishte, in: Publications de la Faculté de Strasbourg, 1930, lp. 225. 12 Schelling, Sameliche Werke, It 1B FE, 1 p.74 (1) 26 Jean Hyeroutre Esse cardter da fenomenologia hegeliana ~ que descreve no lugar de construir ¢ apresenta o desenvolvimento espontaneo de uma experiéncia tal como ela se da a si - causou muito espanto aos comentadores.'4 Se as diferencas nao fossem ainda mais profundas, teria uma natureza tal que seria possivel aproximar a Fenomenologia de Hegel da fenomenologia de Husserl. Hegel quer nos conduzir do saber empfrico ao saber filossfico, da certeza sensivel ao saber abso- luto, indo verdadeiramente “as proprias coisas", considerando a cons- cigncia tal como ela se oferece diretamente. Assim esta Fenomenolo- sia, que se apresenta verdadeicamente como uma histéria da alma, € diferente da deducto da representacto de Fichte ox do idealismo trans- cendentalde Schelling. rc Difere ainda em outso ponto ndo menos importante. A expe- riencia que a consciéncia faz aqui néo € somente a experiéncia teorética, 0 saber do objeto; mas toda a experitncia. Trata-se de con- siderar a vida da consciéncia tanto a0 conhecer o mundo como ob- jeto de ciéncia quanto ao conhecer-se a si mesma como vida, ou ain- da quando ela se propée uma meta. Todas as formas de experiéncias éticas, juridicas, religiosas encontrario seu lugar, visto que se trata de considerar a experiéncia da consciéncia em geral. O problema de Kant ~ "como a experiéncia é possivel?” - € aqui considerado da maneira mais geral. E se ha pouco tencionévamos aproximar a Feno- ‘menologia de Hegel daquela de Husserl, podemos agora descobrir uma reaproximagdo com as filosofias existenciais que florescem em nos- 08 dias. Em muitos casos, 20 descobrir a experiéncia feita pela cons- cigncia, Hegel descreve uma maneira de existir, uma particular vi- sio de mundo; contrariamente porém a filosofia existencial, ele nao se detém nessa mesma existéncia; Hegel vé af um momento que, em sua superaedo, permite atingir um saber absoluto. E precisamente neste tltimo ponto que Kierkegaard vai se opor a Hegel. Considerando pois a experiéncia que a consciéncia faz em toda sua amplitude, deixando essa consciéncia experimentar-se a si mes- ma bem como promover seu prdprio saber de si e do mundo, Hegel | pode dizer da Fenomenologia assim compreendida:/“Esta apresenta- 40 pode ser considerada como 0 caminho da consciéncia natural 14 Cf. em particular N. Hartmann, Die Philosophie des deueschen Idealism (Il, 1. 80-1), eo artigo da mesmo autor na Rewe de Métaphysique et Morale, em ‘nimero especial consagrado a Hegel (1931, 3, p. 285). GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 1 que se submete a um impulso, 0 qual a incita rumo ao verdadeiro saber; ou ainda, como o caminho da alma que percorre a série de suas formagbes enquanto estagses que lhe so prescritas por sua pré- pria naturesa; percorre-as para se purificar rumo ao espirito e, atrar vvés da cempleta experigncia de si mesma, chegar ao conhecimento do que ela é em si mesma*.! * 1.2, A CULTURA DA CONSCHENCIA NATURAL. JDESENVOLVIMENTO E TERMINO DESSE DESENVOLVIMENTO Portanto, a Fenomenologia ¢ 0 itinerério da alma que se eleva ‘a0 espirito pelo intermédio da consciéncia. Sem diivida, a idéia de se- melhante itinerdrio foi sugerida a Hegel pelas obras filosdficas que mencionamos acima. Igualmente importante, porém, nos parece ter sido a influéncia dos “romances de formacio” da época. Hegel lera o Emilio de Rousseau em Tibingen: nesta obra encontrar uma pri- meira histéria da consciéncia natural a elevar-se por si mesma até a liberdade, por meio das experiéncias que lhe so prdprias e que so particularmente formadoras. O Prefaicio da Fenomenologia insistira no cardter pedagégico da obra, na relacao entre a evolugao do indivi- duo ¢ a evolugio da espécie, relacao que também a obra de Rousseau considerava. Em seu estudo sobre o idealisma alemae,-Rayce insiste. no Wilheim Meister de-Goethe,-obra-que-o_m« ymantico de lena considerava um dos acontecimentos essenciais da époc ‘bém no Heinrich von Ofterdingen de Novalis'6, o qual constitui uma réplica da obra de Goethe. Em ambas as obras, o herdi se entrega inteiramente a sua con- vicedo: W. Meister acredita em sua vocagio teatral, H. von Ofter- dingen deixa-se evar pelo meio prosaico no qual ainda vive; um & ‘outro, através de uma seqiiéncia de experiéncias, chegam a aban- donar suas convicgdes primeiras. O que era para eles uma verdade torna-se uma ilusio; mas enquanto W. Meister de Goethe deixa, por assim dizer, 0 mundo poético pelo mundo prosaico, H. von Ofterdingen de Novalis descobre, progressivamente, que somente o 15 FE, I, p- 69 (66). 16 Royce, Lecture on moder idealism, NewHaven, 1919. 2B Jean Hyero.ire mundo poético é a verdade absoluta. A Fenomenologia de Hegel é, por seu turno, o romance de formagao filoséfica: segue o desenvolvi- mento da consciéncia que, renunciando as suas convicgdes primei- ras, atinge através de suas experiéncias o ponto de vista propriamente filossfico, aquele do saber absoluto. Segundo Hegel, contudo, tal histéria da consciéncia nao é um romance, ‘mas uma obra cientifica, O desenvolvimento da conscién- cia apresenta uma necessidade em si mesmo. Seu término nao € ar- bitratio, embora nao esteja pressuposto pelo fil6sofo; resulta da pré- pria natureza da consciéncia. A) O DESENVOLVIMENTO, SUA NECESSIDADE. - Sendo a Fe- nomenologia um estudo das experiéncias da consciéncia, conduz sem cessar a conseqiéncias negativas. Aquilo que a consciéncia toma como a verdade se revela ilusério; portanto, é preciso que abandone sua convicedo primeira e passe a uma outra: “este caminho é, por- tanto, 0 caminho da duvida ou propriamente do desespero®.{? Schelling jé dissera que o idealismo transcendental comecava neces- sariamente pela duivida universal, uma diivida que se estende a toda realidade objetiva: "Se para a filosofia transcendental o subjetivo € 0 primeiro, 0 nico fundamento de toda a vealidade, o nico princtpio com 0 auxilio do qual tudo se possa explicar, a filosofia transcen- dental comeca necessariamente pela chivida universal da realidade do objetivo".'® Essa divida com a qual Descartes inaugurava a filo- sofia moderna ¢ considerada por Schelling o meio necessério para cevitar, no idealismo transcendental, qualquer mescla do objetivo com © puro principio subjetivo do conhecimento. Ao contratio, a filoso- fia da natureza procura eliminar o subjetivo; a filosofia transcenden- tal trata de liberé-lo absolutamente. Todavia, Hegel, que parte da conscigncia comum, no poderia por como primeira essa divida uni versal que ¢ propria somente a reflexao filosdfica. E porisso-que-opde,— a.uma diivida sistemética-e-universal,a-evolucda concreta da.cons- ciéncia que aprende de modo progressivo a duvidar daguil ‘etiormente tomava por verdadeiro.O caminho g gue se cia. éa histor jue an- tora bormenorizada de sua fermagao." © cain I que segue a consciéncia, seu itineré- 17 FE, 1, p. 69 (66). 18 Schelling, S. Werke, op. cit, Tp. 343. 19 FE, 1, p, 70060) OENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 29 tio préprio, e nao aquele do filésofo que toma a resolugao de duvi- dar. Em face dessa resolucio por meio da qual a consciéncta se purif- cca de uma s6 ver de todos os seus prejuizos - e em particular daque- le, fundamental, da existéncia de coisas fora de nés, independentes do conhecimento -, a Fenomenologia é uma histéria conereta da cons- ) Que essa exigencia seja 0 proprio cariter da consciéncia, o que faz com que a consciéncia nao seja um ser-af determinado ou um ser natural, parece claramente indicado no texto seguinte: “o que esta limitado 2 uma vida natural nao pade por si mesmo ir além de seu ser-ai imediato, mas é impulsionado além desse ser-ai por um outro, e esse serarrancado de sua posigao é sua morte. Mas a consciéncia 6 para si mesma, seu proprio conceito [..)". O Dasein, ser-ai, nao é sendo aquilo que ele €: seu conceito ~ ¢ empregando a terminologia hegeliana - esta completamente fora de si; 0 Dasein pertence, por- tanto, & natureza. A tradugéo, ‘ser-ai”, que corresponde a sigaifica- 30 FE, I, p 71 (68), 31 Decertc, ha também diferengas no Loges, assim como um movimento ima rence a3 Loges, uma dialeica da Léa diferente da dialetica fenomenols- ica; mas tis diferengas do Logos sho diferencas "no eontedclo mesmo” (Sobre tee problema particularmente delicado, ef. nossa conclusio final: *Feno- ‘menclogiae Légies” 32 FE, I, p 71 (68), 34 Jean Hyeeoutre cao etimolégica, pareceu-nos ter @ mérito de designar essa posico do ser natural, a qual nao é sendo um aqui e um agora, e que tem fora de si outros “agoras” e outros “aquis”. A negagao do ser-at, que deve necessariamente se produzir em rarao de sua finitude, ¢ uma negasdo que Ihe ¢ estranha, que nao esta nele para ele mesmo. Mas indo € isso que ocorre com a consciéncia, que é para si mesma seu proprio conceito, ou seja, que é para si mesma a negagio de suas formas limitadas ou, se se quiser, de sua propria morte. Enquanto a morte é na natureza uma negacio exterior, 0 espirito traz a morte nele proprio e a ela confere um sentido positive. Toda a Fenomenolo- ia seri uma meditagao sobre essa morte de que a consciéncia € por- tadora g.que, longe de ser exclusivamente negativa, o fim no nada abserato, € pelo contrério uma Aujhebung, uma ascenséo. Hegel o diz expressamente num texto da Fenomenologia, a propésito da luca das consciéncias de si que se confrontam na vida natural: “Sua op0- sigdo € a negagso abstrata, ndo a negagdo da consciéncia que supri- me de tal modo que conserva e retém o que é suprimido; pot isso mesmo, sobrevive a0 fato de vir a ser suprimida’.» E, a propésito do espirito ético, Hegel dirs, do culto aos mortos na Cidade Antiga, que este tem por fim demover a morte a natureza, com vistas a dela fazer o que ela realmente é para o homem, uma operacao da conscién- cia de si. A morte do ser-af natural é apenas, portanto, essa negagio abstrata de um termo A, que é unicamente aquilo que ele é; na cons- ciéncia, todavia, a morte é um momento necessario por meio do qual a consciéncia sobrevive e se eleva a uma forma nova. Essa morte € 0 comego de uma nova vida da consciéncia. Assim, sendo para si ‘mesma seu préprio conceito, a consciéncia transcende-se incessante- mente a si mesma, € a morte daquilo que ela tomava como sua ver- dade é o aparecimento de uma nova verdade: “A consciéncia sofre, portanto, essa violencia que vem dela mesma, violéncia pela qual cla estraga toda satisfagao limitada”. Essa angistia ~ que possui a consciéncia humana ¢ a impulsiona sempre adiante de si mesma, até que deixe de ser uma conscigncia humana, um entendimento huma- no como é 6 caso em Kant, mas que atinge o saber absoluto, 0 qual, 33 FE, 1, p. 160 (129). ~ CF. também o Proftcio: FE, 1, p.29 G8). 34 Em seu livro sobre o Idealismo alemdo, Royce, a propésito da sucessio das figuras da Fenomenalagia de Hegel, fala de metempsicose 35 FE,1,p. 71 (68). GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 35 0 mesmo tempo que € saber do objeto € saber de si, ao mesmo tem- po que é saber de si é saber do objeto - nfo é somente, como jé 0 assinalamos, uma angiistia na ordem do conhecimento, mas ainda, como tende a provar toda a Fenomenologia, uma angustia existen- cial. "Mas essa anguistia nao pode ser apaziguada; em vo quer se fixar numa inércia sem pensamento, 0 pensamento perturba enti a auséncia de pensamento, e seu desassassego estorva essa inércia; em vio ela se aferra a uma certa forma de sentimentalidade que garante achar tudo bom a seu modo: essa garantia sofre tamanha violéncia por parte da razao, que acha que algo nao é bom, precisemente en- quanto for um moda". Observou-se freqiientemente que a Fenome- nologia é menos uma reducao da experiéncia da vida da consciéncia cm termes l6gicos do que uma descricao dessa vida que assume uma certa forma logica.” Vemos como a negacdo é interpretada na In- teodugio.e como ¢ assimilada aquilo que é a morte na vida humana. De resto, a dialética € definida na Introdugao como a prépria experi- éncia da consciéncia. 1,3. A TECNICA DO DESENVOLVIMENTO FENOMENOLOGICO. Este € precisamente o tltimo ponto que nos resta examinar. Qual é 0 método do desenvolvimento? Fichte, na deducio da repre: sentagéo, 2 Schelling, no sistema do idealismo transcendental, ja havi- am indicado uma démarche da consciéncia que a conduz ao saber filoséfico, ao saber de si. Schelling, que segue Fichte neste ponto, de- fine o idealismo transcendental nos seguintes termos: “Se, para o fi- lésofo transcendental, 56 0 subjetivo cem uma realidade primeira, 36 se ocupard imediatamente do subjetivo no saber, o qual constituird seu objeto. S6 indiretamente é que 0 objetivo se tornard objeto pata le e, encuanto no saber comum, o proprio saber (o ato de saber) desaparece diante do objeto, reciprocamente, no saber transcenden- tal, o objeto desaparecers enquanto objeto, restando somente o ato pelo qual o saber se opera. O saber transcendental é, portanto, um 36 FE, 1, p.71 (68), 37 Por exemplo, Royce, op cit; Glockner, ao opor o “pantragiemo e o panlo- sssmo" de Hegel em seu Hegel; N. Hartmann em sua Teoria de uma dialti- ca do real em Hegel (op. cit, p. 155); ec. 36 Jean Hyproutre saber do saber enquanto saber puramente subjetivo"*E o saber do saber (a consciéncia de si), pressuposto inicialmente pelo filésofo, que a conseiéneia comum deve reencontrar no término de seu desenvol- vimento, © mesmo ocorre em Fichte e ~ isso é caracteristico de seu {dealismo subjetivo - o eu sempre permanece ocupado consigo mes- mo. Se a consciéncia comum se perde em seu objeto, deve sentir que sente: vai sentir-se a si mesma, intuir-se na intuicao, saber-se em sua representaciio. Assim, chega a ser para si aquilo que € em si, ou seja, aquilo que é para o filosofo, e o saber do saber, enquanto puramen- te subjetivo, é decerto o término de sua evolugao. A consciéncia sem- pre reflete sobre si mesma, encontra-se a si mesma no objeto que acre- dicava thicontrar; mas dese modo o objeto ~ a natureza, o mundo ou qualquer que seja a denominacao que se queira dar a esse termo da consciéncia ~ desaparece. A reflexao é sempre uma reflexio sobre si, 86 sabe reencontrar 0 eu em sua aridez.!” Todavia, o idealismo hegeliano € de uma ordem inteiramente distinta: leva a sério a teo- ria da identidade da qual o proprio Schelling no viu 0 partido que podcria tirar. “Pelo contrario, o conhecimento cientifico exige o aban- dona a vida do objeto; ou, © auc significa a mesma coisa, que se tenha presente ¢ se exprima a necessidade interior desse abjeto."!° Decerto o objeto do fildsofo € aqui 0 saber da consciéncia comum; porém, deve tomé-lo tal como se oferece e nele néo intervir. E por essa via que o idealismd.— admitido ainda por Schelling paca a se- gunda ciéncia de sua filosofia, a que parte do subjetivo ~ é superado sem deixar de ser um idealismo objetivo. Nao se traca de um jogo de palavras. A diferenca é profunda e nela importa insistir. Tanto para Schelling como para Fichte, apesar de sua teoria da identidade entre © subjetivo e 0 objetivo no saber, 0 idealismo transcendental € um “saber do saber enguanto puramente subjetivo’; o retorno A identi- dade sera efetuado em seguida de um modo mais ou menos artifici- al, Nao ocorre o mesmo para Hegel. A consciéncia é tomada como cla se da, ¢ ela ge da como uma relacio com o Outro, © objeto, mun- do ou natureza. E bem verdade que este saber do Outro é um saber de si, Nao € menos verdade, porém, que este saber de si seja um sa- ber do Outro, do mundo. Assim, nos diversos objetos da conscién- cia descobrimos aquilo que ela prépria é: “o mundo é 0 espelho em 38 Schelling, S. Werke, Il, p. 34. 39 A expresso ¢ de Hegel; cf. FE, I, p. 72 (68). 40 FE, 1, p. 47 G1). GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 37 que encontramos a nds mesmos”. Portanto, nao se trata de opor o saber do saber ao saber do Outro, mas de descobrir sua identidade. Eis um novo modo de estudar a conscitncia e suas metamorfoses, como observa justamente Hartmann: “Esse novo caminho é a pro: ria descoberta de Hegel, um novum na filosofia, um caminho da concepcto de si da consciéncia em suas transformagées sobre o fun- damento da concepgio de seus objetos em suas transformacses"! Se quisermos conceber a consciéncia, perguntemas 0 que é 0 mundo para ela, o que a-consciéncia oferece como sua verdade. Em seu ob- jeto encontraremos objetivamente a ela mesma, ¢ na historia de seus “objetos € sua propria historia que vamos ler. Inversamente, ¢ isto se vvincula ao idealismo subjetivo, a conscigncia deve descobrir que tal historia € a sua e que, a0 conceber seu objeto, concebe-se a si mes- ma. Ao termino da fenomenologia, o saber do saber nao se opora a nada mais: com efeito, apds a propria evolucao da consciéncia, sera saber de sie saber do objeto; e como este objeto, o Absoluto de Hegel, €0 espirito em sua plena riqueza, serd possivel dizer que é o espirito ‘que se sabe a si mesmo na consciéncia, e que a consciéncia se sabe como espitito. Enguanto saber de si, sera, nao 0 Absoluto para além de toda reflexto, mas o Absoluto que se reflete em si mesmo. Neste sentido, sera Sujeito e nao apenas Substancia.!? E precisamente neste panto que a filosofia hegeliana, como fenomenclogia, difere da reflexdo kantiana € também do idealismo transcendental de Schelling. Citamos um texto de Schelling que de- fine o idealismo transcendental como © ponto de vista do saber do saber enquanto puramente subjetivo. Com efeito, Schelling comega supondo a consciéncia de si filasofica - aquilo que Hegel denamina 1 ciéncia ~ e mostra como a conscigncia comum, refletindo sobre si mesma, deve atingir a ciéneia jé posta. Trata-se de medir o saber empirico com a verdade filosdfica; "mas nesse ponto, onde a ciéncia apenas esté surgindo, nem ela nema seja o que for se justfica como a ssséncia ou o emi, Ora, sem isso, parece que nenhum exame pode ter lugar’? 41 N, Haremann, op ct. I, p. 80. 42 CE. 0 Prchicio da FE, I, p. 17 (29) “Segundo meu modo dle ver, que ser justfieado somense na apresentacio do sistema, tudo depende deste panto fessencial: apreender ¢ exprimir o Verdadeiro, ado como substincia, mas precisamente, também, como Sujeito[..." E na pagina 21 (32): "A necess dade de representar o Absoluto como sujeit [ 43 FE, 1, p. 72.69), 38 Jean Hyevouire Com efeito, é preciso tomar a consciéneia tal como se apre- senta, sem ainda interpreté-la. Ora, existem nela dois momentos: ter consciéncia é distinguie de si aquilo de que se tem consciéncia, dis- tinguir e 20 mesmo tempo relacionar-se com isso. "A consciéncia di ringue algo de si e 20 mesmo tempo se relaciona com ele." O ser para a consciéncia € para ela, e ela o poe a0 mesmo tempo como sendo em si, como estando fora desse relacionamento: “o lado desse em-si chama-se Verdade?."? Assim, a consciéncia sabe alguma coisa, rem uma certeza, e aspira a uma Verdade que é independente de sua certeza. Ora, se n6s ~ isto 6, 0 filésofo ~ consideramos o saber como rosso objeto, seu emsi € seu ser-para-nés. A Verdade do saber radi- ca ent no Saber do saber, na consciéncia filoséfica. A medida do saber da cansciéncia comum ¢ 0 saber do saber que, desde 0 ponto de partida, Fichte e Schelling pressupunham, Mas nesse caso tal me- dida pertence consciéncia filosfica, ndo 4 consciéncia comum. A ‘medida Ihe € imposca do exterior e nao se vé como estaria obrigada a aceitécla: “A esséncia ou a medida radicariam em nos, e aquilo que deveria ser comparado com a medida, aquilo acerca do qual uma decisio deveria ser tomada apés essa comparacao, nfo teria necessa- riamente de reconhecer a medida”.¥* E por isso que o saber fenomé- nico deve experimentar-se a si mesmo; 0 fildsofo deve ser apenas 0 espectador de sua experiencia Efetivamente, a medida de que se serve a consciéncia nao ra- dica fora dela, num saber filosofico que ainda Ihe é estranho; a me- dida radia na consciéncia. “A consciéncia fornece, em si mesma, sua propria medida; motivo pelo qual a investigacao se torna uma comparagio de si consigo mesma".*? Com efeito, €2 consciéncia que poe um momento da verdade e um momento do saber € que os dis- ringue um do outro. Ao designar aquilo que para ela mesma é a Ver- dade, fornece a medida de seu proprio saber. Trata-se entio de assis- tir a sua experiéncia, que é uma comparacao entre aquilo que para cla é.a Verdade, 0 envsi, e 0 saber que tem acerca desta tiltima, “No que a consciéncia designa no interior de si como 0 em-si ou como o verdadeiro, vemos a medida que ela mesma estabelece para medir 441 FE,1, p. 72 (62). 45 FE,I, p. 73 (69). 46 FE, 1, p. 73 (69) AT FE, 1, p. 73.6), GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 39 ‘saber.™® Uma consciéncia particular, como aquelas que vamos “encontrar no curso do desenvolvimento fenomenol6gico, caracteri- “fase por uma certa estrutura, E uma forma, ou melhor, uma figura da consciéncia (Gestalt). Tal figura € tanto objetiva como subjetiva ara cla, c Verdadeiro é um certo mundo posto camo sendo em si, é ‘ imediater sensivel ou a Coisa da percepsio, a Forsa ou ainda a ida; porém, com o Verdadeiro se relaciona um certo saber que é saber desse Verdadeiro, desse objeto posto como sendo em si. Tam: bem se pose denominar o saber como conceita, e 6 Verdadeira como objeto; ou, pelo contréio, 0 Verdadeiro como conecito, ¢ © saber ‘como objeto, isto é, objeto tal como é para um outro; ndo deixa de hhaver uma diferenga que é a alma do desenvolvimento dessa figura. *O exame consiste em ver se 0 conceito corresponde 20 objeto, ou se ‘objeto corresponde a seu conceito.”? A teoria do conhecimento é a0 mesmo tempo teoria do objeto do conhecimento. Nao se pode separar a consciéncia daquilo que para ela é seu objeto, daquilo que toma corto o Verdadeiro; porém, se a consciéncia é consciéncia do objeto, é também consciéncia de si mesma. Ambos os momentos r2- dicam nela e so diferentes: *€ consciéncia daquilo que é 0 Verda- deito, e consciéncia de seu saber dessa verdade”. Mas ambos os mo- mentos relacionam-se um com 0 outro ¢ este relacionamento é precisamente 0 que se denomina a experiencia. A conscigncia experi- menta seu saber naquilo que toma como o verdadeiro; enquanto ain- dda for consciéncia finita, uma figuea particular, vé-se obrigada a su- pperat-se asi mesma. Seu saber do Verdadeiro muda quando descobre a inadequagiio nele presente. Em seu objeto, faz a experiéncia de si, fe em seu saber, a experitneia de seu objeto. Assim, progride por si mesma, de uma a outra figura particular, sem que o fildsofo tenha, outra fungio sendo a de ser o espectadior na recolecao desse proces- s0: “no epenas néo temos de intervir nesse ponto de vista em que conceito ¢ objeto, a medida e a matéria por ser examinada estéo pre- sentes na prépria consciéncia; mas ainda, estamos dispensados da fadiga da comparacéo entre os dois e do exame no sentido estrito do termo. Assim, quando a consciéncia examina-se a si mesma, S6 nos resta 0 puro ato de ver 0 que se passa”. 48 FE,1, p. 3.70). 49 FE, 1, p. 734 (70) 50 FE, I, p.74 70) | i | i 40 Jean Hyerourre Ja indicamos que a experigncia no se refere somente ao sa- ber, mas ainda 20 objeto, pois tal saber particular é saber de um ob- jeto. A consciéncia pée & prova seu saber para tornd-lo adequado Aquilo que toma como sendo 0 verdadeiro - um certo mundo posto como sendo em si -, porém, na mudanga de seu saber, muda igual- mente o objeto. Ele era o objeto ce um certo saber; visto que o saber tornow-se outro, também outro tornou-se 0 objeto. Com efeito, quan- do a consciéncia pée & prova o saber que tem de seu objeto, aquilo ‘que tomava como 0 emsi, posto como se fosse o verdadeiro absolu- to, € descoberto coma algo que era em si somente para ela. Tal era precisamente o resultado da experiéncia: a negagao do objeto prece dente e°8"aparecimento de um novo objeto, que, por seu curno, da rigem a um novo saber. Pois “a medida do exame se modifica quan- do © objeto, cujo padrio deveria ser, ndo subsiste no curso do exa- me, @ 0 exame nao é sé um exame do saber, mas também de sua unidade de medida"! A teoria do conhecimento é portanto, 20 mesmo tempo, uma ceoria de seu objeto. “Esse movimento dialético que a consciéncia exerce em si mes- ma, tanto em seu saber como em seu objeto, enquanto dele surge 0 novo objeto verdadeiro para a consciéncia, ¢ justamente o que se de- nomina experiéncia."® Nesta definicao, Hegel assimila a experiencia feita pela consciéncia a uma dialética; inversamente, porém, faz com que compreendamos como a dialética, sobretudo na Fenomenologéa, € propriamence uma experiéncia. Entretanto, hé uma diferenca en- wea dialética e a experiencia feita pela consciencia. A reflexao sobre ssa diferenga nos levaré a compreender por que a fenomenclogia pode ser também uma ciéncia e apresentar uma necessidade que s6 xem significasio para a consciéneia filoséfica, no para a propria cons- cigncia que esta engajada na experiéncia. Na experiéncia, no sentido usual do termo a consciéncia vé desaparecer aguilo que até entéo tomava como o Verdadeiro eo em- si, mas ao mesmo tempo vé aparecer, como se fosse uma coisa nova, encontrada, um objeto diferente.” “Esse novo objeto contém 0 ani- quilamenco do primeiro, é a experiéncia feita sobre ele.”*' Para a cons- 51 FE, 1, p. 75 (2. 52 FE, 1, p. 75 (1). 53 Tal é, als, o sentido usual da palaven “espesiéncia". Na experiéncia, a cons- cgncia ve aparecer algo de novo que a ela se opde, um objeto. Porém, para a consciénciafilosifica, tal objeto (Gegenstand) & engendrados ela 0 vé nascer do movimento anterior (Entstandenes), ao passo que a consciéncia fenoméni- GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 41 ciéncia, porém, parece tratar-se de outra coisa; apds ter renegado sua primeira Verdade, acredita descobrir uma segunda inteiramente dis- tinta. E por isso que, opondo-se a si, pde como objeto ~ Gegenstand, € nao como o que resulta do movimento anterior ~ aquilo que dele nasce (En:tandenes e nao mais Gegenstand). Assim, a experiéncia apa- rece para a consciéncia como uma descoberta de novos mundos, € isto assim ocorre porque esquece seu vira-ser: tal como 0 ceticismo, 86 vé 0 resultado negativo de sua experiéncia anterior; voltada para seu futuro e nao para seu passado, ndo pode compreender como tal experiéncia era uma génese daquilo que, para ela, € um novo objeto. E por isso que a necessidade da experiéncia feita pela consci- éncia se apresenta sob dupla luz, ou antes, ha duas necessidades: a da negacio do objeto efetuada pela propria consciéncia em sua ex- perigncia, no experimento de seu saber; a do aparecimento do novo objeto que se configura por meio da experiéncia anterior.%° Esta se- gunda necessidade 86 pertence a0 fildsofo que repensa o desenvolvi- mento feromenolégico: ha um momento do em-si ou do "para nds que nao se encontra na consciéncia: “Esta circunstancia é que acom- panha a sucesso completa das figuras da consciéncia em sua neces- sidade. Mas essa mesma necessidade ~ ou @ nascimento do novo ob- jeto ~ se apresenta & consciéncia sem que ela saiba como the acontece. Para nés, é como se isso Ihe transcorresse pelas costas. Assim, no movimento da consciéncia se produz um momento do ser-em-si ou do ser-para-nés - isto é: 0 filésofo -, momento que n&o esta presente para a consciéncia, pois ela mesma est mergulhada na experiéncia®.*® Decerto, 0 contetido € para ela; ndo, todavia, a sua génese. Tudo se passa como se a consciéncia esquecesse seu prdprio vir-a-ser, que, em cada momento particular, faz com que ela seja o que é, “Para ela, 0 que nasceu s6 & como objeto (Gegenstand); para nds, € a0 mesmo tem- po como movimento e vir-a-ser."57 «a esquece tal passado, Ela sempre recomega 2 cada experiéneis, como se nascesse de novo. 54 FE, 1p. 75.00. 55 Seria peasvel cenominar ral necessidade como retrospective 56 FE, I, p. 76-7 (72). 51 FE, 1 p.77 (72). A Fenomenologa ¢ teri do conheciment ¢ filsofa expec letivd a¢ mesmo tempo; mas ela 36 ¢flosofa especulativa para nds (CI. so bye este ponto nossa conclusio: “Fenomerologia e Légica") ~ Isto quer der que a Fenomenaogia de Hegel é, ao mesmo tempo, desrgto da conseiéncia Fenomériea ¢compreensda dessa conscienca peo filsafo 2 Jean Hyerouire Basta tomar alguns capitulos da Fenomenologia para perceber cefetivamente que cada momento é 0 resultado de um vir-a-ser que a propria consciéncia ignora. Somente 0 filésofo vé na Forca, objeto do entendimento, o resultado do movimento da consciéncia percipi- ente, ou ainda na Vida, que é como um objeto novo, o resultado da dialética do infinito prdpria a0 entendimento. Assim, as diversas consciéncias particulares que se encontram na Fenomenologia se vin- culam umas as outras, ndo por um vira-ser contingente, 0 que s entende ordinariamente por experiéncia, mas por uma necessidade imanente que s6 é para 0 fildsofo. "E por essa necessidade que 0 ca- minho para a ciéncia ji é, ee préprio, ciéncia, e portanto, segundo seu canteiido, é ciéncia da experiéncia da conscigncia."®® 58 FE, 1, p. 77 (72). Na Fenomenologia, portanto, a sucessio das experitncias da conscléneia 36 ¢ contingente para a consciéncia fenomenica. Nés, que reco- hemos tois experiencins, descobrimos a0 mesmo tempo a necesidade da progressio, que vai de urna a ourra. O que demonstra a Fenomenologia & 2 imanencia de toda a experiencia & consciéncia. Alias, preciso reconhecer ‘que tal necessidade (sintética) nem sempre ¢ facilmente apreensivel, e, para 6 leitor modesno, « passagem parece is vezesarbitrdria. Esta passagem pe, ademais, o problema das relagées entre a histria © a Fenomenologi. CAPITULO 2 HISTORIA E “FENOMENOLOGIA” 2,1. 0 ESPIRITO £ HISTORIA ANTES de estudar a estrutura da Fenomenologia, pée-se uma questdo que € impossivel eludir. A Fenomenologia é uma historia da Humanidade ou pretende pelo menos ser uma filosofia dessa hist6- ria? Jé em seu sistema do Idealismo transcendental, Schelling pée em termos muito gerais o problema que uma filosofia da historia deve resolver. Nao € intitil retomar aqui as indicaedes ~ pois sio apenas inclicagées ~ que esse sistema contém, a fim de melhor aperceber as semelhangas ¢ as diferencas entre a Fenomenologia e uma similar filo- sofia da historia, Schelling se poe a questo ce uma *possibilidade transcenden- tal da histéria"™, questo que deve conduzi-lo a uma filosofia da his- tria, a qual serd para a filosofia pratica aquilo que a natureza é para a filosofia teérica. Na natureza, com efeito, as categorias da inteli- géncia se encontram realizadas; na hist6ria, as da vontade encon- tram sua expresso. Para um individuo determinado, o ideal prati- co, 0 de uma ordem do direico cosmopolita, nto € sendo um ideal Jonginguo cuja realizacao depende nao somente de seu livre-arbitrio, mas do livre-arbiteio dos outros seres racionais. Logo, a historia tem por objetc a espécie e ni o individuo: “com efeito, todas as minhas agdes chegam, em ultima instancia, a um resultado cuja realizagéo info pode ser atingida por um tinico individuo, mas por toda a espé cie”.? S6 ha, portanto, histéria da Humanidade. Ora, essa historia 1. Schelling, op. ie, MI, 590. 2 Ibid, p. 5396, 44 Jean Hyepouire da Humanidade s6 é possivel sob a condigao de que, nela, a necessi- dade se encantre reconciliada com a liberdade, © objetivo com o sub- jetivo, o inconsciente com o consciente. Em outros termos: "a liber- dade deve ser garantida por uma ordem to manifesta ¢ to imutével quanto a da natureza’.’ A historia deve ter um sentido. Nela, a li berdade deve ser necessariamente cealizada: o arbitrio do individuo nao deve desempenhar senao um papel episédico e fragmentério. Para que haja verdadeicamente uma histéria da humanidade, que seja para a filosofia pratica aquilo que a naturera é para a filosofia teérica, é necessério que a aco consciente das individualidades se retina a uma cao inconsciente. Essa identidade do livre-arbitrio e da necessidade 6 que:permite a Schelling reencontrar se Absoluto na histéria ¢ ver, nela, no somente uma obra dos homens sem garantia de eficé- cia permanente, mas uma manifestagéo ou revelagao do préprio Absoluto. “A nevessidade deve ser na liberdade (iss0 significa: por minha liberdade), e, enquanto creo agir livremente, deve produzit- se inconscientemente (isto é: sem minha participacdo) algo que nao prevejo; em outros termos, i atividade consciente, a essa atividade ‘que determina liveemente, }é deduzica, deve ser oposta uma ativida- de inconsciente pela qual, & manifestacio exterior mais ilimitada da liberdade, vena se associar, sem que 0 autor da agao se dé conta, sem que 0 queira de algum modo e talvez mesmo contra sua vonta- de, um resultado que jamais poderia realizar por sua voncade."4 Fa- cilmente se apreende aqui a diferenca entre o ponto de vista de Fichte, que permanece em uma ordem moral do mundo ~ a qual deve ser mas nao é necessariamente ~ eo ponto de vista de Schelling, que reencontra na histsria uma realizagao efetiva e necesséria ~ destino ou providéncia ~ da propria liberdade, Neste ponto Hegel seguir Schelling. Nas paixdes humanas,'nas metas individuais que os ho- mens acreditam perseguir, ele nao verd sendo as astticias da razdo que, por esse meio, chega a se realizar efetivamente. A histéria é uma teodictia: a expressia, antes de ser de Hegel, pertence a Schelling. Mas se assim Schelling indica a possibilidade de uma filosofia da hist6ria, ele proprio nao a realiza. Contenta-se com reencontrar na hiseéria essa identidade entre 0 subjetivo e o abjetivo (que é para 3 "Ibid, p, 593, ~ Acerca dos antecedentes desse pensamento histérico na flo- sofia alema, a origem leibnisiana dessa finalidade a histéria, cf. M. Guéroult, L'évolution de la dccrne de la science, 1930, I, p. 8€ 55. 4 Schelling, op. cit, I p. 594 GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 5 ele 0 Absoluto), sem nos mostrar como tal Absoluto é levado a se refletir ou a se manifestar precisamente sob a forma de uma historia ‘Com efei:o, como essa sintese da atividade consciente e da atividade inconsciente € possivel! Ela ¢ posta ou pressuposta por Schelling: “uma tal harmonia preestabelecida entre o objetivo (aquilo que € conforme lei) ¢ 0 determinante (aquilo que ¢ livre) s6 pode ser con- cebida por meio cle um termo superior elevado acima de ambos que, portanto, ndo é nem inteligéncia nem liberdade, mas que é, simulta. eamente, a fonte comum entre aquilo que é inteligivel e aguilo que élivre".5 O préprio modo pelo qual Schelling pée o problema o con- duz a separar, radicalmente, o Absoluto da reflexiio que aparece na consciéncia, a esséncia de sua manifestasao. O texto que vamos ci- tar mostra isso, talvez com nitider ainda maior: “Se agora esse termo superior ndo € outra coisa senio o principio da identidade entre o absolutamente subjetivo e o absolutamente objetivo, o consciente € © inconsciente que se dividem na agdo livre para se manifestar, en- lo esse mesmo termo superior nao pode ser nem sujeito nem obje- 10, nem ambos simultaneamente, ele ndo sento a identidade abso- luca na qual nao hé dualidade e que, precisamente porque a dualidade ¢ a condigao de toda a consciéncia, nao pode jamais che- gar A consciéncia” 6 © Absolute de Schelling, condicio da historia, é portanto cle- vado acima da prépria histéria. Sem diivida Schelling escreve, em f6rmula muito proxima a de Hegel, que “a histéria, considerada em seu conjunto, € uma revelacio continua e progeessiva do Absoluto"; ‘mas nao chega nem a levar a sécio essa afirmagao, nem a tirar dela ‘uma verdadeira filosofia do espirito na historia. A histéria é para ele uma manifestacéo do Absoluto, da mesma maneira que o é a natu- reza, ¢ esse Absoluto niio conhece em si mesmo a reflexdo que daria lugar aquilo que Hegel denomina um Sujeito, “Segundo meu modo de ver - cue seré justificado somente na apresentacio do sistema - tudo depende deste ponto essencial: apreender e exprimir o Verda- deiro néo como substancia, mas também, precisamente, como sujei- to”! Para Hegel, portanto, Schelling permaneceu espinosis 5. Schelling, op. cit, I, p. 600. 6 Wid 7. BE, 1, p.17 (09). ~ Acerca da iia de uma revelasio progressiva, cf. sobretu- ddo Lessing (cujainfluéncia sobre o jovern Hegel foi importante) e, particular mente, Das Christentam der Vernunfee Die Evschung des Menschengeschlechts, 46 Jean Hyerourre to captou a identidade do Absoluto, mas nao péde passar dai a re- flexdo que, nele, permanece estranha & vida do Absoluto. E por isso gue essa identidade de Schelling é severamente julgada por Hegel no Prefécio da Fenamenologia: “considerar um certo ser-af como é no ‘Absoluto equivale a declarar que dele se fala agora como de alguma coisa; mas que no Absoluto, no A=A, nao ha certamente tais coi- sas porque ali tuclo ¢ uno’.® “Esse Absoluto ¢ a noite em que todos (5 gatos sio pardos.”* Ea propésito da historia que melhor compreendemos as dife- rengas entre a filosofia de Schelling e a de Hegel. A despeito dos textos que citamos acima e que pareciam indicar, ja em Schelling, uma filosofia da historia proxima a de Hegel, € preciso nao se deixar enganar por essas aparentes semelhancas. Schelling partiu de uma intuigao do Absoluto que o conduz sobretudo 2 uma filosofia da nnatureza. O saber deve identificar-se com a vida. A vida orginica, enquanto produgio inconsciente da inteligencia, é como a produ. do artistica na qual 0 consciente se retine ao inconsciente, uma manifestagao desse Absoluto, O saber deve remontar de tais dife- rengas que sto somente diferencas quantitativas, diferengas de po- téncia, até aquela fonte primeira, Coincidir com ela, eis 0 que Schelling denomina a intuigo intelectual. Desde entéo, essa intui- ‘io da vida pura esta alm ou aquém de toda a reflexao. A reflexéo Ihe é exterior. E claro que em Hegel, em seus trabalhos de juventude « particularmente no System: fragment, podem ser encontradas expres, s6es semelhantes as de Schelling - “pensar 2 vida puta, eis a tarefa"? ‘Mas nos parece que, apesar de tudo, esses trabalhos de juventude denotam outra orientagéo. O que lhe interessava nao era a vida or- ganica, ou a vida da natureza em geral, mas a vida do espirito en- quanto essa vida ¢ historia. Assim, desde as suas primeiras démarches, © pensamento hegeliano é um pensamento da histéria humana, en- 8 FE, Lp. 1609, A versio francesa da expressi hegelana di: “domer son Absa pour la nit air comme on eoutune de dive, toutes les snches sont noire. © original ale smi ein Absoltes fs die Nach asigeben, worin, ade man 2 sagen lg, alle Kuhe shar, snd (1 9. Ch. os Esritstevligios de Hegel, ed. Nob, p. 302 ep, 345 e 8. ¢ ambémn nosso artigo sobre os “Trabathos de juventude de Hegel, in Reve de Meaphysique ede Morale, julho-outubro, 1935. ~ Para simplifca, desigoa- remos os Hegel's Thelogische Jugendichiten, organizados por D. H. Nobl, ‘Mobs, 1907, somente pelo nome do editor: ed. Nob GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 4 quanto o de Schelling é um pensamento da natureza ou da Vida em geral. Ora, a visio que Hegel tem da histéria € uma visdo tragica. Nela, a asticia da razdo ndo se apresenta como um simples meio de reunic 0 inconsciente ao consciente, mas como um conflito trégico, perpetuamente transposto e perpettamente renovado, entre o ho- mem e seu destino. E este conflito que Hegel procurou pensar, e pensé-lo 10 sei mesmo do Absoluto, “A vida de Deus e o conheci- ‘mento divino podem portant, se se quiser, ser expressos como um jogo do amor consigo mesmo; mas essa idéia se rebaixa até 0 edificante e mesmo até a insipider quando the faltam a seriedade, a dor, a paciéncia e o trabalho do negativo.""" O pantragismo da his- téria eo panlogismo da légica no sio sendo uma tinica e mesma coisa, como jd o revela este texto no qual Hegel fala simultaneamen- te da dor e do trabalho do negativo. Na Fenomenologia, a dualidade que Schelling rejeitava no Absoluto, ¢ que constitui o fundo da histéria, é um momento essen- cial, A dualidade caracteriza a consciéncia, mas nfo é por isto que tal conscitncia € estranha ao Absoluto. Pelo contritio, seu desen- volvimenco histérico & a reflexio desse Absaluto ~ 0 espirito - em si mesmo, Antes de nos perguntarmos em que sentido essa reflexdo da conscigncia ¢ uma histdria - e que espécie de hist6ria -, importa pre- cisar a partir de certos textos da Fenomenologia essa relagio, io im- portante, entre o espirito e a hisesria para Hegel. Oespirito para Hegel Ea histori, tese fundamental que é idéntica aquela segunda a qual o Absoluto é sujeito; "mas a navureza orginica ndo tem histéria"", por- ‘que, nela, a universalidade no é sendo um interior sem desenvolvi- mento efetivo. Decerto que ha individuos vivos, mas a vida néo cheya a exprimirse neles como universal abstrato, como negasdo de toda determinaeso particular. Em outros termes, o sentido da vida orgi- nica é 2 morte, 0 aniquilamento de tudo o que pretenda dar-se wma subsisténcia & parce. A intuigdo da vida como vida universal ou se perde na contingéncia de individuos separados, ou encontra-se ne- Jes como a poténcia que os aniquila e que é a tinica a fazé-ls efetiva- mente vivos. Procutar atingir essa intuico da vida criadora de indi- vidualidades sempre novas, ou destruidora dessas individualidades —0 que significa a mesma coisa, pois esse duplo processo constitui-se 10 FE, 1, p18 G0), IL FE, 1, p.247 (190) 48 Jean Hyerouire de um dnico processo: reproducao e morte - é mergulhar “na noite ‘em que todos os gatos so pardos". O texto de Hegel que comentamos neste momento - € que pertence a uma das partes mais abscuras da Fenomenologia, “a obser- vacdo da natureza como a observacdo de um Todo orginico"!? ~ € consagrado a uma possivel filosofia da natureza para a consciéncia que ora'se oferece como razfio. Em seu sistema do idealismo transcen- dental, Schelling efecua paralelamente a dedugdo das *épocas” da consciéncia de si e das categorias da natureza ou da histéria. Na se- gunda época, 0 Eu se eleva da intuigéo produtiva a reflexao, toma consciéncia dessa producio que era inconsciente na primeira época. Nessas.comdigses, 0 Eu produtor, a inteligéncia, ndo deve ter somente consciéncia de um produto que lhe é exterior ¢ que a ele se oferece ‘como se viesse de fora, mas deve ter consciéncia da prépria ativida- de de produsir. Ora, 0 Eu s6 pode ter consciéncia de um produto acabado; € preciso, portanto, que a cle s¢ ofereca um produto que seja simultaneamente finito e infinito € no qual tenha, em certo sen- tido ¢ de modo objetivo, a intuicdo de sua propria atividade produ- tora. Um tal produto é para Schelling o mundo organico, 0 Univer- s0 vivo. "Toda planta, por exemplo, & um simbolo da inteligencia."!3 esse Universo da Vida, poder-se-ia dizer que a inteligéncia contem- pla a si mesma. Do mesmo modo que a inteligéncia € um esforso infinito para organizar-se a si mesma, assim também a vida em seu conjunto se manifesta por uma série de graus, uma espécie de "hist6- ria’ na qual a organizagio se torna mais e mais auténoma. E nessa vida que, pela primeira vex, a inteligéncia pode contemplar-se si mesma. "A Natureza nfo é a adisséia do Espirito.” ‘A obra que Hegel escreve é uma Fenomenologia do expirito e nndo da natureza; nem por isso ele deixa de conceder um higat 20 pensamento da natureza. Mas ao passo que Schelling, quase se 5- ‘quecenda de seu ponto de partida no sistema do idealismo transoen- dental, que € 0 “estudo do saber subjetivo", apega-se as prdprias cate- gorias da natureza e as trata por si mesmas, Hegel se pergunta se a natureza, considerada em seu conjunto como um Todo organico, pode oferecer a razdo uma expressio adequada de si mesma. Tal nos parece ser 0 sentido da passagem da Fenomenologia que considera- ‘mos aquis a resposta, porém, é negativa, © que a razio contempla 12 FE, 1, p. 238-48 (18491), 1 Schelling, op. ct, IL, p. 489. GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 8 0 conjunto da natureza é um silogismo cujos termos extremos so a vida universal como Universal ¢ a terra, o elemento no seio do {qual se desenvolvem todos os seres vivos. Desde entio, 0 termo mé- dio é constituido pelos seres vivos particulares, os quais sao somente ‘0s representantes da vida universal e, como tais, estdo submetidos a influéncias perturbadoras da parte do meio exterior do qual depen- dem. Entre a organizagao do género em espécies e as incessantes in- Auéncias do meio, o individuo vivo nao representa para a razio se- ‘ado uma contingente expressio de si mesmo. Em sua filosofia natural, Lamarck, no século XVII, havia inicialmente considerado um pa- rentesco de todas as espécies vivas, que resultaria de um desenvolvi- mento intrinseco da vida; em seguida, foi conduzido a atribuir uma importéneia cada vez maior & grande influéncia do meio, até que esses dois principios distintos de explicacao chegassem a se confun- dir em sua filosofia natural, tornando a interpretagao particularmente dificil, Hegel considera algo semelhante. "O género [entenda-se: a vida universal] divide-se em espécies segundo a determinagdo do niimero; na base de sua subdivisdo, pode-se ter também as determi- rages singulares de seu ser-at, por exemplo, a figura, a cor, etc.; mas nessa calma ocupaciio, sofre uma violéncia da parte do individuo universal, a terra que, como negatividade universal, faz valer contra a sistematizagao do género as diferencas tais como a terra tem em si: ea nacureza dessas diferencas, em virtude da substancia & qual per- tencem, é diferente da natureza viva. Essa operagao do género tor- na-se, todavia, uma empresa completamente limitada, a qual o gé- nero pode dar um impulso somente no interior desses poderosos elementes e que, interrompida em todas as partes por sua violéncia sem freic, esta cheia de Iacunas e fracassos.”!4 ‘A tazio nfo pode, portanto, reencontrar-se a si mesma no es petéculo da Vida, Sem diivida, a Vida universal como vida é o que ‘Hegel denomina o conceito (Begriff), 0 Universal que é sempre, ao ‘mesmo tempo, ele mesmo ¢ seu outro; mas essa vida, como o Abso- luto de Schelling, ndo chega a se desenvolver guardando seu cardter universal: em todas as suas formas particulares. A Vida esta inteira- mente presente em cada ser vivo particular, ela é aquilo que faz nnascer, reproduzir-se e morrer, mas nfo se exprime como tal em cada uma das diferengas particulares. A morte de um ser vivo esta inti mamente ligada ‘ao nascimento de um outro, mas assim 2 vida se 14 FE, I, p. 246 (190). 50 Jean Hyerotire repete sem se desenvolver verdadeiramente e, desta feta, ela nao 0 género que se exprime em sua histéria. “Essa vida nao € um sistema de figuras fundado em si mesmo."5 Voltamos, portanto, ao ponto de partida de nossa aniilise do “a vida organica nao tem histéria". Somente o espirito tem uma historia, isto é, um desenvolvimento de si por si, de tal modo {que permanece ele mesmo em cada uma de suas particularizacées e, quando as nega - 0 que 0 proprio movimento do conceito -, con- setva ao mesmo tempo tais particularizagées para elevi-las a uma forma superior. Somente o espirito tem um passado que ele interio- tiza (Erinnenung) ¢ um porvir que projeta diante de si porque deve tormar-se para si o que ¢ em si. Ha uma concepeio do tempo e da temporilidade implicada na Fenomenologia. Por ora, 0 que nos inte- tessa é a definicZo de espirita como historia e a importéncia que cla apresenta na Fenomenologia. Contrariamente @ Vide universal que se precipita imediata- mente a partir de seu Universal ~ a vida, na singularidade sensivel, sem exprimir-se a si mesma em um desenvolvimento que seja simul: caneamente universal e particular, que seja o “Universal conereto” =, a consciéncia apresenta, nos diz Hegel, a possibilidade de um tal desenvolvimento, “Assim, a consciéncia entre o espitito universal ¢ sua singularidade ou consciéncia sensivel tem por termo médio 0 sis- tema das figuragées da consciéncia, entendido como vida do espiri- to ase ardenat até se tornar o todo sistema que é considerado nes- ta obra e que tem como histéria do mundo de seu proprio ser objetivo.” A consciéncia senstvel ¢ propriamente a consciéncia sin- gular, mas abscratamente singular, aquela que esta limicada a um aqui, 2 um agora, tais como sio apresentadas no inicio da Fenomeno- logia, no capitulo sobre a certeza sensivel"; contudo, o proprio expt tito universal € a consciéncia abstratamente universal, Ambos sic ‘um pata o outro, e toda consciéncia verdadeira é simultaneamente particular e universal, capaz de descobrir em sua particularidade a tuniversalidade que the é essencial. Esse movimento ~ por meio do qual roda consciéncia particular torna-se ao mesmo tempo conscién- cia universal, constituindo a singularidade auténtica ¢ 0 vir-a-ser dessa singularidade, através de todas as fases de seu desenvalvimen- to ~, esse movimento ¢ precisamente a Fenomenologia.!? 15 FE, 1, p. 247 (190), 16 FE, 1, p. 81 (74). GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 51 2.2. A FENOMENOLOGIA NAO # A HISTORIA DO MUNDO Mas a Fenomenologia néo ¢ a histéria do mundo, embora de certo medo seja uma hist6ria e tenha uma relagdo com essa histéria do munco, Ha um problema particular af, que doravante sera preci- so considerar. Que ela seja distinta da historia do mundo ou de uma filosofia da histéria do mundo, Hegel o diz com suas préprias pala- vras no Preficio da Fenomenologia e no texto que acabamos de co: mentar - “sistema que € considerado nesta obra e que tem como his- téria do mundo seu préprio ser-ai objetivo"® -; ademais, sob uma forma mais ambigua no final da obra, quando opée a histéria em seu livre desenvolvimento temporal a essa histéria coneebida que € a Fenomenologia."” Enfim, em muitas outras passagens Hegel fala de ‘um “espitito do mundo" cujo desenvolvimento é distinto do desen- volvimento fenomenolsgico.” De resto, basta referir-se a0 contetida da Fenomenologia para afastar a hipétese segundo a qual ela seria pro- priamente a filpsofia da historia do mundo em sua integralidade. A historia desempenha um grande papel na Fenomenalogia, embora Haym tenha podido defini-la como “uma psicologia trans- cendentel falseada pela historia, e uma histéria falseada pela psico- logia transcendental”! Contudo, ela nao desempenha por toda parte o mesmo papel. Naquilo que queremos denominar a primeiza parte da Fenomenologia ~ e que compreende as grandes divisdes: Conscién- cia, Consciéncia dé si e Razdo, as tinicas que subsistirio na Prope- déutica e na Enciclopédia -, a hist6ria nao desempenha senao o papel 17 A reccnciliagto final ~ a redensfo © a remissso dos pecados - &, precisa: mente, esse duplo movimento da conseiéneia universal que se torna parti cular eda consciancia particular que se azna universal. E nesse movimento telative que o espirto conhece, ainda em seu “Outre”, o esprito. Cf FE, Tl, pp 190 (135) e nosso comentario dessa passagem na presente obra (Parte VI, Cap. 2. 18 FE, 1, p. 247 (190) 19 FE, Il,p. 313 (220). - Mais exatamente, parece que Hegel distingue um vie- ‘a-ser temporal contingente em algumas de suas manifestagdes, uma ciéncia ddo saber fenaménico (a Fenamenalogia) e, por fim, uma filosofia da Historia, 2 qual pertencerd no sistema propriamence dito ¢ seré, verdadeiramente, & historia concebida em sie para 8 20 Cf. em particular FE, I, p. 169 e 198 (136 ¢ 155) etc. Cf. também os textos do Peeldcio da Fenomenologia que comentamos adiante 21 Haym, Hegel und Seine Zeit, p. 243, ed. 1927 52 Jean Hyro.tre de exemplo; segundo Hegel, ela permite ilustrar de modo concreto tum desenvolvimento original e necessério da consciéncia. E sobre- tudo nos capttulos mais concretos, 0 da consciéncia de si e 0 da ra- fo, que se encontram essas ilustragoes historicas. A consciéncia de sise forma mediante as relacées de luta entre consciéncias de si opos- tas, tais como as do senhor e do escravo, que ndo sto propriamente temporais, embora se encontrem na origem de codas as civilizagaes humanas ¢ se reproduzam, alids, sob formas diversas em toda a his- toria da humanidede. Os desenvolvimentos seguintes evocam, mais precisamente, momentos definidos da histéria humana; trata'se do estoicismo, do ceticismo e da consciéncia infeliz. Hegel, to avaro «em precisges historicas propriamente ditas, e procedendo sempre por alusées, Tao ceme dizer, apds haver escrito em termos abstratos a conscigncia de si que se elevou & autonomia: “essa liberdade da cons- cigncia de si, a emergir em sua manifestacio consciente de si mesma na histétia do espfrito, denominou-se, como bem se sabe, estoicis- mo”.2? E acrescenca no final desse paragrafo: “Como forma univer- sal do espitito do mundo, o estoicismo podia surgi somente em um tempo de medo ¢ de escravidao universais, mas também no tempo de uma cultura universal que havia elevado a formagao ¢ a cultura a altura do pensamento”.’> Como se vé, 0 desenvolvimento fenome- noldgico, que reencontra necessariamente um momento da liberda- de abstrata da conscigneia de si, utiliea a fase corvespondente da his- (ria do mundo para ilustrar e precisar sua descrigao. Sabemos, pelos trabalhos de juventude de Hegel, que a cons- cigncia infeliz se confunde em sua origem com o judatsmo e, depois, estende-se ao cristianismo da [dade Média. Mas o texto da Fenome- nologia sobte a consciéncia infeliz néo contém nenhuma mengdo ex- plicita ao judatsmo; sempre se trata, portanto, de ilustragées histéri cas para servir a um desenvolvimento necessirio da consciéncia de si, O mesmo ocorre no capitulo sobre a razio, onde encontramos alusdes ao Renascimento ¢, além disso, utilizacoes muito precisas das obras contemporiineas de Hegel: Os salteadores de Schiller, © Fausto de Goethe ou obras particularmente apreciadas pelos roménticos, como 0 Dom Quixote de Cervantes.” 22 FE, 1, p. 169 (135), 23. FB, Lp. 170 (136). ~ Assim, seria possivel dizer que Pascal, ao quever opor ‘dus atitudes necessirias do espiito, se serve do estoicismo e de Montaigne nna conversa com M. de Sacy. GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 53 Eases exemplos, essas ilustragSes concrevas de momentos de desenvolvimento da conscigncia sG0 escolhidos arbitrariamente ot se impoem de modo absoluto? E um problema que o comentador da Fenomenslogia pode tentar resolver tomando consciéneia da exata tarefa a que Hegel se propds; mas 0 certo € que ali no ha uma filo- sofia completa da histéria da humanidade. De resto, Hegel insiste nitidamente neste ponto: os trés momentos - consciénia, conscién- cia de si, razdo ~ nao devem ser considerados sucessivos; no sfo no tempo, sio trés abstrag6es praticadas no Todo do espitito e estuda- das sepacadamence em sua evolugio. Somente as formas singulares desses momentos ~ certera sensivel, percepsdo, entendimento etc, -, ao representarem uma totalidade concreta, podem ser consideradas, no interior do momento ao qual pertencem, sucessivas; vodavia, a sucesso temporal aponta aqui para um desenvolvimento original do momento considerado. Pode-se representar a passagem da certeza sensivel i percepeo como uma passagem temporal, Do mesmo modo, 2 passagem da relacdo entre senhor e escravo ao estoicismo, as relat g6es do estoicismo com o ceticismo, do ceticismo geego ao sentimen- to de vaidade de toda coisa finita no Velho Testamento e de tudo iss0 a0 cristianismo, tais relagées apresentam, € preciso reconhecé- Jo, uma certa interpretagio histérica. Naquilo que queremos denominar a segunda parce da Feno- smenologia, e que compreende os capitulos sobre o Espirito, a Reli- gifo € 0 Saber Absoluto, o problema & muito mais complexo. Tem- se por vezes a impressdo de se encontrar em presenca de uma verdadeica filosofia da histéria; tentaremos dar a razio disso 20 es- tudarmos a estrutura da Fenomenologia. O certo € que, descle a Pro- pedéutica ea Enciclopédia, Hegel fer desaparecet da Fenomenologia, stricto sensu, esses capitulos sobre o espitito ¢ a religido. E que nesses dois capitulos trata-se, nao mais que formalmente, de um evolugao da consciéncia individual. O que é considerado, por exemplo, no capitulo sobre o espirito, sdo totalidades concretas, esptitos particu: lares, aquele da Cidade grega, do Império e do Direico romanos, da cultura ccidental, da Revolugao Francesa e do mundo germanico. O proprio Hegel o diz no inicio do capitulo sobre o espirito. Apss 24 FE, 1, 297 Q27) es. ~ CF. ambém a pagina precedente, em que Hegel se cexplica um pouco sobre a escolha desses exemplos contemporinens para las: ‘rar, segundo ele, momentos necessirios: o prazer e a necessidade, a let do coragao etc. 54 Jean Hyerouire hhaver indicado que unicamente o espirito € a “existéncia", a ra2to gue se tornou um mundo vivo, o individuo que € um mundo, ab- serva que os momentos anteriores, consciéncia de sie raz, ndo eram sendo abstragdes do espirito: “todas as figuras anteriores da conscién- cia sio abstragdes desse espirito, existem pela fato de que o espirito se analisa, distingue seus préprios momentos e se detém nos momen tos singulares’.?*E acrescenta que essa ago de isolar tais momentos pressupde o espirito e radica somente nele. Somente o espitito, no sentido que Hegel da a esse termo, € portanto um todo concreto que, conseqiientemente, tem um desenvolvimento original © uma histé- tia real. E por isso que as figuras do esptrito diferem das figuras pre- cedentess-estas figuras todavia se distinguem das precedentes pelo faco de que elas proprias so os espiritos reais, efetividades auténti- ‘cas ¢, no lugar de serem somente figuras da consciéncia, so as figu- ras de um mundo®?? A partir desse momento, 0 desenvolvimento do espirito pare- ce coincidir com um desenvolvimento histérico real, E a historia da formagiio de uma consciéncia do espirito entendido como realidade supra-individual desde a Cidade antiga até a Revolucéo Francesa Mas ha muitas lacunas nesse desenvolvimento, se referido & historia efetiva, Nao hs, por exemplo, nada sabre o Renascimento, fa alu- s0es discutiveis sobre a Reforma; por outro lado, hé desenvolvimen- tos muito extensos sobre a Aufldanung, sobre a Revolucdo Frances (© que justifica tais escolhas ou exclusdes, ¢ qual © método aqui se- auido por Hegel? Se se tratasse de uma filosofia compleca da historia setia preciso convir tratar-se de um fracasso. Mas, por outro lado, Hegel insiste no cardter cientifica da obra, na necessidade de seu desenvolvimento, Portanta, seré preciso buscar em outro lugar, que nao na histdria do mundo em geral, aquilo que pode justificar essa necessidade © capitulo que segue, sobre a religiéo, nao deixa de por me- ‘nos problemas. Hegel diz nitidamente que, em relacao a religio, tudo co que precede na deve ser considerado um desenvolvimento histo- rico. Por seu turno, a religido pressupée 0 todo do espitito, e, para fazer uma Fenomenologia da religiio, deve-se considerar todos os mo- mentos anteriores como reunidas e a constituir a substancia do espt- 25 FE, I, p. 12.0), 26 FE, p. 11). 27 FE, p. 12.) GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 55 rito abscluto que se eleva & consciéneia de si mesma. “De resto, 0 transcurso desses momentos em referéncia & religido nao é represen- tavel no tempo." Pelo contrario, ha um desenvolvimento da reli giao - religito natural, religido estética, religiao revelada ~ que bem parece ter uma significacdo histérica como tal. Dessas observagées muito gerais, podemos exteair ao menos cesta conclusio: a Fenomenologia nfo & exatamente uma filosofia da histria do mundo. Em sua primeira parce, no se poderia tratar de ‘uma tal assimilagdo; na segunda, hé somente um relacionamento mais estrito entre o desenvolvimento fenomenolégico e 0 desenvol- vimento da histéria no sentido préprio do termo. Contudo, o espiri- to precede a religifo no tempo; mas s6 a precede para nés que, a fim de compreender o sentido da religiao, temos necessidade de haver dado acabamento ao desenvolvimento do espirito como exiscéncia e chegado 20 pensamento da reconciliagao. Enfim, os diversos momen- tos escolridos nestes dois capitulos ndo abarcam a histéria univer- sal, mas coincidem somente com fenémenos historicos que Hegel julga particularmente importantes para a sua tarefa. ‘A questo nao esta, portanto, resolvida; e é preciso que tente- ‘mos determinar mais de perto a significacao do desenvolvimento fe- nomenoligico em relagao ao desenvolvimento da histéria. 2,3, A FENOMENOLOGIA, HISTORIA DA CONSCIENCIA INDIVIDUAL A Fenomenologia é a elevagio da consciéncia empirica a0 sa- ber absoluto: ela o é em sua intengao primeita, tal como o revela a Introducio & obra. B ainda sob essa forma que Hegel a considera no Prefacio escrito posteriormente. "A tarefa de conduzir o individuo de seu es:ado inculto até o saber devia ser entendida em seu sentido sgerale ccnsistia em considerar o individuo universal, o espfrito cons- ciente de si, em seu proceso de formacio”.”? Mas essa elevacdo da consciéncia empirica a0 saber absoluto nao € possivel se, nela, no se descobrem as etapas de sua ascensdo; estas etapas sa préprias & consciéncia, ¢ preciso somente que desca até a interioridade da lem- 28 FE, I, p. 207 (146). 29 FE, 1, p. 25.05). 56 Jean Hypeourre branga por uma operacdo compardvel & reminiscéncia platénica. Com efeito, come filho de seu tempo, o individuo possui em si toda a substancia do espirito desse tempo; € preciso somente que se apro- prie desse tempo, que o torne novamente presente: “assim como quem aborda uma cigncia mais elevada, percorze os conhecimentos prepa- ratorios nele implicitos hé muito tempo, para destes novamente al- cangar o conteudo presente” 22 ‘O problema que a Fenomenologia se poe nfo é, portanto, 0 pro- blema da histéria do mundo, mas 0 da educagéo do individuo sin- gular que deve necessariamente se formar no saber, tomando cons- cigncia daquilo a que Hegel denomina sua substincia. E uma tarefa propriamente pedagdgica que nao deixa de se relacionar com aquela que Rousseau jé se propunha no Emilio. A respeito desta obra de Rousseau, é possivel escrever justamente: “A idéia primeira ¢ igorosa- mente cientifica; se o desenvolvimento do individuo repete sumatia- mente a evolusao da espécie, a educasio da crianga deve reproduzit «em linhas gerais o movimento geral da humanidade”! Mas enquan- to Rousseau disso concluiu somente que a idade da sensago devia preceder a idade da reflexio, Hegel levou a sério essa imanéncia da historia da humanidade em geral 4 consciéncia individual. “Visto que no somente a substincia do individuo, mas também o espitito do mundo teve a paciéncia de percorrer essas formas em toda a ex: tensto do tempo, ¢ empreender 0 prodigioso labor da historia univer- sal, na qual o espitito do mundo foi enearnando, em cada forma e pelo tanto que ela o comportava, o contetido total de si mesmo; € visto que o espitito do mundo nao podia atingir com menos labor sua consciéncia de si mesmo ~ assim também, segundo a coisa mesma, 6 individuo nao pode conceber sua substancia por uma via mais cur” ta. E, no entanto, o esforgo é ao mesmo tempo menor, posto que em si tudo isso ji se cumpriu, 0 contetido é a realidade efetiva ja aniqui- lada na possibilidade, ou a imediates jé forcada, a configuragio ja reduzida a sua abreviagio, a simples determinacao do pensamento.”" A histéria do mundo se realizou; € preciso somente que o in- dividuo singular a reencontre em si mesmo. "O ser singular deve tam- bbém percorrer os graus de formagao do espirito universal segundo 0 seu conterido, mas como figuras ji depostas pelo espirito, como graus de wma via j4 tracada ¢ aplanada. Assim, vemos no campo dos co- 31 Lanson, Litténature frangaise, Cap. “Rousseau; 228 ed. p. 796. 32 FE, 1, p.27 (36-7) GENERALIDADES SOBRE A FENOMENOLOGIA 37 nhecimentos que aquilo que em épocas anteriores absorvia 0 espiti- to dos adultos € rebaixado agora a conhecimentos, a exercicios & ‘mesmo a jogos infantis; e na progressio pedag6gica, reconhecemos ‘como esbosada em projecio a histéria da cultura universal.” Na ‘medida em que contribut para a preparagio daquilo a que Hegel de- nomina 0 saber absoluto, essa hist6ria da cultura universal deve set evocada na consciéncia individual. E preciso que tome consciéncia fem si mesma de sua substincia, que the aparece inicialmente como exterior quando ela ainda se encontra apenas no inicio de seu itine- ratio filos6fico e humano. Nos textos que citamos acima, Schelling 5d insistira nessa imanéncia da histéria a0 presente do individuo: “sus- fentamos efetivamente que nenhuma consciéncia individual pode- ria ser posta com todas as determinagdes com que se poe, e que ne- cessariamente [he pertencem, se nao tivesse sido precedida por toda a histérig, 0 que se poderia facilmente mostrar se se tratasse, por exemplo, de uma obra de arte" E disso Schelling conclui que se poderia refazer a historia partindo do presente, procurando somente ‘compreender o estado arual do mundo e da individualidade que nele éconsiderada. Hi, portanto, uma relagdo entre a filosofia da histéxia e a Fe- nomenolosia. A: Fenomenologia ¢ o desenvolvimento concreto ¢ expli- cito da cultura do individuo, a elevacao de seu eu finito 20 eu abso- luto, mas essa elevaco nao é posstvel sendo 20 utilizar 08 momentos da histéria do mundo que so imanentes a essa conscigncia indivi- dual, Seta preciso que esta consciéncia individual, em vez de se con- tentar com as representagées bem conhecidas, que por esse fato mes- mo so mal conhecidas™, analise-as ¢ desenvolva-as em si mesma; eencontrard assim em si mesma fases da histéria passada e, em vez de atravessé-las sem nelas encontrar seu interesse, deverd, 20 con trésio, demorar-se, reconstituir sua experiéncia passada para que sua significagio possa lhe aparecer: "a impaciéncia pretende o imposst- vel, isto é, a obten¢do da meta sem os meios".”* E preciso suportar a delonga:do caminho, demorar-se em cada momento particular. A historia do mundo imanente ao individuo, mas do qual ele nao to- mou consciéneia, torna-se entio @ histéria concebida e interiorizada, da qual se deve extrair progressivamente o sentido. 33 Schelling, 5.1V, Il, p. 590, 34 FE, 1, p.28(3). 35 FE, 1, p.27 36)

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