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UM ESTUDO HISTORIOGRÁFICO DO
PROJETO RAÍZES SOB AS LENTES DA CULTURA HISTÓRICA.
Prof.ª Mestª. Sandra Cristina Donner
Resumo
Esta comunicação propõe-se a analisar o Projeto Raízes. Um fenômeno histórico
que iniciou em 1992 e ainda está ativo no Rio Grande do Sul. Através da mediação de
uma comissão organizadora, composta por historiadores, vários municípios gaúchos
promoveram/promovem eventos comemorativos sobre sua história que culminam com o
lançamento de livros que pretendem tematizar suas origens.
Como instrumento teórico utilizaremos o conceito de Cultura Histórica, proposto
por Manuel Salgado Guimarães, e outros autores, questionando sua aplicação para o
contexto do Projeto Raízes, uma vez que este foi organizado por historiadores
acadêmicos em parceria com a comunidade local.
Palavras-chave: Historiografia, História Local, Cultura Histórica.
A História Local tem, nos últimos anos, adquirido um espaço cada vez maior no
mercado editorial e nos estudos acadêmicos. Esse gênero, todavia, é muito antigo, se
compreendermos como relato histórico o produzido pelos cronistas das pequenas e
grandes cidades e pelos cidadãos das mais diversas profissões que se propõe a relatar a
“história” de sua região. Sem um apoio documental profundo, ou métodos de pesquisa,
eles contam os caminhos de seus municípios ao longo de décadas e até mesmo de
séculos. Normalmente os leitores são seus próprios pares. Sua pretensão é a de chegar às
escolas e aos círculos literários, raramente às cátedras acadêmicas.
No Rio Grande do Sul, surgiram várias coleções sobre histórias municipais,
somente para citar algumas delas, temos o Projeto Raízes, os livros da série Marcas do
Tempo, Povoadores, todos editados pela Editora EST.
Esta comunicação irá apresentar o Projeto Raízes e mapear um campo ainda a
ser explorado pelos estudos acadêmicos: as Histórias Locais feitas em série, organizadas
por historiadores ou não. Não pretendemos fechar a questão dando pareceres sobre o
tema, apenas indica-lo como um campo possível para análise. O conceito utilizado
como auxiliar para compreendermos o fenômeno é o de Cultura Histórica, que não será
aprofundado por uma questão de tempo e de espaço de publicação.
Projeto Raízes:
O Projeto Raízes é um fenômeno histórico que iniciou em 1992 e ainda está
ativo no Rio Grande do Sul. Através da mediação de uma comissão organizadora, vários
municípios gaúchos promoveram/promovem eventos comemorativos sobre sua história
que culminam com o lançamento de livros que têm como tema suas origens.
Essa proposta partiu de uma série de encontros em alguns municípios do
Nordeste gaúcho, planejados com o objetivo de discutir a história desta região. O
primeiro evento ocorreu na cidade de Santo Antônio da Patrulha e, a partir desta cidade,
buscou-se o contato com os municípios “filhos, netos e bisnetos”. Uma equipe
encabeçada pela historiadora Vera Lúcia Maciel Barroso1, juntamente com as
administrações locais, promoveu o I Encontro dos Municípios Originários de Santo
Antônio da Patrulha, em 1990. No ano seguinte, São Francisco de Paula, sediou o
segundo Encontro e, por fim Tramandaí, dito “município-neto”, organizou em 1992.
Utilizando os textos produzidos pelas palestras e comunicações, foi editado um livro:
“Raízes de Santo Antônio da Patrulha” (1992, p. 16).
1
Professora Doutora, atualmente é coordenadora do curso de História nas Faculdades Porto Alegrenses.
segunda cidade a receber o projeto foi Lagoa Vermelha, em 1993. Também ela
promoveu um encontro, com palestras, comunicações, apresentações culturais e que
culminou no livro, editado no mesmo ano. Segundo a Comissão de Organização, o livro
não pôde contemplar todo o evento (Raízes de Lagoa Vermelha, p. 13):
“As múltiplas atividades paralelas, o livro também excluiu- e não poderia ser
diferente: eis a troca de informações durante bate-papos informais, as
curiosidades despertadas, a emoção pela inesperada valorização de um
registro até então desconsiderado. Não recolheu para dentro de si a maneira
cavalheiresca, fraterna e organizada com que, aqui, foram recebidos os
representantes de tantos outros municípios aparentados todos eles com Santo
Antônio da Patrulha.”
Quais são os limites entre “a” História, e a história local e regional? Essa
discussão sobre territórios e campos historiográficos é uma preocupação acadêmica
atual. Observando a tradição de produção riograndense, encontramos
autores/pesquisadores que a um só tempo pretendiam fazer uma história local e uma
História Nacional, segundo (NEDEL, 2005, p. 3):
Sendo assim, os primeiros “historiadores” do Rio Grande do Sul, ainda que sem
uma pretensão teórica, realizavam uma história regional. Seu objetivo era retratar a
ocupação do território, poderiam divergir quanto às influências, se lusitana ou platina,
como apontam os estudos de Ieda Gutfreind (1998), mas sempre colocando como foco
as particularidades do seu povo e sua história, seja a partir das influências das Missões
Orientais e dos contatos fronteiriços na formação cultural, seja minimizando a
aproximação do Rio Grande do Sul e enfatizando as raízes lusitanas de ocupação e
cultura na sociedade e história gaúcha
Já, nos anos 50, com o advento das faculdades de Filosofia e História, o mundo
acadêmico começa a ter um papel significativo na produção historiográfica. Os autores
folcloristas passaram a ser criticados, a nova geração adotou uma linha mais conectada
com os estudos de Gilberto Freire (NEDEL 2005, p. 270) e voltaram seus estudos para a
produção cultural do estado, segundo Nedel (2005, p. 412):
Cultura Histórica
2
“Aquilo que é celebrado nas festas populares, nos dias comemorativos religiosos ou guerreiros, é
propriamente um tal “efeito em si”: é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que está guardado como
um amuleto no coração dos empreendedores, e não a conexão verdadeiramente histórica de causas e
efeitos que, completamente conhecida, só provaria que nunca sairá de novo um resultado exatamente
igual no jogo de dados do futuro e do acaso.” Nietzsche Friedrich. Considerações Extemporâneas. Pp. 61.
tempo na obra de Ricceur (2007); pelas questões sobre as definições e construção da
idéia contemporânea de História, na obra de Koselleck (2006), e, no Brasil, encontra-se
presente na obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães e Astor Antônio Diehl.
A maioria dos historiadores citados anteriormente apresenta a noção atual de
História como fruto do Iluminismo e da construção do Estado Nação. Sendo assim, a
História como saber disciplinado, ou domesticado, como diria Elias (1993) é uma parte
do “processo civilizatório”. Segundo Guimarães (2006, p. 11):
Claro que o filósofo não pretendia elaborar um conceito ao escrever suas reflexões, mas este texto tornou-
se muito importante pois vários historiadores passaram a analisar a forma como a História é produzida em
cima das denúncias de Nietzsche sobre a onda comemoracionista.
materializa na escolha dos elementos celebrativos que virão à luz e dos eventos e
monumentos do passado que constituirão a memória e a história continuamente
relembrada, ou ruminada, como acusava Nietzsche3. Uma Cultura Histórica. Mas,
diferente da ruminação tediosa, os elementos mudam a cada geração que repensa seu
passado e o comemora.
Junto com novos elementos, também temos os usos políticos deste passado. A
idéia de que exista uma cultura histórica, e de existe um rol mínimo de “memórias” a
serem lembradas, demonstra claramente que as escolhas sobre passado mudam com os
ventos do poder: “Em suma, trata-se de assumir a escrita como uma operação que
aciona procedimentos e procede escolhas, pondo em disputa visões e significações do
passado” (GUIMARÃES, p. 13, 2003).
Uma vez que percebemos uma intencionalidade nas escolhas sobre o passado,
especialmente quando este é trabalhado fora dos critérios acadêmicos, por amadores,
podemos questionar quem faz uso destes conhecimentos, e porque foram investidos
energia e dinheiro público (muitas vezes) para promovê-lo.
Essa onda comemorativa e de retomada do passado, que aparece de maneira
muito concreta nos eventos do Projeto Raízes, pode ser explicada por duas vias. Astor
Dihel (2002) indica que o ato de rememorar leva a uma repoetização do passado,
criando uma nova estética deste passado e, por sua vez, resignificando as identidades
sociais presentes no grupo que celebra. Ou seja (GUIMARÃES, p. 34, 2000):
“A Historiografia como investigação sistemática acerca das condições de
emergência dos diferentes discursos sobre o passado, pressupõe, como
condição primeira, reconhecer a historicidade do próprio ato de escrita da
História, reconhecendo-o como inscrito num tempo e lugar. Em seguida é
necessário reconhecer esta escrita como resultado de disputas entre
memórias, de forma a compreende-la como parte das lutas para dar
significado ao mundo. Uma escrita que se impõe tende a silenciar sobre o
percurso que levou-a à vitória, que aparece ao final como decorrência natural;
perde-se desta forma sua ancoragem no mundo.”
Entrelaçamentos
3
“Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante áquele que se forçasse a
abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas de ruminação e ruminação sempre
repetida. Portanto, é possível viver quase sem lembrar e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é
inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver.” Neste texto o autor critica as práticas
celebrativas cheias de ufanismo e otimismo conectando um passado glorioso com um futuro que não pode
lhe deixar nada a dever. Nietzsche Friedrich. Considerações Extemporâneas.
Refletirmos sobre a história da História é um desafio. No caso da História Local,
além de questionarmos sobre as escolhas temáticas, e procedimentos teóricos, questões
importantes no debate acadêmico, também podemos analisar quais são os
autores/pesquisadores dessa história, quais as intenções, quais são suas pretensões ao
realizarem estas pesquisas.
“Foi e tem sido uma oportunidade ímpar para que os professores, alunos e
comunidade integrem-se na luta para manter viva a memória e as tradições da
nossa terra, como forma de se garantir um presente e um futuro mais
progressistas, pois ‘povo sem tradição (leia-se memória) é um povo que
morre a cada geração’”
“Temos um autêntico poeta parnasiano, que ainda nos brinda com sua
presença: Auto Paulo Evandro Machado, pai de outro poeta, Dr. Paulo
Evandro Domingues Machado, gerente regional do Banrisul, genro da nossa
historiadora e brilhante cronista social Nelly Pinto Lacerda, que, por sua vez,
é cunhada de um Ministro da República.”
Essa “História” produzida no Projeto Raízes não tem como foco uma pretensão
de respaldo acadêmico. E sim, é vista como uma possibilidade exposição das
“pesquisas” da intelectualidade local, que foram produzidas especialmente para
constaram nos seminários. Os protocolos da disciplina acadêmica não são seguidos, nos
artigos não encontramos referências a fontes, ou métodos de pesquisa. Mas, isso não é
importante para o público ao qual essa história é dedicada. Ela é vista como um possível
instrumento de uso em sala de aula, como uma oportunidade de promoção da
administração municipal. Os historiadores que elaboraram o projeto e que propuseram
para as cidades sua implantação participaram com apenas um ou dois artigos no livro,
estes sim, escritos de acordo com as normas acadêmicas.
Essa história contida no material elaborado pelo Projeto Raízes, tem como
função ser consumida enquanto objeto cultural, pois, segundo Sarlo (2007, p. 13)
Essas perguntas são amostras das possibilidades de reflexão que este tema nos
traz e que precisam vir ao debate, pois, assim como esta coleção, existem muitas outras
em circulação sendo utilizadas nas escolas e nos discursos dos secretários de cultura e
dos prefeitos. O estudo dessas obras pode trazer respostas sobre o espaço da História
fora da academia e sua importância na vida dos habitantes dos diversos municípios.
Além disso, mapear os temas mais freqüentes e seus enfoques traz para o diálogo a
História como fruto de uma Cultura Histórica, expressa nos monumentos, nas datas
comemorativas e nas escolhas e nas publicações municipais.
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Anexo:
Raízes de Santo Antônio da Patrulha. Org. Vera Lúcia Maciel Barroso. 1992.
Raízes de Lagoa Vermelha Vários autores. 2 volumes . 1993, 266p
Raízes de Gramado. 2 v. Marilia Daros/ Véra Lucia Maciel Barroso. 1995, 440p
Raízes de Torres. Vários autores. 1996.
Raízes de Vacaria. Org. Vera Lúcia Maciel Barroso. 1996.
Raízes de Veranópolis. Frei Rovílio Costa e outros .1998, 450p
Raízes de Terra de Areia. Nilza Huyer Ely, Véra Lucia Maciel Barroso .1999, 600p
Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Bemfica, Barroso.2000,696p
Raízes de Canela. Pedro Oliveira e Vera Lúcia Maciel Barroso. 2003. 780p
Raízes de Capão da Canoa. Vários Autores. 2004. 665p
Raízes de Osório. Vários autores.2004, 832p
Raízes de Sananduva. Claudir J. Bernardi e Véra Lucia Maciel Barroso.2004, 450p
Raízes de São Marcos e Criúva. Áureo Bertelli e outros .2005, 912p
Raízes de Alvorada. Véra L. M. Barroso. 2006 665p
Raízes de Igrejinha. Véra Lucia Maciel Barroso. 2008.
Raízes de Viamão. Véra Lucia Maciel Barroso. 2008.
Raízes de Taquara., Paulo Mossman Sobrinho, Véra Lucia Maciel Barroso. 2008.