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QUEM ESCREVE A HISTÓRIA?

UM ESTUDO HISTORIOGRÁFICO DO
PROJETO RAÍZES SOB AS LENTES DA CULTURA HISTÓRICA.
Prof.ª Mestª. Sandra Cristina Donner

Resumo
Esta comunicação propõe-se a analisar o Projeto Raízes. Um fenômeno histórico
que iniciou em 1992 e ainda está ativo no Rio Grande do Sul. Através da mediação de
uma comissão organizadora, composta por historiadores, vários municípios gaúchos
promoveram/promovem eventos comemorativos sobre sua história que culminam com o
lançamento de livros que pretendem tematizar suas origens.
Como instrumento teórico utilizaremos o conceito de Cultura Histórica, proposto
por Manuel Salgado Guimarães, e outros autores, questionando sua aplicação para o
contexto do Projeto Raízes, uma vez que este foi organizado por historiadores
acadêmicos em parceria com a comunidade local.
Palavras-chave: Historiografia, História Local, Cultura Histórica.

A História Local tem, nos últimos anos, adquirido um espaço cada vez maior no
mercado editorial e nos estudos acadêmicos. Esse gênero, todavia, é muito antigo, se
compreendermos como relato histórico o produzido pelos cronistas das pequenas e
grandes cidades e pelos cidadãos das mais diversas profissões que se propõe a relatar a
“história” de sua região. Sem um apoio documental profundo, ou métodos de pesquisa,
eles contam os caminhos de seus municípios ao longo de décadas e até mesmo de
séculos. Normalmente os leitores são seus próprios pares. Sua pretensão é a de chegar às
escolas e aos círculos literários, raramente às cátedras acadêmicas.
No Rio Grande do Sul, surgiram várias coleções sobre histórias municipais,
somente para citar algumas delas, temos o Projeto Raízes, os livros da série Marcas do
Tempo, Povoadores, todos editados pela Editora EST.
Esta comunicação irá apresentar o Projeto Raízes e mapear um campo ainda a
ser explorado pelos estudos acadêmicos: as Histórias Locais feitas em série, organizadas
por historiadores ou não. Não pretendemos fechar a questão dando pareceres sobre o
tema, apenas indica-lo como um campo possível para análise. O conceito utilizado
como auxiliar para compreendermos o fenômeno é o de Cultura Histórica, que não será
aprofundado por uma questão de tempo e de espaço de publicação.

Projeto Raízes:
O Projeto Raízes é um fenômeno histórico que iniciou em 1992 e ainda está
ativo no Rio Grande do Sul. Através da mediação de uma comissão organizadora, vários
municípios gaúchos promoveram/promovem eventos comemorativos sobre sua história
que culminam com o lançamento de livros que têm como tema suas origens.
Essa proposta partiu de uma série de encontros em alguns municípios do
Nordeste gaúcho, planejados com o objetivo de discutir a história desta região. O
primeiro evento ocorreu na cidade de Santo Antônio da Patrulha e, a partir desta cidade,
buscou-se o contato com os municípios “filhos, netos e bisnetos”. Uma equipe
encabeçada pela historiadora Vera Lúcia Maciel Barroso1, juntamente com as
administrações locais, promoveu o I Encontro dos Municípios Originários de Santo
Antônio da Patrulha, em 1990. No ano seguinte, São Francisco de Paula, sediou o
segundo Encontro e, por fim Tramandaí, dito “município-neto”, organizou em 1992.
Utilizando os textos produzidos pelas palestras e comunicações, foi editado um livro:
“Raízes de Santo Antônio da Patrulha” (1992, p. 16).

Os objetivos do projeto eram:


• Resgatar os dados de ocupação dos povoados que nasceram na área do
primitivo município de Santo Antônio da Patrulha.
• Verificar a documentação e os acervos de interesse comum que
existam nos arquivos dos municípios para posterior catalogação.
• Estabelecer uma política de preservação de memória histórica e
cultural da área originária.
• Criar mecanismos de intercâmbio cultural e de memória entre os
municípios originários de Santo Antônio da Patrulha..
A partir desse primeiro movimento e da produção do livro, a equipe de trabalho
passou a percorrer as demais cidades que se desmembraram de Santo Antônio e propor
que estas também elaborassem e coletassem suas pesquisas de história municipal. A

1
Professora Doutora, atualmente é coordenadora do curso de História nas Faculdades Porto Alegrenses.
segunda cidade a receber o projeto foi Lagoa Vermelha, em 1993. Também ela
promoveu um encontro, com palestras, comunicações, apresentações culturais e que
culminou no livro, editado no mesmo ano. Segundo a Comissão de Organização, o livro
não pôde contemplar todo o evento (Raízes de Lagoa Vermelha, p. 13):
“As múltiplas atividades paralelas, o livro também excluiu- e não poderia ser
diferente: eis a troca de informações durante bate-papos informais, as
curiosidades despertadas, a emoção pela inesperada valorização de um
registro até então desconsiderado. Não recolheu para dentro de si a maneira
cavalheiresca, fraterna e organizada com que, aqui, foram recebidos os
representantes de tantos outros municípios aparentados todos eles com Santo
Antônio da Patrulha.”

O encontro seguinte foi realizado em Gramado, em 1995, como comemoração


de seu aniversário de 40 anos de emancipação. Este apresenta uma característica de
destoa dos demais. Enquanto os anteriores se mostravam preocupados com a
valorização interna de sua História, com o resgate de suas “raízes” e cuidado com seu
patrimônio histórico para fruição local, no livro sobre Gramado aparece um interesse na
história como vitrine turística (Raízes de Gramado, p. 8.):

“Este é o trabalho que o Patrimônio Histórico e Artístico Municipal de


Gramado, sob minha Direção, tem procurado desenvolver, relendo os
habitantes, os documentos, as fotos, os objetos, a história já contada e
procurando mostrar apara a nossa população e para os visitantes que
Gramado tem memória, que Gramado precisa preservar sua história , de seus
eventos, de seu trabalho comunitário, de sua administração pública.”

Os Municípios que abrigaram as demais edições foram Vacaria (1996)


Veranópolis (1998) e Terra de Areia (1999) e Santo Antônio e Caraá (2000). Em todos,
salta aos olhos a preocupação com suas origens e possíveis aproximações com o
município primeiro, Santo Antônio. Também o Projeto chegou (porque foi uma
iniciativa proposta ao prefeito e não um movimento que partiu da secretaria de cultura,
ou do interesse da comunidade local) em um momento de festividade pela emancipação.
No livro de Veranópolis há um relato do prefeito, contando que foi “seduzido” pela
idéia de montar um evento com palestras e comunicações que mobilizassem a cidade e
marcassem o aniversário da emancipação.
Uma vez que o Projeto estava em andamento as demais edições se sucederam de
maneira exponencial:
2003- Raízes de Canela
2004- Raízes de Capão da Canoa
2004- Raízes de Osório
2004- Raízes de Sanaduva
2005- Raízes de São Marcos e Criúva
2006- Raízes de Alvorada
2008- Raízes de Viamão
2008- Raízes de Igrejinha
2008- Raízes de Antônio Prado

A História Local e Regional no Rio Grande do Sul

Quais são os limites entre “a” História, e a história local e regional? Essa
discussão sobre territórios e campos historiográficos é uma preocupação acadêmica
atual. Observando a tradição de produção riograndense, encontramos
autores/pesquisadores que a um só tempo pretendiam fazer uma história local e uma
História Nacional, segundo (NEDEL, 2005, p. 3):

“Desde o aparecimento do Instituto Histórico Geográfico (IHGRS), em 1920,


até décadas depois da criação de cursos superiores de História em Porto
Alegre, autores locais, mutuamente classificados como regionalistas ou não
regionalistas, conciliando suas ocupações entre o jornalismo, o exercício
literário e a crítica histórica entre direção de entidades, de projetos editoriais
e a militância política, criaram e alimentaram uma tradição escrita que, de
uma só penada, ditava os cânones de uma estética (o regionalismo literário),
de uma disciplina (a história regional) e de um objeto de conhecimento- os
elementos constituitivos da identidade gaúcha extensível a todos os
habitantes do Rio Grande do Sul.”

No Rio Grande do Sul, como em vários outros estados brasileiros, durante a


primeira parte do século XX a escrita “oficial” da História foi praticamente
monopolizada pelo Instituto Histórico Geográfico. Neste espaço as pesquisas voltavam
para uma história monumental e celebrativa, por vezes idílica, em que a paisagem era
uma protagonista tanto quanto o peão da fronteira, ou os coronéis na política.

Segundo Letícia Nedel, os estudiosos do IHGS identificavam-se com o


folclorismo, sendo alguns membros da Comissão Estadual de Folclore, e pretendiam
colocar o gaúcho como um dos elementos nacionais, sua temática era pautada por um
calendário cívico e celebrativo, muito ligado à vivência de seus autores:
“O debate histórico, na verdade, resumia-se a um pequeno número de
autores, os mesmos a quem se destinavam as diretorias dos órgãos públicos,
de comissões de publicação, de escolas e de jornais. A um só tempo
bacharéis, militares, literatos, folcloristas, burocratas, jornalistas e
historiadores, esses polígrafos fundadores de uma História em via de ser
profissionalizada marcaram presença nas celebrações rituais de identidade
local, participando de discursos inflamados nos palanques e colunas de
jornal. Como inventores do regionalismo, forjaram através de inúmeros
empréstimos nacionais e estrangeiros, um vocabulário específico capaz de
fazer coincidir os significados de povo e ‘gaúcho’ em narrativavs que
ordenavam passado e presente nos atavismos da ‘raça’, dos ‘costumes’, da
paisagem e do ‘gênio’ do herói civilizador.” (NEDEL, 2005, P. 65)

Sendo assim, os primeiros “historiadores” do Rio Grande do Sul, ainda que sem
uma pretensão teórica, realizavam uma história regional. Seu objetivo era retratar a
ocupação do território, poderiam divergir quanto às influências, se lusitana ou platina,
como apontam os estudos de Ieda Gutfreind (1998), mas sempre colocando como foco
as particularidades do seu povo e sua história, seja a partir das influências das Missões
Orientais e dos contatos fronteiriços na formação cultural, seja minimizando a
aproximação do Rio Grande do Sul e enfatizando as raízes lusitanas de ocupação e
cultura na sociedade e história gaúcha

Já, nos anos 50, com o advento das faculdades de Filosofia e História, o mundo
acadêmico começa a ter um papel significativo na produção historiográfica. Os autores
folcloristas passaram a ser criticados, a nova geração adotou uma linha mais conectada
com os estudos de Gilberto Freire (NEDEL 2005, p. 270) e voltaram seus estudos para a
produção cultural do estado, segundo Nedel (2005, p. 412):

“A localização ambivalente do projeto folcorico- movimento cuja identidade


disciplinar situava-se na vanguarda do que o precedia e na retaguarda do que
estava por vir- foi determinante para sua falência. Enquanto sofria críticas
dos sociólogos atentos às questões que começariam a se impor como chave-
mestra da interpretação da realidade brasileira (o subdesenvolvimento e a
dependência econômica), os polígrafos, representantes de uma memória
institucional legitimada como verdade positiva por técnicas da erudição
documentária fizeram das tentativas de requalificação (científica) da
singularidade regional do Rio Grande do Sul o objeto da habitual patrulha do
particularismo.”

Embora estas pesquisas desenvolvidas por amadores, jornalistas, observando o


local agora não tivessem um grande espaço na academia, esse “gênero” de História não
desapareceu. Ao contrário, a partir dos anos 80 e, especialmente nos anos 90,
observamos um aumento significativo no número de publicações desenvolvidas por
todos os tipos de autores, desde profissionais da História aos já citados polígrafos ou
amadores.

Já existe um trabalho “mapeando” estas obras de história local, desenvolvidas


nos anos 80 e 90, mas a área pesquisas é restrita ao planalto gaúcho. A historiadora
Ironita Machado (2001) realizou uma pesquisa quantitativa, tabulando dados sobre as
obras de história municipal entre 1985 e 1995). Ela encontrou alguns elementos em
comum entre as várias obras: praticamente todos foram patrocinados pelos meios
oficiais: prefeituras, secretarias de cultura, câmaras de vereadores, e, talvez por isso, não
questionam a atual estrutura social, cultural e política, também tecem elogios aos
“desbravadores” e primeiros ocupantes (brancos) do território. Segundo Machado
(2001, p. 17):

“Os livros de história que compõe a cultura historiográfica regional


representam uma possibilidade e uma manifestação de orientação à
experiência cotidiana, como articulação do poder entre o político e o cultural
de um determinado grupo social, visando à construção e à manutenção de
uma identidade no atual contexto de transformações históricas.”

Como foi exposto, a historiografia gaúcha surge como uma atividade de


amadores, folcloristas, regionalistas que direcionavam suas pesquisas para a realidade
local, em um segundo momento, a pesquisa histórica passa a ser tarefa da Academia,
mas, mesmo sem a legitimidade científica que as cátedras oferecem, muitos trabalhos de
história local, municipal foram realizados e consumidos ao longo do século XX. Uma
das possibilidades de explicação para esse fenômeno pode ser encontrada no conceito de
Cultura Histórica.

Cultura Histórica

O conceito de Cultura Histórica, embora seja relativamente novo como categoria


interpretativa, já foi observado por vários pensadores. Passou pelas reflexões de
Nietzsche nas suas Considerações Extemporâneas2; pelas discussões sobre memória e

2
“Aquilo que é celebrado nas festas populares, nos dias comemorativos religiosos ou guerreiros, é
propriamente um tal “efeito em si”: é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que está guardado como
um amuleto no coração dos empreendedores, e não a conexão verdadeiramente histórica de causas e
efeitos que, completamente conhecida, só provaria que nunca sairá de novo um resultado exatamente
igual no jogo de dados do futuro e do acaso.” Nietzsche Friedrich. Considerações Extemporâneas. Pp. 61.
tempo na obra de Ricceur (2007); pelas questões sobre as definições e construção da
idéia contemporânea de História, na obra de Koselleck (2006), e, no Brasil, encontra-se
presente na obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães e Astor Antônio Diehl.
A maioria dos historiadores citados anteriormente apresenta a noção atual de
História como fruto do Iluminismo e da construção do Estado Nação. Sendo assim, a
História como saber disciplinado, ou domesticado, como diria Elias (1993) é uma parte
do “processo civilizatório”. Segundo Guimarães (2006, p. 11):

“Forjada a partir da experiência revolucionária de 1789, essa cultura


histórica problematizaria de forma cada vez mais intensa a relação entre o
passado e presente, agora definitivamente separados por uma experiência
radical de ruptura. A integração do passado a partir de categorias como a de
desenvolvimento e progresso poderia assegurar ao presente um sentido e um
ponto de ancoragem, indicando, no mesmo movimento os caminhos do
futuro.”

Em sua análise sobre as construções historiográficas, Guimarães coloca que toda


a produção de discursos sobre o passado possui uma historicidade, que é fruto dos
lugares, do contexto e dos autores que a produziram. Todavia, é uma tendência silenciar
sobre esse processo, e aceita-lo como natural. A “versão” vencedora acaba por impor-se
sem sofrer questionamentos.
Essa idéia de História, surgida no período oitocentista, conecta o passado com o
futuro, como se neste passado, o futuro já estivesse sinalizado e os acontecimentos do
momento fossem o óbvio desfecho de todo um movimento anterior (GUIMARÃES,
2000, p. 26):
“Ao construir o passado como projeção do presente e desejo de futuro, a
história é capaz de disciplinar este passado segundo os sentidos importantes
para o presente em construção, conjurando incertezas e dúvidas próprias de
um mundo vivendo em meio ao turbilhão de mudanças que parecem
inviabilizar uma referência ao passado nos termos de uma busca de
comparações com o presente, como forma de extrair soluções para a ação no
mundo.”

Essa sensação de permanência do passado no presente é um indicativo de que


uma das funções do processo histórico é construir identidades que se relacionam em
uma vivência política e social. Isso fica claro quando pensamos na história disciplina
escolar ou na que é promovida pelas administrações públicas. Essa afirmação se

Claro que o filósofo não pretendia elaborar um conceito ao escrever suas reflexões, mas este texto tornou-
se muito importante pois vários historiadores passaram a analisar a forma como a História é produzida em
cima das denúncias de Nietzsche sobre a onda comemoracionista.
materializa na escolha dos elementos celebrativos que virão à luz e dos eventos e
monumentos do passado que constituirão a memória e a história continuamente
relembrada, ou ruminada, como acusava Nietzsche3. Uma Cultura Histórica. Mas,
diferente da ruminação tediosa, os elementos mudam a cada geração que repensa seu
passado e o comemora.
Junto com novos elementos, também temos os usos políticos deste passado. A
idéia de que exista uma cultura histórica, e de existe um rol mínimo de “memórias” a
serem lembradas, demonstra claramente que as escolhas sobre passado mudam com os
ventos do poder: “Em suma, trata-se de assumir a escrita como uma operação que
aciona procedimentos e procede escolhas, pondo em disputa visões e significações do
passado” (GUIMARÃES, p. 13, 2003).
Uma vez que percebemos uma intencionalidade nas escolhas sobre o passado,
especialmente quando este é trabalhado fora dos critérios acadêmicos, por amadores,
podemos questionar quem faz uso destes conhecimentos, e porque foram investidos
energia e dinheiro público (muitas vezes) para promovê-lo.
Essa onda comemorativa e de retomada do passado, que aparece de maneira
muito concreta nos eventos do Projeto Raízes, pode ser explicada por duas vias. Astor
Dihel (2002) indica que o ato de rememorar leva a uma repoetização do passado,
criando uma nova estética deste passado e, por sua vez, resignificando as identidades
sociais presentes no grupo que celebra. Ou seja (GUIMARÃES, p. 34, 2000):
“A Historiografia como investigação sistemática acerca das condições de
emergência dos diferentes discursos sobre o passado, pressupõe, como
condição primeira, reconhecer a historicidade do próprio ato de escrita da
História, reconhecendo-o como inscrito num tempo e lugar. Em seguida é
necessário reconhecer esta escrita como resultado de disputas entre
memórias, de forma a compreende-la como parte das lutas para dar
significado ao mundo. Uma escrita que se impõe tende a silenciar sobre o
percurso que levou-a à vitória, que aparece ao final como decorrência natural;
perde-se desta forma sua ancoragem no mundo.”

Entrelaçamentos

3
“Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante áquele que se forçasse a
abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas de ruminação e ruminação sempre
repetida. Portanto, é possível viver quase sem lembrar e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é
inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver.” Neste texto o autor critica as práticas
celebrativas cheias de ufanismo e otimismo conectando um passado glorioso com um futuro que não pode
lhe deixar nada a dever. Nietzsche Friedrich. Considerações Extemporâneas.
Refletirmos sobre a história da História é um desafio. No caso da História Local,
além de questionarmos sobre as escolhas temáticas, e procedimentos teóricos, questões
importantes no debate acadêmico, também podemos analisar quais são os
autores/pesquisadores dessa história, quais as intenções, quais são suas pretensões ao
realizarem estas pesquisas.

Na historiografia gaúcha, a temática regional foi uma constante durante a


primeira metade do século XX. Após a ascensão das faculdades de História, os
pesquisadores voltaram-se para temas mais amplos, e, mesmo quando o foco era sua
região, a forma de aproximação com o objeto era intermediada por discussões de
procedimentos metodológicos e por um crivo teórico. Mas, apesar desta história ser
reconhecida em sua validade acadêmica, existe toda uma produção de conteúdo
histórico elaborado fora das Universidades. Fica a questão, esse material pode ser
considerado História?

No Projeto Raízes, a justificativa para os seminários e posteriormente para os


livros organizados a partir destas falas é a necessidade de retenção da História. Segundo
os organizadores, um povo sem história não teria parâmetros para pensar seu futuro,
utilizando as palavras do prefeito que escreveu o prefácio do livro sobre Santo Antônio
da Patrulha (1992):

“Foi e tem sido uma oportunidade ímpar para que os professores, alunos e
comunidade integrem-se na luta para manter viva a memória e as tradições da
nossa terra, como forma de se garantir um presente e um futuro mais
progressistas, pois ‘povo sem tradição (leia-se memória) é um povo que
morre a cada geração’”

A busca pela sua história, e que culminou nos seminários temáticos e,


posteriormente, nos livros do Projeto Raízes refere-se a uma idéia bastante comum na
historiografia da primeira metade do século XX no Rio Grande do Sul: a História como
mosaico. Juntando as “peças” de todos os municípios, ter-se-ia então, um panorama
completo da história do próprio estado. Podemos observar isso quando, ao final de cada
livro, encontramos um diagrama das cidades “filhas”, “netas”, “bisnetas” e “trinetas” de
Santo Antônio da Patrulha. Todos os municípios que se emanciparam e que faziam
parte do território antigo desta cidade.
Se os municípios são vistos com metáforas familiares na criação do
organograma, também aparecem referências de origem em todos os livros, remetendo a
um passado comum, fruto da força dos tropeiros, gente rude que soube fincar raízes na
região e muitas vezes combateu índios ferozes em nome da civilização (BARBOSA,
p.5, 1993): “Até por volta de 1830, os campos de Lagoa Vermelha não passavam de
terra de ninguém, excluídos os terríveis índios Coroados, que, mediante sua cruel
hostilidade, atrasaram a fundação de nosso município.”

Um trecho como o citado a cima, seria passível de críticas severas no meio


acadêmico, mas, no caso dos autores de grande parte dos artigos dos livros do Projeto
Raízes, esse tipo de interpretação é aceitável. Isso porque, salvo os organizadores e,
eventualmente, um ou dois historiadores acadêmicos, a maior parte são membros da
elite intelectual local, e políticos ou profissionais liberais ilustres da cidade como no
caso da descrição, ainda sobre Lagoa Vermelha:

“Temos um autêntico poeta parnasiano, que ainda nos brinda com sua
presença: Auto Paulo Evandro Machado, pai de outro poeta, Dr. Paulo
Evandro Domingues Machado, gerente regional do Banrisul, genro da nossa
historiadora e brilhante cronista social Nelly Pinto Lacerda, que, por sua vez,
é cunhada de um Ministro da República.”

Essa “História” produzida no Projeto Raízes não tem como foco uma pretensão
de respaldo acadêmico. E sim, é vista como uma possibilidade exposição das
“pesquisas” da intelectualidade local, que foram produzidas especialmente para
constaram nos seminários. Os protocolos da disciplina acadêmica não são seguidos, nos
artigos não encontramos referências a fontes, ou métodos de pesquisa. Mas, isso não é
importante para o público ao qual essa história é dedicada. Ela é vista como um possível
instrumento de uso em sala de aula, como uma oportunidade de promoção da
administração municipal. Os historiadores que elaboraram o projeto e que propuseram
para as cidades sua implantação participaram com apenas um ou dois artigos no livro,
estes sim, escritos de acordo com as normas acadêmicas.

Se esse material (livros e seminários) tem tantos problemas metodológicos,


porque atingiu a importância que teve, afinal, foram dezesseis livros publicados entre os
anos de 1992 e 2008? O conceito de Cultura Histórica pode indicar algumas respostas.
Segundo Guimarães (2000, p. 31):
“Na medida que esse futuro é percebido como desdobramento de um
passado, seu sentido já encontra-se comprometido e sua condição inscrita no
passado. (...) O futuro, assim domesticado pela História jamais seria
percebido como realização do novo, mas como realização daquilo que já se
fazia presente. A História seria assim um registro sistemático submetido ao
crivo da prova científica daquilo que deveria efetivamente ter acontecido
reafirmando uma tradição necessária e cuja transmissão torna-se condição da
vida coletiva presente na invenção do futuro.”

Os artigos apontam para um passado tão glorioso como o futuro que se


vislumbra. Os seminários, na maior parte das vezes, coincidiam com os aniversários das
cidades, e com suas comemorações de emancipação. A História neste caso é consumida
como Cultura Histórica, ou seja, como um objeto cultural. As comemorações, os
monumentos, fazem parte de uma intenção de memória ligada a busca de um passado
comum, que legitime os feitos atuais, e projeto o futuro com a “grandeza” do passado já
contado.

Essa história contida no material elaborado pelo Projeto Raízes, tem como
função ser consumida enquanto objeto cultural, pois, segundo Sarlo (2007, p. 13)

“(...) a história de grande circulação é sensível às estratégias com que o


presente torna funcional a investida do passado e considera legítimo pô-lo em
evidência. Se não encontra resposta na esfera pública atual, ela fracassa e
perde todo o interesse. A modalidade não acadêmica (ainda que praticada por
um historiador de formação acadêmica) escuta os sentidos comuns do
presente, atende às crenças de seu público e orienta-se em função delas. Isso
não a torna pura e simplesmente falsa, mas ligada ao imaginário social
contemporâneo, cujas pressões ela recebe e aceita mais como vantagem do
que como limite.”

Portanto, como classificar obras do gênero desenvolvido no Projeto Raízes? São


História Local, e devem ser consideradas, mesmo sem obedecerem critérios
acadêmicos? São um objeto cultural, como literatura, filmes, música e devem ser lidos
como tal? Em que medida ocupam um espaço que a academia não conseguiu suprir?

Essas perguntas são amostras das possibilidades de reflexão que este tema nos
traz e que precisam vir ao debate, pois, assim como esta coleção, existem muitas outras
em circulação sendo utilizadas nas escolas e nos discursos dos secretários de cultura e
dos prefeitos. O estudo dessas obras pode trazer respostas sobre o espaço da História
fora da academia e sua importância na vida dos habitantes dos diversos municípios.
Além disso, mapear os temas mais freqüentes e seus enfoques traz para o diálogo a
História como fruto de uma Cultura Histórica, expressa nos monumentos, nas datas
comemorativas e nas escolhas e nas publicações municipais.

Bibliografia:

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Anexo:

Lista de livros editados pelo Projeto Raízes:

Raízes de Santo Antônio da Patrulha. Org. Vera Lúcia Maciel Barroso. 1992.
Raízes de Lagoa Vermelha Vários autores. 2 volumes . 1993, 266p
Raízes de Gramado. 2 v. Marilia Daros/ Véra Lucia Maciel Barroso. 1995, 440p
Raízes de Torres. Vários autores. 1996.
Raízes de Vacaria. Org. Vera Lúcia Maciel Barroso. 1996.
Raízes de Veranópolis. Frei Rovílio Costa e outros .1998, 450p
Raízes de Terra de Areia. Nilza Huyer Ely, Véra Lucia Maciel Barroso .1999, 600p
Raízes de Santo Antônio da Patrulha e Caraá. Bemfica, Barroso.2000,696p
Raízes de Canela. Pedro Oliveira e Vera Lúcia Maciel Barroso. 2003. 780p
Raízes de Capão da Canoa. Vários Autores. 2004. 665p
Raízes de Osório. Vários autores.2004, 832p
Raízes de Sananduva. Claudir J. Bernardi e Véra Lucia Maciel Barroso.2004, 450p
Raízes de São Marcos e Criúva. Áureo Bertelli e outros .2005, 912p
Raízes de Alvorada. Véra L. M. Barroso. 2006 665p
Raízes de Igrejinha. Véra Lucia Maciel Barroso. 2008.
Raízes de Viamão. Véra Lucia Maciel Barroso. 2008.
Raízes de Taquara., Paulo Mossman Sobrinho, Véra Lucia Maciel Barroso. 2008.

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