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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

FÁBIO SADAO NAKAGAWA

As espacialidades em montagem
no cinema e na televisão

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

São Paulo

2008
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP

FÁBIO SADAO NAKAGAWA

As espacialidades em montagem
no cinema e na televisão

DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

Tese apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para a obtenção do título
de Doutor em Comunicação em Semiótica, sob a
orientação da Profa. Dra. Lucrécia D´Alessio
Ferrara.

São Paulo

2008
Banca examinadora

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Pesquisa de Doutorado realizada com o auxílio da bolsa de estudos,
concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
À Regiane
Com carinho e com afeto.
Agradecimentos

Toda boa caminhada se faz sempre no diálogo com o outro. Essa trajetória,
intensa e instigante, foi construída dessa maneira. Nela, entrecruzaram-se
diferentes vozes que contribuíram para a sua expansão. Nomear cada uma
delas é uma forma de expressar os meus sinceros agradecimentos:

À minha orientadora Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara, Senhora de todos os


espaços, pela maestria com que conduziu esta pesquisa, por sua gentileza,
generosidade e delicadeza.

À minha esposa, Regiane Miranda de Oliveira. Parceira na vida e no afeto.

À Profa. Dra. Irene de Araújo Machado, pela mente e pelo coração


compartilhados.

À Profa. Dra. Carmen Lúcia José, por me acompanhar todos esses anos, com
suas sábias palavras e seus gestos nobres.

Ao Prof. Dr. Arlindo Machado, de cuja obra sou leitor e admirador.

Aos integrantes dos grupos Oktiabr e Espacc, pelas reuniões de estudos, que
muito contribuíram para a composição desta tese.

À minha mãe Lúcia e aos meus pais do coração: Marlene e Bartholomeu.


Obrigado, sempre.

À Michiko Okano, Karin Thrall e Adriana Vaz Ramos. Amizades feitas nesta
jornada no COS, que levo para outras jornadas.

À Paola Maria Felipe dos Anjos e Sônia Yoshie Nakagawa, pela leitura
cuidadosa desta pesquisa.

Aos amigos eternos: Conceição Golobovante, Marlivan Moraes de Alencar, Ana


Paula de Oliveira, José Roberto Gonçalves e Armando Sérgio dos Prazeres.

À Nielse Maluf, pelas palavras certeiras e carinhosas.

À Cida Bueno e Edna Conti Marcello, pela força e pela torcida.


Resumo

Essa tese de doutorado procura entender de que maneira


as espacialidades são construídas no cinema e na televisão. Com
base nessa problemática principal, outras questões relacionadas
são investigadas, tais como: as relações existentes entre as
construtibilidades do espaço e a montagem audiovisual; o modo
como espacialidades fílmicas dialogam com as televisuais e os
vínculos comunicativos estabelecidos entre as espacialidades
investigadas e o espectador.
Em conseqüência, o objetivo principal desta pesquisa é
contribuir para as investigações sobre as formas de organização
do espaço em sistemas midiáticos e sobre as maneiras pelas quais
essas construções geram sentidos. Dessa forma, a pesquisa
relaciona-se com outras que têm as espacialidades como objetos
de investigação, com a intenção de perscrutar categorias de
análise que possam tornar mais claros os seus modos de
articulação.
O corpus de análise está dividido em dois grupos. O
primeiro, relativo ao cinema, é composto pelos longas-metragens:
A ostra e o vento (Walter Lima Jr./1997) e Elefante (Van Sant/
2003). O segundo, relacionado à televisão, é constituído pela
primeira jornada da microssérie Hoje é dia de Maria, dirigida por
Luiz Fernando Carvalho, em 2005.
A principal estratégia metodológica de análise é a leitura
comparativa dos textos por meio dos modos de ordenação das
espacialidades em montagem. Entre eles, a análise comparativa
possibilita detectar diferentes modos de desenho do espaço e,
também, ela auxilia a percepção e o entendimento das fronteiras
de contaminação entre linguagens.
Para a leitura e investigação do corpus de análise, esta
pesquisa dialoga com as categorias de análise do espaço —
espacialidade, visualidade, visibilidade e comunicabilidade—,
propostas pela Profa. Dra. Lucrécia D’Alessio Ferrara; com o
conceito de montagem investigado pelo cineasta russo Sergei
Eisenstein; com as noções de fronteira, texto cultural, memória e
dispositivo inteligente entre sistemas, propostas por Iuri Lótman e,
também, com as noções de imagem, diagrama e a metáfora,
estudadas pelo semioticista Charles Sanders Peirce. Em razão do
tema proposto, esse entrecruzamento de idéias é fundamental
para compreender o modo como o espaço é pensado e ordenado
pela montagem através das espacialidades conflituosas existentes
entre células sígnicas e culturais.

Palavras-chave: Espacialidade; montagem; cinema e televisão.


Abstract

This doctorate thesis tries to understand how spacialitites


are built in cinema and television. Based on this main problem,
other related issues are also studied: the existing relationships
between space constructibility and audiovisual montage; the way
movie spacialities communicate with television constructibilities and
the communicative relations established between the studied
spacialities and the viewer.
Consequently, the main objective of this study is to
contribute to research on space organization forms in media
systems and on the ways these construction provide senses. Thus,
the study is related to others whose study object is spacialities,
aiming to investigate analysis categories that may clear out their
articulation forms.
The analysis corpus is divided into two groups. The first one,
related to cinema, consists of two movies: A ostra e o vento (Walter
Lima Jr./1997) and Elephant (Van Sant/ 2003). The second one,
related to television, consists of the first journey of the micro series
Hoje é dia de Maria, directed by Luiz Fernando Carvalho, in 2005.
The main methodological analysis strategy is the
comparative reading of the texts through ordering forms of montage
spacialities. Among them, the comparative analysis allows
detecting different forms of space design and also helps the
perception and understanding of contamination borders between
languages.
In order to do the reading and investigation of the analysis
corpus, this study uses the space analysis categories – spatiality,
visuality, visibility and communicability - proposed by Prof. Dr.
Lucrécia D’Alessio Ferrara; the concept of montage studied by the
Russian movie maker Sergei Eisenstein; the notions of border,
cultural text, memory and intelligent dispositive among system
proposed by Iuri Lotman; and also the notions of image, diagram
and metaphor studied by semioptician Charles Sanders Peirce.
Due to the proposed theme, this idea interweaving is fundamental
to understand how the space is thought of and ordered in montage
through the existing conflicting spacialities among sign and cultural
cells.

Keywords: spatiality; montage; cinema and television.


Lista de ilustrações

Fig. 01- Ilha dos Afogados: plano 1....................................................................................19

Fig. 02- Técnica de sobreposição.......................................................................................19

Fig. 03- Ilha dos Afogados: plano 2....................................................................................20

Fig. 04- Ilha dos Afogados: plano 3....................................................................................20

Fig. 05- Marcela aos 6 anos de idade.................................................................................29

Fig. 06- Plano de detalhe da mão de Daniel.......................................................................30

Fig. 07- Seqüência de alteração da luz...............................................................................31

Fig. 08- Seqüência do rádio transmissor............................................................................34

Fig. 09- John Macfarland....................................................................................................45

Fig. 10- Planos inicial e final do diretor...............................................................................51

Fig. 11- Vista do percurso de John.....................................................................................53

Fig. 12- Vista do percurso de Elias.....................................................................................53

Fig. 13- Vista do percurso de Michelle................................................................................53

Fig. 14- Plano subjetivo de Eric jogando.............................................................................54

Fig. 15- Enquadramento de costas das personagens: Nathan e Carrie; Elias; Britanny,
Jordan e Nicole...................................................................................................................54

Fig. 16- Plano subjetivo de Alex..........................................................................................56

Fig. 17- Equipe de filmagem no main hallway....................................................................57

Fig.18- Elias caminhando pelo corredor principal...............................................................58

Fig.19 – Eric e Alex no main hallway..................................................................................58

Fig. 20- Travelling de 360° em torno da personagem Alex.................................................59

Fig. 21- Desenho do elefante no quarto de Alex.................................................................62

Fig. 22- Vista externa do domo...........................................................................................88

Fig. 23 – Vistas internas do domo ......................................................................................89


Fig. 24 – Imagens da vinheta de abertura..........................................................................98

Fig. 25- Encontro entre Maria e o Maltrapilho...................................................................101

Fig. 26 – Cenas do vídeo Videocabines...........................................................................114

Fig. 27 – Planos de conjunto em Hoje é dia de Maria......................................................119

Fig. 28- Planos gerais dos percursos................................................................................120

Fig. 29 – Visão do cume: a carvoaria................................................................................122

Fig. 30- Visão do cume: perspectiva do pai......................................................................123

Fig. 31- Seqüência aérea do Pássaro Incomum...............................................................124

Fig. 32- Travelling do caminhar de Maria..........................................................................124

Fig. 33- Movimento de grua de Maria...............................................................................124

Fig. 34 – Movimento panorâmico do trajeto de Quirino....................................................125

Fig. 35- Seqüência da partida do pai................................................................................126

Fig. 36- Seqüência da partida de Maria............................................................................128

Fig. 37- Seqüência da morte do Pai..................................................................................129

Fig. 38- Seqüência de construção da máscara de Asmodeu...........................................131

Fig. 39- Máscara alegre de Quirino...................................................................................132

Fig. 40 – Máscara raivosa e triste de Quirino...................................................................132

Fig. 41- Retorno da máscara alegre.................................................................................133

Fig. 42- Seqüência da máscara mortuária........................................................................134

Fig. 43- Seqüência do “desaparecimento” do pai.............................................................135

Fig. 44 – Bosque gigante em Hoje é dia de Maria............................................................137

Fig. 45 - Quadro comparativo entre imagens....................................................................138

Fig. 46- Cenas retomadas pelo gancho entre episódios...................................................146

Fig. 47- Partida de Maria e Ciganinho..............................................................................152

Fig. 48- Percurso em diagonal da câmera e das personagens........................................152


Fig. 49- Chegada de Maria às franjas do mar...................................................................153

Fig. 50- Travelling acompanhando a linha do horizonte do mar.......................................154

Fig. 51- Fuga de Manuel em Deus e o diabo na terra do sol............................................155

Fig. 52- Cena final de Deus e o diabo na terra do sol.......................................................156

Fig. 53 – Diagrama “árvore”..............................................................................................177

Fig. 54 – Diagrama “labirinto”............................................................................................177

Fig. 53 – Diagrama “rede dirigida”....................................................................................177

Diagrama I – Macroestrutura de A ostra e o vento.............................................................21

Diagrama II – Macroestrutura do longa-metragem Elefante...............................................47

Diagrama III – A montagem entre os espaços dos mortais e do divino............................121

Diagrama IV - Esquema de exibição de Hoje é dia de Maria....................................142/143

Diagrama V - Tensão entre episódios dispostos em semanas distintas...........................147


Sumário

Introdução..........................................................................................................................01

Capítulo 1 - As espacialidades diagramáticas do cinema............................................13


1.1. Entrando no labirinto....................................................................................................14
1.2. A montagem do tempo pela representação do espaço: o percurso sinuoso da Ilha dos
Afogados.............................................................................................................................17
1.2.1. O ziguezague na ilha......................................................................................22
1.2.2. Mar, cela, Marcela..........................................................................................40
1.3. O minoelefante.............................................................................................................44
1.3.1. As visualidades do filme e dos jogos interativos............................................53
1.4. O espectador como leitor de estruturas.......................................................................63

Capítulo 2 - A representação do espaço na jornada de Maria......................................68


2.1. A montagem e linguagem hiperfragmentada da televisão...........................................70
2.2. A primeira jornada de Maria.........................................................................................82
2.3. A caminhada e suas fronteiras.....................................................................................88
2.3.1. As fronteiras entre os textos orais e a tessitura televisual.............................96
2.3.2. O adensamento das fronteiras.....................................................................113
2.4. A macroestrutura de Hoje é dia Maria.......................................................................138

Capítulo 3- Desenhos do espaço. Montagem. Modernidade....................................159


3.1. Os desenhos da espacialidade em montagem..........................................................166
3.2. Modernidade X Moderno: as espacialidades derretendo a programação do
tempo................................................................................................................................180

Referências bibliográficas.............................................................................................190

Ficha técnica dos textos audiovisuais analisados......................................................198


1

Introdução

Baseada na obra Romance d’a pedra do reino e o príncipe do

Sangue do vai-e-volta (1971), de Ariano Suassuna, e dirigida por Luiz

Fernando Carvalho, a microssérie A pedra do reino, exibida em 2007, pela

Rede Globo, provocou polêmica na imprensa especializada em televisão.

O desconforto foi por causa dos baixos índices de audiência alcançados, ao


ficar na média dos 11 pontos na grande São Paulo, segundo a aferição do

Ibope. Considerada aquém do volume de público que a emissora carioca

costuma obter em um programa de dramaturgia exibido no horário nobre, a

baixa audiência foi creditada pela imprensa, basicamente, à pouca extensão

repertorial do espectador e, também, à elaboração compositiva da

microssérie, considerada confusa, barroca e demasiadamente hermética.

Em entrevistas concedidas aos jornalistas Luiz Carlos Merten, do site

Estadão, Sylvia Colombo, da Folha de São Paulo, e Carla Meneghini, de O

Globo, publicadas entre os dias 10 e 11 de junho de 2007, antes da estréia

da microssérie, o diretor Luiz Fernando Carvalho já antevia o estranhamento

que sua obra poderia provocar, uma vez que ela foi pensada como um

“circorama da phantasmagoria” (COLOMBO, 2007). Estruturada como um

organismo incompleto dividido em cinco partes: alma, tronco, cabeça,

membros e coração, A pedra do reino “não tem início, meio e fim, pois cada
2

episódio tem vida própria, independente, mas, ao mesmo tempo, o conjunto

tem uma unidade que faz sentido no universo labiríntico do Ariano”

(MENEGHINI, 2007).

Segundo o diretor, a microssérie foi projetada para ser diferente do

“tédio cartesiano” (COLOMBO, 2007). Ela se destacaria do modelo linear e

programático que domina as formas repertoriadas da cultura, moldadas pela

lógica da economia de produção e de mercado das televisões. Por isso, o

modo de estruturação de A pedra do reino foi nomeado por ele como a

“narrativa do descontrole” (COLOMBO, 2007). Tal descontrole deve-se à

forma de elaborar a narrativa e de articular os elementos audiovisuais que,

pela inventividade, procura estabelecer um diálogo com o público

caracterizado pelo que Carvalho qualificou como “desequilíbrio sensorial”

(COLOMBO, 2007).
De certa maneira, a expectativa do diretor, em relação à atitude

responsiva do público, aproxima-se do desejo eisensteiniano, que almejou

provocar no espectador o descompasso físico e cognitivo mediante o modo

de ordenação de suas obras teatrais e fílmicas. Malgrado as diferenças

que há entre os diretores e suas obras, pode-se reconhecer alguns traços

em comum, como a forma como meio e não como um fim em si mesmo e o

modo de narrar e estruturar a diegese pelos tensos diálogos entre linguagens.

Por meio de tais recursos, pretende-se estabelecer a relação comunicativa

com o espectador, caracterizada pelo embate entre o hábito perceptivo e a

opacidade do arranjo textual.

Este estudo inicia-se com o comentário sobre A pedra do reino, pois

o seu objeto de análise se esboçou com a observação de textos similares à

inventividade dessa microssérie. Neles, a forma e a diegese funcionam

como um terreno de experimentações da linguagem audiovisual, visto que a


3

percepção movimenta-se de imagem em imagem mediante uma lógica de

ordenação altamente fragmentada, repleta de oscilações, conflitos, citações,

traduções e bifurcações.

No caso de Carvalho, a tentativa de construção da “narrativa do

descontrole” não surgiu com a releitura da obra de Ariano Suassuna, mas

com a microssérie Hoje é dia de Maria, também exibida pela Rede Globo

de Televisão em duas jornadas, a primeira em 2005 e a segunda em 2006.

Ambas narram a trajetória da pequena Maria, primeiramente em busca das

franjas do mar e, depois, na cidade cosmopolita. Enquanto o caminhar da

protagonista traça uma unidade aos capítulos de cada conjunto, a estrutura

interna de cada jornada da microssérie, constantemente, fragmenta-se em

várias historietas, revelando ainda as diferentes fronteiras entre linguagens,

nas quais a televisão traduz elementos oriundos, por exemplo, do cinema,


do teatro de variedades, do circo e das artes plásticas.

Tal como Carvalho afirmou em relação à Pedra do reino, o modo de

narrar e a forma compositiva também são herméticos em Hoje é dia de

Maria. Eles buscam traduzir o universo labiríntico não de Ariano, mas dos

contos populares copilados por Luís da Câmara Cascudo, em Contos

tradicionais do Brasil1, e por Silvio Romero, em Contos populares do Brasil,

no caso da primeira jornada e, também, as viagens pitorescas de Dom

Quixote, romance escrito por Miguel de Cervantes Saavedra, no caso da

segunda jornada.

Outro impulso que levou à pesquisa do modo como 1


O ano da primeira
publicação de cada obra
as formas e as narrativas estruturam-se nas linguagens é: 1946 (Contos
tradicionais do Brasil),
audiovisuais partiu da série televisual O decálogo (1988), 1885 (Contos populares
do Brasil), 1605 (El
produzida pela Telewizja Polska, e exibida no Brasil pela ingenioso hidalgo don
Quijote de la Mancha) e
Rede Cultura na década de 1990. Trata-se de uma série 1615 (Segunda parte del
ingenioso caballero don
Quijote de la Mancha).
4

composta de dez partes, dirigida por Krzystof Kieslowski, na qual cada

episódio baseia-se em um dos dez mandamentos bíblicos judaico-cristãos.

Apesar de se configurarem como partes independentes, com histórias e

protagonistas distintos, Kieslowski arquitetou vários cruzamentos entre elas,

por meio dos encontros fortuitos entre personagens de episódios distintos,

pelos arredores do condomínio onde elas vivem.

A relação estrutural entre partes independentes, anos mais tarde, é

restabelecida por esse mesmo diretor, desta vez, por meio do cinema, na

trilogia Trois coleurs: Bleu (1993), Blanc (1994) e Rouge (1994). Cada

longa-metragem é baseado em um dos lemas da Revolução Francesa,

respectivamente, liberdade, igualdade e fraternidade. Tal como ocorre com

O decálogo, a trilogia comporta histórias distintas que se entrecruzam em

algum momento do desenvolvimento de cada narrativa.


Além da obra do diretor polonês, a experiência na maneira de compor

como elemento de atração, como pensava Eisenstein, capaz de comunicar

um modo de pensar e articular a ordenação do texto e não apenas servir de

base para narrar uma determinada história, pode ser vista também em outros

textos oriundos do cinema contemporâneo. Por exemplo, nos longas-

metragens Smoking e No smoking, filmados por Alain Resnais, em 1993; A

ostra e o vento (Walter Lima Jr./ 1997); Corra, Lola, corra (Tom Tykwer/ 1998);

Elefante (Gus Van Sant/ 2003) e 21 gramas (Alejandro González-Iñárritu/

2003).

Neles, tecido como um complexo labirinto, o arranjo textual é um traço

compositivo dominante. Haja vista, por exemplo, os vários caminhos traçados

pelos alunos ao adentrarem uma escola secundária de Portland, no filme

Elefante. Eles formam entre si um emaranhado de pequenos trajetos, no

qual o espectador depara-se com uma estrutura difusa com possíveis


5

conexões. No longa-metragem A ostra e o vento, as buscas dos barqueiros

para encontrar os moradores da Ilha dos Afogados transformam-se em um

intricado percurso, repleto de idas e voltas entre tempos e espaços distintos,

ao percorrerem a extensão da praia, a casa da protagonista e os arredores

do farol. No caso dos filmes de Resnais, o labirinto não se atém apenas à

estrutura compositiva dos filmes, porque ele inicia-se já no espaço de

exibição dos longas-metragens. Smoking e No smoking são filmes

projetados para serem exibidos, preferencialmente, em salas dispostas lado

a lado, para que o espectador possa escolher qual deles quer assistir. Sua

decisão está relacionada com um momento em que a protagonista de ambos

os filmes escolhe se quer ou não fumar. Trata-se de uma cena crucial para a

trajetória dos dois longas-metragens, pois, a partir dela, cada filme segue

um destino diferente. Vale destacar que, em ambos os casos, a estrutura


continua incessantemente fragmentando-se em vários outros percursos.

A observação dos textos televisuais e cinematográficos mencionados

levou ao início desta pesquisa de doutorado. Neles, a constante quebra da

ortogonalidade da imagem; a estruturação de uma composição labiríntica

do sintagma audiovisual—, repleta de bifurcações e elipses; as várias

fronteiras tensivas entre os elementos ótico-visuais e a relativização do tempo

diegético, pela suspensão ou modificação da relação de causalidade entre

as marcas de anterioridade e posterioridade tecidas entre as partes

temporais no decorrer da narrativa, levaram esse estudo ao questionamento

da função representativa do espaço no processo de construção do modo de

organização.

De certa maneira, retoma-se, aqui, um ponto deixado em suspenso

na dissertação de mestrado em Comunicação e Semiótica, defendida em

março de 2002 na PUC/SP, intitulada A linguagem cinematográfica e a


6

construção do tempo: uma leitura do filme A ostra e o vento. Nela, buscou-

se entender a relação entre o tempo e o cinema no longa-metragem de Walter

Lima Jr. Na época, as questões relativas ao espaço deixaram de ser

abordadas, em razão de o recorte da pesquisa incidir sobre o diálogo entre

o tempo e o modo de composição fílmica e, sobretudo, pelo fato de que não

havia condições suficientes, por parte do pesquisador, de perceber a

dinamicidade do espaço, além de pensá-lo apenas como espaço referencial.

Na revisão do filme de Lima Jr. e no contato com os textos

mencionados fizeram com que as questões relativas ao espaço voltassem

à tona. A princípio, a pergunta esboçou-se da seguinte maneira: em que

medida o espaço se constrói nos textos audiovisuais? Dessa pergunta

inicial, outras foram surgindo, como tiradas da cartola de um mágico, em

que o fim parece não existir. Da cartola, saíram questões como: “Quais são
os traços característicos do espaço nos textos audiovisuais?”, “Quais as

relações entre os espaços gerados nos sistemas audiovisuais?”, “De que

maneira esses espaços constroem mediações com o espectador?”, “Quais

as relações entre espaço, tempo e narrativa?”. Afinal, “o que pode ser o

espaço nos sistemas audiovisuais e como pode intervir na caracterização

dessas linguagens?”.

No decorrer das aulas e das orientações, a


2
Notas de aulas obtidas
amplitude de questões oriunda da atividade exploratória nos cursos: “Espaço,
representação,
da problemática da pesquisa foi se condensando em torno visualidade”,
“Comunicação —
do seguinte recorte: Como se constroem as semiótica, visualidade e
conhecimento” e
espacialidades nas narrativas cinematográfica e “Semiótica, espaço,
comunicação”, realizados
televisual? em 2004 e 2005, pela
Profa. Dra. Lucrécia
A pergunta volta-se à espacialidade e não ao D’Alessio Ferrara, no
programa de pós-
espaço, pois, segundo Ferrara (2004-05)2, o espaço em si graduação em
Comunicação e Semiótica
da PUC/SP.
7

não existe, a não ser como discurso, junto ao qual o que se tem são conceitos

de espaço, articulados, inicialmente, pela filosofia e, posteriormente,

trabalhados também por outros campos do conhecimento.

Estando a pergunta voltada às espacialidades e não ao espaço,

encontra-se, no próprio recorte, uma primeira estratégia metodológica de

análise, na qual a base de observação, averiguação das hipóteses e provável

generalização das categorias de análise das espacialidades audiovisuais

partem não da abstração a priori do espaço, mas do confronto com a

concretude dos objetos. Isso ocorre porque, de acordo com Ferrara (2004-

05)3, as espacialidades são, sobretudo, construções formais do espaço

elaboradas pelas relações sígnicas e, como tais, elas o representam não

pela duplicação mimética, mas parcialmente. Apesar dessa frouxa

vicariedade entre as espacialidades e o espaço, pois o signo não traduz a


totalidade do objeto e, ao representá-lo, o objeto em si já se modificou, é

somente por meio das espacialidades que o espaço mostra-se como objeto

sensível, podendo, dessa forma, ser percebido e experienciado como

fenômeno de linguagens.

Dentre os objetivos pretendidos nesta pesquisa, a meta principal visa

ao aprofundamento das discussões sobre a representação do espaço nas

linguagens audiovisuais. Com base nesse alvo amplo e genérico, outros

mais específicos se constituíram. Primeiro, o próprio teste da análise

descritiva e comparativa entre textos e entre linguagens, como estratégia

metodológica possível para abordar as espacialidades. Segundo, a

identificação dos signos articulados pela espacialidade, que funcionam como

informações sobre o seu processo de construtibilidade. E, terceiro, a

compreensão da capacidade de tais signos criarem relações comunicativas

com o espectador.
3
Idem nota 02.
8

Na observação dos textos mencionados, a pergunta acerca do modo

de manifestação do espaço pela construtibilidade das espacialidades

prevaleceu como o principal recorte da pesquisa e, com isso, exigiu, em um

primeiro momento, a elaboração de algumas hipóteses como parte do

trabalho de investigação. Primeiramente, cogita-se que as espacialidades

estruturam-se pelo procedimento construtivo da montagem, tanto nos textos

cinematográficos quanto nos televisuais. Por montagem não se entende

aqui como técnica de manipulação do material fílmico, que surge após as

filmagens, mas como processo de pensar e construir a ordem,

dominantemente, pelo caráter representativo do espaço.

Como segunda hipótese de análise, aventura-se a possibilidade de

que a montagem relativa à construtibilidade do espaço afasta-se

estruturalmente da montagem articulada pela dominância da lógica de


ordenação do tempo sobre a representação espacial.

Nesta última, observa-se a predominância de bases históricas

apoiadas na narrativa clássica, que torna a montagem uma forma modelar

de representação do tempo, codificada, principalmente, pelas regras de

continuidade—, o que caracteriza uma tentativa de reproduzir a lógica

“natural” dos fatos. Ao passo que, na primeira, por não estar sujeita às regras

de construção a priori e por não ser réplica de modelos já repertoriados

pela cultura, agrega à montagem um caráter de maior inventividade no modo

de organização do material audiovisual. Isso ocorre porque a dominância

da representação do espaço, na ordenação do material audiovisual, se

constrói mediante fronteiras entre imagens, textos e linguagens,

estabelecendo um continuum tensivo entre os elementos, que nada tem a

ver com as regras que simulam uma falsa continuidade no modo de

composição, forjada apenas para que os signos não entrem em conflito.


9

A terceira hipótese de análise supõe que toda espacialidade da

montagem mediatiza-se na relação comunicativa com o espectador pela

possibilidade de leiturabilidade de seu modo de articulação, na qual o

espectador se transforma em um leitor de estruturas.

A quarta hipótese refere-se à metáfora como principal elemento

constitutivo para a elaboração das espacialidades em montagem.

Compreende-se a metáfora não apenas como figura de linguagem, em que

um determinado significado estabelece relações de similaridade com outro

significado, mas como forma de construir a representação do espaço

mediante relações, cruzamentos, conexões, paradoxos e analogias entre

linguagens, textos, fragmentos de textos e dominantes das imagens das quais

nascem traduções tensivas entre formas.

Em relação aos textos cinematográficos mencionados, desconfia-se


de que as tensas relações metafóricas da espacialidade em montagem

possibilitam a visualidade de nexos estruturais da composição labiríntica.

No confronto entre o arranjo fílmico e o espectador, os pontos nevrálgicos da

estrutura servem de matéria-prima para que o leitor, inferencialmente, vá

deduzindo e construindo a espacialidade em montagem, mediante sua

tradução em um outro signo, no qual se constrói a imagem diagramática da

estrutura.

Já no que diz respeito aos textos televisuais, as relações metafóricas

da espacialidade em montagem parecem alimentar-se do processo de

fragmentação da linguagem televisual, tornando-o uma de suas fontes

principais para a elaboração de tensões entre células. No caso específico

da microssérie, ao levar em conta a inscrição da imagem em fração, a

tessitura em blocos do mosaico de programação, a narrativa desenvolvida

em partes e a construtibilidade do olhar do zapper, a espacialidade em


10

montagem transforma a lógica fracionada do meio em informação para a

ordenação e a representação do espaço. Nesse sentido, segue-se o

raciocínio de que a construção do espaço pela montagem diferencia-se da

representação do tempo pela montagem teleológica, principalmente no que

se refere à relação entre montagem e fragmento, na qual, entre eles, não há

o domínio de um sobre o outro, mas o diálogo que favorece e viabiliza

construções inusitadas de representação do espaço.

A estratégia metodológica de análise, elaborada para testar as

hipóteses em confronto com a realidade de linguagens das espacialidades,

baseou-se na seleção de alguns textos oriundos do conjunto de arranjos

fílmicos e televisuais mencionados. Dentre os textos cinematográficos, foram

escolhidos dois: A ostra e o vento (Walter Lima Jr.) e Elefante (Gus Van

Sant) e, do conjunto de textos televisuais, foi selecionada a primeira jornada


de Hoje é dia de Maria, composta de oito episódios, dirigida por Luiz

Fernando Carvalho.

A princípio, a seleção desses textos decorreu de um elemento comum:

há entre eles a persistência do caminhar como principal ação narrativa

executada pelas personagens. Há o caminhar na Ilha dos Afogados (A ostra

e o vento), os vários percursos no colégio (Elefante) e a trajetória em busca

das franjas do mar (Hoje é dia de Maria). Esse traço em comum tanto os

aproxima quanto os afasta, pois, ao mesmo tempo em que o ato de caminhar

mantém-se, no nível narrativo, como principal ação, o traçado de cada

percurso espacializa-se, conforme a especificidade de cada obra e o modo

pela qual linearidade é subvertida, havendo, portanto, desenhos distintos da

montagem.

O segundo critério, para escolha dos textos, levou em consideração

as possibilidades de fronteiras com outras linguagens presentes em cada


11

tessitura. Dessa forma, foram selecionados os textos nos quais é possível

verificar, por exemplo, as fronteiras com a literatura, as artes plásticas, os

games e o teatro. Além, é claro, daquelas formadas entre cinema e televisão.

Por fim, apesar de já ter sido mencionado, é importante ressaltar que

a seleção do longa-metragem A ostra e o vento deve-se ao fato de ser o

texto no qual essa investigação começou, desde a pesquisa de mestrado.

No entanto, apesar de parecer um critério de caráter mais “emotivo”, há uma

razão lógica na sua inclusão, pois trata-se de um filme construído pela

representação do espaço, tendo como “matéria-prima” as partes

componentes da representação do tempo.

Após a seleção e com base na observação do corpus de análise, a

estratégia metodológica foi elaborada mediante a análise descritiva dos

textos e pelo estudo da relação comparativa entre seus modos de


organização. Trata-se não de um método de análise, mas de uma tentativa

de articular um laboratório para investigações das hipóteses e posterior

generalização a partir da observação do universo amostrado. A base do

processo investigativo dialoga com o método de descrição semiótica de

Charles Sanders Peirce, que se fundamenta, predominantemente, na

“qualidade rara do ver o que está diante dos olhos” (1974:23). Espera-se

que tal faculdade deve dominar todas as etapas deste trabalho.

Não como uma camisa de força ou como um terreno redutor, o

laboratório proporciona condições para focar a atenção sobre algumas formas

de manifestação da espacialidade nas linguagens audiovisuais a fim de,

com isso, se possa discriminar e comparar suas características e, quem

sabe, chegar ao terreno das interpretações.

O trajeto em capítulos da pesquisa perfaz-se da seguinte maneira: 1)

As espacialidades diagramáticas do cinema. São analisados os textos


12

fílmicos e iniciam-se as discussões relativas à construtibilidade da

espacialidade pelo princípio ordenador da montagem; 2) A representação

do espaço na jornada de Maria. Análise do modo de ordenação da

microssérie, realizada pela representação do espaço em diálogo com a

lógica fracionada do meio televisual; 3) Desenhos do espaço. Montagem.

Modernidade. Após a análise da construtibilidade do espaço nos textos

selecionados, esse capítulo busca entender a diversidade de desenhos da

espacialidade em montagem sob o fundo do estado líquido da modernidade,

que se processa nos momentos explosivos da cultura.


13

1.
As espacialidades diagramáticas do cinema

No cinema contemporâneo, há uma forma de ordenação do discurso

fílmico cada vez mais presente. Nela, é possível perceber a construção de

uma história baseada em uma estrutura de montagem repleta de rupturas,

bifurcações, elipses e repetições. Trata-se de um modo de narrar articulado


como se fosse um labirinto audiovisual, que procura jogar com a percepção

do espectador de modo a deixá-lo confuso e, ao mesmo tempo, atento na

busca de interpretações do objeto percebido.


Neste capítulo, são analisados dois longas-metragens que dialogam

com esse modo de narrar e ordenar o texto fílmico. No primeiro, A ostra e o

vento, dirigido por Lima Jr., há um labirinto que espacializa o tempo, ao

representá-lo pelo confronto entre as suas qualidades. Segundo Lima Jr.

(2002), em comentário em áudio feito para a versão em DVD, trata-se de

um filme no qual “o espectador passa a consumi-lo como um jogo, como um

quebra-cabeça”. Sua diegese forma-se mediante as diversas interfaces

entre contextos distintos, na qual a narrativa é tecida pelos movimentos do

“passar do dia para noite” e do “sair do presente para o passado” e vice-

versa.
14

No segundo longa-metragem, Elefante, dirigido por Gus Van Sant, o

labirinto é constituído por intermédio da construtibilidade dos vários percursos

que se entrecruzam dentro de uma escola, conforme a narrativa se

desenvolve. Em entrevista concedida a Florence Colombani, do Jornal Le

Monde, reproduzida pela Folha de São Paulo, no dia 2 de abril de 2004,

Van Sant afirma que procurou “subverter a utilização habitual das técnicas

cinematográficas” (COLOMBANI, 2004), principalmente no que se refere à

forma da narrativa clássica que, segundo ele, o cinema emprestou do teatro.

Ao ser questionado sobre como a dimensão espacial estrutura o filme,

responde apenas que se trata de um espaço organizado pela era eletrônica,

marcado pelo estabelecimento da interatividade, em que, no caso dos filmes,

“não é mais possível mostrar uma história congelada” (COLOMBANI, 2004),

ou seja, um texto fechado em si mesmo, sem o diálogo com as


transformações culturais e a relação comunicativa com o espectador.

1. 1.Entrando no labirinto

Segundo o dicionário Aurélio (2005), o vocábulo “labirinto” refere-se

a um edifício composto de um grande número de divisões, corredores e

galerias, onde, com muito custo, se consegue encontrar a sua saída. Ou

seja, trata-se de um espaço que desafia o “intruso” a vencer os obstáculos

sinuosos de sua estrutura, na medida em que o obrigar a desvencilhar dos

caminhos errantes e a produzir uma trajetória que o leve para fora das amarras

desse espaço.

Na cultura ocidental, uma das primeiras referências ao labirinto é

encontrada na mitologia grega, na narrativa mítica do rei de Creta, Minos. O

labirinto pertence à história do monstro formado por uma cabeça de touro e


15

um corpo de homem, nomeado Minotauro. Segundo o mito de Minos

(GRIMAL, 2005:25-26; 45-46; 210; 313-314; 441-442), após a morte do rei,

Astérion ou Astério, o reinado de Creta começou a ser disputado entre seus

três filhos adotivos: Sapérdon, Radamante e Minos. Para garantir o reinado

só para si, Minos ludibria seus irmãos, afirmando que ele era o preferido

pelos deuses para assumir o trono. Para provar isso, profere que tudo o que

pedisse ao céu seria prontamente atendido. Tal engodo é sustentado por

meio de um acordo feito entre o deus Posídon e Minos. Nesse acordo,

cabia ao deus fazer um ser surgir do mar a pedido de Minos que, em troca,

lhe devolveria o favor, sacrificando tal aparição.

No dia da encenação, Posídon, atendendo à solicitação de Minos,

faz emergir dos mares um belo touro branco, que ratifica a exclusividade do

trono a favor de Minos; porém, o novo rei, encantado com a beleza do animal,
incorpora o touro à sua manada e sacrifica outro em seu lugar. O rompimento

do acordo trouxe duas conseqüências ao rei recém empossado: a primeira

surge na forma de castigo enviado por Posídon, que transforma o touro de

Creta em um animal feroz, posteriormente, capturado por Héracles ou

Hércules, a pedido de Euristeu; a segunda conseqüência decorre da

sobrevivência do touro branco, que estabelece uma relação extraconjugal

com Pasífae (esposa de Minos e filha do sol), e, desse envolvimento, resulta

o nascimento do Minotauro.

Aterrorizado e ao mesmo tempo desgostoso com o nascimento de

tal aberração, Minos solicita ao arquiteto e escultor ateniense, Dédalo, que

projete uma “morada” ao Minotauro, de tal forma que a construção inviabilize

a sua saída. Dessa maneira, surge o labirinto palaciano, “composto de um

tal emaranhado de salas e corredores que ninguém, a não ser Dédalo,

consegue encontrar o caminho para sair dele” (GRIMAL, 2005:314).


16

Encarcerado no labirinto, o Minotauro é alimentado de três em três

anos, ou, dependendo da versão, de nove em nove anos, com as vidas de

sete jovens e sete donzelas, oferecidas pela cidade de Atenas em

cumprimento ao tributo imposto pelo rei de Creta, em represália à morte de

seu filho Andrógeo.

Na terceira expedição para o pagamento do tributo, Teseu é

incorporado ao grupo dos sacrificáveis, com a missão de matar o Minotauro,

pois, caso isso fosse concretizado, a imposição estaria desfeita e todos

poderiam regressar livremente. Na chegada a Creta, o enviado de Atenas

desperta a paixão de Ariadne, filha do rei Minos, que, movida por tal

sentimento, lhe entrega um rolo de fio para que ele fosse desenrolado durante

o percurso no labirinto, com a finalidade de, posteriormente, lhe servir como

guia para a sua saída. Em algumas versões do mito de Teseu, Ariadne


também lhe entrega uma coroa luminosa para clarear a escuridão do labirinto

palaciano. Em posse desses objetos mágicos, Teseu adentra a morada do

Minotauro e o mata a murros.

Apesar de o mito do Minotauro ser um prolongamento da narrativa de

Minos, sua história deixa de ser apenas um apêndice e torna-se

“independente” mediante as várias releituras que traduzem, para outras

esferas da cultura, o arquétipo composto pela intricada e misteriosa relação

estabelecida entre a personagem híbrida e o labirinto minóico, entre o

prisioneiro e o seu claustro que, ou exploram referencialmente a densidade

metafórica de uma prisão que abriga no seu interior uma monstruosidade

ou, em alguns casos, propõem uma espacialidade construída por arranjos

sintáticos análogos à arquitetura do labirinto, que “encerra o caos numa

ordem secreta para o caminhante perder-se de novo nele” (ARRIGUCCI,

2002:83).
17

É, principalmente, em relação a esse último aspecto que o processo

construtivo das narrativas fílmicas dialoga com o labirinto minóico. Em A

ostra e o vento e Elefante têm-se, por meio da representação do espaço,

duas construtibilidades que funcionam como lugares onde o espectador,

constantemente, “se perde”, enquanto procura entender os seus modos de

ordenações. Além disso, surgem dois espaços: a Ilha dos Afogados e a

Watt High Schooll, que se transformam em lugares de cerceamento das

personagens. No filme de Lima Jr., Marcela é impossibilitada de deixar a

ilha por causa do ciúme de seu pai, ao passo que, em Elefante, os alunos

são impedidos de sair da escola por causa da emboscada armada pelos

assassinos, Eric e Alex.

Após essa breve digressão sobre a narrativa mítica do labirinto, será

possível entrar nas espacialidades.

1.2. A montagem do tempo pela representação do espaço: o percurso

sinuoso da Ilha dos Afogados.

A princípio, o longa-metragem A ostra e o vento narra a história do

retorno do ex-ajudante de faroleiro, Daniel, interpretado por Fernando Torres,

e dos barqueiros Pepe (Castrinho), Magari (Arduíno Colassanti), Pedro

(Ricardo Marecos) e Carrera (Márcio Vito) à Ilha dos Afogados, após a noite

em que a luz do farol se apagou. Preocupados com o não funcionamento

da torre, ponto de referência e de guia para os navegantes que passam pelo

local, as cinco personagens chegam à ilha e deparam-se com os

desaparecimentos de José (Lima Duarte), responsável pelo farol, sua filha


18

Marcela (Leandra Leal) e Roberto (Floriano Peixoto), atual ajudante de

faroleiro. A partir desta ocorrência, o dia do retorno à Ilha dos Afogados é

transformado, ao longo do filme, numa incessante busca para resolver o

mistério do sumiço dos únicos moradores desse local.

Segundo Lima Jr. (2002)4, essa é uma das histórias desenvolvidas

no longa-metragem, ao lado de outras que se desenrolam em paralelo,

geradas pelas memórias das personagens. Há, por exemplo, as histórias

de Daniel, apresentadas enquanto ele percorre os arredores da praia à

procura de Marcela. Nelas, são revistos diferentes momentos de sua vida,

quando ele ainda era o ajudante de faroleiro de José, nos quais se observam

os laços de amizade tecidos com a garota Marcela e o problema com o

álcool, que lhe custou o emprego por provocar um naufrágio, ao velejar

embriagado.
Além disso, há também as histórias contadas pelos pontos de vista

de Marcela e de seu pai, relatadas no diário da garota e no livro de registros

de José. No caso de Marcela, surgem as inquietações decorrentes da

puberdade, marcada pela menarca, as relações imaginárias com Saulo,

personagem antropomorfizado, que é representado ludicamente pelo vento,

e os conflitos gerados pelo cerceamento do pai que a impede de sair da Ilha

dos Afogados. Já, em relação a José, a narrativa também é desenvolvida

junto de uma mente constantemente assaltada pelo ciúme doentio de sua

filha, que traz à tona a conturbada relação que teve com a esposa (Débora

Bloch), morta em um incêndio provocado por José. 4


Comentários em áudio sobre a
realização do longa-metragem
Para narrar todas essas histórias, que A ostra e o vento, feitos por
Walter Lima Jr., contidos em: A
ocorrem, principalmente, em tempos distintos, Lima OSTRA e o vento. Produção de
Flávio R. Tambellini. Direção de
Jr. construiu uma macroestrutura compositiva, na qual Walter Lima Jr. São Paulo:
SIGLA — Sistema Globo de
as histórias desenvolvem-se conforme vão sendo Gravações Audiovisuais LTDA,
2002. 1 disco (112 min.), DVD,
son., color.
19

entretecidas. A compreensão da

dinamicidade dessa composição tem,

como primeiro elemento ordenador, o

plano geral fixo da Ilha dos Afogados

(fig. 1). Trata-se de uma imagem

produzida por um velho truque do

cinema, a técnica de transparência, no Fig. 01- Ilha dos Afogados: plano 1.


qual se tem uma dada figura, no caso,

a ilha, pintada em uma placa de vidro. Esta fica disposta entre a câmera e o

objeto filmado para, com isso, conseguir uma imagem por sobreposição

(fig. 2). A utilização dessa técnica visa

à construção de um plano da ilha cuja

silhueta forma o rosto perfilado de


Marcela e que, segundo Lima Jr.

(2002)5, representa uma “esfinge num

deserto de água”. Tal como no mito


de Édipo, a esfinge é um obstáculo a

ser superado. Contudo, enquanto que

na mitologia ela impõe enigmas aos Fig. 02- Técnica de sobreposição.

viajantes como condição para a livre passagem à cidade de Tebas, em A

ostra e o vento, o rosto-ilha da esfinge é o próprio enigma a ser decifrado.

A imagem do plano geral da ilha abre o longa-metragem e, nela, há

tanto a referência à personagem Marcela, quanto ao papel tirano de José,

figurativizado pelo farol, localizado no alto do rosto-ilha. Marcela como ilha e

seu pai representado pelo farol são duas metáforas indiciadas nesse plano

de abertura, que irão se desenvolver no decorrer da narrativa.

5
Idem nota 04.
20

Como primeiro elemento estruturante, o plano geral da Ilha dos

Afogados não se encontra, apenas, no início do longa-metragem, mas ele é

reiterado em outros dois momentos da projeção, aos 1:40:42 e aos 1:50:53,

compreendendo a seqüência final (figs. 3 e 4). Posicionados em diferentes

pontos da macroestrutura, os três planos gerais funcionam como elementos

estratégicos, assinalando os momentos em que a representação do tempo,

cada vez mais, se contamina e, portanto, transforma-se, pela dominância no

modo de organização das qualidades representativas do espaço.

Fig. 03- Ilha dos Afogados: plano 2.

Fig. 04- Ilha dos Afogados: plano 3.

Diagramaticamente, a macroestrutura do longa-metragem A ostra e

o vento pode ser representada da seguinte maneira:


21

O início de cada
seqüência, numerada
de 1 a 25, ocorre nos
seguintes momentos:
1) 02:13; 2) 03:53
3) 04:17; 4) 09:25
5)10:42; 6) 11:44
7) 12:45; 8) 17:03
9) 18:57; 10) 20:58
11) 22:46; 12) 23:16
13) 24:06; 14) 25:10
15) 26:40; 16) 27:05
17) 29:25; 18) 29:27
19) 40:14; 20) 40:47
21) 66:23; 22) 68:10
23) 71:35; 24) 72:01
25) 97:20.

Diagrama I: macroestrutura de A ostra e o vento


22

Pelo diagrama I, indicados respectivamente pelos conjuntos “A”, “B”

e “C”, há três segmentos pontuados pelos planos gerais, que constroem o

percurso no qual, gradativamente, a espacialidade em montagem embaralha

as marcas temporais das seqüências. No conjunto “A”, encontram-se

contextos narrativos distintos, principalmente em relação ao tempo, e que,

constantemente, são entrecruzados. No conjunto “B”, há o “encontro” entre

os contextos que passam a compor uma unidade e, em “C”, as extremidades

da estrutura compositiva comunicam-se, formando entre elas uma

espacialidade circular.

Como a primeira parte predomina no longa-metragem, o estudo foi

dividido em dois subitens. No primeiro, intitulado O ziguezague na ilha, a

ênfase recai sobre a construtibilidade do conjunto “A” e, no segundo, Mar,

cela, Marcela, é apresentada a análise dos dois segmentos restantes.

1.2.1. O ziguezague na ilha

Formado a partir do primeiro plano geral da Ilha dos Afogados (I) até

o segundo (II), o primeiro segmento (A) estrutura-se por um movimento de

idas e voltas entre o dia do retorno à Ilha dos Afogados e os momentos

anteriores a ele. Para criar esse efeito de sentido, que vai alterando de um

ponto a outro, como se fosse um jogo de pingue-pongue, Lima Jr. roteirizou

o trecho em questão em dois blocos de seqüências: o primeiro qualificado

por ele como pertencente ao universo do “presente”, e o segundo, relativo

ao “passado” (LIMA Jr., 1997).


6
É importante ressaltar
No diagrama I , o primeiro grupo, relativo ao “presente”, que o diagrama foi
6

elaborado com base no


é indicado pelos números ímpares e pela trajetória em verde. longa-metragem e não
apenas no roteiro de A
A opção pela linha ou pelo ponto, que constrói esse trajeto, ostra e o vento, editado
pela Artemídia Rocco
(1997).
23

deve-se ao tempo de cronometragem das seqüências. As linhas verdes

representam as seqüências com mais de um minuto de projeção e os pontos

verdes remetem às muito curtas. Todas elas estão circunscritas ao período

de retorno à ilha, quando Daniel e os barqueiros passam o dia procurando

Marcela, José e Roberto.

Caso for levado em consideração apenas o conjunto das seqüências

ímpares, há uma forte tendência em relacioná-las por uma representação

contígua do tempo. Isso ocorre porque a referência temporal entre elas é

marcada pela duração de um único dia, que começa no período matutino,

quando chegam os marujos (seqüência 1), e é estendido até o momento em

que o sol se põe, quando os barqueiros deixam a ilha, enquanto Daniel decide

permanecer na praia para continuar as buscas (25).

Porém, o percurso cronológico de um dia formado entre as


seqüências ímpares é todo entrecortado pelas seqüências relativas ao

segundo grupo que, no diagrama I, estão indicadas pelos números pares e

pela trajetória em vermelho. Trata-se de seqüências relacionadas aos

momentos anteriores ao dia de retorno à ilha, que penetram na narrativa

pelas memórias das personagens e pela leitura de trechos advindos tanto

do diário de Marcela, como do livro de registros do faroleiro José.

Ao contrário da relação de contigüidade temporal possível de se

estabelecer entre as seqüências do primeiro grupo, neste segundo grupo,

não há como reconhecer uma relação diacrônica do tempo, pois cada

seqüência remete a um contexto distinto. Segundo Lima Jr. (2002)7, a ordem

de surgimento das seqüências pertencentes ao segundo grupo estabelece

“um plano de informações em que a cronologia desses acontecimentos não

é obedecida”. Por exemplo, considerando apenas a idade de Marcela, ela

surge na tela pela primeira vez com 13 anos (seqüência 4). Mais adiante,
7
Idem nota 04.
24

aos 20:58 (10), com 6 anos e, nas seqüências seguintes (12,14,16,18), ela

aparece novamente com 13 anos. Além disso, há duas seqüências (20 e

24), em que Marcela surge com uma determinada idade (13 anos) e, logo

após, em outras cenas da mesma seqüência, com 6 ou 3 anos.

A suspensão da relação contígua entre as seqüências, classificadas

no roteiro por Walter Lima Jr. como relativas ao passado, diminui a

dominância representativa do tempo no modo de ordenação no interior desse

conjunto. Isso acontece porque a relação de anterioridade e posterioridade

própria do tempo deixa de atuar por causa de um efeito de sentido que

procura ressaltar não a sucessão entre as partes, mas o volume conflituoso

entre os tempos, que Lima Jr. denominou, genericamente, como “passado”.

Porém, ao entrecruzar as seqüências do primeiro grupo com as do

segundo, a construção da macroestrutura compositiva não restringe o


processo de descaracterização da contigüidade do tempo apenas à

ordenação do segundo grupo, mas atinge a totalidade dos conjuntos, na

qual há uma relativização das noções tanto de passado quanto de presente.

Entre os grupos, forma-se uma tensa relação mediante a construtibilidade

da espacialidade, que compõe um labirinto temporal pelo confronto e não

pela sucessão entre as qualidades do tempo.

Trata-se de uma espacialidade cuja lógica de articulação dialoga com

a noção de montagem defendida por Eisenstein, que a entende não como

uma operação de linguagem para ligar os planos, unidos linearmente com a

intenção de compor um filme, tal como acreditavam Kuleshov e Pudovkin,

mas, fundamentalmente, como um modo conflituoso de ordenação do

material audiovisual:

Assim raciocinava Eisenstein: sobre a mesa de montagem,


temos uma quantidade inumerável de planos tomados sob
as mais variadas condições — mais abertos (planos
gerais) ou mais fechados (primeiros planos), mais claros
25

ou mais escuros, com movimentos para a esquerda ou


para a direita, com movimentos para cima ou para baixo, e
assim por diante. Como cortá-los e em que seqüência
dispô-los? Pode-se apenas emendar os fragmentos
linearmente, seguindo o fio de uma intriga: isso é o que faz
o cinema narrativo vulgar. Mas nos momentos mais
criativos da cinematografia, é preciso saber articular esses
planos, combiná-los e regê-los harmonicamente como
numa sinfonia, fazê-los suceder uns aos outros segundo
o princípio rítmico e organizador. Esse princípio, para
Eisenstein, deveria ser o da contradição, ou seja, o choque
de valores plásticos opostos, tanto entre dois planos
sucessivos, quanto no interior de um mesmo plano.
Montagem, para ele, era desencadeador de conflitos
(MACHADO, 1982: 44-45).

Mais adiante, Machado afirma:

Havíamos colocado logo atrás que a montagem para


Eisenstein era um mecanismo ativador de conflitos, que
ele jogava um plano contra o outro, que ele quebrava a
continuidade dos eventos, impondo, portanto, uma visão
multifacetada do fenômeno. Conflito de direções, conflito
de cores ou tonalidades, conflito de jogos de iluminação,
de volumes, de velocidades, de formas em geral: o que
importava para Eisenstein não era a reprodução naturalista
do mundo sensível, mas a articulação de imagens entre
si, de modo que a sua contraposição ultrapassasse a mera
evidência dos fatos, gerando sentido. A montagem, para
ele, tinha por função destruir as aparências do mundo
sensível, para em seguida poder reconstituí-lo sob uma
ótica nova e penetrante. Opondo-se furiosamente às
concepções lineares e orgânicas de montagem, Eisenstein
queria que o corte transgredisse o acontecimento, forçando
a emergência do sentido: “A montagem — dizia ele — faz
nascer uma idéia a partir do choque de dois elementos
opostos” (MACHADO,1982:55-56).

A lógica de articulação da montagem eisensteiniana tem como base

o processo de formação e de fragmentação dos planos, denominados por

ele como “células de montagem”, pois “exatamente como as células, em sua

divisão, [os planos] formam um fenômeno de outra ordem, que é o organismo


26

ou embrião, do mesmo modo no outro lado da transição dialética de um

plano há a montagem” (EISENSTEIN, 1990a:41). A metáfora do plano como

célula refere-se, principalmente, ao fato de que todo processo de

construtibilidade dos planos é uma espécie de gestação de algum elemento

de conflito, que será manifestado na concretude da rede de relações montada

entre as partes, ou seja, há uma natureza “embrionária” na formação dos

planos, que embala, como um invólucro, um conflito em potencial, que será

projetado por um princípio unificador, no caso, a montagem.

Contudo, é importante ressaltar que a definição do plano para

Eisenstein não coincide com a descrição usual dada pela gramática clássica

do cinema, na qual “o plano corresponde a cada tomada de cena, ou seja, à

extensão de filme compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que

o plano é um segmento contínuo da imagem” (XAVIER,1984:19).


Há, na noção de plano eisensteiniano, uma “elasticidade” do conceito

que extrapola em muito os limites dessa definição mais prosaica e corriqueira.

Isso acontece porque o plano, para o cineasta russo, está relacionado,

sobretudo, à idéia de atração, que foi desenvolvida por ele no período anterior

à sua atuação no cinema, quando trabalhava com a linguagem teatral.

Segundo Eisenstein:

Uma atração é qualquer aspecto agressivo do teatro; ou


seja, qualquer elemento que submete o espectador a um
impacto sensual e psicológico, regulado
experimentalmente e matematicamente calculado para
produzir nele certos choques emocionais. (EISENSTEIN
apud XAVIER,1984:107).

Um signo qualificado pela agressividade funciona como uma espécie

de força centrípeta, pois atenua a percepção dos signos de menor intensidade

que estão ao seu redor. Estabelece-se, portanto, uma relação de hierarquia


27

entre os “menos agressivos” e o signo dominante. Segundo Roman Jakobson

(1983), a dominante “regulamenta, determina e transforma os seus outros

componentes. Ela garante a integridade da estrutura”, pois “(...) domina todos

os elementos e exerce influência direta sobre cada um deles” (JAKOBSON,

1983:485).

A atração, além de estabelecer uma relação centrípeta entre os signos

com características pouco agressivas, também funciona como uma força

contrária, quando é confrontada com outro signo de intensidade semelhante.

Nesse caso, há o choque, a colisão entre eles pela montagem de atrações.

Assim:

(...) la atracción se define como función, no como sustancia.


Todo aquello que zarandea el aparato sensorial del
espectador cuenta como atracción, sea cual su fuente o
estatus artístico: el solilóquio de Romeo, el color de las
mallas de la actriz, um redoble de tambor.
(BORDWELL,1999:143).

A lógica de raciocínio formada pela atração qualificada por uma função


agressiva e pela montagem de atrações como meio que permite haver os

choques entre as distintas agressividades, pensadas por Eisenstein na

linguagem teatral, será mantida por ele em relação ao plano e à montagem

no cinema. O primeiro ficou circunscrito aos domínios de atuação de um

traço compositivo sobre os demais elementos presentes no interior de uma

célula, e, o segundo, articulado pelas tensas relações mediante as interfaces

entre células, nas quais, segundo Machado (1982:45), uma célula funciona

como se fosse o negativo da outra, por meio da montagem que promove o

choque entre as suas predominâncias.

No caso do longa-metragem A ostra e o vento, as células formam-se

pela geração de dois grupos de seqüências, representados pelo diagrama


28

e pelos conjuntos de seqüências ímpares e pares. Em cada grupo

predomina, principalmente, um contexto espaço-temporal distinto, percebido

por diversos elementos de composição, tais como: a luz, o som e a presença

ou ausência de alguma personagem, que será visto a seguir. Porém, ao

entrecruzar os grupos, nota-se que os contextos dialogam por meio da

espacialidade que instaura, entre contextos, uma relação de montagem que

a lógica contígua do tempo não prevê, porque a contigüidade, marca

construtiva da temporalidade, ao contrário da continuidade, supõe signos

com funções distintas, que se ordenam por vizinhança e pela sucessão para,

com isso, manter as suas especificidades mediante os limites que os

separam.

A ordenação das qualidades representativas do tempo pelo

continuum, gerado nas interfaces entre as células ou entre os grupos de


seqüências, possibilita a construtibilidade da espacialização do tempo. Nos

pontos de contato, montam-se lugares propícios à continuidade entre os

signos, em que as suas singularidades são mantidas em simultaneidade

com os diálogos construídos entre eles. Segundo o geógrafo Milton Santos

(2002:258), o lugar confere materialidade ao espaço, visto que o qualifica

por meio de signos em interação. Caracterizado pela relação sistêmica

entre diferentes variáveis, que passam a funcionar sincronicamente, o lugar

representa o elemento em comum entre desiguais e, como tal, ele é marca

construtiva da espacialidade em montagem.

No longa-metragem de Lima Jr., o continuum entre as células é

percebido, principalmente, pelas imagens construídas entre as seqüências

de diferentes grupos. Estas funcionam como lugares de tensão entre

contextos distintos e estão representadas, no diagrama I, pela linha tracejada

em preto, formada entre as trajetórias verde e vermelha. No total, no


29

segmento “A”, formado a partir do primeiro plano geral da Ilha dos Afogados

(I) até o segundo plano (II), há 25 imagens com função de interface8. Elas se

configuram de diversas maneiras, por exemplo, como seqüências, cenas,

por meio de um único enquadramento e, em alguns casos, por um efeito

sonoro, uma alternância de luminosidade ou gesto de alguma personagem.

Não há, portanto, uma padronização na construção das interfaces,

mas existe uma diversidade de combinação dos elementos audiovisuais

para gerar lugares onde se compõe o diálogo dissonante, por exemplo, entre

o dia e a noite, ou, ainda, entre o outrora e o agora. São formas de representar

a multiplicidade do tempo pela espacialidade que, em montagem, relaciona

tensivamente os traços dominantes.

Um dos principais elementos de

construtibilidade das interfaces surge por


meio do som. Por exemplo, entre as

seqüências 10 e 11, há um efeito sonoro

da transmissão de sinais de Morse pelo

rádio, inserido em um contexto em que

ele não pertence. Ouve-se o som do


Fig. 05- Marcela aos 6 anos de idade.
rádio transmissor em diálogo com um

plano de conjunto de Marcela, aos 6 anos de idade, brincando com uma

boneca em sua cama (fig. 5). Logo em seguida, surge o contexto relativo

ao efeito sonoro, com o plano de detalhe da mão de Daniel, que aperta a

alavanca do aparelho para transmitir uma mensagem em


8
Tecnicamente, há
código Morse. Daniel está sentado no canto da sala de estar apenas dois momentos
em que as interfaces não
da casa de José, tentando se comunicar com o continente, se constituem como
imagem, pois a alteração
provavelmente, em busca de informação sobre algum contato entre os grupos é feito
pelo corte seco. Trata-se
das interfaces existentes
entre os pontos 6 e 7 e,
também, entre 22 e 23.
30

que os habitantes da ilha, por ventura,

fizeram antes de desaparecem (fig. 6).

Esse recurso, que coloca o som

em contradição com a imagem e, no

caso, também com o contexto narrativo,

é utilizado em A ostra e o vento não

apenas por meio do efeito sonoro, mas Fig. 06- Plano de detalhe da mão de Daniel.

também pela trilha sonora e pelas vozes over das personagens. Segundo

Chion (1993), quando a imagem visual segue um caminho e o som outro,

caracteriza-se o que ele denomina de “contrapunto audiovisual” (1993:42).

Mais freqüente na televisão que no cinema, o contraponto audiovisual opõe

som e imagem, dando-lhes significações distintas, ao mesmo tempo em

que compromete qualquer possibilidade de relação de identificação e causa


entre eles.

Ao desalinhar som e imagem, a espacialidade não monta entre eles

uma relação de harmonia, mas, pelo contrário, constrói o lugar de acentuação


das suas diferenças em diálogo. Assim, surge, também, o atrito entre

visualidade e audibilidade. A primeira refere-se à iconicidade da imagem,

ao seu aspecto qualitativo, cuja relação com o espectador está circunscrita

“à simples constatação do visual como dado” (FERRARA, 2002:101). A

segunda é uma categoria de análise do som, desenvolvida por José e

Rodrigues (2007:105-119), em relação à visualidade, e refere-se à percepção

expressiva das formas de representação do som.

No contraponto entre visualidade e audibilidade, som e imagem em

montagem são traduzidos pelo espectador como informação, no momento

em que ele consegue, no caso do filme de Lima Jr., ler a tensão entre

iconicidades como índices de alteração e de confronto entre contextos


31

distintos na narrativa. Segundo Ferrara (2002:105), esse processo

responsivo e ativo do espectador, ante os aspectos qualitativos das imagens,

realiza-se como visibilidade pela leitura tanto da visualidade quanto da

audibilidade. Na visibilidade ocorre a reação da percepção sobre a imagem,

ao constatar, por exemplo, as relações de dominância e de hierarquia entre

as suas qualidades. Obtêm-se, desse modo, as transformações da

visualidade e da audibilidade em “fluxo cognitivo”, em visibilidade, o que

“corresponde à elaboração perceptiva e reflexiva das marcas visuais [e

sonoras]” (FERRARA, 2002:120).

Outro elemento de composição

utilizado por Lima Jr. para produzir a

relação tensiva entre os contextos

narrativos provém da iluminação. O


melhor exemplo de construtibilidade da

espacialidade em montagem, por meio

desse recurso visual, é a imagem que

surge entre as seqüências 13 e 14.

Trata-se de um plano próximo (altura do

cotovelo para cima) e fixo de Daniel, em

que se observa a alteração gradativa da

iluminação, partindo de um tom

avermelhado, relativo à noite, e

alcançando uma luz ambiente, referente

ao dia (fig. 7). A alteração da iluminação

na cena não corresponde à

representação do crepúsculo matutino,

na qual haveria a construção contígua do

Fig. 07- Seqüência de alteração da luz.


32

tempo pela transformação da luz, simulando a passagem do fim da

madrugada até o início da manhã. No caso, noite e dia pertencem a contextos

distintos: a luz de tom avermelhado relaciona-se ao momento no qual José

discute com Daniel, por este último estar bisbilhotando o seu livro de registros;

já a luz ambiente remete ao momento em que o ex-ajudante de faroleiro

procura pistas sobre o desaparecimento dos habitantes da ilha no mesmo

livro de anotações de José.

Tencionada por duas predominâncias de cor e textura da luz, que

representam contextos diferentes, a espacialidade monta-se por meio de

um continuum entre as suas qualidades. Desse modo, o tempo é

desfigurado como percurso cronológico, ao ser ordenado pelas diferenças

entre as visualidades dos planos. Apesar de ser um plano-seqüência, em

que, tecnicamente, não existe corte na tomada, é possível perceber a


construtibilidade da montagem, tal como entendia Eisenstein, na qual cada

plano funciona como célula, ao gerar uma qualidade dominante que eclode

na relação tensiva com outra contraparte. De uma célula à outra, ocorre o

“transporte” da personagem que “sai” de um contexto e “entra” no outro, sem

ao menos transitar pelos locais. Isso ocorre porque a alteração é produzida

pelo modo de ordenação da espacialidade e não pelo deslocamento do ser

ficcional no espaço referencial. O mesmo pode ocorrer com o espectador,

que pode “trafegar” de um contexto ao outro, ao ler metalingüisticamente a

maneira pela qual a linguagem articula as várias tensões que se formam nas

células ou entre elas.

Na interação entre planos, constroem-se os paradoxos pelas imagens

ou como imagens. Benjamin (2006), outro pensador que, também, se ateve

à questão da montagem, define como “imagens dialéticas” (BENJAMIN,

2006:506), as que produzem uma “constelação saturada de tensões”


33

(BENJAMIN, 2006:518). Nelas, são montadas as ambigüidades entre signos,

cujos significados passam a funcionar como “cifras” (BENJAMIN, 2006:508).

Segundo Ferrara (2007), é somente pela leiturabilidade dos modos de

representação das relações dialéticas das imagens, nos seus frágeis

indícios, que a linguagem irrompe o seu estado inerte como mensagem para

encontrar “um sentido que só se descobre ao ser reconstruído no seu

percurso” (FERRARA, 2007:30). Tal sentido não se realiza como síntese

que soluciona a ambigüidade entre signos, mas se produz a partir dela e,

por isso, se apresenta como frágil e provisório.

Além do som e da iluminação, outros elementos são utilizados em A

ostra e o vento para a construção das interfaces, tais como o plano-seqüência

do vôo da gaivota, que parte de um contexto e chega a outro ou, ainda, o

movimento de câmera, que se desloca transversalmente do canto inferior


esquerdo da mesa, onde Daniel está lendo o livro de registros, até o canto

superior direito, onde estão Marcela, seu pai e Roberto almoçando, o que

cria o contraste entre as duas situações.

Como último exemplo da construtibilidade das interfaces, há uma

seqüência na qual não existe apenas um recurso audiovisual para concretizar

a espacialidade tensiva entre células, visto que ela se forma por meio da

combinação de vários elementos. Trata-se da interface produzida entre as

seqüências 7 e 8, que também poderia ser exemplificada pelos segmentos

11-12 e 23-24.

Em 7-8, Daniel está enquadrado em um plano próximo, na sala de

jantar da casa de José. O ex-ajudante de faroleiro está só e tenta consertar

o rádio transmissor. No fundo da cena, no canto esquerdo do quadro, a

janela da casa, por onde entra a luz forte do dia, abre e fecha com o sopro

do vento. Após Daniel trocar uma das válvulas do aparelho, surge, em


34

seguida, um plano de detalhe do rádio, em

que se avista a sua mão girando o dial. Nesse

enquadramento, ouve-se o ruído do

movimento do dial trafegando por várias

freqüências. Ao sintonizar uma das

freqüências, o efeito sonoro é substituído pela

música J’attendrai, composta por Dino Olivieri

e Nino Rastelli, e cantada por Rina Ketty, cuja

interpretação da letra, em francês, é marcada

por um forte sotaque italiano.

No plano a seguir, vê-se Daniel ainda

em frente ao rádio transmissor, enquadrado

de perfil por um plano médio. No entanto, a


luz da cena modificou-se. Incide sobre o

ambiente uma iluminação de tom

avermelhado, pois os contextos já se

alteraram. Lentamente, a câmera faz um

travelling horizontal da esquerda para direita

e coloca em cena Marcela, que está ao lado

de Daniel, encantada com a melodia da

música. Se, no início da seqüência, a filha

de José encontra-se desaparecida, no final,

há a sua presença, no momento em que ela

ouve pela primeira vez uma música pelo rádio

(fig. 8).

Dessa maneira, na construtibilidade

da seqüência, há diversos elementos de


Fig. 08- Seqüência do rádio
transmissor.
35

composição que contribuem para a representação da espacialidade, que

monta entre as células o diálogo entre contextos. Dentre eles, destacam-se

a iluminação, que produz a contraposição entre dia e noite, o movimento de

câmera como construtor do diálogo entre o espaço in e off, os sons do dial

do rádio transmissor, que formam a audibilidade tensiva entre ruído e canção,

e a estrutura compositiva, que aproxima e diferencia as características

qualitativas das imagens. Com isso, estruturam-se várias polaridades que,

juntas, tornam possível a representação múltipla do tempo pelo seu processo

de espacialização.

As várias interfaces entre os conjuntos de seqüências traduzem a

atmosfera oscilante entre contextos narrativos construída pelo escritor

cearense Moacir Lopes, no romance A ostra e o vento, publicado em 1982,

que serviu como texto base para a releitura de Lima Jr. No romance, a figura
do narrador é imprescindível para as diversas debreagens entre os contextos,

pois descreve as alterações ocorridas entre os contextos da narrativa e,

com isso, indica-as ao leitor, conforme pode se perceber no trecho transcrito:

Final do capítulo 3

Não sabe explicar, mas sente, Marcela presente na


ilha. Onde? Onde está você, Marcela? Me diga o que
aconteceu...
- Mar...ceeé...la... Marcela!
Baixou a cabeça.
Daniel... Daniel... sim, Daniel, ela está aqui... ali...
repetindo os mesmos passos, o mesmo riso, cada gesto.
Não escuta? Repare, Daniel! Marcela é toda a ilha! Não a
vê ali...como naquele dia... há quantos passados? Em que
idade era ela e esta ilha? (LOPES, 1997:10).

Início do capítulo 4

Sim... ela está ali, como naquele dia, regando o


jardim e em pouco descerá pelo córrego e agitará os braços
36

para espantar as aves. Repare, Daniel, ali, agora... Marcela


já vem descendo. É Manhã clara de sol. Procura você.
Não escuta seus gritos? Atente para eles.
- Daniel! Daniel! Daniel!
Velho Daniel se volta, ouve os gritos repetidos por
canto, e de repente já não está no morro do pensador com
o caderno às mãos, e sim na praia, larga o machado com
que trabalha e recebe Marcela que o abraça ainda gritando
para as aves.
- Que tem você, Marcela?
- Vim correndo porque descobri agorinha mesmo
que existo. Descobri também que o vento é vento, aves,
aves, que o mar tem ondas e as flores têm cheiro (LOPES,
1997:11).

Em um primeiro momento, Daniel está à procura de Marcela pelos

arredores da ilha. Frustrado por não encontrá-la e, ao mesmo tempo,

esperançoso de reavê-la, ele caminha pela ilha gritando o seu nome. Entre

o grito desesperado do velho marujo e a resposta de Marcela chamando

pelo seu nome, interpõe-se a figura do narrador, que dialoga com a

personagem, alertando-a para a presença da garota, perdida em algum canto

de sua memória.

Na passagem entre a frase “em que idade era ela e esta ilha?” e

“sim... ela está ali”, alteram-se os tempos verbais, que passam do pretérito

imperfeito do indicativo para o presente do indicativo, como forma de sinalizar

a mudança temporal na narrativa. A modificação contextual, também, se faz

pela maneira como, graficamente, o código verbal é espacializado nas

páginas do livro. No trecho citado, a pergunta “em que idade era ela e esta

ilha?” encerra o capítulo três e a “resposta” ou a continuação da fala do

narrador abre o capítulo seguinte. Assim, monta-se entre as frases um

continuum, em que se tencionam, além dos tempos verbais, o fim e o início

dos capítulos, como forma de produzir o confronto entre os contextos. Esse

recurso visual predomina em quase todo o romance. Por exemplo, entre os


37

capítulos sete e oito (LOPES, 1997:41-42), um parágrafo é fragmentado em

dois segmentos, ficando cada pedaço em um capítulo, havendo, com isso,

não apenas a ruptura, mas, também, a relação entre eles, no efeito de sentido

da frase com o olhar do leitor, que segue a trajetória contínua do parágrafo

na descontinuidade.

Na releitura feita por Lima Jr. do romance de Moacir Lopes, a

presença do narrador foi abolida, restando alguns momentos em que as

personagens alcançam a instância do narrador por meio da voz over. Além

disso, muitas das situações presentes no romance foram retiradas ou

modificadas, e outras acrescentadas, tais como a história do naufrágio

provocada por Daniel, ou a vontade de Marcela de sair da ilha que, no livro,

não se concretiza, atendo-se apenas ao desejo da garota de expulsar os

demais moradores. A despeito dessas diferenças, a oscilação entre os


contextos mantém-se como o principal traço compositivo tecido na fronteira

entre a literatura e o cinema.

Segundo Lotman, a abertura sistêmica entre linguagens é formada,

sempre, por meio da ingerência das fronteiras culturais. Nelas, os sistemas

de signos tanto se aproximam quanto se separam, pois “la función de toda

frontera y película (...) se reduce a limitar la penetración de lo externo en lo

interno, a filtralo y elaborarlo adaptativamente” (LOTMAN, 1996:26). Através

das fronteiras, observam-se tanto a capacidade de uma linguagem em

conseguir estabelecer contato com o diferente, o estranho, o outro, quanto

sua habilidade em construir blocos de tradução para transformar em

informação elementos externos a ela que, na sua perspectiva, permanecem

obscuros.

Essa relação de ambigüidade, promovida pelas fronteiras, na qual

se constrói a comunicação entre linguagens, sem que haja a desintegração


38

das individualidades envolvidas na relação de intercâmbio, levou Lotman a

inferir que nelas atuam duas forças contrárias e complementares: de um

lado, o pendor à heterogeneidade e, do outro, à homogeneidade, que gera

o que ele denomina como “paradoja estrutural” (LOTMAN, 1996:69) ou

“contradicción estrutural” (LOTMAN, 1998:19).

Dessa maneira, a formação de relações de comunicabilidade entre

linguagens também produz situações de bloqueio e/ou rompimento parcial

da comunicação, pois o diálogo e a sua restrição ou ausência compõem,

em conjunto, um processo de “duas mãos”, que visa à integralidade entre as

partes — pendor à heterogeneidade — e também à crescente autonomia

de cada indivíduo em interação — pendor à homogeneidade.

Nesse complexo processo, dúbio por natureza, uma tendência não

se faz sem a outra, mas elas caminham sempre em uma relação de


dominância: ora a heterogeneidade predomina sobre a homogeneidade e

ora a homogeneidade se impõe sobre a heterogeneidade. No primeiro caso,

a tendência ao contato com o outro é uma etapa importante para a

construtibilidade de cada sistema, pois a troca de informações fornece

“matéria prima” a ser trabalhada internamente por cada indivíduo. No

segundo caso, a tendência do sistema de voltar-se para si próprio é uma

etapa necessária ao não rompimento e/ ou não esgotamento da relação

comunicativa, pois o gerenciamento das especificidades é a base de todo

processo comunicacional.

A compreensão funcional e estrutural da fronteira implica percebê-la

por meio de um espaço contínuo, onde os contornos das descontinuidades

não se borram, mas nutrem-se desse contexto de co-existência. Na zona de

confluência, o limiar de cada sistema é poroso, porém, seletivo. Ele abre-se

às situações em que as diferenças entre sistemas dificultam a interação, ou


39

seja, onde o limiar é mais denso, mais delimitador, por causa das relações

de intradutibilidade entre sistemas, pois “para los elementos del primero no

hay correspondencias unívocas en la estructura del segundo” (LOTMAN, 1996:

68).

No entanto, a abertura dos sistemas sígnicos na fronteira não é

aleatória, mas calculada, pois existe uma seleção das relações de

desigualdades entre sistemas, na qual são eleitas aquelas em que há

possibilidade de os organismos envolvidos desenvolverem mecanismos para

transpor ou diminuir a barreira entre si. Nesse sentido, toda fronteira é uma

relação de controle das diferenças, pois cada ordenação sistêmica tem

consciência dos limites que deve e pode transpor.

Feita a seleção, o espaço fronteiriço processa-se, simultaneamente,

como espaço de comunicação e de tradução para superar os pontos que

separam os sistemas, tornando-os mais tênues. Nesse processo, a relação

comunicativa estabelece-se conforme cada linguagem desenvolve formas

de tradução tendo como base as de sua “vizinha”, com o objetivo de construir

entre elas um processo mútuo de metalinguagem, em que cada sistema

aprende a ler e transformar em texto qualidades representativas presentes

no outro.

No caso do longa-metragem em análise, monta-se entre cinema e

literatura fronteiras onde se trocam não apenas dados referenciais, tais como

o enredo, os nomes das personagens ou o título da obra, mas, sobretudo, é

traduzido o modo de ordenação da narrativa. Na releitura da literatura pelo

cinema, o movimento de ziguezague entre contextos combina vários

elementos, tais como a luz, o som, a composição das cenas, conforme já

mencionado, para tornar possível a representação da espacialização do

tempo. Da mesma forma, Lopes aproxima a escrita do código verbal com a


40

linguagem tipográfica, assim como constrói fronteiras entre prosa e poesia.

Na quebra de parágrafos em capítulos distintos, percebe-se um recurso

similar à construção do enjambement na poesia, na qual se fragmenta o

texto entre versos, desalinhando a estrutura sintática da frase na composição

do poema. Dessa forma, produz-se, pelo arranjo, a sensação de mobilidade

e deslocamento junto à leitura dos versos.

1.2.2. Mar, cela, Marcela

Se, num primeiro momento, a macroestrutura do longa-metragem A

ostra e o vento configura-se por dois conjuntos/células de seqüências, que

dialogam mediante as interfaces que surgem entre eles, a partir do segundo

plano geral da ilha (II), os dois conjuntos dissolvem-se e estruturam-se em


uma única trajetória, em que impera o cruzamento tecido entre os contextos.

Existe, na composição, um segundo segmento (B), que vai do segundo plano

geral da Ilha dos Afogados (II) até o terceiro plano (III), indicado, no diagrama

I, pelo percurso em azul e pela letra “K”.

Nesse trecho, os barqueiros Pepe, Magari, Pedro e Carrera já

deixaram a ilha, levando os corpos de José e Roberto, que foram localizados

boiando na praia. Permanece na ilha apenas Daniel, na esperança de ainda

encontrar Marcela, a única restante do grupo. Após a saída dos barqueiros,

o ex-ajudante de faroleiro deixa a praia em direção à casa de Marcela e, ao

penetrar novamente o interior da ilha, não se depara com o contexto no qual

a garota está desaparecida, e não há mais José e Roberto, mas, se embrenha

em outro contexto, justamente aquele relacionado aos momentos em que

Marcela trama uma emboscada para matar seu pai.


41

Dessa forma, Daniel passa a coabitar as mesmas cenas em que

estão os três habitantes da Ilha dos Afogados, acompanhando, como um

voyeur, os momentos finais que antecederam a morte de José e Roberto.

Os habitantes da ilha não o percebem, mas ele consegue vê-los sem, no

entanto, poder interferir em suas ações. Existe entre as personagens uma

diferença de papéis, pois Daniel age como uma personagem observadora

que, em dado momento, assume a função de narrador, ao descrever os

acontecimentos antes de ocorrerem, enquanto os habitantes da ilha

desempenham as ações que levam às trágicas mortes de José e Roberto.

Há, portanto, nas personagens, um descompasso entre os papéis

narrativos. De um lado, Daniel atua como narrador que tudo observa e, do

outro, os habitantes da ilha seguem agindo como personagens. Dessa

maneira, a bipolaridade que marca o modo de ordenação do segmento “A”


continua a funcionar no segmento “B”, porém não mais pelo jogo construído

entre os contextos, mas pelas diferenças entre funções narrativas.

A partir do segundo segmento, as personagens passam a conviver

somente na zona limítrofe entre o primeiro dia de retorno à ilha e os momentos

anteriores a ele. Isso ocorre porque se, no primeiro segmento, as células

articulam-se pela gestação de qualidades temporais distintas e eclodem

mediante a espacialidade, que monta entre células o tenso diálogo entre os

tempos, a partir do segundo segmento, já com a relativização temporal, por

causa da representação do espaço, as células reconfiguram os seus

domínios em dois planos narrativos distintos, o do narrador e o das

personagens, e entram em conflito em uma espacialidade onde o tempo

apresenta-se como múltiplo.

O processo de espacialização do tempo atinge o seu ápice a partir

do terceiro segmento, indicado, no diagrama I, pelas trajetórias em amarelo


42

e pela letra “C”, que vai do terceiro plano geral da Ilha dos Afogados (III) até

o primeiro (I) e vice-versa. Nesse trecho, segundo Lima Jr. (2002)9, “o círculo

se fecha” por meio do encontro entre o início e o término da macroestrutura

do longa-metragem, e pela reiteração da combinação entre o plano geral da

Ilha dos Afogados e o plano do diário de Marcela, que, no começo do filme,

é feita primeira pelo plano da ilha (I) seguido pelo plano do diário (X1) e, no

final do longa-metragem, constrói-se a forma “negativa” dessa combinação,

pois surge primeiro o plano do diário (X2) e, depois, o plano de conjunto da

ilha (III).

Dessa maneira, a bipolaridade que permeia toda a estrutura

compositiva do longa-metragem atinge também a relação entre as suas

extremidades. Monta-se entre elas um circuito que se sobrepõe aos seus

limites, construindo, com isso, uma estrutura onde não há início e nem fim,
mas o continuum que se forma entre as suas “bordas”. Através da figura

plana do círculo, a representação do tempo ordena-se como um “eterno

retorno”, havendo possibilidades de relação, por exemplo, com a figura mítica

do Uróboro, a serpente que morde a própria cauda e que, simbolicamente,

representa o “complexo oppositorum” (BRANDÃO, 1995:201), ou seja, a

relação tensiva entre os contrários, na qual se configura “a manifestação e a

absorção cíclica” como forma de representar “a perpétua transmutação da

morte em vida e vice-versa” (BRANDÃO, 1995:201).

A estrutura que se fecha em si própria, também, se relaciona com a

metáfora da ilha como um local de aprisionamento de Marcela, produzido

pelo ciúme doentio de seu pai. É similar a uma ilha que funciona como o

sistema de prisão idealizado pelo jurista Jeremy Bentham, em 1787,

denominado como panóptico, onde os prisioneiros ficam em celas dispostas

em círculo ao redor de uma torre central (MACHADO, 1993:221). No caso


9
Idem nota 04
43

de A ostra e o vento, as celas em círculo constituem-se pela própria topografia

da ilha, uma extensão de terra cercada de água por todos os lados, enquanto

a torre de vigilância é representada pela edificação turriforme do farol, de

onde José pode observar e controlar tudo.

Delineado pela estrutura compositiva labiríntica, que se fecha no

encontro de suas extremidades, e pela referência ao espaço cenográfico

que se transforma em um ambiente de clausura, o desenho da ilha como

uma prisão, também, é concretizado nas palavras que compõem o nome

“Marcela”. Muito próxima à operação subjacente na escrita ideogramática,

na qual se monta um signo pela relação entre outros signos, a combinação

entre os substantivos “mar” e “cela”, além formar o nome da protagonista,

traz a essa cadeia significante um outro signo relacionado à ilha-prisão.

Composto por dois signos que, juntos, remetem à ilha como clausura,
o nome “Marcela”, agregado ao plano geral da Ilha dos Afogados, em cujo

contorno está presente o rosto da protagonista, reforça a hipótese de que a

garota transformou-se na própria ilha, já que ela é a única habitante não

encontrada dentre os desaparecidos. Com isso, a personagem passa por

uma metamorfose oposta à do vento, ao se transformar em um ser inanimado.

Companheiro lúdico de Marcela, o vento é percebido no longa-

metragem como uma personagem, principalmente pela câmera subjetiva

em pleno vôo, que constrói o seu ponto de vista, e pela voz over que ecoa

pelos arredores da Ilha chamando pelo nome da garota. Nomeado como

Saulo, o vento antropormofiza-se num ente imaginário, ao passo que ocorre

o oposto com Marcela, que se transforma na ilha.

Há, dessa maneira, outra bipolaridade que converge com os diversos

signos contrários que, em relação, se formam ao longo do filme: a

espacialidade, que monta o confronto tensivo entre os conjuntos de


44

seqüências com qualidades temporais distintas; as diferenças em diálogo

dos papéis narrativos do narrador e da personagem; o encontro entre as

extremidades da estrutura compositiva; os vários atritos oriundos dos laços

afetivos entre as personagens, principalmente, pelo choque entre o desejo

de libertação de Marcela e o ciúme doentio de seu pai; a relação lúdica

entre Marcela e Saulo que, posteriormente, transforma-se num

relacionamento de vítima e algoz, quando Saulo tenta estuprá-la.

As diversas tensões entre os pólos, que se formam por meio da

espacialização entre tempos, pelas dominantes entre as imagens e pelas

relações entre as personagens, constroem uma ilha inóspita e hostil, que

impinge ao “marinheiro de primeira viagem” um mergulho em suas

adversidades. Tal como no mito de Minos, o filme projeta-se como um labirinto,

que joga com as expectativas do espectador ávido de encontrar uma “saída”


da espacialidade proposta e uma solução para o mistério que a intriga

produz. Dentre as várias tentativas de leitura, o espectador erra em algumas

delas e acerta em outras, mas, em todas, o que importa é a construção de

um percurso que o envolve e o insere. Trata-se de um trabalho de leitura que

estabelece uma relação comunicativa entre o leitor e o texto e que será

investigado com mais detalhes, após a exposição da segunda análise.

1.3. O minoelefante

Dirigido por Gus Van Sant, o longa-metragem Elefante narra, por meio

da ficção, um fato social recorrente, principalmente, na sociedade americana,

caracterizado por matanças coletivas feitas em espaços públicos por civis

“insuspeitados”. A principal referência desse tipo de acontecimento ocorreu

no dia 20 de abril de 1999, no Columbine High School, localizado no subúrbio


45

de Denver, na cidade de Littleton, no estado americano do Colorado. Dois

alunos, Eric Harris, 18 anos, e Dylan Klebold, 17, invadiram a escola, munidos

de rifles e bombas, e assassinaram 12 estudantes e um professor, além de

ferirem 22 outros alunos, terminando a tragédia com as próprias mortes,

provavelmente causadas pelo suicídio.

No longa-metragem Elefante,

filmado no prédio de uma escola recém-

desativada na cidade de Portland,

localizada no estado de Oregon, a

primeira referência ao Minotauro talvez

seja a figura de um touro estampada na

blusa amarela utilizada por John Fig. 09- John Macfarland.


Mcfarland, o primeiro aluno que é visto
adentrando a escola (fig. 9). A ressignificação e a rememoração do arquétipo

mitológico emergem com maior insistência no modo como é representada

a espacialidade fílmica, que edifica uma espécie de “escola-labirinto”, onde

os caminhos bifurcam-se e as personagens entrecruzam-se pelos corredores,

tornando, por conseqüência, a trama mais complexa.

A base da construtibilidade do labirinto minóico, no filme de Gus Van

Sant, é formada pelas trajetórias dos alunos, dentro e fora da escola. Elas

são percebidas, na maioria das vezes, por meio de longos planos-

seqüências, feitos por uma câmera que acompanha o andar das

personagens. Cada percurso é qualificado pela dominância do foco narrativo

de uma única personagem ou de um grupo, identificado pelos intertítulos

com os nomes dos estudantes que surgem no decorrer da projeção pela

seguinte ordem: 1) John (John Robinson), 2) Elias (Elias McConnel), 3) Nathan

e Carrie (Nathan Tyson e Carrie Finklea), 4) Acadia (Alicia Miles), 5) Eric e


46

Alex (Eric Deulen e Alex Frost), 6) Michelle (Kristen Hicks), 7) Britanny, Jordan

e Nicole (Britanny Mountain, Jordan Taylor e Nicole George) e, por último, 8)

Benny (Bennie Dixon).

Cada trajetória compõe uma faixa de seguimentos contíguos reunidos

em torno de um determinado ponto de vista. Por exemplo, se observar o

diagrama II, localizado na página seguinte, a faixa relativa à personagem

John corresponde ao conjunto formado pelos segmentos 2A, 4A, 7A e 10A.

Essa estratégia enunciativa resulta no desencadeamento de oito faixas, em

que “cada parte é desenvolvida horizontalmente” (EISENSTEIN, 1990b:52),

tal como em uma partitura musical, como bem observou Eisenstein, quando

comparou a escrita cinematográfica ao modo de codificação de uma

composição sonora. Nesse sentido, a predominância dos planos-seqüências

na estruturação de uma faixa é de fundamental importância para a


manutenção da horizontalidade, pois ressalta a linha como forma de

composição e de leitura e, também, atenua as descontinuidades entre os

seguimentos relativos a uma mesma faixa.

No trajeto contíguo de um ponto de vista, observa-se que a relação

entre os planos de uma faixa produz o que Deleuze denomina como imagem

sensório-motora. Ela opera por prolongamento pois, “de certo modo,

estamos sempre nos afastando do primeiro objeto: passamos de um objeto

a outro, conforme um movimento horizontal ou associações de imagens,

permanecendo, porém, num único e mesmo plano” (DELEUZE, 1990:59).

Ou seja, apesar de a percepção trafegar de segmento em segmento, na

perspectiva total de uma faixa, ela permanece em um único modo de leitura,

baseado na figura plana da linha.

Na percepção do longa-metragem Elefante, a linearidade como único

caminho perceptível possível só funciona caso sejam desconsiderados os


47

A) John
B) Elias
C) Michele
D) Nathan & Carrie
E) Acadia
F) Eric & Alex
G) Britanny, Jordan & Nicole
H) Benny
* Os seguimentos de números 1,
20 e 25 não estão vinculados a
nenhuma personagem, pois são
seqüências de planos gerais fixos
do céu, a princípio, para
demonstrar a passagem do
tempo. Todos os outros
seguimentos se referem às faixas
de uma personagem ou de um
grupo, que vão se entrecruzando
no decorrer da história para serem
amarradas em um único nó, a
partir do segmento de número 24,
quando os alunos responsáveis
pelo massacre entram na escola.

** O início e o fim de cada


segmento ocorrem aos:
1) 00:00/1:16
2A) 1:17/3:51 [John]
3B) 3:52/6:03 [Elias]
4A) 6:04/8:04 [John]
5C) 8:05/8:51[Michelle]
6D) 8:52/14:14[Nathan & Carrie]
7A) 14:15/16:43 [John]
8E) 16:44/18:53 [Acadia]
9D) 18:54/19:59 [Nathan & Carrie]
10A) 20:00/21:47 [John]
11F) 21:48/25:14 [Eric & Alex]
12B) 25:15/27:59 [Elias]
13C) 28:00/29:20 [Michelle]
14B) 29:21/31:39 [Elias]
15C) 31:40/33:20 [Michelle]
16F) 33:21/34:28 (Eric & Alex)
17B) 34:29/ 38:58 [Elias]
18G) 38:59/45:46 [Britty, Jordan & Nicole]
19F) 45:47/51:07 [Eric & Alex]
20) 51:09/52:28
21F) 52:29/58:08 [Eric & Alex]
22C) 58:09/ 60:33 [Michelle]
23F) 60:34/ 65:43 [Eric & Alex]
24) 65:44/ 77:47
25) 77:48/ 81:20. Diagrama II: macroestrutura do longa-metragem Elefante
48

vários pontos conflituosos existentes entre as faixas, tomando, portanto, a

lógica das partes como sendo semelhante a do todo. Aliás, as duas fontes

citadas como inspirações para o título do filme atentam para essa ignorância

perceptiva dos obstáculos existentes no labirinto; a primeira é oriunda de

uma parábola budista, na qual “vários cegos tocavam várias partes de um

elefante, cada um acreditando saber o que tinha diante de si (um rabo, uma

pata, uma orelha, uma tromba) sem jamais conseguir juntar as diferentes

partes e formar o todo” (CARVALHO, 2003) e, a segunda, procede do

documentário Elephant, dirigido por Alan Clarke, em 1989, para a rede de

televisão BBC, que narra o conflito entre católicos e protestantes na Irlanda

do Norte, a qual remete novamente à parábola destacada, porque “a violência

equivaleria a um elefante instalado na sala, mas que ninguém quer

reconhecer” (RIZZO, 2004).


Entretanto, ao contrário da logicidade que orienta cada faixa, há, na

macroestrutura do filme de Van Sant, uma outra lógica que rege a

espacialidade que, por sua vez, monta verticalmente as faixas, produzindo,

com isso, o choque entre elas. De certa maneira, em um primeiro momento,

é possível estabelecer uma correlação entre o modo de ordenação do longa-

metragem Elefante e o segmento “A”, estruturado em A ostra e o vento.

Isso ocorre porque o processo de verticalização da estrutura compositiva

pela representação do espaço é responsável tanto por

construir o confronto entre as oito faixas, no caso do filme de 10


No caso do filme de
Lima Jr., os dois
Van Sant, quanto por produzir o atrito entre os dois conjuntos conjuntos de seqüências
não foram considerados
de seqüências10 com contextos distintos, no caso do longa- como duas faixas de
montagem, pois, no
metragem de Lima Jr. segundo conjunto, não é
possível estabelecer uma
relação de contigüidade
entre os seus
fragmentos, como já foi
mencionado.
49

No texto “Sincronização dos sentidos”, escrito em 1940, Eisenstein

chamou a atenção para essa forma de construtibilidade, denominando-a de

montagem polifônica ou vertical, na qual

um plano é ligado ao outro não apenas através de uma


indicação- de movimento, valores de iluminação, pausa na
exposição do enredo, ou algo semelhante – mas através
de um avanço simultâneo de uma série de múltipla de
linhas, cada qual mantendo um curso de composição
independente e cada qual contribuindo para o curso de
composição total da seqüência. (EISENSTEIN, 1990b:52).

São faixas de montagem que atuam como células, na medida em

que avançam e constroem entre si “complexos contrapontos”

(MACHADO,1982:89), pois, para Eisenstein, “a tela era vertical, porque no

interior de cada quadro horizontal intervinha toda uma hierarquia de ‘quadros’

constituintes, paralelos à superfície da tela” (MACHADO,1982:89). Quanto

maior for o número de confrontos entre as linhas horizontais, imagens e

linguagens, mais complexo é o processo e, portanto, mais próximo ao que

ele entendia como montagem intelectual.

Conforme é possível observar no diagrama II, o desenvolvimento da

montagem vertical no longa-metragem Elefante (representado pelos

fragmentos de número 1 até o 25) acontece como se fosse um jogo de

amarelinha. Ao saltar de uma faixa a outra, é produzido entre elas um

confronto, principalmente, entre pontos de vista.

A verticalidade constrói a polifonia pelo cruzamento de feixes

horizontais, que se chocam com outros feixes verticais e diagonais. Na

passagem de uma faixa à outra, como ocorre, por exemplo, entre 2A e 3B,

há uma interface, em que cada linha funciona como uma célula de montagem,

gerando, no seu interior, algum elemento construtivo que colide com outro

elemento pertencente à outra célula/linha. Monta-se uma rede de relações


50

entre as partes, na qual uma linha não se une à outra, mas elas tencionam

umas as outras.

Dessa maneira, constrói-se um modo de organização repleto de

pontos de conflitos, no qual, segundo Deleuze, ao comentar sobre o

procedimento construtivo de Eisenstein, a montagem avança como uma

“espiral orgânica” (DELEUZE, 1985:49), na qual as zonas conflituosas vão

dividindo a estrutura em “partes oponíveis, mas desiguais” (DELEUZE, 1985:

49).

A percepção do desdobramento da montagem como se fosse uma

“espiral orgânica” possibilita ao espectador elaborar os caminhos, as

bifurcações, as encruzilhadas que constituem a escola-labirinto. Ou seja,

pelo modo como são articuladas as representações espaciais na construção

da montagem vertical, torna-se viável a percepção da escola como um


espaço todo entrelaçado.

Em cada zona de atrito entre faixas, altera-se a relação hierárquica

das funções de linguagem, prevalecendo as funções representativa e

metalingüística sobre a referencial, uma vez que o “como” e o “com o que” a

linguagem constrói uma dada espacialidade são mais importantes de serem

percebidos do que o seu referente. Dessa forma, monta-se, nas interfaces

entre faixas, o signo poético, no qual, segundo Pignatari (1983:169), ocorre

o processo de iconização pelo paraformismo ou montagem sintática. Por

meio dele, projeta-se o eixo da similaridade sobre a contigüidade através

das qualidades visuais e sonoras dos signos, que estabelecem entre si

“verdadeiros campos-de-força sígnicos que se atraem e/ou repelem

mutuamente. Esses eixos exercem uma atração mútua e contraditória, uma

atração repulsiva ou repulsiva atrativa” (PIGNATARI, 1983:169).


51

Além de se construir pelo confronto entre faixas, o labirinto minóico

também se ergue entre segmentos distantes, relacionados por índices que

funcionam como conectores e possibilitam o vínculo comunicativo entre as

partes envolvidas11. Neles, a concretização do link fica a cargo do espectador

que precisa montar mentalmente a relação entre as imagens percebidas

em momentos distantes. No total, ocorrem dois links e três grupos de

conexões, representados no diagrama II por meio de ligações pontilhadas,

que podem ser distribuídos em dois modos distintos de construção.

No primeiro modo, representado pela linha verde ( ab ), a seqüência

de um plano fixo do diretor Luce (Matt

Malloy) é dividida em dois segmentos

que são colocados em pontos distantes

da macroestrutura — aos 7:59 e aos


14:14 (fig. 10). No espaço intervalar

aberto na faixa referente à personagem

John, que se encontra na sala do diretor,


cruzam, em seqüência, duas outras

faixas relacionadas, respectivamente, à

personagem Michelle e à dupla Nathan

e Carrie. Dessa maneira, o primeiro link

funciona como uma espécie de “costura”

que liga os pontos de um percurso


Fig. 10- Planos inicial e final do diretor.
interrompido pelos “atropelamentos”

verticais de outros percursos, produzindo uma continuidade 11


O início de cada ponto
conector que estrutura
lacunar a ser preenchida pelo espectador, após a um link ocorre aos: a)
7:59; b) 14:14; c) 12:50;
descontinuidade feita pela zona de conflito. d) 39:04; e) 20:06; f)
37:26; g) 58:46; h)
21:30; i) 42:21; j) 65:02;
L) 38:36; m) 59:36 e n)
66:50.
52

O segundo modo de construção é composto por um link (cd) e por

três grupos de conexões (efg, hij, Lmn), representados no diagrama II pelas

linhas vermelhas. Nessa forma de ordenação, uma dada cena é enquadrada

por diferentes pontos perceptivos, que funcionam como pontos conectores,

cujo processo possibilita haver, no máximo, três variações do mesmo objeto

filmado, dispostas em momentos distantes da macroestrutura. Ao contrário

do procedimento anterior, não se trata apenas de retomar algo que fora

interrompido, pois, antes que isso ocorra, acontece o movimento de revisitar

a cena em perspectivas diversas. Por esse recurso é reconhecida a intenção

de destacar a polifonia de um evento construído pela observação de

diferentes personagens, ao se encontrarem pelos corredores do colégio.

Analisando, como exemplo, o primeiro grupo de conexões (efg), é

percebida a construção de uma espacialidade entre três faixas de montagem,


a partir do encontro entre John, Elias e Michelle no corredor do colégio. Na

cena revisitada por diferentes percursos, John caminha na direção oposta à

de Elias, que vem andando um pouco à frente de Michelle. Ao encontrar seu


amigo, ele recebe um convite para ser fotografado. Enquanto John posa

para Elias, Michelle, ao ouvir o soar do sinal da escola, corre em direção à

biblioteca e passa ao lado dos dois estudantes.

A cena em questão é enquadrada de três maneiras por uma câmera

que acompanha cada personagem (figs. 11, 12, 13). Dessa forma, surgem

três variações da mesma cena, dispostas, respectivamente, aos 20:00, 37:17

e 58:15. Apesar de não estarem colocadas lado a lado, se o espectador

apreender o nexo montado pela espacialidade fílmica, podem ser construídos,

entre elas, os confrontos.

Dessa maneira, entre a construtibilidade fílmica e a leitura, produz-se

uma mediação, visto que o texto requer uma intensa interação com o
53

espectador para que possa ser

decifrado. Isso ocorre porque, para

achar a saída do labirinto, é necessário

ingressar no jogo dos nós tecidos entre

as relações espaciais. A observação

atenta das tensões geradas entre


Fig. 11- Vista do percurso de John.
seqüências adjacentes e,

especialmente, entre segmentos

distantes, mas relacionados por meio de

links, revela a estrutura em confronto e

conflito.

1.3.1. As visualidades do filme e dos


jogos interativos Fig. 12- Vista do percurso de Elias.

Tal como foi mencionada no início

deste capítulo, a intenção de Lima Jr. em

elaborar um filme que seja percebido

pelo espectador como um jogo ou um

quebra-cabeça, também pode ser

atribuída ao longa-metragem de Van


Fig. 13- Vista do percurso de Michelle.
Sant. Em ambos os textos, a metáfora

do filme como jogo ocorre, principalmente, mediante o trabalho de

leiturabilidade do espectador que, com maestria, vai se desvencilhando das

“armadilhas” projetadas pela estrutura compositiva. No caso do longa-

metragem Elefante, constroem-se, também, relações de fronteira entre as


54

linguagens do cinema e dos games, por imagens que traduzem determinados

traços compositivos pertencentes à estética dos jogos interativos.

A tradução parte, inicialmente, da própria imagem de um game

utilizado por uma das personagens assassinas, Eric. Ele está deitado na

cama de Alex, divertindo-se com um

jogo de tiro ao alvo pelo computador,

enquanto seu amigo exercita-se ao

piano, tocando a composição Fur Elise,

composta por Ludwing Van Beethoven.

Por meio de uma câmera subjetiva o

ponto de vista do jogador/caçador é


Fig. 14- Plano subjetivo de Eric jogando.
apresentado, indiciado também pelo

cano do rifle que se projeta em direção às animações em forma de seres


humanos. São alvos, vistos de costas, que ficam de cabeça para baixo,

enterrados na neve até a cintura, conforme vão sendo abatidos (fig. 14).

Em vários momentos do longa-metragem, a visualidade das

personagens configura-se como forma análoga aos alvos virtuais mediante

uma câmera que enquadra os estudantes de costas, perseguindo-os,

insistentemente, dentro e fora da escola secundária. A maioria dos alunos,

tal como ocorre no game, tornar-se alvo de Alex e Eric, ao entrar no campo

de visão de seus armamentos (fig. 15).

Fig. 15- Enquadramento de costas das personagens: Nathan e Carrie; Elias; Britanny,
Jordan e Nicole.
55

Segundo Valéry (1998:21-23), a analogia refere-se à faculdade de

variar e de combinar as imagens, de tal forma que partes de uma imagem

coexistam com as partes de outra, havendo, entre elas, a possibilidade de

estabelecer relações de similaridade entre as suas estruturas. Não se trata

de cópia ou de reprodução, mas de aproximações tensivas entre as formas

de ordenação das imagens. Elas tanto produzem e, com isso, revelam as

relações de paridade, principalmente, entre os elementos formais dominantes

em cada uma delas, quanto destacam os pontos não convergentes.

Nas construtibilidades das analogias, é percebido o que Haroldo de

Campos (1994:79) denomina como “homologias enquanto metáforas de

estruturas”, que vem a ser outro nome da montagem sintática ou

paramorfismo proposta por Décio Pignatari (1983), na qual a imagem

analogizante se constrói pela montagem sincrônica entre as qualidades das

imagens analogizadas e articulam, por meio das suas semelhanças e

diferenças estruturais, uma nova informação.

A princípio, os vários planos da retaguarda das personagens mostram-

se como imagens representadas por uma câmera “objetiva”, na qual não há

a intenção de construir diegeticamente a percepção subjetiva de alguma

personagem sobre o objeto amostrado. No entanto, com o desenvolvimento

posterior da seqüência de mortandade e, principalmente, após o surgimento

da cena do game, as imagens das personagens filmadas de costas

adquirem um outro “contorno” perceptivo, pois, pela relação de analogia entre

elas e o plano subjetivo de Eric divertindo-se no computador, abre-se a

possibilidade de elas também funcionarem como índice do olhar do

espectador como uma personagem jogadora, pelas representações visuais

similares à perspectiva de observação do garoto ao jogar. São, portanto,

dois jogadores, o aluno e o espectador, que dialogam com formas de


56

entretenimento distintas; o jogo no filme e o filme como jogo, que convergem

pelo modo como se constroem, por similaridade, as visualidades.

As relações de analogia entre as visualidades do jogo e do filme

estreitam-se de tal forma que, em determinado momento do longa-metragem,

aos 1:02:47, surge uma imagem que se constrói quase como um “decalque”

da imagem do computador, tal é o grau de semelhança entre elas em

comparação às suas diferenças (fig. 16). Trata-se do plano subjetivo de um

dos alunos, provavelmente de Alex, no

qual se observam outros estudantes

correndo desesperadamente dos tiros

disparados por uma arma, cujo cano

projeta-se na perspectiva formada pela

extensão do corredor da Watt High


Schooll. Por meio dela, antecipa-se
Fig. 16- Plano subjetivo de Alex.
visualmente, a tragédia que ocorrerá na

escola, pois funciona como um flash-forward, ao se inserir na cena em que

Alex relata ao amigo Eric seu mórbido empreendimento de ataque.

Assim como na imagem do game, o plano em flash-forward é formado

pela câmera subjetiva e por uma parte do cano da arma, projetado contra

um alvo à sua frente. Tal como nas imagens dos alunos enquadrados de

costas, esse plano aproveita-se da perspectiva edificada pela figura do

corredor para construir uma espacialidade em que a extensão entre o plano

da arma e o fundo da cena configura-se como campo de batalha ou como

um “corredor da morte” onde as vítimas são encurraladas e mortas.

Dessa maneira, a Watt High School deixa de ser apenas um local

onde se contextualiza a narrativa, para tornar-se um elemento de

representação do espaço e de interação entre espectador, filme e jogo. Isso


57

se deve, principalmente, à construção visual dos diversos planos-seqüências

dos corredores, feitos por uma câmera subjetiva sempre em movimento.

Neles, a construtibilidade do olhar do colégio traduz a sensação de mobilidade

perceptiva nos games, na qual o deslocamento do avatar, que representa o

jogador nos jogos interativos, implica, também, na contínua movimentação

da zona de combate no ambiente virtual.

De todos os corredores representados, há um que se destaca, a

princípio, pela recursividade. Trata-se do main hallway, o corredor principal

(fig. 17), por onde trafegam todas as principais personagens, pois ele interliga

os caminhos que dão acesso à biblioteca, à secretaria, às salas de aula e

ao ginásio. Composto por uma parede de janelas retangulares, dispostas

Fig. 17- Equipe de filmagem no main hallway.

lado a lado, e por um piso de mármore, formado por quadrados claros,

entrecortados por retângulos pretos, sua forma pode sugerir homologias

visuais: as janelas podem ser associadas ao quadriculado das grades de

uma prisão (fig. 18) e o piso pode suscitar a imagem do tabuleiro de xadrez

ou à celulose de fotogramas (fig. 19). “Coincidências” à parte, pela arquitetura


58

do main hallway, desenha-se uma

forma propícia para a geração de

conflitos, pois sua construtibilidade

produz tensões entre interno x externo,

claro x escuro, privado x público, uma

vez que caracteriza um espaço fechado

que se conecta visualmente com o Fig.18- Elias caminhando pelo


corredor principal.
exterior pelas janelas, por onde penetra

a luz do dia, tornando-o um ambiente

de luz e sombra, visto que a luz

obedece ao quadriculado das janelas.

Em razão dessa particularidade

arquitetônica e, também, por ser o


principal corredor que interliga os

demais, o main hallway é a peça chave Fig.19 – Eric e Alex no main hallway.

para a construção do labirinto audiovisual e, por isso, constantemente

aparece na narrativa. Por meio dele, ocorre, por exemplo, a formação de

um link (cd) e um de grupo de conexão (efg) dos cinco identificados, conforme

já mencionado, perfazendo, somente nessa amostra, pelos menos cinco

momentos nos quais o corredor surge no longa-metragem para colaborar

na produção sensível da espacialidade labiríntica.

Entre todas as representações do main hallway, há uma, em especial,

que se relaciona com a atuação da linguagem cinematográfica como tradutora

de um elemento compositivo predominante na estética dos games 3-D.

Trata-se de um plano-seqüência, que se inicia aos 1:13:08; nele, observa-

se a câmera em movimento seguindo de frente a personagem Alex,

enquadrada em um plano próximo. Todo vestido de preto e empunhando


59

um rifle, Alex já fez uma fileira de mortos e

segue, de corredor em corredor, à procura de

outras pessoas, até chegar ao main hallway,

de onde avista suas duas últimas vítimas,

Nathan e Carrie.

No decorrer do percurso, há dois

momentos em que o rapaz faz uma ligeira

parada antes de prosseguir. A primeira, na

encruzilhada entre dois corredores e, a

segunda, na faixa limítrofe de onde inicia uma

das “entradas” para o main hallway. Em cada

parada, a câmera faz um movimento circular

de 360 graus em torno da personagem,


produzindo uma sensação de

tridimensionalidade no espaço bidimensional

da tela e, também, colocando no centro das

atenções o principal agente de toda a

tragédia que se enuncia (fig. 20).

É claro que esse recurso visual não

surgiu nos jogos interativos, pois ele já foi

utilizado, anteriormente, em vários textos

audiovisuais, tanto no cinema quanto na

televisão. Porém, como ele possibilita

representar três dimensões em duas, sua

utilização nos games 3-D tem sido

freqüentemente requisitada como estratégia

de persuasão e de encantamento do
Fig. 20- Travelling de 360° em torno
da personagem Alex.
60

consumidor, para demonstrar a sua superioridade na produção imagética

em relação aos jogos considerados como pertencentes à primeira e à

segunda gerações.

No caso do longa-metragem Elefante, é possível afirmar que, no trecho

destacado, há a intenção de estabelecer um diálogo estilístico com o modo

de construtibilidade dos games, se ele for analisado na inter-relação com o

conjunto das imagens presentes no longa-metragem. A representação da

percepção do espectador como um participante do jogo, pelos vários planos-

seqüências de costas das personagens; a tomada do game no computador;

as relações de analogia entre a imagem do jogo e o plano em flash-forward

e a construtibilidade labiríntica entre as faixas de montagem, são traduções

articuladas nas fronteiras entre as visualidades e as estruturas do filme e do

jogo. Elas culminam na seqüência de Alex adentrando a escola com uma


arma, na qual é provocada a sensação de que a realidade de linguagem do

game se transpôs para o cotidiano da Watt High Schooll.

Dessa forma, a metáfora da escola como ambiente de jogo de

artilharia concretiza-se pelas fronteiras entre linguagens, entre as quais se

montam relações de tradução que configuram o arranjo proposto como texto

cultural. Segundo Lotman, todo texto é algo que “debe estar codificado,

como mínimo, dos veces” (1996:78), uma vez que ele não se constrói apenas

por uma única linguagem ou uma única cultura. Através do texto é possível

perceber a concretização das relações fronteiriças formadas entre sistemas

culturais, nas quais surgem “relaciones de equivalencia convencional”

(LOTMAN, 1996:68). Nelas, alguns pares estruturalmente contrastantes

estabelecem pontos de similitude entre si, nos quais o processo de tradução

realiza uma dinâmica entre os modos de ordenação distintos pelas relações


61

de similaridade entre como determinado sistema se organiza em relação

ao modo como o outro se articula.

Entretanto, é sempre importante ressaltar que a base para a

construtibilidade dos textos é feita através das fronteiras, que são ambíguas

por natureza. Dessa maneira, todo texto, ao reforçar a tendência de trânsito

da homogeneidade à heterogeneidade, mediante a concretização do espaço

continuum entre linguagens que se comunicam, também aguça o seu

contrário. Primeiro, porque toda tradução nunca é exata, mas sempre parcial,

pois o espaço de similaridade do texto não é um espaço de harmonia e

equilíbrio das diferenças, mas nele as relações de similaridade estão sempre

sob o fundo das disparidades entre linguagens. Segundo, porque, para

ocorrer a construtibilidade dos textos culturais, cada sistema sígnico envolvido

precisa desenvolver os seus próprios mecanismos de codificação e de


tradução que, apesar de serem construídos em relação aos do outro sistema,

eles não constituem códigos semelhantes, mas códigos em interação.

É por isso que Lotman entende o texto como sendo “un espacio

semiótico en el interactúan, se interfieren y se autoorganizan jerárquicamente

los lenguajes” (1996:97). Trata-se de um espaço de montagem e de

comunicação formado pelas fronteiras entre linguagens, em que o nível de

complexidade é maior em relação a cada sistema tomado separadamente.

Nele, as fronteiras produzem um processo onde “se crea una estructura única,

en la cual cada parte es al mismo tiempo un todo, y cada todo funciona

también como parte” (LOTMAN, 1996:69).

No caso do longa-metragem Elefante, ao perceber a dinamicidade

articulada pelas fronteiras entre filme e game e pelo processo ardiloso da

macroestrutura, o espectador, envolvido pela atmosfera de “quebra-cabeça”,

pode encontrar a própria imagem do elefante da parábola, que não se deixa


62

perceber com tanta facilidade. Ela surge aos 45:47 minutos da projeção do

filme e está estrategicamente lugarizada na seqüência em que se encontram

pela primeira vez os estudantes Alex e Eric. É, justamente, a cena na qual

também aparece a imagem do game pelo computador.

Tal como acontece ao longo da montagem do labirinto, a

construtibilidade dessa seqüência faz-se por meio do choque que, nesse

caso, é montado pelas diferenças entre dois travellings horizontais

sucessivos. No primeiro travelling, a câmera faz um giro de 360º a partir do

centro do quarto para mostrar, em série, vários elementos presentes no seu

interior: os troféus sob a janela, as roupas no armário, a mochila em cima da

cadeira, além dos vários desenhos, pôsteres e bilhetes pendurados nas

paredes. Nesse primeiro percurso, a percepção tende a prolongar-se de

uma imagem a outra e a não se deter em nenhuma delas, apenas percorre a


linha circular que as une. Porém, no decorrer do segundo travelling, a tensão

perceptiva é surpreendida pela montagem, decorrente da quebra na

seqüência, que salta do terceiro quadrante da circunferência para o final do

travelling.

O salto chama a atenção para uma informação que possivelmente

passou despercebida durante o percurso anterior. Trata-se do desenho de

um elefante pendurado na parede, presente no primeiro movimento, e que

desaparece no segundo travelling

com a fragmentação da seqüência

(fig. 21). Assim como acontece, por

exemplo, com os links, a leitura

sincrônica, nesse caso, é

fundamental para perceber a

dinamicidade construída pela


Fig. 21- Desenho do elefante
no quarto de Alex.
63

totalidade da montagem. O espectador, ao comparar os dois travellings e

analisá-los por meio de suas dessemelhanças, tal como em um jogo dos

sete erros, “recupera”, pela leitura, a figura que talvez tenha passado

despercebida, não como uma imagem visual do elefante, mas como

informação de uma imagem que foi subtraída pela montagem.

Nessa seqüência, é possível dizer que o “elefante” encontra-se no

quarto dos futuros criminosos, mas poucos conseguem percebê-lo, tal como

alerta a metáfora do elefante instalado na sala, que ninguém consegue ver,

presente no documentário de Alan Clarke, o qual Van Sant usou como uma

das referências para batizar o seu longa-metragem, conforme mencionado.

A imagem do elefante está no quarto de Alex, porém, inserida em um modo

de ordenação do espaço que se monta como uma tessitura opaca, repleta

de estratagemas, e que requer do espectador um mergulho em sua


construtibilidade.

1.4. O espectador como leitor de estruturas

Apesar de o espectador não agir diretamente sobre o resultado final

da concretude dos textos, surge entre ele e os arranjos fílmicos analisados

uma mediação na qual os modos de ordenação dos longas-metragens

provocam um outro tipo de envolvimento, que não incide apenas na relação

emocional com o enredo da intriga ou com a situação dramática das

personagens. Ele emerge, sobretudo, do trabalho intelectual do espectador

como leitor, que procura desvelar os percalços oriundos das espacialidades

em montagem.

A ele cabe a leitura das representações do espaço para que a

dinâmica da montagem reverbere como uma “montagem mediativa”


64

(FERRARA, 2004-05)12, em que a relação de comunicação entre texto e

leitor não se configura como um processo unilateral, como entende, por

exemplo, o modelo comunicacional proposto por Shannon e Weaver

(1975:25-37). Para os precursores da teoria da informação, o bom

desempenho da comunicação supõe um sistema em que a informação

gerada por uma fonte deve ser a mesma a qual o destinatário tem acesso,

sem sofrer alterações. Nas espacialidades propostas, ocorre o contrário,

pois elas mediatizam-se pela resposta pari passu do leitor, que produz, por

meio delas, um outro signo mais elaborado, formado, no caso dos filmes

analisados, pela tensa relação entre a opacidade do modo de gerir e

organizar os elementos audiovisuais e a percepção atenta e

desautomatizada.

A capacidade do texto para gerar mediações tensivas com o


espectador já era, por exemplo, almejada por Eisenstein desde a sua atuação

no teatro, pela montagem de atrações, até sua incursão pelo cinema, por

meio da montagem intelectual. Para ele, a ordenação do texto formada por


elementos conflitantes em contato com o público pode gerar uma atitude

responsiva decorrente do desconforto físico, no confronto da corporeidade

da imagem com o corpo do espectador; pela alteração do seu estado

emocional e/ou, ainda, por meio da intervenção cognitiva do pensamento,

ao interpretar a articulação estabelecida entre os signos audiovisuais,

formando, com isso um ambiente comunicacional carregado de tensões, no

qual “la percepción de un hecho desencadena una determinada actividad

motriz que, a sua vez, produce una emoción; la emoción pone entonces en

marcha un proceso de pensamiento” (BORDWELL,1999:151).

Independentemente de haver ou não veracidade nesse efeito

reflexológico entre o corpo, a emoção e a mente do espectador, o que


12
Idem nota 2.
65

importa ressaltar aqui é a perspicácia de Eisenstein em perceber que um

texto não é um fim em si mesmo, mas, conforme ele se organiza, inclui na

sua tessitura um lugar de reflexão metalingüística sobre a função

representativa da linguagem. Nele, o modo de tecer torna-se o elemento

principal que media as relações entre aquele que elabora a organização do

material e aquele que pensa sobre o material organizado, com a intenção

de inferir a lógica que o articula.

No caso dos filmes analisados, a relação entre as espacialidades

em montagem e o espectador processa-se como informação da organização

do material, a partir do momento em que ela é, paulatinamente, traduzida

pela cognição como uma imagem diagramática. Trata-se de uma forma de

raciocínio que vai “indutivamente deduzindo a lógica de articulação da

montagem” (FERRARA, 2004-05)13, através de índices oriundos do modo


de organização do texto, traduzidos em ícones diagramáticos que constroem

relações de similaridade com a forma fílmica.

Segundo Peirce (1990:64-65), o diagrama é uma forma de

representação sígnica que se caracteriza por estabelecer relações de

analogia com objeto, daí a sua caracterização icônica. Porém, ele não

representa as “qualidades simples” ou os caracteres do objeto, mas incide

sobre as relações formais e predicativas que há entre as suas propriedades,

construindo, com isso, uma imagem estrutural da estrutura do objeto, na qual

não necessariamente precisa haver entre eles uma relação de semelhança

quanto à aparência, mas em que deve haver similitude “quanto à relação

entre as suas partes” (PEIRCE, 1990:66), para que o diagrama se processe

como “um ícone de relações inteligíveis” (PEIRCE apud JORGE, 2004:16)

ou “um ícone das formas das relações na conformação de seu objeto”.

13
Idem nota 2.
66

A construção do diagrama possibilita ao leitor sair da simples

condição de espectador para vaguear pelas imagens com certo controle

sobre o que se passa diante de seus sentidos. Isso ocorre porque, da

percepção descompromissada à análise crítica do que se percebe, o

diagrama interpõe-se como uma espécie de laboratório, no qual os insights

que surgem pela observação do modo de articulação de um texto têm, nele,

um recurso reflexivo para serem abordados como hipóteses investigativas

que são comprovadas, retificadas ou descartadas, conforme elas são

testadas no confronto entre o diagrama e seu objeto.

Construídas na fronteira entre texto e leitor, as imagens diagramáticas

das espacialidades em montagem traduzem, por exemplo, as várias

descontinuidades entre as ações narrativas, as relações de dominância e

de conflito entre as imagens ótico-visuais e o confronto entre a temporalidade


e a espacialidade, pela alteridade das relações formadas pelos nexos que

compõem os diagramas. Com base nelas, é possível reunir “todos os

predicados de relações em um único sistema” (IBRI, 1994:129), para, com

isso, construir algum caminho que leve às generalizações sobre os

agenciamentos dos modos de organização, ainda que seja em caráter

provisório. Nesse tipo de construtibilidade fílmica, o que menos importa é

que haja um consenso literal entre leitura e tessitura, porque, sobretudo, busca-

se entreter o leitor em uma espécie de jogo audiovisual que vai da livre

contemplação ao descobrimento de novas relações.

Nesse mergulho intelectual, o repertório cultural do leitor tem um papel

preponderante, pois, segundo Peirce (apud IBRI, 1994:120), diferentes

elementos que formam as hipóteses, as quais são posteriormente testadas

pelo diagrama, já estão contidos na nossa mente. Eles esperam ser

aglutinados por algo que se apresente à nossa percepção para que


67

possamos perceber “aquilo que estamos preparados para interpretar”

(PEIRCE apud IBRI, 1994:120).

Nesse sentido, como leitor de estruturas, o espectador é, também,

um construtor, ao tornar-se capaz de apreender os fluxos cognitivos

subjacentes aos modos de articulações textuais. Trata-se de um processo

no qual ele, outrora passivo em relação às imagens, inverte o vínculo

comunicativo com os textos fílmicos, ao tentar entender a lógica do que fora

percebido. Realiza-se, dessa maneira, uma percepção participante do

processo de comunicação que, com sagacidade, elabora hipóteses

possíveis dos modos de ordenação e testa-as no embate com as

espacialidades em montagem. Por meio da percepção atenta e da leitura,

o espectador desvencilha-se das amarras existentes nos labirintos e, tal

como Teseu do mito do Minotauro, consegue “matar” o mostro e “sair” do


claustro.
68

2.
A representação do espaço na jornada de Maria

De todos os diretores em atividade na televisão brasileira, Luiz

Fernando Carvalho é o nome mais citado pela imprensa especializada e

pelos estudiosos das linguagens audiovisuais, quando o assunto se refere

ao realizador que estabelece amplo diálogo com a linguagem

cinematográfica na construção do texto televisual.


Em entrevista concedida a Alexandre Werneck do site Contracampo,

Carvalho não nega a influência do cinema em sua formação, ratificando que

é mesmo “filho de cinemateca, rato do MAM”. Porém, diante da afirmativa


da jornalista Sylvia Colombo do jornal Folha de São Paulo de que, apesar

de ele nunca ter pensado A pedra do reino “como cinema”, a microssérie

tampouco se identifica com a televisão, Carvalho contra-argumenta que o

seu modo de rodar “não diminui a TV nem engrandece o cinema, mas

também não se deixa escravizar por essa ou aquela linguagem artificial”

(COLOMBO, 2007) e insiste que a microssérie não é um texto

cinematográfico feito para televisão, mas é “um projeto de TV e para a TV”

(COLOMBO, 2007).

Longe de ser gratuita, sua insistência adquire outros contornos, se

levar em consideração o preconceito com o meio televisual, julgado, na

maioria das vezes, como um veículo comunicacional que só produz


69

mediocridades, em que parece inconcebível pensar num texto criativo na e

para TV. Machado, em seu livro A televisão levada a sério (2000), alerta

para tal preconceito, sustentado por alguns estudiosos da área, e afirma

que o fenômeno da banalização não se constrói apenas na televisão, mas

ele atinge também outras esferas culturais. Da mesma forma como as

produções com baixo teor informacional podem emergir, por exemplo, na

literatura, nas artes plásticas, no cinema e no teatro, a articulação do texto

inteligente e inovador, habitualmente destinada a essas linguagens, também

encontra fértil terreno na televisão.

Para isso, não basta importar e adequar elementos compositivos de

outras esferas como se fossem próteses, a fim de, com isso, conseguir um

produto digno de “status” de obra de arte, como pretendem as tentativas de

exibição pela TV das peças teatrais sem nenhuma relação experimental com
o código televisual, as inúmeras adaptações literárias que giram em torno

apenas dos temas e dos motivos abordados nos textos literários ou, ainda,

a gravação em película de alguns programas televisivos para conseguir uma

“imagem de cinema”.

Pensar a linguagem televisual e compor um produto criativo específico

para esse meio exige, principalmente, explorar as potencialidades dessa

linguagem com a intenção de ultrapassar os limites alcançados pelos textos

já produzidos e, caso se construam relações com outras esferas culturais, é

necessário haver tensas relações em montagem entre as linguagens de forma

a se produzir uma tessitura entre ordens distintas, como, por exemplo, as

interfaces demonstradas no capítulo anterior mediante textos fílmicos feitos

pelos diálogos entre cinema, literatura e games.

Particularmente, esse traço de expansão entre linguagens é primordial

para esse estudo para entender o modo como se constrói a espacialidade


70

na televisão. Para investigar essa questão, foi selecionada para este capítulo

a primeira jornada da microssérie Hoje é dia de Maria. Não se trata de uma

seleção ao acaso, mas foram levados em conta os diversos índices das

fronteiras estabelecidas entre a tessitura televisual e as linguagens do teatro,

da literatura e das artes plásticas e, especificamente, considerou-se em conta

o diálogo formado entre a televisão e o cinema, no que se refere à construção

da espacialidade em montagem no diálogo com a articulação fragmentária

da televisão.

2.1. A montagem e linguagem hiperfragmentada da televisão

Em seu texto, intitulado O princípio cinematográfico e o ideograma

(1994)14, escrito em 1929, Eisenstein comenta a metodologia de ensino de


desenho adotada pelo departamento de educação do governo japonês, com

base na observação de uma cartilha destinada aos alunos do sexto grau da

escola fundamental, editada em 1910. Segundo o cineasta russo, a prática

pedagógica de desenho nas escolas japonesas estaria


14
Esse texto também se
próxima ao que ele denomina como método encontra publicado no livro A
forma do filme, editado pela
cinematográfico. Para exemplificar sua constatação, Jorge Zahar. Porém, com o
nome Fora do quadro, em vez
ele reproduz, em seu artigo, uma ilustração existente de O princípio cinematográfico
e o ideograma. Segundo nota
no método de ensino oriental, na qual há o desenho de José Carlos Avellar
(Eisenstein, 1990a: 46), em um
de um ramo de cerejeira que deveria ser fragmentado primeiro momento, o texto foi
publicado como posfácio do
pelo aluno por meio de figuras planas, como o círculo, ensaio Yaponskoye Kino (O
cinema japonês), em 1929, com
o quadrado ou o retângulo. o título Za Kadrom.
Posteriormente, em 1949, ele
Para Eisenstein (1994:162), o exercício de foi incorporado à primeira
edição de Film Form, com o
decomposição da figura em partes menores título que se apresenta aqui,
que consta da versão
demonstra que o conjunto é construído por “unidades organizada por Haroldo de
Campos, no livro Ideograma.
Lógica Poesia Linguagem.
71

de composição”. Percebê-lo dessa maneira é uma forma de ensinar ao

aluno que o processo de representação de um dado objeto implica uma via

de duas mãos: a seleção e a organização do material. Tal como ocorre no

cinema, o exercício proposto pela cartilha leva o aluno a enquadrar o objeto

como se fosse uma tomada, ao escolher e combinar suas partes pelo “corte

de um fragmento da realidade com o machado da lente” (EISENSTEIN,

1994:163).

A aproximação entre o modo japonês de ensino de desenho e a

maneira de articulação da linguagem cinematográfica é apenas uma das

diversas analogias que Eisenstein estabelece em seus escritos entre as

linguagens distintas do cinema e a lógica da articulação das células e da

montagem. Haja vista, por exemplo, as relações tensivas entre os elementos

cênicos percebidas no teatro Kabuki (EISENSTEIN, 1990a:27-34) ou, ainda,


a montagem construída entre os versos e, também, entre os signos voco-

visuais que ele detecta nos poemas de Puchkin (EISENSTEIN, 1990b:34-

38).
Ao pensar a montagem para além das fronteiras da tessitura fílmica,

ele procura demonstrar que a sua construtibilidade não se limita apenas aos

arranjos cinematográficos, compõe-se também em textos de outros sistemas

sígnicos e nas fronteiras culturais, pois a sua natureza é, sobretudo, da ordem

da organização entre signos e entre sistemas.

Porém, é no cinema que a montagem encontra o terreno fértil para a

visibilidade do seu processo. Segundo Eisenstein, em outro texto escrito

em 1934, intitulado Do teatro ao cinema (1990a), o atrito entre células adquire

uma nova qualidade perceptiva pela linguagem cinematográfica, uma vez

que os índices de sua construtibilidade se tornam visíveis e, por causa disso,

“o cinema é capaz, mais do que qualquer outra arte, de revelar o processo


72

que ocorre microscopicamente em todas as outras artes” (EISENSTEIN,

1990a: 16).

Nesse artigo, para reforçar a sua tese, o cineasta russo traz um

pequeno exemplo do modo de codificação das artes plásticas com base na

combinação entre duas cores: o vermelho e o azul. No caso das artes

plásticas, o resultado final não leva à exposição de ambas as cores, mas à

percepção apenas da mistura formada entre elas pela cor violeta. Têm-se,

na mescla, a perda dos índices da relação de montagem necessária para

que a síntese se concretize. Já no cinema, a resistência do plano em não se

deixar “engolir” facilmente pela relação com o outro plano possibilita deixar

à mostra tanto a sua natureza fragmentária quanto a engenhosidade da

montagem que interfaceia as células.

Toda a sua produção cinematográfica parece querer demonstrar a


articulação ardilosa e artificial da montagem, que se alimenta e se forma

através de um meio que inscreve e, com isso, representa uma dada realidade

pelo seu fracionamento. Quanto maior for a partilha, maiores serão as

chances de atuação da montagem, pois os processos de fragmentação e

de relação entre os fragmentos são duas operações indissociáveis. Um

depende do movimento do outro para que possa se articular. Isso ocorre

porque o plano como célula, apartado da montagem, se torna estático e

inoperante, pois se fecha em si mesmo, ao passo que a montagem destituída

do processo de fragmentação jamais se concretiza, uma vez que lhe falta a

matéria-prima, na qual são gerados traços compositivos, como elementos

determinantes da célula, que eclodem pelas relações tensivas com outra

célula.

Se a natureza fragmentária da linguagem cinematográfica é a mola

propulsora da construção e da visibilidade do modo de ordenação pela


73

montagem, o que dizer então da linguagem televisual, na qual os processos

de produção, veiculação e recepção dos textos televisivos são fatores que

colaboram para que esse sistema se torne um dos ambientes

comunicacionais, por excelência, da tessitura fracionada, ao lado, por

exemplo, do próprio cinema, do rádio e das mídias digitais.

Aliás, a fragmentação já se indicia no próprio modo de codificação

da imagem audiovisual, uma vez que o suporte televisivo inscreve a imagem

como um mosaico de retículas, tal como observa Machado (1988:40-53), no

diálogo com Décio Pignatari, a respeito da comparação feita por Marshall

McLuhan entre a imagem eletrônica e os mosaicos das igrejas bizantinas.

Segundo Machado (1988), tal comparação deve-se à forma como a câmera

de vídeo codifica a luz projetada nos objetos enquadrados e a converte em

sinais elétricos por meio de uma superfície fotossensível reticulada, e que,


depois, será novamente codificada pela tela do televisor, ao transformar os

sinais elétricos em luz.

Nesse modo de inscrição, o campo visual recortado pela câmera é

pulverizado em milhares de pontos e a imagem compõe-se pelo tráfego do

feixe de elétron que varre ponto a ponto, da esquerda para a direita e de

cima para baixo, a superfície reticulada. Trata-se de um mecanismo de

varredura contínuo, que trafega primeiro pelas linhas pontilhadas ímpares e,

depois, entrelaça-as com as linhas pontilhadas pares para


15
No mercado, já
formar um campo de vídeo . O ciclo de 50 ou 60 campos de
15
existem alguns
aparelhos de televisão e
vídeo, dependendo do padrão televisual adotado em cada câmeras de vídeo
funcionando pelo
país, dura um minuto e corresponde a 25 ou 30 imagens modelo de varredura
progressiva. Neles, o
completas, tecnicamente denominadas como quadros ou feixe de elétron
atravessa as linhas de
frames. varreduras de modo
seqüencial e não
alternado, ao contrário
do modelo de varredura
entrelaçada.
74

A construção da imagem em fragmentos produz mediações entre o

suporte e a linguagem televisual, pois o modo de inscrevê-la por meio do

fracionamento contamina tanto o modo de representação e de organização

dos textos, quanto interfere na relação comunicativa com o espectador que

precisa elaborar modos de leitura para a tessitura em mosaico. Isso não

quer dizer que o suporte, por si só, é capaz de originar uma nova linguagem.

Porém, conforme afirma Debray (2000), o suporte não apenas constitui uma

mera base material para a gravação das mensagens, mas ele também

“propõe sem dispor” (DEBRAY, 2000:27), ou seja, o modo como ele inscreve

os signos indicia determinadas formas expressivas que, posteriormente,

podem vir à tona mediante os modos de organização dos textos, da sua

grafia, dos vínculos comunicativos entre esses textos e o espectador e,

também, das relações sistêmicas dessa linguagem com outras já existentes.


Na linguagem televisual, o traço de fragmentação que caracteriza o

modo de inscrição do suporte se traduz, principalmente, pela maneira como

o programa de TV é pensando e construído, tendo em consideração a

estrutura de programação baseada no eixo sintagmático em blocos e,

também, na construção da percepção do zapper, que reordena os signos e

os textos, ao transformar a descontinuidade em informação.

Denominada por Balogh como “mosaico de programação”

(1996:131), a estrutura sintagmática em blocos é fruto da economia do meio

e do seu ambiente comunicacional dispersivo, que precisou lidar com

variáveis como, por exemplo, a alta demanda de programas para alimentar

o extenso tempo de exibição das emissoras, a diversidade de públicos a

serem contemplados por distintos tipos de mensagens, o alto número de

interrupções no fluxo de cada programa para dar espaço aos intervalos


75

comerciais, assim como as concorrências entre o meio e o tempo disponível

do receptor.

Disso resulta a articulação entre textos, somada às projeções em

suas tessituras das inserções dos breaks, chamadas, vinhetas de abertura

e de passagem, às possíveis entradas do plantão jornalístico e, no caso das

narrativas seriadas como a telenovela, também se constituem, por exemplo,

os mecanismos de suspensão e reatamento das histórias pelos ganchos.

A televisão (...) radicaliza e escancara a descontinuidade:


cada programa é periodicamente interrompido para abrir
espaço para os comerciais e, conseqüentemente, o sentido
tem que ser veiculado em blocos, de modo fragmentário.
Nesse sentido, a TV está muito inserida no mundo
contemporâneo, que se caracteriza pelo discurso
descontínuo e pela prevalência do fragmento em detrimento
da unidade (BALOGH, 2002:94-95).

Aliado ao mosaico de programação, emerge outro fator que avoluma

o processo de fragmentação na linguagem televisual. Trata-se da experiência

do espectador como um zapper que, segundo Machado (1993:143- 164),


se produz com a prática insistente do tevente de mudar de canal.

Potencializado pelo advento do controle remoto e pelo crescente número de

ofertas de programas disponíveis nas emissoras, esse modo de

relacionamento com o meio surgiu como resposta “à mediocridade instalada

na televisão” (MACHADO, 1993:145), na qual, “ao fluxo contínuo e infinito de

imagens pasteurizadas no tubo catódico, o telespectador contra-atacava,

fazendo introduzir o corte, a diferença, a decisão, quem sabe um pouco de

sentido” (MACHADO, 1993:145).

Saltando, continuamente, entre enunciados distintos, o zapper

habituou-se ainda mais com a descontinuidade que caracteriza a linguagem

televisual, tornando-se ele próprio um agenciador dessa prática do


76

descontínuo. Tal como o zipper, aquele que recorta o texto gravado pelo

videocassete, ao correr a fita conforme as suas vontades, o zapper

apreendeu a “assistir por amostragem” (MACHADO, 1993:144) e todo e

qualquer enunciado deixou de ser percebido como algo acabado, mas

passível de ser quebrantado em seu decurso.

Mais que se configurar apenas como uma ação banal de apertar o

botão do controle remoto, o efeito zapping possibilita qualificar um tipo de

percepção e de intervenção daquele que comanda as escolhas e, com isso,

intervém no resultado final:

O zapper é um navegante da noosfera, o reino dos


signos: sua unidade de controle remoto lhe permite
atravessar espaços e tempos distintos e níveis
diferentes de realidade, alinhavando as faixas de onda,
embaralhando gêneros e formatos, redefinindo, enfim,
as categorias do conhecimento. Essa atividade
demanda, evidentemente, reflexos rápidos, intuição
para a seletividade e capacidade de estabelecer
conexões, mesmo que absurdas, nas redes de trânsito
de informação (MACHADO, 1993:144).

Na mediação entre o meio televisual e o espectador, o processo de

fragmentação instaura um modo característico de perceber e produzir

informação. Isso ocorre porque a descontinuidade que caracteriza a

linguagem televisual é traduzida em contínuo perceptivo e comunicativo,

mediante associações espaciais que estabelecem relações não previstas

entre textos, que aproximam e inter-relacionam partes do texto fracionadas

pelo mosaico de programação ou, ainda, que estabelecem confrontos entre

o texto percebido e as formas repertoriadas, como meio de produzir

significados a partir das lacunas, das reiterações, das citações e das

diferenças entre textos.

A lógica hiperfragmentada da linguagem televisual, que se constrói


77

desde o modo de inscrição da imagem até a mediação com o telespectador,

a princípio, parece inviabilizar, nesse sistema, a construtibilidade da

montagem como modo de organização. Pelo menos, no que se refere à sua

articulação mediante as relações tensivas entre as células sob o fundo de

uma seqüência lógico-dedutiva que irá levar, impreterivelmente, ao alcance

do télos, como imagem-conceito. Ou seja, a caracterização da montagem

como um processo que vai sendo desvelado de conflito em conflito até chegar

ao ponto de maturação, em que tal movimento irrompe e transcende num

propósito que amarra, dá sentido e justifica todos os desvios.

Segundo Xavier (2006), esse modelo de funcionamento da montagem

rumo ao télos concretiza-se na produção fílmica de Eisenstein e conquista

cada vez mais espaço em seus escritos, como proposta paradigmática do

modo de pensar e produzir um tipo de discurso fílmico. Trata-se de uma


forma de organização em consonância com a inspiração pedagógica militante

do cineasta russo, que busca levar o espectador ao projeto ideológico

desejado pelo artista-construtor por meio da experiência estética, como se


fosse uma espécie de engenharia social (idéia que já se encontra em seu

teatro das atrações).

Como reprodutora do paradigma teleológico, a montagem também

se relaciona ao diálogo entre Eisenstein e o pensamento moderno, no que

se refere à compreensão da ordem dos fatos históricos por meio da prótese

da meta-narrativa, não como uma tábua rasa que inaugura um novo ponto

de partida no processo histórico, mas como um modo de programar a cultura

rumo ao progresso.

Denominado por Bauman (2001) como “modernidade dura e pesada”

e como “modernidade do hardware”, o moderno não engloba a modernidade,

mas ele é uma de suas facetas, justamente aquela “obcecada pelo volume,
78

uma modernidade do tipo ‘quanto maior, melhor’, ‘tamanho é poder, volume

é sucesso’” (BAUMAN, 2001:132). Sua emergência na cultura sustentou-

se pela idéia de programação “como preordenação calculada e quase

mecânica” (ARGAN, 2005:251) e concretizou-se por uma linha de

pensamento que propõe a desvinculação com a perspectiva histórica; a

produção de métodos a priori centralizados na razão; a crença no controle e

na administração das cidades e da população por intermédio do

planejamento urbano totalizante, dos meios de comunicação de massa, da

edificação do Estado-nação; e a fé cega no progresso da civilização, sempre

em busca de um além, cujo final culminaria com a certeza de um mundo

racionalmente equilibrado, harmônico e feliz.

Essas seriam as condições para que o moderno funcionasse como

uma utopia na qual se isola “do contexto histórico um caráter, que se crê
mais significativo, e (se) fantasia seu desenvolvimento in vitrô, sem

obstáculos ou contrastes” (ARGAN, 2004:10). Tal “isolamento” lhe permite

ser fabricado como uma forma fixa de pensar e de agir, que deveria, ao

longo da história, sofrer alterações progressivas e planejadas apenas para

que fosse aperfeiçoada e melhorada.

A edificação do caráter programático do moderno teve como aliada

principal a produção do tempo como mecanismo de controle. Entre eles, há

uma relação intrínseca, pois o moderno fabrica e é fabricado por uma

temporalidade contígua, direcionada sempre no sentido do presente ao futuro.

Isso acontece porque a racionalização do tempo produziu uma prótese

caracterizada pela estrutura lacunar, formada por fragmentos interligados

por uma linearidade progressiva, sendo que cada fragmento representa uma

fase de inovação do moderno e, ao mesmo tempo, um ponto a ser superado

por ele. Da perspectiva sistêmica da cultura, tal temporalidade seria


79

composta pela seleção de alguns momentos explosivos, focos de

transformações possíveis na cultura, em detrimento de outros, organizados

para exibir uma progressão hierarquizada entre eles, sem haver, no entanto,

o confronto entre os pares envolvidos.

Essa temporalidade que salta de um momento explosivo a outro é a

mesma criticada por Walter Benjamim, em Sobre o conceito de história

(1994), ao abordar o historicismo que elege alguns fatos históricos e narra-

os por meio de uma relação de causalidade, com a intenção de funcionar

como uma representação da história universal do progresso da humanidade,

apesar de ser uma formulação particular da história, produzida pela ótica da

classe politicamente dominante. Trata-se de uma temporalidade baseada

no conceito dogmático de progresso, por meio de um processamento aditivo

do emparelhamento de alguns momentos explosivos, que “utiliza a massa


dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio”

(BENJAMIN, 1994: 231).

Como sujeito em constante diálogo com sua época, Eisenstein não

passou ileso pelo pensamento moderno; pelo contrário, esse choque atinge

o âmago do conceito de montagem e, conforme alerta Xavier (2006:359):

Em termos da inserção do artista no seu tempo, a posição


de Eisenstein se afigurou, desde o início, estratégica —
em tudo associada ao que se definia nos anos 20-30 como
traço por excelência do moderno. Fazia cinema, esta arte
celebrada por todos como filha do tempo e da máquina.
Apresentava-se no cenário internacional como realizador
do filme-impacto, O encouraçado Potemkin (1926), e como
porta-voz do novo — A Revolução de 17.

O traço utópico do moderno foi, cada vez mais, contaminando sua

teoria da montagem, que deixou de ser encarada não somente como um

modo de pensar pelo conflito, mas como forma de ordenar o discurso em


80

cadeias tensivas rumo ao télos. Segundo Xavier, Eisenstein, em seu texto

intitulado Montagem 1938, reformula a idéia da tensão entre imagens sob a

lógica das séries sucessivas de imagens em conflito, ao propor que:

(...) a produção de sentido se dá como resultado de


uma coleção de representações (ou figuras) que, na
acumulação, formam a Imagem-conceito. Não se trata
mais da postulação do “terceiro elemento” conceitual a
partir do conflito de duas representações sensíveis;
agora se trata de uma série de n figuras que produzem
o elemento n + 1: o conceito (XAVIER,2006:366).

Apesar de haver a interdependência entre as células e a montagem,

Eisenstein estabelece uma relação de hierarquia entre elas, ao tornar

predominante a articulação da montagem sobre as partes compositivas.

Conforme ressalta Xavier:

(...) Seu princípio da montagem vale no fragmento, na


parte, mas não se opõe como princípio geral da
totalidade. O que faz da sua teoria da montagem uma
afirmação radical da possibilidade de uma síntese a
partir de um todo que se organiza como série, conjunto
de elementos discretos em que sempre n pode dar
lugar a n + 1, em que a lógica das coleções, em princípio
incompatível com a idéia de corpo orgânico, parece não
questionar um resultado geral totalizante que supõe um
sentido na história, um movimento teleológico
(XAVIER,2006:372).

Dessa maneira, as células, não se opondo ao princípio geral da

montagem, ficam sujeitas ao seu devir. Como tessitura progressiva e

acumulativa, a montagem, sob o fundo da lógica teleológica, admite o

confronto, a ruptura, a fragmentação excessiva, desde que os elos não se

percam, mas reordenem-se sob a égide da causação final, desembocando

no objeto transcendente, na imagem-conceito, que preenche de sentidos


81

todas as relações tensivas construídas entre as células.

Ao pensarmos o movimento teleológico da montagem inserido no

âmbito hiperfragmentado da linguagem televisual, como a água e o óleo,

são duas lógicas impossíveis de diálogo. Isso porque, marcado

predominantemente pela construtibilidade do tempo, ao se organizar por

meio da suscetibilidade dos conflitos, na qual cada relação entre células se

configura como “etapa necessária para atingir o télos (fim)” como

“coroamento orgânico de todo um processo” (XAVIER, 1993:12), o discurso

teleológico pela montagem não se sustenta ou, pelo menos, é, em muito,

prejudicado pelo intenso processo de fracionamento, oriundo do sistema

televisivo.

No entanto, é importante ressaltar que a montagem, tendo como fundo

a articulação teleológica, não deve ser tomada como sinônimo de


espacialidade em montagem. A montagem rumo ao télos diz respeito aos

conflitos sucessivos e acumulativos que desembocam na imagem conceito

e, como tal, ela tem na representação do tempo uma base que permite tornar
contíguas as diversas relações de continuidade. Nela, há o domínio da

representação do tempo sobre o espaço e, por isso, pode-se afirmar que tal

modo de organização discursiva produz um espaço temporalizado.

Diferentemente da montagem teleológica, a espacialidade em

montagem é marca construtiva do espaço e não do tempo. Sua forma de

representação não se dá pela sucessão ou pelo acúmulo em etapas, mas

ela se expressa e, com isso, expande-se, por exemplo, pelos conflitos entre

imagens, embates entre sistemas e tensões entre modos diferentes do narrar.

Desse aspecto, retoma-se a idéia inicial de montagem proposta por

Eisenstein, na qual ela é, essencialmente, conflito.

É claro que toda relação de montagem entre células gera um “terceiro


82

elemento”. No entanto, a montagem desenhada pelo espaço não se

hierarquiza sobre os elementos em contraste, mas é atingida pelo processo

de representação. Assim como, as partes sofrem modificações por causa

da organização simultânea entre elas, que as retira de suas ordens

particulares, a montagem, constantemente, é redesenhada em função das

naturezas das partes postas em diálogo. De maneira diversa da montagem

teleológica, na qual é possível detectar um único desenho do tempo num

conjunto de textos produzidos por meio desse modo de representação, a

espacialidade em montagem gera diferentes e, arrisca-se em dizer, infinitos

desenhos do espaço.

No primeiro capítulo, se demonstrou dois desenhos do espaço

mediante textos articulados na linguagem cinematográfica. Na análise

seguinte, tem-se um outro desenho do espaço que leva em conta a estrutura


fracionada do meio, como será demonstrado no último item deste capítulo.

Porém, antes de iniciar a análise do como se constrói essa espacialidade,

é necessário deter-se um pouco conteúdo da narração, pois Hoje é dia de

Maria se articula através de várias historietas dentro de uma história. A

exposição primeira do nível narrativo não significa um descolamento entre

“forma e conteúdo”, como se isso fosse possível. Apenas é uma maneira de

evitar os vários apartes que seriam necessários para situar o leitor sobre o

contexto narrativo, conforme o desenvolvimento da análise.

2.2. A primeira jornada de Maria

Inspirada na obra de Carlos Alberto Soffredini com base nos contos

compilados por Câmara Cascudo e Sílvio Romero, escrita por Luiz Fernando

Carvalho, em parceria com o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, a primeira


83

jornada da microssérie Hoje é dia de Maria foi exibida em janeiro de 2005,

em oito episódios16, pela Rede Globo de Televisão, em comemoração de

seus 40 anos.

A série televisiva, dirigida por Carvalho, narra a história de Maria,

interpretada por Carolina Oliveira, e sua trajetória em busca das “franjas do

mar”. Garota simples, ela vive com o pai (Osmar Prado) em uma roça que já

teve os seus dias de glória. Com o advento da seca, a plantação morreu e,

com isso, foi-se a principal fonte de renda da família.

A falta de alimento e de recursos financeiros para superar a crise

desestrutura o núcleo familiar. Por causa das “mazelas da seca”, a mãe

(Juliana Carneiro da Cunha) falece, os irmãos mais velhos de Maria são

obrigados a sair de casa à procura de trabalho e o pai, deprimido e

desestimulado, põe-se a beber.


Sob o efeito da bebida, o pai torna-se num sujeito agressivo e

libidinoso. Tanto que, no início da narrativa, ele, embriagado, quase consegue

estuprar a própria filha. O ato não se consuma, pois surge no céu o Pássaro

Incomum, que ataca o agressor enquanto Maria foge. Trata-se de uma

espécie de anjo protetor representado por uma


16
A microssérie foi exibida de
marionete, produzida pelo grupo de teatro de terça à sexta, nos dias 11 (a
partir das 22h30), 12 (22h40), 13
bonecos Giramundo. Ele acompanha Maria em suas (22h45), 14 (23h10), 18 (23h05),
19 (22h55), 20 (22h50) e 21
andanças e, mais adiante, transforma-se em seu par (23h15). Com exceção dos
dias 14 e 21 de janeiro de 2005,
romântico, denominado Amado, papel interpretado nos quais ela começou após o
programa jornalístico Globo
por Rodrigo Santoro. Repórter, todos os outros
episódios foram exibidos após a
Para piorar o ambiente trágico vivido pela sucessão de três programas
líderes de audiência da
protagonista, o pai casa-se novamente e, tal como emissora: Jornal Nacional, a
telenovela Senhora do destino e
ocorre no conto da gata borralheira, a madrasta o reality show Big Brother Brasil.
Fator este que também
(Fernanda Montenegro) não se transforma numa mãe colaborou para o bom
desempenho em volume de
audiência da microssérie.
84

bondosa, mas se configura como um dos vilões da narrativa. Megera e

egoísta, ela obriga Maria a realizar todos os afazeres da casa e da roça

para que possa desfrutar o aconchego da nova casa e os prazeres da vida,

conjuntamente com sua filha Joaninha (Thaynná Pina/ Rafaella de Oliveira).

Cansada dos maus tratos, Maria, com a posse da chave mágica dada

pela mãe, foge de casa em busca do tesouro que está lá nas “terras de

lonjura, perto das franjas do mar”. Para encontrá-lo, ela precisa passar pela

Terra do Sol a Pino, local onde o sol nunca se põe e onde “seca bicho, homem,

e minino”. No decorrer do árduo trajeto, a garota esbarra com diversas

personagens e a história desdobra-se em outras historietas.

Dentre os vários encontros, surge, por exemplo, Zé Cangaia (Gero

Camilo), rapaz de boa índole, que vende a própria sombra para o demônio

em troca de um farto sanduíche para poder matar a fome. Em suas andanças,


Maria também se depara com os executivos (Charles Fricks e Leandro

Castilho), personagens que espancam cadáveres com a intenção de cobrar-

lhes a dívida não paga durante a vida. E, ainda, ela cruza o espaço das

meninas carvoeiras e entra em contato com a dura realidade do trabalho

extrativista, cuja atividade, quando praticada por crianças, costuma ser

apontada pelas imprensas brasileira e internacional como símbolo de

exploração do trabalho infantil.

No entanto, o seu principal “companheiro de viagem” é sempre

Asmodeu, o diabo, feito pelo ator Stênio Garcia. Coisa ruim, ele não é fácil

de ser reconhecido, pois se transmuta em outras aparências, conforme o

plano maquiavélico que pretende executar. Tal como o dito popular que afirma

que o gato possui sete vidas, Asmodeu também tem nas mangas seis outras

“vidas”, além da sua, para se disfarçar: Asmodeu brincante (Antônio Edson),

Asmodeu bonito (João Sabiá), Asmodeu poeta (Luiz Damasceno), Asmodeu


85

velho (Emiliano Queiroz), Asmodeu mágico (André Valli) e Asmodeu Sátiro

(Ricardo Blat).

Dentre todas as artimanhas feitas por Asmodeu, o roubo da infância

de Maria é o feitiço que consegue alterar por completo a trajetória da

protagonista. Num piscar de olhos, assim como acontece com o dia ao se

converter em noite por causa do objeto mágico dado pelos índios Xavantes

a Maria, a garota transforma-se em adulta (Letícia Sabatella), por meio de

algumas palavras proferidas pelo demônio.

No entanto, o salto para a maioridade, ao invés de se configurar como

algo maléfico, acaba proporcionando à menina, a possibilidade de explorar

outras sensações que não faziam parte do seu universo. Dessa forma, o

desejo, a paixão e o amor romântico adentram a sua história. Primeiramente,

esses sentimentos surgem pelo quase casamento com o príncipe da gata


borralheira, interpretado pelo ator Rodrigo Rubik. Mais adiante, eles se

concretizam na relação entre Maria e Amado, o Pássaro Incomum que sempre

a acompanha.

Como toda relação afetiva tem seus percalços, o envolvimento entre

Maria e Amado não foge à regra. A começar pela maldição que acomete

Amado todos os dias: de noite ele se transforma em homem e de dia se

metamorfoseia em ave. Feitiço que obriga o casal a, continuamente, se

afastar e a reaproximar-se. Além disso, surge na narrativa uma personagem

que se interpõe entre os amantes. Trata-se de Quirino (Daniel de Oliveira),

saltimbanco que trafega de vilarejo em vilarejo para encenar pequenos

espetáculos circenses, conjuntamente com a irmã Rosa, feita por Inês

Peixoto, atriz do grupo mineiro Galpão.

Todavia, o pior entrave na travessia de Maria é sempre o capeta.

Descontente e irritado com a paixão da protagonista, o belzebu a traz de


86

volta para a infância. Gira o mundo, alteram-se os contextos, e Maria, agora

pequena, sem perceber, toma o rumo de volta para casa. Durante o retorno,

revê os amigos que haviam atravessado o seu caminho. A maioria radiante,

pois, no intervalo entre a ida e a volta da garota, eles conseguiram melhorar

suas condições de vida. Haja vista, por exemplo, Zé Cangaia, antes sujeito

pobre e sem rumo, que acabou se tornando dono de um parque de diversões

ou, ainda, as meninas carvoeiras que conseguiram conquistar a própria

liberdade, deixando para trás a sina do trabalho escravocrata.

Mas, nem todos conseguiram modificar seus destinos. Na volta para

casa, Maria também reencontra o grupo de migrantes que continua a

caminhada para fugir da seca. Questionada se possui água, a garota entrega

a um dos retirantes (Nanego Lira) a cabaça d’água que recebeu do

Maltrapilho (Rodolfo Vaz), uma espécie de doador ou provedor dos contos


maravilhosos, dos vários que adentram a microssérie, cuja esfera de ação,

segundo Propp (1984:73), está circunscrita à preparação e transmissão dos

objetos mágicos. A água é derramada na terra e, em seguida, chove. O

homem alimenta a terra e o céu agradece na forma de chuva. Terra X céu,

seca X chuva, assim como, bem X mal, menina X mulher, ida X volta, homem

X diabo são alguns dos exemplos de signos postos em relação, ao longo da

narrativa, para construir e movimentar o universo tensivo e metafórico da

microssérie.

Dessa forma, voltar para casa não significa retornar ao ponto de

partida, mas, principalmente, contrapor o início e o fim da narrativa. Isso se

passa porque ao contrário do ambiente inóspito que havia em sua casa,

Maria, no regresso à roça, depara-se com outro contexto: a lavoura

prosperando e o lar todo refeito, pois os irmãos não partiram, a mãe está

viva e o pai, sóbrio e amável, trabalha na colheita com a família —, que conta
87

agora com um novo ajudante, o garoto Ciganinho (Phillipe Louis). Para

melhorar a situação, a madrasta nunca se casou com seu pai, mas com o

Sr. Odorico (Mário César Camargo) e vivem em harmonia com Joaninha.

Entretanto, nem tudo se modificou. Asmodeu continua no seu encalço

e não suporta a idéia de vê-la feliz. Para alterar drasticamente o novo

contexto, revertendo-o ao que era antes, convoca as suas seis facetas.

Juntas, atacam a casa e a família de Maria, emitindo raios de suas mãos.

Tentativas em vão, pois a garota dispõe de um espelho mágico, dado por

outro provedor, o Mascate (Rodolfo Vaz), que rebate o feitiço, lançando-o

contra o feiticeiro. Um por um, eles são eliminados até a destruição da

matriz dos Asmodeus. Sem a presença do demônio, no final da narrativa,

Maria, acompanhada do Ciganinho, chega às franjas do mar.

A exposição do nível narrativo da microssérie Hoje é dia de Maria já


indicia os vários desdobramentos que a história vai adquirindo por meio do

ato de caminhar da personagem. Nesse sentido, narrar e caminhar são

ações correlatas, pois, conforme Maria se desloca em sua travessia, a


história cada vez mais se expande em motivos distintos, além de retomar

subplots em suspenso e deixar alguns perdidos pelo caminho. Como o

discurso oral, o caminhar/narrar tece um percurso de causo em causo,

compondo, entre eles, uma história de histórias.

Assim como a travessia se desenvolve pelas fronteiras entre

historietas, as imagens audiovisuais, também, se constróem, como será

demonstrado, pela inter-relação entre a linguagem televisual e outros

sistemas de signos, tais como a literatura, o cinema, o teatro e as artes

plásticas. Para melhor compreensão desse modo de organização, repleto

de diálogos entre narrativas e entre linguagens, a análise que se segue está

dividida em duas partes, que não são excludentes, mas complementares.


88

Na primeira (2.3), intitulada A caminhada e suas fronteiras, a ênfase recai

sobre as diferentes fronteiras formadas entre a televisão e os outros sistemas

sígnicos, construídas na microssérie. Na segunda parte, denominada A

macroestrutura de Hoje é dia de Maria, o foco da análise volta-se,

particularmente, para o modo de ordenação da estrutura compositiva da

microssérie, em diálogo com o ambiente fragmentado da televisão.

2.3. A caminhada e suas fronteiras

Por sugestão da diretora de arte Lia Renha, Luiz Fernando Carvalho

decidiu não gravar a microssérie Hoje é dia de Maria em um estúdio

convencional, mas numa construção esférica, onde foi possível filmar tomadas

em 360°. Para isso, ergueu-se um estúdio em forma de domo (fig.22), em


um terreno em frente ao Projac, cidade cenográfica da Rede Globo, localizada

no bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro.

Trata-se de uma estrutura de

ferro, com 2.300 m², 27 metros de pé

direito e 54 metros de diâmetro, toda

coberta, que forma uma espécie de

tenda, cúpula ou oca e que foi revestida

internamente por uma imensa tela

pintada à mão pela equipe coordenada

por Clécio Regis, para representar Fig. 22- Vista externa do domo

determinados ambientes, tais como: a lavoura, o sítio, a estrada deserta, o

vilarejo e o bosque (fig.23).

A construção do domo integra-se à proposta de trabalho do diretor,

na qual todo material utilizado em cena deveria advir do processo artesanal


89

de reciclagem dos objetos. Seguindo

essa diretriz, ele foi projetado a partir

dos restos do principal palco da terceira

edição do festival Rock in Rio,

denominado Palco Mundo. Da mesma

maneira, figurinos e cenários foram

confeccionados nos ateliês com

retalhos, papéis, objetos plásticos

descartáveis, marmitas de alumínio,

além de indumentárias e restos de

cenários utilizados em outras

produções.

Em entrevista publicada no
encarte que acompanha a versão em

DVD da microssérie, ao ser perguntado

o porquê do processo de reciclagem dos

materiais, Carvalho afirma que:

Fig. 23 – Vistas internas do domo

Na verdade, trata-se de uma idéia ligada ao tempo.


Gostaríamos de reencontrar a antiga vida daqueles objetos
assim como a alma daquelas histórias, a tal da
ancestralidade de que falei anteriormente [o fio da
memória]. Objetos que, mesmo em frangalhos, assim que
colocados lado a lado a outros restos, nos possibilitariam
o renascimento de um objeto novo, de uma forma nova,
sem abrirmos mão da precariedade, muito ao contrário.
Daí a importância de um artista plástico como o Raimundo
Rodrigues na equipe de Lia Renha. Nossa história é então
saída de uma antiga gaveta de brinquedos velhos,
90

quebrados, faltando peças e partes, mas que carregam


uma dose de imaginação aos olhos de quem vai bulir com
eles, pois estão carregados de sonho humano.

No depoimento inserido no vídeo dos bastidores de produção de Hoje

é dia de Maria, disponível na versão em DVD da microssérie, Raimundo

Rodrigues, artista plástico cearense mencionado por Carvalho, traz outras

informações do que vem a ser esse processo de reciclagem:

Reaproveitamento das coisas não é aquela coisa de


aproveitar por aproveitar. Não. É de reaproveitar até
sentimentos. Reciclar sentimentos, reciclar idéias, reciclar
conceitos e isso representado simbolicamente através de
objetos totalmente desprezíveis, vamos dizer, assim, lixo.
Que não é necessariamente “o lixo”. Lixo é tudo o que não
se quer mais. Alguém não quis mais, virou lixo. Mas, para
outra pessoa isso vira matéria-prima, vira sentimento, vira
lembrança.

Dessa maneira, o projeto de reciclagem não está vinculado apenas

à reutilização física de “sobras” de materiais, mas ele abrange a idéia de

pôr novamente em circulação signos, textos e fragmentos de textos que, por

algum motivo, foram considerados ultrapassados, demasiadamente usados

ou sem função, mas que possuem, ainda, uma alta capacidade em potência

de representação.

A reciclagem, proposta por Carvalho e por sua equipe, dialoga com

a noção de redesenho apresentada por Ferrara (1988), na qual o redesenho

provém sempre de um arranjo compositivo já existente, para oferecer outros

modos de usos que uma combinação possa ter ou, a partir dela, propor

outras formas de combinação. Em todo redesenho persiste a função da

memória presente nos textos culturais, tal como entende Lotman, a qual será

discutida mais adiante, pois tanto o uso quanto o arranjo primevos não são
91

de todo abortados, mas permanecem de alguma forma persistindo, uma

vez que “o redesenho deixa patente o discurso anterior, porém cede a ele

uma nova sintaxe” (FERRARA,1988:68).

Além disso, a proposta de Carvalho está em sintonia com o que

Bastos denomina como “a cultura da reciclagem” (2003:04). Trata-se de um

modo de interferir na cultura por meio de experiências estéticas que abrangem

“um conjunto de práticas criativas que exploram a materialidade das

linguagens, manipulando com postura crítica e/ou irônica os produtos da mídia”

(BASTOS, 2003:04).

Bastos enumera uma série dessas interferências, tais como: as obras

que aderiram às técnicas de colagem e fotomontagem, ao utilizarem, por

exemplo, pedaços de jornais e fotografia em sua composição; as

manifestações da poesia concreta, nas quais vários poemas se estruturam


em relação às visualidades tipográficas e diagramáticas desenhadas em

cartazes, letreiros e textos jornalísticos; as composições feitas pela música

concreta, cuja matéria-prima não parte das notas musicais, mas das amostras

sonoras já existentes; ou, ainda, os trabalhos da net art e da poesia visual

que têm no próprio código digital, um poderoso instrumento que colabora

para o movimento da reciclagem.

Nessa cultura da reciclagem, também é possível incorporar os

trabalhos mencionados por Machado (2007), oriundos da vídeo-arte, que

tem como matéria-prima os textos televisuais. Por exemplo, o vídeo de Dara

Birnbaum, Technology/ transformation (1979) que “utiliza imagens

‘pirateadas’ do seriado americano Mulher maravilha e as desmonta para

discutir a imagem da mulher nos meios de massa” (MACHADO, 2007:19).

Ou ainda, o trabalho Cross-cultural television (1987) do artista catalão Antoni

Mutandas, em parceria com Hank Bull, feito com imagens televisuais de


92

emissoras de diferentes nacionalidades, com a intenção de demonstrar, pela

comparação, a mesmice que domina o modo de ordenação desses textos,

em detrimento das especificidades culturais de cada país de origem.

Porém, ao contrário dos exemplos mencionados, a proposta de

reciclagem de Carvalho tem uma peculiaridade: ela não brota na periferia

da indústria do entretenimento, mas desenvolve-se, justamente, na emissora

carioca que, muitas vezes, é mencionada por alguns críticos e estudiosos

do meio televisual como o símbolo maior da indústria cultural no Brasil. Longe

de querer fazer uma análise de teor sociológico sobre essa particularidade,

o que interessa a essa pesquisa é o paradoxo que se forma em uma mesma

grade de programação por meio de produções com dois procedimentos

distintos de reciclagem.

O primeiro refere-se à proposta de Carvalho e que, também, pode


ser estendido às produções de Guel Arraes (outro diretor da casa), no qual

reciclar está vinculado ao processo de redesenhar o existente, dando-lhe

uma outra ordem sem perder alguns de seus traços originais.

O segundo refere-se à reciclagem, no máximo, como reutilização ou

aproveitamento das imagens, dos restos de materiais gravados e das

fórmulas velhas—, que estão diretamente relacionados à economia da

indústria televisual. Tal prática envolve a customização de gastos — ao tirar

o maior proveito possível do material fabricado, o reaproveitamento de

modelos já repertoriados pelo público, dando-lhes uma “nova” roupagem, e

o uso de imagens disponíveis, tendo em vista o tempo acelerado da

produção. A recorrência desse processo de “reciclagem” pode ser

percebida, principalmente, em programas humorísticos, jornalísticos e

aqueles que servem como vitrines de outros produtos da mesma emissora,

tal como, por exemplo, o programa Vídeo Show.


93

Evidentemente, na perspectiva da empresa de comunicação, o

emprego do primeiro procedimento de reciclagem não visa promover a

produção e veiculação de novos formatos17 como se fossem “focos de

resistência” para contrapô-los aos modelos reproduzidos por ela. Suas

intenções são, sobretudo, de ordem mercadológica, já que ela percebe as

vantagens dessa outra sintaxe de reaproveitamento.

Primeiramente, a rede de televisão visa conquistar públicos e

anunciantes distintos por meio da variabilidade de seus produtos. Ao mesmo

tempo, o investimento em novos formatos permite-lhe construir internamente

estratégias para que haja a própria reciclagem da programação, uma vez

que as produções de caráter mais experimental constituem espécie de

laboratório para testar e propor alternativas que, ao obterem sucesso, entram

definitivamente para a linha de produção. É o caso do formato microssérie,


cuja proposta de produzir narrativas seriadas em pouquíssimos capítulos,

de quatro a oito, tem conquistado cada vez mais espaço na grade de

programação ou, ainda, a idéia do domo como estúdio de gravação, que já

foi assimilada pela emissora, tanto que ela


17
Fomato é um conceito trabalho por
pretende utilizá-la em outras produções. Irene Machado em seu texto, ainda
inédito, intitulado, provisoriamente,
Apesar de a produção e a exibição dos como Formato como design de
gêneros discursivos. Segundo a
novos formatos não se desvincularem dos autora, trata-se de uma tentativa de
entender um modo de organização
objetivos mercadológicos da empresa, isso não discursiva gerado por máquinas
semióticas e marcado,
neutraliza o seu caráter experimental. Tal principalmente, pelo traço da
experimentação entre linguagens.
característica torna-se mais evidente no momento Nesse sentido, o formato distingue-se
do programa, pois ele não surge pela
em que eles compartilham o mesmo mosaico de replicação de modelos, mas parte
deles rumo a outros modos de
programação ao lado de textos com menor seleção e de combinação. Por meio
do formato, o sistema de signo que o
capacidade criativa. Entre eles, constrói-se a constrói expande suas fronteiras,
pois, para formatá-lo, é necessário
espacialidade em montagem entre as mensagens explorar as disponibilidades
semióticas do ambiente composto
por diferentes mídias.
94

ordenadas dominantemente por signos novos e as estruturadas,

principalmente, por signos redundantes.

Embora pequena, a entrada dos novos formatos gera, na grade de

programação, uma outra visibilidade, considerando-se que ela deixa de se

articular pela sucessão de reproduções de uma única forma de ordenação e

passa a ser diagramada pelo embate de, pelo menos, dois modos de

organização divergentes, transformando-se, portanto, em lugar de tensões.

Conforme mencionado no capítulo 1, o lugar se constrói pela representação

do espaço, tendo em vista que ele se caracteriza pelo recorte sincrônico

entre signos distintos.

As relações tensivas da grade de programação refletem dois modos

de pensar e de entender a linguagem televisual em operação nas produções

da emissora carioca. Haja vista, por exemplo, as declarações de J.B.de


Oliveira, o Boninho, diretor responsável pelo programa Big Brother Brasil,

em contraponto àquelas proferidas por Luiz Fernando Carvalho. Após o

fracasso de audiência da microssérie A pedra do reino, dirigida por Carvalho,

Boninho, ao ser perguntado pelo Jornal Folha de São Paulo sobre a relação

entre arte e televisão, respondeu que as propostas artísticas na TV deveriam

estar restritas a um canal educativo ou a cabo, mas nunca ao que ele

denomina como “TV aberta de massa” (COLOMBO; CASTRO; CARIELLO,

2007).

Com uma opinião diametralmente oposta de J.B. de Oliveira, Carvalho

afirma, na mesma reportagem, que uma das funções da grande empresa de

ponta é a de abrir novos caminhos, assumindo os riscos. Em entrevista à

Esther Hamburguer (2005), também publicada pela Folha, ao ser

questionado sobre a existência ou não de uma linguagem televisiva, Luiz

Fernando Carvalho declara que ela é fruto de um amálgama de várias


95

linguagens, o que implica em dizer que ela está potencialmente em constante

mutação, porém, para que isso ocorra, a empresa de comunicação precisa,

pelo menos, ter uma parcela mínima de risco e de experimentação em suas

produções, caso contrário, ela tende à estagnação, restando-lhe apenas a

reprodução de modelos em operação há pelo menos 30 anos.

A televisão como amálgama de linguagens e o projeto de reciclagem

de Carvalho aproximam-se da idéia defendida por McLuhan (1995:22; 33;

36; 42; 56), na qual o “conteúdo” de um novo meio não surge do nada, mas

ele, necessariamente, se constitui com base nas inter-relações (ou fronteiras

culturais, como afirma Lotman) formadas no diálogo com os modos de

organização e de codificação construídos pelos outros meios já existentes.

Idéia essa, também, compartilhada por Pignatari, ao afirmar que:

A televisão é um veículo de veículos, é um grande rio com


grandes afluentes. Só que um rio reversível: recebe e
devolve influências. Quanto à imagem, deságuam na TV:
o desenho, a pintura, a fotografia, o cinema. A palavra
escrita é um rio subterrâneo, mas poderoso: a literatura
está por baixo de toda narrativa, a imprensa sob todos os
noticiosos e todos os documentários e reportagens. A
palavra falada é um lençol d’água, está por toda parte:
presenças de teatro e do rádio, que também influem nos
espetáculos musicais e humorísticos. Mas a linguagem
marcante, de base, é a do cinema: composição e
montagem de imagens. A diferença está em que a TV é
um cinema caudaloso e ininterrupto que, ritmado pelos
comerciais, se distribui por milhões de receptores, numa
linguagem que combina todas as linguagens, numa
produção seriada e industrializada da informação e do
entretenimento. (PIGNATARI, 1984:14).

Pelo projeto de reciclagem de Carvalho, o texto de Hoje é dia Maria

constrói fronteiras entre a televisão e outras linguagens. Nos dois subitens a

seguir, algumas delas são analisadas.


96

2.3.1. As fronteiras entre os textos orais e a tessitura televisual

Um dos procedimentos construtivos da reciclagem, utilizado na

primeira jornada de Maria, surge no plano da audibilidade por meio da trilha

sonora da vinheta de abertura, que faz uma espécie de remixagem18 de

frases musicais de algumas cantigas de roda. Intitulada “abertura”, a trilha

sonora da vinheta de Hoje é dia de Maria tem como matéria-prima as

cantigas de rodas compiladas por Heitor Villa-Lobos, em suas pesquisas

sobre as canções populares. Cada cantiga é representada por meio de um

fragmento que funciona como peça de montagem para a elaboração do

arranjo, feito pelo compositor Tim Rescala. Remixados num mesmo sintagma

sonoro19, trechos de Sapo jururu; O cravo e a rosa; Cai, cai, balão; Que

lindos olhos e Constante possibilitam a existência de diferentes movimentos


numa única composição e funcionam como índices que, conforme são

executados, remetem não ao tema específico de cada composição, mas ao

universo lúdico da infância envolto pelas cantigas de roda do imaginário

popular.

Movendo-se de faixa em faixa, como se fosse o som produzido pelo

tráfego do dial do rádio tentando sintonizar algum canal, a trilha sonora, no

diálogo com o plano da visualidade, sugere


18
Segundo Bastos (2003), o remix já é
a interface entre as linguagens televisual e conhecido como um gênero musical e
consiste em construir, pela estética da
radiofônica. Porém, outra fronteira se adensa reciclagem, uma determinada composição
feita de fragmentos de outros textos
mediante as relações de analogia entre os musicais, na qual “o trabalho é recriado,
compartilhando marcas do autor original e
modos de compor a vinheta, costurar a colcha marcas do autor do remix”.

de retalhos e confeccionar uma tessitura


19
O tempo de duração da vinheta de
abertura é de 58 segundos. No entanto, a
como uma espécie de índice sinóptico. trilha sonora dessa vinheta é mais longa.
Sua duração é de 102 segundos. A versão
na íntegra da trilha sonora da vinheta de
abertura encontra-se no site: <http://
hojeediademariatemporada1.globo.com/>.
97

Assim como a trilha se desenvolve por meio de fragmentos, a tessitura

visual se constrói pelo encadeamento de curtas animações, cujos traços

denotam a forma de desenhar da criança. Simulando o movimento de

travelling horizontal da câmera, da esquerda para direita, surgem, em

seqüência, imagens relativas a determinadas cenas provenientes da

microssérie.

No sintagma visual, aparecem animações que representam o início

de uma peça teatral com a subida das cortinas (a), a partida do pai enquanto

Maria se diverte no balanço (b), o encontro da madrasta e Joaninha com o

pai de Maria (c), a cena dos executivos espancando um cadáver (d), a fuga

dos retirantes por causa da seca (e), a andança a cavalo dos nativos (f), o

pacto de Zé Cangaia para conseguir um sanduíche (g), os fornos dos carvões

em atividade (h), o casamento de Maria com o príncipe (i), até finalizar com
o palco italiano (j), onde, em cena, se escreve o nome do programa (fig.24).

Durando apenas poucos segundos (58s), a vinheta de abertura, ao

entrelaçar “cápsulas” de cantigas com “partículas” animadas das cenas,

pluraliza suas funções, expandindo-as para além dos usos habituais. Esses,

em geral, estão circunscritos à criação da identidade sonoro-visual para um

enunciado específico, à sinalização do limite entre programas ou entre

programa e intervalo no mosaico de programação e à exposição dos créditos

iniciais.

Estruturada por fragmentos audiovisuais, a vinheta transforma-se

numa colcha de retalhos. Nesse caso, não se trata apenas de nomear

metaforicamente o modo de ordenação entre fragmentos, mas a analogia

entre vinheta e colcha de retalhos, afora a semelhança na maneira como se

organizam, também é reforçada pela representação visual da animação,

cujo cenário é feito pela combinação composta de nuvens e flores de crochê,


98

a)

f)

b)

g)

c)

h)

d)

i)

e)

j)

Fig. 24 – Imagens da vinheta de abertura


99

chão de pano de saco, montanhas de diferentes tecidos e, por fim, arremata-

se essa “costura” com o signo “Maria”, que surge como uma palavra bordada

por uma linha cor-de-rosa na assinatura do nome do programa.

Como colcha de retalhos, a vinheta representa, lúdica e

metalingüisticamente, as construções em mosaicos da imagem televisual,

da grade de programação e do texto tecido pela interferência do zapper,

todas em relação ao projeto de reciclagem de Carvalho que tem, na trilha

sonora, uma amostra do procedimento construtivo assumido pela feitura da

microssérie.

Ao mesmo tempo, a vinheta de abertura tece homologias entre o

trabalho artesanal das costureiras e bordadeiras e o modo de produção

peculiar de Carvalho, que cavoucou um espaço dentro do Projac para instigar

o trabalho criativo em equipe mediante, por exemplo, de oficinas para artistas


plásticos, figurinistas e cenógrafos, leituras dramáticas com o elenco e

workshops de canto, expressão corporal, dança e prosódia para os atores.

Em entrevista concedida ao jornalista Valmir Santos, publicada pela

Folha de São Paulo, em janeiro de 2005, ao ser perguntado sobre a sua

forma de trabalho na microssérie dentro da emissora carioca, Carvalho

responde:

Fui preparando-me, amadurecendo para realizar esse tipo


de treinamento criativo com todo o grupo. Sempre senti
falta de estar criando junto com os atores, com a direção
de arte... Como você vê aqui (espaço improvisado em
terreno em frente ao Projac), um conglomerado de oficinas,
de artistas plásticos, enfim, nosso cotidiano é composto
de oficinas nas quais as pessoas saem de um barracão e
entram em um outro, e esse fluxo sangüíneo que permeia,
que eu preciso que permeie, todos os departamentos,
incluindo aí os atores que são também artistas. Ator
burocrático, sinto muito, não tem vez aqui.
100

Além de estabelecer homologias entre a colcha de retalhos e o

sintagma televisual e entre a sua fabricação artesanal e a produção artística

na indústria do entretenimento, a vinheta de abertura também se assemelha

à construtibilidade de um índice sinóptico. No plano da visualidade, ela se

forma pela disposição em seqüência das cenas animadas, que, em geral,

obedece a ordem de entrada das personagens e das historietas no fluxo

narrativo da microssérie. Dessa maneira, tal como ocorre com o plano da

audibilidade que trafega de cantiga em cantiga, o plano da visualidade

movimenta-se de tópico em tópico, perfazendo, com isso, a síntese por

índices de alguns dos plots que serão desenvolvidos em Hoje é dia de Maria.

O uso da vinheta de abertura como menu visual favorece a sua

incorporação à totalidade da microssérie. Isso ocorre porque cada animação

se estrutura como um signo que remete a uma dada história, assim como
cada trecho sonoro das cantigas de roda funciona como índice das

composições que habitam o universo lúdico da infância.

São dois movimentos remissivos com direções diametralmente

opostas. O primeiro movimento parte do índice visual e volta-se para a

diegese, seu objeto, e, o segundo, parte do índice sonoro e volta-se para os

textos culturais que dialogam com a tessitura da microssérie. Indo da vinheta

para a história e, ao mesmo tempo, partindo dela para fora dos limites do

texto televisual, a abertura de Hoje é dia de Maria constrói-se como

representação do espaço que, em montagem, tenciona as semioses

produzidas pelas representações indiciais da visualidade e da audibilidade.

Em cada percurso de sentido tecido pela relação entre índice e objeto,

têm-se a construtibilidade e o agenciamento da fronteira cultural por meio

de uma de suas formas de disposição: a fronteira lugarizada internamente

entre textos pertencentes ao mesmo sistema de signo ou a que se lugariza


101

por se situar entre sistemas de signos distintos. Ou seja, uma é endógena e

a outra exógena e, no caso em análise, a interna se faz pelo diálogo entre

vinheta e diegese e a externa concretiza-se pela tradução entre a trilha sonora

e as cantigas de roda.

Na fronteira interna, além do movimento da vinheta para a narrativa,

constrói-se também o percurso inverso, como se fosse uma via de duas

mãos. A primeira, já mencionada, parte da vinheta para a diegese por

intermédio dos índices visuais e a outra sai do modo de contar a história de

Maria em direção à lógica de funcionamento das vinhetas pelas cantigas

inseridas na narrativa. Isso ocorre em dois momentos do segundo episódio:

no início da travessia de Maria e na sua continuação em busca das franjas

do mar, após a alteração do dia pela noite20.

Logo no início de sua


travessia, Maria é atraída pelo

canto do Maltrapilho (Rodolfo

Vaz) que entoa a canção Sapo

jururu, ajudado pela sanfona

manuseada pelos seus pés

Fig. 25- Encontro entre (fig.25). Sentado na beira do


Maria e o Maltrapilho
córrego, com um ferimento em

sua perna, o Maltrapilho é socorrido pela garota que molha na água a barra

do vestido e põe-na sobre o machucado.


20
O primeiro momento ocorre aos
Enquanto ela volta para o córrego para molhar 02:27 e o segundo aos 37:46 do
segundo episódio da primeira jornada
novamente o vestido, a personagem, que da microssérie Hoje é dia de Maria.
Os tempos da minutagem referem-se à
desempenha o papel de doador dos contos versão em DVD da microssérie, assim
como irão se referir todos os times
maravilhosos, desaparece e, no local, surge um codes mencionados ao longo deste
capítulo. A escolha pela marcação do
pedaço de corda feita de trapos de pano. Trata- tempo pela versão em DVD, e não pelo
programa exibido pela televisão, deve-
se à sua maior facilidade de acesso.
102

se de um objeto mágico utilizado mais adiante pela protagonista contra os

executivos.

Na vinheta de abertura, Sapo jururu é a cantiga que inicia a trilha

sonora composta por vários fragmentos. Retomada em um ponto estratégico

da narrativa sob a forma de canção, quando Maria deixa os limites de sua

casa para iniciar a jornada, ela funciona como sinal sonoro que demarca o

fim do espaço conhecido e o começo do desconhecido. Como signo

intervalar, a função da canção é reforçada visualmente pela representação

referencial do córrego que separa e aproxima dois mundos: aquele que ficou

para trás e o outro que desponta como futuro. Dessa maneira, o uso da

canção na diegese articula-se tal como numa vinheta mediante uma de suas

funções: servir como texto intermediário entre dois enunciados e, com isso,

separar e, ao mesmo tempo, unir os fragmentos no mosaico da programação.


O mesmo ocorre com a cantiga Cai, cai, balão, utilizada na vinheta

de abertura e retomada na microssérie pela voz de Maria, no momento em

que segue a sua trajetória, após haver a alteração do dia para a noite. Dessa

forma, a primeira canção demarca a alteração referencial do espaço de lá

para cá e a segunda pontua a transformação referencial do tempo diurno

para noturno. Em ambas, configura-se o funcionamento das canções como

signo intervalar e, com isso, são trazidas ao plano da audibilidade outras

formas de combinação e utilização do som, para além do uso habitual da

música caracterizado, na maioria das vezes, como elemento de apoio da

narrativa, que ajuda a construir sonoramente o ambiente dramatúrgico da

cena.

O projeto de reciclagem de Carvalho, além de orientar a produção

dos materiais cênicos e a construtibilidade da vinheta de abertura, também

norteia a confecção da narrativa pela fronteira entre a linguagem televisual e


103

o sistema das narrativas orais. Isso acontece porque a história de Hoje é

dia de Maria tem como base diferentes contos maravilhosos, dos quais fo-

ram extraídos trechos, intrigas, frases ou apenas os nomes das personagens

e, em alguns casos, aproveitou-se quase a totalidade do conto. A matéria-

prima para a composição da microssérie partiu de contos como A lebre

encantada (ROMERO,1954:269-272)21, A princesa do sonho sem fim

(CASCUDO,1997:28-31)22, Bicho de palha (CASCUDO, 1997:32–35)/ Maria

borralheira (ROMERO,1954:115-123)23, Almofadinha de ouro (CASCUDO,

1997:45-47)24, O papagaio real (CASCUDO, 1997:54-56)/ O papagaio do

Limo Verde (ROMERO,1954:128-136) 25, Quirino, vaqueiro do rei

(CASCUDO, 1986: 98-99)26, Frei João sem cuidados (CASCUDO, 1986:

201-203)/ O padre sem cuidados (ROMERO, 1954 290-293)26 e A menina

enterrada viva (CASCUDO, 1986: 207- 209)/ A madrasta (ROMERO, 1954:


124- 127)27.

21
Em Hoje é dia de Maria, a protagonista encontra um castelo onde reina a infelicidade por causa do
sumiço do príncipe. Trata-se do início de A lebre encantada, quando o príncipe sai para caçar lebres
e encontra um outro palácio, após adentrar um buraco. Encantado com o novo lugar, ele não retorna à
casa. Tal atitude acaba gerando a infelicidade no reino de origem.

22
Versão de a Bela adormecida (La belle au bois dormant). No conto, todos os moradores do castelo
foram enfeitiçados por uma fada velha que os pôs a dormir por cem anos. Apesar de os habitantes do
castelo não terem sido enfeitiçados como no conto, a maioria dos moradores é representada por
imensos bonecos que permanecem imóveis até o retorno do príncipe. Postura semelhante àquela
tomada pelo sol que, de desgosto, “se estatelô lá no céu e só se mexe de novo quando o moço
Príncipe vortá”.

23
Versões do conto A gata borralheira ou Cinderela, denominações mais conhecidas no imaginário
popular. A história da enteada maltratada pela madrasta e que depois se casa com o príncipe
encantado, após ter calçado o sapatinho mágico, está quase na íntegra na microssérie. As versões
do interior do Rio Grande do Norte e de Sergipe, respectivamente compiladas por Cascudo e Romero,
também contém a personagem do doador como um mortal de boa índole que depois se transforma em
Deus ou Nossa Senhora. Esse papel dúbio do doador também surge em Hoje é dia de Maria através
das personagens mãe/ Nossa Senhora, ambas interpretadas por Juliana Carneiro da Cunha.

24
Outra variante do conto A gata borralheira.
104

No tecer pela reciclagem, a estrutura narrativa de cada conto não é

refeita, mas aproveitada em partes pelas funções e esferas de ação,

Dessas histórias, sai a personagem do príncipe que de noite é homem e, de dia, transforma-se em
25

papagaio. Essa personagem ambígua migra para microssérie mediante a figura de Amado e do
Pássaro Incomum. Nos contos, o papagaio é afastado pela irmã ou vizinha de sua amante, dependo
da versão, por causa da inveja dela em relação ao amor entre o príncipe e a moça, assim como ocorre
em Hoje é dia de Maria no triângulo formado por Amado, Maria e Quirino.

26
A história em si não foi aproveitada na microssérie, apenas os nomes Quirino e Rosa. No conto, eles
se referem ao vaqueiro e à filha do fidalgo, sua futura esposa, e, em Hoje é dia de Maria, eles batizam
os irmãos saltimbancos.

27
Classificada por Câmara Cascudo como conto de adivinhação, Carvalho e Abreu retiram da narrativa
justamente o desafio de três perguntas, lançado pelo rei ao frei/padre. Na versão de Cascudo, as três
questões lançadas são: onde é o meio do mundo, quanto pesa a lua e em que o soberano estava
pensando. Recebe como respostas: 1) O meio do mundo fica onde está o rei, pois o mundo sendo
redondo qualquer lugar é meio. 2) A lua pesa uma libra porque se divide em quatro cantos. 3) O rei está
pensando que Frei João sem cuidados é o seu pastor. Dando-se por contente, o rei lhe recompensa e
o deixa ir embora. Na versão compilada por Romero, o padre, com medo da pena morte imposta pelo
rei, caso não conseguisse responder às perguntas, aceita a proposta do criado que vai em seu lugar
travestido com suas vestes. No dia do desafio, o rei, apontando para um canto do palácio, pergunta-
lhe: “De quantos cestos é preciso para caber aquele monte de areia?”. O falso padre responde: “Um
cesto muito grande que caiba todo o monte”. Em seguida, surge a segunda questão: “Quantas estrelas
há no céu?”. O criado, astucioso, diz: “Milhões e milhões de estrelas”. Como o rei não sabia o número
exato, aceitou a resposta. Por fim, tal como na versão de Cascudo, o rei pergunta: “O que eu estou
pensando?”. Finalizando o conto, tem-se a seguinte resposta: “Vossa Real Majestade pensa que está
falando com o padre sem cuidados, mas está falando é com o criado”. O jogo de três perguntas é
proposto na microssérie pelo demônio à Maria na forma de aposta. Caso ele vença, ela perde a
sombra, do contrário, ele devolve a sombra de Zé Cangaia. A primeira pergunta surge como uma
charada: “Uma casa tem quatro cantos, cada canto tem um gato; cada gato vê três gatos. Quantos
gatos tem na casa?”. Zé Cangaia assopra: “12”, mas Maria sem pestanejar responde que são quatro.
A segunda pergunta assemelha-se à primeira questão de Frei João sem cuidados: “Onde é o centro do
mundo?”. Zé Cangaia de novo se intromete: “Se num fô Jauzeiro, é Campina Grande, Mariazinha. Eu
tenho certeza”. Sem dar ouvidos ao amigo, a garota diz: “É aqui mesmo onde a gente tá. Das dereita
tem metade do mundo, das esquerda tem outra metade. Com ódio pelo bom desempenho de Maria, o
belzebu lança a mais difícil: “Quantos dias se passaram desde Adão até hoje?”. Maria demora um
pouco e grita: “Sete dias. Segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo!”. Apesar da vitória
de Maria, a palavra do coisa ruim pouco vale e ele segue o desafio desta vez, por meio de um repente.
Mesmo assim, não obtém sucesso e acaba devolvendo a sombra de Zé cangaia.

28
Conto sobre a menina morta pela madrasta e desenterrada com vida pelo pai. A narrativa encontra-se
na quase na integra no primeiro episódio de Hoje é dia de Maria. Além da história, a microssérie
também aproveitou a versão brasileira da cantiga portuguesa Figuinho da figueira, presente no texto
compilado tanto por Cascudo quanto por Romero. Carvalho e Abreu também trouxeram para a
microssérie uma das falas existente em A menina enterrada viva, que é proferida pelo pai após Maria
tentar convencê-lo a se casar com a madrasta por causa de sua bondade em lhe dar um favo de mel.
Trata-se da frase: “Agora ela lhe dá mel, minha filha, amanhã lhe dará fel” e que, na versão para
televisão, ficou: “Agora a tarzinha te dá mer, puis a despois, minha fia, ela há de te dar fer”. Essa fala
também foi compilada por Romero no conto Maria borralheira, da seguinte maneira: “Minha filha, ela
hoje te dá papinhas de mel, amanhã te dará de fel” (1954:115).
105

identificadas pelo formalista Wladimir Propp, em Morfologia do conto

maravilhoso, editado em 1928. Tais funções e esferas servem de substrato

para que o texto seriado da televisão as rearranje, conforme o

desenvolvimento da caminhada. Dessa forma, elas são replicadas,

neutralizadas, distorcidas e sobrepostas para que a jornada se expanda de

historieta em historieta.

Por exemplo, no final do conto A menina enterrada viva/ A madrasta,

após a garota ser desenterrada, a madrasta, que provocou sua morte, foge

ou morre, concretizando, com isso, a função 18, definida por Propp (1984:50-

51) como “o antagonista é vencido”. Em Hoje é dia de Maria, a punição não

ocorre, mas as artimanhas da megera contra a garota servem como motivo

para que Maria fuja de casa e inicie sua caminhada.

Da mesma forma, o final do conto Bicho de palha/ Maria borralheira


não se realiza com o casamento do príncipe com Maria borralheira. Assim,

a 26ª função classificada por Propp (1984:58-60) e nomeada “o herói se

casa e sobe ao trono”, é abortada da narrativa, com a desistência de Maria

do casamento por causa do chamado do Pássaro Incomum. Além disso, a

versão de Carvalho e Abreu enxerta na narrativa outra função inexistente no

conto da borralheira, ao submeter à heroína as provas da cama, da mesa e

do banho, antes da cerimônia matrimonial, “modo de vê se a sinhá branquinha

tá mesmo preparada pro casamento”.

As alterações feitas pela tradução de cada conto, ao invés de

distanciarem os modos de ordenação do texto televisual das narrativas orais,

acabam por aproximá-los. O não encerramento do conto, mas o seu

prolongamento em um outro traz à narrativa o traço do estilo aditivo oral,

detectado por Ong (1998:47) nas formas artísticas vocalizadas. Trata-se de

uma predominância no modo de expressar o pensamento pela voz, que


106

prefere organizar o discurso não pela subordinação entre as partes, tal como

ocorre com os textos tipográficos, mas pela relação por adição. Segundo

Ong, esse traço se deve ao fato de as formas vocalizadas se voltarem,

sobretudo, para a pragmática do discurso do que para a sintaxe, uma vez

que ela se constrói, predominantemente, pelo vínculo comunicacional

estabelecido entre o falante e o ouvinte.

No caso de Hoje é dia de Maria, a modificação do final de um conto

para somá-lo com outro não implica o contraponto com as relações por

subordinação, mas colabora para manter, minimamente, o fio da narrativa

tecido entre textos no ambiente altamente fragmentado da televisão. Ao

mesmo tempo, têm-se a sensação de que o ato de contar nunca se esgota,

mas está constantemente se abastecendo de mais histórias.

Afora as suspensões e enxertos de funções, a microssérie de Maria


também reitera esferas de ações para sustentar a longa jornada. Por

exemplo, a esfera do doador ou provedor é replicada, pelo menos, dez

vezes29, assim como a do antagonista se multiplica pelas sete variantes de

Asmodeu e, também, pelas atuações da madrasta, dos executivos e de

Quirino. No entanto, como o percurso é extenso, há a possibilidade de

alteração de papéis da personagem. É o que ocorre com o pai que,

paulatinamente, deixa de agir como vilão da história para se tornar auxiliar

da protagonista.

A repetição do já dito é outro traço 29


As personagens que trafegam pela
esfera do doador ou provedor são:
detectado por Ong (1998:50) nas formas 1) O Maltrapilho. Ele aparece no
primeiro episódio, aproximadamente
artísticas vocalizadas. Como a fala não se aos 2:27, e ressurge no último
episódio, aos 16:28.
materializa em um suporte que possa ser 2) O Mendigo (2° capítulo, aos 21:40).
3) Os índios Xavantes (2°/ 28:10).
manipulado para recuperar trechos perdidos ou 4) A mãe de Maria (3°/ 17:50).
5) O Mascate (5°/ 2:14 e 8°/2:08).
ignorados, tal como ocorre com a escrita por 6) O vendedor (6°/ 10:32).
7) Rosa (7°/ 19:15) e
8) O retirante (8°/ 20:22).
107

meio do registro impresso, ela depende da reiteração para manter “tanto o

falante quanto o ouvinte na pista certa” (ONG, 1998:50). No diálogo com

Omar Calabrese, Machado (2000:83-97) atenta para o uso das reiterações

pelas narrativas seriadas, não apenas como recurso de manutenção do ato

comunicacional, mas também como modo de produzir a relação dinâmica

entre os elementos invariantes e variantes, uma vez que a repetição funciona

como parâmetro de comparação entre as réplicas que, em montagem,

acentuam os acréscimos e as metamorfoses construídos em cada uma.

A reciclagem dos textos orais, pelas cantigas e pelos contos,

transforma a microssérie num mecanismo de tradução das tradições

(MACHADO, 2003) mergulhadas na cultura, que aponta para outros modos

de combinação a partir e para além das formas já existentes. Nesse sentido,

não se trata de recompor o passado com os vestígios encontrados, como


sonham alguns geneticistas em recriar espécies extintas por intermédio de

fragmentos de DNA. Mesmo porque, no caso das cantigas e dos contos

maravilhosos, estes nunca deixaram de existir. O que persiste no texto é a


construção representativa do espaço pelo recorte transversal mediante a

montagem entre duas funções da memória na cultura, denominadas por

Lotman (1996: 158) como memória informativa e criativa.

A primeira função está relacionada à capacidade que um sistema

tem de conservar e transmitir os textos por uma perspectiva diacrônica. A

memória informativa é percebida pela comparação entre os textos, onde

cada arranjo sígnico representa um estágio dentre os muitos imersos em

lentos processos graduais no interior da cultura. No confronto entre estágios,

a memória se constitui a partir do momento em que há uma lei da constância

entre eles.
108

Longe de ser estática ou estagnada, essa modalidade da memória

luta a favor da manutenção da integralidade dos textos da cultura, por meio

de mecanismos estabilizadores e reguladores de transformação, para que

a atualização dos arranjos sígnicos ocorra “dentro de los límites de alguna

invariante de sentido” (LOTMAN, 1996:157). Dessa maneira, é possível

formar a identidade de uma memória comum de uma dada coletividade pela

constância de algumas propriedades existentes nos textos, pois estes

sofreram apenas pequenas e gradativas alterações ao longo do tempo. São

qualidades sígnicas que persistem no repertório coletivo, ao resistirem às

mudanças bruscas e, por isso, constroem em torno de si um hábito capaz

de identificá-las como sendo “as mesmas”, visto que a perspectiva

cronológica do tempo não as desmancha, mas, pelo contrário, põe-nas em

evidência.
Porém, tal como ocorre com o dispositivo pensante da cultura,

mencionado no capítulo 1, a memória não é apenas tencionada pela

homogeneidade, mas também pela heterogeneidade. Se por um lado, ela

é vista como instância de conservação e transmissão da integralidade dos

textos e, como conseqüência, das linguagens, ao manter uma constância de

alguns traços no devir histórico, do outro lado, ela funciona como lugar de

geração de novos textos, não ao sustentar determinadas características de

arranjo e de combinação, mas ao promover a dinamicidade de construção

da informação pelo diálogo entre sistemas, em que “los sentidos en la

memoria de la cultura no ‘se conserva’, sino que crecen” (LOTMAN,

1996:160).

Trata-se de outra modalidade da memória, denominada por Lotman

como “memoria creativa (creadora)” (1996:158), que tende à

heterogeneidade sistêmica, ao construir o percurso vertical da cultura,


109

atravessando suas fronteiras internas, onde co-existem espaços-tempos

distintos. Nessa modalidade da memória, os textos não são comparados

como se fossem resultados finais, mas são observados em situação de

fronteira, no momento em que surgem por meio da dinâmica formada entre

sistemas, que Lotman identifica-os como sendo momentos explosivos da

cultura.

Ao contrário da memória informativa, a criativa opõe-se ao percurso

plano do tempo, pois não se constitui pela lógica contígua dos segmentos

temporais dispostos em presente, passado e futuro. O seu processo é

caracterizado pelo fluxo sincrônico—, que torna possível a multiplicidade do

presente e as relações tensivas entre as suas várias faces e, portanto, deixa

de ser apreendido segundo a reiteração de determinados signos pela égide

monocromática da cronologia temporal.


Isso acontece porque a lógica de articulação temporal da memória

criativa é contrária à compreensão do tempo pela filosofia aristotélica que o

entende “em relação ao movimento de corpos externos, em particular em

relação ao movimento dos astros” (GAGNEBIN, 1997:70), em que haveria

uma constância no movimento dos planetas capaz de ser perfeitamente

traduzida pelo tempo como uma “ordem mensurável” (ABBAGNANO, 2003:

945), ao se estabelecer como medida do movimento em relação às marcas

de anterioridade e de posterioridade.

Distinta da lógica de articulação do tempo pensada por Aristóteles, a

acepção da memória criativa, de certa maneira, aproxima-se da noção de

tempo proposta por Santo Agostinho (1996:309-340) no que se refere à sua

compreensão não como “realidade numérica” (MORA, 2001:674), mas como

algo que se distende e dissipa-se no presente. Isso ocorre porque, a base

de construtibilidade do tempo agostiniano se faz no presente, pois tanto o


110

passado quanto o futuro carecem de existência, uma vez que o primeiro se

refere a algo que já foi e o segundo representa um tempo que ainda não

ocorreu, ou seja, ambos estão destituídos da faculdade de estabelecer

diálogo com o contexto atual, pois significam “tempos mortos” e, portanto,

são inoperantes no interior da cultura. Sua noção de tempo caracteriza-se

por “um tempo às avessas, pois, sem cronologia, o tempo tem seu caráter

de experiência minimizado, visto que não pode gerar aprendizagem: o tempo

presente tem sua identidade marcada pelo espaço que ocupa no instante”

(FERRARA, 2008)30.

Segundo Santo Agostinho, as atuações do passado e do futuro não

ocorrem em contigüidade com o presente, mas no interior do próprio

presente, como presente do passado e presente do futuro. Ou seja, trata-se

de uma visão do tempo como um continuum mediante o “presente alargado”


(FIORIN, 1996:132), no qual o tempo presente se distende em presente do

pretérito, quando o nascimento de um texto dialoga com os textos já imersos

na cultura, e, também, ele distende-se em presente do futuro, quando os

novos textos apontam possíveis direções de regeneração e de crescimento

da cultura.

Apesar de não mencionar a mediação com o espaço, Santo Agostinho

recorre aos traços próprios de sua representação, como distensão e

continuidade, para falar sobre o tempo. A ignorância do espaço talvez se

justifique pelo fato de que a questão agostiniana não se volta para a relação

entre tempo e espaço, mas entre o tempo dos homens e a eternidade de

Deus. Além disso, o bispo de Hipona está interessado em contrapor sua

noção de tempo com a tradição filosófica do tempo aristotélico, mesmo que,

para isso, ele acabe subvertendo a contigüidade pela


30
Nota obtida durante
o processo de
orientação.
111

continuidade, ao mesmo tempo em que a reconstrói no interior e no

alargamento do presente.

Segundo Ferrara (2004-05)31, o tempo como continuum só é possível

pelo processo de espacialização, pois a continuidade é o traço principal do

espaço, ao contrário do tempo, caracterizado pela contigüidade, conforme

mencionado no primeiro capítulo. Dessa maneira, é somente pelo processo

de redesenho do tempo pelo espaço da cultura que ele passa a funcionar

como “tempo durativo” (FERRARA, 2004-05)32, em que o que está em

evidência é a qualidade daquilo que perdura como existente, e, por isso,

ainda continua em plena atividade.

Nesse espaço profundo e volumoso da cultura, o tempo espacializa-

se por meio da memória criativa, que tece relações tensivas estabelecidas

entre sistemas com durações de vida distintas. Trata-se de interações de


montagem entre tempos durativos que geram textos nos quais a memória

como espaço se processa como “tradutora das tradições” (MACHADO, 2003:

30), ao atualizar as cadeias sígnicas já existentes, propondo novos arranjos.

É sempre importante ressaltar que não se trata aqui de um processo

de volta ao passado ou de resgate do passado, mas a construção conflituosa

de novos textos em relação àqueles já existentes, em que o “novo” não

instaura uma espécie de marco zero, mas está em diálogo com toda a

complexidade da tradição da cultura, pois ele se torna “tributário de outros,

que não foram, assim, destituídos, mas recodificados” (MACHADO, 2003:

31).

Ao dar continuidade aos processos de semiose, a memória criativa

combate a degeneração dos sistemas mediante o processo de renovação

e, com isso, ela se volta para o que Lotman denomina como “máximo de

extensión temporal” (2000:173), no qual “cada cultura crea su modelo 31


Idem nota 02.
32
Idem nota 02.
112

de la duración de su existência, del carácter ininterrupido de su memória”

(2000: 173). Isso acontece porque o processo de tradução entre sistemas,

ao dialogar com as tradições culturais, constrói modos de projeção da própria

cultura no aqui agora, feitos por meio de percursos de sentido que apontam

para um além das fronteiras já existentes, propondo outras interfaces.

No caso da microssérie Hoje é dia de Maria, a fronteira entre os

textos orais e a tessitura televisual pela proposta de reciclagem tanto

possibilita perceber a articulação da memória informativa, quanto a sua

projeção criativa. De um lado, tem-se um movimento de manutenção de

traços como o estilo aditivo oral e a recursividade, próprios das formas

artísticas vocalizadas, além de se manter constantes algumas esferas de

ação, tais como a do herói, a do antagonista e a do provedor, como elementos

de composição que caracterizam uma espécie de estrutura mínima do conto


maravilhoso, que não se apaga no processo de releitura.

Do outro lado, propõem-se outras formas de combinação, que vão

além do modo padronizado do texto televisivo, ao possibilitar, por exemplo,

outras funções: a vinheta por meio das analogias com o modo de costurar a

colcha de retalhos e de confeccionar o índice de um livro, ou, ainda, a rearranjo

das esferas de ação para que o percurso da caminhada se traduza

metalingüisticamente no movimento de propagação do ato de contar, cujas

histórias perduram no tempo por causa do espaço profundo da memória

que, continuamente, ressignifica esses textos. Além disso, a remixagem

das cantigas possibilita o uso desse gênero como trilha sonora, sem perder

o modo como elas costumam ser vocalizadas no ambiente comunicacional

da brincadeira de roda, ou seja, a forma como uma se emenda na outra

para que a roda continue em movimento, embalada pelas canções.


113

Construído pelo movimento da memória com base no projeto de

reciclagem, o texto de Hoje é dia de Maria expande-se pelas interfaces

com as narrativas orais e as cantigas de roda e adensa-se ainda mais no

espaço fronteiriço com outros sistemas de signos.

2.3.2. O adensamento das fronteiras

Lançada em 1991, a obra videográfica de Sandra Kogut, intitulada

Parabolic people, causou grande frisson no meio artístico pelo modo como

os depoimentos e performances de pessoas comuns foram ordenados em

diferentes formatos, que exploram, por exemplo, a multiplicidade de quadros

dentro da tela videográfica, o intenso diálogo entre a palavra e as cenas

captadas e a mistura lingüística composta pela interposição das falas em


diferentes línguas, uma vez que os depoimentos foram colhidos em cinco

cidades: Nova Iorque, Moscou, Tókio, Dakar e Rio Janeiro.

Parabolic people foi produzido pelo Centre de Recherches Pierre

Schaeffer (França) e teve como germe uma outra produção da diretora,

intitulada Videocabines são caixas pretas, lançada um ano antes (fig.26).

Trata-se de um vídeo com aproximadamente nove minutos, feito de imagens

captadas em um estúdio de gravação portátil, internamente todo pintado de

preto, com 2,00X2,00X2,50 metros, colocado em diferentes locais da cidade

do Rio de Janeiro. Denominada videocabine33 ou caixa preta individual,

qualquer pessoa podia adentrá-la, ficando livre para fazer o que quissesse

em um tempo de trinta segundos.

33
Posterioremente a idéia da videocabine foi copiada pela produção do extinto Programa H, apresentado
por Luciano Huck na Rede Bandeirantes de televisão, veiculado de 1997 a 2000. Colocada no pátio da
emissora no momento em que a platéia se aglomerava na porta do estúdio principal para participar das
gravações do programa de auditório, a cópia da videocabine de Kogut coletava depoimentos e
performances de alguns participantes, a maioria adolescentes, para depois transformá-los em curtos
vídeos inseridos entre o início ou fim do bloco e os breaks comerciais.
114

É claro que há uma distância enorme entre

os trabalhos dirigidos por Sandra Kogut e os

confeccionados por Luiz Fernando Carvalho. No

entanto, a idéia de transformar o estúdio de

gravação numa peça importante para as

respectivas experiências estéticas parece, nesse

aspecto, aproximá-los. Kogut transformou o

estúdio convencional em uma versão pocket box,

para poder deslocá-lo em diferentes espaços da

cidade. Com isso, os locais onde se instalou a

videocabine tornaram-se ambientes de circulação

de transeuntes em lugares de tráfego de

informação ou, como prefere nomear a diretora, em


rede alternativa de exibição e gravação. Também

fugindo dos moldes do estúdio convencional,

Carvalho transformou os restos do palco do Rock

in Rio em alicerces para erguer o domo. Sua

empreitada, tal como já foi mencionada, lugarizou

dentro da emissora carioca um outro espaço de

produção, marcado pelo fazer artesanal e experi-

mental.

Por meio da caixa preta, Kogut obteve

imagens com dimensões similares àquelas

produzidas pelas cabines automáticas de


Fig. 26 – Cenas do vídeo
impressão de fotografias espalhadas pela cidade Videocabines

que, posteriormente, foram colocadas em diálogo, pela edição, para construir

redes de conexão entre os anônimos, produzindo, com isso, metáforas do


115

mundo global formadas por sujeitos isolados, em espaços privados, mas

conectados pela experiência com as videocabines.

Ao contrário de Sandra Kogut, Carvalho obteve, do domo, imagens

com visão em panorama para construir a metáfora de um mundo maior que

o próprio globo, o qual, segundo o diretor, parte do interior e dos sonhos do

ser humano. Apesar das diferenças estéticas e das propostas distintas de

metáforas, o caráter experimental do estúdio, como laboratório de pesquisa

para a construção das visualidades, trouxe, a ambos os diretores, um traço

distintivo em suas produções, ante às inúmeras produções audiovisuais, que

acabou tornando tanto a videocabine quanto o domo símbolos de suas

qualidades inventivas.

Ainda, no que tange ao seu funcionamento como signo, a construção

esférica do domo, revestida internamente por uma imensa tela, aproxima-


se do espaço arquitetônico do panorama estacionário europeu e, com isso,

estabelece relações indiciais entre o estúdio de Carvalho e uma das

primeiras salas de espetáculos visuais para o grande público de que se tem

notícia.

Segundo Aumont, acredita-se que a palavra panorama seja de origem

grega e que ela signifique onividência, no sentido de uma percepção capaz

de “abraçar com o olhar uma vasta zona” (AUMONT, 2004:55). O termo foi

adotado pelo pintor escocês de retratos Robert Barker para nomear e

patentar, em 1987, um dispositivo imersivo formado por um espaço

arquitetônico circular, revestido internamente por uma gigantesca tela pintada

à mão, vista a partir de uma plataforma elevada central. De acordo com

Almeida (2004), a finalidade do inventor era edificar um espaço onde os

observadores pudessem se sentir como se estivessem no local representado

e, para isso, era necessário criar estratégias que encobrissem sua


116

artificialidade.

Para que uma imagem pictural se passasse por realidade,


era necessário, em primeiro lugar, que se rompesse com
a idéia do quadro: as bordas do panorama não podiam ser
percebidas; não havia um exterior à pintura que se pudesse
enxergar, nem interrupções na imagem; o panorama era
construído de forma que nenhum elemento estranho à
paisagem apresentada pudesse perturbar o campo de visão
do espectador. Para chegar a este resultado, a estrutura
cilíndrica era complementada por um toldo sobre a
plataforma, no formato de um gigantesco guarda-sol,
graças ao qual o telhado era escondido. Como o teto era
feito de vidro, permitia a passagem da luz do dia — que
parecia vir da paisagem pintada, já que era lançada primeiro
sobre a tela para depois ser refletida e chegar ao
espectador. Assim, o guarda-sol desempenhava duas
funções importantes: manter o espectador na penumbra
para que ele recebesse apenas a luz “vinda da paisagem”
e esconder o alto da tela para que ele não visse as bordas
do panorama.

(...) Como a existência de uma borda inferior na pintura


seria um elemento contrário ao efeito ilusório do panorama,
em seu lugar havia uma curva no plano inclinado da
plataforma central, na base da tela. Esta solução, porém,
estava longe de ser suficiente, de acordo com as anotações
de Eugène Chevreul. A partir destas observações o oficial
Jean-Charles Langlois criou um fosso entre a plataforma
e a tela, que a partir do último terço do século XIX passaria
a ser preenchido com objetos tridimensionais. Com a
criação deste fosso o lugar do espectador passou a se
prolongar indefinidamente na pintura. Sem a percepção da
moldura, portanto, escondida pelo guarda-sol na parte de
cima e pelo fosso na parte de baixo, rompe-se com a idéia
de um quadro, o extra-campo desaparece e o único espaço
que se percebe é o apresentado pelo panorama, onde o
sujeito estará imerso (ALMEIDA, 2004: 36-38).

O panorama arquitetônico teve o seu auge no séc. XIX, principalmente

por causa das Exposições Universais, chegando a atrair multidões que se

aglomeravam para contemplar vistas circulares de cidades, paisagens de


117

terras distantes ou cenas narrativas de feitos históricos. Benjamin (2006:575)

enumera alguns desses espetáculos que invadiram a capital parisiense,

como, por exemplo, o panorama Viajem de volta ao mundo (Le tour de

monde), exposto na Exposição Univesal de Paris de 199034, onde se avistava

a tela panorâmica ao fundo e, em primeiro plano, a presença ao vivo de

figurantes.

O ponto de observação pela plataforma exígua e o deslocamento do

olhar pela e até a imensa tela, segundo Aumont (2004:56), possibilitaram ao

expectador do panorama europeu sensações do ver muito semelhantes

àquelas experiências visuais descritas pelos relatos dos viajantes do século

XVIII, advindas da visão do cume e da larga percepção. Isso acontece porque

o ver do alto e a capacidade de estender as vistas até o horizonte conferem

a percepção um “status” de sujeito portador da visão totalizante, pois ambos


são modos de posicionar o olhar que estruturam e caracterizam o campo

visual do dominador como forma de controle.

Nesse sentido, a visão da plataforma aproxima-se da perspectiva

privilegiada do vigilante na torre central do panóptico — a prisão modelar de

Betham. No entanto, conforme ressalta Aumont, o olhar no panorama é

sobretudo paradoxal, pois ao mesmo tempo em que reproduz o campo de

visão do dominador, abrindo-se ao horizonte através de uma posição

centralizada e de cima, ele também é engolido e

aprisionado pelo espaço circular, onde “a 34


De acordo com Costa, essa
exposição contou, ainda, com a
panorâmica (...) nutre, incessantemente, o olhar, mas presença dos irmãos Lumière, que
foram expor o seu Cinematógrafo e
o prende definitivamente” (AUMONT, 2004:57). o processo de fotografia em cores,
ao apresentarem “um
Formado por um painel circular pintado a cinematógrafo gigante que
projetava 15 filmes e 15 fotografias
mão e disposto em um espaço rotundo, o domo de em cores numa tela de 21 m de
largura por 18 de altura, instalada
Carvalho, pela analogia entre as formas, põe em no Champs-de-Mars, num
programa de 25 minutos de
duração” (COSTA, 2005: 23).
118

ciclo a arquitetura do panorama, mas redesenha sua função, ao construir um

outro uso: o seu funcionamento como laboratório de teste de modos de

contruir o ver e o ouvir e não mais como local de edificação e exaltação do

olhar totalizador do homem moderno.

No redesenho, a plataforma central e esguia desaparece. Porém,

mediante as imagens geradas no interior do domo, mantém-se a articulação

do olhar análoga à percepção do viajante e o “gosto pelo grande” (Aumont,

2004:58). Além disso, a relação parodoxal entre o olhar capaz de englobar

o todo e o campo de visão preso aos limites da rotunda é, em partes, refeita

pela montagem tensiva entre as imagens gravadas no domo e o universo

que há para além dos limites desse espaço cenográfico, representado pela

seqüência final da microssérie, cujas cenas da praia foram gravadas em

locação externa. Tal relação será analisada no próximo item deste capítulo.
No que se refere ao “gosto pelo grande” ou à tentativa de representar

o que é vasto que, na arquitetura do panaroma, se produz nas amplas

dimensões, tanto do dispositivo quanto da tela ou dos os temas tratados

(Aumont, 2004:58), em Hoje é dia de Maria, esse panorama constrói-se

pela mediação do olhar da câmera, principalmente, por intermédio da

recorrência do enquadramento em plano geral.

Justamente, o maior dos tipos de recorte de câmera e o único que

não tem como medida o corpo humano, o plano geral na microssérie surge

pela intenção de, minimamente, conseguir dar conta da imensidão dos

lugares e dos caminhos. É o que ocorre, por exemplo, com os planos do

deserto, da floresta e da neve, onde a personagem é um ponto perdido nas

paisagens (fig.27), ou, ainda, o seu uso, em diálogo com os percursos

desenhados na imensa tela, para representar as grandes extensões


119

territoriais dos caminhos percorridos ou que estão na eminência de serem

explorados (fig.28).

Nesses exemplos, há uma certa impotência das personagens ante à

imensidão dos espaços referenciais como metáfora da capacidade limitada

do ser humano de lidar com os percalços impostos pela natureza, pela viajem

e pela própria trajetória da vida. Assim, a escolha do plano geral parece ser

uma das poucas formas à altura de representar o indominável, pois, conforme

afirma Aumont (2004:56), “o espaço,

incontrolável, só existe como grandes

espaços”.

Representar o incontrolável pelo

plano geral também parece ser o modo

encontrado para se chegar ao espaço


quase inalcansável das fronteiras e dos

limites com o divino. É o que ocorre com

a seqüência em que Maria encontra, pela

primeira vez, com Nossa Senhora, no

momento em que vai até o riacho para

lavar a roupa.

Essa seqüência surge no

primeiro episódio, aos 26:57. Nela, a

aparição da santa enuncia-se primeiro

pela trilha sonora e, a seguir, torna-se

visível através do plano geral de Nossa

Senhora envolta pela floresta. A conexão

com o espaço dos imortais faz-se,

paulatinamente, por meio da câmera


Fig. 27 – Planos de conjunto
em Hoje é dia de Maria
120

que se aproxima lentamente, porém,

sem deixar de manter o quadro em plano

geral. Da mesma forma, no final da

seqüência, a desconexão com o divino

é feita pelo movimento contrário, com

variações crescentes do grande plano.

Conforme se estabelece o diálogo entre

Maria e Nossa Senhora, os

enquadramentos de plano e contra-

plano recortam ambas as personagens

através de outros tipos de quadro,

porém, elas nuncam chegam a ocupar

o mesmo plano.
Fig. 28- Planos gerais dos percursos
O limite e a fronteira entre o

espaço do homem e o dos deuses ocorre somente pela imagem da mãe,

que surge na superfície do riacho. Sua função mediadora tanto é gerada

referencialmente pela ambiguidade formada pelo reaparecimento da mãe

já morta, quanto pela posição que ocupa na estrutura compositiva da

seqüência. Isso se passa porque para se chegar a ela, há uma espécie de

rito de passagem através da trajetória construída pelo deslocamento da

percepção, que passa primeiro pela sub-seqüência das variações do plano

geral de Nossa Senhora e segue no pingue-pongue composto pelo diálogo

entre planos e contra-planos. Assim como há um ritual de passagem para

adentrar o espaço fronteiriço, também se monta um caminho de saída,

primeiro, pelo plano e contra-plano e, depois, pelo olhar da câmera, ao se

afastar da imagem de Nossa Senhora (diagrama III).


121

B) Primeira
parte de
A) Início da planos e
seqüência contra-planos

C) Imagem
intervalar

D) Segunda
E) Final da
parte de
seqüência
planos e
contra-planos

Diagrama III – A montagem entre os espaços dos mortais e do divino


122

A combinação do plano geral

com o movimento de câmera, como

demonstra a seqüência da aparição da

santa, busca construir a visualidade dos

grandes espaços e, sobretudo,

representar o deslocamento do olhar

nessas espacialidades. Não se trata do Fig. 29 – Visão do cume: a carvoaria

movimento dos olhos pela rotação da cabeça do espectador, situado na

plataforma esguia e central, que simula a percepção do conquistador no

cume, como ocorre na arquitetura do panorâma europeu, mas, sim, do

caminhar do olhar como um trauseunte que explora os mundos representados

dentro do domo.

Aliás, nos dois únicos momentos em que a câmera é posta no cume


pela percepção das personagens têm-se não a formação da sensação de

poder pelo olhar de cima, mas a emersão de outros sentimentos, totalmente

contrários à visão dos vencedores, tais como, a desolação e o desespero.

A primeira visão do cume surge no segundo episódio, aos 38:21, quando

Maria avista, do alto do morro, o local de queima do carvão, onde trabalham

várias crianças (fig.29) e, a segunda, aparece no início do episódio quatro35,

quando o pai, acreditando na morte de Maria e tentado pelo demo, tenta

jogar-se do alto do precipício (fig.30). Em ambas, o cume não é o local mais

alto a se alcançar, mas é o ponto de onde se avistam as mazelas do mundo

ou encena-se o fim no mundo.

Contudo, a rejeição da composição da visão dominadora do

conquistador não desfaz a analogia entre a percepção da


35
A seqüência em que
câmera e o olhar do viajante. Trata-se de outra modalidade de o pai tenta se suicidar
é dividida em duas
viajeiro, nomeado por Shuhei Hosokawa (1994) como partes. Ela começa
aos 9:48 e continua
aos 19:52.
123

“aventuroso” em referência ao viajante nostálgico de Jankelevitch

(L’irreversible et la nostalgie), que “atravessa as fronteiras e se abre para o

infinito à procura da nuova terra” (HOSOKAWA, 1994:97), pois:

Para o aventuroso não existe senão o ‘futuro próximo e


imediato’, futurum próximo. É um ‘começo que não cessa
de começar, uma continuação do recomeço no curso da
qual a novidade, em germe, surge a cada passo’: a
minúscula aventura do minuto próximo. Um bom aventuroso
está sempre preparado para nada, para o nada. Ele, como
o viajante nostálgico, aposta na ‘verdade do provisório’,
correndo risco de vida e morte (HOSOKAWA, 1994:97).

O olhar do aventuroso constrói-se, em Hoje é dia de Maria, pela

insistência do deslocar da percepção dentro do domo. A câmera que

persegue o vôo do Pássaro Incomum pelo deserto (fig.31), o travelling

horizontal acompanhando o caminhar de Maria sertão afora (fig.32), o

movimento de grua que se abre

enquanto a protagonista se afasta do

plano (fig. 33) e a panorâmica da


esquerda para a direita que segue a

trajetória de Quirino, até chegar a

carroça onde estão Maria e Rosa

conversando(fig.34) são alguns

exemplos dos inúmeros movimentos de

câmera que geram a visualidade do olhar

em deslocamento, no qual, conforme

afirma o mascate, ao entregar o espelho

mágico a Maria, “o que importa não é

chegar, é caminhar”.

Fig. 30- Visão do cume:


perspectiva do pai
124

Fig. 31- Seqüência aérea do


Pássaro Incomum

Fig. 32- Travelling do Fig. 33- Movimento


caminhar de Maria de grua de Maria
125

a)

f)

b)

g)

c)

h)

d)

i)

e)

j)

Fig. 34 – Movimento panorâmico


do trajeto de Quirino
126

De todas as visualidades que representam o

signo do deslocamento, há uma, em especial, que

demonstra não haver limites do tráfego do olhar,

mesmo com a planificação do espaço pela tela

pintada à mão. Trata-se da seqüência de despedida

do pai, que ocorre aos 22:24 do primeiro episódio.

Nela, o pai, montado em um cavalo, parte em busca

de trabalho após o casamento com a madrasta.

Na partida, a câmera acompanha o trotar do

animal que segue em direção ao fundo da cena, onde

há o desenho de um caminho entre as montanhas na

imensa tela. A princípio, a representação pictural da

trajetória em perspectiva seria suficiente para unir o


espaço cenográfico do estúdio e o espaço

desenhado no tecido e, com isso, demonstrar

dedutivamente que o pai irá prosseguir sua

caminhada por entre as montanhas.

Porém, surge, em seguida, um plano geral da

tela pintada à mão e, lentamente, têm-se um

movimento de câmera em zoom in para construir o

deslocamento do olhar no espaço pictural (fig.35).

Dessa forma, soma-se a linha traçada até o ponto

de fuga na imensa tela, a perspectiva formada pela

“aproximação” do objeto filmado mediante o

movimento das lentes da câmera. Mais que

representar o caminhar adiante do pai, o que se

encena é a percepção do aventuroso atravessando


Fig. 35- Seqüência da
partida do pai
127

fronteiras para explorar novos caminhos, além da terra conhecida. A imensa

tela, apesar de delimitar o espaço cenográfico do domo, não demarca limites

no espaço representado. Pelo contrário, o universo construído e os

caminhos, na microssérie, parecem perder-se de vista mediante a projeção

da perspectiva “tela à dentro” e as largas proporções da pintura.

Se a perspectiva desenhada na tela, aliada à perspectiva montada

pelo movimento de zoom da câmera, produz, no caso da seqüência anterior,

o continuum entre o espaço cenográfico tridimensional e a pintura. O fosso

existente entre eles serve, em outro momento, como estímulo para a geração

de outra visualidade, ao ser utilizado como elemento fundamental na

composição.

É o que ocorre no final do primeiro episódio, quando Maria foge de

casa. Em partes, essa seqüência assemelha-se à da partida do pai, no que


se refere ao caminhar da personagem em direção ao fundo da cena, de

onde se avista o percurso entre os vales desenhados na tela. Enquanto

Maria segue em direção à imagem pictural, a câmera afasta-se pelo

movimento de travelling, partindo do plano de conjunto para o plano geral

da cena (imagens b-e) e, em seguida, após a saída de cena da protagonista,

tem-se o movimento contrário, que aproxima cada vez mais o olhar em

direção ao ponto de fuga projetado na pintura (imagens f-h). Entre os

movimentos de afastamento e de aproximação do enquadramento, a câmera

fixa-se por alguns instantes, enquanto Maria sai de cena, ao descer por uma

escada existente no fosso, localizado entre o espaço cenográfico

tridimensional e a pintura (fig.36).

Não há cortes entre os movimentos para encobrir a saída do ator e

tampouco ele deixa a cena pelos limites do enquadramento, como

habitualmente se faz nos textos audiovisuais. O que se tem é a


128

a) e)

b) f)

c) g)

d) h)

Fig. 36- Seqüência da partida de Maria

construtibilidade da espacialidade pela fronteira entre televisão e o teatro,

ao dispor a coxia entre a boca de cena e a rotunda, para que se possa

encenar a partida da personagem pelo deslocamento do ator da cena para

a obscena.

Se o modo como o ator sai de cena possibilita a aproximação entre o

palco do teatro e a cenografia do domo, essa fronteira adensa-se em outro


129

momento que ocorre no sétimo episódio, aos

45:17. Trata-se da seqüência que surge após

morte do pai, na qual seu corpo é levado por um

corvo, representado pelo boneco de marionete do

grupo de teatro Giramundo. Após, literalmente, o

corpo subir ao céu, a imagem em plano geral do

local repleto de neve, onde o pai se encontrava, é

sobreposta à cena animada de um tecido azulado,

em que dançam os bordados (fig.37). Dessa

maneira, tem-se a representação de um dos

principais signos do palco italiano: a cortina.

Assim como em todo final de espetáculo

representado nesse palco, a cortina fecha a boca


de cena para sinalizar o encerramento da peça, a

seqüência do término da vida na microssérie, em

analogia ao teatro, finaliza a cena da morte com

uma versão estilizada desse signo.

A fronteira com o teatro não se atém

apenas a essas duas seqüências, mas ela perdura

em toda a microssérie. Na análise feita por

Ramos (2007: 167-185) sobre o modo como se

constrói a espacialidade do design de aparências

das personagens em Hoje é dia de Maria, o teatro

aparece como principal referência para a

caracterização visual do ator. Ramos alerta para

os traços de teatralidade presentes, por exemplo,

na forma como a maquiagem é utilizada: não com


Fig. 37- Seqüência da
morte do Pai
130

o intuito de embelezar e esconder possíveis “deformações” nos corpos dos

atores, como usualmente se faz na televisão, no cinema ou na fotografia

comercial, mas como modo de “evidenciar os traços fisionômicos dos atores

sob as luzes e na distância existente entre palco e platéia” mediante “olhos e

sobrancelhas contornados por evidentes traços de lápis preto, faces bastante

ruborizadas e lábios pintados” (RAMOS, 2007:173).

Na caracterização visual dos atores, a máscara comparece como

um dos recursos cênicos mais utilizado. Segundo Vasconcellos (1987),

possivelmente se trata de um dos elementos mais representativos da história

do teatro, tanto que se tornou símbolo das artes cênicas, mediante as duas

máscaras que representam a tragédia e a comédia, gêneros difundidos pelo

teatro grego.

Utilizada no teatro, principalmente, para “diferenciar sexo e idade;


permitir à execução de mais de um papel pelo mesmo ator; e (...) ampliar o

som da voz humana numa espécie de caixa acústica” (VASCONCELLOS,

1987:123), a máscara foi adquirindo outras funções e mantendo-se como

um dos elementos fundamentais em alguns tipos de espetáculos, tais como:

a commedia dell’arte, onde ela apresenta um arquétipo, ao mesmo tempo

em que serve de meio para o ator criar e improvisar (AMARAL, 1996:49) ou,

ainda, o teatro japonês Nô, no qual ela representa a fronteira entre exterior e

interior, o prosaico e o divino, o ator e a personagem e, por isso, é ela que

“determina a escolha do vestuário, dos acessórios e da interpretação do

papel, criando uma atmosfera peculiar, onde tudo resulta harmônico, como

em uma composição musical” (KUSANO, 1988:44-45).

Em Hoje é dia de Maria, em diversos momentos, a máscara surge

como elemento principal para composição de espacialidades. Por exemplo,

no episódio três, aos 35:00, após Maria se despedir de Zé Cangaia e


131

prosseguir sua caminhada, constrói-se a máscara

mediante o jogo de luz projetado no rosto de

Asmodeu, que se encontra na esquina do percurso

da protagonista. Enquanto, no fundo da cena,

Maria faz a curva cantarolando “Alecrim, alecrim

dourado, que nasceu no campo sem ser

semeado”, tem-se, em primeiro plano, o rosto em

close de Asmodeu dizendo:

Proveita o curto tempo que é


seu! O lote de tempo mais
longo vai ser meu! Purque eu
sou aquele que entorta os
caminho. Amarga as água nos
pote. Azeda o vinho. Planta a
mágoa no fundo do coração
humano! Proveita seus ano de
menina. Essa alegria boba da
vida. Proveita. Purque sua
infância já tem dono e logo vai
desaparecer! E aí, vai sê só
ocê, eu e o mundo! Ai de ocê,
que cruzo os meus caminho!

Ressaltado pelo movimento de câmera e,

também, pelo girar da cabeça de Asmodeu, que

altera a direção do seu perfil da direita para a

esquerda, o ponto de virada do caminho em curva

da protagonista lugariza-se pela diferença de

iluminação no rosto do demo (fig.38). Em alusão

ao teatro, as máscaras que representam a

comédia e a tragédia se formam pela face


Fig. 38- Seqüência de
perfilada de Asmodeu em luz ambiente e pela outra construção da máscara
de Asmodeu
132

face delineada pelo reflexo da

projeção da luz verde em seu rosto.

Na alteração da direção do percurso

e na diferença das faces, monta-se o

lugar de tensão entre o local de onde

se veio e o de onde se vai, entre o

conhecido e o desconhecido e entre


Fig. 39- Máscara alegre de Quirino
os tempos de criança, “essa alegria

boba da vida”, e “o lote de tempo” que será roubado pelo demo ao transformar

Maria de menina em adulta.

O símbolo que representa gêneros teatrais distintos também se faz

presente durante a trajetória da personagem Quirino (o terceiro elemento

que se interpõe na relação entre Maria e Amado). Palhaço mambembe,


Quirino aparece pela primeira vez mascarado por uma fisionomia suave e

feliz, principalmente, por causa dos cantos dos lábios, traçados por fortes

pinceladas vermelhas voltadas para cima (fig.39). Ao se apaixonar por Maria

e descobrir o amor secreto da protagonista por Amado, a maquiagem do

rosto de palhaço altera-se radicalmente. Em sua face, produz-se uma

aparência que representa tanto a raiva quanto a tristeza, mediante os

desenhos em gota no ponto

de tensão da testa, a

lágrima inscrita no olho

esquerdo e os cantos da

boca voltados para baixo

(fig.40). O retorno à

primeira máscara ocorre

Fig. 40 – Máscara raivosa e somente após Quirino


triste de Quirino
133

desistir de lutar pelo amor de Maria e

redimir-se dos seus feitos contra

Amado (fig.41). A alteração entre as

máscaras indicia as mudanças nos

sentimentos vividas pela personagem,

decorrentes de suas próprias

escolhas. Da alegria para a raiva e a


Fig. 41- Retorno da máscara alegre
tristeza e passando desses

sentimentos negativos para a alegria, revelam-se, pela face de Quirino, os

movimentos ambíguos e contrastantes que as relações com o outro podem

gerar.

Além de lugarizar o ponto de tensão no percurso da protagonista e

de tornar visíveis as transformações sentimentais vivenciadas por Quirino, a


máscara também funciona como lugar de fronteira entre a vida e a morte.

Aos 38:04 do sétimo episódio, enquanto o pai dorme dentro da carroça dos

saltimbancos, surge a face da morte através de uma máscara na forma de

caveira, projetada por um facho de luz. Lentamente, ela percorre o corpo da

personagem e finaliza sua jornada sobrepondo-se ao semblante do pai

(fig.42), para, com isso, produzir de forma metafórica o momento de encontro

entre vida e morte.

“Já construíste teu barco?” pergunta a morte, interpretada por Osmar

Prado, ao pai, que aparece após a sobreposição da máscara da caveira

em seu rosto. “Há uma longa viagem a ser feita, que começa agora”, alerta

a morte e complementa: “com o vigor de um coração tranqüilo, parte para a

maior aventura”.

Se a máscara constrói a fronteira entre o mundo dos vivos e a dos

mortos, a passagem de um para o outro, que inicia “a longa viagem a ser


134

feita”, surge, logo adiante, através de um plano

geral, no qual se avistam o pai e a mãe sentados

em um banco, disposto num jardim coberto de

neve. Trata-se do local onde eles se encontraram

pela primeira vez e trocaram o primeiro beijo.

Vagarosamente a câmera faz um movimento em

travelling horizontal da esquerda para a direita.

Após passar o tronco de uma árvore em primeiro

plano, tem-se, no fundo da cena, o banco vazio

como forma de representar a partida definitiva

do pai (fig.43).

No percurso de um ponto a outro, as

visualidades delineiam distintas espacialidades:


os bancos, ocupado e desocupado confrontam-

se e, com isso, produzem a transformação do

signo da presença em ausência, pela montagem

entre suas semelhanças e diferenças. Além

disso, ao se dispor a cena da partida no mesmo

espaço referencial onde as personagens se

encontraram pela primeira vez, tem-se não uma

travessia linear que vai da vida para a morte, mas

um percurso em ciclo, em que início e fim estão

em diálogo.

Apesar de extenso, o número de

seqüências selecionadas e analisadas até este

momento, é necessário. Parece não haver melhor

maneira de demonstrar como se constrói o texto


Fig. 42- Seqüência da
máscara mortuária
135

formado pelo intenso diálogo entre

diferentes linguagens. No entanto, a

explanação de fronteira em fronteira,

mostrando, primeiramente, a interação entre

a televisão e as formas artísticas vocalizadas

até chegar à interface com o teatro, não

significa que a tessitura de Hoje é dia de

Maria se ordene passando de uma fronteira

à outra, mas é apenas um modo de expor

as idéias para tornar mais claras as trocas

informacionais que cada relação possibilita

ao texto televisual. O que se tem, na

verdade, é um tecido produzido por uma


fronteira densa e volumosa. Nela, a

construtibilidade da espacialidade em

montagem medeia as diversas relações

entre linguagens, concretizando-as em

signos, o que torna possível a verificação dos

modos de ordenação e comunicação do

texto.

É importante ressaltar que não se

trata de um texto híbrido no sentido de uma

forma de ordenação na qual as linguagens

se misturam. Conforme o exemplo das

cores, exposto por Eisenstein em seu texto

“Do teatro ao cinema” (1990a), mencionado

Fig. 43- Seqüência do


“desaparecimento” do pai
136

no início deste capítulo, a mistura em si refere-se ao resultado e não ao

processo.

No caso da microssérie, de acordo com o que está sendo

demonstrado, os índices das interfaces entre sistemas existem e são

perceptíveis. Com base neles, é possível detectar e compreender quais e

como são os modos de inscrição em interação e os processos de tradução

decorrentes desses diálogos. O texto que remete à visualidade dos

panoramas, à audibilidade das cantigas de roda e à simbologia dialógica

das máscaras no teatro, só para ficar em alguns dos traços traduzidos

detectados, perfaz a noção de texto de Lotman, já mencionada, que surge

pelo processo de codificação de pelo menos duas formas de inscrição.

Tais índices, ao reportarem à semiose formada entre linguagens,

trazem à tona o percurso da memória criativa que, nunca é demais reafirmar,


se faz não pela trajetória do tempo, mas pelo recorte transversal do espaço

profundo da semiosfera que, segundo Lotman (1996:21-42), é o lugar onde

co-habitam todos os sistemas sígnicos e é o único espaço possível para as

construtibilidades das representações.

Nesse espaço, as fronteiras são condições indispensáveis para a

duratividade das linguagens, uma vez que são elas as responsáveis pelo

tráfego contínuo das informações entre sistemas sígnicos. Por meio delas,

cada linguagem tem, nas informações advindas de outros sistemas, um farto

material bruto a ser utilizado ou descartado conforme as necessidades e

possibilidades de tradução. Pelas interfaces, confrontam-se os modos de

ordenação e dessas tensões surgem analogias que não dizem respeito à

especificidade de uma linguagem, mas à montagem estabelecida entre elas.

É por isso que Benjamin (2006:500) afirma que a montagem é uma

arte de citar sem aspas. Nela, constroem-se imagens dialéticas, nas quais
137

as aspas não cabem, pois o processo de representação das imagens não

deriva dos limites entre linguagens e, tampouco, do “passado (que) lança

sua luz sobre o presente” ou do “presente (que) lança luz sobre o passado”

(BENJAMIN, 2006:505). O que há é o confronto entre linguagens e entre o

“ocorrido” e o “agora” (BENJAMIN, 2006:505), advindo das relações de

simultaneidade que as fronteiras possibilitam.

Em Hoje é dia de Maria,

imagens como a do bosque com rosas

imensas (fig.44); a de Quirino

apresentando-se com uma bexiga, na

qual há o desenho do mapa do mundo;

a do sapatinho vermelho deixada por

Maria no castelo do príncipe e, ainda; a


Fig. 44 – Bosque gigante em
dos retirantes, todas montam, por Hoje é dia de Maria

analogia entre as formas, relações

indiciais com outras imagens imersas no repertório cultural.

Respectivamente, elas põem novamente em ciclo as imagens do imenso

bosque que se forma, após Alice diminuir de tamanho ao comer um pedaço

de bolo—, no romance Alice no país das maravilhas, escrito por Lewis Carrol,

em 1865; as de O grande ditador, dirigido por Chaplin, em 1940; os

sapatinhos vermelhos de rubis dados a Dorothy por Glinda, a bruxa do Norte,

em O mágico de Oz (1939) e o quadro Retirantes de Cândido Portinari,

feito em 1944 (fig.45).

Essas e as outras imagens já analisadas possibilitam perceber a

constelação, mencionada por Benjamin (2006:505), que se forma no lampejo

montado entre o ocorrido e o agora. Ou, como afirma Lotman (1999:26-

34), elas surgem na semiosfera pelos atritos entre sistemas, os quais


138

Fig. 45 – Quadro comparativo


entre imagens

irrompem em momentos explosivos na cultura. Nenhuma delas imprime em

suas construtibilidades o traço da lembrança. O que há é a lugarização da

memória percebida pelos índices do continuum processo de ressignificação.

2.4. A macroestrutura de Hoje é dia Maria

Pallottini, em seu livro Dramaturgia de televisão (1998), classifica as

narrativas ficcionais de TV por meio de alguns parâmetros, tais como: a

extensão do programa, a quantidade de tramas e subtramas enredadas no


139

texto e o modo de organização e estruturação do conjunto. Mediante esses

e outros parâmetros, ela chega a dois grupos: o “unitário” e o “não-unitário”.

O primeiro refere-se ao tipo de ficção televisiva “levada ao ar de uma

só vez” (PALLOTTINI, 1998:25). Ele dura em média uma hora e desenvolve

uma história completa em um único episódio. Como exemplo, ela cita os

primeiros teleteatros exibidos pela televisão até chegar ao caso do programa

Comédia da vida privada, exibido entre 1995 e 97, pela Rede Globo.

No caso dessa série, composta por vários episódios, Pallottini alerta

para o fato de que cada episódio traça seu caminho independente do outro,

havendo, inclusive, a alteração tanto das personagens quanto dos enredos.

Entre eles, mantém-se o título do programa e o recorte em torno de situações

jocosas da vida doméstica. No diálogo com a autora, Machado (2000:83-

97) salienta esse traço da unidade narrativa desenvolvida apenas em um


episódio, classificando esse tipo de construtibilidade como narrativa seriada

formada por episódios unitários.

O segundo grupo, denominado de “não-unitário”, compreende “os

programas de maior duração” (PALLOTTINI, 1998:27) ou com maior relação

entre as partes, ao ser confrontado, por exemplo, com as narrativas seriadas

compostas por episódios unitários. Esse grupo subdivide-se em três

modalidades: a minissérie, o seriado e a telenovela.

De todos os tipos caracterizados como “não-unitários”, o seriado é o

que mais se aproxima do primeiro grupo, no que se refere ao esgotamento

de um plot em um único episódio. Classificado por Machado (2000:85)

como narrativa de “episódios seriados”, ele se estrutura com base em “um

protótipo básico que se multiplica em variantes diversas ao longo da

existência do programa” (MACHADO, 2000:85). Ao contrário dos unitários,


140

o seriado distingue-se pela recorrência a um núcleo fixo de personagens

em todos os episódios.

Diferente da estrutura do seriado, a telenovela, principalmente a versão

brasileira, é conhecida pelo extenso número de capítulos, pelo alto número

de plots e subplots entrelaçados e, principalmente, pelo processo de

construção desenvolvido em diálogo com os feedbacks do público, das

pesquisas de audiência e das solicitações dos anunciantes. Característica

essa que lhe possibilitou ser qualificada como “obra aberta”, dado o alto

número de interferências possíveis durante o seu processo de produção e

exibição, que é capaz de alterar por completo a sinopse inicial.

Mais próxima à telenovela que ao seriado, a minissérie é considerada

por Palllottini (1998:53) como uma espécie de “mininovela”. Machado (2000:

84) ressalta o traço semelhante que há entre algumas microsséries e a


telenovela em relação ao tipo de construção no qual há “uma única narrativa

(ou várias narrativas entrelaçadas e paralelas) que se sucede(m) mais ou

menos linearmente ao longo de todos os capítulos”. Segundo o autor:

Esse tipo de construção se diz teológico, pois ele se


resume fundamentalmente num (ou mais) conflito(s)
básico(s), que estabelece, logo de início, um desequilíbrio
estrutural, e toda evolução posterior dos acontecimentos
consiste num empenho em restabelecer o equilíbrio perdido,
objetivo que, em geral, só se atinge nos capítulos finais
(MACHADO, 2000: 84).

No caso da microssérie Hoje é dia Maria, há um desequilíbrio inicial

que se estabelece no primeiro capítulo, com a fuga de Maria, por causa da

sua vontade em encontrar as “franjas do mar” e, também, devido aos maus

tratos da madrasta. No último capítulo, o equilíbrio narrativo se forma com a


141

chegada da protagonista até o destino pretendido e, também, com o retorno

de Maria à casa, onde ela encontra a harmonia familiar refeita.

No entanto, o surgimento de outras intrigas no decorrer da caminhada

da personagem, que pouco tem a ver com o plot principal, e o modo como

elas se organizam na macroestrutura, em diálogo com o esquema de

exibição do programa, possibilitam a ordenação de um formato que nem

sempre se reporta à estrutura narrativa em fases e voltada para restabelecer

o equilíbrio perdido, em que os conflitos secundários dão sustentação ao

principal, mas se aproxima do modo de organização do seriado, no qual os

conflitos não dependem um do outro para se desenvolverem.

Talvez, por isso, a versão em DVD da microssérie utiliza o termo

episódio para nomear as partes compositivas, em vez de capítulos, ao

contrário, por exemplo, da versão em DVD da minissérie O primo Basílio,


lançada em 2007 pela Globo marcas DVD e exibida no canal aberto em

1988.

Para entender esse modo de organização, é necessário ater-se

primeiro ao esquema de exibição de Hoje é dia Maria, representado pelo

diagrama IV36.

36
No diagrama IV, do lado
direito do esquema de exibição
de cada episódio, há as
indicações visuais da primeira e
da última cena de cada bloco,
assim como as deixas iniciais
e finais das falas das
personagens, quando
acontecem. A indicação dos
tempos em parênteses está de
acordo com o tempo da versão
em DVD da microssérie e não
com o tempo de exibição pela
televisão, pois o acesso ao
DVD pelos possíveis leitores
dessa pesquisa é maior que a
versão transmitida pela Rede
Globo.
142

Diagrama IV: esquema de exibição de Hoje é dia de Maria


143
144

Exibida sempre após às 22:00 horas37, a microssérie em oito

episódios foi desmembrada em duas semanas. A primeira circunscrita entre

os dias 11 a 14 de janeiro de 2005 e, a segunda, entre os dias 18 a 21. Com

exceção do primeiro episódio, fragmentado em dois blocos, todos os outros

estão divididos em três partes. Porém, a duração dos blocos não tem uma

medida padrão, mas ela varia desde 27:34, como ocorre com o segundo

bloco do sétimo episódio, até os 4:25, no caso do último bloco do quinto

episódio.

A enorme variação na duração dos blocos ocasiona a produção de

um número pequeno de videotapes com medidas de exibição fixas, nos

quais estão circunscritas apenas as vinhetas do patrocinador (7"), de abertura

do programa (58") e de abertura e fechamento de blocos (7"). Todos os

outros segmentos que cortam o fluxo de exibição do programa, como as


entradas do jornalismo e os intervalos comerciais, variam de duração, como

forma de ajustar a assimetria nos tempos dos blocos da microssérie ao

espaço reservado à sua exibição na grade de programação da emissora.

Projetada para ser veiculada nesse ambiente altamente fragmentado,

a composição da macroestrutura da microssérie possui algumas estratégias

a favor do conjunto, para que ele não se dissipe e não se desmonte de vez.

A primeira delas refere-se à elaboração do papel do narrador pela voz over

e ao seu posicionamento na estrutura compositiva. Sua presença ocorre na

abertura e no fechamento de cada episódio e, em geral, ele chama a atenção

do espectador para a caminhada que se inicia ou o convida a continuar a

jornada no episódio seguinte.

Posicionada nas extremidades de cada episódio, a voz do narrador

tanto delimita o espaço de atuação da microssérie no mosaico de

programação, quanto estabelece vínculos entre as partes, ao lugarizar


37
Ver nota 16.
145

o ponto de conexão entre elas. Além disso, sua presença indicia o diálogo

já comentado, entre o texto televisual e as formas artísticas vocalizadas, pois

é pela voz, no caso das narrativas orais, que tem-se acesso, ou não, à forma

e ao conteúdo que se quer expressar, assim como ocorre na microssérie,

ao começar e finalizar todo trecho da jornada pela manifestação da voz.

Aliada ao plano da visualidade, a função do narrador como mediador

entre as partes torna-se evidente, principalmente, no início do quinto episódio,

justamente aquele que abre a segunda semana de veiculação do programa,

após três dias de interrupção. Na abertura desse segmento, ouve-se a voz

de Laura Cardoso dizendo:

Ponha atenção no que digo e aperta o coração que é abrigo


de todo sentimento. O amor de Maria tão esperado e de
tanta beleza vai se enredá com tristeza. E mais não digo.
Nem da intriga do demo. Oh! Cala-te boca! É melhor que
a história siga. Antonce.

Trata-se de uma seqüência com 25 segundos de duração, que foi

subtraída da versão da microssérie em DVD e, por isso, ela é representada


no diagrama pelo quadrado “S1”38. Nela se ouve a voz do narrador em

sintonia com o plano da visualidade, em que surgem cenas referentes ao

episódio anterior, como forma de resgatar o momento que Maria foi

amaldiçoada pelo demo, ao ter sua infância roubada. Em seqüência,

observa-se: 1) o demo fazendo o círculo do fogo, 2) Maria surpreendida por

38
Há um outro trecho que consta na versão exibida pela televisão e que foi retirada da versão
em DVD da microssérie. Ela ocorre no início do sétimo episódio e está representada no
diagrama IV pelo quadrado “S2”. Trata-se de uma seqüência com, aproximadamente, 33
segundos. Nela, vê-se um trecho do fim do episódio anterior, no qual Maria, desmaiada, é
carregada por Quirino e, em seguida, surge Amado preso em uma gaiola. No decorrer deste
trecho, ouve-se a voz do narrador dizendo: “E foi assim que os causos de Maria foram se
emendando. Um rosário de lágrimas. Corage. Mas também alguma alegria. Mas vigia que
hoje é momento perigoso. Principal: põe tento que hoje é que Maria faz e desfaz pra perder e
pra ganhar de vez lá no final. Mas vão escutando e vendo. Antonce”.
146

uma forte ventania, 3) o sangue escorrendo em suas pernas em alusão à

menarca, 4) o demo roubando a boneca da garota, 5) Maria adulta lavando-

se no riacho, 5) o rosto da protagonista refletido na superfície da água e 6) a

retomada da caminhada (fig.46).

Nesse curto trecho, o gancho entre os episódios monta-se pelo choque

entre os planos da audibilidade e da visualidade. De um lado, o texto narrado

antecipa o que está por vir, ao mencionar a vinda do amor, a tristeza que ele

trará e a interferência do demo, novamente, no caminho de Maria. Do outro

lado, no plano da visualidade, os signos remetem não ao futuro próximo,

mas ao percurso já percorrido pela protagonista, mediante o resgate de

algumas cenas já exibidas. Indicando direções opostas, os planos

tencionam-se e lugarizam o ponto nodal e estratégico da macroestrutura, no

qual há a virada na narrativa por causa da metamorfose da personagem e

Fig. 46- Cenas retomadas pelo


gancho entre episódios
147

em que a estrutura precisa conectar o elo rompido pelo processo de

fragmentação do meio.

Além do uso da voz do narrador, constrói-se, na tensão estabelecida

entre o ambiente dispersivo da televisão e as estratégias de relação entre

as partes, outro mecanismo de fronteira entre os episódios pela

representação do espaço da macroestrutura. Trata-se dos caminhos

traçados pela personagem, que tem sua casa como ponto de referência

principal.

O primeiro trajeto inicia-se no último bloco do episódio um, aos 46:25

(na versão em DVD), quando Maria foge de casa em busca das franjas do

mar. Representado, no diagrama V, pela flecha azul tracejada (T1), esse

percurso começa em “P1” e termina em “C1”, quando a protagonista retorna

Diagrama V - Tensão entre episódios


dispostos em semanas distintas
148

à casa, no quarto episódio (32:33). No decorrer da caminhada, ela sofre a

metamorfose, transformando-se de menina em adulta por causa do feitiço

do demo. Essa seqüência acontece no último episódio da primeira semana

(X1), aos 23:52, e ela é resgatada, em partes, pelo gancho construído entre

o quarto e o quinto episódios (S1), conforme já fora comentado.

O segundo trajeto (T2) começa no primeiro episódio da segunda

semana (21:34), novamente com a partida de Maria de sua casa (P2) e

finaliza com o seu retorno ao lar (30:50), no último episódio (C2). Tal como

ocorre com a primeira trajetória, a segunda também tem o momento de

metamorfose da protagonista, quando Maria volta a ser menina por causa

do feitiço desfeito pelo próprio demo. A transformação às avessas acontece

no final do sétimo episódio, aos 61:24, e está representada no diagrama V

pelo círculo “X2”.


Em cada ciclo, a metamorfose da personagem, que possibilita Maria

menina retornar como adulta, assim como Maria adulta voltar para casa como

menina, colabora para o desajuste na relação sucessiva do tempo. A única

maneira de “restaurar” a diacronia do tempo da cronologia etária da

personagem é traçando as diagonais entre o primeiro episódio e o último e

entre o quinto episódio (o primeiro que abre a segunda semana) e o quarto

episódio (o último da primeira semana).

Além disso, a trajetória desenhada em dois ciclos, que estão

distribuídos em semanas distintas, acaba revertendo o processo de

fragmentação da linguagem televisual a favor da construção da espacialidade

em montagem. Isso ocorre porque duas células se formam pelos caminhos

circulares e pela divisão semanal — articulada pelo esquema de exibição

da microssérie, o que torna possível perceber não a sucessão de um trajeto


149

a outro, mas, os confrontos entre eles pelos pontos convergentes e

divergentes.

Em ambos os percursos, o contar e o caminhar equivalem-se,

conforme já mencionado, uma vez que seguir adiante, retornar à casa, parar,

alterar o caminho e escolher entre duas direções opostas são ações que

influem no andamento e na articulação da história. Por exemplo, as várias

paradas ou desvios que ocorrem no decorrer da jornada, em que o

desenvolvimento do plot principal é interrompido para dar lugar a outros

conflitos que surgem pelo caminho, tais como: a venda da sombra de Zé

Cangaia ao demo, a perspectiva do casamento após o encontro com o

príncipe da gata borralheira ou, ainda, o desequilíbrio causado na relação

entre Maria e Amado com a interposição de Quirino.

O aparecimento de outros conflitos e a dominância deles ante ao


conflito inicial, em determinados momentos da história, possibilitam a

contaminação da microssérie com o modo de articulação do seriado. No

diálogo, a narrativa constantemente se quebra em várias historietas

independentes, que se esgotam na duração de alguns blocos ou se

concentram basicamente num episódio. Entre elas, mantém-se a chegada

da personagem em algum local ou sua parada em um determinado trecho

da travessia — o que desvirtua, momentaneamente, o percurso principal—,

e a retomada da jornada em busca das franjas do mar.

De certa maneira, Hoje é dia de Maria aproxima-se do seriado de

televisão O incrível Hulk, inspirado no herói de quadrinhos da Marvel Comics

e produzido pela Marvel Productions e pela Universal TV, entre os anos de

1978 a 1982. Nele, toda história começa com a chegada do Dr. David Bruce

Banner (Bill Bixby) em alguma localidade, onde algo acontece a fim de

disparar a intriga que é desenvolvida e resolvida no próprio episódio, e


150

termina com a sua solitária partida em busca de alguma solução para o mal

que o acomete: a eterna transformação no mostro Hulk, interpretado pelo

ator Lou Ferrigno.

Trafegando entre diferentes histórias, o caminhar da personagem

funciona como um recurso para elevar a quantidade de conflitos na jornada,

a cada vez que interrompe a trajetória ou desvia os caminhos e, também,

serve para conter e finalizar as inúmeras digressões, ao retomar o plot inicial

com a volta ao percurso em busca das franjas do mar.

No entanto, não se deve confundir a construtibilidade do caminhar

com a articulação da narratividade, tomando um pelo outro. Segundo Fiorin

(2005:27), a narratividade é caracterizada pela “transformação entre dois

estados sucessivos e diferentes”, ou seja, sua articulação faz-se,

fundamentalmente, pela representação do tempo, uma vez que se produz


pela dinâmica de sucessão entre as ações e entre os estados e pela

contigüidade entre as partes.

Tal como demonstrado no decorrer deste capítulo, a trajetória de Maria

se forma, principalmente, pela espacialidade em montagem dos percursos

em ciclos que se tencionam, das fronteiras construídas pelo diálogo

sincrônico entre linguagens, da articulação da memória no texto, da

contaminação entre o modo de ordenação da minissérie com a estrutura do

seriado e da analogia que se faz pela citação de imagens. É pela dinâmica

tensiva entre as células que o modo de contar se monta, as histórias se

confrontam e os caminhos são traçados.

A desconstrução do modelo de narratividade apoiada no tempo tem,

na televisão, uma das linguagens responsáveis para o seu desenvolvimento.

Isto acontece porque a narratividade estruturada por esse meio está sujeita

a todos os seus “percalços”, tais como: a dispersão, a reiteração, a


151

disposição de intercâmbio entre partes e, principalmente, as incessantes

rupturas. Apesar de a maior parte das narrativas televisuais começarem

por um desequilíbrio inicial e terminarem pelo restabelecimento do equilíbrio

no final, é importante ressaltar que o percurso que relaciona a irrupção do

conflito à sua resolução não necessariamente se organiza como um trajeto

em profecia, ou seja, como um movimento evolutivo feito em fases sucessivas

rumo ao objetivo final. Muito pelo contrário, dada a previsibilidade do

desfecho, configurado sempre como uma certeza e não como uma hipótese

ou uma probabilidade, as narrativas televisuais, principalmente as compostas

pela telenovela, cada vez mais se vêem desobrigadas de confeccionar tal

arranjo moldado pelo tempo. Liberadas desse modelo de narratividade,

elas encontram, na representação do espaço, o modo favorável de pensar e

de propor outras formas de ordenações das ações.


No que se refere à microssérie Hoje é dia de Maria, a narratividade

realiza-se pela representação do tempo espacializado mediante a figura

em espiral composta pelo recorte sincrônico entre os ciclos de ida e volta da

personagem. Nesse redemoinho, as marcas referenciais do tempo na

narrativa não se ordenam pela sucessão, mas pelo confronto. Noite e dia

não surgem um após o outro, as estações do ano não se sucedem e,

tampouco, a cronologia etária da personagem é respeitada. Tais índices,

que representam o tempo narrativo, são desarticulados na passagem da

relação de contigüidade para a continuidade, compondo o diálogo tensivo

entre as partes. Essa operação, conforme já mencionado, é marca de

representação do espaço e não do tempo, e o diálogo entre as partes só

pode ocorrer pela espacialidade semiótica.

A ida às franjas do mar, assim como ocorre em toda a jornada, também

não se esquiva das tensões e fronteiras construídas pela espacialidade em


152

montagem. Essa seqüência

surge no último episódio, aos

41:10, após a volta de Maria ao

lar e a destruição de Asmodeu.

O início da última caminhada

ocorre por meio de um plano


Fig. 47- Partida de Maria e Ciganinho geral de Maria e Ciganinho,

andando em direção ao fundo da cena,

onde se avista o trajeto aberto no

milharal pelo desenho em perspectiva

no painel pendurado na parede rotular

do domo (fig.47).
Em seguida, surge uma cena em

que a câmera acompanha o

deslocamento em diagonal das

personagens, que se embrenham no

bosque em direção ao mar (fig.48).

Nela, ouve-se a voz do narrador dizendo:

“Antonce. De maneiras que foi assim

que tudo assucedeu. Êta, que lá no

fundo, todo mundo sabe que não é a

espada, é a inocência que renova o

mundo”.

Indicada no diagrama IV pela

linha em X e pelo símbolo “N2”, a voz

over, que contém uma moral da história,


Fig. 48- Percurso em diagonal
da câmera e das personagens
153

na qual a mudança não

ocorre pela “espada”, mas

pela “inocência”, dá início à

alteração da trajetória em

ciclos para o trecho rumo às

franjas do mar. Dessa

maneira, apesar de não estar


Fig. 49- Chegada de Maria
às franjas do mar posicionada na abertura nem

no fechamento dos blocos, a voz do narrador ainda surge no lugar de fronteira,

não mais entre blocos, mas entre dois modos distintos de caminhar39.

No final da fala do narrador, há uma rápida fusão que sobrepõe a

cena das personagens caminhando no bosque à imagem, em plano geral,

do horizonte do mar. Com um breve movimento de câmera da esquerda


para direita, Maria, de costas para a câmera e de frente para o mar, adentra

o quadro e abre os braços, expressando, neste gesto, a nova perspectiva

que se abre em sua caminhada (fig.49). A microssérie finaliza-se com o

close de Maria de costas, seguido de um curto e lento movimento em

travelling horizontal, da esquerda para direita, que vai até o plano mais

fechado do mar (fig.50).

Nessa seqüência final, circunscrita entre a


39
Há um outro momento em que
partida de Maria e Ciganinho até a chegada às a voz do narrador não abre e nem
fecha os blocos. Indicada no
franjas do mar, o confronto faz-se entre visualidades, diagrama III pelo símbolo “N1”, a
voz interpretada por Laura
pois a seqüência começa com a cena gravada no Cardoso surge no segundo bloco
do primeiro episódio, aos (36:27).
interior do domo, onde é patente a artificialidade do Ao contrário de “N2”, a voz do
narrador não se encontra em
espaço referente, principalmente por causa da tela uma situação de fronteira. Sua
função é representar a passagem
pintada, e termina com as imagens geradas em do tempo após a morte de Maria.
Assim como ocorre no plano da
locação externa, cujo gesto de retirada da câmera visualidade através do único
plano longo construído em toda
microssérie.
154

do estúdio marca visualmente as saídas, tanto de

Maria quanto do espectador do universo

imaginário gerado pela microssérie. Pelas

diferenças qualitativas entre as imagens, monta-

se o diálogo entre diferentes campos oponíveis: o

mundo de Maria X o universo a ser descoberto, a

representação anti-naturalista X realista, a

trajetória em ciclos X a perspectiva rumo ao objeto

desejado, o espaço dominado pelo fabular X o

espaço dominante do narrar, todos aglutinados

pela tensão entre a percepção dentro da

arquitetura do panorama, que, segundo Benjamin

(2006:574) consiste em ver “a cidade dentro de


casa”, e a percepção panorâmica que se forma

fora dos limites do domo.

Nessa densa espacialidade em montagem,

a metáfora “o sertão vai virar mar e o mar virar

sertão”, profetizada pela canção cantada por

Sérgio Ricardo e composta por Glauber Rocha,


Fig. 50- Travelling
surge pela analogia entre as seqüências finais de acompanhando a linha
do horizonte do mar
Hoje é dia de Maria e Deus e o diabo na terra do

sol (1964).

No final do longa-metragem de Glauber, após a morte de Corisco

(Othon Bastos) e Dada (Sônia dos Humildes) por Antônio das Mortes

(Maurício do Valle), tem-se o encadeamento de três planos-seqüência, todos

feitos pelo movimento de câmera em travelling horizontal da esquerda para

a direita. No primeiro, Manuel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães)


155

fogem desesperadamente da zona de combate e, após a queda de Rosa,

nos outros dois outros planos seguintes, a câmera focaliza apenas a corrida

desenfreada de Manuel (fig.51). Segundo Xavier:

(...) Essa corrida do casal de camponeses é o primeiro


vetor em linha reta dentro de uma trajetória de curvas e
hesitações, sempre marcada por mais um volteio do olhar,
do corpo ou do pensamento. Ela define e reforça a projeção
para o futuro, a certeza da transformação radical assumida
pelo refrão cantado em coro: “o sertão vai virá mar, o mar
virá sertão”. Retoma-se o discurso projetivo, a frase síntese
dos sonhos de Sebastião e Corisco. (XAVIER, 2007:89).

Porém, conforme alerta Xavier, o caminho de Manuel

(...) apesar de projetivo, é uma instância de plena


disponibilidade. Ele não tem um caminho unívoco e distinto
a seguir, nada confere direção à sua trajetória. Na
aparência imediata, ela é um vôo cego pela caatinga,
perdida na extensão uniforme, sem orientação definida. No
entanto, Manuel ainda corre em linha reta. E projeta sua
corrida para um futuro que permanece opaco e fora do
seu alcance (XAVIER, 2007:90).

Mesmo a personagem não chegando ao mar, os planos da

visualidade e da audibilidade encarregam-se de concretizar “a metáfora da

transformação” (XAVIER, 2007:90), ao

substituir a canção em estilo cordel

pela música coral de Villa-Lobos e,

mediante o corte seco, alterar a

imagem da fuga de Manuel pelo

plano-seqüência do mar, feito,

também, pelo movimento de câmera Fig. 51- Fuga de Manuel em


Deus e o diabo na terra do sol
156

em travelling horizontal, da esquerda

para a direita (fig.52).

Nesse último plano-seqüência,

a horizontalidade do movimento de

câmera tenta, a princípio, acompanhar

a tênue linha formada pelas bordas do

mar, porém, com a mudança de Fig. 52- Cena final de


Deus e o diabo na terra do sol
angulação do enquadramento, a

margem acaba por cortar diagonalmente o quadro e, com isso, “nos mostra

um mar visto de cima, de modo a evitar que se desenhe uma superfície lisa,

delimitada pela linha estável do horizonte” (XAVIER, 2007:90).

Manuel não chega a destino algum, mas o mar surge pela montagem.

No choque entre a trajetória reta da personagem e a diagonal formada pelas


“franjas” do mar, no confronto entre o caminho projetivo de Manuel carregado

“de plena disponibilidade” e a atualização do télos pela consolidação da

profecia, surge a “fórmula da esperança” (XAVIER, 2007:91), ou, como diria

Santo Agostinho, a construção do presente do futuro, a expectação. Manuel

não chega, mas o mar insiste em aparecer. No confronto e no hiato entre o

“sertão como dado” e “o mar como aspiração” (XAVIER, 2007:114), a

montagem efetua a projeção de um tempo sem tempo.

Em Hoje é dia de Maria, a protagonista, ao contrário de Manuel,

alcança as franjas do mar. O objetivo maior pretendido pela personagem se

cumpre e, com isso, desconstrói qualquer possibilidade de projeção. Talvez,

o gesto dos braços abertos de Maria, tendo o horizonte do mar a sua frente,

possa sugerir um além-mar, mas a voz do narrador insiste no ponto final,

pelo menos dessa jornada: “Maria virou, mexeu, lutou e mereceu. E até hoje

vive feliz com o seu amado”. Como se jogasse a última pá de cal sobre o
157

assunto, o narrador continua: “tenho muitas histórias na algibeira. Encontro

com ocês numa festa lá na beira, nas franjas do mar”. Em suas últimas

palavras, ele decreta o fim da jornada. O que vem após a caminhada de

Maria já é outra história.

Surgindo de repente na narrativa, a chegada em si cumpre a sua

função: restabelece o equilíbrio perdido e encerra a jornada com um final

feliz. A sua importância narrativa vem descarregada de qualquer outra

intenção, porque chegar às franjas do mar nunca foi “a bola da vez”. Tanto

que, no decorrer de toda a trajetória da personagem, o chegar não é o verbo

mais pronunciado, ao contrário do caminhar. Basta lembrar da frase já citada

do mascate a qual frisa que o importante não é chegar, mas caminhar. Se

há alguma “mola propulsora” na microssérie, o como caminhar, que se

estende também ao como chegar, é o seu combustível.


Na seqüência final de Hoje é dia de Maria, a montagem, tal como

ocorre no final do longa-metragem de Glauber, também tenciona a linha reta

com a diagonal traçada no outro plano. Entre o filme e a microssérie, há

apenas uma pequena variação nesse confronto, pois, em Deus e o diabo

na terra do sol, a trajetória vetorizada horizontalmente surge antes do recorte

em diagonal e, na microssérie, as coordenadas invertem de posição. No

entanto, em ambos os textos, o embate entre a linha e a diagonal se constrói.

Conforme mencionado, no filme de Glauber, o confronto gráfico, aliado

ao embate entre sertão e mar e, também, ao hiato formado pela presença

de Manuel e sua ausência na cena seguinte, produz, pela montagem, tanto a

atualização da alegoria “o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão”, quanto

a sua projeção como uma utopia ainda possível de se realizar.

No caso de Hoje é dia de Maria, a tensão entre coordenadas não é a

base de sustentação da projeção do tempo. Nela se monta uma alegoria de


158

outra ordem, ao produzir, na macroestrutura, a zona de combate entre a

trajetória em ciclos que, como toda espiral, não tem fim e tampouco começo,

e o ponto final da narrativa que, como uma prótese, adere a um modo de

organização em que, para a interrupção, não há lugar.

Ao levar em consideração que, na segunda jornada de Hoje é dia de

Maria, exibida pela Rede Globo em 2006, a garota traça seu percurso na

cidade cosmopolita, símbolo maior da Era moderna. O gesto abrupto na

trajetória em espiral não parece ser aleatório. Seu movimento aproxima-se

do desejo de controlar o incontrolável pelo pensamento moderno,

particularmente no que se refere à desvinculação com a perspectiva histórica,

com a intenção de produzir e inaugurar uma nova era, calcada na razão e no

progresso. Na última encruzilhada da travessia da primeira jornada de Maria,

esse outro tempo não se desenvolve, mas enuncia-se. Na trincheira, encena-


se a luta entre o tempo espacializado da memória, que se constrói pelo

modo de ordenação da primeira jornada, e o tempo moderno que se enuncia

na jornada seguinte. Mas, parafraseando o narrador, esse outro modo de

ordenação já é outra história.


159

3.
Desenhos do espaço. Montagem. Modernidade

Interessado não no estudo das particularidades da linguagem

cinematográfica, mas em compreender a construção dos sentidos pelas

interfaces entre as linguagens, mediante as diferentes formas de inscrição


da imagem audiovisual, o crítico e estudioso de cinema Gene Youngblood

propôs, em 1970, o conceito expanded cinema (YOUNGBLOOD, 1970).

Nele, o autor faz outra abordagem do cinema, na qual este é entendido

“a partir da etimologia da palavra, ou seja, como escrita da arte em

movimento” (MACHADO, 2006)40. Assim, para ele, “todas as artes que tratam

da imagem em movimento são artes cinematográficas” (MACHADO,

2006)41, e cinema expandido não é senão outro nome para a esfera do

audiovisual.

Trata-se de uma esfera que se constitui com base nesse

elemento aglutinador: a representação da imagem audiovisual. 40


Notas de aula
obtidas no curso “O
O que não implica dizer que todos os sistemas imersos nesse audiovisual do cinema
aos meios digitais”,
conjunto codifiquem as imagens e as ordenem de maneira realizado no segundo
semestre de 2006,
semelhante. Pelo contrário, as diferenças entre sistemas pelo Prof. Dr.Arlindo
Machado, no programa
existem, porém, elas são investigadas, por Youngblood, de pós-graduação em
Comunicação e
mediante as imagens construídas pelas suas tensões. De Semiótica da PUC/SP.

41
Idem nota 40.
160

forma parecida, esta pesquisa entende a esfera do audiovisual com um

conjunto formado de linguagens distintas e em contínuo diálogo e, ao observar

os atritos que surgem dela, propõe que sejam lidos nas espacialidades em

montagem.

O estudo de Youngblood sobre as contaminações entre as linguagens

do audiovisual decorre do diálogo com as idéias defendidas por Marshall

McLuhan. Em especial, a compreensão dos meios pelo processo de

hibridização, tendo em vista que o híbrido não implica na mistura entre

sistemas, mas a “interpenetração de um e outro meio” (McLUHAN, 1995:70),

no “encontro de dois meios” (McLUHAN, 1995:75). Na montagem entre

sistemas, nascem formas novas, nas quais o novo diz mais sobre o recorte

sincrônico entre as partes que a articulação, à parte, de cada sistema

envolvido.
A tessitura híbrida, pesquisada pelo teórico canadense, ou em

montagem, no entender de Eisenstein, é, também, o objeto de estudo de

Youngblood. Observando textos construídos nas fronteiras entre, por exemplo,

cinema, televisão e mídias digitais, ele entende a expansão da esfera

audiovisual como ampliação da consciência para fora de nossas mentes,

diante dos nossos olhos:

When we say expanded cinema we actually mean


expanded consciousness. Expanded cinema does not
mean computer films, video phosphors, atomic light, or
spherical projections. Expanded cinema isn’t movie at all:
like life it’s a process of becoming, man’s ongoing historical
drive to manifest his conciousness outside of his mind, in
front of his eyes (YOUNGBLOOD, 1970:41).

Como consciência expandida pela esfera do audiovisual, o expanded

cinema aproxima-se, novamente, do pensamento mcluhaniano pela noção


161

dos meios como extensões do homem, que estimulam a geração de sistemas

sígnicos, ao dispor novas formas de codificação através das interfaces entre

meios, tornando, com isso, a cultura um complexo ambiente de mediações.

Segundo o teórico canadense (McLUHAN, 1995), um meio surge,

primeiramente, como prolongamento e especialização de uma ou mais

funções desempenhadas por nossos órgãos, por meio da construção de um

dispositivo tecnológico. É o que ocorre, por exemplo, com a roda, que

prolonga a tatilidade e a motricidade das pernas; com o rádio, que se

configura como prolongamento da audição, cuja função é desenvolvida pelos

ouvidos; e com o computador, que projeta para fora do cérebro a lógica de

processamento das informações, desempenhada pelo sistema nervoso.

No entanto, de acordo com Santaella (1996), não é o que se prolonga

que diferencia as extensões, mas é o grau de independência em relação ao


homem, delegado a elas, pelos conhecimentos científicos empregados para

a construção dos dispositivos. Tendo como principal traço distinto a

“transferência” da capacidade cognitiva e perceptiva do homem para as

máquinas, Santaella classifica, em ordem evolutiva, as extensões em três

modalidades: as máquinas musculares, sensórias e cerebrais.

Estendendo a força motriz humana, papel exercido também por

artefatos como a roda e a catapulta, as máquinas musculares foram

impulsionadas pelo acréscimo do motor em suas estruturas, o qual

possibilitou transformar diferentes tipos de energia em energia cinética. De

acordo com a autora (SANTAELLA, 1996:197), “trata-se de máquinas servis,

tarefeiras, que trabalham para o homem, ou melhor, substituem o trabalho

humano naquilo que este tem de puramente físico e mecânico”. Elas

mimetizam a capacidade motora do homem, podendo até amplificá-la, no

entanto, basicamente, atêm-se às funções físico-musculares.


162

Com o progresso da ciência, principalmente, com o desenvolvimento

da informática, as capacidades das máquinas musculares foram expandidas

para além das atividades mecânicas, a partir do momento em que elas,

também, são habilitadas com funções cognitivas, em razão da necessidade

de maior controle e precisão dos dispositivos tecnológicos sobre os seus

próprios desempenhos.

O segundo grupo, denominado de máquinas sensórias, engloba os

dispositivos que amplificaram as capacidades do ver e do ouvir. Como são

máquinas que simulam não a motricidade do corpo humano, mas a faculdade

dos órgãos sensoriais de perceber os dados externos para traduzi-los em

informações a serem trabalhadas internamente, elas, também, são providas

da capacidade de leitura do mundo para poder codificá-lo em signos. Por

causa disso, elas são

(...) máquinas dotadas de uma inteligência sensível, na


medida em que corporificam um certo nível de
conhecimento teórico sobre o funcionamento do órgão que
elas prolongam. São também máquinas cognitivas tanto
quanto são cognitivos os órgãos sensórios. Se os sentidos
humanos funcionam como janelas para o mundo, canais
de passagem, meios de conexão entre o exterior e o interior,
se algumas funções cerebrais já começam a ser
executadas nos níveis do olho e do ouvido, todos esses
papéis se incorporam aos aparelhos (SANTAELLA,
1996:199).

Arlindo Machado, em seu livro O quarto iconoclasmo (2001), analisa

o processo de codificação das imagens, decorrente da faculdade de leitura

da câmera fotográfica, com base nas relações que o autor estabelece com

a noção de imagem técnica de Flusser e com a noção de signo simbólico

de Peirce.
163

Segundo Machado, as capacidades de leitura e de representação

das máquinas sensórias, denominadas por ele como máquinas semióticas,

devem-se à

(...) propriedade básica de estarem programadas para


produzir determinadas imagens de determinada maneira,
a partir de determinados princípios científicos definidos a
priori. As formas simbólicas (imagens) que essas
máquinas constroem já estão, de algum modo, previamente
inscritas (pré-escritas, programadas) na sua própria
concepção e na concepção de seu(s) programa(s) de
funcionamento. Isso quer dizer que uma máquina semiótica
condensa em suas formas materiais e imateriais um certo
número de possibilidades, e que cada imagem técnica
produzida através dela representa a realização de algumas
dessas possibilidades (MACHADO, 2001:39).

No caso da fotografia, ele ressalta a mediação produzida pela

máquina, ao codificar um dado sinal, por exemplo, a cor verde. Esse passa

por um processo de tradução do mecanismo, que, após percebê-lo, converte-

o em signo com característica dominante de legi-signo, por causa do sistema

de notação regular e padronizado do dispositivo técnico. Disso resulta não

uma imagem de algo, mas a imagem de um conceito de alguma coisa, pois,

conforme afirma Flusser, “as imagens técnicas, longe de serem janelas, são

imagens, superfícies que transcodificam processos em cena”, uma vez que

se constituem como “símbolos extremamente abstratos: codificam textos

[científicos] em imagens, são metacódigos de textos” (FLUSSER, 2002:14).

Dessa maneira, a imagem técnica é, sobretudo, uma representação simbólica

dos sinais externos. Ela resulta de um processo de leitura da máquina

sensória que produz uma síntese, uma generalidade, por meio do seu sistema

de codificação.
164

A capacidade de ler e de processar informações não se atém somente

às máquinas sensórias, mas é, também, uma propriedade do terceiro grupo,

denominado, por Santaella (1996), como máquinas cerebrais. São extensões

advindas da tecnologia digital e que tem, no computador, o seu maior

representante. Porém, ao contrário das máquinas sensórias, as cerebrais

surgem, eminentemente, como ampliações das habilidades mentais.

Armazenar dados, listar e cruzar informações, produzir sínteses,

desenvolver e solucionar complexos cálculos aritméticos, agenciar diversas

plataformas de programas e construir textos com base em signos produzidos

por diferentes extensões são algumas das atividades intelectuais

desenvolvidas por esse “cérebro” projetado para fora do cérebro humano.

Contudo, os dispositivos técnicos, que prolongaram a capacidade

do homem, não devem ser vistos como meios. Em seu texto intitulado
Mediações segundo McLuhan, Irene Machado afirma que uma extensão

em um meio não pode ser entendida nunca “como uma mera transposição

da matriz corpórea ou sensitiva” (MACHADO, 2005:154). Ela vai além dos

suportes, uma vez que deriva da conexão de uma diversidade de elementos

que engloba desde o emprego dos conhecimentos científicos para a

construção dos dispositivos tecnológicos, passando pela disposição de tais

mecanismos em gerar, centralizar e compartilhar informações, até a sua

expansão em linguagem (ns), pelos processos de codificação, organização

e circulação dos signos em textos culturais. O que implica em dizer que um

meio envolve tanto o caráter semiótico da própria máquina, quanto sua

extensão para o espaço da cultura.

Da mesma forma, a imagem técnica não deve ser entendida como

etapa final da construção das imagens. Conforme foi ressaltado, a análise

de Machado, em seu livro O quarto iconoclasmo (2001), atém-se ao processo


165

de tradução do sinal em legi-signo pela máquina semiótica. Como tal, essa

mediação, investigada pelo autor, está circunscrita à tensão produzida entre

a realidade e a realidade de linguagem.

Ao funcionar como célula de montagem e no momento em que a

imagem técnica é traduzida em outro signo, outra mediação se interpõe, ou

seja, introduz-se a visualidade, na qual, conforme foi mencionado no primeiro

capítulo, imperam as qualidades icônicas. No confronto entre células para

a construção das espacialidades, tais qualidades expandem-se em ícones

de relações tensivas para compor as analogias entre formas, ou, ainda, para

tecer textos entre sistemas sígnicos. Esse processo não se encerra aqui,

mas, continuamente, se expande por meio de outras semioses.

Segundo Irene Machado (2005), tais expansões ocorrem na mente

da cultura, produzida pela e na semiosfera: o “espaço de produção da


semiose na cultura, portanto, de coexistência e coevolução dos sistemas de

signos” (MACHADO, 2003:163). Ou seja, elas processam-se, conforme

mencionado nos capítulos anteriores, por meio do mecanismo inteligente e

do funcionamento da memória da cultura, uma vez que se articulam pelo

paradoxo estrutural entre textos, códigos e linguagens — no qual, surgem

processos de tradução e de intradutibilidade entre as partes —, assim como

se constroem pelo recorte sincrônico e diacrônico entre sistemas com

historicidades e formações distintas.

A mente da cultura, na qual ocorrem as expansões sígnicas, parece

ser a consciência, tal como aponta Youngblood, que cresce fora da mente,

diante dos olhos. Porém, no caso de expanded cinema, trata-se de uma

das faces dessa mente, justamente, aquela focada na área de propagação

das semioses construídas pela esfera do audiovisual e na sua relação com

outras esferas culturais.


166

Compartilhando a idéia de cinema expandido, em que o cinema não

é uma linguagem à parte ou uma espécie de “linguagem-mãe” em relação

às outras linguagens, mas é parte integrante da esfera cultural do audiovisual

e, dessa maneira, interfere e sofre contínuas interferências dos demais

sistemas imersos nessa esfera; e analisando textos produzidos nas fronteiras

entre sistemas, esta pesquisa sustenta a hipótese de que um dos principais

“tentáculos” das expansões sígnicas de tal esfera decorre das maneiras pelas

quais é representado e construído o espaço, transformando-o em

espacialidades.

Diferente da construção da temporalidade, fincada na ordem como

sucessão e causalidade, a espacialidade, ao contrário, não se forma por

um modo de construção à priori, mas surge em decorrência das informações

disponíveis na cultura, traduzidas em signos do espaço pelas montagens


entre sistemas, entre a representação do espaço e as percepções que

suscitam e, também, entre os modos como tais espacialidades se inserem

nas escrituras culturais. Sua natureza é sistêmica/ projetual e não unilateral/

programática. Disso resultam desenhos, vários, do espaço.

3.1. Os desenhos da espacialidade em montagem

Nos textos intitulados A quarta dimensão do cinema e Métodos de

montagem (EISENSTEIN, 1990a), escritos, respectivamente, em julho e entre

setembro e dezembro de 1929, Eisenstein define cinco modos de ordenação

de montagem: métrica, rítmica, tonal, atonal e intelectual. Descrevendo-as,

a princípio, por intermédio de uma espécie de “linha evolutiva”, ao começar

pela mais “ordinária” até chegar à mais complexa, ele busca demonstrar, na

passagem de uma para outra, por meio da comparação e do cruzamento


167

entre suas especificidades, como o signo “montagem” se articula

sistemicamente pelo confronto e pela contaminação entre diferentes formas

de espacialidades em montagem.

A montagem métrica tem como referência a mensuração dos

“comprimentos absolutos dos fragmentos” (EISENSTEIN,1990a:77). Apesar

de não mencionar o espaço, ao discriminar as ordens em montagem,

Eisenstein recorre sempre às qualidades próprias da espacialidade, como

o comprimento dos planos, a estrutura da seqüência, o entrecruzamento entre

as partes e as dominantes formadas pelas qualidades compositivas da

visualidade e da audibilidade.

No caso da montagem métrica, “os fragmentos são unidos de acordo

com os seus comprimentos, numa fórmula esquemática correspondente à

do compasso musical” (EISENSTEIN,1990a:77), ou seja, como se fosse


baseada em uma régua, ela tem, nas diferentes durações dos planos, um

parâmetro de agenciamento entre as partes. Dessa forma, os embates e o

andamento do todo decorrem da montagem entre as diferentes “metragens”.

Longe de funcionar como um molde de fácil aplicação e reprodução,

a montagem métrica expande-se em vários desenhos do espaço, conforme

a seleção e o uso de um tipo de escala, dentre as escalas possíveis com

diferentes proporções de duração entre células. Por exemplo, a montagem

entre planos, os quais variam de duração em uma escala em milésimo de

segundos, produz o efeito metralhadora, muito utilizado por Fernando

Meirelles, em seu longa-metragem Cidade de Deus (2002), para construir

as sensações de aceleração e de vibração. Diametralmente oposta, a

montagem entre células, com diferentes variações numa escala de durações

longas, construída nos filmes de Ozu, gera as sensações de lentidão e do

vaguear da percepção pelas imagens. Ou ainda, a montagem composta


168

pela alteração entre trechos curtos e longos, com durações variando de “8 a

80”, como acontece no segmento “A” do longa-metragem A ostra e o vento,

produz o efeito em ziguezague, que revela e acentua, em contraste, as suas

diferenças.

No segundo modo de articulação em montagem, denominado

montagem rítmica, os movimentos dentro dos planos são levados em

consideração para a construção das relações tensivas entre eles. Segundo

Eisenstein,

Na montagem rítmica é o movimento dentro do quadro que


impulsiona o movimento da montagem de um quadro ao
outro. Tais movimentos dentro do quadro podem ser
objetos em movimento, ou do olho do espectador
percorrendo as linhas de algum objeto móvel
(EISENSTEIN,1990a:79).

Denominada também como montagem emotivo-primitiva, a

montagem rítmica constrói-se pelas “mobilidades internas” nos planos que,

ao se confrontarem, definem o ritmo da montagem. Ao contrário da anterior,

essa forma de montar leva em conta o “conteúdo” do quadro e, com isso, há

a ampliação da noção de plano entendida pelo cineasta russo. Conforme

foi mencionado no capítulo 1, o plano como célula não é sinônimo de

enquadramento e, tampouco, refere-se a um segmento contínuo da película,

mas ele se constrói com base em qualquer qualidade da imagem em conflito

com outra.

Contudo, mais que entender as especificidades de cada ordem em

montagem, o fator preponderante nas discriminações é o entrelaçamento

que Eisenstein estabelece entre elas. Isso ocorre porque o principal traço

da montagem é o conflito entre células através da representação do espaço

em fronteiras. É por isso que, ao discriminar a forma de articulação da


169

montagem rítmica, Eisenstein afirma que, caso haja uma intensa mobilidade

dos objetos representados, “a violação mais efetiva é conseguida com a

introdução de material mais intenso [movimentos acelerados dentro do

quadro] num tempo facilmente distinguível [planos longos] (EISENSTEIN,

1990a:79), havendo, portanto, a tensão entre a “medida rítmica” e a “medida

métrica”, ou seja, entre o segundo e o primeiro modos de organização do

espaço.

Tal como a montagem rítmica, a tonal, o terceiro modo de ordenação

em montagem, deriva também dos conflitos entre as características

existentes “dentro do quadro”. Porém, ela vai além das relações de contrastes

entre os movimentos dos objetos representados, ao pôr em choque outros

elementos compositivos das imagens ótico-visuais, a partir, por exemplo,

dos embates entre variantes da iluminação, foco, som, grafismo e cor.


Apesar de já indiciar a existência da dominante nos casos anteriores

de montagem, o cineasta russo deixa claro, a partir da montagem tonal em

diante, a importância da sua função nas interfaces entre as células. Nomeada,

também, como o “tom geral do fragmento” (EISENSTEIN, 1990a:79), a

dominante constitui-se como uma qualidade em comum entre as células,

que se manifesta por meio, por exemplo, do grafismo ou da cor, na qual se

estabelecem os atritos entre suas variantes, ou seja, a linha em contraste

com o círculo e em confronto com o quadrado ou a cor vermelha em relação

tensiva com a verde e ambas com o amarelo.

Dessa forma, cada qualidade da imagem se constitui como uma

possibilidade de construção da dominante, baseada na sua subdivisão

interna em escala de tons, na qual se estabelecem confrontos entre variados

graus, ou subtons, que vibram distintamente. Ao considerar o comprimento

dos planos (a montagem métrica) e o movimento dentro dos quadros (a


170

montagem rítmica), também, como opções de escalas tonais, dentre as outras

possíveis, como o grafismo e a cor, o cineasta russo deixa patente a sua

intenção de não querer classificar a montagem em tipos específicos e

estanques. Sua linha de raciocínio procura sempre ressaltar o embate e a

contaminação entre as ordens, pois são esses procedimentos que

representam as principais qualidades da montagem.

Discriminando uma a uma e relacionando os modos de ordenação,

ele traça pedagogicamente a expansão semiótica do signo “montagem”, ou

seja, sua semiose. Nela, parafraseando McLuhan (1995:22), o conteúdo de

uma montagem é outra montagem, traduzida como informação. Nas

interfaces entre ordens, Eisenstein demonstra a complexidade da montagem

como memória de tensões, que se avoluma, na medida em que se organizam

novos desenhos da espacialidade em montagem.


As novas formas diversificam o leque de opções da representação

do espaço, na qual as qualidades estruturais e não adjetivas dos modos de

ordenação das espacialidades são traduzidas em quantidade informacional

e, com isso, conforme defende a teoria da informação, as probabilidades

combinatórias multiplicam-se em razão do aumento do quanto de informação.

Interessado na articulação da semiose do signo “montagem”,

Eisenstein inicia a discriminação do quarto modo de ordenação entre células,

a montagem atonal, relacionando-a com o desenho anterior. De acordo com

o autor (EISENSTEIN, 1990a:81), “a montagem atonal é organicamente o

desenvolvimento mais avançado ao longo da linha da montagem tonal”. O

uso do termo “orgânico” deve-se ao fato de essa outra ordem do espaço

incorporar os “conteúdos” anteriores e, também, construir-se diagonalmente

pelo embate entre o percurso horizontal, traçado entre as dominantes, e o


171

percurso vertical das células, produzido pelas tensões entre as tonalidades

dominantes e as vibrações secundárias.

Trata-se de dois percursos que dependem do choque entre eles para

que, ambos, possam se construir. Tal procedimento surge da composição

da montagem tonal, que elege um elemento dominante para produzir a tensão

entre as células. No entanto, a escolha e a ordenação do tom dominante

não apagam as outras qualidades da imagem. Estas continuam a agir como

elementos secundários, confrontando a posição privilegiada da dominante

na relação hierárquica estabelecida entre ela e as subalternas. Ao desbancá-

la, uma das qualidades dissonantes da imagem ascende ao posto mais

“elevado” da hierarquia, estabelecendo, com isso, outra relação de

dominância entre as partes e, ao mesmo tempo em que se configura como

“alvo” a ser confrontado pelas vibrações colaterais. Dessa forma, na


montagem atonal, há uma espécie de “dança das cadeiras”, que impulsiona

o seu andamento pelo confronto entre a tonalidade dominante e as atonais,

a partir do momento em que as secundárias funcionam como elementos de

ruído na construção da dominante e, também, como possíveis candidatas

para ocupar o seu lugar.

Da mesma forma como as interfaces entre as dominantes se

constroem sob o fundo do movimento dos elementos dissonantes, um modo

de ordenação em montagem expande-se sob o fundo de outra ordem:

Estas quatro categorias são métodos de montagem. Elas


se tornam construções de montagem propriamente ditas
quando entram em relações de conflito umas com as
outras.
Dentro de um esquema de relações mútuas, ecoando e
conflitando umas com as outras, elas se movem em direção
a um tipo de montagem cada vez mais fortemente definido,
cada uma crescendo organicamente a partir da outra.
172

Assim, a transição da métrica para a rítmica ocorreu no


conflito entre o comprimento do plano e o movimento dentro
do plano.
A montagem tonal nasce do conflito entre os princípios
rítmicos e tonais do plano.
E finalmente – a montagem atonal, do conflito entre o tom
principal do fragmento (sua dominante) e uma atonalidade.
(EISENSTEIN,1990a :81-82).

A montagem intelectual, o quinto modo de ordenação em montagem,

assim como ocorre na relação de uma ordem com outra, alarga, também,

as fronteiras da construtibilidade em conflito. Caracterizada como um modo

de organização de “apelo intelectual” (EISENSTEIN, 1990a:84), ela é um

processo de representação predominantemente visual de conceitos abstratos.

Sua fonte de inspiração surgiu da lógica de formação do ideograma

oriental que combina, por exemplo, duas visualidades, advindas de dois

hieróglifos com significados distintos, para formar um terceiro elemento visual

que, no caso, refere-se a uma idéia abstrata. Segundo Eisenstein, esse

seria “o ponto de partida do cinema intelectual”, pois “é exatamente o que

fazemos no cinema, combinando planos que são descritivos, isolados em

significado, neutros em conteúdo — em contextos e séries intelectuais”

(EISENSTEIN,1990a:36).

Nas tensões entre imagens, os elementos derivados surgem na forma

de metáforas, que, segundo Peirce (1990:64) “representam o caráter

representativo de um representâmen [signo] através da representação de

um paralelismo com alguma outra coisa [objeto real ou outro signo]”. Como

um terceiro que se forma pelas analogias tensivas entre imagens: as

representações em metáforas — denominadas, por Eisenstein (1990a:83),

como “sensações intelectuais associativas” —, não surgem pela convenção

simbólica, pois, nesse caso, não se produz um novo conceito, mas edificam-

se apenas pré-conceitos ou idéias pré-concebidas.


173

Ao contrário do funcionamento do signo pela convencionalidade, as

metáforas são “idéia(s) significada(s)” (PEIRCE, 1990:64), construídas pelo

embate entre as qualidades icônicas, para, com isso, compor sentidos em

cifras.

Assim, os percursos das séries intelectuais não se encerram na

construtibilidade do pensamento em imagens, mas seguem no confronto

entre as metáforas e as tentativas de decifrá-las. É por isso que Eisenstein

(1990a:84) afirma que a montagem intelectual se expande, também, pelos

“tecidos dos sistemas nervosos superiores do pensamento”. Pela leitura,

as metáforas prolongam-se para além do texto, ou melhor, entre textos, uma

vez que o espectador é parte integrante desse processo, ao funcionar não

como um receptáculo de dados, mas como um ativador dessa semiose,

exercendo o papel de tradutor das metáforas em outros signos.


Anos mais tarde, em 1940, no texto intitulado Sincronização dos

sentidos, Eisenstein sintetiza todos os modos de ordenação por meio da

montagem polifônica. Conforme foi mencionado no primeiro capítulo, a

montagem polifônica ou vertical tem na sincronicidade entre as partes, o

principal mecanismo de construção dos conflitos entre células. Nela, agem,

em simultaneidade, várias células, que tanto traçam percursos isoladamente,

quanto se confrontam em diferentes momentos da macroestrutura,

construindo, com isso, faixas horizontais entrecortadas pelo recorte

sincrônico.

Tal modo de ordenação do espaço pode, inclusive, ser verificado nos

desenhos esboçados por Eisenstein. Segundo Machado:

Quem se dispuser a remexer os papéis e notas de


filmagem de Eisenstein, conservados ainda hoje em
Moscou no seu apartamento- museu, vai descobrir as
imensas ‘partituras’ cinematográficas de Alexandre Nevski
174

e Ivan – o – terrível, onde está anotado, em linhas


horizontais, cada um dos elementos de que se compõe o
filme (composição plástica, sentido do movimento, jogo
cromático, música, etc.) com as respectivas
sincronizações e correspondências traçadas em linhas
verticais. Ele chamava a isso ‘sincronização de sentidos’,
e comparava o seu método de filmar a uma escritura
musical polifônica, onde diferentes linhas de
desenvolvimento ‘dialogassem’ entre si em complexos
contrapontos. A tela, para ele, era vertical, porque no interior
de cada quadro horizontal intervinha toda uma hierarquia
de ‘quadros’ constituintes, paralelos à superfície da tela
(MACHADO,1982:89).

Tendo como principais traços a sincronicidade e, em decorrência dela,

os conflitos entre as partes, a montagem nunca se apresenta como um

modelo. Como está sendo defendida ao longo desta pesquisa, ela é,

sobretudo, um modo de pensar e de construir espacialidades. Por meio de


sua articulação, surgem diferentes desenhos do espaço, conforme a natureza

das partes envolvidas e as formas de tensões produzidas entre as células.

Além disso, tal diversidade expande-se de acordo com as

características do meio em que se inscreve a mensagem, com as relações

de traduções entre o meio e outras linguagens e, também, em função das

possibilidades de diálogos entre o texto e o espectador, ao serem levadas

em consideração no momento da elaboração das mensagens.

Particularmente em relação a este estudo, que procura entender como

se constroem as espacialidades por meio da leitura, observa-se que em

três narrativas audiovisuais, surgem outras variantes, próprias do enredar,

tais como os temas das histórias, a quantidade e os motivos das intrigas e

as interfaces entre as esferas de ação que, como substratos, atuam com os

demais elementos compositivos e colaboram para a diversidade dos modos

de representação do espaço.
175

Em cada texto analisado, ordena-se uma dada espacialidade, que

diz respeito, somente, ao objeto pesquisado. Dela, não é possível retirar um

molde da representação do espaço para reproduzi-lo numa outra narrativa.

No entanto, em razão do alto grau de inventividade de seu desenho, o que

ocorre é que este pode funcionar como referência para a construção de

novas espacialidades. Caso isso aconteça, a “consciência” das linguagens

audiovisuais, pensada por Youngblood, segue através de outras

espacialidades que se alimentam daquelas já existentes, estabelecendo,

com isso, um processo ad infinitum.

Na perspectiva macro, os desenhos analisados podem ser descritos

da seguinte maneira: 1) Em A ostra e o vento, há duas células em confronto

contínuo, até desembocarem numa única trajetória. Além disso, as

semelhanças entre os vértices, entre as seqüências inicial e final do longa-


metragem, fecham a estrutura, tornando-a um espaço circular, análogo ao

do espaço do panóptico. 2) No filme Elefante, múltiplas faixas são

disparadas pelos diferentes pontos de vista das personagens e elas

interagem nos pontos nevrálgicos da estrutura. No final, todas convergem

na seqüência do crime. Pelas semelhanças que há entre os dois desenhos,

ambos poderiam ser considerados como equivalentes. No entanto, por causa

das diferenças no número de partes em confronto, no modo como elas se

conectam e no fechamento ou não da estrutura, no máximo, tais desenhos

são variantes de um mesmo modo de organização, denominado, nesta

pesquisa, como representação do espaço em labirinto. 3) Em Hoje é dia

de Maria, formam-se dois ciclos que, ao dialogarem, traçam, entre si, uma

trajetória em espiral, encerrada abruptamente pela intervenção do final feliz.

Nessa espacialidade, a linguagem multifacetada da televisão entra como


176

informação para a elaboração de uma macroestrutura repleta de sobressaltos

e de interfaces, na qual se obtém uma espécie de montagem de montagens.

Na perspectiva micro, as tessituras analisadas constroem-se pelas

diferentes tensões entre signos, entre linguagens, e entre diferentes modos

de ordenação do espaço. Neles, existem as, já mencionadas, “homologias

enquanto metáforas de estruturas” (CAMPOS,1994:79), produzidas não pela

lógica da identidade, mas, tal como no pensamento ideogramático, pela

dualidade correlativa, na qual, segundo Campos (1994:84), “os opostos

não são excluídos, mas integrados numa inter-relação dinâmica, mutuamente

complementar”.

Orientada pela “lógica da oposição” (CAMPOS,1994:85), a montagem

instaura a contradição entre células numa espacialidade analógica, da qual

resultam as construções das imagens em metáforas. Pelo princípio da


projeção do eixo metafórico sobre o metonímico, a contradição vai sendo

reiterada ao longo de cada desenho, transformando-o, com isso, numa ordem

repleta de relações conflituosas, ou seja, num espaço poético.

Aos três desenhos do espaço investigados neste estudo, que

dialogam com os modos de composição discriminados por Eisenstein,

somam-se aqueles produzidos pelos e nos textos audiovisuais, mencionados

na introdução, porém não analisados nesta pesquisa. Além disso, é possível

acrescentar, a esse universo de formas do espaço, os desenhos apontados

por Marie-Laure Ryan, em seu livro intitulado La narracción como realidad

virtual (2004).

Interessada em entender o modo de estruturar da narrativa com base

nos traços de interatividade e de imersão, produzidos pela relação entre a

mensagem e o leitor, Ryan (2004, 296-310) chega a nove desenhos da


177

representação do espaço, ao

observar textos compostos em

diferentes linguagens,

principalmente, na literatura e nos

meios digitais.

Só para efeito de ilustração,

vamos nos concentrar em três

desses desenhos, classificados Fig. 53- Diagrama “árvore”

como: 1) árvore, 2) labirinto e 3) rede dirigida. No primeiro, conforme o

diagrama esboçado pela autora (fig. 53), o percurso narrativo constrói-se

por diversas bifurcações, que surgem na montagem entre células42, geradas

entre o início da estrutura e os seus diferentes finais. Como ocorre em toda

bifurcação, a eleição de um percurso elimina o outro, ao mesmo tempo em


que as alternativas sinalizam a existência de diferentes possibilidades de

combinação entre as partes.

No segundo caso, denominado labirinto (fig. 54), o movimento do ir e

vir e do fluxo reversível entre as partes (representado, no diagrama, pelas

flechas de duas pontas), que possibilita revisitar células já freqüentadas,

constrói as sensações de déjà vu, do trafegar em círculos e do perder-se

para poder encontrar a saída. Assim, a estrutura labiríntica de Ryan constitui-

se como uma outra

variante do modo de

organização do

espaço analisado

42
No diagrama
esboçado por Ryan,
as células são
representadas pelas
Fig. 54- Diagrama “labirinto” bolas pretas.
178

Fig. 55- Diagrama “rede dirigida”

nesta pesquisa e ela se forma por uma malha de subtrajetos, a partir de

inúmeras ramificações, pontos de convergência e falsas saídas.

Por fim, no terceiro desenho, a rede dirigida (fig. 55), três faixas de

montagem avançam, simultaneamente, sem possibilidades de retorno. No

decorrer das trajetórias, estas se encontram em pontos nodais para, em


seguida, se separarem. Disso resultam pequenos circuitos, em que os nexos

servem como lugares de tensões e, também, funcionam como pontos de

início e fim das linhas.

Os desenhos, esboçados por Ryan, tecem diferenças entre si, de

acordo com, por exemplo, a possibilidade ou não de reversões das

trajetórias, com as decisões tomadas pelo leitor na sua relação com o modo

de organização do texto e, ainda, em função do número de ramificações,

nexos estruturais e faixas de montagem. Desse processo surgem desenhos

de montar e desmontar, que formam, por exemplo, o percurso de uma semi-

circunferência, seguido do trajeto linear; a trajetória de linhas bifurcadas,

que se tencionam em diferentes momentos; o caminho que interliga quatro

pontos eqüidistantes, formando, com isso, a figura de um quadrado; ou, ainda,

o percurso em espiral que, ao perfazer o movimento contrário, se reverte

numa outra forma do espaço, caso sejam eleitas outras opções.


179

Em todos os desenhos cunhados por Ryan e, também, nos analisados

neste trabalho, há, pelo menos, duas características que os aproximam. A

primeira diz respeito à dominância construtiva do espaço em suas formações.

Isso implica dizer que cada desenho traz uma informação sobre o mesmo

objeto, ou seja, o espaço, ao mesmo tempo em que tal diversidade de formas

demonstra a incapacidade de esgotá-lo numa única representação.

A segunda característica em comum, que decorre da primeira, refere-

se às insistentes rupturas no eixo diacrônico pela ordenação sincrônica,

expressas nos desenhos, principalmente, pelos nexos estruturais. No entanto,

conforme salienta Ferrara (2002), o desenho como informação não se reduz

à expressão do recorte sincrônico no texto, mas ele é, fundamentalmente, a

arte de pensar não verbalmente, mas “de modo cada vez mais simultâneo”

(FERRARA, 2002:53).
Nesse sentido, desenhar é o próprio pensamento em montagem, que

trabalha com as diversas possibilidades de representação do espaço, em

diálogo com as potencialidades dos meios e das esferas culturais,

confrontado-as, para, com isso, propor novas formas de ordenação do

material, que podem surgir daquelas já existentes.

Como se trata de um raciocínio sistêmico, o desenhar, segundo

Ferrara, ou o montar, de acordo com Eisenstein, sempre propõe

possibilidades ordenadas e nunca ordens previsíveis. Estas, sempre vicárias

e contingentes, são continuamente ressignificadas, conforme são traduzidas

em outras espacialidades e relativizadas pelas diferentes leituras, oriundas

da vinculação comunicativa tecida entre enunciados e leitores.


180

3.2. Modernidade X Moderno: as espacialidades derretendo a

programação do tempo

O pensamento simultâneo, sincrônico e tensivo, que constrói as

espacialidades em montagem, tem, na modernidade, o seu espírito gerador

e motivador. Segundo Bauman (1999; 2001), é difícil precisar o surgimento

da modernidade, porque ela não pode ser entendida como uma época, mas

o seu aparecimento decorre da compreensão de que há uma ordem da cultura

e que essa organização não é fruto de um processo natural e espontâneo,

mas algo produzido artificialmente pelas linguagens.

Considerada não como um período histórico, mas como um processo

contínuo de reflexão da mente da cultura sob a sua própria ordem, a

modernidade faz-se pela consciência crítica e, portanto, questionadora, dos


sistemas sígnicos sob os modos sedimentados de organização. Com isso,

criam-se condições de expansão, por meio de novas propostas

combinatórias.

Nesse sentido, modernidade é, sobretudo, a inteligência ciente da

durabilidade dos sistemas, e em alerta nessa durabilidade. Em

conseqüência, ela se articula, sempre, pelo confronto entre a percepção e

interpretação da ordem instaurada e o planejamento de ordens possíveis,

ou seja, pelo embate entre o existente e as intencionalidades do existir. Por

causa disso, ela não pode ser tomada como estratégia de ruptura com a

tradição a favor de um futuro idealizado ou como um empreendimento

fabricado, somente, pela relação entre a pretensão e o objetivo almejado,

como propunha o pensamento moderno, mesmo porque, segundo Argan,

(2004:52), “é de fato bastante improvável que o plano [projeto] feito hoje


181

sirva para o futuro, mas é certo que o plano feito para o futuro serve para

viver hoje”.

No entender de Argan, não se pode perder de vista esse procedimento

em montagem construído pelo ato de projetar, pois:

(...) Não se projeta nunca para, mas sempre contra alguém


ou alguma coisa: contra a especulação imobiliária e as leis
ou as autoridades que a protegem, contra a exploração do
homem pelo homem, contra a mecanização da existência,
contra a inércia do hábito e do costume, contra os tabus e
a superstição, contra a agressão dos violentos, contra a
adversidade das forças naturais; sobretudo, projeta-se
contra a resignação ao imprevisível, ao acaso, à desordem,
aos golpes cegos dos acontecimentos, ao destino. Projeta-
se contra a pressão de um passado imodificável, para que
sua força seja impulso e não peso, senso de
responsabilidade e não complexo de culpa. Projeta-se
contra algo, para que mude; não se pode projetar algo que
não é; não se projeta para aquilo que será depois da
revolução, mas para a revolução, portanto contra todo tipo
e modo de conservadorismo (ARGAN, 2004:53).

A projeção pelo confronto, no entender de Argan e segundo Bauman,

marca a modernidade, uma vez que ela funciona como estado crítico e

movente da cultura contra as formas culturais solidificadas e, principalmente,

aquelas codificadas pelo moderno. Trata-se de uma inteligência, que tem

como objeto de conhecimento o modo de organização cultural, colada à

própria dinamicidade da cultura, pois ela não caminha a passos largos da

geração dos textos culturais, mas interfere e sofre intervenção deles.

Refletindo obstinadamente sobre a ordem, a modernidade funciona

como consciência comparativa e conflituosa entre o que há de invariável

nas formas de ordenações estabelecidas em relação às novas possibilidades

de articulação dos textos.


182

É por isso que, para Bauman (1999; 2001), modernidade e moderno

não são sinônimos. A primeira diz respeito ao espírito crítico da cultura sobre

seu próprio caminhar e, o segundo, refere-se a um modo de pensar a ordem

como uma crença, focado na certeza do progresso irreversível da civilização

rumo a um mundo ideal, que, apesar de surgir pelo espírito da modernidade,

ao ser absorvido e aceito no interior da cultura, deixa de funcionar como

uma possibilidade de pensar e entender a ordem para tornar-se uma certeza.

Conforme foi mencionado no capítulo anterior, a natureza programática

do moderno deve-se ao “esvaziamento do tempo” (GIDDENS 1991:26) pela

fabricação do tempo padrão. Este, para ser produzido, precisou ignorar o

espaço histórico-social, principalmente, no que diz respeito ao “lugar indicial”

(FERRARA, 2002:27), ao espaço banal do cotidiano, onde se constituem

os embates das diferenças. Tal temporalidade funciona como um texto-


código que, segundo Lótman (1996:94), não representa um sistema aberto

às novas combinações, mas se articula como um tecido paradigmático, no

qual convergem diferentes arranjos sígnicos, que mantém, entre si, uma

estrutura em comum.

De acordo com Giddens (1991:26), o signo, por excelência, do tempo

moderno surge pela “uniformidade de mensuração do tempo pelo relógio

mecânico [que] correspondeu à uniformidade na organização social do

tempo”. Além do relógio, o tempo programável reproduz-se em outros signos,

tais como: o sistema de datação universal, o tempo útil do trabalho na linha

de produção nas fábricas e o historicismo da cultura humana. Particularmente

em relação ao historicismo, conforme foi comentado no capítulo anterior, se

manifesta em uma forma própria do narrar mediante o encadeamento

sucessivo e linear dos fatos em períodos históricos, que gera, no cinema,

um correlato com a edificação da narrativa clássica, fabricada pelas regras


183

e fórmulas a priori de justaposição, sem grandes sobressaltos, das ações e

dos signos audiovisuais.

Segundo Jamenson (2005:28), ao ser sustentado pela prótese do

tempo, o signo “moderno”, originário da palavra “modernus”, que significa

“agora”, pode se aproximar do signo “novus”, cuja associação favorece,

sobretudo, o moderno, uma vez que tudo o que é novo não é necessariamente

moderno, porém, tudo o que é moderno significa necessariamente novo. Tal

semiose não finda pela associação entre moderno e novo, mas contamina

outros signos, tais como, “progresso”, “avanço”, “mudança” e “atualidade”,

todos utilizados como sinônimos do moderno para significar “uma promessa

dentro de um presente, no tempo, e oferecer um modo de se possuir o futuro

que se encontra mais imediatamente no interior daquele mesmo presente”

(JAMENSON, 2005:47).
Entretanto, sedimentado como programa pela artificialidade do tempo,

o moderno acabou gerando, internamente, a sua própria ambivalência, o

seu caos, a sua desarticulação, pois, ao restringir o campo de atuação da

duratividade do novo, mediante um presente percebido cada vez mais como

obsoleto, ele produziu, na natureza programática do tempo, o seu próprio

algoz:

Ao se tornar sinônimo de novo, o conceito de moderno


assume uma dimensão certamente essencial para a nossa
compreensão de modernidade, mas, ao mesmo tempo,
uma dinâmica interna que ameaça implodir sua relação
com o tempo. De fato, se o novo está, por definição,
destinado a transformar-se no seu contrário, no não novo
mais, no obsoleto e no envelhecido, então o moderno
designa um espaço de atualidade cada vez mais restrito.
Em outros termos, a linha de demarcação, outrora tão clara
entre o moderno e o antigo, tende a apagar-se, pois o
moderno se transforma cada vez mais rapidamente em
seu contrário. Ao se definir como novidade, a modernidade
184

adquire uma característica que, ao mesmo tempo, a


constitui e a destrói. (GAGNEBIN, 1999:48)43.

Associado ao signo “novo”, o tempo programado pelo moderno sabota

a si próprio. Isso ocorre porque os arranjos sígnicos tecidos pelo moderno


deixaram de ser identificados como etapas de um único processo na busca

de um fim, para serem percebidos como combinações que já nascem com

a data de validade vencida. Dessa maneira, o ato de programar o movimento

da cultura pela padronização do tempo é corroído pela precariedade e pela

incapacidade de prever o futuro em uma escala de tempo, na qual o presente

se configura como algo perene e fugaz.

Assim como a associação entre o moderno e o novo produz um

paradoxo na natureza programática do tempo, Dupas (2006:30) atenta para

a contradição gerada, também, na associação entre moderno e progresso.

De acordo com ele, toda idéia de progresso alude, necessariamente, à

possibilidade em haver um retrocesso ou declínio. No confronto com a

imprevisibilidade da história, nada tem condições de garantir a contínua


perpetuação da história como sucesso, a não ser que ela seja forjada como

farsa.

Isso implica dizer que todo planejamento deve, necessariamente,

“atender às condições da realidade [que] supõe atender os espaços de

possibilidade” (DUPAS, 2006:30), pois “o que realmente existe é apenas

um nível de realidade que se sustenta sobre um fundamento de

probabilidades” (DUPAS, 2006:31). Ao ser moldado como certeza e garantia

de um final feliz, o moderno deixa de atender tais

condições da realidade, pondo em evidência a sua 43


Gagnebin, assim como
vários outros pesquisadores,
própria realidade de sentido, na qual o que se tece é, toma o moderno como
sinônimo de modernidade.
Posição contrária a de
Bauman, que está sendo
ressaltada neste capítulo
185

sobretudo, uma forma de pensar e de ordenar a cultura como utopia.

Assim, o moderno entra em falência, ao ser implodido, internamente,

por sua própria lógica temporal, que restringe o campo de atuação da

duratividade do novo, e, externamente, pelo confronto com a imprevisibilidade

das transformações culturais, que desvela o caráter utópico, para não dizer,

fantasioso, da crença e certeza do sucesso.

No entanto, essa quebra não significa o fim da modernidade. Esta,

segundo Bauman (1999; 2001), deve ser compreendida em um amplo

aspecto performático: 1) Como consciência crítica do antigo regime, que

passou a ser questionado e ameaçado, principalmente, pelas mudanças

econômicas originadas pelo modo de produção capitalista. Nesse contexto,

as alterações da cultura, advindas da periferia do modo de produção

hegemônico, estimularam a reflexão da ordem em contraste ou em


contraponto com o modo de organização operante. Disso resultou,

paulatinamente, a solidificação do pensamento moderno, que passou a

funcionar como centro articulador das esferas culturais e dentro delas e, como

tal, afastou-se por completo do espírito questionador da modernidade,

tornando-se, dessa maneira, o seu alvo principal; 2) Como estado de liquidez

da cultura, construído pelos questionamentos, na maneira de perceber e

compreender a ordenação cultural, ao se projetar contra as armaduras

paradigmáticas do moderno, desmanchando-as.

Denominado, por Bauman (2001:59), de “versão liquefeita da

condição humana moderna”, e, também, de “modernidade líquida”,

“capitalismo de software” ou “modernidade leve”, o atual estado da

modernidade está metaforicamente associado à força dos fluídos, pois,

Eles “fluem”, “escorrem”, “esvaem-se”, “respingam”,


“transbordam”, “vazam”, “inundam”, “borrifam”, “pingam”;
são “filtrados”, “destilados”; diferentemente dos sólidos, não
são facilmente contidos – contornam certos obstáculos,
186

dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do


encontro com sólidos emergem intactos, enquanto os
sólidos que encontram, se permanecem sólidos, são
alterados – ficam molhados ou encharcados. (BAUMAN,
2001:08).

Movendo-se contra as marcas e domínios do moderno, a

modernidade líquida processa-se nas esferas culturais pelo embate entre

os mecanismos estabilizadores presentes na cultura e a projeção das

“antecipações ansiosas” (JAMENSON, 2005:47), entre processos graduais

e os momentos dinâmicos da e na cultura e, também, entre o próprio programa

moderno e as ambivalências e contradições desencadeadas por ele.

Construída pelo choque entre o estado líquido e as formas sólidas, a

modernidade é a própria mobilidade do pensamento a respeito da ordem

cultural. Nesse sentido, ela é o espírito que move o pensamento simultâneo

do desenhar e, também, o pensar as imagens pelo conflito, mediante o

montar.

Sob o ponto de vista da semiótica da cultura, a modernidade fluida

de Bauman relaciona-se com a projeção e incorporação dos momentos

explosivos da cultura, que ocorrem, segundo Lotman (1999), tanto no eixo

diacrônico quanto no sincrônico do processo de formação e constituição

das representações na semiosfera. Entrelaçados, esses eixos demonstram

a complexidade desse espaço de geração das semioses.

Na perspectiva diacrônica, as novas projeções se espacializam-se

por meio de um futuro que se apresenta como “el espacio de los estados

possibles” (LOTMAN, 1999:28), tornando-se “um estallido de espacio de

sentido” (LOTMAN, 1999:28), em que estão imersas todas as possibilidades

futuras. Dessa maneira, irrompe, na diacronia entre sistemas sígnicos, um

lugar de ruptura e de projeção da própria ordem, composto de várias vias

possíveis.
187

Eleito um desses caminhos e, conseqüentemente, excluindo-se os

outros, promove-se, nessa seleção, a tensa passagem da inserção da

explosão na cultura, o “romper a cadeia diacrônica, colocando na diacronia

um outro elemento” (FERRARA, 2004-05)44, visto que “desde el punto de

vista de la posición ‘explosiva’, la posición opuesta se a apresenta como la

encarnación de todo un conjunto de cualidades negativas” (LOTMAN,

1999:21).

Na perspectiva sincrônica, o recorte vertical na semiosfera leva ao

embate entre sistemas dispostos em lugares distintos, uma vez que, em

geral, as explosões ocorrem nas esferas culturais periféricas, em que estão

imersos sistemas de signos com modos de ordenação e de codificação

menos rígidos. Estes, ao construírem novas tessituras, interferem nos

movimentos dos sistemas com menor velocidade de alterações de suas


ordens, porque “las explosiones em algunos estratos pueden unirse a un

desarollo gradual en otros” (LOTMAN, 1999:26), resultando na transformação

da semiosfera como um todo, pois há um “brusco aumento de informatividade

de todo sistema” (LOTMAN, 1999:28).

A modernidade como pensamento movente da ordem, articulada,

portanto, pela projeção de novas potencialidades ordenadoras em relação

às existentes, é gerada pela irrupção dos momentos explosivos e inventivos,

que surgem tanto entre estados da cultura — perspectiva diacrônica — quanto

entre extratos culturais — perspectiva sincrônica—, nos quais há tensas

relações sistêmicas entre as projeções de diferentes modos de compor e

pensar a ordem cultural em textos e os seus mecanismos de estabilização.

Em ambas as perspectivas, há a projeção do novo contra a inércia e

a homogeneidade da cultura em um terreno de possibilidades que “exige

44
Idem nota 02.
188

dinamitar seguranças e advertir que a única rigidez possível é o risco”

(DUPAS, 2006:31).

Refletindo “a estrutura móvel da existência” (ARGAN, 2004:58), as

projeções ou momentos explosivos da cultura interferem, também, no modo

como tais textos são codificados pela percepção, já que há uma

transformação radical do ato de perceber, que se torna cada vez mais favorável

às mutações sígnicas, no intenso contato com a tessitura fluida da cultura.

Gilles Lipovetsky (1997), ao analisar a moda como o sistema de linguagem

basilar da modernidade, chega a sugerir a existência da “esfera do parecer”

(1997:24), ou seja, da esfera das visualidades, decorrente desse estado

líquido, na qual o que está em construção é um modo de perceber e entender

a cultura por meio das suas alterações.

Trata-se de uma percepção atenta e aberta às instabilidades


propostas pelo desenhar ou pelo montar, que, continuamente, confronta o

hábito perceptivo e a percepção possível (FERRARA, 1993:182), mediante

o embate entre a atenção à variabilidade das linguagens em novas formas

de representar o espaço e o repertório de representações já vistas,

codificadas, e, portanto, armazenadas.

O estado atual da modernidade pensada por Bauman, portanto, está

relacionado às transmutações sígnicas e aos processos de construção da

percepção pelo devir da cultura. A tessitura líquida do pensar a ordem cultural

potencializa a dinamicidade na semiosfera, mediante as trocas

informacionais entre sistemas de linguagens que, ao se tornarem mais

intensas, estimulam o surgimento de um número significante de zonas de

conflito, em que é possível identificar uma predominância de modos de

compor as mensagens pelos “desmanches”, ao invés de fixar e de reproduzir

padrões estruturais existentes.


189

Marcada pelo confronto com a temporalidade programática do

moderno, a modernidade líquida tem, na representação do espaço, sua

principal “arma” de construção e de projeção. Isso ocorre porque, conforme

foi demonstrado ao longo desta pesquisa, as espacialidades em montagem

são construções porosas em relação aos elementos variantes, uma vez que

elas surgem pelas interfaces entre linguagens, suportes, textos e, também,

entre enunciado e leitor. Explorando os limites e as limitações dos modos

de entender e construir a ordem, as espacialidades demonstram que não há

um único padrão de ordenação a ser disseminado e reproduzido em

diferentes arranjos sígnicos, mas é possível tecer diversas configurações,

que, continuamente, se chocam entre si, e, com isso, contradizem-se, por

meio de suas estruturas. Nelas, o tempo linear “à medida que flui, (...) se

achata num mar de miséria, de modo que o ponteiro pode flutuar” (BAUMAN,
1999:19).
190

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A OSTRA e o vento. Produção de Flávio R. Tambellini. Direção de Walter


Lima Jr. SIGLA — Sistema Globo de Gravações Audiovisuais LTDA, 2002.
1 disco (112 min.), DVD, son., color.

ELEFANTE. Produção Dany Wolf. Direção de Gus Vant Sant. Home Box
office, Inc, 2003. 1 disco (81 min.), DVD, son., color.

HOJE É dia de Maria. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Globo Marcas


DVD, 2006. 2 discos (6h 11 min.), DVD, son., color.

O GRANDE ditador. Direção de Charles Chaplin. Warner Home Vídeo,


2005. 2 discos (120 min), DVD, son., p&b.

O MÁGICO de Oz. Direção de Victor Fleming. Warner Home Vídeo, 1999.


1 disco (101 min.), DVD, son., color.
198

Ficha técnica dos textos audiovisuais analisados:

A ostra e o vento
Brasil, 1997
Direção: Walter Lima Jr.
Produção: Flávio R. Tambellini
Roteiro: Walter Lima Jr.
Direção de fotografia: Pedro Farkas
Montagem: Sergio Mekler
Direção de arte: Clóvis Bueno
Cenografia: Vera Hamburger
Figurinos: Rita Murtinho
Música: Wagner Tiso
Canção-tema: Chico Buarque
Edição de som: Tom Paul
Som direto: Márcio Câmara
Pós-produção: James McQuaide
Direção de Produção: Marcelo Torres
Companhia produtora: Ravina
Distribuição: Riofilmes
Cor, 35mm, 112 min.
Elenco: Lima Duarte (José), Fernando Torres (Daniel), Leandra Leal
(Marcela), Floriano Peixoto (Roberto), Castrinho (Pepe), Débora Bloch
(Mãe), Arduíno Colasanti (Magari), Ricardo Marecos (Pedro), Márcio Vito
(Carrera), Hannah Brauer (Marcela aos 6 anos), Amanda Fontes Freire
(Marcela aos 3 anos), Rodrigo Moreira (amante), Charles Paraventi (voz
de Saulo).

Elephant
Estados Unidos, 2003
Direção: Gus Vant Sant
Produção executiva: Diane Keaton e Bill Robinson
Produção: Dany Wolf
Roteiro: Gus Vant Sant
Direção de fotografia: Harris Savides, ASC
Montagem: Gus Vant Sant
Desing de som: Leslie Shatz, CST
Companhias produtoras: HBO Films, Blue Relief e Meno Films Company
Productions
Distribuição: HBO Films
Cor, 35mm, 81 min.
Elenco: Alex Frost (Alex), Eric Deulen (Eric), John Robinson (John
McFarland), Elias McConnell (Elias), Jordan Taylor (Jordan), Carrie Finklea
(Carrie), Nicole George (Nicole), Brittany Mountain (Brittany), Alicia Miles
(Acadia), Kristen Hicks (Michelle), Bennie Dixon (Benny), Nathan Tyson
(Nathan), Timothy Bottoms (Sr. McFarland), Matt Malloy (Sr. Luce).
199

Hoje é dia de Maria – primeira jornada


Brasil, 2005
Direção: Luiz Fernando Carvalho
Roteiro: Luís Aberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho
Direção de fotografia: José Tadeu Ribeiro
Direção de arte: Lia Renha
Produção de arte: Jussara Xavier
Cenografia: João Irênio
Figurino: Luciana Buarque
Direção de iluminação: Paulo Roberto Miranda
Direção musical: Mariozinho Rocha
Música: Tim Rescala
Edição: Carlos Thadeu, Pedro Duran e Paulo Leite
Sonoplastia: Iraumir Mendes e Irla Leite
Direção de animação: César Coelho
Direção de produção: César Lino
Realização e exibição: Rede Globo de Televisão
Elenco: Fernanda Montenegro (madrasta), Osmar Prado (pai), Stênio Garcia
(Asmodeu), Juliana Carneiro da Cunha (Mãe/ Nossa Senhora da Conceição),
Gero Camilo (Zé Cangaia), Carolina Oliveira (Maria), Daniel de Oliveira
(Quirino), Inês Peixoto (Rosa), Letícia Sabatella (Maria adulta), Rodrigo
Santoro (Amado), Rodolfo Vaz (maltrapilho, mascate, homem do olhar triste,
mendigo, vendedor), Antônio Edson (Asmodeu brincante), João Sabiá
(Asmodeu bonito), Luiz Damasceno (Asmodeu poeta), Emiliano Queiroz
(Asmodeu velho), André Valli (Asmodeu mágico), Ricardo Blat (Asmodeu
Sátiro), Marco Ricca (cangaceiro), Aramis Trindade (cangaceiro), Ilya São
Paulo (cangaceiro), Charles Fricks e Leandro Castilho (os executivos),
Nanego Lira (retirante), Laura lobo (menina carvoeira), Thaynná Pina
(Joaninha), Rafaella de Oliveira (Joaninha adulta), Denise Assunção
(mucama), Mário César Camargo (Odorico), Phillipe Louis (Ciganinho),
Rodrigo Rubik (príncipe).

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