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Educagéo infantil: espacos e experiéncias Daniela Guimaries Acho que 0 quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente s6 descobre isso depois de grande. 'A gente descobre que o tamanho das coisas hd que ser medido ‘pela intimsdlade que temos cont as coisas. Ha de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal sao sempre ‘maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade “Achadouros, XIV" Manos DE Banos, 2003, p. 54 GUEHAD Entao, inicialmente, se trata Sa efinir o que entendemos como educago e, em seguida, como determinada organizagao dos espacos pode interferir na concretizac4o de nossos projetos educacionais. © Hoje, é possivel entendermos educagao como a possibilidade de investimento na expansao da crianga em suas multiplas dimensoes: emocional, sensorial, motora, mental, socioafetiva. Fazer educagao significa cuidar do outro, considerando-o sujeito ativo e afetivo, que produz sentido sobre o mundo com suas agGes corporais, sensoriais e mentais, expressando-se de miltiplas formas, em permanente confronto e colaboragdo com 0 social no qual esté mergulhado. 90 | EDUCACAO INFANTL - COTIDIANO E POLITICAS Nessa perspectiv, CSRS eSeU sree SET) Assim, a educagdéo compromete-se com CRoeTTTEPorificaday ou seja,relaciona-se nao s6 com o que acontece na mente, no racional, na légica, mas envolve especial- mente 0 corpo ea emogao. Principalmente, relaciona-se com a ideia da aprendizagem nao s6 como solucdo de problemas, repeticao do modelo de mundo adulto, mas: De modo geral, a tendéncia, ao olharmos a crianca, é buscar “o que ja sabe?”; “o quanto jé sabe?”; “o que jé aprendeu?”, revelando » Ou seja, buscando como a crianga representa a realidade em sua fala e acao. De outro modo, ao investirmos no de- senvolvimento da producao de sentidos da crianga sobre realidade, deslocamos 0 foco para questdes tais como “como a crianga sente?”; “como se expressa em diferentes canais (corporal, oral etc.)?”;“como experimenta diversos materiais?”; “como cria sentidos sobre nossa realidade, no contato com o que se dispoe desta realidade para ela?”, @®Portanto, se considerarmos uma crianga ativa, exploradora e criadora de sentidos, é preciso pensar um espaco e um educador que deem apoio aos seus movimentos, que incentivem sua autoria autonomia, que contribuam para a diversificacao de suas possibili- dades. ili Dau nos refeimos, especialmente &ideia dos educadoresitalianos da “escuta como metéfora’, Trata-se da escuta com os diversos sentidos: 0 olhar, o sentit © ouvir... a crianga (ver Epwanps, GANDINI & FORMAN, 1999). Para esses autores se como italianos, a proposta educacional com criangas pequenas caracteri uma pedagogia da escuta, a @ A ideia da cognigao ou aprendizagem corporificada e como criagio de sentidos écolhida no trabalho de Kastrup (1999). EDUCAGAO INFANTIL: ESPAGOS E EXPERIENCIAS | 97 (PAPEMETEALERAGOn se com a expressividade das ¢ , € necessario levar em conta o didlogo angas, o incentivo as suas capacidades de criar cenas, narrativas (com varios suportes), invengao de situa- es, solugdes inusitadas para as questdes que emergem no coletivo, permitindo-lhes prosseguir, testar suas hipdteses, experimentar formas novas de relagao, sustentar 0 que constroem. Se prefixarmos tudo, dizendo sempre 0 que as criangas vao fazer, usando o plane- jamento como antecipagao, j4 sabemos sempre onde as ages vao chegar. Consequentemente, diminuimos as possibilidades expressivas (as criangas nao sentem que suas produgées tém escuta e apoio). £ importante que o espaco apresente a organizacdo do mundo (0 que acontece quando dispomos fotografias, reproduces de obras de arte, textos, livros etc.) e que favorega que as criangas experimentem situac6es expressivas diversas (com a variedade de materiais dispo- niveis, tais como panos, caixas etc.). Por conseguinte, organiza-se para nds a seguinte questaogOmiop O projeto educacional que envolve as criancas de 0 a 6 anos no norte da Itélia, especialmente na cidade de Reggio Emilia, nos ofe- rece inspiracao para responder a essa questdo, na medida em que diversas pesquisas nos espacos de trabalho com as criancas visam analisar: como elas usam 0 espa¢o?; como se organizam nele?; 0 que o educador pode fazer no espaco para ampliar as possibilidades. socializadoras e criativas das criangas? @® No projeto italiano, ha trés ideias que sao as chaves para a com- preensao do papel do espago no apoio as manifestagdes expressivas das criangas. Uma nao é mais importante do que a outra, e as trés ideias interconectam-se no contexto das relacdes de adultos e crian- 92 | EDUCACAO INFANTIL - COTIDIANO E POLITICAS. 628 no cotidiano. Primeiramente, a ideia <(ERUMATLECSEER Em segundo lugar, jiiifSOtH GSTS PE IEDR TIALS Ne. tos das eriangas. Por lim, 0 espago como convite d ago, dimaginagio eRATTAAVIMEHe. \ seguir, vamos explorar cada uma dessas ideias, refletindo sobre suas implicagées na construgao dos espagos de tra- balho com as criangas em nossa realidade brasileira. Espago flexivel Inspirados em Bachelard (1993), é fundamental compreendermos que o @spagorplanejao pelo arquiteto, em suas dimensdes objetivas, CBEFeFeMEAMPAPATM!0, Ou seja, o tamanho de um espaco para a crianga nao tem relacao s6 com a metragem dele, mas relaciona- -se com a forma como esse espago é experimentado. Uma casa com uma metragem pequena pode ser sentida pela crianga (ou pelo adulto) como maior do que um espago com dimensées maiores, se ha intimidade, sensagao de seguranca e pertencimento nessa casa. “ Consequentemente, 0 espa¢o habitado e vivido é um espaco de limites transformaveis por quem 0 habita. Ou seja, o espaco objetivo torna-se “lugar de...” experiéncias, rela¢6es, criagées; torna-se am- biente de vida, a partir das experiéncias que nele compartilhamos. O espaco & algo projetado, o lugar € construsdo nas relagbes. Quando pensamos um espago para a relacao com as criangas, é importante que possamos aliar as qualidades fisicas (0 que nele é importante ter — objetos para construgao, bonecos, papéis de diferentes tamanhos, fantasias etc.) com asqqualidadesrimaginativas, (Como essas coisas vao convidar a inventar possibilidades, pesquisas, cenas, narrativas? Como, na relacao com essas coisas, as criangas vao construir significados?). Essa ideia da flexibilidade do espago vivido é referendada nas palavras de Bachelard, quando afirma que “o ser abrigado sensibiliza os limites do seu abrigo” (idem, p. 25). Pensamos nos espacos antes de as criangas entrarem, mas quando SE EDUCACAO INFANTIL: ESPAGOS E EXPERIENCINS | 92 eles sao habitados e vividos é que se tornam ambientes de experién- cia, ganhando contornos de fato. De acordo com os educadores de Reggio Emilia (2001) (GSPALSSPMIOWEISTElAALETIAIS, nao brincam de casinha de boneca sé na casinha de boneca; nao cantam e dangam apenas no espago de musica etc. Vale observar, inclusive, como usam de forma plastica 0 chao, as paredes, as cadeiras, fazendo pistas, demarcando territérios que se tornam saldo de beleza, casinha, consultério médico, castelo etc. No contexto das creches, em nossa experiéncia brasileira, € co- mum que as salas de atividades das criancas sejam as mesmas onde elas dormem e comem. Assim, o berco e a cadeira de alimentacao tornam-se mobilidrios que se prestam nao sé ao sono ea alimenta- do. As criangas ressignificam esses objetos em suas relagdes com eles, expandindo suas funcoes. Assim, os bergos podem ser mediadores | do contato das criancas entre si, se sao organizados de modo que, favoregam troca de olhares, toques, objetos. As cadeiras tornam-se esconderijos etc. Também os panos e colchonetes, ao mesmo tempo em que servem de apoio para que as criangas se sentem, engatinhem e explorem o chao, ganham novos sentidos quando se tornam suportes para brincar de esconder, ou quando se prestam a serem empilhados ¢ derrubados, sucessivas vezes. Na realidade das escolas de educacao infantil, onde a presenga de mesas e cadeiras marca uma preocupagao com o “ensino”, a transmissao, a concentragao, ¢ importante observar que, a0 lado do uso formal desses artefatos, as criangas transformam mesas em esconderijos, cadeiras em trens ou em avides. Por conseguinte, é importante acompanhé-las, observi-las, no sen- tido de fortalecer suas re-composigoes dos espagos. Torna-se questio para os educadores: como incentivar o salao de beleza com outros ma- teriais?; como as outras atividades que precisam das cadeiras podem nao “destruir” o castelo que as criangas fizeram com elas? Entretanto, é importante nao perder de vista os limites também inerentes as rela- 04 | EDUCAGAO INFANTIL - CONDIANO E POLITICAS des sociais Por exemplo, um pote de tinta az num rio pela questio do desperdicio, da relagdo com os materiais. Isso pode ser conversado, outras solugdes inventadas. De qualquer modo, tanto num campo como no outro, na creche ul talvez nao possa transformar-se ena escola, = Bl a r jo (GASES. E claro que isso tem limites e eles se relacionam com a conservacao dos objetos, necessidade de organiza¢ao coletiva, den- tre outros necessdrios contornos que a vida em sociedade a No entanto, no trabalho com as criancas de 0 a 6 anos, @iuirgenteraieada dia, refletir sobre a tensao entre regra e flexibilidade, uso formal dos _Objeroserectiapin desuastungies Espago relacional E importante refletir também sobre: €OMO{OlESspagowcolheresus> ? Acolher nao é somente ser me nao se trata s6 de produzirmos um espago aconchegante € gostoso (0 que também é fundamental), mas, sobretudo, d@@onsidesyp ‘anmoscome esp suse pls dveranare assis @USMESERVOIVERD Os cantinhos que criam — nos mochileiros, ni a etc. ~, para pequenas trocas ¢ encontros, sao — De acordo com 0 trabalho em Reggio Emilia: grupo social para com- 4s criangas e os adultos precisam pertencer a um parar ideias e dividir experiéncias com os outros. A proximidade cria vinculos que permitem cada um reconhecer a sie a0 outro [,..]-"Teata-se da comuni- dade como internalizagao do outro como um valor [..]. Comunidade ¢ uma EDUCACAO INFANTIL: ESPAGOS E EXPERIENCIAS | 95 qualidade do espago que encoraja encontros, trocas, empatiae reciprocidade [Reacio Cuiupren, 2001, p. 21]. Algumas pesquisas realizadas em instituigdes de educacao na cidade do Rio de Janeiro buscaram investigar como as criangas transformavam éspacos em lugares, como meninos e meninas de- senvolviam relacionamentos nos espacos. Perceberam queS@juande) _ se movimentam livremente no espaco, as criangas tendem a formar __subgrupos (onde acontecem trocas de objetos, negociagoes). Poce-s= ver fortemente a forga narrativa nessas experiéncias{ESpAgOSEODIEES —) Numa das publicacées das pesquisas italianas (ver Reacio CutpreN, 2001), € narrada em imagens a historia de duas crian- cas, Mateo e Katherine. Reproduzimos aqui a cena em palavras, para que possamos perceber como a qualidade do espago apoia a formagao de duplas e subgrupos, aprendizagem e comunicagao: as duas criancas dangavam, envolvendo-se em tules que mudavam suas formas de acordo com 0 movimento que faziam. Eles come- saram uma imitacao reciproca. O mtituo entendimento tornava-se cada vez mais refinado, até o ponto em que um tinico olhar era suficiente para decidirem que iriam se envolver em um tinico véu, criando um tipo de nicho para a brincadeira que envolvia olhar e imitagao. O prazer naquela situagao nao passou despercebido pelo grupo que estava ali em torno. As outras criangas foram atraidas pela performance, divertindo-se e tornando-se a audiéncia. Logo os dois perceberam a audiéncia, voltando-se em sua diregao. A audiéncia participa cada vez mais ativamente. Ficaram tao envol- vidos que os dois protagonistas acolheram 0 grupo no seu jogo. Poucas palavras foram proferidas, mas 0 entendimento mutuo foi profundo. A brincadeira foi enriquecida e variada com a inclusao de novos parceiros. ‘Todos perceberam e participaram das con- 6 | EDUCAGAO INFANTIL - COTIDIANO E POLITICAS vengoes criadas: transparéncia, ver ¢ nao ver, 0 som € as vozes que acompanham os movimentos etc. A presenga dos tules ea forga da interagao da dupla mobilizaram 0 grupo, produzindo comunicagao e criagao de novos sentidos pela mediagao de gestos, olhares, risos e expresses faciais. Tudo isso foi fortalecido com o registro da cena pela professora (na forma de fo- tografias), chamando a atencao para os relacionamentos emergentes. (MD De modo geral, de acordo com as pesquisas italianas ja citadas, nesses movimentos livres no espago, as criangas encontram-se, formam duplas, trios e subgrupos, geradores de histérias e dra- matizag6es diversas. Nesses contextos, meninos tendem a ser mais des (buscam pulos, saltos, corridas); e as meninas tendem a construir “lugares nos lugares” (demarcando limites para formar suas historias). Consequentemente, cabe aos educadores tanto desafiar as meninas em movimentos mais largos e convidar os meninos para as cenas das meninas, quanto oferecer possibilidade para que 0 noma- dismo acontega e os “lugares nos lugares” possam ser formados. No primeiro caso, trata-se de garantir 0 espago amplo para a expansao corporal; no segundo caso, pensar na oferta de poucos elementos de diferentes materiais que possam ser transportados e favoregam 2 construgao de lugares (panos, almofadas etc.). No cendrio das creches brasileiras, é comum que os espagos dos bercdrios sejam ocupados principalmente por ber¢os € 0s espagos das criancas maiores, por mesas ¢ cadeiras. S40 mobilidrios que sugerem a atividade individual: ber¢o para uma crianga, cadeira para cada uma. Essa situagao incita-nos a pensar como constituir a ideia de um espago relacional em nossa realidade, ‘Tendo em vista o tamanho padrao dos bergos, é preciso um para cada crianga? Ou podemos usd-los em du- plas, abrindo mais espaco livre no chao e oportunidade de as criangas interagirem com os parceiros num mesmo bergo? E possivel ter um espaco 86 para o sono, diferente do espago de brincar? Quando ha um espago de brincar, ele organiza-se de modo que favorega a interagao J EDUCACAO INFANTIL: ESPAGOS E EXPERIENCIAS | 97 de subgrupos, em cantos ¢ nichos, ou é um grande espaco livre, com brinquedos no alto das estantes A ideia do espago como suporte aos relacionamentos implica, também, a relacdo entre 0 espaco educativo e o espaco da cidade: como 0s dois se interpenetram e dao suporte um ao outro? O “lado de fora” da creche e da escola de educagao infantil é sentido pela crianga como espaco da instituigao? Ou como espaco que favorece e acolhe a continuidade de suas experiéncias? Eum desafio para nossa realidade viver a cidade como oportunidade de interagéo com a cultura, a natureza, a vida, ampliando as relagdes que acontecem entre as paredes dos prédios institucionais. Espaco instigador As investigagées dos italianos, j4 citadas, também focalizam as seguintes questdes: como as criangas usam o canal sens6rio no Ptr (@G@SHAFAEIVAS? No contexto dessas indagaées, observando a relagao das criancas com os materiais disponiveis, uma série de estratégias foi sendo criada, Por exemplo, o uso da luz artificial. Os pesquisadores perceberam que uma faixa de luz delimita cenario para dramatiza- ges. Retroprojetores simples, ou pequenos focos de luz numa sala escurecida, criam ambientes para jogos de sombra diversos. Eles enfatizam que percepgoes sensoriais sao refinadas quando a crianga pode exploré-las e expressé-las (por isso a importincia da luz, cor, actistica, beleza e diversidade no espa¢o). Entao, indicam a‘ GRVAASSMAEHAR. Por exemplo, pequenos canos de PVC, focos de 8 | EDUCAGAO INFANTIL - COTIOIANO E POUITICAS. luz, cones de plistico, ¢ muitos outros materiais (que tantas vezes sobram nas obras e no comércio da cidade) sto mobilizadores do poten’ im muito a importincia da diversidade de planos nas produgées (bie tridimen- onal); tamanhos, imagens, qualidade dos mater ial sensivel e construtivo das criangas. Ainda, enfati tancia de o educador funcionar quase como um cendgrafo, possi- bilitando as cenas que serdo criadas pelas criangas, ajudando a que essas cenas possam ser sustentadas e ampliadas. A diversidade de materiais é um desafio para a realidade brasileira. De modo geral, os espacos da creche e das escolas de educacdo infantil so povoados pelos brinquedos tradicionais (bolas, encaixes, quebra- -cabecas etc.). Com certeza, eles siio fundamentais e instigadores, Mas hd uma série de outras possibilidades que, muitas vezes, permanecem invisiveis: almofadas, diferentes cerdas de escovas, farinhas, caixas de papelao etc. Objetos do cotidiano de nossa vida social, As vezes, Colocar pequenos pedacos de madeira em um buraquinho, compor vezes convidam ao deslocamento, as vezes a observacio. uma casa com as folhas das arvores, fazer casas com caixas, capas com jornal sao possibilidades de descobrir nos objetos sentidos novos, pelo que eles sugerem, Cabe ao educador atentar para 0 encontro das crian¢as com os objetos e os espacos, compreendendo e mapeando as possibilidades que dai surgem. _ Enfim, finalizamos com as palavras de um dos idealizadores do trabalho nas creches e escolas de Reggio Emilia. Ele sintetiza, de forma emblemitica, as diversas dimensoes da importancia do espago no projeto pedagdgico que realizam, instigando e inspirando nossa realidade: (ra EDUCACAO INFANTIL: ESPAGOS E EXPERIENCIAS | 9g Valorizamos 0 espago devido a seu poder de organizar, de promover relacionamentos agradaveis entre as pessoas de diferentes idades, de criar um ambiente atraente, de oferecer mudangas, promover escolhas, ¢ a seu potencial para iniciar toda a espécie de aprendizagem social, afetiva,cogni- tiva. Tudo isto contribui para uma sensagao de bem-estar e seguranca nas criangas {Loris Malaguzzi apud Ganpint, 1999, p. 157].

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