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O Desenvolvimento Psiquico Inicial: O Ego Arcaico DIFICULDADES METODOLOGICAS NA INVESTIGACAO DAS FASES INICIAIS DO DESENVOLVIMENTO Em oposigao A tempestade afetiva ou ao ataque emocional, em que os fendémenos sio determinados por fatores bioldgicos e filogenéticos, o que nas neuroses condiciona os fendmenos é a histéria individual, Visto que os nfveis primitivos do desenvolvimento se retém ou se revivem nas neuroses, impossivel é compreendé-los sem conhecimento pleno destes estadios iniciais. Assim, pois, 08 capitulos que se seguem vao apresentar esboco resumido e esquemitico do desenvolvimento mental. As conclusées que dizem respeito aos primérdios da vida mental tém sido claboradas muito lentamente a partir do material que se obtém na anilise de neuréticos adultos; achados que vieram a ser confirmados pela observaco direta das criangas. Necessariamente, os anos mais remotos é que mais abscuros permaneceram. Em primeiro lugar, nem sempre é imperativo regressar aos perfodos mais remotos para analisar e tratar uma neurose; além disso, faz-se cada vez mais dificil apreender as reagdes mentais A medida que se Investigam perfodos nos quais ainda nao existe linguagem e nos quais muitas fungdes separadas ulteriores ainda nao se diferenciaram entre si. Sao diffceis as tenta- tivas no sentido de superar estes obstéculos pela observacao direta dos infantes, antes que se desenvolva a fala; e os dados por este meio se obtém facultam in- terpretagées psicolégicas que tariam. Hé inclinagdo acentuada & aplicagao de conceitos e idéias que sdo validas para estAdios mais adiantados de maturagao ‘a0 comportamento das criancas pequenas; critica, alias, que parece poder aplicar-se a varios estudos psicanaliticos relativos as fases iniciais do ego. Até o momento, contudo s&o poucas as observagées sistematicas de infantes que se hajam feito com base na psicandlise (645, 671, 1301, 1302, 1303, 1596). Os psicélogos experimentais tém contribuido muifo.com os seus achados; mas a pesquisa desta ordem aborda o material, principalmente, de modo muito diver- so daquele da psicanélise. A anilise de psicéticos, com a respectiva regressao a fases primitivas do ego, acresce consideravelmente o conhecimento destes est&dios iniciais. Esta anélise tez pela compreensao do desenvolvimento mental inicial o mesmo que pele compreensao dos estadios infantis da sexualidade fez a anélise dos neu- Téticos, com o regresso destes & sexualidade infantil, Claro que no sao as psicoses os tinicos estados em que se observam regressées do ego. Também nas pessoas sadias reaparecem funcées arcaicas do ego, conforme acontece em condicoes de embriaquez, exaustao e, sobretudo, na situacéo do adormecimen- to 2 do despertar (/26, 837, 1546) OS ESTADIOS PRIMITIVOS As fungées mentais representam um aparelho que se complica progres- sivamente para 0 controle dos esfimulos. Assim € que as fases primitivas se tem de abranger nas expressOes “excitagao” e “relaxamento”; s6 as fases ulteriores & que se podem caracterizar em termos mais definidos e diferenciados. ‘O ego vera diferenciar-se sob a influéncia do mundo exterior, sentido em que se pode dizer que a crianga recém-nascida nao tem ego. O infante humano nasce mais desamparado do que os outros mamiferos. Nao pode viver se nao for assistido; estimulos numerosos derramam-se-lhe em cima que ele nao pode controlar. Nao tem meios de mover-se voluntariamente, nem sabe diferenciar os estimulos. Nao conhece mundo objetal, nem consegue “segurar” a tensao. Podemos dizer que nao tem consciéncia clara e, quando muito, tera sensibili- dade indiferenciada & dor ¢ ao prazer, ao aumento e & diminuigao da tensao. Precisamente, o que ocorre é que ainda nao se desenvolveram as fungdes a constituir 0 ego futuro e a consciéncia: ou seja, a apreensao do mundo exterior (percepgao), o controle do aparelho motor (motilidade) e a capacidade de segurer a tenséo mediante contracatexias E claro que, antes mesmo do desenvolvimento do ego, reacées existem aos estimulos; as fungdes ulteriores do ego sao realizadas de forma indiferen- ciada pelo organismo como um todo. A origem do ego nao é um processo homogéneo. Comega com 0 nas- cimento (ou talvez mesmo antes) e, estritamente falando, nunca se completa. Quando nasce, o organismo emerge de ambiente relativamente tranqtiilo para entrar num estado de estimulacao esmagadora com um minimo de protecio contra os estimulos; @ uma inundagao de excitag&o, sem aparelho defensivo adequado, que, segundo Freud, constitui o modelo para toda angéstia futura (618). Esta inundagao pela excitagao deve ser consideravelmente desagradavel e deve evocar a primeira tend@ncia mental, a saber, a tendéncia a eliminar a ten- 8&0. Quando o,mundo exterior consegue ajudar a crianca a suportar estes es- timulos de forma satisfatéria, ela adormece. E despertada por novos estimulos: afome, a sede, o frio. Os primeiros tracgos de consciéncia nao se diferenciam en- tre ego e nao-ego, e sim, na verdade, entre tenséo maior ou menor; a esta al- tura, o relaxamento e a perda da consciéncia so concomitantes. Se fosse pos- sivel atender a toda necessidade imediatamente, talvez nunca se desenvolvesse uma concepgao da realidade. A DESCOBERTA DOS OBJETOS E A CONSTITUICAO DO EGO A vida do bebé varia entre a fome, o frio e outros estimulos desagradaveis, de um lado, e 0 sono, de outro. A fome (mais os estimulos desagradaveis) levam a um estado de tensio e daf, 4 tendéncia a livrar-se da tensao. Esta cessa com a saciedade, e a crianca adormece, o sono sendo liberdade relativa de es- 30 timulos. Os primeiros sinais de representacao objetal devem originar-se no es- tado de fome. Aparecendo primérdios mais distintos das fungées ulteriores do ego, a apreensdo pelo infante do fato de que alguma coisa hé de fazer 0 mundo exterior de modo a aliviar os estimulos conduz ao primeiro desejo de objetos. Relacdo objetal desta natureza primitiva s6 existe enquanto estiver ausente 0 ob- jeto: este aparecendo, cessa 0 desejo e sobrevém o sone (425). Antes que se estabelega este “primeiro objeto” @ o bebe fisicamente dependente de pessoas cujos cuidados 0 mantém vivo; pessoas que, contudo, N&o so os objetos do infante em sentido psicolégico, visto que ele ainda nao percebe o mundo exterior, e, sim, apenas, sua propria tensdo ou seu proprio relaxamento. A primeira percepgao de um objeto vir do desejo de alguma coisa que jé é familiar ao bebé: alguma coisa capaz de gratificar necessidades, mas ausente no momento (507) A primeira aceitacao da realidade é somente um estadio intermediério no caminho de se afastar dela. Aqui @ 0 ponto em que surge contradicéo de im- portancia basica na vida humana, a contradicao entre o desejo de relaxamento completo e 0 desejo de objetos (fome de estimulo). A luta pela descarga e pelo relaxamento, a expresso direta do principio da constancia, constitui, neces- sariamenie, 0 mecanismo mais antigo. O fato de objetos externos haverem trazido 0 desejado estado de satisfacio relaxada introduziu a complicagéo que consiste no fato de que 0s abjetos se tornaram desejados: de inicio, realmente, eles s6 foram procurados como instrumentos que por si mesmos desaparece- tam. O desejo de objetos iniciou-se como se fosse um desvio no caminho que conduz a esse alvo: livrar-se dos objetos (estimulos); @ o que talvez se queira dizer, as vezes, quando se declara que o édio € mais antigo que 0. amor. Certo &, contudo, que as primeiras relagées nao so nem édio, nem amor, mas o precursor ainda indiferenciado de um e outro (79). ‘A origem do ego e a origer do senso da realidade sto simplesmente dois aspectos de uma mesma etapa de desenvolvimento. Isso sendo inerente & definigado do ego como aquela parte da psique que manipula a realidade (295, 700). O conceito de realidade é que também cria 0 conceito de ego: somos in- dividuos na medida em que nos sentimos nés préprios separados e distintos de ‘outras pessoas. No desenvolvimento da realidade, a concepgae do préprio corpo desem- penha papel muito especial (608). De inicio, o que ha é apenas a percepedo de tens&o, ou seja, de um “alguma coisa dentro”. Posteriormente, com a percecao de que existe um objeto para acalmar,esta tensdo, temos um “alguma coisa fora”, O nosso corpo é uma coisa e outra ao mesmo tempo. Pela ocorréncia simultanea de estimulos técteis externos e estimulos sensoriais internos, 0 nosso corpo transforma-se em alguma coisa distinta do resto do mundo, donde pos- sibilitar-se o discernimento entre “self” (eu propriamente dito) e “n&o-self”. A soma das representaces mentais do corpo e érgaos deste, a chamada imagem corporal, constitui a idéia de eu e tem importancia basica na formacao ulterior do ego (1372). Nao coincide a imagem corporal com o corpo objetivamente considerado; por exemplo, as roupas ou as extremidades alucinadas podem es- tar nela inclufdas (521, 1612) : Um neurético compulsive preocupava-se obsessivamente com as roupas, as quais tinham de ficar-the perfeitamente bem, sob pena de sentit-se angustiadis- simo; era uma espécie de hipocondrfaco das roupas. Veio-se a descobrir que, real- mente, era com seu bem-estar fisico que se preocupava. O que ndo estivesse certo 31 coma indumentétia significava alguma coisa errada no corpo; as roupas inclufam- se na imagem corporal PERCEPCAO INICIAL E IDENTIFICACAO PRIMARIA O primeiro estado sem qualquer representacao de objeto chama-se nar- cisismo primério (585). As primeiras reagdes aos objetos como tais contém muita coisa, unitariamente integrada, que viré ainda a diferenciar-se mais tarde reagdes estas que se assemelham a retlexos, quer dizer, todo estimulo exige reagdio imediata, segundo 0 principio da constancia. A recepeao do estimulo e a sua descarga, a percepcao e as reagdes motoras estao muito proximas umas das outras; entrelacam-se, ou interligam-se de maneira inseparavel. A percepcio primitiva justamente caracteriza-se pela sua proximidade a reacZo motora. Nés percebemos mudando primeiramente 0 nosso corpo pela influéncia do objeto percebido e, depois, pela tomada de conhecimento desta mudanca corporal Sao muitas as percepgdes geralmente consideradas Opticas que, na realidade, so cinestésicas (379, 1456). Tal qual, a investigacao eidética term mostrado que as percepgdes épticas primitivas se ligam a reacdes motores prestes a descar- regar (83); @ 0 que também se vé dos achados das atitudes motoras nas alu- cinagées hipnagégicas e hipnopémpicas (837) A conexéo original entre a percepedo e @ acéo motora, Freud também a demonstra em seu ensaio “Nota sobre o Bloco Magico” (615), onde esclarece a atividade da fungao da percepgao. Enquanto estimulos intensos do mundo ex- terior inundam o organismo, este experimenta o fendmeno passivamente. A construgao de um aparelho de percepcao que coincide com um aparelho de protecao contra estimulos demasiado intensos, acarreta variacao da passividede para aatividade. A percepcao realiza-se ritmicamente; claro que sob a influéncia de pulsagées (motoras) centrifugas de catexias possiveis de considerar como sendo a primeira tentativa de controlar 0 mundo exterior. E esta a base da di- ferenciag&o de sistemas de percepeao e sistemas de meméria (552); @ dai que se origina uma consciéncia mais diferenciada. Uma vez completada esta diferen- clag&o, o organismo est em condigdes de proteger-se contra o excessivo influxo de estfmulos mediante a interrupc&o da funcéo de percepcao (917). O ego de formag&o recente pode voltar a afundar no id, capacidade que se observa no desmaio e nos sintomasdas neuroses traumiticas. E, sem diivida, o modelo de todos os mecanismos de defesa ulteriores, capaz de aplicar-se contra dores in- tetas e, bem assim, contra o desprazer de origem externa. Também a repres- s&0 pode ser considerada bloqueio especifico da percepcao de certas exigencias instintivas. Outro tipo de regresso do ego ao id se vé no sono. Fungao importante do ego é o fendmeno da fascinacao, descrito por Bern- feld (130). Uma tentativa primitiva de controle de est{mulos intensos consiste na imitac&o pelo ego primitive daquilo que é percebido. Segundo parece, perceber e mudar 0 nosso corpo de acordo com o que percebemos foram, na origem, uma coisa s6 e a mesma. Os pacientes de Goldstein com lesao cerebral con- seguiam compensar a alexia esbogando as letras que viam com movimentos da cabeca, feito isto conseguiam ler porque se tornavam conscientes das suas sensagGes cinestésicas (704, 1476). Esta imitacao primitiva daquilo que é per- cebido constitui uma espécie de identificagao, a consciéncia da qual produz a percepeao. 32 Outra reacao primitiva aos primeiros objetos afigura-se mais simples e mais compreensivel: 0 beb@ quer pé-los na boca. Foi a fome, que perturba reite- radamente a tranqlilidade do sono, que obrigou ao reconhecimento do mundo exterior. A experiéncia da saciedade, que pela primeira vez suprimiu esta ten- sao, veio a transformar-se em modelo que servisse para © controle dos estimulos exvernos em geral. A primeira realidade € 0 que se engole. Reconhecer a realidade significa, originalmente, julgar se uma coisa serve A gratificagéio, ou se suscita tensdes, quer se engula, quer se cuspa (616). Levar A boca ou cuspir 6 a base de toda percep¢ao; nos“tstados de regresso observa-se que, no incons ciente, se concebem todos os érgaos como se fosse bocas (420, 430). As reagies primitivas de imitagao do que é percebido ¢ a introjegao oral do que @ percebido est&o muito préximas umas das outras. Conforme Freud sem- pre enfatizou (606, 608},-“identificacao”, na psicologia normal e na psicopa- tologia, da a impressao de ser uma regressio, uma identificagao “secundaria”, que repete uma identificagao “priméria” arcaica. O conceito de identificagao priméria implica que, de fato, “por na boca” e “imitacao para o fim de perceber” vem a ser uma coisa sé, a mesma coisa; e representam a primeirissima relacao com os objetos. Nesta identificacao priméria, nao estéo diferenciados entre si o comportamento instintivo e o comportamento do ego. Tudo vem a dar na mes- ma: 0 primeiro amor objetal (oral), @ primeira reagao motora aos estimulos ex- ternos e a primeira percepcao (408). Desempenham as identificagées papel im- portante no processo de edificagéo do futuro ego, cuja natureza depender&, pois das pessoas que rodeiam o bebé (cf. 101). Também na imitagéo do mundo exterior pela incorporagao oral se baseia a modalidade primitiva de pen- sar, chamada magica, a disoutir-se adiante. Esta incorporacao, que é a primeira reagao aos objetos em geral e precur- sora das atitudes sexuais ¢ destrutivas ulteriores, destréi, em sentido psicolégico, a existéncia do objeto. A atitude segundo a qual o objeto existe apenas para satisfazer o ego e pode desaparecer uma vez que se produza a satisfagdo ainda se observa nalguns tipos infantis de amor. Entretanto, o objetivo da incorpo- ragao dos objetos nao reflete, necessariamente, qualquer tendéncia destrutiva subjetiva em relacao ao objeto. Esta incorporacao primaria representa a matriz do que vira a ser, posteriormente, amor e também édio destrutivo; mas ainda nao @ nem uma coisa, nem outra. A &nsia excessiva de destruir, que de fato se ve em certas criancas (e nao é simplesmente projetada mais tarde para a infancia em pacientes manfaco-depressivos) nao ativa em todo beb@ que suga 0 seio matemo. Certo é que a existéncia de impulsos oral-destrutivos nos primeiros tempos de vida se prova em casos patolégicos. Os desejos orais do bebé nor- mal nao contém objetivos destruidores poderosos desta ordem, nem, corres- pondentes, temores tao grandes de retaliagao. Nao esquecer também que a in- corporacao s6 é destrutiva secudatiamente, pois a sua natureza objetivamente destrutiva é usada para fins subjetivos; o primeiro desejo hostil para com os ob- jetos que produzem dor ou que obstam o prazer nao é engoli-los, mas cuspi-los. Também é de questionar se o mesmo objeto que uma vez produziu gratificagao e depois a recusa se reconhece como sendo um sé e o mesmo objeto pelo ego primitivo. Mais provavel é que, primeiramente, haja concepcées diferentes de um objeto bom”, que se quer possuiir engolindo, e de um objeto “mau”, que se quer cuspir e s6 posteriormente destruir engolindo. E questao de definigao es- tabelecer se a incorporacdo primitiva se chamaré “ambivalente” e declarar “con- génita” a ambivaléncia de emogées assim descrita. E ambivalente na medida em 33 que nela se contém elementos de amor e édio futuros; nao 6 ambivalente na medida em que nao existem ainda amor e édio como adversos (707). Uma necessidade intensa de obter satisfacao, sem consideracio do objeto (daf este poder ser destrufdo}, e uma necessidade intensa de destruir por édio um objeto n&o sfo a mesma coisa. Voltando ao estudo da percepgao, as diferengas que existem entre as percepcdes dos bebés ¢ dos adultos tém a conseqiéncia de eles viverem o mundo diferentemente. Observagdes feitas em psicéticos, que regrediram a modalidades.primitivas de percep¢do, confirmam o fato de que eles vivem © mundo de maneira mais vaga e menos diferenciada, Os objetos nao sao necessariamente distinguidos com nitidez uns dos outros, nem do ego, ou parte deste. As primeiras imagens so grandes em extensao, todas envolventes e inexatas, Nao consistem em elementos que venham a ajuntar-se, mas sim em unidades, totalidades, que s6 a seguir se reconhecem como contendo elemen- tos diversas, Nao s6 a percepeao ea motilidade sao inseparéveis, como também se sobrepdem as percepcdes de muitos érgaos dos sentidos, Sao os sentidos mais primitivos, sobretudo as sensagdes cinestésicas e os dados da sensibilidade profunda (propriocepcao), que prevalecer. Além da forma nas percepcées infantis, também sao diferentes os con- tetidos que se percebem. Herman chamou “percepgGes primarias” aquelas “que a crianga pequena possui, mas que vém a desaparecer posteriormente por motivos internos ou externos” (778). A natureza diversa desias percepgoes primérias deve-se em parte as caracter(sticas biolégicas da crianga, 8 qual o mundo se apresenta em perspectiva inteiramente outra pelo fato do seu ta- manho pequeno e da sua experiencia diferente do espaco (134, 147). Em sua maior parte, as caracteristicas da percepeSo arcaica resultam do seu carater “no objetivo”, da sua natureza emocional. O mundo é percebido de acordo com 05 instintos como fonte possivel de satisfagaio ou como ameaga possivel 0s desejos e temores instintivos falseiam a realidade. Uma percepgao mais obje- tiva pressupée certa distancia psicolégica entre 0 ego que percebe e os dados da percepcdo, um juizo relativo as fontes das senses experimentadas e, mais ainda, um jufzo correto, capacidade de aprendizagem diferencial, a0 passo que se sentem as experiéncias primitivas como ainda totalidades indiferenciadas, cuijo aparecimento se repete. O principio do prazer, ou seja, a necessidade de descarga imediata, no se compatibiliza com um juizo coreto, o qual se baseia na consideracdo € no adiamento da reagao. O tempo e a energia que 0 adia- mento poupa servem & funcao do juiza. Nos estadios iniciais, 0 ego fraco ainda n&o aprendeu a adiar coisa alguma (575) ONIPOTENCIA E AUTO-ESTIMA © ego primitivo, contrariamente ao ego mais diferenciado, é considerado fraco, isto é, impotente em relagao aos seus prdprios instintos, bem como em relagdo ao mundo exterior. J que, no entanto, ainda é incompleta a forma por que 0 ego se separa psicologicamente do mundo exterior, por engloba-lo todo ou partes respectivas dentro de si mesmo, acontece que o ego vem a sentir- se onipotente. Ferenczi falou de uma primeira onipoténcia ilimitada, a qual per- siste enquanto nao existe concepgao dos objetos; e é limitada depois pela ex- periéncia da excitag&o que nao pode sercontrolada e que conduz a movimentos 34 incoordenados. Quando estes s&io compreendidos pelo ambiente como sendo uum sinal que exige mudanga da situago, a crianga pode experimentar esta série de eventos como uma “onipoténcia de movimentos” (457). © ego nao se separa do mundo exterior de um momento para outro, mas, sim, mediante processo gradativo. E também, certamente, um processo heterogeneo, uma vez que os encontros formadores do ego com a realidade e com o corpo do individuo se passam em conexao com necessidades mtitiplas. O ego ulterior, por conseguinte, tem muitos “néeleos" (694, 695). Forma-se um ego final mediante integracao sintética destes ndcleos; em certos estédios de regresséio do ego, nota-se a fragmentacéo deste em seus nicleos originais. Sempre restam certos tragos da condig&o original anobjetal (878), ou, quando menos, © desejo dela (“‘sentimento oceanico”) (622). A introjecao representa tentativa no sentido de fazer que partes do mundo exterior fluam para dentro do ego. A projecdo, colocando no mundo exterior o que ha de sen- sagées desagradaveis, também se esforca por inverter a separacdo entre ego nao-ego. Ha um estédio do desenvolvimento em que tudo quanto @ desa- gradavel é considerado n&o-ego; e tudo que é agradavel se considera ego, 0 que Freud chamou ego prazeroso purificado (“Purifiziertes Lust-Ich”). O modo mais primitive pelo qualeliminar a dor seria “aluciné-la”, assim projetando-a para fora, modo que nao tarda a romper-se diante da realidade. O organismo jovem, entao tenta reunir os estimullos prazerosos ao ego e os estimulos desprazerosos 20 nao-ego. Na vida ulterior, manifestam-se tracos desta fase naquelas pessoas que, sem questionar, reconhecem quaisquer sensages’ corporais prazerosas como sendo realmente delas, mas recriminam os érgaos que déem como se no lhes pertencessem. Hé muitos outros tracos que persistem, partindo do mundo “transitivista, como ocorre, por exemplo, com a crianga que, brincando de esconder, fecha os olhos e pensa que no pode ser vista. A concepgaio anirmts- tica arcaica do mundo, que se baseia em confusao de ego e nao-ego, serve para ilustrar 0 que estamos dizendo; @ uma espécie de identificacao invertida. Per- cebe-se o mundo exterior como se tivesse as caracteristicas do ego, tal qual na identificagao priméria 0 ego se percebe como se tivesse as caracteristicas do ob- jeto (265, 712, 802) Quando certas experiéncias a obrigam & reniincia da crenca em sua conipoténcia, a crianca considera onipotentes os adultos, que j4 se tornaram in- dependentes; e tenta, mediante a introjecao, partilhar-lhes, desta vez, a oni- poténcia. HA sentimentos narcisisticos de bem-estar que se caracterizam pelo fato de que se sentem como reuniao a uma forga onipotente existente no mun- do exterior, fora que se obteve ou pela incorporacao de partes deste mundo, ou pela fantasia de que se @ por ele incorporado (“nareisismo secundario”) (608). © éxtase religioso, o patriotismo e outros sentimentds que se lhes as- semelham caracterizam-se pela participagao do ego nalguma coisa que esta jnatingivelmente alto. So muitos os fenémenos sociais que se enraizam na promessa feita pelos “onipotentes” de que os impotentes terao participagao pas- siva, desde que cumpram cerlas regras. As experiéncias do individuo que se ligam & onipoténcia conduzem a uma necessidade muito significativa da mente humana. O anseio pelo sentimento 35 ~p> oceanico do natzisismo primario pode ser chamado “a necessidade narcisfstica”. A “auto-estima” @ a consciéncia da proximidade a que o individuo esta da onipoténcia original (1238) Os modos primitivos por que a auto-estima se regula originam-se da cir- cunstancia de que o primeiro desejo de objétos tem o carater de desejo de eliminar o desprazer perturbador; e pela circunstancia de que a satisfacao pelo objeto elimina 0 préprio objeto e revive o estado narcisico. O desejo de recap- turar a onipoténcia e o desejo de eliminar a tensao instintiva ainda nao estao diferenciados entre si. Se o individuo consegue livrar-se de um estimulo de- sagradavel, restaura-se a auto-estima. A primeira provisio da satislacao que o mundo exterior da, isto é, a de alimento, @, do mesmo passo, o primeiro re- gulador da auto-estima A tendéncia & participagio na onipoténcia dos adultos, depois que se renuncia & propria, diferencia-se do desejo de satistacéio da fome. Todo sinal de amor que vern do adulto mais poderoso tem, entio, 0 mesmo efeito que a proviso de leite teve sobre 0 bebé. A crianga pequena perde a auto-estima quando perde amor e obtém-na quando recupera este tiltimo; é 0 que possibilita educaras criangas. Elas precisam tanto de provis6es de afeig&o que se dispéem prontamente a renunciar a outra satisfag&io, se se lhes prometem recompensas de afeig&o, ou se séo ameacadas de que se lhes retire afei¢ao. A promessa das necessarias provises narcisisticas de amor com a condig&o de obediéncia e a tetirada das mesmas provis6es no caso de aquela n&o se prestar séo as armas que servem a qualquer autoridade (427, 436) Mais adiante, as necessidades narcisisticas e sexuais diferenciam-se: as necessidades sexuais desenvolvem-se na relacio com os objetos; as natcisis- ticas, mais na relac&o entre ego e superego. Todo sentimento de culpa reduz a auto-estima; toda realizacgAo de ideais a eleva. Visto, contudo, que, como ocorre em todo desenvolvimento mental, 0 antigo e o primitivo subsistem por baixo do novo, assim também parte da relagdo com os objetos continua a ser governada pelas necessidades de auto-estima; ponto este que onde melhor se estuda é nas pessoas que esto fixadas neste nivel; elas precisam de provisao narcisistica que venhha de fora, a fim de manter a auto-estima. Dentre as pessoas assim, h4 inimeros subtipos: h4 0s agressivos, que querem conseguir pela forca as essencialidades que 0 mundo exterior mau tecusa; e ha aqueles tipos que procuram evitar a forca e, pelo contrario, tentam captar as provisdes essenciais submetendo-se e mostrando sofrimento. Ha muitas pessoas que experimentam ao mesmo tempo, um modo e outro, O fato de as necessidades eréticas e narcisisticas obrigarem a crianca a exigir afeicao, mais o carater imperativo deste desejo, permitem-nos falar num amor objetal passivo existente nas criangas pequenas. A crianga quer obter do objeto alguma coisa sem com coisa alguma retribuir. O objeto ainda nao é per sonalidade, e sim um instrumento com que prover satisfacao (73) Ao estadio de narcisismo primario, em que se sentia a onipoténcia e ainda nao constituia problema o controle segue-se, pois, um perfodo de controle receptivo-passivo, em que se superam as dificuldades influenciando os objetos extemos poderosos a que déem aquilo que é necessario. Sempre que os tipos ativos ulteriores de controle falharem ou nao permitirem esperanga alguma de éxito, o individuo sente forte a tentagao de regredir ao estado de controle pas- sivo-receptivo. 36 O DESENVOLVIMENTO DA MOTILIDADE E DO CONTROLE ATIVO Constitui processo longo e complicado o desenvolvimento do controle ative. Também é tarefa que o bebe humano sé aprende aos poucos o controle do aparelho motor, em conexAo constante com a maturacao do aparelho sen- sorial. Sob o ponto de vista psicolégico, atos gradativamente se vao substituindo a simples reagdes de descarga, o que se realiza mediante a interposicao de certo perfodo de tempo entre o estimulo e a reaco, quando o bebé adquire alguma tolerancia A tens&io, ou seja, a capacidade de segurar impulsos reativos primi- tivos por meio de contracatexias (575). O pré-tequisito de um ato é, a mais do controle do aparelho corporal, 0 desenvolvimento da fungao do juizo, isso sig nificando a capacidade de antecipar o futuro na imaginacao pelo juzo da realidade e pela experiéncia (de maneira ativa e em dosagem baixa), do que é capaz de acontecer ao individuo passivamente e em dosagem ignorada; tipo de funcionamenio este que caracteristica geral do ego. Aprender a andar, a ser asseado, a falar, sA0 os passos principais pelos quais se desenvolve o controle das fungdes motoras fisicas. O caminhar e 0 con- trole dos esfincteres constituem ovalicerce da independéncia da crianga, ca- pacidades estas que ajudam a desenvolver o principio do prazer (575) e a su- perar a dependéncia receptiva, bem como a necessidade de descarga imediata. A faculdade da fala altera as fungdes previsoras do ego; o estabelecimento de simbolos nominais para as coisas consolida a consciéncia e possibilita a ante- cipacao dos fatos no mundo modelar das palavras. A capacidade de julgar a realidade e a capacidade de suportar tensdes sao dois aspectos de uma e mesma faculdade. Dirigir as acSes respectivas segundo a necessidade externa significa saber preverriscos e lutar contra eles, ou evité-los. A ANGUSTIA O desamparo biolégico do bebé humano leva-o, necessariamente, a es- tados de alta tenso dolorosa, estados nos quais o organistno é inundado por quantidades de excitac&éo que lhe excedem a capacidade de controle: so chamados estados traumaticos (605). O sofrimento dos estados traumiticos inevitaveis dos primeiros anos de vida, ainda indiferenciados e, pois, ainda nao idénticos a afetos definidos ulteriores, representa a raiz comum de varios afetos futuros ¢, decerto, também da angistia. As sensagdes desta “angistia ptiméria” podem ser consideradas, de um lado, como a maneira pela qual a tens se faz sentir e, doutro lado, como a percepgao de descargas de emergén- cia vegetativas involuntérias (690, 993). Freud sugeriu que o ato de nascer tal- vez se pudesse considerar uma experiéncia em que se estabelece a sindrome desta angtistia priméria, porque notara que as sindromes aparentemente sem significacdo dos ataques histéricos so historicamente determinadas — ou seja, haviam sido intencionais em certa situacdo passada — e a sua hipétese baseou- se na idéia de que afetos normais tivessem origem histérica por forma andloga (596). E claro que esta angistia primatia nao é em absoluto criada pelo ego: é criada por estimulos extemos e internos, ainda incontrolados; na medida em que ela se experimenta como sentimento doloroso consciente, @ experimentada 37 passivamente, tal qual alguma coisa que ocorre ao ego ¢ tem de ser aturada (431, 714) Na vida ulterior, em pessoas que tém de suportar fatos traumaticos, cocorrem experiéncias que sao comparaveis angistia primaria, Os ataques incontrolaveis de angiistia esmagadora, que se sentem como alguma coisa tentvel a inundar uma personalidade desamparada, constituem sintoma tipico de neuroses traumaticas. Tipo semelhante de angistia se sente quando a ex- citacdo sexual (e talvez agressiva também) nao.se permite que siga seu curso normal. Dai ser provavel que a angfistia traumética ou panico seja, dinami- camente, a mesma coisa que a angfistia priméria: a forma pela qual uma in- suficiéncia de controle, (um estado de que se esta inundado de excitagao) pas- siva e automaticamente sentida. Quando a crianga aprende a controlar sua motilidade, atos intencionais pouco a pouco vao tomando o lugar das simples reacdes de descarga; a crianca J pode prolongar o tempo entre o estimulo e @ reagdo, com o que realiza certa iolerancia da tensao. A capacidade caracteristica de “ir tentando” que assim se adquire altera a relacdo do ego para com os seus afetos. Estes so, originalmen- te, sindromes de descargas arcaicas que suplantam os atos voluntarios em certas condigées excitantes. O ego em desenvolvimento jé aprende a “amansar” afetos a usd-los para os seus préprios fins intencionais (440). Isto também se aplica & anatistia (618) ‘Com a imaginac&o previsora, mais o planejamento resultante de atos ul- teriores adequados, forma-se a idéia de perigo. O ego julgador declara poder tornar-se traumética uma situagdo que ainda nao 0 &, juizo que (é evidente) cria condigdes semelhantes as que sao criadas pela prépria situagéio traumatica muito menos intensas, porém. Isto também 0 ego experimenta como angiis- tia, mas que diferenca entre este temor e 0 panico original! J4 nao @ ataque esmagador de angfistia, e sim temor mais ou menos moderado que se ex: perimenta e que se utiliza como sinal ou medida protetora. Esta angistia, por assim dizer, preve o que pode acontecer (618). Os componentes intencionais que se mostram na angtistia ante o perigo s&0 de creditar-se ao ego julgador, os componentes nao intencionais qual seja a possibilidade de paralisia, devem- se ao fato deo ego no produzir angistia, mas sé usé-la; nao tem meio melhor de que disponha (1485) Complicagio que ocore na angistia neurética se vera com fregiiencia nos capitulos a sequir. Ha vezes em que a expectativa do perigo, em lugar de precipitar o temor intencional que sirva para evitar 0 estado traumatico, precipita este estado mesmo. O juizo que o ego faz “Perigo a vista!” @ seguido de panico esmagador; o ego produziu algo que nao pode controlar. A tentativa de aman- sar a angiistia terd falhado; o panico selvagem original reaparece e esmaga 0 ego. Fo que se di quando o organismo se acha em estado de tensao que se pode dizer consistir em disposigao latente para o desenvolvimento de panico. Neste caso, o jufzo de perigo feito pelo ego atua como se fosse fésforo em bari] de pdlvora. A intencao de acender 0 fésforo como sinal falha porque liberta uma forca consideravel, incomparavelmente maior do que os poderes limitados da forca que tentou usar o fésforo (verpag. 123) O que determina 0 contetide das idéias de angtistia do ego primitivo s80, em parte, diretamente, a sua natureza biolégica; em parte, indiretamente, os seus modos animfsticos de pensar, pelos quais 0 ego acredita ter 0 seu ambiente ‘08 mesmos objetivos instintivos que ele préprio os tem (associados a poder 38 muito maior]. Nestes malentendidos animfsticos funciona a lei primitiva de taligo, segundo a qual todo ato pode ser desfeito (ou tem de ser punido) por um ato semelhante que se inflinge a quem o praticou. A mais fundamental das angtistias parece ligar-se a incapacidade fisio- légica do bebé de satisfazer ele préprio os seus impulsos. O primeiro temor é 0 temor (nao verbal) da experiéncia de estados traumAticos ulteriores. A idéia de que as exigéncias instintivas possam ser perigosas (o que constitui a base der- radeira de todas as psiconeuroses} esté neste temor enraizada. Entretanto, ndo quer isto dizer que seja 0 ego hostil aos impulsos instin- tivas desde 0 comeco mesmo, ou sempre recetoso de que aspiracSes demasiado intensas o invadam. Visto que o ego aprende a controlare a satisfazer, ativamente, 0s respectivos impulsos, nao haveria necessidade de produzir-se angiistia deste tipo uma ver realizada esta capacidade; os adultos normais, de fato, nfo temem os seus impulsos. Ha neuréticos que ainda tém medo da experiéncia da sua propria excitacao, quando menos seja se esta excede certa intensidade; mas n&o se dé isto pelo fato de uma “angistia priméria da intensidade da excitagao” (541), @ sim pela circunstancia de que outros tipos de angiistia os fizeram bloquear 0 curso natural das excitagdes, transformendo o prazer, secundaria mente, em desprazer intenso (431, 1522) (ver pag. 503 ¢ segs.) Vem def, mais cedo ou_mais tarde, o temor de que deixem de chegar meios externos de satisfacao. E 0 “medo da perda do amor”, ou antes, perda de ajuda e protegao; medo que é mais intenso do que seria, se apenas representas- se juizo racional de um perigo verdadeiro, porque a auto-estima dos primeiros tempos @ regulada mediante provisées externas, de modo que a perda da ajuda ¢ protecao também significa perda da auto-estima. Um ego que for amado sen- te-se forte; um ego abandonado é fraco ¢ esta exposto ao perigo. Um ego que & amado teme a possibilidade do abandono. © modo animistico de pensar e sentir complica as questdes. Se uma crian- ca fantasia que devora o seu ambiente e, depois, sofre uma repulsa, fantasiar& que os pais podem comé-lo; @ desta maneira que se oiginam as angiistias fan- tasticas de destruicao fisica. O que de forma mais importante representa este gtupo @ a angiistia de castrag&o, que, afinal, se transforma no motivo prin- cipal das atividades defensivas do ego (1417) As maneiras pelas quais 0 ego normal aprende a superar suas angtistias primitivas e ainda nao amansadas sao muito caracteristicas. Sempre que o inun- da uma quantidade muito grande de excitagao, 0 organismo tenta livrar-se dela mediante repeticbes ativas ulteriores da situagho que haja induzido a excitacso excessiva. E 0 que ocorre nas primeiras brincadeiras das criangas pequenas (605, 1522), tanto quanto nos sonhos delas (722). S6-h uma diferenca fun- damental entre a inundag&o original de excitacSo e estas repetiges: na ex- periéncia original, o organismo foi passive; nas repetigdes, ele é ativo, deter- minando 0 tempo e 0 grau da excitacao. De inicio, as experiéncias passivas que deram causa & angistia, a crianca as reproduz ativamente quando brinca, a fimn de realizar um controle que foi adiado. Mais tarde, ela no s6 dramatiza as experiéncias excitantes do passado, como também antecipa o que espera que aconteca no futuro. O uso do medo como sinal mais no é que um exemplo do uso’ intencional desta antecipacdo. Quando descobre que j& conseque superar sem medo uma situacéo que, antes, a teria esmagado de angiistia, a crianca experimenta certo tipo de 39 prazer, o qual tem a caracteristica de “Nao preciso mais sentir angustia”. Faz Gue a brincadeira da criana envolva as simples tentativas de descarga para co controle do mundo exterior mediante a pratica tepetida. O “prazer funcional’ @ prazer nao pela gratificacao de certo tipo ‘especifico de instinto (766, 767, 768), Mnas pelo fato de que o exercicio de uma fung&o j6 @ possivel sem angtistia (984). E o mesmo prazer que faz as criangas gostarem das repetigdes intermi- naveis da mesma brincadeira ou da mesma histéria, a qual tem de ser contada eyatamente com as mesmas palavras (1457) Sob o ponto de vista econdmico, pode-se explicar este prazer da seguinte forma: Um dispéndio de energia associa-se & angiistia ou @ expectativa te- eiosa sentida pela pessoa que n&o esté certa se conseguiré controlar uma ex- Jo esperada. A cessacdo stbita deste dispéndio acarreta a sua descarga aliviadora, a qual o ego bem sucedido experimenta como sendo um “triunfo” (436) e goza como prazer funcional. Em geral, o prazer que se origina desta fon- te condensa-se com um prazer erégeno, e este, por sua vez, foi possibilitado pela superacao da angiistia. Quando um adulto atira uma crianga para 0 alto & torna a apanhé-la, ela sente, sem diivida, de um lado, prazer erégeno em sen- sacSes de équilfbrio (e cutaneas); de outro lado, prazer que resulta da superagao. io medo de cair. Se tiver certeza de que nfo a deixardo cair, pode aprazer-se por ter pensado que podiam té-la largado; sobressalta-se um pouco, talvez, mas depois percebe a desnecessidade deste receio. Para possibilitar o prazer, & preciso que se cumpram condigées tranqbilizadoras: a crianca hé de ter confian- ca no adulto que com ela brinca e a altura nao sera excessiva; de modo que, com o tempo, se produz a aprendizagem pela pratica. Depois que a experien- cia repetida mostra ser infundado o temor, a crianca fica mais corajosa (423). ‘Quer a angstia, quer o prazer funcional cessam_ quando o ego esta segu- ro de si e J ndo mantém expectativa angustiante. Os adultos j4 n&o sentem prazet de espécie alguma quando se envolvem em atividades mais do que familiares e automiticas de que se orgulhavam quando pela primeira vez as realizaram, criangas (517, 530). Nos neuréticos, contudo, uma defesa patogénica pode perpetuar 0s te- mores infantis. As angtstias permanecem efetivas, quase todas bloqueando inteiramente as atividades “perigosas”; ha vezes, no entanto, em que também se repetem os modos de combatera angtistia; ¢ 0 ego pode experimentar “prazer funcional” na superagdo do medo mediante repetigoes da atividade que se teme (435) (ver pags. 480 e segs.). O PENSAMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO SENSO DA REALIDADE A capacidade de reconhecer, de amar e de temer a realidade desenvolve- se, em geral, antes da aprendizagem da fala: mas @ esta dltima faculdade que inieia um passo decisivo a frente no desenvolvimento da capacidade de ajuizar a realidade. As palavras facultam uma comunicagao mais precisa com os abjetos & também permitem précisar mais a antecipacao mediante atos experimentais, es- ta antecipac&o dos atos @ que vem a transformar-se em pensamento propria~ mente dito e que, alinal, consolida a consciéncia (590). Certo é que ja existira dma consciéncia sem palavras, possivel de observar posteriormente em estados regressivos sob a forma de “pensamento fantastico preconsciente” (1426, 1545, 40 1546, 1547}. Mais nao é, contudo, do que simples predecessor indiferenciado do pensamento, predecessor no qual-ainda se véem todas as caracteristicas do ego primitive, quais sejam,*o amplo alcance dos conceitos, as semelhancas tomadas por identidades, as partes por todos; e no qual os conceitos se ba- seiam em reagdes motoras comuns. Schilder mostrou que toda idéia singular antes de formular-se ter passado por um estado nao verbal anterior (1363) A aquisicgao da faculdade da fala, da compreensfio de que certos rufdos se usam para simbolizar coisas e da capacidade gradativa de usar racionalmente esta faculdade e esta compreensdo (252, 1452, 1453; cf. também 1450) re- presenta passo decisivo na formagao do ego. Os modos pelos quais 0 ego passa da integragao a diferenciagao, de unidades totais a elementos constituintes, do Ambito extenso a confins estreitos, pode-se investigar mediante os estudos dos fenémenos da afasia. Ligar palavras e idéias possibilita o pensamento propriamente dito. O ego ja tem armas melhores com que manipular o mundo exterior, bem como suas proprias excitacdes. E ai que esté o contetido racional da velha crenga magica de que se pode dominar aquilo que se pode nomear. A luta pelo controle dos impulsos instintivos sem dtivida que. poresta forma, acresce o desenvolvimento intelectual. Passa-se da fantasia emocional a uma realidade sdbria, ¢ esta va- tiacdo serve para combater a angtistia. Isto se distorce patologicamente quan- do a personalidade compulsiva foge de toda emogao para o mundo obscuro das palavras e conceitos (ver pég. 275). Os elevados interesses intelectuais que sur- gem na puberdade também servem para controlar a excitacao instintiva deste periode (541) A ctianga experimenta a realizagao da faculdade da fala como sendo a aquisigao de grande poder, aquisicao que transforma a “onipoténcia do pen- samento” em “onipoténcia das palavras” (457). A primeira fala da crianga é um encantamento que visa a obrigar 0 mundo extemo e o destino a fazer aquelas coisas que haviam sido conjuradas em palavras. Ha palavras que retém seu poder magico original; por exemplo, as palavras obscenas (451). pragas, fér- mulas solenes, ou a poesia O préprio pensamento é elaboragao e diferenciagao ulterior dos tipos mais Primitivos de juizo, o qual distinguia entre o que pode ser engolido e o que @ melhor cuspir; e, mais adiante, entre coisas inécuas e perigosas; a reacao, ainda aqui, adiada, adiamento este que ocorre mediante atuacao experimental; os movimentos necessérios ao ato planejado fazem-se em pequena escala, com o que aquilo que se planeja e as conseqiténcias respectivas s40 “provadas”. A psicologia experimental tem demonstrado atos musculares que acompanham o pensamento (482, 776). © principio operante do ego consiste, em gerat, num retardamento das fungdes automaticas do id, o que possibilita o uso intencional e organizado da- quelas fungdes. Da mesma forma que a angtistia primaria vem a ser “aman- sada” e reduzida a “sinal de angtistia”, assim também 0 ego, no processo do pensamento, amansa duas reacdes arcaicas automaticas: o impulso & descarga de tensdes, que @ suavizado, e a tendéncia ao cumprimento alucinatério de desejos, que se reduz & imaginacao dos fatos perspectivos e, posteriormente. des simbolos abstratos destes tiltimos. Tal qual o amansamento da angiistia pode falhar e o sinal pode iniciar a recorréncia do panico primério, as tendéncias descarga podem reaparecer no pensamento. Se as pessoas estio cansadas, adormecidas, embriagadas, ou 41 psicéticas, pensam de maneira diferente e mais primitiva; e até nas pessoas sadias, que pensam corretamente, quando est&o completamente despertas, ca- da idéia singular passa por fases iniciais que tem mais semelhanca com o pen- samento onirico que com a légica (1363). As caracterssticas deste pensamento emocional pré-ldgico tém sido pormenorizadamente investigadas por psic6logos quer analfticos, quernao analiticos (1545, 1546, 1547). Ajusta-se menos ao juizo 0 objetivo daquilo que vai ocorrer pelo fato de ser relativamente desorga- tizado; tolera e condensa contradigces e é governado por emogdes; def, cheio de falsas-concepcdes, contaminadas de desejos e temores. Este pensamento, conforme o proceso primario, parece dirigir-se apenas pela aspiracao a descar- ga e distancia-se muito de qualquer logica; mas é pensamento, por que est for- mado de imaginacées, segundo as quais se praticam atos posteriores; e faz-se com energia reduzida. Realiza-se mais por meio de imagens pictoriais, con- cretas, a0 passo que o processo secundario mais se baseia em palavras. A re- traducio das palavras em figuras nos sonhos e na fadiga @ bem conhecida. O pensamento pictorial pré-consciente é do tipo pensamento magico (916, 1047). 0 objeto ¢ a idéia do objeto, o objeto e uma figura out modelo do objeto, 0 ob- jeto e uma parte do objeto so igualizados; no se distinguem semelhancas de identidades: ego e ndo-ego nao estéo ainda separados (1104). O que se passa com os objetos pode (por identificagéo) ser experimentado como se pasando com 6 ego; e 0 que OCorte com o ego faz que a mesma coisa ocorra com 0 ob- jeto, “transitivismo” que possibilita a técnica dos “gestos mAgicos”: fazendo um gesto, a pessoa obriga outra a repeti-lo. Se alguém se sente envergonhado, olha para os lados ou tapa os olhos coma mao, 0 que quer dizer: “Ninguém deve olhar para mim.” As criangas pensam que nao podem ser vistas quando no podem ver. Certa crianga pensava que, quando ‘© maquinista fechava os olhos, trem estava passando por um ténel. Outra caracteristica estranha do pensamento arcaico é representada pelo simbolismo. Nos adultos, uma idéia consciente pode servir de simbolo para o fim de ocultar uma idéia inconsciente inconveniente; a idéia de um pénis sera representada por uma cobra, um macaco, um chapéu, um avido, se a idéia de pénis forinconveniente. O simbolo é consciente; a idéia simbolizada, inconscien- te. A idéia clara de penis fora apreendida, porém rejeitada. O pensamento sim- bilico, contudo, é vago, dirigido pelo processo primario. Nao é apenas um meio de distorcao: é também parte do pensamento pré-légico primitivo. Ainda aqui, a censura do ego serve-se de meios regressivos; ainda aqui, distorcendo mediante ‘0 simbolismo, o ego utiliza, em suas atividades defensivas, mecanismos que ja haviam operado automaticamente sem inten¢ao alguma. O uso dos simbolos representa regresso a estadio primario (mais antigo) do pensamento, regresso mediante o qual se produzem distorcdes pretendidas. Nos sonhos, aparecem os simbolos com os dois aspectos: como instrumento da censura onfrica e também como caracieristica do pensamento pictorial arcaico, como parte da visualizagao de idéias abstratas (552, 596). ‘A natureza regressiva das distorcdes simbélicas explica dois fatos: (a) que ‘os simbolos, constituindo residuo de um modo arcaico de perceber 0 mundo, sejam comuns a todos os entes humanos, como as sindromes afetivas; (b) que 0 pensamento simbélico ocorra tanto nas ocasides em que se tem de fazer distor- ‘Ges, quanto nos estados de fadiga, sono, psicose e, de modo geral, na primeira 42 infancia, ou seja, em todos os estados nos quais se situam em primeiro plano as caractersticas do ego arcaico. Silberer, quando explicou o simbolismo como “insuficiéncia aperceptiva do ego” (1427, 1428, 1429. 1430), teve razao, decerto, embora nao se possa aceitar-Ihe a classificagao superficial dos simbolos conforme a causa desta in- suficiéncia. Jones nao convence quando diz que fazer o simbolismo remontar & insuficiéncia de apercepcao @ a mesma coisa que atribuir ao cansa¢o os lapsos de lingua (882). Os lapsos de lingua nao sao parte essencial do estado de fadiga (apenas sao por ele precipitados), ao passo que experimentar o mundo em sim- bolos é parte essencial do pensamento arcaico com apercepcao insuficiente. En- tretanto, nao séo a mesma coisa o simbolismo arcaico como parte do pensa- mento pré-légico e a distorcao que se produz pela representacao de certa idéia reprimida mediante um simbolo consciente. De um lado, na distorgao, evita-se a idéia do pénis disfargando-a com a idéia de cobra; de outro lado, no pensamento pré-[égico, pénis e cobra séo uma coisa 6, a mesma coisa; quer dizer, sfo per- cebidos por uma concepgao comum: a vista da cobra provoca emogdes pe- nianas, fato este que vem a ser utilizado quando a idéia consciente de cobra substitui a idéia inconsciente de pénis. O simbolismo primitivo faz parte do mecanismo pelo qual as concepgées se formam no pensamento pré-légico: a compreensao do mundo irradia a partir das exigéncias e temores instintivos, de modo que os primeiros objetos céns- tituem meios possiveis de gratificagao ou possiveis ameacas; os estimulos que provocam as mesmas reades so considerados idénticos; e as primeiras idéias nao sao somas edificadas com base em elementos distintos, e sim totalidades que se abrangem de maneira ainda indiferenciada, unidas pelas respostas emocionais que desencadearam. Bastam estas caracteristicas para explicar alguns dentre os simbolos co- muns, a saber, os simbolos que se baseiam na semelhanca, na parte pelo todo, ou na identidade das respostas provocadas; porexemplo, ferramentas = pénis, concha = vagina; mas também partida = morte, montar a cavalo = relacdes sexuais, rei = pai. Ha outros casos em que a semelhanga das reacdes provoca- das nao é evidente, mas se vé pela anélise exata das experiéncias emocionais da crianga (460). Da mesma forma a equacao simbélica dinheiro = fezes se ex- plica (ver pag. 262). Hé, contudo, outros casos ainda em que a conexo entre o simbolo e aquilo que é simbolizado nao se compreende. As criancas que so- nham com aranhas e estéo pensando em mies cruéis (23) nada sabem das caracteristicas sexuais das aranhas. Acreditava Ferenczi que a reag&o de_nojo em relacdo aos répteis contivesse uma espécie de recordaco filogenética (497) ¢ Freud, neste particular, inclinou-se a especular no mesmo sentido (632). A questao ainda tem de continuar aberta. O tato de opensamento primitive nao concordar com a realidade, mas de ter todas as feigdes arcaicas e magicas que se tém descrito pode servir de ob- jecdo A afirmacao de que ele também 6 “preparacio” e tentativa de dominio da realidade. Em todo caso, a inadequacaio deste tipo de pensamento n&o con- tradiz 0 fato de que é relativamente mais adequado do que a descarga imediata @ as alucinagdes que realizam desejos. Esta antecipaco, contudo, vem a ser muitissimo mais adequada pelo desenvolvimento das palavras. A faculdade da fala transforma este pré-pen- samento em pensamento ldgico, organizado, mais ajustado, o qual segue o 43 processo secundétio. Representa, portanto, passo decisive para a diferenciagao final de consciente e inconsciente e para o princfpio da realidade (575, 590) No entanto, mesmo depois de se estabelecerem a fala, a légica € o prin- Gipio da realidade, vemos que ainda opera o pensamento pré-légico; exceden- do até o papel que desempenha nos estados de regressdo do ego, ou como for- ma de distorg&o intencional. E verdade que j& nao preenche mais a fungao de preparar para atos futuros, mas se transforma, a bem dizer, em substituto da Tealidade desagradével As primeiras idéias dos objetos formaram-se quando deixou de estar pre- sente uma gratificacao recordada. Elas constitufram tanto substitutos do objeto verdadeiro ausente quanto tentativas de dominar magicamente o objeto ver- dadeiro. O pensamento primitivo tentou controlar 0 objeto de maneira magica (a qual, ao tempo, se acreditava fosse real). O tipo secundario de pensamento luta pelo seu controle de maneira real, mas esta falhando, quando a realidade & por demas desagradavel ou quando nao se consegue influencié-la, regride-se & maneira magica. Na crianga de mais idade e no adulto, os dois tipos de pen- samento tém duas funcées diferentes: de preparacao para a realidade (ante- cipacdo do que é provavel) e de substituiggo & realidade (antecipacao do que é desejével) Esta coordenac&o de tipos de pensamento com fungées diferentes s6 em geral é que é vélida. Na pratica, existem certos modos pelos quais se retorna do sonho acordado a realidade (arte) ou, bem assim, pelos quais se usa o pen- samento verbalizado para fugir 4 realidade (pensamento compulsivo). Na medida em que ato algum se lhe segue o pensamento é a chamada fantasia. Existem dois tipos de fantasia: a fantasia criativa, a qual prepara algum ato posterior, e o sonho acordado, reftigio para desejos que nao se podem satis- fazer. Aquela, enraizada no inconsciente, inicia-se também, decerto, no proces- $0 primétio e na imaginag&o, mas desenvolve-se a partir desta esfera. Este (0 sonho acordado) vem a tornar-se substituto real do ato no estado de “introver- s0”, quando os “pequenos” movimentos que acompanham a fantasia se tor- nam tAo intensos que produzem descarga. Tem-se discutido o problema seguin- te: As brincadeiras militares, na meninice, aumentam ou diminuem as tendén- cias agressivas? Ser4 que a fantasia estimula o desejo a ponto de a tendéncia a realizar idéias fantasiadas aumentar, ou sera que a fantasia canaliza o desejo, de modo que aquilo que se satisfez brincando j4 nao precisa de satisfagao verda- deira? £ evidente a resposta no caso das fantasias sexuais. Se um homem mais nao faz do que antecipar na fantasia relagdes sexuais futuras a tensao e o desejo de realizagéo aumentam; mas se as fantasias o estimulam a que se’ masturbe, diminiu a tendéncia; ou cessa. Uma fantasia preparatéria ter4 regredido ao tipo substitutivo. Os neuréticos sio pessoas cujos atos reais sofrem bloqueio. Ha duas for- mas pelas quais se exprime este bloqueio. Duas formas que muito bem demons- tram a diferenca entre 0 sonho acordado pictorial magico e o pensamento preparatério abstrato. O tipo histérico regride do ato ao sonho acordado aver- bal: os seus sintomas de converséo substituem os atos. O tipo compulsivo re- gride do ato & preparagao para o ato mediante palavras; o seu pensamento é uma espécie de preparagao eterna para atos que nunca se praticam. Seria, talvez, de esperar que o individuo permanecesse em contato direto coma realidade na medida em que o seu pensamento permanecesse concreto, mas @ que este pensamento deixa de servir como preparacdo de atos reais 44 quando se toma demasiado abstrato, quando opera com sofismas e classif- cagées, em vez de simbolos dos objetos. Isto é certo, mas s6 até certo ponto. A natureza pictorial dos elementos de certas idéias “concretas” € capaz de iniciar sonhos acordados, em vez de pensamento preparatério. O pensamento légico pressupde um ego forte, capaz de adiar, de tolerar tenses, um ego rico em contracatexias e disposto a julgar a realidade conforme a sua experiéncia. Fraco que esteja 0 ego, cansado, adormecido, sem confianca na sua propria capacidade, desejoso de um tipo receptivo de controle, neste caso 0 tipo pictorial de pensamento atrai mais do que a inteligéncia objetiva. E facil compreender que quem esté fatigado prefira um filme a Shakespeare, uma revista ilustrada a qualquer leitura dificil; que quem esté insatisfeito, sem pos- sibilidade alguma de influenciar ativamente a situacdo, procure mais ilustracbes nos jornais ou mais historinhas cOmicas do que questées intelectuais dificeis. Sempre que a realidade se torna desagradével, procuram-se substitutos mais pictoriais do sonho acordado. DEFESAS CONTRA OS IMPULSOS Até agora, o principio da realidade apresentou-se como sendo a capa- cidade de adiar as reagées finais. Certas reagdes existem, contudo, que nao s6 tém de ser adiadas, como até cerceadas ou restringidas de maneira mais ou menos permanente. Do mesmo passo, aumentando o controle da motilidade — quer dizer, os simples movimentos de descarga transformando-se em atos — tambérh se desenvolve um aparelho n&o descarregative, um aparelho de de- fesa, o ego aprendendo a conter impulsos quer perigosos, quer inadequados. Os mecanismos que primeiro se usaram contra estimulos extemos dolorosos vém, entao, @ voltar-se contra os impulsos internos. O ego quer satisfacao, mas afigura-se paradoxal que ele, freqtientemente, se volte contra as suas proprias exigéncias instintivas. Jé se falou nas causas que produzem paradoxo desta ordem; e sio: 1. O fato biolégico de que 0 bebé nao pode controlar o seu aparelho motor e de que, pois, precisa de ajuda externa que lhe satisfaga as exigéncias instintivas leva a que ele se envolva em situagées traumaticas, visto que o mun- do exterior nem sempre esta disponivel. O desaparecimento temporério dos ob- jetos primérios tem por si mesmo efeito traumatico, porque os anseios amorosos da crianga se véem privados da possibilidade de descarga. A recordagac de ex- periéncias dolorosas desta ordem conduz & primeira impressao de que as ex- citagées instintivas s4o capazes de constituir fonte de perigo. 2. As ameagas e impedimentos que vém do mundo exterior criam medo dos atos instintivos e conseqiiéncias respectivas; as influéncias externas desta ordem podem ser de dois tipos ligeiramente diversos: (a) influéncias objetivas e naturais: 0 fogo queimaré a crianga que pegar nele instintivamente; ou (b) os perigos podem ser produzidos artificialmente por medidas educativas. Queren- do ou naovos adultos dao as criangas a impresséo de que o comportamento ins- tintivo @ censuravel e de que a abstinéncia é louvavel; impresses cujo efeito resulta tanto da forca fisica real dos adultos quanto da dependéncia de afei¢&o com que a crianca ganha a sua auto-estima. 3. Os perigos temidos podem ser de todo fantasticos na medida em que a crianca interpreta falseadamente o mundo “pela projecao”. A violencia dos seus 45 préprios impulsos reprimidos é projetada e faz a crianga esperar castigos drés- ficos; 0 castigo esperado é dano retaliatério as partes “pecaminosas” do corpo. ‘4. Posteriormente, quarto fator se forma pela dependéncia do ego em relacdo a0 superego, o qual representante intrapsiquico do mundo extemo objetivo, educativo e, pela projecao, falso-compreendido; quarto fator que transforma a angfistia em sentimento de culpa. Este esboco sistemético responde ao problema que consiste em saber de ue modo se originam as forgas que sao hostis & descarga dos impulsos instin- tivos. OUTRAS OBSERVACOES SOBRE A ADAPTACAO E O SENSO DA REALIDADE Na verdade, a psicandlise tem mais profundamente estudado o aspecto defensivo do ego do que o desenvolvimento das suas forgas positivas (726). En- trelagam-se, contudo, interligam-se as idéias de defesa e de adaptacéo, esta ltima significando, em sentido dinamico, a descoberta de solugdes comuns para as tarefas que so representadas por impulsos intemnos e estimulos extemos (inibidores e ameagadores). Em ensaio muito interessante, Hartmann tentou mostrar que a psicanilise tem estudado a adaptaco com énfase demasiada no ponto de vista dos con- flitos mensais. Este autor salienta existir também uma “esfera sem conflito”, que se origina, é verdade, em antitese entre organismo ¢ ambiente (750). Pela importincia que tém estas antiteses, a expressdo “esfera sem conflito” leva a confusio, dando a impressao de tender para um ponto de vista adina- mico. A maturacéo do ego resulta de entrejogo continuo entre as necessidades do organismo e as influancias ambientais. E certo que os tipos ativos de controle s&0 processos mais complicados, muitos de cujos pormenores ainda resta inves- tigar; quanto, porém, ao principal, entende-se de que modo a percepcdo e a motilidade se desenvolvem em conexao com as necessidades instintivas e com as funcées do juizo e do pensamento (1176). Campo em que o estudo da adaptacio se apresenta particularmente proveitoso é a psicologia da vontade ou do desejo. As necessidades biolégicas se moldam e se modificam pelas avaliagdes do ego (ou sob a influéncia do superego); e um dos.pontos que a psicanélise clarifica €, justamente, o modo pelo qual estas modificagoes ocomem, a forma por que se crlam valores sub- jetivos, através da influéncia de sistemas de valores que a tradicéo oferece. Tanto 0s fatores constitucionais quanto a experiéncia determinam a que ponto tem éxito o desenvolvimento do senso da realidade, a que ponto o mun- do primério, vago, magico, temeroso, baseado em projecées ¢ introjecdes se transforma em mundo objetivamente julgado “real”, mundo a que reagem as forcas aloplasticas do individuo e que nao é influenciado por esperangas, nem medos; a que ponte persistem as formas antigas. E o que nunea se realiza in- teiramente. A realidade objetiva é experimentada diferentemente por individuos diferentes, e foi nisso que pensou Laforgue quando falou na relatividade da realidade (1003, 004). Nos neuréticos, todos os juizos errados da realidade e toda a incapacidade de aprendizagem diferencial (do que resulta que os acon- tecimentos exteriores séo experimentados como repetigées de uns tantos modelos apenas, caracterfsticos do ego arcéico) voltam a aparecer. 46 Por tras de todos os tipos ativos de controle das tarefas externas ¢ intemas subsiste uma disposigao a regredir a tipos receptivo-passivos, disposigao cuja in- tensidade difere muito de individuo para individuo, como difere em condigdes culturais diversas Kardiner acentuou, em seus primeiros promissores escritos (918, 919. 920}, a significacao sociolégica dos tipos de controle que varias instituigoes his- toricamente determinadas estimulam ou desestimulam. Posteriormente, con- tudo, sentiu que 2 determinacao social da predominancia de certos tipos de ego, em certas culturas, era incompativel com as idéias de Freud sobre os instintos (921) desenvolvimento do ego e do id nao se da separadamente, mas se en- trelaca, um influenciando o outro. Antes, no entanto, de descrever odesenvol- vimento do id, temos de discutir dois conceitos fundamentalmente importantes para a psicologia das neuroses: a fixagao e a regressao. No desenvolvimento mental, ainda persistem niveis mais antigos, junta- mente ou porbaixo de niveis mais altos, fenémeno que se faz mais transparente pela influencia de fatores constitucionais ou experiénciais. Nas fixaoes ou nas regress6es do ego, um nivel de desenvolvimento mais antigo persiste ou retor na, 0 que pode ter varios significados. Pode relacionar-se com fungées isoladas do ego, que retém ou reassumem certas feiges de uma fase mais primitiva Neste sentido, os tipas eidéticos podem considerar-se fixacdes da percepcao. O pensemento pode ter retido um caréter mais mAgico de que nas pessoas nor- mais, tal qual ocorre com 05 neuréticos compulsivos, nos quais se vé um intelec- to precocemente superdesenvolvido associado a supersti¢des e crencas incons- cientes na onipotncia e na lei da retaliagao. As relacdes com os objetos mos- tram, as vezes, feicées primitivas. Pode haver fixacées nos niveis primitives de amor, com aspiracoes de incorporagao, ou nos tipos de regulagao da avto-es- tima que caracterizam as criangas pequenas. Enfim, a fixacio do ego limita-sé em certos casos, a0 uso reiterado de tipos espectficos de defesa (429) (ver péas 485 e segs.) 5 O Desenvolvimento Psiquico Inicial (Continuagdo); Desenvolvimento dos Instintos, Sexualidade Infantil QUE SAO OS INSTINTOS? Freud sugeriu que se distinguissem dois tipos de excitagao: uma que & evocada por estimulos externas, perceptivos, descontinuos: outra que resulta de estimulos instintivos contintios, dentro do organismo (971) A assertiva deve, contudo, ser considerada com mais pormenores. Todas as percepcées, tados os estimulos sensoriais, quer se originem fora, quer se originem dentro do organismo, tém “caréter provocative”, isto , provocam cer- to impulso 8 acdo. Nos tips areaicos de percepcdo, esta .conexao com a motilidade, conforme jé se indicou, é mais nitida do que vern a ser mais tarde. A intensidade do impulso varia de acordo com as variagdes do estado fisico do corpo. A comida varia de significado para 0 individuo, conforme esteja faminto ou farto: 6 mesmo se diga dos estimulos sexuais. Sao s6 as condicées fisicas a determinar 0 impulso, a quimica do corpo, e nao os estimulos sensoriais que se podem considerar com raz4o as fontes dos instintos. Certo impulso a aco resul- ta de toda percep¢ao, quer interna, quer externa; e em condi¢des somaticas es- pecificas estes impulsos assumem o caréter de impulsos instintivos urgentes (1023, 1024) A primeira vista, encontram-se muitas apresentagdes contraditérias da es- séncia dos instintos, tanto nos escritos de Freud quanto na literatura psicanalitica em geral. Em primeiro lugar, explica-se o instinto como sendo “a medida da exigéncia que é feita 8 mente em conseqiiéncia da sua conexdo com o corpo (588); um estado urgente de tensdo, quimicamente causado e manifestado por um estimulo sensorial, que deve ser descarregado. Este conceit é muito esclare- cedor porque se ajusta ao modelo reflexo como base de todas as fun¢des men- ais; sem diivida foi este mesmo conceito dos instintos que permitiu A psica- nalise assentar em base biol6gica (555). Na mesma passagem, Freud chama ins- tinto “um conceito fronteirigo entre o mental e o fisico” (588); os fendmenos dos instintos podem considetar-se sob o aspecto fisico, mediante 0 exame da fonte do instinto, ou podem considerar-se sob 0 aspecto menial pelo exame do impul- so € pelos fenémehos psicolégicos resultantes. Noutra passagem, os instintos sao chamados “forgas misticas”, cuja modalidade operativa nés investigamos sem saber coisa alguma a respeito da existéncia das mesmas (628), E o que parece estranho, dado que a psicanilise tenta eliminar tudo quanto é@ mistico. O que se quer dizer & que nés temos consciéncia da experiéncia de impulsos e atos instintivos, nunca, porém, do “instinto”. O que constitui aunidade de “certo ins- tinto” muito discutivel. A definigéo ha de variar conforme a classificagao que s2 aplique, isto é, conforme se tome para critério principal a finalidade, 0 objeto ‘ou a fonte; conceites que precisamos, pois, definir. ‘A finalidade do instinto 6 a sua satisfagao, ou, com mais preciséo, 0 ato de descarga muito especifico que faz cessar a condic&o fisica de excitagao e, assim, produz a satisfagao. O objeto de um instinto é aquele instrumento pelo qual ou mediante 0 qual o instinto consegue atirigir a sua finalidade. A fonte de um ins- tinto 6 0 estado quimico-fisico que faz que um estimulo sensorial produza ex- citacgo (688). Que instintos se hao de distinguir e quantos: depende da escolha da finalidade, do objeto, ou da fonte como base da classificagao. Em fungao de finalidade ou de objeto, é possivel descrever uma infinidade de instintos, mas os psicanalistas sabem com que faciidade s80 permutévels os objetos ¢ as final: Hades, (Este proprio fato mostra que é paradoxal airibuir a Freud a opiniao de que 0s “instintos” representam modelos rigidos, absolutamente imutéveis (1105). Assim @ que uma classificagao conforme a fonte seria de preferir-se, mas, infelizmente, a esta altura, a fisiologia desaponta-nos: as fontes instintivas 50 problemas puramente fisiolégicos e neste terreno nosso conhecimento @ Binds insuficiente. Malgrado esta deficiéncia, podem discernir-se com nitidez duas categorias. A primeira categoria representada por certas necessidades fisicas simples, as quais, alias, constituem o melhor modelo de curso de um instinto: as alte- ragdes somaticas causam certas experiéncias sensoriais urgentes; © impulso precipita um ato especifico, ¢ este elimina a alteragao somética, daf 0 relaxa mento. O carater impulsivo torna-se claramente visivel quando o curso normal @ Obstado., Exemplos: a respiragao, a fome, a sede, 2 defecagao, a micya0. Ja que a ‘satisfacdo destes impulsos é vital, os atos 6 podem ser adiados por espaco breve de tempo e nao é possivel alterar-Ihes as finalidades. Daf resulta que quase nao existe variabilidade nestas necessidades, qye tem importancie relativamente insignificante para a psicologia. A presuncgéo de que é o abaixa- Tmento do nivel de excitagdo (relaxamento) que 0 ego experimenta como prazer pode verificar-se com facilidade nestes instintos, Foi somente a pesquisa psicanalitica (555) que possibilitou o reconheci- mento do sequndo grupo como unidade coesa. E 0 grupo dos instintos sexuais, 05 quais, contrapondo-se aos instintos imperativos acima discutidos, nao encon- trando gratificagao final na sua forma original, tém a capacidade de mudar, de alterar os seus objetos ou finalidades, ou de sujeitar-se & repressdo pelo ego e, depois, tornar a aparecer de varias formas e com disfarces diferentes. Ainda se Suve a recriminagao amplamente divulgada de que Freud tudo explica como Sexual: recriminacdo sem base alguma, pois que Freud reconhece outros instin- tos além dos sexuais. Certo @, no entanto, que Freud explica como sexuais muitos fendmenos que nao se haviam reconhecido, até ent&o, como ligados & sexualidade (em particular, as neuroses); reconhece que a sexualidade humana nao se limita em absoluto aos impulsos e atos que conduzem, mais ou menos diretamente, ao contato’ sexual; reconhece © campo da sexualidade infantil (5507 551, 552, 555). * ‘Sabe-se, goralmente, hoje em dia, que as criancas exibem intimeros tipos de comportamento instintivo cujo contetido é idéntico aos impulsos que, nos in- dividuos perversos, substituem a sexualidade normal. Alias, é dificil observar as 50 criangas sem ver manifestacdes desta ordem. Por conseguinte, no momento, achamos menos adequado formular a pergunta: “Existe sexualidade infantil” do que indagar: “Como foi possfvel fendmeno tao evidente como a sexualidade in- fantil passar despercebido antes de Freud?” E omissio impressionante que cons~ titui exemplo dos melhores da “repressac” Por que foi que Freud chainou “sexuais” estes fenémenos infantis? Em primeito lugar, porque constituem o solo native de que vir a desenvolver-se a sexualidade do adulto; em segundo luger, porque todo adulto que for blo- aueado, seja de que forma for. sua sexualidade regride a sexualidade infantil como substituto; terceiro, porque a crianga- experimenta a sua sexualidade com as mesmas emogées que o adulto sente para com a prépria; quarto, porque as alidades destes impulsos so idénticas as que se observam nas perversdes adultas, e ninguém jamais duvidou que as perversdes fossem outra coisa senao sexuais. Provavel é que os instintos sexuais tenham base quimica comum. O estudo dos horménios tem-nos ensinado coisas relativas as fontes da sexualidade, nao obstante © que os conhecimentos atuais pouco satisfazem. As alteragdes quf- micas que se produzem no corpo induzem estimulos sensoriais nas zonas erégenas, acarretando impulsos de carater particularmente urgente e exigindo atos que levam a alterages no local da estimulacao. A base fisiologica dos im- pulsos sexuais compara-se as ocorréncias fisiologicas que certas sensagGes como 9 prurido e a cécega despertam. As mordeduras de insetos, bem como certas condigées fisiolégicas intemas produzem alteragées quimicas que geram esti- mulos sensoriais cuténeos, estes, por sua vez. criando sentimentos de tipo par- ticularmente urgente; desperta-se o impulso @ amanhar e o arranhar acaba levando a uma alteracao na fonte. Embora, contudo, o arranhar produza afluxo de sangue & area pruriginosa. tem-se a impressao de que represente remanescente de reflexo biolégico muito mais profundo, reflexo que também é basicamiente importante para as descargas sexuais: 0 teflexo de livrar-se de 6rgaos que crlam sensacées desagradéveis. Ten- dencia biolégica que se mostra plenamente na autonomia da cauda dos lagartos. Mais tarde, este reflexo pode degenerar na idéia de “jogar fora arranhando” uma area pruriginosa da pele e também (talvez) na idéia da descarga “detumescente” da tenséo sexual (1242). A avaliagao do conceito de autonomia mostra ‘a relati- vidade do contraste que existe entre satisfacdo de um instinto e defesa contra ele; 0 reflexo auténomo serd raiz comum para ambos, tanto para o ato instintivo quanto para a defesa contra o mesmo. Ultetiormente, os fenémenos sexuais complicam-se muito mais, per- manecendo, porém. em Giltima anélise, dentro da mesma moldura de mecanis- mos operacionais. Na puberdade, os diversos impulsos da sexualidade infantil fundem-se em totalidade harmoniosa: a sexualidade do adulto. Este desenvol- vimento, entretanto, € capaz de sofrer uma série de transtomos. As angistias ¢ outras experiéncias da crianca podem fazer que componentes singulares resis- tam a fusao. Em particular, 05 componentes reprimidos da sexualidade infantil persistem no inconsciente, inalterados. Quando vem a experimentar desapon- tamento sexual ulterior, o adulto tende a regredir & sexualidade infantil, dat resultando que o conflito que agitava a sexualidade infantil provavelmente tor- ngu a mobilizar-se. Sl CLASSIFICACAO DOS INSTINTOS © papel excepcional que © deslocamento da energia d4 aos instintos sexuais foi o ponto de que Freud partiu na sua primeira classificagao dos instin- fos. pelo fato de haver notado que os neuréticos se sentiam mal porque. 1e- primiam certas experiéncias e porque estas experiéncias sempre representayam desejos sexuais. As forgas que combatiam os desejos sexuais eram a angéistia, os sentimentos de culpa, ou ideais éticos e estéticos da personalidade; forgas es- tas contra-sexuais que se podiam sumarizar como “instintos do ego”, visto ser- virem 3 auto-conservagao. Assim foi que @ primeira classificagao dos instintos, distinguindo “instintos sexuais” e “instintos do ego” (542. 548, 555, 596), se Supds representasse 0 conflito neurético, ou seja, 0 fato da repressao. Quando Jung negou este dualismo dos instintos e quis chamar libidinais todos os instintos do ego (907). a unificacao por ele tentada tentou obscurecer, aquela altura, 0 fato recém-descoberto da repressdo (364) Hoje em dia, nao se concebe a represséo como conflito entre dois grupos de instintos: 0 conflito, a bem dizer, é estrutural. O ego rejeita, certas exigencias do id: ¢, com base no conceito de ser o ego uma camada superficial diferenciada Go id. jf nao se pode sustentar a esperanga de que 0 ego abrigue, inatamente, outros inslintos que nao estejam presentes no id. Ainda que as energias instin- tivas sejam tratadas no ego de modo diverso do que 0 séo no id, ha de admitir- se que © ego deriva a sua energia do id, nao contendo, primariamente, outros tipos de instintos A critica da primeira classificacao dos instintos surgi da descoberta do nar- cisismo, isto @, do cardter libidinal de certos desejos instintivos, os quais, ate o momento, se haviam atribuidos aos instintos do ego. Parte do “egoismo”, da ele~ vada valoracao que se faz do proprio ego viu-se que vinha a ser da mesma na- tureza que 08 instintos sexuais com que se amam os objetos: € o que se vé cla- to no deslocamento da energia do ego para os objetos externos e vice-versa. A soma de interesse que se volta para o ego de uma pessoa e para objetos exte riores &, para um tempo dado. constante. Aquele que se ama mais tem menos Interesse pelos cbjetos externos e vice-versa (585). Freud comparou o homem. no tocante & libido, como uma ameba capaz de emitir pseudépodos, original. mente concentrados na sua substancia corporal mesma, para o mundo exterior e, depois, tomar a retrat-los (5855) E nesta canformidade que se aplicam as designacdes libido do ego e libido do objeto (ou libido objetal). Nao existe, con- tudo. diferenga quolitativa entre uma e outra: por simples proceso de deslo- camento, @ libido do ego transforma-se em libido objetal 2 vice-versa. Estes Schados invalidaram a primeira divisao em instintos do ego ¢ instintos sexuais. se bem que 0 fato de esta divisao refletir os fatos da repressao tivesse levado, de inicio, a uma tentativa de conservag&o respectiva. Foi o que Freud procurou fazer, admitindo que os instintos do ego fossem catexizados com duas quali- dades diferentes de energia psiquica: com “interesse”, que corresponderia a energia dos instintos do ego, e com elementos libidinais, os quais constituiriam o narcisismo (585): concepgao que nao conseguiu manter-se. Uma vez reco- nhecidos os elementos libidinais deslocaveis, ja nao se pode aceitar a opiniao de que existam dois tipos fundamentaimente diferentes de instintos operantes na fepresstio € no reprimido (ou, na terminologia moderna, no ego e no id). Tanto ‘os interesses do ego quanto os impulsos libidinais, os quais vem. mais tarde, decerto, a conflitar entre si, evolveram da mesma fonte. 52 Freud. a seguir, prop6s sua cutra classificagao dos instintos (605, 608). A va classificagéo tem duas bases, uma especulativa, uma clinica. A base es- peculativa é 0 carater conservador dos instintos, tal qual se caracteriza pelo prin- cipio da constancia. ou seja, 0 fato dos instintos tenderem a eliminar tensdes. Existe também, contudo, um fenémeno que dé a impressdo de contrariar o principio da constancia. a saber, a fome de estimulo, que com clareza maxima vé nos instintos sexuais. Assim & que aparece o “principio do Nirvana” carac- terizar uns instintos: a fome de estfmulos, para outros. A base clinica da nova teoria freudiana consiste na existéncia da agresséo. O que constitui parte consideravel de todos os impulsos humanos s&o as ten- déncias agressivas de todos os tipos, tendéncias que manifestam, ein parte, caréter reativo: isto é, sao a resposta a frustracdes e visam a superagao das des- tas (335): em parte. apresentam-se intimamente ligadas a certos impulsos sexuais, principalmente impulsos sexuais que mais avultam nos nfveis prege- nitais da organizacao da libido. Ha outras agressGes que parecem formar-se in- teiramente 4 parte da sexualidade. De mais a mais, existe o eniama do maso- quismo, 0 fato de que. em certas condigées, a orientag&o habitual do compor- tamento humano, 0 principio do prazer, parece ser eliminado e tendéncias autodestrutivas afloram. Mais ainda: Clinicamente, 0 masoquismo e o sadismo sempre se associam: sempre que vemos masoquismo, a analise nos mostra ter um impulso sédico sofride uma “volta contra 0 ego” (555, 601). Também existe © contrério: certo tipo s4dico externo de comportamento @ capaz de velar um objetivo masoquista inconsciente Freud associou as bases especulativas e clinicas em nova teoria do instinto (605), teoria segundo a qual ha duas qualidades na mente: uma autodestrutiva, © “instinto de morte” (este pode ser voltado para o mundo exterior e, assim, tor- nar-se “instinto destrutivo”) ¢ uma qualidade que procura objetos, que luta por unidades mais altas, o eros, Supera-se a objegao de que, na realidade, nao exis- te nem comportamento puramente autodestrutivo, nem comportamento pu- ‘amente & busca de objetos — supera-se a objecdo pela hipétese que os ver- dadeiros fenémenos mentais se compéem de varias “misturas” destas quali- dades (138. 144, 890. 900, 1014) CRITICA DO CONCEITO DE UM INSTINTO DE MORTE - Sao muitas as objegdes que se podem fazer a esta nova teoria (425); a esta altura, bastarao as que se sequem. O objetivo-instintivo de destruigao opée-se & busca sexual de um objeto a ser amado: quanto a isto, nao ha diivida. O que se pode. contudo, questionar é a natureza desta antitese. Temos & nossa vista qualidades instintivas basicamente diferentes, ou seré que este contraste vem a ser. por sua vez. uma questio de difrenciagéo de uma raiz originalmente comum? E esta tiltima hipétese que parece mais provavel. Seria possivel agtupar todos os fenémenos que se retinem na rubrica de instinto de morte nao como tipo especial de instinto, mas como expressées de um principio, valido para todos os instintos; no decurso do desenvolvimento, este principio se teria modificado no sentido de certos instintos mediante influéncias externas. O con- ceito do prinefpio da constancia, como ponto de partida de todos os instintos, ‘avorece uma tese unificada n3o 56 para todos os processos mentais, como tam- m para todos os processos vives em geral. £ precisamente naquele grupo de 53

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