You are on page 1of 2

TEXTO EXTRAÍDO DO LIVRO “UMA BIOGRAFIA DAA DEPRESSÃO” DO PSICANALISTA

CHRISTIAN DUNKER.
CAPÍTULO 8 – NORMALIZAÇÃO DA DEPRESSÃO

Sinopse: A Depressão tem uma história, e a


compreensão dessa história nos ajuda a descobrir a
melhor forma de entendê-la, tratá-la e controlá-la hoje.
Neste livro, o psicanalista Christian Dunker trata a
Depressão como uma entidade em si, sujeita a
documentos e arquivos que comprovam sua existência,
que testemunham seus feitos e que elaboram suas
razões de ser, e mostra que a Depressão é um nome
demasiado pequeno para tantas formas e cores que ela
reúne, e que, ao mesmo tempo, não andam juntas.
Refazendo os passos genealógicos da Depressão a partir
de seus parentes distantes nas famílias da tristeza e da
melancolia, Dunker descreve como ela se tornou um
personagem decisivo na Idade Moderna, notadamente
com os grandes trágicos da virada do século XVI e XVII,
como Shakespeare e Molière, como ela emergiu como
personagem secundário na psicopatologia do século XIX
e na psicanálise do século XX, ganhando um inesperado
reconhecimento a partir da segunda metade do século
passado.

[...] Por volta de 2010, as suspeitas contra o reinado da Depressão começam a se desabrochar.
Há boatos de que seus efeitos colaterais – notadamente, a redução da libido – são, na verdade,
seu princípio ativo. Ou seja, ao diminuir a libido diminuímos, ao mesmo tempo, todos os
conflitos que vem com a libido: desejos insatisfeitos, frustrações e fracassos. Intensidades muito
elevadas são “inibidas” pelos antidepressivos. Nesse sentido, os antidepressivos não seriam de
fato desinibidores, como o álcool, mais ajudariam a pessoa a inibir melhor o desenvolvimento
da angústia no âmbito do eu. Essa espécie de colchão contra dores psíquicas, causadas tanto
pelo “choque de realidade” como pela ativação dos conflitos latentes, protege o sujeito,
reduzindo a sua sensibilidade. Assim como a hiperatividade pode ser tratada por um acelerador
derivado das anfetaminas (Ritalina), a Depressão poderia ser tratada por um verdadeiro
“depressivo” agindo sobre nossa libido, não só no sentido sexual ...

[...] Às vezes parece que estamos parados no “carro da vida” e é a paisagem que se move. Outras
vezes nos movemos tão rápido que nem vemos a paisagem mudar. Há crianças para as quais o
tempo não passa ou adultos tão ocupados que nem se dão conta de que o ano passou, ou pior,
que a vida passou. Cumprir metas e objetivos, obsessão de adultos, nem sempre é proporcional
e relevante diante da simplicidade de nossos sonhos e desejos, do tipo que tínhamos quando
crianças. Vidas em estado permanente de “falta de tempo” frequentemente produzem
sentimento de extravio de si, esvaziamento e solidão. Contudo, vidas programadas, dietéticas e
que cabem no próprio tempo vêm junto com falta de intensidade, tédio e sentimento de
irrelevância.
Freud descreveu duas atitudes opostas diante das exigências da vida: a fuga para a fantasia,
baseada no recolhimento, no devaneio e da retirada da atenção do mundo, e a fuga para a
realidade, baseada no controle, no planejamento e na exteriorização prática dos conflitos. O
trágico dessa aventura é que o mais interessante é também o pior e que quanto mais fugimos
dele, mais ele nos reencontra. Há várias figuras a isso relacionadas: o mal-estar, a angústia, a
morte, o conflito, a solidão a dois. Condição existencial das quais fugimos, mas sem as quais a
qualidade de nossa experiência parece decair, perdendo espessura e intensidade, nos levando
a uma vida em estado de adormecimento em que o conflito e a fuga de desprazer tornam-se o
principal – se não o único – Ideal.

A neurose introduz um adicional de insalubridade, um quê desnecessário de angústia em geral


derivado de estratégias de negação, amortecimento com relação aos problemas trágicos e
incuráveis pelos quais seremos derrotados ao fim: degradação do corpo, ineficiência das leis e
inadequação do mundo aos nossos ideias de felicidade.

O sintoma transversal do cansaço depressivo unido ao inquestionado ideal de adequação


costumeiramente cria uma vida que oscila entre a pressão e a descompressão, entre o frenesi
do último job e a lobotomia anestésica da sexta-feira etílica – alternância impiedosa que conta
com seus sonhos compensatórios, como os “cinco minutos para mim” ou a mudança para o
“interior” ...

[...] Essa sanfona psicológica sabidamente nos expõe a certos modos típicos de adoecimento
envolvendo o corpo: exaustão permanente e adoecimentos difusos, psoríase e tenossinovites,
doping farmacológico, com ou sem “cobertura” médica, alcoolismo “depressivamente” e
estatística da indiferença ou da desafetação.

Todas essas práticas de sobrevivência, inerentes a hipótese depressiva, orientam-se para


manter a produtividade, laboral ou relacional. Diante dessa espécie de “autoabuso” crônico, a
rainha Depressão tem tanto a coragem de dizer não (para a produção e o consumo) quanto a
covardia de afirmar que sim (para a determinação individual dos seus efeitos). São os chamados
sintomas psíquicos de origem “sistêmica”, ou seja, respostas concentradas e pontuais a formas
de vida nas quais o sofrimento se entranha de tal maneira que ele não mais requer boas
narrativas nem modulações da agressividade ou qualquer hesitação diante da ansiedade que
nos protege da verdadeira angústia”.

You might also like