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Aspectos de Religiões de Matriz Africana a partir da Vivência do

Bàbálòrisá Walmir Fernandes, sacerdote do Ile Aşę Agaronílę em


Belém do Pará
Aspects on African Matrix Religions from the Experience of Bàbálòrisá Walmir
Fernandes, priest of Ile Aşę Agaronílę in Belém do Pará
Paula Francinete Ramos*
Resumo: O artigo reúne os resultados da análise de conteúdo de uma live que contou com a participação do
Bàbálòrisá Walmir da Luz Fernandes, um dos mais importantes sacerdotes das religiões de matriz africana
em Belém do Pará. O objetivo é descrever aspectos das religiões de matriz africana, a partir da visão desse
sacerdote que também se destaca no meio religioso paraense por causa de seu perfil acadêmico e militante.
Para isso, tomou-se como material uma entrevista concedida à autora no dia 08 de agosto de 2020, durante
a gravação de uma live. Os dados foram analisados segundo alguns procedimentos de análise de conteúdo.
Ao todo, 12 aspectos foram elencados: atributos elementares; postura anti-hegemônica; busca pelo conhe-
cimento; comensalidade; inclusão; canto e da dança; Aṣé (Axé); organização familiar; a língua yorubá; a
organização em nações; a busca pela africanização e abandono do sincretismo com as religiões cristãs; e a
autoridade ancestral.
Palavras-chave: Religião de matriz africana, Sacerdócio; Yorubá; Trajetória de vida.

Introdução1 em nossa sociedade entre as definições


Fazer parte de uma religião de matriz “diferença” e “inferioridade”.
africana, e militar por ela, torna qualquer Sobre as circunstâncias da pesquisa
pesquisa em relação às questões de ter- antropológica junto às religiões de terreiro,
reiros muito mais viáveis. Exemplo disso encontrei em Gustavo Chiesa (2020) uma
é que não somente pai Walmir, mas todas inspiração. O autor enfatiza a necessida-
as pessoas com as quais faço interlocu- de de entender o papel do antropólogo
ção nesta pesquisa se sentiram à vontade em campo, com especial atenção a todo
para fazer seus relatos, uma vez que não o aprendizado multissensorial que pode
fui vista apenas como uma “a antropólo- ser gerado na pesquisa etnográfica. Para
ga”, “a cientista”, “a pesquisadora”, mas o autor, nesse tipo de estudo é necessário
sim, como alguém que está no nicho, que fazer uma narrativa em primeira pessoa,
conhece os fundamentos e sabe até onde algo que não necessariamente constitui
pode ir, sem necessariamente adentrar o uma autobiografia. Em tal pesquisa, o et-
espaço de suas vidas como um invasivo e nógrafo ou etnógrafa avança por meio dos
desrespeitoso antropólogo viajante curioso sentidos, e a cada passo une a experiência
pelo exotismo e que contribui, de várias individual com a ciência e com o cognitivo.
formas, com a relação muito comum feita Então, nesse movimento, a etnografia des-
vela a lógica de determinadas dimensões
constitutivas da vida humana e de sua pró-
* Mestra em Antropologia Social pela Universidade Fe- pria representatividade nela. A fresta por
deral do Pará (UFPA), especialista em Educação pela Uni- onde se olha são os sentidos, o saber, o
versidade do Estado do Pará (UEPA), é professora vincu-
lada à Secretaria de Educação do Estado do Maranhão. sentir, ser, conhecer, participar, observar,
1. Algumas palavras estarão com a grafia em Yorubá e
principalmente quando se investiga uma
outras, escrevo como se lê em Português. religião de matriz africana cuja tradição não

DOI: 10.47209/2675-6862.v.1.n.5.p.86-105.2022
é escrita, mas mantida por meio de mani- para falar sobre nós, nossas resistências,
festações da fala, do canto e da dança. lutas e buscas por direitos legítimos.
Durante muitos anos, poucas pesso- Por isso, durante muito tempo e até
as de terreiro observavam os espaços da mesmo nos dias de hoje, mesmo depois
universidade sob as reflexidades de seus da implementação de cotas e conscienti-
espaços de axé. Na verdade, por conta de zação positiva dos movimentos sociais an-
todo o histórico de exclusão social e racis- tirracistas, sobretudo o movimento negro,
mo institucional, a maioria dos aptos do que fez muitos sacerdotes, sacerdotisas,
candomblé, principalmente os negros, eram e principalmente filhos e filhas de santos
excluídos também do processo educacio- de gerações mais recentes acessar o uni-
nal, e, assim como a maioria do povo preto, verso acadêmico onde fazem de suas vi-
juntamente com sua cultura e tudo que lhe vências fontes de pesquisa, e reforçam em
era atribuído, continuaram a não ter seus inúmeras mobilizações a necessidade de
direitos de inclusão, mesmo depois do 13 trazer mais dos nossos (povo de terreiro) e
de maio de 18882, cuja liberdade foi apenas de conscientizar toda a sociedade de que
formal e sem nenhuma reparação. Por cau- nossas crenças não são inferiores e muito
sa disso, os negros excluídos, os que re- menos “demoníacas”, ainda há um longo
sistiram continuaram a cultuar seus deuses caminho até uma real equidade étnico-ra-
africanos, mas, apenas em guetos e sem a cial, especialmente em face do conserva-
mesma condição de emprego, estudo e/ou dorismo flagrantemente cristão que tomou
qualquer outo tipo de bem-estar social. conta do cenário brasileiro nos últimos
E, como enfatizaram Luca e Campelo quatro anos.
(2007) e Vergolino (1976), a partir de seus Apesar de tudo, muitos dos pesqui-
campos em Belém, e considerando de dé- sadores oriundos de terreiros se tornaram
cadas de Antropologia no Brasil, ainda há famosos e referência para a juventude no
poucos trabalhos sobre e o tema de religi- ciberespaço como, por exemplo, Babá
ões de matriz africana cujo olhar seja de Sidnei Nogueira de Sángò (São Paulo),
dentro para fora, isto é, pesquisas em que ganhador do prêmio Jabuti com o livro In-
o lugar de fala (RIBEIRO, 2020) seja o da- tolerância Religiosa; Babá Rodney William
quele que vive a religiosidade / ancestrali- de Oxossi (São Paulo), autor do livro Apro-
dade do terreiro. priação Cultural; Djamila Ribeiro, filha de
Diferente de outros movimentos Santo de Rodney; Marilu Campelo, antro-
como de mulheres e LGBT+ cujo os inte- póloga e coordenadora do Grupo Estudos
resses pelas pesquisas são daqueles e Afro-Amazônico (GEAM/UFPA), uma das
daquelas que fazem parte da etnografia, pioneiras a pesquisar os Candomblés no
com as religiões de matriz africana é dife- Estado do Pará; Edson Catendê pai de
rente, havendo um qualificador que além santo e advogado; Glauce Santos, profes-
de racial também é de classe. Pode-se sora de artes, mestra em artes, curadora
encontrar mulheres, principalmente bran- e artista de Terreiro, estes últimos perten-
cas e de classe alta na academia (falo em centes à cidade de Belém, dentre outros,
termos puramente quantitativos e não de para além do sacerdotismo, tornaram-se
hegemonia do poder institucional), assim profissionais acadêmicos e levantam seus
como militantes LGBT+. Sobre o povo de ilês para este tipo de conhecimento, pois
terreiros, penso que por causa da vulne- o espaço acadêmico deve ser construído
rabilidade econômica e social que afeta a também por pessoas negras e suas cultu-
população negra e periférica, ainda somos ras, sem nenhum tipo de invisibilidade.
poucos que adentramos nas universidades Dentre um universo cada vez maior
de afro-religiosos intelectuais que ao mes-
mo tempo são militantes, neste trabalho
2. Data oficial da Abolição da escravatura no Brasil.

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minha atenção se volta para um importante Babalorixá que em 2020 escreveu o impor-
babalorisá, professor universitário e ativis- tante livro Intolerância Religiosa, cuja expli-
ta de Belém do Pará, refiro-me ao Pai Wal- cação das violências sofridas pelas comuni-
mir da Luz Fernandes, eminente sacerdote dades de terreiro viabiliza a consciência de
de matriz africana – Candomblé Ketu – de que ações geralmente classificadas apenas
quem irradiam densas linhagens e que é como “intolerância religiosa” consistem, na
reconhecido por ser um dos mais velhos verdade, em manifestações racistas histori-
dos Candomblés de Belém, além de um camente existentes no Brasil.
profundo conhecedor das tradições e um Ou ainda Rodney William (2020),
militante e intelectual profícuo. também Babalorixá e assim como No-
Meu objetivo é descrever aspectos gueira, doutor, que relembra o processo
das religiões de matriz africana, a partir da de ‘aculturação’ e aniquilamento dos cos-
visão de Pai Walmir, alguém que não so- tumes sofrido pelo povo escravizado, fa-
mente vive a condição de sacerdote, mas zendo refletir os verdadeiros aspectos que
também a condição de acadêmico e mili- levam as religiosidades de matriz africanas
tante. Para isso, tomei como material uma a se misturar, não de forma tão harmonio-
entrevista concedida a mim, por Pai Walmir sa assim, com a cultura cristã, européia,
Fernandes, no dia 08 de agosto de 2020 colonizadora, dentre outros, que ao longo
durante a gravação de uma live. As per- da escrita serão citados para o melhor en-
guntas não foram previamente elaboradas, tendimento de quem sente a necessidade
elas tiveram como eixo apenas o objetivo de conhecer os aspectos das religiões de
da live que foi apresentar o sacerdote ao matriz africanas, nesse caso, o Candom-
internautas, bem como os aspectos consi- blé Ketu.
derados por ele mais revelantes para uma A partir do Pensamento de Djamila
visão panorâmica de sua trajetória e da re- Ribeiro (2020), quando ela afirma que o lu-
ligião que vivencia na condição de sacer- gar social é importante para construirmos
dote, militante e intelectual. A entrevista foi trilhas de visibilidades, situo-me na pesqui-
analisada segundo alguns procedimentos sa a partir do meu lugar social que mes-
de análise de conteúdo (BARDIN, 2016). cla a linha de pesquisa, da qual faço parte
A fala do sacerdote é um material como antropóloga, e também me apresen-
que permite pensar as religiões de origens to como filha de santo, mulher branca, mas
afro e se constitui como uma fonte de in- com o letramento de saber que o candom-
formação cultural, desconstrução de pa- blé é uma religião criada e institucionaliza-
radigmas, e reafirmação da resistência de da por negros, e por isso a ancestralidade
um povo afrodiaspórico. Por isso, mais do negra é a que prevalece. Sendo assim,
que utilizar o material da entrevista como lembro que ao adentrar nessa religião, pre-
simples “objeto de pesquisa”, considero o cisamos tentar nos despir de toda a “bran-
saber de Pai Walmir Fernandes no mesmo quitude colonizadora” que nos foi construí-
patamar de validade epistêmica dos auto- da (NOGUEIRA, 2020).
res e pesquisadores que utilizo em minha Minha trajetória no candomblé co-
análise, por isso, busco dar visibilidade às meçou no ano de 2014 no Funderé N’Oyá
pessoas de dentro dos terreiros, pessoas Jokolosy. Porém, minha vida em terreiro se
que buscaram utilizar suas vivências como inicia desde o final dos anos de 1990, na
legitimidade de aprendizado e saber, na flor da adolescência, pela curiosidade, por
perspectiva de enfatizar a história de luta tentar entender porque as pessoas incorpo-
dos povos de matriz africana. ravam, e também por na época achar par-
Reconheço Pai Walmir Fernandes ticularmente interessante conversar com os
como um sacerdote e intelectual militante caboclos de Umbanda. Em 2013, tornei-me
da envergadura do Doutor Sidney Nogueira, filha de santo de um terreiro de Mina, locali-

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zado em Mosqueiro, área metropolitana de aliança familiar, não só tive com ele o en-
Belém, nesse mesmo ano conheci o Can- contro familiar de avô e neta, como tam-
domblé, também por curiosidade de saber bém passado alguns meses me tornei filha
qual era meu orixá. O pai de santo de Tam- de santo do Ile Aşę Agaro nílę, terreiro des-
bor de Mina veio a falecer, e como ele era se sacerdote, portanto, tornei-me filha de
iniciado no candomblé, sou apresentada ao santo do Pai Walmir. Nossa live durou 1h
pai dele Odé Kewami, no Funderé N’Oyá e considero suficiente para ter um enten-
Jokolosy. Em 2015 fui iniciada para o Orixá dimento mais substancial do candomblé,
Oyá ou Iansã. Nesse período eu estava ter- receber orientação e incentivo para usar
minando o mestrado em Antropologia So- os sentidos como busca das verdades e
cial, mas nunca tive as religiões de matriz aprendizado, principalmente o sentido da
africana como fonte de pesquisa. escuta. Em julho de 2022, ao completar
No circuito da religião e da academia, sete anos de iniciada, cumpri com três anos
conheci Pai Walmir, pois sempre foi um es- de renovação5 e me tornei Egbon Oloyá Ni
tudioso e pesquisador acadêmico de sua Ile6. Então, assinalo minha relação subjeti-
religião, seu nome é bastante conhecido va e emotiva não só com o sacerdote, mas
dentro e fora do Pará, porém meu único com todos do Ile Aşę.
contato com ele até então era apenas em Descrevendo espaços
palestras, como espectadora. Alguns anos
tive o conhecimento de se tratar de meu Eu cheguei no Ilé [terreiro] por volta
avô de santo, pois, no candomblé, religião das 16hs. Fui recebida por seu filho bio-
da qual fazemos partes, as ligações com lógico, Jamir Alexandre Fernandes, que
o sagrado originam grupos familiares cujo na religião exerce o cargo de Bábà Ęgbę7.
elo ocorrem pela iniciação. Jamir me ajudou a arrumar as coisas, por
se tratar de uma live, via redes sociais, uti-
O encontro em que a live foi grava- lizei somente um notebook e um celular. O
da aconteceu por intermédio de Mametu3 tempo preciso da entrevista (60 minutos)
Kaianileji4, de nação Angola, também co- se explica pela data, pois coincidiu com o
nhecida como Kátia Hadad. Por causa da momento em que Pai Walmir foi iniciado e,
pandemia os terreiros momentaneamente portanto, ele ia fazer uma pequena home-
fecharam, então, Mametu e eu decidimos nagem ao seu Orixá, Odé. Pequena, pois,
realizar lives em redes sociais, com o in- se tratava de uma momento pandêmico,
tuito de passar conhecimento e também embora os festejos de Odé sejam sempre
se comunicar com as pessoas de terreiros. muito pomposos e com bastantes convida-
Eram lives culturais, onde eu realizava en- dos, por conta do momento, o Babalorixá
trevistas com personalidades de todas as decidiu fazer uma homenagem contando
áreas da matriz africana do pará. Às ve- apenas com algumas pessoas viventes do
zes, conversas, trajetórias de vida e até
rodas de tambores e shows virtuais com
músicas temáticas. 5. Alguns chama obrigação de santo, mas Pai Walmir
utiliza o termo renovação, como se fosse renovar votos
Essa conversa com Pai Walmir foi mesmo, pois pra ele, não devemos fazer nada por obri-
deveras importante, e, na prerrogativa da gação e sim por amor e vontade.
6. Os sete anos de iniciação são de suma importân-
cia para a pessoa que faz parte de candomblé, é o mo-
3. Mametu tem o mesmo sentido que a palavra Yá, que mento que se fecha o ciclo, o iniciado, portanto deixa de
significa Mãe, contudo, a primeira vem de origem bantu, ser Iyawo e se torna uma autoridade hierárquica dentro
que é a origem da nação angola, a qual ela fazia parte e a da religião, ou Babalorixá, ou Iyalorixá, no caso de ho-
segunda é de origem yorubana, oriunda da Nigéria a qual mem ou mulher designados a serem donos de terreiro,
faz parte a nação Ketu. ou Egbon, que são chamados de cargos do Ilê, aquelas
pessoas que ajudam o sacerdote em suas funções, meu
4. Era “ o nome” a qual ela foi batizada em sua nação
cargo tem como função cuidar de todos os fundamentos
Angola, a qual chama de Ndigina ou Orunkó, se fosse
do meu Orixá, Oyá.
nação ketu. O nome vem do Nkisi ( força da natureza )
Mikaiá que corresponde ao Orixá Yemanjá. 7. Significa “Pai da Comunidade”.

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Ile e eu e Mametu Kátia Hadad, que me mação, segundo Custódio (2020) de que o
acompanhou como convidada. amanhecer do 13 de maio, não despertou
A live aconteceu no barracão e o pai a “democracia” racial afirmada muitas ve-
chegou pontualmente às 17hs. Muito bem zes pela sociedade elitista brasileira.
trajado em suas roupas sagradas, sentou- Mas, apesar de se ter construído a
-se em sua cadeira situada próximo à uma base social, de periferias, cujo principal ob-
parede de cor verde, uma das cores que jetivo das elites é fazer essas populações
representa seu orixá, aliás, percebe-se que não possuírem mobilidade, um dos pontos
toda a estrutura visual e decorativa tanto apontados pelo sacerdote é a desconstru-
do barracão, quanto de outros espaços do ção e o letramento de seus filhos e filhas
Ile estão relacionadas à simbologia do ori- para que eles possam avançar na mobili-
xá Odé, principalmente as cores e também dade social; sem perder o foco e a valo-
o branco, predominante na religião Can- rização de seu espaço sagrado, alinhado
domblé. O espaço sagrado está localiza- ao espaço geográfico, fazendo entender a
do na Rua Lameira Bittencourt, Bairro do importância do reconhecer e sentir orgulho
Benguí, periferia de Belém, e é um espaço das identidades ancestrais e territoriais.
bastante amplo, muito bonito e caprichado.
Bàbálòrisá militante e professor
É importante entender que a maioria universitário: o entrevistado
dos terreiros em Belém do Pará se localiza
nas periferias, pois ao longo dos anos, seja Segundo Souza, Silva e Ribeiro
Candomblé, Umbanda ou Tambor de Mina, (2020), pensar a história e a vivência de
houve a ligação direta da matriz africanas Pai Walmir é elucidar a expansão do Can-
com as periferias pela própria história da domblé em solo paraense, e também a
cultura negra, indígena e as construções construção de uma liderança política não
periféricas. Para Melo (2012), os estudos restritas ao espaço religioso. Sua história
étnicos-culturais e tradicionais que pos- na religiosidade de matriz africana come-
suem suas territorialidades construídas a ça com episódios de transes9 nos anos de
partir de tradições e costumes que vincu- 1960. Oriundo de família católica, pai por-
lam a sociabilidade aos seus ancestrais tuguês e mãe amazônida, a princípio, sua
e consequentemente ao seu lugar de ori- família e ele próprio estranharam e tiveram
gem. Por isso historicamente a comunida- medo das incorporações que aconteciam
de negra e sua cultura, por conta do 14 de desde a infância. Exatamente por isso
maio8, sai alforriada dos engenhos e come- seus pais optaram por matricular o filho em
ça a ocupar espaços periféricos das cida- uma escola de confissão católica para que
des e também da zona rural. o “problema” pudesse ser resolvido.
Por esse ponto, as ancestralidades Mas, os fenômenos mediúnicos não
negras e indígenas, junto com toda a sua cessavam, e durante uma festividade cató-
cultura oriunda da diáspora é lançada para lica Walmir incorporou um dos seus guias
longe de qualquer centro de sociedade e na presença de todos. Após a festa, ime-
ocupa genuinamente a periferia. Esse pro- diatamente, lembra o Babalorixá, o padre
cesso acontece, devido à subalternidade lhe disse: “Você será um grande sacerdo-
que a população de origem portuguesa, te, mas não dessa religião, e sim de ou-
abastada estabelece para as culturas de tra”. O jovem, então, enveredou pelos ca-
origens africanas e indígenas. É a confir- minhos de sua religião atual, “depois de
alguns anos, já na adolescência durante
8. Aponto o 14 de maio como “o dia seguinte, após a
o ensino médio, ele frequentou um centro
Abolição”, pois mesmo com a legitimidade jurídica que de Umbanda, lá ele passa mais uma vez
libertaria os negros da condição de escravo, não houve pelo processo de incorporação e no ano de
nenhuma condição social que levasse a grande maioria
desse povo á mobilidade social. E dessa forma, a partir da
abolição cria-se a ideia falaciosa de “Democracia Racial”. 9. O ato de incorporar uma entidade ou um espírito.

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1973, ele frequenta a casa de Mina Nagô torado em Educação pela Universidade
de Mãe Célia” (SOUZA, SILVA e RIBEIRO, Trás-os-Montes e Alto Douro, em Portugal;
2020). A respeito de suas primeiras expe- e Doutorado Honoris Causa pela FEBRAI-
riências mediúnicas na adolescência, Pai CA e Ordem dos Capelães do Brasil.
Walmir comenta: É professor universitário atuando na
E eu vim estudar ali, que era uma escola Universidade do Estado do Pará e Facul-
industrial Lauro Sodré, ensinavam tipo- dade FIBRA Centro Universitário, ativida-
grafia e aí eu vim, na época eram só ho-
mens, e depois ficou misto e eu continuei des em que se dedica a pesquisas com
lá e terminei meu ginásio lá que era, as- foco nos estudos afro- brasileiros, educa-
sim, antigamente, e depois eu fui pro cien- ção, língua Yorubá, história e cultura.
tífico pra eu entrar na universidade. Meu
científico foi feito lá no Souza Franco, o Aspectos de religiões de matriz
último ano que foi no colégio do Carmo. E africana destacados na entrevista do
aí a mediunidade começou a acontecer, a
Bàbálòrisá Walmir Fernandes
incorporar mesmo em casa em qualquer
canto, na rua, não tinha mais um dire-
cionamento, estava a cada dia aflorando
Religiões com todos os atributos de
aquela questão. Aí foi quando uma amiga, religião
a Cristina e um ribo que até engenheiro. No contexto contemporâneo marca-
Apresentaram uma casa de umbanda lá
na Conselheiro Furtado da Dona Deusa, do pelo fim da colonização declarada, pela
até então não sonhava com Candomblé, abolição da escravatura e promulgação de
nem sabia o que era. Quando comecei a lei de condenação ao racismo10, o povo
frequentar havia manifestação, e sentia negro ainda continua sofrendo incontáveis
pavor do que acontecia, pois não sabia formas de racismo e um deles incide sobre
o que acontecia na época. (PAI WALMIR
FERNANDES, 2020) a religião. No século XIX, Nina Rodrigues,
um dos mais influentes intelectuais do ce-
Segundo Souza, Silva e Ribeiro nário brasileiro, classificou as religiões ne-
(2020), a primeira experiência de matriz afri- gras como animismo e fetiche. De acordo
cana de pai Walmir foi no terreiro de Mina com esse autor, a suposta inferioridade in-
de Mãe Célia, e, apesar de sua frequência telectual das populações negras as torna-
em muitos terreiros de Mina, ainda não era va incapaz de produzir religião no mesmo
o seu encontro pretendido, a partir desse nível de sofisticação intelectual das popu-
momento, começou a frequentar a “Fede- lações brancas. Por isso, no máximo have-
ração” (termo utilizado por Pai Walmir para riam “cultos” fetichistas e animistas, e não
se referir à Federação Espírita Umbandista religião (RODRIGUES, 1935). Ora, passa-
e dos Cultos Afro-Brasileiras do Estado do dos vários anos, esse preconceito ainda
Pará – FEUCABEP), e pela Federação fez persiste em parte da sociedade brasileira,
uma viagem até Salvador, onde teve o pri- e, contra essa concepção equivocada, Pai
meiro contato com o Candomblé. Walmir iniciou a sua fala:
Para além do Candomblé, Walmir da Primeiramente, eu gostaria de dizer que
Luz Fernandes estudou e estuda muito. estou muito satisfeito pelo convite para
O gosto pelo conhecimento formal o fez fazer essa live, é uma honra! hoje seria a
festa do meu pai Odé, mas infelizmente,
conquistar todos os títulos acadêmicos or-
foi feito apenas os fundamentos internos.
dinários e um extraordinário. Cursou o ba- Por conta da pandemia, mas, sem festa
charelado em Teologia pela Faculdade de Mas, estou muito satisfeito em falar
Educação Teológica Logos; bacharelado que aqui há uma religião e não uma
em Ciências e Pedagogia pela Faculdade seita ou animismo. (PAI WALMIR FER-
NANDES, 2020, grifo meu)
Integrada Brasil Amazônia; especialização
em Metodologia do Ensino Superior; es-
pecialização em Saberes Africanos e Afro- 10. A Lei 7.716/89, conhecida com Lei do Racismo, pune
brasileiros na Amazônia pela UFPA; Dou- todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de ori-
gem, raça, sexo, cor, idade.

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A expressão “seita” e “animismo” re- (1973), uma comunidade religiosa e cren-
mete a diversas formas preconceituosas ças e práticas relativas ao sagrado. Dian-
que são atribuídas ao Candomblé e suas te disso, considerar as religiões de matriz
congêneres de matriz africana, pois, a africana “seita” ou “animismo”, denota ig-
maioria da sociedade não o vê como reli- norância do que é uma religião e mais ain-
gião legítima, completa e no mesmo nível da, ignorância dos elementos que consti-
de qualquer religião, principalmente, por- tuem as religiões afrodiaspóricas.
que o cristianismo colonial sempre impôs
que a verdade religiosa se baseia apenas Religiões de postura anti-hegemônica
no que o próprio cristianismo entende por Um dos pontos mais salientados pelo
verdade. Para Gualberto (2011) a lógica entrevistado foi a necessidade dos povos
monoteísta radical alimenta a intolerância/ de terreiro saírem do lugar de subalternos
racismo religioso, pois essa visão de uma para ocupar os lugares dos privilegiados
verdade religiosa única e absoluta “já im- no meio acadêmico e na sociedade em ge-
plica numa concepção preconceituosa e ral, postos que frequentemente são ocupa-
racista na qual as religiões afro-brasileiras dos por homens, brancos, classe alta e de
são taxadas de feitiçaria, bruxaria, macum- religião cristã, a mais aceita em toda socie-
ba e outros termos depreciativos” (GUAL- dade brasileira.
BERTO, 2011, p. 15).
O caráter anti-hegemônico das religi-
Qualquer uma das religiões devem come- ões de matriz africana se expressa no Ile
çar pelo respeito, infelizmente uma socie-
dade vil passou uma imagem altamente Aşę Agaronílę por meio do enfrentamento
negativa das nossas religiões, colocando à ocultação que a sociedade brasileira im-
à margem da sociedade, quer dizer, isso pôs e impõe aos espaços físicos das casas
fez com que crescesse uma sociedade, de axé.
porque a sociedade é feita pela família,
por exemplo, uma criança cresce e o pai Com relação a mim, enquanto sacerdote,
e a mãe, orienta os filhos com que falar, eu fui iniciado em Salvador por Cícero de
com que lidar “não anda com aquele ali, Araújo (Ayrá Fa Beron), a partir daí, de
porque é homossexual não anda com 1977 pra cá eu estou aqui [em Belém do
aquele ali, porque ele é preto, não anda Pará]. Nós começamos numa casa muito
com aquele ali, porque ele é macumbei- simples, depois fomos nos alargando, re-
ro”. Tudo isso fez com que as pessoas construindo e ajeitando e hoje nós temos
excluíssem o credo de nossos ancestrais um templo, assim, como eu sempre so-
como algo sério, válido, como uma re- nhei. Eu me perguntava “por que os tem-
ligião e nós somos uma religião com- plos religiosos ou roças (como assim que
pleta! (PAI WALMIR FERNANDES, 2020, se chamava) teriam que ser nos fundos
grifo meu) dos quintais?” [Era] Como se a gente ti-
vesse cometido um crime.
Segundo Émile Durkheim, toda so- Eu sempre coloquei na minha visão, de
ciedade precisa de uma formação institu- que quando tivesse um templo afro-reli-
cional para que obtenha harmonia e pro- gioso, seria desse jeito [com a fachada
gresso, essas instituições criam normas exposta na via pública], um templo cons-
e regras denominas de fatos sociais. Pai truído com muito sacrifício, mas um tem-
plo construído para as nossas divindades.
Walmir afirma que o candomblé é uma re- Isso me deixa feliz. Que me deixa com
ligião completa, por ser também uma insti- orgulho enorme de praticar essa religião.
tuição, e, por isso, dentro dos terreiros há (PAI WALMIR FERNANDES, 2020)
normas, regras e fatos sociais, mesmo que
A trajetória de subalternidade concebi-
haja divergências em alguns segmentos,
da para a população negra, enquanto povo,
estas normas, são minimamente cumpri-
fez o dominador a colocar em situações de
das. Além disso, o Candomblé, como to-
“guetos”, algo que resulta diretamente da
das as religiões de matriz africana, possui
“clandestinidade” que a prática de “peca-
os elementos essenciais de uma religião, a
dos” (religiões afro-diaspóricas) requer, se-
saber, conforme a definição de Durkheim

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gundo a concepção criada pela Igreja. O Ile Religiões de busca pelo conhecimento
Aşę de Pai Walmir, embora seja localizado Quanto à busca pelo conhecimento,
na periferia, assim como quase todos os ter- segundo o Babalorisá, a vida nas religiões
reiros e iles de Belém, é composto de uma de matriz africana não se baseia somente
estrutura física muito organizada e arquite- nos “tratamentos espirituais” com banhos,
tonicamente elaborada, algo infelizmente ebós11, obis12 e feituras13, mas também se
pouco comum quando comparado àquilo trata inexoravelmente de buscar conheci-
que foi imposto aos povos de terreiros para mento, informar e ensinar a todos e todas
as construções de seus axés. o verdadeiro sentido de ser de uma religião
Ora, a situação de “clandestinidade” oriunda de povos africanos.
negou a esse povo o direito de ter seus iles É equilibrar e elevar a ori14, e as religiões
em construções tão grandiosos e arquiteto- de matriz afro estão além de ritos de in-
nicamente representativas quantos igrejas corporação de divindades, é muito mais
e templos de outras religiões, especialmen- do que isso! A religião Candomblé [por
exemplo], tem como finalidade a busca,
te cristãs, cabendo-lhes se esconder nas o saber, o sentir, o viver , e principalmen-
periferias, haja vista que segundo a concep- te preservar a memória de todos os an-
ção racista, os terreiros, assim como seus cestrais africanos que vieram na Diáspora
seguidores, precisam se conformar às suas para o Brasil (PAI WALMIR FERNANDES,
identidades marginais, e isso inclui a estru- 2020, grifo meu).
tura material do próprio terreiro. Contra es- Adiante ele fala do percurso de for-
sas ideias, Pai Walmir acredita que o povo mação de um afro-religioso. Um percurso
de Matriz africana necessita sim, estar em marcado pela busca de conhecimento e
patamar que lhes dê a mesma dignidade, o aprofundamento no saber e nas experiên-
mesmo patamar de qualquer outra religião, cia da tradição:
inclusive na composição arquitetônicas de Mas, se nós levarmos a nossa religião
seus tempos e muito mais na visibilidade a sério, a nossa religião é belíssima, ela
desses na paisagem urbana. Se o racismo tem uma extensão tão grande de conheci-
diz que os tempos de religiões de matriz mento que não dá pra falar em uma hora,
africana devem ser escondidos, o Ile Aşę de duas horas. E temos também o aprendi-
zado! Uma pessoa que é iniciada para ser
Pai Walmir resiste e se firma como monu- um sacerdote, uma sacerdotisa, passa 7
mento de resistência na composição arqui- anos para poder ter essa formação, e du-
tetônica à vista de todas e todos no espaço rante esses 7 anos é aprendizado todos
urbano de Belém. os dias. E quando eu estava em Salvador
para ser iniciado, eu passei 8 meses em
Imagem 01: Fachada do Ile Aşę Agaro Nílę vista da Rua
Salvador para ser iniciado, eu rompi com
Lammeira Bittencout, Bairro do Bengui, Belém do Pará
a família, rompi com a cultura, rompi com
tudo. E fui pra Salvador, porque eu queria
ser iniciado, eu buscava isso, os Orisás.
Eu sabia de Orisá, uma coisa que eu lia
aqui ou ali, porque na época era muito di-
fícil, uma literatura que falasse sobre as
divindades. Mesmo assim eu ia em bus-
ca, porque eu queria saber o que era ori-

11. Limpeza espiritual


12. Noz de cola, considerado um fruto sagrado dentro do
candomblé, tem a finalidade de unir e conectar o fiel à
força de seu orixá.
13. Ritual de iniciação da pessoa para se tornar parte da
religião e do terreiro.
Fonte: https://www.mapeandoaxe.org.br 14. Ori é o mesmo que cabeça, mente, pensamento.

Afros & Amazônicos 93 Vol. 1, nº 5, 2022


sá, o que é era aquilo que eu sentia. (PAI sacralizados. Em termos simplesmente
WALMIR FERNANDES, 2020) materiais, não há diferença substancial do
ato de comer animais congelados compra-
Religiões da comensalidade
dos em supermercados, a diferença está
Os diferentes povos africanos da Di- na dimensão simbólica, no respeito simbó-
áspora possuíam valores civilizatórios que lico de tratamento dos animais que são sa-
permanecem nas religiões de matriz afri- cralizados ao invés de simplesmente aba-
cana e, um deles, é a comensalidade, a tidos para consumo humano.
respeito da qual as palavras de Pai Walmir
A comensalidade, que é um padrão
são elucidativas:
de conviver juntos à mesma mesa, implica
A nossa religião tem uma coisa muito cer- em um modelo de fraternidade entre orixás
ta e séria, que nós chamamos de teologia
da comensalidade. O que é comensalida-
e humanos, e entre humanos e humanos.
de? É o humano comer com o divino da Esse princípio resulta em relações que
mesma comida. Esses animais alimen- não coadunam com ideais de exclusão
tam as pessoas que ali estão. Nós, não tão comuns em sociedades marcadas pela
fazemos simbolismo, como nas religiões desigualdade, como são as sociedades
de matriz católica que têm a hóstia feita
de trigo, que simboliza o corpo de Cristo,
nascidas de processos de colonização.
o vinho que simboliza o sangue de Cristo. Exatamente por isso, os sujeitos e sujeitas
Nós, não. Nós temos os mesmos animais excluídos encontram nas religiões de ma-
mesmo! a natureza mesmo! Nós traba- triz africana espaço de acolhimento, como
lhamos com a natureza animal, vegetal se vê a seguir.
e mineral. Nós fazemos o Amaci, nossos
banhos com o sangue vegetal. Nós te-
Religiões inclusivas
mos em nossos fundamentos, ouro, pra-
ta, guaje, dará, efun… São condimentos A continuar sua entrevista, o Babalo-
que se dão para as divindades e que são risá15 enfatizou:
da natureza mineral e temos também os
animais. Já se está falando que nós lida- Nós somos uma religião inclusiva! Nós
mos com o reino animal, a essência des- não estamos preocupados com a cor da
ses animais, o ejé, sangue é que fazem pele, com a cultura dessa pessoa ou pela
o elo entre humanos e divindade. (PAI sua orientação sexual, estamos preocu-
WALMIR FERNANDES, 2020) pados com a aura! A aura de uma pessoa
é o que vale, não importa o comporta-
O preconceito e a discriminação con- mento dela enquanto pessoa, para a di-
tra os povos de matriz africana historica- vindade, importa essa aura, essa energia
mente faz seus fundamentos serem demo- que emana do ser humano e que vai ao
encontro do divino. (PAI WALMIR FER-
nizados por cristãos, sejam fundamentos
NANDES, 2020)
de oferendas, cantos, dança, rezas ou
aquele que mais foi alvo de discursos dis- O Candomblé é uma religião em que
criminatórios nos últimos tempos, a saber, a magia se faz presente. Marcel Mauss
a sacralização de animais que no Brasil foi (2003, p. 55) compreende a magia en-
levada a tribunais e acusada de ilegítima e quanto um complexo formado por repre-
criminosa, mas que, apesar de todos os ul- sentações, atos e agentes mágicos. Uma
trajes, foi reconhecida como constitucional, ideia muito comum na magia é a categoria
pois o povo de terreiro conseguiu provar, “mana”, grosso modo, seria uma substância
além de outros aspectos legais, que a sa- – entre nós, ocidentais muito chamada de
cralização não é somente um fundamento “energia” – que constitui os entes do mundo
de oferenda, mas também de alimento, de dando-lhes força, animando-os, mantendo-
sustento e segurança alimentar dos povos -os vivos. No Candomblé, o “mana” ganha
de terreiros. O ato de comer que alimentar o nome “axé” e é essa substância que é
as divindades é também de dar alimentos
aos seus fiéis, tudo que se come nos ter- 15. Esse é o termo mais correto de chamar o senhor Wal-
mir, mas a ideia de Pai de santo acabou se tornando mais
reiros são os mesmos alimentos que são popular.

Afros & Amazônicos 94 Vol. 1, nº 5, 2022


manipulada a partir dos rituais do sacerdote o contraponto àqueles que excluem os que
de Candomblé, quando Pai Walmir enfatiza não fazem parte da homogeneidade impos-
que cuida da “aura” das pessoas que o pro- ta pelos dominadores. É importante reiterar
curam, ele está falando do axé. O equilíbrio que nas religiões de matriz africanas há
espiritual, o encontro com os orixás, com o diversos marcadores sociais das diferen-
sentido de que, ao contrário do cristianismo, ças, além de pessoas de origem negra, há
cada pessoa possui um deus próprio, além LGBT+, mulheres com pensamentos femi-
do grande deus maior, Olodumare16, resul- nistas e pessoas de todas as classes que
ta na necessidade de equilibrar as energias buscam por essa magia que se encontra
(o axé) de cada pessoa com seu orixá. Os nos recursos naturais – o axé. As religiões
Orixás, possuem seus símbolos, elementos de Matriz africana, também se incluem no
que geralmente estão relacionados com a contexto de povos tradicionais e se rela-
própria natureza. cionam com a natureza enquanto sagrado,
Não se importar com o a origem, fe- como a árvore que representa o Orixá Iroko;
nótipo e comportamento das pessoas, mas a mata que representa Oxóssi; as folhas
sim com a “aura, essa energia que emana medicinais que representam Ossain; o ven-
do ser humano”, como disse Pai Walmir, é to e as tempestades que representam Oyá;
uma dinâmica relacional totalmente oposta o fogo que representa Xangô; o Ferro que
à lógica excludente da sociedade capita- representa Ogun; dentre outros.
lista que opera pela combinação do racis- Religiões do canto e da dança
mo, do sexismo, do preconceito étnico e
de lugar aliado ao preconceito de classe Reginaldo Prandi (1991) lembra que
na concessão de dignidade, de poder e nas religiões de matriz africana os deuses
na aceitação social. E, justamente por não compartilham com os seres humanos três
reproduzirem a lógica de exclusão, as re- necessidades básicas: moradia, alimento e
ligiões de matriz africana foram considera- diversão. No terreiro existem quartos espe-
das publicamente, e os jornais eram palco cíficos para as divindades e assentamen-
privilegiado da veiculação desses discur- tos dos filhos de santo; os deuses recebem
sos, lugares de gente de má índole; moral- alimentos, assim como os humanos; e os
mente reprováveis; antro de gays, e afins deuses descem à Terra para dançar e se
(VERGOLINO E SILVA, 1976). divertir com seus filhos e filhas, no corpo
dos seus cavalos.
Com as conquistas legais dos movi-
mentos sociais de grupos minoritários, os O canto e a dança estão nos vários
discursos depreciativos a respeito da di- momentos da vivência nos terreiros. Pai
versidade nos terreiros saíram do cenário Walmir explica:
público, mais ainda persistem no foro ínti- Cada cantiga que nós fazemos na tradi-
mo da sociedade brasileira. Contra isso, os ção, é um canto é uma reza é uma busca
terreiros seguem como espaço de inclusão por essa inserção pelo divino com o huma-
no, nós estamos em constante elevação
e como reduto de acolhimento e debate com relação a espiritualidade, e a gente
para a diversidade. procura sempre nos tornar melhor. Após
cada oferenda feita a cada divindade, nós
Krenak (2019) defende que as comu-
sentimos essa essência, não precisa nin-
nidades colonizadas criaram estratégias e guém nos dizer, nós sentimos, nós esta-
manobras para permanecer com suas cul- mos ali. Nós somos adoradores de deuses
turas e ancestralidades vivas em memória. que dançam, essas divindades estão aí,
Quando Pai Walmir, salienta que há inclu- através dos nossos cantos elas descem a
Terra. Nós saímos dali cheios de axé. (PAI
são no Candomblé, ele propaga justamente
WALMIR FERNANDES, 2020)

Os cantos desempenham a função


16. Na religião de nação Ketu, é tido como o ser supremo,
que vive em uma dimensão paralela conhecida como Orum, de reza ao mesmo tempo que ensinam e
é conhecido também como Olorum, o senhor do Orum.

Afros & Amazônicos 95 Vol. 1, nº 5, 2022


passam conhecimento à família de santo. laborados no Candomblé, e, se em África
Os cantos também funcionam como cha- cada região ou família tinha o seu ances-
ves que abrem caminhos para a descida tral, no terreiro os descendentes de diferen-
dos orixás. A dança, que tem papel ritual, tes ancestrais que outrora estariam cada
é também diversão, pois diferente da tra- um em sua região agora estavam todos
dição cristã que valoriza a austeridade e o no mesmo lugar. Além disso, a noção de
sofrimento como elementos de oferenda a família e de certificação da origem ances-
Deus, no Candomblé a alegria, os praze- tral também foi reelaborada. Se na África
res da boa comida e dança como expres- as famílias eram definidas pela linhagem
são do êxtase do corpo são oferenças re- direta com o orixá regional, no Brasil as fa-
queridas pelos orixás. mílias passaram a ser definidas por meio
da iniciação pelo mesmo pai de santo, de
Religiões de Aṣé (Axé) sorte que os filhos do mesmo babalorisá,
O axé é um princípio fundamental da ainda que descendam de orixás diferentes,
religiosidade de matriz africana. Como já são da mesma família. Por sua vez, se no
foi dito anteriormente, é entendido como passado africano o parentesco com o orixá
uma energia que constituía todos os entes era certificado via linhagem, no Candom-
do universo. A respeito desse assunto, Pai blé passou a ser feito por meios oraculares
Walmir vai até às origens da palavra: (PRANDI, 1992).
E a nossa palavra axé? Axé, vem de “awa”, Nesse caso, a família de santo forma-
significa ‘nós’ e a palavra “sé” vem dos ver- da nos terreiros não é vinculada por que-
bos ‘trabalhar’, ‘dignificar’, ‘construir’, en- sitos sanguíneos, mas sim pelo processo
tão “axé” significa ‘construir em nome do
Orisá’. Nós construímos, e tudo que vem ancestral no qual somo iniciados ou renas-
para dentro de nossos templos religiosos cidos dentro do sagrado, por isso, dá-se po-
são emanados de asé. E essas energias pularmente ao nome de “pai” ou “mãe” de
estão cotidianamente em nossas vidas. santo e de “irmãos” para aqueles que foram
(PAI WALMIR FERNANDES, 2020) iniciados no mesmo Ilê (terreiro), pelo dono
Religiões que se organizam em ou dona da casa. Consequentemente, o
estruturas familiares que marca a idade no terreiro não é o tempo
cronológico contado a partir do nascimento
Na África do período colonial as re- físico, mas sim o tempo de iniciação, de tal
ligiões materializavam parentesco, quer modo que quanto mais tempo de feitura se
fossem os elos familiares reais ou míticos. tem, mais velho /velha se é. Esses padrões
Os descendentes de uma divindade regio- cronológicos e de parentesco podem ser
nal ou familiar estavam todos aparentados vislumbrados na entrevista:
em uma grande família que tinha sua ori-
Após ser iniciado em Salvador, eu vim pra
gem no orixá ancestral. Um exemplo era Belém, imagina eu aos 22 anos era muito
a relação entre todos os nascidos na cida- jovem e tinha os omós Orisás (filhos de
de de Oyó, atual Nigéria, e Xangô que era santo) gente que tinha idade de ser meus
considerado o grande ancestral dessa ci- avós, não era peculiar, pra mim era mui-
to difícil me manter como pai, pra essas
dade. A fim de destruir essas linhagens, os
pessoas que tinham bastante idade, e
colonizadores misturavam pessoas de di- essas pessoas me chamando de pai, me
ferentes regiões nos navio negreiros. Esse pedindo a benção, isso pra mim era um
processo de mistura tinha por objetivo in- negócio novo, que não se passava pela
viabilizar alianças, haja vista que por meio minha cabeça. Pontuo aqui que a questão
da idade cronológica que nós temos, que
do parentesco ancestral havia um pacto de
seria a idade de nascimento, não equi-
fidelidade entre pessoas de uma mesma vale a idade de santo, pois, a partir do
linhagem (PRANDI, 1992). momento que entramos no candomblé,
o que vai contar é a idade da feitura, do
O que os colonizadores não conta- renascimento, dentro do Ilé as hierarquias
vam é que os laços ancestrais foram ree- se ponderam dessa forma, independente

Afros & Amazônicos 96 Vol. 1, nº 5, 2022


de cronologicamente a pessoa ter mais ção quer entregar, então quando eu con-
idade ou não. Sobre a responsabilidade verso, coloco pra eles que é uma questão
do sacerdócio ainda na juventude e a religiosa e que eles vão ter que respeitar
construção de uma idade mais velha. (PAI e, graças a Deus, nunca tivemos proble-
WALMIR FERNANDES, 2020) mas, esse é o Iycomode adé, depois nós
temos a fase da iniciação, nós temos o
Pai Walmir ressalta: Igbé iyawo que é o casamento e aqui no
Ali eu aprendi a liderar a ser pai, agir norte do Brasil, há mais ou menos 17 anos
com firmeza sim, mas sempre encami- ou 18 por ai, eu fui para ter esse curso de
nhar para o caminho do bem, quer dizer, sacerdote pleno lá em Guararema, Esta-
bem que nós vemos, nem todo bem que do de São Paulo, na casa da saudosa, Yá
eu vejo, pode ser o seu bem, pois essa Sandra Egüega, os africanos vieram es-
questão de bem e de mal é uma questão pecificamente para ministrar esse curso.
muito grande. Essas pessoas começaram Nós éramos 9 sacerdotes fazendo Sacer-
a se ver como espelho, um líder espiritu- dote pleno, hoje há outros que já o fiz que
al. Então, gente, eu estou com 65 anos! podem fazer o Igbé Iyawo e o Iycomode
Hoje, estou aqui vivo, colocando o orisá Adé, tem o meu filho Olufoni de Macapá,
acima da minha cabeça, da cabeça dos aqui em Belém a Yá Ejité, a Mãe Néia e
meus filhos, colocando a minha religião outros que já fizeram comigo e temos o
acima de tudo. pós-morte, que é o Axexẽ, então nós te-
mos uma religião do início ao fim da vida.
Você falou ainda pouco, você como es-
tudiosa da nossa religião, que eu tenho Qual a religião que tem esses ritos? Mas,
título de doutor, mas o título que mais é rito de corpo presente é rito enquanto as
me enobrece é o título de sacerdote afro divindades recebem o encaminhamento
religioso esse é o meu maior título, foi o para o Orun dessas pessoas que passa-
que eu achei que jamais alcançaria até ram para a outra vida, e nós acreditamos
onde as mãos alcançam. Hoje, com mais que os nossos virão em outros nossos, no
de 400 filhos omo orisá, me sinto pleno e futuro, que o espírito de alguém vem para
ainda com muita energia de iniciar os que ceifar a nossa família de más energia e
vierem, peço a Deus e aos Orisá que me assim por diante. Nós acreditamos nesse
deem vida e saúde para que eu continue pós morte.
essa busca constante do entendimento Não temos essa visão de ressurreição ou
das pessoas em relação às nossas religi- coisa assim, não! Acreditamos que eles
ões, que elas comecem não a nos tolerar, virão em nossos familiares, em nossos
mas a nos respeitar. (PAI WALMIR FER- ancestrais, não é a reencarnação na visão
NANDES, 2020) dos espíritas, é na nossa visão, é diferen-
Ele exemplifica: te, são nessas coisas que nós acredita-
mos. (PAI WALMIR FERNANDES, 2020)
Nós começamos a cuidar do adepto des-
de a fase uterina, nós fazemos os primei- Religiões que têm o yorubá como uma
ros ebós de mulheres grávidas, quando
de suas línguas rituais
elas iniciam a gestação, antes mesmo
do embrião se tornar feto, a gente já está Nas religiões de matriz africana as
acompanhando espiritualmente aquele línguas do tronco bantu e benué-congolês,
nascimento, então quando nasce nós fa-
zemos o Iycomode Adé, que seria o ba-
especialmente yorubá e evé, compõem o
tismo, o dia do nome, o dia que se dá o léxico litúrgico. Ou seja, são utilizadas nas
nome àquela criança. rezas, nos cantos e nas classificações dos
Já brigamos tanto na justiça que hoje entes religiosos. A depender do segmento
pode colocar o nome em yorubá que sai do Candomblé, uma dessas línguas pos-
direitinho na certidão de nascimento sem sui maior preponderância no vocabulário.
nenhum erro ortográfico quanto à grafia. No caso do Candomblé Ketu, do qual Pai
Problema de brigas com os hospitais, por-
Walmir faz parte, o yorubá é a língua pre-
que precisamos da placenta da mãe, do
cordão umbilical para fazer o ondé, que valecente. Como qualquer língua viva, o
é o amuleto para a criança, para ela levar yorubá moderno é bastante distinto do yo-
para o resto da vida. rubá falado na época do tráfico de escravi-
A gente precisa ter argumentos, porque zados, diversos fenômenos históricos mu-
os médicos não querem entregar, a dire- daram sua gramática e prosódia, de modo

Afros & Amazônicos 97 Vol. 1, nº 5, 2022


que a língua falada nos terreiros já não sileiro, mas o nome correto é “Yemonjá”, a
pode mais ser encontrada em África, fato mãe que possui filhos peixes. A pronúncia
do nome “Ogun”, está errada, pois, no yo-
que leva muitas pessoas a concluir que o rubá nunca se termina palavras em con-
yorubá dos terreiros é uma língua morta. soantes, todas as palavras sempre são
Porém, por ser uma língua usada no co- terminadas em vogal. Nós temos 7 vogais
tidiano das casas de axé, ainda que não normais: a, ee, ę quando aparece essa
seja mais a língua oficial de algum país, grafia o som é aberto, ii, oo, o (rabinho
embaixo) o som é aberto e u, são sete,
Pai Wlamir Fernandes observa que mas também temos vogais nasalizadas,
O yorubá [dos terreiros] não pode ser an, en, in, on un. Por isso Ogun está es-
considerado uma língua morta, o que crito O-G-U- N o N é uma vogal, o U junto
se fala em templo religioso? é yoru- com o N é uma vogal.
bá! o que se canta no salão para es-
As pessoas entendem dessa forma, a pa-
sas divindades? É o yorubá! E essa
lavra “Ogã”, a pronúncia é “Ogàá” e não
tradição, como se chama no Brasil, a
“Ogã”, mas como está escrito O-G-Ã não
nação Ketu, foi quem mais se disse-
se pronuncia como se houvesse um som
minou em solo brasileiro, é difícil você
nasal, pois o til é um sinal de repetição de
não ver um estado brasileiro que te-
letras, não tem o sentido de nazalização
nha uma casa de Ketu, então como
de som, “Ogáà” teria essa escrita com
é que pode ser uma língua morta, se
a mesma forma de pronúncia. A palavra
todos os dias nós comungamos com
“Ogun” é dessa forma, a palavra “Oşun”.
essa língua? (PAI WALMIR FERNAN-
Toda a palavra yorubá é feita de uma
DES, 2020).
consoante que é feita de uma vogal, não
E acrescenta com a exposição das existe dígrafo, foi só uma interpretação da
origens do yorubá, as modificações do idio- língua, porque o brasileiro não entendia.
O Ş a pronúncia é como se fosse o X, por
ma no decorrer do tempo, e uma das estra- isso se fala “Oxum”, mas escreve “Oşun”,
tégias para a preservação do yorubá antigo: por exemplo. Toda palavra yorubá é feita
O yorubá é o idioma da Nigéria, é um idio- de uma consoante seguida de uma vogal
ma nigeriano, não é um dialeto! Dialeto é não existe dígrafo, mas, foi só uma inter-
alça, é igbô e outros dialetos que há em pretação da língua, porque quem cantava
África, são mais de 100 dialetos, mas yo- as músicas em iorubá eram os africanos,
rubá é uma língua que foi falada antes, de- o brasileiro não entendia. (PAI WALMIR
pois que começaram a colonizar a África, e FERNANDES, 2020)
os ingleses foram muito além abrangendo Ele continua dando exemplos de al-
essa questão cultural e hoje já se fala um
yorubá misturado com o inglês, não existe gumas adaptações linguísticas que ocorre-
mais o yorubá falado, esse mais primitivo, ram justamente pela falta de conhecimento
só nas aldeias além de Nigéria, mas na das pronúncias originais:
capital, não se fala mais esse yorubá, e
A palavra Motumbá, por exemplo, é uma
essa construção ciclópica, divina, que é o
palavra que tem várias traduções, por
yorubá a gente quer passar na língua dos
isso não a uso. Nós temos “motum” e
nossos ancestrais, por isso existe a socie-
“obá”, “motum” é “latrina”, e “obá” “rei”,
dade de preservação da língua yorubá,
quando ela foi inserida no contexto ioru-
da qual eu sou presidente. (PAI WALMIR
bá, quando os negros, nossos ancestrais
FERNANDES, 2020)
na condição de escravos , os seus se-
Devido a imposição da língua portu- nhores obrigavam a eles a pedir benção,
guesa e proibição do uso do yorubá pe- eles respondiam “motumbaxé”, como se
quisessem mandar os senhores a “caixa
los colonizadores, o yorubá falado nos prego”. Mas, têm outra tradução, em um
terreiros também sofreu modificações. A yorubá mais moderno, essa palavra seria
pronúncia original de certas letras foi es- uma reverência ao rei. Mas, de benção
quecida; construções fraseológicas foram não tem nada, benção em iorubá seria
improvisadas, e, a respeito dessas altera- “bocun”. “Bocun ò babá mi, Bocun ó iyá
mi”. (PAI WALMIR FERNANDES, 2020)
ções, Pai Walmir discorre:
“Iemanjá” é uma palavra brasileira, a gen- Pai Walmir faz questão de dizer que
te aceita, porque o candomblé é afro-bra- yorubá é um idioma, e não um simples

Afros & Amazônicos 98 Vol. 1, nº 5, 2022


dialeto. Isso ocorre porque ainda hoje, no vam “meu pai, qual o significado de tal
Brasil, línguas não pertencentes às nações coisa?” Eu usava aquele velho bordão de
quem não sabe “meu filho é muito cedo
colonizadoras ou alguns países do Oriente para lhe responder”. Isso me incomoda-
são consideradas primitivas pela camada va profundamente, então eu fui em busca
média da população. Daí que a necessi- disso, pra responder pra mim, primeiro,
dade de oportunamente afirmar que as para depois responder para os outros.
línguas de povos africanos (e também dos Foi assim que eu fui em busca do yorubá.
(PAI WALMIR FERNANDES, 2020)
povos indígenas) são idiomas e não dia-
letos: “Lá em África, antes das religiões A busca pelo conhecimento do idioma
de matriz africana, o yorubá já existia. A que forma o léxico da sua religião incluiu a
língua yorubá é um idioma! E, para nós transposição de distâncias, criação de la-
[afro-religiosos], assim como já dito, é algo ços, e insistência diante de dificuldades,
ciclópico, divino, porque nós falamos com especialmente diante da falta de especia-
as nossas divindades através da fala, o yo- listas na língua, fato que o fez integrar a
rubá (PAI WALMIR FERNANDES, 2020). organização de uma instituição que visa o
enfrentamento desse problema de manei-
Na vida de Pai Walmir, a busca pelo
ra mais sistemática:
yorubá falado nos terreiros começou como
parte de uma atitude fundamental da vi- Eu fui pra Salvador, fui iniciado e quando
eu tirei a aliança, o kelé, estava surgindo
vência no Candomblé, qual seja, a busca
o curso de yorubá em Salvador com o pro-
por conhecimento. Além disso, mesmo sa- fessor Ademola, meu primeiro professor
bendo que falar um “yorubá correto” não é em yorubano mesmo. E o professor Gil-
requisito para agradar ou não os orixás, o berto Baraúna, lá na Escola de Nutrição
princípio da ancestralidade fez o babalorisá de Salvador, em Campo Grande, eu fui e
tive dois meses de aula, aí eu tinha que
buscar a língua utilizada pelos seus ances-
vir para Belém, voltei para Belém, depois
trais, língua que foi modificada por causa voltei novamente para Salvador, fiz mais
da violência colonial. Pai Walmir sabe que. 4 meses, depois eu consegui trazer o pro-
Por conta disso, [nos terreiros] há uma sé- fessor Gilberto Baraúna para Belém, por-
rie de cantigas que as pessoas não sabem que eu sempre fui muito ousado, sempre
o que estão cantando, esse era o meu in- fui muito em busca daquilo que eu queria,
cômodo. Foi por isso que eu fui em busca sempre fui muito determinado. Trouxe o
do aprendizado da língua yorubá, porque professor Baraúna que ficou hospedado
eu queria falar corretamente com a minha durante um mês na minha casa e minis-
divindade, embora eu esteja em um Can- trou aula de iorubá aqui e o saudoso Babá
domblé afro-brasileiro e meu orixá entende Tayandô participou, eu lembro como se
perfeitamente em português, mas eu que- fosse hoje.
ria mais! É o que me encanta, é o que co- [...] fundada em 1990 [a Sociedade de
loca pra diante, o que me aflora a vida, são Preservação da Língua Yorubá], e nós
essas divindades, como disse, eu acredito fazemos ainda essas reuniões em Sal-
em Deus e nos Orixás, a minha religião vador, Belo Horizonte, São Paulo, enfim
me completa, eu não preciso de outra. En- fizemos nascer essa sociedade desse yo-
tão, essas coisas todas vão acontecendo, rubá arcaico mesmo, e tentamos passar
a gente vai valorizando, dando mais valor esses valores, esses saberes ciclópicos
àquilo que você começa a conhecer. (PAI e divinos que estão conosco no dia dia
WALMIR FERNANDES, 2020) em uma casa de axé. (PAI WALMIR FER-
NANDES, 2020)
Pai Walmir revelou que sempre teve
uma inquietação para aprender o yorubá, Religiões organizadas em nações
assim como muitos adeptos do Candom-
blé, por não conhecer o idioma, por vezes Na tentativa de resgatar as identida-
encontrava dificuldades para explicar os des que foram ceifadas pelo colonizador,
fundamentos: nos Candomblés do Brasil foram criadas
nações, isto é, segmentos que se orga-
Isso [me] enriqueceu muito, quando eu
não sabia nada e meus filhos pergunta- nizaram a partir da preponderância cul-
tural bantu, yorubá ou ewé-fon. Essas
Afros & Amazônicos 99 Vol. 1, nº 5, 2022
identidades podem ser pensadas a partir cretização em relação às religiões cristãs
de Stuart Hall (2003,), segundo quem “a (MELO, 2008). Segundo os grupos que
identidade se constitui na hibridação, no abraçam essa proposta de rearranjo da
movimento, na articulação, nunca de for- religião, o sincretismo com o cristianismo
ma completa, sendo provisória, tendo em foi uma forma de manter as antigas tra-
vista vários encontros, que podem cau- dições em meio às proibições impostas
sar choque e entre choques com outras pelos colonizadores aos africanos e seus
culturas”. Embora tenha ocorrido essa descendentes.
tentativa de reconstrução das identida- Sob essa perspectiva, podemos
des étnicas das populações africanas nos pensar na condição da história do Brasil
terreiros, em sua fala, Pai Walmir enfatiza em relação à colonização e Diáspora17.
que esse processo pode gerar animosida- Para Romão (2018), a chegada do povo
des, principalmente quando se busca um português em uma terra habitada por uma
“purismo” entre as nações de Candomblé. grande diversidade de etnias ameríndias,
Por esse motivo, ele se declara a favor representou a eclosão de atos severos de
da união de nações e reconhece todas violência, contra os grupos tradicionais
como memórias ancestrais, pois acredita que habitavam as atuais terras brasilei-
que no período colonial o povo negro não ras, provocando um grande genocídio do
queria se segregar e sim viver uma união, povo indígena no Brasil e mais tarde com
para poder lutar e resistir contra os seus as etnias africanas que foram sequestra-
opressores. das e trazidas para servir como mão de
Veja bem, foi tão difícil para os nossos obra escrava e destituídas de seus direi-
ancestrais dentro daqueles navios pú- tos fundamentais.
tridos, chegarem ao Brasil, eles foram
trazidos, arrancados de sua mãe, África, Diversas etnias africanas foram mis-
e, ao chegar aqui, o negro saudoso, me- turadas nos navios negreiros, com o intui-
lancólico, triste, queria fazer o seu rito,
to de dificultar a comunicação, a troca de
para as suas divindades, ele não queria
saber se o fulano nasceu na Guiné Bis- cultura para evitar possíveis revoltas ou fu-
sau, ou seu nasceu no Daomé. Ele queria gas. Mesmo com a mistura étnica do povo
o africano ali junto, cantando, dançando africano e do sofrimento das servícias, o
para as suas divindades, não tinha essa povo negro buscou de forma consciente
separação, mas hoje tem! E ela é mar-
ou inconsciente, soluções práticas para
cada, por acirradas discussões em cima
disso, e eu não acredito que as pessoas manter suas culturas e tradições, como por
ainda tenham essa visão, porque para o exemplo, seus rituais religiosos. Naquele
nosso ancestral foi tão difícil, ele atraves- momento, o contexto histórico era predo-
sar o oceano atlântico chegar ao Brasil e minado pela religião católica, e, como se
querer se unificar e a gente querer fazer
tratava de um começo de uma era mer-
separação? É um tanto incoerente. Mas,
infelizmente é essa a nossa realidade. cantil, os colonizadores não só invadiam
Não deveria ser assim [...] por que essa os territórios com o intuito de ocupá-los e
separação que hoje tem?: “fulano é An- explorar suas riquezas, mas também impor
gola”, “ciclano é ketu”, “beltrano é Jeje”, suas práticas culturais, religiosas e políti-
essa separação se faz no Brasil, não tem
cas que foram impostas como único cami-
em África. Não tem nações na África. (PAI
WALMIR FERNANDES, 2020) nho civilizatório.

Religiões com grupos em que se


buscam a africanização e o abandono 17. Na concepção de Aimeé Bolaños (2010), a palavra
do sincretismo com as religiões cristãs Diáspora vem da cultura grega, com os significados de
dispensar ou semear, referindo se a histórias de migra-
Desde a segunda metade do séc. ção, colonização e exílio, mas é possível constatar que
seu sentido muda em novos contextos geopolíticos.
XX os Candomblés vêm passando por Nesse aspecto, em nossas formações culturais, menção
um processo de africanização e desin- especial merecem as comunidades afro­-americanas, a
partir do tráfico negreiro (PEREIRA, 2016).

Afros & Amazônicos 100 Vol. 1, nº 5, 2022


Por conta desse processo imperialis- Para Bastide (1997, p. 183), nas con-
ta18, ao longo do tempo os africanos foram frarias os escravizados conseguiram se or-
familiarizados com o contexto cristão ca- ganizar socialmente de forma a reproduzir
tólico, e, dessa forma, criaram uma forma ou adaptar os sistemas organizacionais
de inferir transferências, adaptações e re- das sociedades africanas, auxiliando na
criações de suas culturas e religiões com conservação e na propagação de seus va-
o intuito de manter viva suas concepções lores originais. Ou seja, a questão do sin-
ancestrais, ainda que misturadas com o cretismo católico não foi necessariamente
sistema hagiológio católico. Então naquele uma mistura, mas uma estratégia de flexi-
contexto, o sincretismo com a religião ca- bilizar ou negociar aspectos da fé ances-
tólica é considerado pelos candomblecistas tral africana para não correr o risco de re-
pró-africanização apenas uma estratégia ceber retaliações por parte do cristianismo,
de sobrevivência. Pai Walmir compartilha religião dominante na província do Brasil.
dessa concepção e por isso enfatiza a liber- Rita Suriani Lamas (2019) cita que muitos
dade de culto garantida pela constituição terreiros de Candomblé nasceram de con-
contra qualquer necessidade de misturar a frarias ou irmandades católicas, como na
religiosidade de matriz africana com o cris- história do Terreiro do Engenho Velho, lo-
tianismo. Ele acredita que se pode buscar calizado na Bahia.
o status de dignidade para a religiosidade De acordo com relatos citados por
afro contra ideais raciais de inferioridade Lamas (2019) o terreiro existente desde
(racismo religioso) e prescindindo da mis- meados de 1790 surgiu dentro da irman-
tura com a religião dos agentes do racismo: dade “Senhor Bom Jesus dos Martírios
Hoje nós temos liberdade de culto19, está dos Crioulos naturais da cidade da Bahia”
escrito na constituição de 1988, nada nos (BERKENBROCK, 1999). Apesar do sin-
impede disso, infelizmente nós temos
a questão dos preconceitos raciais, as cretismo ser determinante no desenvolvi-
vezes escancarados, as vezes velados, mento histórico do Candomblé, a visão po-
mas preconceito do mesmo jeito, até por- lítica do Babalorixá engendra uma postura
que, as religiões de matriz africanas fo- de resistência em aderir ao sincretismo
ram trazidas para o Brasil pelos nossos com o cristianismo em sua vivência:
ancestrais, negros africanos, então como
ela começa por uma raça negra, raça de Pensar a história do Candomblé, não é
‘bichos’, como nossos ancestrais eram pensar uma história única e muito menos
tratados, então quem vai acreditar de sincretizada no sentido de uma mistura
uma religião saída de negros? (PAI WAL- harmônica, mas pensar que diferente da
MIR FERNANDES, 2020) Umbanda, que utiliza vários elementos
para sua composição, o candomblé pos-
sui uma história mais voltada pela própria
18. O Imperialismo como um conjunto de ideais, medi- luta e resistência do povo africano no Bra-
das e mecanismos, que sob determinação do Estado dito sil. E tal resistência ainda persiste! (PAI
Nação, procura efetivar políticas de expansão e domínio
WALMIR FERNANDES, 2020)
territorial, cultural e econômico. Apesar da prática impe-
rialista estar associada à formação de impérios, o termo Ele sustenta essa fala, na perspec-
pode ser aplicado à Colonização das Américas e outros
processos de exploração históricas relacionados à ques- tiva de desmistificar a romântica percep-
tões territoriais e genocídios. ção que a maioria da sociedade tem em
19. Desde a constituição de 1824, o culto de outras religi- acreditar que o sincretismo poderia ser
ões já era permitido, porém, deveria ser feito de maneira uma união harmônica entre as religiões,
doméstica, não podendo haver identificação oficial de re- ou mesmo que o cristianismo revelaria um
ligião que não fosse católica. As religiões ligadas aos Afri-
canos eram severamente punidas, durante o começo da modelo de civilidade que poderia ser agre-
colonização muitas pessoas foram condenadas no Bra- gado por diferentes religiões.
sil pela santa inquisição, por professar cultos afros. Foi
nesse momento que os negros começaram a introduzir Então, a gente brigou com a sociedade,
santos católicos na sincretização com suas divindades. esses anos todos e aqui estamos, persis-
Somente em 1988, com a Nova Constituição brasileira tentes com uma religião que nada tem es-
que houve a consagração do direito fundamental à liber- crito, como um Alcorão, como uma Bíblia
dade religiosa.

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[é uma religião de tradição oral] [...] Nós, ninguém a nada. [...] Um sacerdote reli-
não saímos por aí pelas ruas fazendo gioso, é ao mesmo tempo uma série de
proselitismo da nossa religião! Todos que coisas: médico, conselheiro, psicólogo,
vêm a nós, nos procuram! chegam até advogado, uma série de outras coisas,
nós! (PAI WALMIR FERNANDES, 2020) por conta da confiança nele depositada
pelos adeptos, por conta da confiança do
Por meio dessa fala, o Babalorisá evi- elo entre ele e a divindade dele, e, assim,
dencia que as religiões de matriz africana ele vai encaminhando aconselhando, ele
não são religiões de salvação que traba- vai fazendo isso ou aquilo para agradar
lham com a ideia de culpa, condenação e a divindade dele e a divindade de outras
pessoas [seus filhos de santo]. (PAI WAL-
anúncio de massa visando à conversão e
MIR FERNANDES, 2020)
salvação. São religiões com uma origina-
lidade sui generis que, no entendimento A partir desse relato, é possível afir-
do entrevistado, pode e deve ser mantida mar que o Candomblé é uma religião que
e até reconstruída (“resgatada”) sem a ne- prioriza a fala, os sentidos e a memória.
cessidade de lançar mão do sincretismo E o papel do sacerdote é passar ensina-
do passado. mentos que são transmitidos de geração
a geração. Por isso, os terreiros de Can-
Religiões da autoridade ancestral domblé são classificados principalmente
Nas religiões de matriz africana o co- por famílias, como já foi abordado em se-
nhecimento e a autoridade que ele gera ção anterior, e essa é a razão de Pai Wal-
estão intimamente ligados ao tempo. Ape- mir enfatizar quem o iniciou, o ano, enfim,
sar da dignidade ser a mesma, e por isso para mostrar a família a que ele pertence
mais novos e mais velhos mutuamente pe- e a partir de quais antepassados ou ances-
direm benção, o comando segue a linha trais são feitas as regras estruturais de sua
da hierarquia tecida pela idade no santo casa. Nesse sentido, a memória não ape-
(tempo de iniciação). E essa hierarquia e nas produz história, como relembro o pen-
autoridade não implica apenas em mando samento de Marcel Mauss (2008), mas faz
e obediência, mas em uma série de outras parte da vivência da realidade presente,
incumbências e responsabilidades dentre em consonância, a memória para o povo
as quais o sacerdote/babalorisá, na condi- de candomblé é “tradição viva” e aciona
ção de mais velho, destaca-se: um “conhecimento total” (BATISTE, 1948).
Por isso, o papel do sacerdote é manter
[Nossa religião] é de boca para ouvido,
ela é de mestre para discípulo e assim
essa memória viva e passar para seus fi-
que nós fazemos as nossas iniciações lhos, e assim por diante.
para Ọmọ Òrìṣà20 [...] é assim que nós Imagem 02: Momento da entrevista com o Pai
passamos pra eles as responsabilida- (Bàbálòrisá) Walmir Fernandes
des que se tem no Egbé21 das religiões
Afro Brasileira, de quê o sacerdote, ele
encaminha, ele orienta, ele dá caminho
para que as pessoas possam chegar até
as suas divindades, mas ele não obriga

20. Nomenclatura dada aos filhos de santo iniciados, que


recebem a energia das divindades, orixás. Também são
conhecidos popularmente como Iaô ( escrita em Iorubá:
Ìyáwó).
Fonte: Kátia Hadad em 8 de agosto de 2020.
21. Aqui, o sentido da palavra Egbé está relacionado a co-
munidade que visa o bem comum, ou seja, a função do Isto posto, concordo com o pensa-
iniciado dentro da sociabilidade a qual pertence. Nesse mento de Veras (2015) quando afirma que
sentido a comunidade de pai Walmir, a partir de sua visão
militante tem como propósito ancestral fortalecer relações trazer a trajetória de vida de um único su-
de convivência com o intuito de se proteger coletivamente. jeito para a etnografia, exatamente como
Esse propósito, segundo ele deve ser passado por todas faço aqui, não significa exaltação da sub-
as religiões de matriz africana, sobretudo, o Candomblé.

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jetividade em detrimento da objetividade, (africanização) dela em detrimento do sin-
nem a revanche do indivíduo sobre a so- cretismo (com o cristianismo) como forma
ciedade e suas estruturas culturais, ou ain- de resistência e luta.
da esquecer a sociedade para olhar para o O Brasil é um país multiculturalista,
indivíduo. Ao contrário, pensar o sacerdote mas a partir da perspectiva de Stuart Hall
é pensar a comunidade por inteira, pois, a (2003), podemos refletir qual multicultura-
comunidade de terreiro carrega o nome do lismo tem sido aceito. Diante da estrutura
sacerdote e vice-versa. construída desde seus primórdios como
De acordo com Beniste (1997, p. 87) uma instituição racista, sexista e misógina,
O Bàbálórìsá e a Ìyálórìşà22, conhecidos podemos concluir que esse multiculturalis-
popularmente como pai e mãe de santo, mo não inclui todas as culturas. As culturas
são as autoridades máximas dentro do negras e as culturas indígenas historica-
Candomblé Ketú, para essa função eles mente são subalternizadas, demonizadas
são escolhidos pelos próprios orixás, são pelas culturas ditas superiores e social-
pessoas que têm que passar pelo processo mente aceitas.
de iniciação como Iyawô, e que realizam os Pensar que a instituição religião é de
ritos obrigatórios e probatórios, que duram suma importância para a formação social
7 anos da data de iniciação, cujo de acordo do indivíduo, e geralmente está associada
com a vontade da divindade, pode vir a ser também à formação política. Neste senti-
um sacerdote maior da casa a saber, Bà- do, podemos afirmar que a religião é so-
bálòrisá ou Iyálóríşà23, pois nem todos são cial, é institucional e é política e sua forma-
destinados a esse papel. Dessa forma, o ção é um potencial para designar padrões,
sacerdote, dono do Ilê24 influi diretamente inclusive culturais e educacionais.
na efetividade, na comunicação e motiva-
ção organizacional do espaço (KAPPAUN, As imposições acontecem de acordo
2007), ele encarna a autoridade ancestral. com quem domina o meio social, no caso
do Brasil, a dominação ainda é relaciona-
Considerações finais da ao colono branco europeu. E o colono
Diante da entrevista feita com o pai tem uma religião, que embora a constitui-
Walmir, percebe-se a preocupação do ção formalize o Brasil como um Estado Lai-
mesmo em não somente exercer o sacer- co, politicamente e culturalmente, isto é,
dócio pela prática do saber relacionado à na prática, temos uma religião dominante
memória passada de geração a geração, presente nas bancadas políticas, presente
como também na prática do saber educa- em todos os setores, seja na periferia, seja
cional e social. Ao falar do orgulho de seu entre a elite. E essa religião (me refiro à
papel de sacerdote e da vontade do saber sua maior parcela) não pratica a dialética
e aprender as questões ancestrais e en- da relatividade cultural, mas a imposição
tender a cultura e religião afro, como re- de sua verdade religiosa, seu monoteísmo
ligião oriunda do povo preto, ele defende e doutrina.
a necessidade de manter o enegrecimento E nessa ideia de verdade religiosa
única e busca incessante da salvação pós-
22. A grafia correta em Yorubá é essa, mas pode escre- -morte, e moralização de conceitos que
ver Babalorixá ou Iyálorixá da forma como se pronuncia. buscam oprimir aqueles e aquelas que não
Babá significa pai e Iyá, significa mãe.
cumprem suas regras morais, muitas ve-
23. Nem todo iniciado pode se tornar um dono de ter- zes delimitando conceitos de bem e mal,
reiro, alguns são predestinados para cargos do mesmo,
uma vez que o espaço de candomblé é composto de céu e inferno, demônio e anjos, acaba-se
hierarquias, e organizado, estruturalmente, além do Pai criando muitas sugestões em relação a à
de Santo, há os Egbons ou Egbomis que são pessoas educação e ciência que são nefastas para
que se dividem como auxílio para o trabalho do sacerdote
maior. a diversidade, haja vista que a pregação
24. Ilê Asé significa casa de Axé.
da palavra de um único livro sagrado (a

Afros & Amazônicos 103 Vol. 1, nº 5, 2022


Bíblia) subjaz essas ações e é sustentada BERKENBROCK, Volney J. A Experiência
como fonte de toda a formação universal dos Orixás. Petrópolis: Vozes, 1999.
ideal. BOLAÑOS, Aimée. Diáspora. In: BERND,
Para o Bàbálòrisá entrevistado, a Zilá (Org.). Dicionário das mobilidades
busca pelo saber ancestral também é uma culturais: percursos americanos. Porto
forma de desconstruir paradigmas. Ao pen- Alegre: Literalis, 2010. p. 167­87.
sar, a religião com o sentido de completu- CAMPELO, Marilu; LUCA, Taissa Taver-
de, ele se posiciona contra os argumentos nard. As duas africanidades estabelecidas
daqueles que demonizam ou “seitificam” o no Pará. Revista Aulas, Campinas, n.4, p.
Candomblé e o taxam como algo ilegítimo, 1-27, abr/jun. 2007.
negativo, e que, por isso, deve ter a sacra-
CHIESA, Gustavo. “A sua religião é a Antro-
lização outras oferendas criminalizadas.
pologia”: histórias e (des)caminhos de um
Além disso, Pai Walmir Fernandes antropólogo-aprendiz em um terreiro de Um-
apresenta diversos aspectos fundamentais banda. Religião e Sociedade, Rio de Janei-
das religiões de matriz africana como a co- ro, v. 40, n. 2, p. 215-236, jul./dez. 2020.
mensalidade, a inclusão, o axé, e afirma CUSTÓDIO, Túlio. A Luta Abolicionista e o
também a importância o yorubá, uma im- papel do negro da Construção Da Própria
portante língua ritual do segmento religio- História. Portal Gueledes [online], 2020.
sos afro e que, como bem deixou claro, é Disponívelem: https://www.geledes.org.br.
um idioma com densa complexidade gra-
matical. DURKHEIM, Émile. As formas elementa-
res da vida religiosa. In: COMT, Algusto;
E finalizo propondo uma reflexão DURKHEIM, Émile. Textos escolhidos.
acerca de uma reconstrução proporcional São Paulo: Abril Cultural, 1973.
da história do Brasil, uma reconstrução
GUALBERTO, Marcio Alexandre M. Mapa
que considere a diversidade e a existência
da Intolerância Religiosa 2011: violação
de grupos religiosos, como as religiões de
ao direito de culto no Brasil. Rio de Janei-
matriz africana, que são tão complexas e
ro: E-book, 2011.
cuja complexidade foi apenas superficial-
mente tocada pelo presente estudo. É pre- HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e
ciso atualizar essa independência que já mediações culturais. Belo Horizonte: Edi-
existe há 200 anos, mas que assim como a tora UFMG, 2003.
abolição da escravatura, em 1888, persiste KAPPAUM, Eduardo Ângelo de Melo. Hie-
em não fazer nenhuma reparação ao povo rarquia numa instituição de candomblé
escravizado e explorado especialmente no ketú. Trabalho de Conclusão de curso (Ba-
tocante às violências e segregações cultu- charel em administração). Brasilia: Uni-
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