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UnB A invencao 0 romance Jacyntho Lins Brandao Digitalizado com CamScanner Jacyntho Lins Brand3o é professor titular de Lingua Literatura Grega da Universidade Federal de Minas Gerais. Foi professor visitante na Universidade de Aveiro (Portugal), na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales (Paris, Franca) e na Universidad Nacional del Sur (Bahia Blanca, Argentina). E autor, entre outros, de O fosso de Babel (Editora Nova Fronteira, 1997), A poética do hipocentauro (Editora UFMG, 2001) € Antiga Musa (Faculdade de Letras da UFMG, 2005). Digitalizado com CamsScanher Equipe editorig, Rejane de Meneses Sua PCTVisaO editor: Yana Palankof Acompanh mento edi Roberta Gomes - Preparacio de ori i Dandizia Queiroz Gama, Elizabeth Aratijo, Sonja C, ae in Valdinea Percira da Silva Rec’ HeonirS. Valentin e Raimunda Diss: Editoraciociaen Alex Chacon Projeto grafica Cartaz.— Criagies ¢ Projetos Grifions Capa Copyright © 2005 by Jacyntho Lins Brando Impresso ito Brasil Direitos exclusivos para esta edigéo: Editora Universidade de Brastlia SCS Q.2-Bloco C-n®78- Ed. OK-22andar 70300-500 Brasilia-DE tel: (Osox61) 3035 4200 fax: (Oxx61) 225 5611 editora@unb.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicagio poder ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacdo por escrito da Editora. Ficha catalografica claborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia Brandio, Jacyntho Lins, ad A invengio do romance / Jacyntho Lins Brandio, ~ Bras : Editora Universidade de Brasilia, 2005. 292 p. = (Colegio Pérgamo) ISBN: 85-230-0814-4 B817 |. Ficcio grega,2, Literatura prega-—histdriae critica. 3. Anise do discurso narrativa, L.Titulo, Digitalizado com Camscanner Porgue la escritura desatada destos libros da lugar a que el autor pueda mostrarse épico, lirico, tragico, cémico, con todas aquellas dulctsimas y agradables ciencias de la poesia y de la oratoria; que la épica tan bien puede escribirse en prosa como en verso, Miguel de Cervantes Saavedra Digitalizado com CamScanner Sumario Introdugio i Capitulo 1 Exists um ROMANCE GREGO? uN A palavra ¢ 0 fendmeno 25 A poética chissica ¢ 0 romance 29 © que & um romance? 31 Capitulo 2. A NarrativA DE FICGAO NA GniiclA 35 O estatuto da narrativa: didgesis © mimesis 39 O estatuto do narrador: nfio mudar/tornar-se em algo outro 46 O estatuto da narragio: historiar ou poctizar 48 O estatuto do narrado: verdade ¢ ficgio 53 Capitulo 3 O GENERO E SUAS ESPICIES 63 Do corpo mutilado ao corpus (re)constituido 70 Um género sem origem 17 Viagem e amor 82 Capitulo 4 ONARRADOR 91 Titulos, proémios e epilogos 110 As apresentagées do narrador 118 As personagens narradoras 127 O narrador representado 141 O narrador-personagem 146 Capitulo 5 ONARKADO 157 A prosa de fiegiio 160 O piiblico do romance 167 180 A natureza do diggema Digitalizado com CamsScanner ON 10 P Vin, des amorosas pintadas 144 Historias escritas 194 199 Capitulo 6 ANARRATIVA Entre epopéia ¢ historia O reino da Tykbe philikainos A ijkbe buscada ¢ a tikhe sofrida O mundo das aparéncias O mundo como espetaculo Capitulo 7 UM GENERO: VARIAS ESPECIES 265 93 Referéncias 275 73 Digitalizado com CamScanner Introducao Agua, ar, terra, fogo. Hi algum tempo ouvi de um colega a observagio arguta de que os gregos, a0 considerarem ess quatro elementos como constitutivos do universo, fazer cosmogonia quando, na verdade, faziam poesi mente nao seria necessario opor cosmogonia a poe: perceber que, para o espirito grego, os processos cosmogdnicos sio, essencialmente, movimentos po(i)éticos. Com cfeito, s6 a partir de uma visio poética do mundo, implicita na propria raiz da palavra phyisis, é que o pensamento grego péde descobri sua vertente principal: como conciliar a mudanga com a per manéncia, 0 que o fez enveredar pela reflexao a respeito dos processos de transformacio. Do mesmo modo que phyiein ex- pressa essa potencialidade transformadora no imbito dos fendmenos naturais (ou a natura naturans), poiein cemete a poténcia na esfera das criag6es humanas. falvez por isso as poéticas gregas, em sentido especializa- do, se conformaram a partir clo esforco de pensar as diferengas dos diferentes géneros, procurando perceber os elementos constitutivos que — como a agua, o ar, a terra ¢ o fogo — sio permanentes. Do mesmo modo que no ambito da phyisis, tam- bém aqui nao se trata de uma permanéncia estatica, mas exatamente de pofesis, processo de transformagio baseado na (re)ordenagio do que hoje chamariamos elementos do discur- 50. Assim, na epopéia ja se encontravam, numa combinagio propria, elementos poéticos da tragédia, da historiografia ou do didlogo. Os critérios aristorélicos e de criticos posteriores, que procuram definir e classificar esses elementos —- como na clissica distingao entre meios (em qué), objetos (o qué) ¢ mo- dos (como) do discurso poético -, constroem as bases dinami de uma teoria da literatura em que a preocupacio com os pro- cessos de transformagio é a ténica principal, motivo por que a Digitalizado com CamsScanner ive do cormnce seas dos sul, se capa de is eer, a cnrerursimente 2 propedal € 1 adaprarse pars Pomigencros locuarentes na épact 66 202 fr ccm come objetivo enfoar 0 ssetmenio bo ron es Gréci, nsando com o8 problemas que cream ge romance Ot ro come nero proprio da Werte lisa Secon rea Hai irra cm de 2 forget pee na buns, consamtenen, modes de expres Tate trabalho, os ene helenae © Site squci ave entre estes Cee al a argu como tao Canfort pty s- te do utrcon de Peto c dsb Matamoros, sate au rn didn em Orr se 08 romances peal atu de otine de awores substance Fee tad ssi, 2 wn 0 tripe, a beneole seicor nts {md wontade do helen on Treo ats rve deste preconceis Iv eno atc amiga wm penero decadent, que nals See com grande erature Uo pass arr econ puto esapim « pels supefcallade, inc cro oe Sander temas concermentes 3 condiete Foard Je poe denpertarcondescendéncis no I mans irs cortoldae. Na verdade, case peeconecto see ae eon y neratora greys dn chamada “€RDC® TOM Fe Jame ins prootinco €0 argo de B.A. van GIOAIREE, a yeade cm 1963, Cenc erary tendencies inthe second eet Det em qc wpemas tacano, sna que 16 paral Cen aes saad tm amps peecursrce D1 68 sgt moderns: que axburam por condgure 0 me de pistes ioe etudon cisco, scleionando o que deve Sf rect eslonmadn, Anim, mesmo 08 eaiores Se Heliodose ‘ay pi mee rite me, pe, ase Gs 8S Gr cmon eam p15 Ina w prs 9 colegio Bude, RM. Rawenhury © 7 Lom, sheen 3 ‘Sgunda parte de gu lntodug com o sepuinte coment ‘ances res nda ps ta conan a rn neato ode exercxpa, com agmenndesb {oro coro ds le anos parecer presenta aa lowig rec teat de ogra Nascited, sada Qe conocido cas quia vo sexo, tum su edad 0 Sigumas dens pares de mento. ‘Ss stantas martes por sms cnet supercal ¢pbre me eur aw craccren po ue € preci due ote ahr Fwd perkno Gondeatmse «ere lon" Comiero © ‘rempla leva pls agus pomos que me parece it ‘ronan cdo ss exec alr ~ ce » cere eam 38 Garces do public ion ntenconaiade exis (ida Sire de tm on omian ome pep nee pi errny yoni ‘ht quader no tno, mas eo tonsegue adic dow dames de seb pa ia mn Cn, em enprinera@ fraser do fot. 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Seiad = ‘Si dos penton, com um total de 34 paginas © romance no ‘cups uma nica pana intel” eideme que o ppt fo Ge dbibtogsaa sobre o eomance ndo sr tema (compasses fr exemplo, 4 dedieads 8 epopén ragila 3 Ure tr 3 {uc.em dbes de conn, se dedique menos espa see Mab (See fro apenas refers o que deseo sblihar ‘Queto debs bem cao: alo pretendo salrar 0 romance rego, como ao pctendo desclanicto. Qu, entnd0 04 [sid denepaao, tomove apenas como um fenbmeno gus, nem Sa ncm menos que qusquerfeadmenodesvs orem: di 6 Sobceo humano. Mio interes se @ de dua ar, terrae fo30 que ‘mundo de ato € fio = oa de dpeiron, némeron, komo, He ‘tons, protons, neutrons, quar ou qualquer outa partcua com Ge, 4 cada di, os fics se deparam, Nao estou nepando o v= lor do conhecimenco, mas apenas sdmitindo ae, de fo. © muro se apresents 4 nossa comprcensio coms aparencia © & fesse mundo de apaéncias que nos movimentamon, labor No ambito das poéticas gregas antigas, simplesmente porque 0 romance € posterior a elas; com relacdo as poéticas latinas ¢ medievais, porque estas se pautaram pelos modelos gregos. Aristételes tem em vista o corpus da literatura grega exis- tente até a sua época ao elaborar sua teoria dos géneros. Embo- ra admita que tanto obras em verso quanto em prosa!® possam pertencer aos dominios da literatura (um conjunto que, admite, até entio nao contava com denominagio), observa que, em ge- ral, se associa 0 verso a condigao de poeta, mesmo que 0 verso apenas nao possa ser tido como elemento suficiente para definir o que pertence 4 arte poética (poietike tékbne). Com base nesse senso comum, os géneros em prosa entao existentes sfio descar- tados do corpus sobre o qual teoriza, como os mimos de S6fron e Xenarco e os didlogos socraticos.’” E interessante que (14) Bruni considera Boceaceio o inventor da fefleralura mezzana, niio s6 com relagio so Decameriio, mas 20 conjunto de sua obra (cf. BRUNI, op. cit). (15) Yer comentarios em REARDON, The form of Greek romance, p. 7 (16) Podtica 1447 a; Tals Adyoig WrAoIg ¢ TOIG HETPOLS. (17) thidem, 1447 b. Digitalizado com CamScanner ~~ > | au Ainvengao ¢40 do romance Aristételes tenha uma percepgio fina do que poderia ser y definigio de literatura, mas nao chegue a ela, concentrando sa atencio apenas na poesia. A perpetuagio desse ponto de visu. que admite, implicitamente, uma superioridade da poesia sobre a prosa, tera conseqiiéncias de considerdvel importincia para teoria do romance. © fato é que existe uma produgdo em prosa na Grécia, mas apenas pouco a pouco se admitir que possa ser entendida come literatura. Em grande parte, isso se dé porque a prosa, em prin. cipio, nio se considera como veiculo de ficgio. Assim, tanto Aristoteles quanto a maioria dos tedricos postcriores concordam que Platio tem um estilo ¢ uma grandeza literdria compariveis aos de Homero;" apesar disso, o didlogo platénico dificilmente se classificaria como ficgio na Antigiiidade, pertencendo, por- tanto, 4 esfera da literatura em sentido amplo, mas ficando fora do campo do que se entenderia como poético em sentido espe- cializado. E que, de certa forma, a ficgio é prépria do poético, ¢ 0 uso da liberdade ficcional num texto em prosa nao deixa de ser algo de deslocado. Luciano admite que a “pura liberdade” de invengio € apandgio apenas de poetas, pintores ¢ sonhos, nio podendo ser usada por historiadores ¢ fildsofos, pois deles se esperam discursos verdadeiros.” Bem se entende como, nesse contexto, 0 romance seja um género totalmente imprevisto, ao somar, dé modo inequivoco, a ficgo 4 prosa. Bem se entende como, até a Idade Moderna, seja um género sem teoria, na medida em que tanto as poéticas medie- vais quanto as neoclissicas s4o, como a de Aristételes, dedicadas 4 poesia.” Assim, 0 romance foi muitas vezes enquadrado 4 forca (18) Aristételes afirma, em fragmento do tratado Das poetas, que o estilo dele esta entre a prost €.a poesia; jf PSEUDO-LONGINO, Do sublime, cita Platio como o melhor modelo de emulagio (CiAos) com Homero, admitindo que tenha mesmo ultrapassado o antigo pocta. (19) Trata-se de um principio importante na poética lucianica, expresso em Hermétimo ¢ Comio sé deve escrever a bistéria, que comentei em BRINDAO, A poética do bipocentauro: literature, sociedade ¢ discurso ficcional em Luciano de Samésata. (20) Ver AGUIAR ¢ SILVA, Teoria da literatura, p. 258. De fato, a primeira tentativa de teorizar sobre © romance clata apenas do século XVII, com o preficio de HUET (4 Zayde, de M. de Sega), Traité de Vorigine des romans, testo logo traduzido para o latim, 0 holandés, 0 inglés ¢ 9 alemio, 0 que prova sua difusdo. Digitalizado com Camscanner ma? x1 capitulo 1. Eviste um romance y dos trés géneros, supostamente aristotélica, como uma o que tem evidentes inconvenientes. Ao seria igual a na teori modalidade do épico tsar os proprios critérios do filésofo, 0 roman epopcia no que se refere ao modo de representacao, mas dife- rente dela com relagao aos meios € aos objetos. Isso significa tre o romance ¢ a epopéia existiria, pelo menos, uma lente 4 que separa esta ultima da tragédia. na totalmente quanto aos objetos, que en distancia equiva medida em que elas coincidem parcialmente quanto 40s meios, mas diferem quando ao modo. Além disso, a diferenga que implica 0 uso de verso ou de prosa nao deve ser menosprezada, pois tem importancia nao apenas na composigao do texto, mas também em sua recepcao. O verso parece destinar-s¢ a0 ouvido, pelo menos em suas ori- e so mais tarde visa 4 leitura, 0 que vale tanto para a Anti- dade Média. As cangGes de gesta medie- vais, como as epopéias homéricas, pertencem 20 dominio da oralidade e, mesmo escritas, guardam essas marcas nos proces- sos de composicao. Ja a prosa, desde cedo, destinou-se 4 leitura. O romance moderno, como o grego, tem as marcas intencionais do discurso escrito, voltado primeiramente para um publico de leitores.2! & da perspectiva dessa destinagio que o dado formal de ser um texto em prosa tem. relevancia, vindo a constituir uma primeira caracteristica, basilar, que conforma a no¢ao do género desde a Antigiidade, de que decorrem as demais. Tentarei percorré-las passo a passo. gens, gitidade quanto para a I O que é um romance? A dificuldade em responder a essa pergunta provavel- mente, em relagio direta com a (im)propriedade de levanti-la. Simplesmente, Nenhum Ieitor se pergunta o que € um comance. © leitor © reconhece. Entretanto, como lembra Reardon, nao ha estruturat au KI )—Subre © assunty, ver KRISTEN, O fexto dir romance: estudo semiokigico de wn narrativa iransformacional, pp. 154 3s. Digitalizado com CamsScanner

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