You are on page 1of 5

1

APRESENTAÇÃO

Nas últimas décadas, houve enorme crescimento das traduções diretas do russo no
Brasil. Entretanto, é falso pensar que antes só se traduzia indiretamente – do francês, inglês ou
espanhol. A história da tradução direta começa muito antes, em iniciativas isoladas, como foi o
caso da Biblioteca de Autores Russos, de Georges Selzoff (Iúri Zeltzóv), cujo modus operandi,
segundo nos conta Boris Schnaiderman, consistia em ir “traduzindo os textos como podia, em
voz alta, para dois escritores em início de carreira, Brito Broca e Orígenes Lessa, que os
redigiam em nossa língua”.1
O que distingue o momento atual é a predominância das traduções diretas; a ampliação
do catálogo, incluindo autores contemporâneos, sem deixar de lado os clássicos e a literatura
soviética; e o crescimento do número de tradutores vinculados aos cursos de graduação e pós-
graduação em russo das universidades brasileiras. Esse quadro já se divisava na década de 1990,
quando Aurora Bernardini publicou um apanhado do percurso dos Estudos de Russo na
Universidade de São Paulo (USP). Além dos cursos de graduação em russo da USP e da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), há disciplinas de russo eletivas na
Universidade de Campinas (UNICAMP), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e na Universidade Federal Fluminense (UFF). De tempos em tempos, acontecem
iniciativas de ensino de língua, cultura e literatura russa como atividade de extensão em outras
instituições de ensino superior, como a Universidade Estadual do Ceará (UECE) e a
Universidade de Brasília (UnB).
As contribuições de outros cursos e outras áreas para a eslavística brasileira também
merecem destaque. A tendência de realização de pesquisas de caráter interdisciplinar apontada
por Bernardini, com participação ativa “em grupos de estudo como Literaturas modernas em
língua estrangeira, Literatura e história, Cultura oriental e cultura ocidental: projeções,
Multiculturalismo brasileiro: fisionomia e presenças orientais, Culturas orientais e
modernidades2 (1994), permanece até hoje.
Na UFRGS, as disciplinas eletivas de Língua, Cultura e Literatura Russa têm estimulado
alunos e alunas a refletirem sobre questões dos Estudos da Linguagem e dos Estudos de
Literatura nos trabalhos finais das disciplinas, nos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e
na Pós-Graduação. Alguns desses trabalhos têm sido apresentados no evento anual do Núcleo
de Estudos de Tradução Olga Fedossejeva. Além disso, a oferta de cursos na Extensão, abertos

1 SCHNAIDERMAN, B. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 45.


2
BERNARDINI, A. Origens e atuais linhas de pesquisa. Humanidades. Língua e Literatura russa. São Paulo,
Estudos Avançados, v. 8, n. 22, set./dez. 1994.
Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n.45, 2020.
2

à comunidade em geral, permaneceu como marca do trabalho de Tanira Castro, pioneira no


ensino da língua russa na UFRGS. O primeiro curso de extensão de língua russa foi aberto em
1985.
Em relação à publicação de traduções em periódicos, destacamos o primeiro volume
(1999) dos Cadernos de Tradução da UFRGS dedicado à tradução de textos russos. Sob
organização de Tanira Castro, ele reuniu traduções de 22 contos russos, tendo como objetivos
“levar a todos os membros da comunidade de Letras uma pequena parte da contribuição dos
alunos de graduação e de extensão” [...] e “mostrar a habilidade em traduzir, do russo para o
português, de nossos alunos de graduação, extensão e bolsistas”.3
Na via contrária ao fluxo russo-português, as traduções do português para o russo
também têm ganhado importância, com o incremento do Perevodovedenie, como são chamados
os Estudos da Tradução na Rússia. Afinal, a literatura em seu sentido contemporâneo, como
escrita secular, só surgiu na Rússia no século 18, ou seja, centenas de anos após Dante,
Shakespeare, Cervantes e Rabelais.4 Foi em um período muito curto de tempo que a nação russa
produziu um corpo de escrita reconhecido como equiparável àquele proveniente de tradições
literárias muito mais antigas e ricas. Mas, já em 1857, Tchernichévski escrevia: “A literatura
traduzida é de enorme importância para nós. Até Púchkin, ela era incomparavelmente mais
importante que a [escrita] original russa. E, mesmo agora, não é totalmente certo que a escrita
[russa] tenha se tornado mais importante que as traduções.”5 Como escreve Friedberg: “Apesar
de algumas das maiores obras literárias mundiais terem sido escritas, a partir daí, em russo, as
traduções mantiveram sua importância. À exceção do período xenofóbico do governo Stálin,
ficção, poesia e drama da Europa ocidental traduzidos conservaram seu lugar de costume como
parte integrante da cota de leitura de praticamente todo o russo que ama livros.”
Este volume dos Cadernos de Tradução da UFRGS tem o objetivo de reunir trabalhos
em que a tradução de textos da língua russa tenha papel primordial, seja como objetivo
principal, seja como processo de aprendizado da língua ou como produto necessário às trocas
literárias e culturais. As contribuições recebidas revelam a variedade de temas estudados e os
diferentes perfis dos pesquisadores envolvidos com o multicultural mundo russo.

3 CASTRO,T. (Org.). Contos russos. Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n. 7, jul./set. 1999, p. 5.
4 FRIEDBERG, M. Literary Translation in Russia: A Cultural History. Pennsylvania State University Press, 2008.
5 TCHERNICHÉVSKI apud FRIEDBERG.

Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n.45, 2020.


3

Em “Baudouin de Courtenay e o Fonema”, Rodrigo Garcia Garay inicialmente


apresenta o linguista polonês Jan Baudoin de Courtenay, fundador da Fonologia moderna. Em
seguida, podemos ler a sua tradução do artigo “O fonema”, acompanhada do texto de
Courtenay, de 1899, em russo.
“Da migração à tradução”, de Gabriel Iochpe Wainstein, revela trajetórias de vida em
uma viagem migratória da Europa à América do Sul e em uma aventura tradutória do russo ao
português. Realizadas em momentos históricos diferentes, essas trajetórias expressam o
potencial de integração e descoberta presente na iniciativa de traduzir.
Arthur Beltrão Telló e Eduardo Cardoso de Moraes fazem suas reflexões “Sobre a
tradução dos contos ‘Новое платье’ [Nóvoie plátie] e ‘Плохая примета’ [Plokháia primiéta],
de A. I. Kudriavítski”. Nesse artigo, discorrem a respeito da vida e a obra desse autor russo
contemporâneo, explicam escolhas tradutórias, apontam questões relativas à gramática, léxico
e estilo, além de destacarem o potencial da tradução literária como atividade para o
aprendizado da língua russa.
Joaquim Ferreira Mendes Neto traduz Aleksandr Púchkin e Mikhail Liérmontov no
artigo “Breve comentário de dois poemas em traduções literais”. A proposta tradutória foca em
palavras-chave para a compreensão do texto e para a discussão dos motivos comuns aos poemas
desses dois clássicos da literatura russa.
“Modelos mitológicos da literatura popular: uma questão acadêmica” é uma
contribuição de Rafael Bonavina para os estudos brasileiros sobre literatura popular. Na
introdução, o autor justifica a escolha do texto; em seguida nos apresenta a tradução “Dos
modelos mitológicos da tradução oral”.
Em “Conversa com Anacreonte: uma original apropriação clássica”, Rafael Frate
apresenta e traduz um poema de Mikhail Lomonóssov. Conhecer esse autor russo do século
XVIII consiste em tarefa essencial para quem quer se aprofundar na história da literatura russa,
estabelecendo ligações entre os clássicos do XIX e os movimentos sócio-culturais que
possibilitaram o surgimento de nomes como Fiódor Dostoiévski e Liev Tolstói.
Em “Um luminoso conto de fadas: uma tradução”, David Molina verte ao português o
primeiro conto publicado pelo escritor Andrei Biêli, em 1904. O conto é, em parte,
autobiográfico e relata uma versão ficcional do turbulento amor de Biêli por Nina Petróvskaia
(1884-1928), figura que roubara o coração do também simbolista Valeri Briúsov (1873-1924).
Na sequência, a premiada com o Jabuti de tradução de 2019 Letícia Mei apresenta uma
proposta poética em português brasileiro comentada e anotada do longo poema Flauta
Vertebral, de Vladímir Maiakóvski, de 1915.

Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n.45, 2020.


4

Raquel Siphone traduz o artigo Potebniá, de Viktor Chklóvski. Neste texto, publicado
em 1916, o crítico fala brevemente acerca dos principais temas e desdobramentos da obra de
Aleksandr Potebniá, teórico que foi um de seus mentores acadêmicos e sobre o qual o formalista
fez duras críticas, mas também reconheceu seu valor histórico-científico.
Luis Labaki verte ao português dez poemas inéditos escritos pelo cineasta Dziga
Viértov e localizados em pesquisas realizadas pelo autor na Coleção Dziga Viértov do
Österreichisches Filmmuseum, em Viena, e no acervo do cineasta no Arquivo Estatal Russo de
Literatura e Arte (RGALI), em Moscou. Os versos datam de períodos diversos, cobrindo
períodos das décadas de 1920 e 1940.
César Marins de Oliveira nos apresenta a tradução de trechos do romance Os senhores
Golovliov do satirista Mikhail Saltikov-Schedrin. Esse autor russo que tanto polemizou com
Fiódor Dostoiévski, sobretudo nas contendas estampadas nas revistas “O tempo” e “O
contemporâneo”, foi um analista perspicaz da sociedade em que viveu. Para James Wood, entre
os membros da família retratada no romance, encontra-se a maior criação de Saltikov-Schedrin
– o hipócrita, ignorante e loquaz Porfíri Golovliov.
Quem conhece a biografia de Liev Tolstói deve ter ouvido falar nos dukhobors,
pregadores do pacifismo, do vegetarianismo, do fim da propriedade e do serviço militar. No
artigo de Daniela Simone Terehoff Merino, além de compreendermos melhor as relações
entre eles e o autor de Guerra e paz, podemos ler trechos do relato de viagem do pedagogo e
diretor teatral Leopold Sulerjítski, que acompanhou a saga dos dukhobors em sua luta pela
sobrevivência fora do território russo.
Mais conhecida por seus versos, Marina Tsvetáieva é representada aqui em prosa na
tradução de Passe livre por André Nogueira. O texto, baseado em seus diários de setembro de
1918, narra sua viagem à província de Tambóv em busca de conseguir alimento trocando bens
com os camponeses locais, a convivência com fiscais e soldados do destacamento alimentar, os
abusos sofridos pelos camponeses etc.
Gabriela Soares traduz e comenta o ensaio Tchékhov, do precursor da distopia literária
Ievguêni Zamiátin. Escrito em 1924, o texto desempenha um importante papel ao tentar explicar
uma tentativa de reabilitar o autor frente à rejeição por parte da nova geração que ansiava pela
incipiente literatura soviética. Zamiátin tenta compreender Tchékhov numa perspectiva
diferente da de seus contemporâneos, ressaltando a construção literária, as experiências do autor
envolvendo os infortúnios das camadas mais pobres e o consequente desenvolvimento de uma
espécie de humanismo tchekhoviano.

Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n.45, 2020.


5

Questões referentes à pronúncia da língua russa por brasileiros motivaram a pesquisa


que resultou no artigo “Previsão de interferência fonética e erros reais em contatos linguísticos
entre o russo e o português”. As autoras Ekaterina Budnik e Suellen Medina Martins
traduziram o texto do russo para o português especialmente para esta edição.
Um salto se dá desde os anos iniciais de URSS até a obra do contemporâneo Dmitri
Býkov, objeto de estudo de Eloah Pina. A tradutora verte O condutor, originalmente publicado
em 2007, com base no cronótopo da estrada, especificamente da via férrea – símbolo largamente
empregado na literatura russa desde o século XIX. Neste conto, Býkov ironiza o passado russo-
soviético com o refinado humor que lhe é inerente e traz um toque de realismo mágico, como
apontam alguns críticos.
Paulo Calderaro propõe a tradução comentada de Mãos: Reflexões sobre a evolução
profissional, texto de 2011 de autoria do cineasta Aleksandr Sokúrov a respeito da obra de um
dos pioneiros do cinema soviético, Serguei Eisenstein, e que reflete ainda sobre a natureza da
arte, do cinema e da história.
A skazka – conto maravilhoso, como foi traduzido na obra de Vladímir Propp em
português brasileiro, ou conto de fadas, como traduz Helder da Rocha em seu artigo – é um
gênero revisitado por vários autores russos clássicos. A proposta de Rocha consiste em mostrar
a primeira experiência de Alesandr Púchkin nesse campo: “Czar Nikita e suas 40 filhas”, escrito
em 1822, em versos.
Pelas permissões de publicação, agradecemos a Dmitri Býkov; Aleksandr Klimin, da
agência Elkost; Aleksandr Sokúrov e sua assistente Rita Afonina; Anatoli Kudriavitski; e
Anton Kuchaev.

Boa leitura!

Denise Sales
Marina Darmaros

Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n.45, 2020.

You might also like