You are on page 1of 9
7 (0s relatos e argumentos deste artigo podem ser encontrados de forma mais desenvolvida em MACRAE, E. A. Constr da jqualdade: politica ¢ Wentidade Ihomossexual no Brasil da “abertura”. Salvador: EDUPBA, 2018) For jando aliangas e reconhecendo complexidades: as ideias e experiéncias pioneiras do Grupo Somos de Sao Paulo James N. Green’ Langar um olhar critico 20 pasado, quando 0 historiador ¢ um dos protagonistas dos eventos analisados, é um processo complicado e cheio de subjetividades. E possivel manter uma distancia apropriada das proprias bes do investigador que estava envolvido nos acontecimentos quando cle ou ela pretende estudar “objetivamente” um periodo distante repleto de conflitos? Seri que as memérias que uma pessoa guarda sobre debates, brigas € diferengas, ou mesmo momentos de euforia ¢ alegria, refletem 1 Professor de hist6ria do Brasil na Brown University em Providence, Rhode Island, Diretor do Brazil Initiive da Brown University e Ditetor Executive da Brazilian Studies Association (BRASA). Green € autor do livto Além do carnaval 4 homossexualidade masculina no Brasil do século XX (Editora da UNESP. 2000) e Apesar de vots:2 oposicao a ditatura brasileira nos EUA, 1964-85 (Com- panhia das Letras, 2009). Editou varios livros em portugués entre eles, O ho ‘mossexualismo em Sdo Paulo ¢ outros esos com Ronaldo Trindade (Editors da UNESP, 2005); Fresos tics: fontes sobre a historia de homossexualidade no Brasil com Ronaldo Pélito (José Olimpio, 2006) e Ditaduma ¢ homossexualidades repressio, resistencia e a busca da verdade com Renan Quinalha (Editors da UFSCar, 2014). Em 2018, a Editora Civilizacio Brasileira vai publicar 0 livro Rewhwionirio e Gay: a vida extraordiniria de Herbere Daniel, uma biografia sobre Herbert Eustiquio de Carvalho, minciro, studante de medicina, guerri- Iheito, exilado, candidato gay a deputado estadual no Rio de Janeiro e militante do movimento de pessoas vivindo com HIV/AIDS. o James N. Green « Renan Quinalha + Marcio Caetano + Marisa Fernandes (orgs.) algo mais de que recuperagdes parciais ¢ incompletas dos peripécias que foram findamentais no desenvolvimento dos primeiros passos do movi- i ita que tenha mento LGBT brasileiro? Nio existe riscos de que um ativista que sido partcipante nos episiios etudados poss fhzerreeituras destoreidas deites “tempos perdidos” para justificar presente ou a sua participagio nas ‘ocorréncias do passado? fi : [Nao hi respostas simples para estas questdes. Todos nés temos perspec tivas singulares que sio produto das construgdes de nossas vidas individuais. Els sfo colorids por nosso poscionamento na sociedade ¢influnciadas por um infinito niimero de fitores. Além disso, as memérias se misturam € flham. Algumas pessoas mantm rancorese ressenimentos persistent (¢ até restos de amores nio correspondidos) que afetam suas interpretagdes de ‘momentos longinquos. Os documentos preservados em arquivos pessoais ‘ou em depésitos oficiais podem ter varias interpretagdes ou oferecer ver P e, mentir, como no caso ses fragmentirias e incompletas. Podem, inclusive, menti de um relatério encontrado nos arquives do Servigo Nacional da Inteli- géncia de um informante que alegava: “JIM GREEN, certamente pseudé- nimo do conhecido intelectual paulista [Fernando] Gabeira, dirigente da Convergéncia Socialista do Estado do Rio, sendo um dos organizadores da forga homossexualista do Pais, escreve sobre os debates havidos no I Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados.” E verdade eu ca miltante da Convergéncia © esrev casinei uma carta que foi publi- cada no jornal Lampido da Esquina em 1980, mas Gabeira é mineiro e nio paulista, € até onde sei ele no se identificava como gay ou participava da Convergéneia Socialista (CS). Ou seja, 0 académico sério tem que manter tum olharertco quando utiliza registos do passado ou depende das suas préprias lembrangas destes momentos. E preciso ter consciéncia da sua pré- pria subjetividade na producio de conhecimentos, mesmo crane © seu envolvimento nio esti explicito, 0 que tampouco é 0 caso deste ensaio sobre os momentos originarios do movimento LGBT.’ GENCIA, "Ce éncia Socialista em IWIGOS NACIONAL DE INTELIGENCIA "Comer Bic omsezuaiuma’ Informe No- 108/500 / 0.20 ule 180 esi SREEN,JmesN-"More Lowe and More Ds The Bung othe B ° Monat Gb acy Gy on ain a npr =f Morte ncn oo Bary Aan Wiles Days Rd ST Historia do Movimento LGBT no Brasil 65 Existem outras armadilhas de pessoas dotadas de talentos literirios, que onseguem inventem ou imaginar um passado que nunca existia e eventos que nunca aconteccram, ou que ocorrem de outra maneira. Em geral a sciplina de historia exige fontes, notas pé de paginas ¢ provas para as afir- ages do historiador. E se no existem,o historiador apresenta as dividas, 2 possbilidades e as improbabilidades sem afirmagSes definitivas, pois reco- nahece as dficuldades de aproximar uma reconstituigio do passado, Ciente destes desafios metodol6gicos, muitos antropélogos ¢ alguns his- ‘oriadores apresentam as suas subjetividades, quase como um ritual, no come 0 de qualquer texto para alertar o leitor da sua parcialidade. Seguindo esta ttadicio, vou oferecer uma pequena biografia antes de entrar na esséncia deste trabalho, que é uma anilise da importincia das ideias que circulavam no Gru- Po Somos no alvorecer do movimento LGBT brasileiro até os dias de hoje Militei na ala esquerda do movimento de gays e lésbicas nos Esta~ dos Unidos quase desde o mesmo dia em que assumi a minha homos- sexualidade, em janciro de 1973. Alids, imediatamente depois de minha Primera reuniio no Gay Activists Alliance em Filadélfia, participei de uma “aco” na frente de uma boate gay, que barrava a entrada de tras vestis, antes mesmo de entrar nestes espagos misteriosos e deliciosos do gueto.gay nos anos 1970s. Ao mesmo tempo, eu fazia parte de um Pequeno grupo de ativistas, cléricos progressistas e brasileiros exilados que denunciavam a tortura no Brasil e © apoio do governo norte-ame- rFicano 4 ditadura militar brasileira. Conheci Joio Silvério Trevisan em Berkeley, California, em 1975 ¢ foi ele quem me convidou, em setem- bro de 1978, para participar do entio Niicleo de Agdo para os Direitos dos Homossexuais, que no comego de 1979 adotou o nome Somes: Grupo de Virmagio Homossexwal. rowel. Philadephia Temple Univescy re, 1999, p. 91-109, SIMOES, Jato, FACCHINI, Regina. Ni tha do anos: do movimento homosicxual ay LGBT. Sto Paulo: Fundacio Pers Abram, 2009; TREVISAN, Joio S. Denes no pant 1 homossexualdade no Bra da colbia i atulidade Rio de Janeiro: Recond, 2011 4 GREEN, James N.““Abaixo a represso, mais amor e mais tesi':uma meméria sobre a ditadurs © © movimento de gays e lsbicas de Sio Paulo na época da abertura,” Revista Acen, 27:1 (jan./junho 2014), pp. $3.82, 5 BREEN, James Ni Apa de tops dads mia ns EUA, 1964-85. io Paulo: Companhia das Letras, 2009. 66 James N. Green + Renan Quinalha « Marcio Caetano + Marisa Fernandes (orgs) Durante os préximos trés anos, eu seria um memibro ativo do Grupo Somos, (Fiquei ausente do grupo apenas em marco ¢ abril de 1979, quando voltei para os EUA para consiguir um novo visto de estudante para comevar ‘© mestrado em Ciéncias Sociais na Universidade de Sio Paulo). Em uma reuniio do subgrupo de Atuacio em junho de 1979, fai ew quem propus a campanha de defesa do jornal Lampido da Esquina, cujos editores foram investigado pela Policia Federal Militar por possvilmente violar a Lei da Imprensa. Sugeri também a nossa participacio no ato do Dia do Zumbi,em 20 novembro de 1979, na frente a0 Teatro Municipal de Sio Paulo e pre- parei a nossa faixa que proclamava “Contra a diseriminago racial,” assinado Somos: Grupo de Afirmagio Homossextal.” No I Encontro de Grupos de Homossexuais Organizados, apresentei a ideia de organizar um Dia Nacio- nal de Lutas Homossexuais, que seria em 28 de junho, para coincidir com as paradas LGBT internacionais.® Estive presente na reuniio na casa de Alan, 0 irmio de Edward MacRae, ‘na qual formamos a Comissdo de Homossexuais Pri-1" de Maio, que mobilizou 50 gays e lésbicas para participarem da passeata em fivor da greve ger, que ‘ocorren em 1980, no ABC, quando Lula foi preso e enquadrado pela Lei de Seguranca Nacional. Carreguei, junto com outros militants, as duas faixas, agora famosas, que afirmavam “Contra a Intervencio nos Sindicatos do ABC” "Contra a Discriminagio do/a Trabalhador/a Homosexual”. Quando es- tivamos preparando as faixas, eu insisti em escrever “do/a” e “trabalhador/2”, apesar da insistincia de alguém que me explicava, naquela ocasifo, que niio era necessirio. Com esta formulagio de inclusio da diversidade de género na lingua portuguesa, fui um precursor ao tentar inventar um simbolo como @ para significar o masculino ¢ o feminino, Comprei os panos vermelos para as faixas na rua 25 de Maio © as pintei na sede da Convergéncia Socialista, perto do Parque D, Pedro. Uma vez escrevi a palavra “homosexual” com um 6s” ¢ tive que correr a uma loja para comprar outro pano. ‘Também fai militante da Convergéncia Socialista, entrando na orga nizagio semi-clandestina depois de participar quase seis meses no Nicleo de 6 GREEN, James NA luta peta igualdade: desejos, homossexunlidade e 4 esquer- dda na América Latina”, Cadernos Eidgard. Leuenroth, Homossesuaidae; Sociedade ‘Movimentos¢ Lata, 18/19, (2003), p. 13-39. Historia do Movimento LGBT no Brasil Ao partes Dircts dos Homossexuais, A minha atuagio inicial na CS, bas- ‘ante preciria, estava no jornal alternativo Versus. Em junho de 1979,com 0 apoio de Maria José Lourengo, a Zezé, uma das fundadoras da Liga Operi- ria, uma organizagio totskista clandestina que se transformou na Conver- sgéncia Socialista durante 0 processo da abertura lenta, gradual e restrita dos governos dos generais Geisel e Figueiredo, organizei a Faccio Homosexual ‘da Convergéncia Socialista. Minha ideia era reunir os membros gays ¢ lés- bicos da CS € pressionar a organiza¢io a adotar uma posigio progresssta sobre questdes de gays e lésbicas, enquanto 20 mesmo tempo continuava minha participag3o no Niicleo de Ago para os Diteitos dos Homossexuais. _ A Facgio foi composta de militantes da CS de distnta reas de atuagi0 politica ~ secundaristas, bancérios, estudantis ¢ artistas. No seus primeiros dois anos de sua existéncia, crescemos de cinco para 25 pessoas, entre clas ‘muitos secundaristas. Também participei, nesse periodo, do movimento es- tudantl e da fiandago do PT quando estava estudando na USP” _ Consegui “captar”, como costumivamos dizer na esquerda daquela época, apenas uma pessoa do Grupo Somos para a CS. Ele ficou na orga- hizagio durante um ano, mais ou menos, e depois saiu desapontado com uma attitude de um lider da CS que ele considerou homofebica, Também conversei muito com outra pessoa que acabou aderindo a outra organizacio teks. pet do acta em ghar psoas mich ear cl lista, eu tinha certo peso dentro do grupo Somos, acho eu, por minha fir- Ieea politica ¢ personalidade expansiva, mas também porque defendia uma perspectiva feminista e apoiava a autonomia das lésbicas na organizaglo. AS Alegagées de que eu fazia “politica de cama”, outra expressio da época para referit-se as pessoas que supostamente ganhavam pessoas para organizacSes, «da esquerda por vias sexuais e depois manipulavam os novos membros para seguirem as suas ideias politicas, sio curiosas, dados os resultados pobres das, ‘meus esforgos em captar pessoas para a CS. Como era a cultura do grupo e do meio gay numa época pré-aids, eu transava com as pessoas que me davam. 7 GREEN, ames N.“O Grupo SOMOS, a exquerdse a resstncia 3 dtadum’ m Honesecalidade¢ «dle busin: pen reser ea bce da edd (g LGREEN, Janes N: QUINALHA. Renan (ns) Sto Cals Fats Universidade Federal de Sio Carls, 2014, pp. 177-200 o ee 68 James N. Green + Renan Quinalha + Marcio Caetano + Marisa Fernandes (orgs) tesio € falivamos muito pouco sobre a politica quando compartilhavamos uma cama, Estvamos, nesses momentos, preocupados com Outros assuntos, ‘sai do Brasil em dezembro de 1981 para ir a Los Angeles, onde segui com minhas atividades politicas ¢ sindicais durante toda a década de 80. Deixei de lado 0 trotskismo e a minha atuagio partidiria dentro da es- quenda marxsta apenas em 1989. Mesmo assim, continuei participando em atividades LGBTs no movimento sindical até 1993, quando voltei 4 univer sidade para fazer 0 doutorado em historia do Brasil e seguir uma carreira académica. Cheguei a ser 0 fundador ¢ co-coordenador da primeira agru- pacio LGBT do sindicato de servidores piblicos na California ¢ também organize’ e dirig o primeiro grupo LGBT da Associagio de Estudos Latino ‘Americanos (LASA) em 1992. Durante os primeitos anos do movimento LGBT no Brasil, eu militava tanto em uma organizagio socialista quanto no Grupo Somos. Chamévamos isso de“dupla militincia" ¢ creio que ela representava a multiplicidade das mi- tnhas identidades, Para mim,era evidente que uma pessoa filiada ¢ miltante do PT poderia,20 mesmo tempo da vida partdaria,assumit o papel de dirigente no sindicato de sua categoria, Ou, dando um exemplo norte-americano mais recente, uma pessoa que participa de uma ONG qualquer e,a0 mesmo tem- po, colabora com a campanha de Bernie Sanders. Temos miipls identidades ce subjetividades. Pensar em abandonar as minhas ideias de esquerda quando cu participava de uma reuniio do Somos teria sido to prejudicial para mim ‘como se eu tivesse de deixar minha identidade gay na porta quando eu en- trava em uma reuniio da Convergéncia Socialista em So Paulo ou em urna reunio sindical nos Estados Unidos. A minha luta pessoal nos anos 1970 foi zo sentido de integrar as minhas identidades e perspectivas e nio de segregi- “Jas. Por isso,a minha insisténcia para que uma organizagao da esquerda tivesse de enfrentar a homofobia e repensar as suas ideias sobre género, sexuatidade ¢ comportamento. Asim como en Iutava para que © movimento homossextal pensasse em como fazer politica, com quem e com quai objetivos estatégi- ‘cos na relacio com outros movimentos de transformagio social Othando para tris, eu entendo as razdes pelas quais outras pessous in- fuentes no Grupo Somos tinham uma resistencia ferrenha contra as es- querdas brasileiras nas décadas de 1960 ¢ 1970. Cito apenas o exemplo de Herbert Eustiquio de Carvalho, conhecido como Herbert Daniel, wm es- Histéria do Movimento LGBT no Brasil tudante de medicina e membro de uma organizagio que adotou a estratégia da uta armada para derrubar a ditadura militar* Ble sentia o clima pesado 4a heterossexualidade compuls6ria dentro das esquerdas quando comesou sees do movimento estudantil em 1966 ¢ optou por reprimir a sua & shes para conformar as normas de sua organizagio ¢ aos pa- drdes de género e sexualidade da esquerda e da sociedade em geral. Durante cinco anos, ele se manteve em celibat ©0 enquanto se apaixonava por outros militantes de sua organizagio ¢ sofria porque pensava que nio podia con- cretizar 0 amor e desejos que sentia, AAs organizagSes que se opuseram a ditadura em geral eram muito con- sersadoras, eno reacionéras, sobre questes de sexualidade e comportamen- tos nio-normativos. Nos anos da abertura, entre 1974 e 1985, muitas pessoas que apostavam nas possibilidades de transformagies sociais em relagio i ques~ tio da discriminagio aos homossexuais nio conseguiram entender que, justa- mente neste momento do ocaso da ditadura, as esquerdas também faziam par- te det proceso oco-cual eum viva proces de mnaormeda Para repensar como podemos avaliar a experiéncia do Somos, especial- Inente as ideias inovadoras do grupo sobre a questio complexa de aliangas, vale a pena comegae com o jornal Lanpid. Hi, literaimente, dezenas de ‘monografias sobre esse mensirio, escritas por estudantes universitirios de todo o pais que sio fascinados por este periodo e que enfrentam problemas para conseguir outras fontes que permitam uma anilise mais profuanda sobre 4 homossexualidade. Hoje em dia, em uma época de internet, esses jovenss pesquisadores e outros académicos mais estabelecidos aproveitam o aces ficil aos ntimeros do jornal, gragas 4 atuagio do Grupo Dignidade de Curiti- bs para garimpar dentro dos artigos ¢ para escrever sobre diversos assuntos, ss “deo olhar nordestino sobre a vida gay nesta épocaatéaandlise do retato «dos negros nas piginas do jornal. Sem divida, Aguinaldo Silva ¢ Joio Silvé- rio Trevisan, entre outros editores, merecem enorme reconhecimento por iantido a publicagao do jornal durante quase trés anos. cial do jornal, “Saindo do gueto”, que suponho ter sido es- ‘rito por Aguinaldo Silva, apontava um rumo importante para um movimen- Ow 8g. GREEN, James Naylor. Revolucionirio gaya vida extrandiniria de Herbert Date Rio de Janeiro: Editora Civilizagio Brasleita, 2018, o 7 James N. Green + Renan Quinalha » Marcio Caetano + Marisa Fernandes (orgs.) to ainda embrionirio:“Nés pretendemos, também it mais longe, dando voz a todos 0s grupos injustamente discriminados ~ dos negros,indios, mulheres.” Apesar de uma matéria de capa que falava do incipiente Movimento Negro Unificado © artigos sobre mulheres ¢ indios, os editores de Lampilio enfoca- vam basicamente os homossexuais masculinos. Havia apenas uma mulher, Leila Miccolis, dentre os colaboradores ¢ a linha editorial dava relativamente pouco espago para as lésbicas."" Mesmo assim, o primeiro editoral do jornal revelava um caminho interessante de aliangas com outros setores da sociedade brasileira que também sofriam discrimina¢io, marginalizagio € preconceito. ‘Mas qual seria a maneira concreta de fazer isso? ‘Ao longo dos trés anos do jornal, Silva e outros membros do Conselho Editorial em volta dele se distanciaram do ativismo no Rio de Janeiro e briga- ram com lideres dos dois grupos mais importantes daquela cidade ~ Somos/ Rio e Aué. Em Sio Paulo, desde sua furndacao, a atuagao dos participantes do Grupo Somos também oferecia virias possbilidades para pensar como con- seguir transformar a sociedade que divergiam das perspectivas dos editores de Lampiao. © proprio nome original do grupo, Niicleo de Acio pelos Direitos Homossexuais, mesmo sendo uma formulagio um pouco desajeitada, combi- nava conceitos importantes. A denominacio do grupo assinalava um projeto incipiente (nicleo) que seria mais que um grupo social, mas uma entidadle vvoltada a um desemperiho (aco) para conquistar a igualdade materializada nos direitos dos homossexuais. Esta tiltima nogio de dircitos inerentes, com origem na Declaragio de Independéncia dos Estados Unidos e nos manifes- tos da Revolucio Francesa, correspondia as reivindicagdes do momento no Brasil. Se, em 1968, os estudantes tomaram as ruas para gritar “Abaixo a dita- dura”, uma década depois, a consignia “Pelas Lutas Democriticas”,afirmava 6 desejo do fimn de um regime arbitrario que nijo garantia os direitos dos cidadiios. O nome do Nticleo expandia este conceito de lutas democriticas para incluir 05 homossexuais. Ou seja, 0 projeto inicial do primeiro grupo do movimento LGBT brasileiro foi profundamente politico, com uma pauta democritica e tum método voltado ao ativismo. 9 CONSELHO EDITORIAL, “Saindo do gueto”, Lampio da Esquina (Rio de Jaci) n° 0, abril de 1978... 10, MICCOLIS, Lei. Entrevista com Janes N. Gren, 10 de deem de 2010, Rio de janeiro, Histéria do Movimento LGBT no Brasil (© grupo também vivia precariamente.A maioria dos membros perten- ciam a classe media bai , Com. poucos recursos, casas préprias ou lugares para sediar uma reunio.A rotatividade constante dos encontros cm diversos apartamentos refletia uma pobreza de recursos. Foi muito dificil encontrar ‘espacos para as reunides gerais, que ocorriam uma vez por més. As vezes, im. diretor de teatro oferecia o seu prédio para uma reuniio, raras vezes donos dos boates. Inclusive, logar alugar uma sede na Rua da Abolicio no segundo semester de 1980 foi um grande vit6ria para o grupo, que carecia espagos de sociabilidade amplo sem os problemas com vizinhos homofébicos. A primeira agio do grupo foi justamente enfrentar a ideologia anti~ homosexual, cujas manifestagdes discursivas mais agressivas apareciam na imprensa marrom, especificamente no caso de Sa0 Paulo nos retratos este reotipados de homossexuais nas péginas do jornal Noticias Populares. Embora 4 carta enviada aos diretores deste jornal sensacionalista no mudasse a sua linha editorial, a orientagio do grupo representava uma tentativa de sensi- bilizara sociedade e os meios de comunicagio. Outra pritica comum do grupo, que evoluiu a0 longo dos préximos dois anos, foi um processo interno de discusses sobre 08 efeitos da discti- minagio nas vidas dos participantes, Adotando métodos que circulavam nos ‘movimentos sociais internacionais que emergiram neste periodo, especial- mente entre grupos feministas e de gays e lésbicas, havia pequenos grupos de conscientizacio que partiam da experiéncia individual para reffetir sobre a dimensio socialmente compartilhada do preconceito. Em determinada altura, tal formato assumiu 0 nome de “Grupo de Reconhecimento”. Es- sas reunides eram o pilar de integragio dos novos membros do Nacleo , ‘mais tarde, do Grupo Somos. Este processo dialético e dial6gico entre 0 particular € © universal ou entre o pessoal € 0 social partia dos mesmos fandamentos, embora nio explicitamente assumidos no momento, da cons- cientizagio-acio ou reflexio-agio-reflexo, que estava na base do trabalho feito por setores da esquerda, como a pedagogia inspirada no pensamento de Paulo Freire e a ala progressista da igreja catélica. Referidos grupos nio substituiam a importincia de espagos piiblicos de sociabilidade gay e lésbica bares, restaurantes, discotecas,festas, ete. ~, que cresciam durante os anos . 7 n James N. Green» Renan Quinalha » Marcio Caetano + Marisa Fernandes (orgs.) 1970. Ao contririo, esta atuagio complementava outras formas de afirma- 20 homosexual caracteristicas do gueto.” Um convite feito por André Singer, atualmente um professor de Cién- cia.Politica na FELCH/USP, e pela corrente estudantil “Vento Novo” pata participar de um ciclo de debates sobre as “minorias” na USP em fevereiro de 1979 provocou um debate interno sobre o nome do geupo. Alguns sen tiam que a palavra “homossexual” no nome dava muita bandeira em um ‘momento no qual 0 grupo ainda era pequeno ¢ sem muito apoio externo. A decisio de adotar 0 nome “Somos: Grupo de Afirmacio Homossexual” foi um compromisso entre os que achavam que 0 nome original era muito ;mplicitamente ofere~ audaz ¢ aqueles que pensavam que a palavra "Somos cia uma mensagem mais positiva. Argumentavam que esta palavra afirmati- va, mas ambigua, poderia ser usada para referir-se a0 grupo de uma maneira discreta, mas a outro parte do nome explicitamente declarava os objetivos ‘omos" eta o nome da revista da Frente de Libera- do grupo. O fato de que“ ibn Homosexual de Argentina, que desapareceu em 1976 quando foi instalada 1 ditadura naquele pais, representava um gesto de internacionalismo ¢ de jdentificagio com © movimento homosexual vizinho, Q novo nome, de fato, significava uma nova etapa na vida do grupo. ‘© histérieo debate sobre a homossexualidadle na USP em fevereiro de 1979, que foi retratado em umn artigo no jornal Lampido,* serviu para pro~ mover 0 Somos nacionalmente ¢ inspirar a fundagio de grupos em outras cidades, Sendo a tinica fonte escrita sobre este evento produzida na época, a versio do debate do jornalista Eduardo Dantas consagrou-se como historia oficial. Contudo, a descrigio feita sobre a discussio calorosa nio capturava a complexidadke do debate, pelo menos de acordo com minha meméria dos acontecimentos. Alguns ativistas do movimento estudantil que assistiram 20 ‘encontro argumentavam que (1) existia uma luta geral contra a ditadura ¢ por uma nova sociedade ¢ (2) a questio da discriminagio dos homossexuais «dos outros grupos, ditos minoritirios, s6 dividia este movimento. Membros 11 GREEN, JN. Além do Camavl: a homossexual masclina no Brasil do séalo XX. Sio Paulo: Editora da UNESP, 2000, especialmente capitulo 6, 12 DANTAS, Eduardo, “Negros, mulheres, homossexuais ¢ indios nos debates ca P" Lampiie da Esquina 10, argo de 1979, 9. Hist6ria do Movimento LGBT no Brasil do grupo Somos ¢ outros responderam que a esquerda no dava conta da ‘questio de discriminagio contra gays ¢ lésbicas e que era homofébica (com ‘outras palavras, pois esse termo nio era usado ainda). Existia outras vozes no debate que se recusavam a reproduzir uma bipolaridade entre a esquerda e 0 movimento homossexual. Porém, na época nao circulava uma teoria sobre as interseccionalidades das icentidades € lutas ou sobre as relagdes e conexdes entre © movimento sindical e os movimentos de feministas e de negr@s ou outros processos de hitas democriticas,o que poderia ter oferecido uma outra visio para fugir de um debate de acusagdes estéreis, Ou seja, no havia uma perspectiva bem articulada neste momento no Brasil no sentido de que uma ‘pessoa poderia ser homossexual ¢ operirio ou lésbica e negra. As novas iden tidades que eram reforgadas neste periodo de organizacio politica separavam. as pessoas em categorias dstintas. Naquele momento também foi diffe ima- ginar que qualquer huta democritica contra a discrimingio, marginalizagio (ou opressio enfrentava as politicas autoritirias e anti-democriticas do regime militar. Poucas pessoas argumentavam que a luta pelos direitos dos homosse- ‘xuais implicava uma luta contra a ditadura ¢ as suas politicas sociais. A perspectiva que eu levava para 0 Somos combinava uma anilise mar= xista-trotskista com conceitos das novas esquerdas norte-americanas ¢ eu= ropeias. Sustentel 0 argumento de que os participantes do movimento de- veriam forjar conexdes,lagos ¢ até aliancas com outros movimentos sociais representantes de “setores oprimidos” ~ negros, mulheres ¢ indios ~ que se onganizavam de modo mais visivel durante 0 processo de abertura gradual, mas ainda insegura. E, eventualmente, também 0 movimento homosexual devia elaborar uma politica para a classe trabalhadora. Afinal, a homossexu= alidade existia em todas as classes sociais, eu inssta. A primeira oportunidade de experimentar a possbilidade de construir gas Com outros setores progressistas acontecen durante o esforgo para de- fender o jornal Lampiao quando os seus editores foram indiciados e processa~ «dos por supostamente violar a Lei da Imprensa.A ideia me ocorreu depois de uma conversa com Cristina Portella,jornalista e militante da CS, que me per- uuntou porque © grupo nao procurava apoio da imprensa alternativa. Apre- sentei, no Grupo de Atuagio do Somos, a proposta de uma campanha para ccoletar as assinatura dos editores de outros jornais alternativos para protestar cofttra esta medida autoritiria do regime militar. A proposta obrigow alguns m James N. Green + Renan Quinalha + Marcio Caetano « Marisa Fernandes (orgs) do veteranos de Somos a desenvolver um apelo democritico para conseguit solidariedade das publicagdes produzidas pelos diversos grupos da esquerda. A atividade também rompia com um certo tabu sobre a impossibildade de desenvolver conexdes com setores progressstas. Ao mesmo tempo, obrigou os dirigentes destes jornais a pensarem como a ditadura tentava reprimir todas as expresses alternativas e democriticas nos anos da abertura. ‘Talvez mais impactante no processo de constuir pontes para outros mo- vimentos foi a participacio no protesto do Dia da Consciéncia Negra, no 20 de novembro de 1979 em frente a0 Teatro Municipal, para onde 0 Somos Jevou uma faixa enorme contra a discriminagio racial. De novo, a ideia de propor a participago do grupo no dia do Zumbi veio de uma conversa com ‘um argentino socialista, exilado em Sao Paulo. Eu estava contando para ele 0 trabalho que estivamos fazendo e ele perguntou porque 0 grupo nao aliava- -se com os movimentos sociais, jf que 0 jornal Lampiio falava em aghutinar virios sectores sociais que sofferam discriminagio, Para mim, ele tinha razdo. Um panfleto que distribuiamos na ocasiio afirmava: “Como 05 ho- -mossexuais, chegou a hora do negro impor seus valores ¢ fazer valer 05 seus direitos contra a discriminagio racial?”"® Eu nio me lembro quem do grupo escreveu 0 texto, que tem um tom um tanto paternalista, mas a recep¢io no evento foi curiosa. A minha impressio da época foi de uma aceitagio ambigua, pois 0 Movimento Negro ainda estava em formagio € contava com pouco apoio das esquerdas, Dava a impressio de que alguns milicantes accitavam a solidariedade enquanto outros ficavam indiferentes. Ao mesmo tempo, a questio do racismo e das ideologias que defendiam a democracia racial ainda eram poucos discutidos dentro do grupo Somos. De qualquer ‘mancira,a participagio no evento representava uma tentativa de implemen- tara politica de unir os novos movimentos sociais. [A presenga de 50 lésbicas e gays no 1° de maio de 1980 durante a greve geral no ABC paulista e 0 racha do Somos duas semanas depois ja foram ‘bem documentados em outros textos. Quem critica a nossa atuagio na pas- seata pelas ruas de Sio Bernardo e nossa presenga no Estidio Vila Euclides devaloriza a capacidade de gays ¢ lésbicas pensarem por si mesmos, como 13 GRUPO SOMOS DE AFIRMAGAO HOMOSSEXUAL, sem tio, 20 de novembre de 1979, Arquivo do autor Histéria do Movimento LGBT no Brasil se fossemos homossexuais alienados incapazes de tomar decisdes politicas. Creio que foi o tinico socialista dentro do Grupo Somos naquele momento ¢ argumentei pela nossa participagio naquele dia histérico no crepésculo

You might also like