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A ética do discurso religioso, entre o estratégico e o comunicativo.

Article · September 1999

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Luiz Signates
Universidade Federal de Goiás
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A ética do discurso religioso, entre o estratégico e o comunicativo 

Luiz Signates

Resumo:

Análise do discurso religioso, a partir das categorias habermasianas de discursividade


estratégicas e comunicativas, em conexão com os conceitos de alteridade e dialogicidade em Emmanuel
Lévinas. Estudo comparativo de casos de veiculações de rádio e televisão pentecostais e espíritas,
buscando estabelecer até que ponto as práticas discursivas de índole identitária ou conversionista
podem ser presumidas como perlocucionárias. Avaliação ético-discursiva das condições de possibilidade
de uma interação alteritária e comunicativa na discursividade religiosa, com a possível reconstrução de
um conceito de fraternidade aplicável aos sentidos da comunicação social nos contextos plurais das
sociedades contemporâneas.

Introdução

A história do pensamento moderno tem sido a história da perda da força dos argumentos
religiosos e da capacidade de conferir explicações ao mundo a partir dos dogmas e fundamentos
absolutos. O pensamento religioso tem perdido a capacidade de explicar o mundo objetivo para as
ciências naturais, o mundo intersubjetivo para as ciências humanas e sociais e, mais recentemente, o
mundo subjetivo para as disciplinas psicológicas e psicanalíticas. A esfera religiosa acabou sendo
transferida para o movediço território do místico, o misterioso que precisou se pretender inexplicável por
definição, tal a essencialidade subjetiva presumida.

Entretanto, a religião não morreu. Sobreviveu à laicização do Estado, ao agnosticismo e à


ateização das ciências e filosofias e à materialização dos grandes objetivos humanos (embora a
incidência prática destes sentidos nos pareça bem menor do que o que geralmente se admite). E não
apenas sobreviveu – como se poderia afirmar de um náufrago que escapa à tragédia, semimorto e


Texto inscrito no GT Comunicação e Religiosidade do XXI Congresso da Sociedade Brasileira de Pesquisadores da Comunicação
– Intercom, em setembro de 1999, no Rio de Janeiro – RJ.


Luiz Signates é jornalista e professor assistente da Universidade Federal de Goiás. Especialista em Políticas Públicas pela UFG,
e Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília, Doutor em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo.
esfaimado –, a religião manteve-se forte, em sua capacidade de aglutinar multidões e exercer fascínio e
poder sobre populações inteiras.

Uma pretensa filosofia materialista da consciência, que atribua tal realidade social à ignorância e
à miséria, sofre a dura crítica de ser contrafática (não é de modo algum evidente que os religiosos
estejam somente ou mesmo principalmente entre tais categorias, por mais iluministas ou elitistas sejam
os critérios que se possa utilizar), perdendo assim seu aspecto materialista, já que acaba
fundamentando-se num posicionamento de natureza ideológica. Trata-se, além disso, de uma
formulação simplista e pretensiosa, porque deixa de considerar ou subconsidera aspectos fundamentais
dos processos de sociabilidade, cultura e construção de sentidos e significados nas sociedades
modernas e contemporâneas.

A religião de fato não morreu. Isso, porém, não significa que tenha passado incólume às
transformações históricas e culturais da modernidade. Efetivamente, a religião se modernizou, no sentido
filosófico de adequar-se de forma negociada aos sentidos da modernidade. Trata-se, a modernização da
religião, de uma movimentação histórico-social cujas origens podem ser encontradas na extraordinária
conjunção operada pelo cristianismo entre as orientações sócio-culturais de pelo menos três sentidos da
antigüidade: a pretensão universalista da filosofia grega, a monoteísta da cultura judaica e a imperialista
da história romana. Tal conjunção ajuda sobremaneira a compreender a construção Católica (universal)
que transfunde o “um só Deus” do compromisso identitário judaico para o “único Deus”, transpondo um
privilégio local para o plano de uma postulação de validade absoluta, e dentro desse sentido,
lançando-se aos projetos de conquista e hegemonia do mundo.

É trivial considerar que tais sentidos não se restringe à esfera da crença, mas constitui-se em
racionalidade fundante da modernidade ocidental. Quando a superação da Idade Média irrompe na
forma da laicização do Estado e da sociedade, as construções científica e filosófica mantiveram, apesar
da ruptura com certas formas de teísmo, o projeto cristão praticamente intocado, no plano das práticas e
dos sentidos. O humanismo, entretanto, no campo da religiosidade, determinou as condições de
sobrevivência da religião, ao redimensionar esse projeto ao que talvez possa ser chamado de
monoteísmo mitigado, ou seja, a um quase politeísmo estruturado a partir da diversidade de crenças a
maioria das quais, cada uma, monoteísta à sua maneira. Eis que, lentamente, com a fundação da
sociedade de mercado, evidencia-se o que se traduz pela pós-modernização da religião.

A autonomização (moderna) das esferas de vida culminou na autonomização religiosa


(vinculadas, numa perspectiva weberiana, à racionalidade moral-prática), momento em que a religião
como identidade familiar, regional ou tradicional deu lugar à prática religiosa enquanto assunção
voluntária de princípios e crenças, deixando assim de distinguir coletividades para identificar indivíduos e
instituições marcadas por uma discursividade até certo ponto especialista; e a fragmentação
(pós-moderna) dos sentidos engendrou a fragmentação das propostas de fé e, moto continuo, a ética

2
capitalista da concorrência implantou a disputa por mercados entre as instituições ideológicas e jurídicas
nas quais se materializaram as referencialidades fragmentárias. Nasce a religião pós-moderna, para a
qual o movimento New Age talvez seja o mais bem acabado exemplo (Terrin, 1992).

Aplicada às movimentações religiosas, independente da validade que tais sentidos possam ter
para outras esferas sociais, a modernização da religião engendrou, desde a expansão do cristianismo a
partir de Paulo de Tarso, uma característica típica de discursividade: o conversionismo, que aqui
conceituamos como sendo o uso argumentativo e/ou performático da linguagem para modificar vínculos
religiosos, práticas rituais e disposições de crença. No quadro de uma pós-modernização da prática
religiosa, é possível identificarmos o aprofundamento da natureza performática dessa discursividade,
sobretudo pela emergência das práticas carismáticas e pentecostais das igrejas, de certa forma já
existentes nos ritos mediúnicos e nas diversas formas de mentalismo, fluidicismo e comportamentalismo
das demais tradições.

1. O discurso na ética de Habermas: marcas do estratégico e do comunicativo

O recorte deste artigo, contudo, não pode abranger todos esses sentidos. Ficaremos com a
modernização e com a sua discursividade característica, o conversionismo. Dois aspectos distinguem
esse processo, podendo ser tomados como espaços heurísticos de pesquisa e também como categorias
de análise: a institucionalidade e a discursividade. A primeira diz respeito às formas concretas de
organização dos conteúdos e práticas religiosos e a segunda refere-se aos jogos discursivos dentro dos
quais as imagens religiosas de mundo e os rituais institucionalizados se movimentam no espaço social.

Numa perspectiva habermasiana – que parcialmente é a deste trabalho –, tais espaços podem
ser categorizados como sendo as interações sistêmicas e as relacionadas ao mundo da vida, tratadas a
partir do âmbito da esfera religiosa. Cada um desses tipos de interação implica uma orientação
específica, como coordenadora de ações sociais: estratégico-instrumental, no âmbito sistêmico, e
comunicativa, no quadro do mundo da vida. Este artigo pretende, por problemas de espaço, limitar-se à
questão da discursividade e, nesse sentido, levantar o problema do discurso conversionista, explícito em
algumas denominações religiosas e implícito em outras, procurando assim verificar até que ponto esse
discurso se movimenta dentro de uma lógica estratégico-instrumental ou de uma lógica comunicativa.

Essa tipificação é construída por Habermas (1981) a partir da crítica que faz à teoria weberiana
da ação. Habermas questiona a limitação da teoria de Max Weber a contextos exclusivamente
teleológicos, isto é, orientados a objetivos. A opção, então, é investigar a racionalização social levando
3
em consideração o conceito de ação comunicativa, baseado na teoria dos atos de fala (Austin). Na ação
racional orientada a fins, o ator elege meios (adequados) e considera conseqüências (condições de
êxito, sendo o êxito a efetuação no mundo do estado de coisas desejado), para atingir a meta (fins
concretos). Os efeitos da ação podem ser: resultados (fim desejado); conseqüências (previsões do ator);
e efeitos colaterais (que o ator não previu). Habermas subdivide em dois tipos, as ações orientadas ao
êxito: instrumentais, cujas regras de ação técnicas medem-se pelo grau de eficácia da intervenção e
podem ser associadas a interações sociais; e estratégicas, cujas regras de eleição racional medem-se
pelo grau de influência sobre as decisões de um oponente racional e são, elas mesmas, ações sociais.
E, em seguida, distingue as ações orientadas ao entendimento: comunicativas, cujos atores não fazem
o cálculo egocêntrico de resultados, por buscarem atos de entendimento, e nem são orientados ao
próprio êxito, por buscarem fins individuais baseados numa definição compartilhada da situação
(negociação). Um acordo comunicativo, por definição, não pode ser induzido de fora, mas tem que ser
aceito como válido pelos participantes; deve ter uma base racional; e se baseia em convicções comuns.

Para identificar dentro desse modelo os atos de fala, Habermas trabalha a partir de Austin, que
distingue os atos de fala como: locucionário (que expressa estados de coisas, diz algo, utilizando-se
para isso de orações enunciativas e nominalizadas); ilocucionário (que realiza uma ação dizendo algo,
fixa o modo em que se emprega uma oração, por meio de afirmações, promessas, confissões, etc., e
cuja condição padrão é o verbo na primeira pessoa do indicativo); e perlocucionário (que causa um
efeito sobre o ouvinte ou o mundo). Os atos de fala resultantes do componente ilocucionário são
auto-suficientes, isto é, o propósito é que o ouvinte entenda e aceite a emissão, enquanto que nos
perlocucionários o ato de fala assume papel de ação teleológica.

O objetivo ilocucionário deriva do significado da oração, os atos de fala se identificam a si


mesmos, ao passo que o objetivo perlocucionário não se segue do conteúdo manifesto, só podendo ser
determinado pela averiguação das intenções do agente, isto é, o destinatário infere fins a partir do
contexto. O êxito ilocucionário de uma oração ocorre apenas se o destinatário entende a afirmação e a
aceita como verdadeira, fundando obrigações de ação para ele e expectativas de ação para o falante,
independente das conseqüências se produzirem ou não. Os efeitos perlocucionários, por sua vez,
surgem quando os atos ilocucionários desempenham um papel num plexo de ação teleológica. O êxito
ilocucionário de uma expressão não é condição suficiente para gerar o efeito perlocucionário, pois este
se insere num contexto de ação teleológica que vai além do ato de fala.

As conclusões de Austin são de que os êxitos ilocucionários têm com o ato de fala uma relação
interna ou regulada por convenções, ao passo que os efeitos perlocucionários dependem de efeitos
contingentes e não são fixados por convenções. Habermas, no entanto, considera problemático o critério
de convencionalidade, pois as convenções semânticas dos predicados da ação com que se formam atos
ilocucionários excluem, em alguns casos, certas classes de efeitos perlocucionários.

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Tal dificuldade levou Strawson, conforme Habermas (1981), a substituir os critérios de
convencionalidade pelo de demarcação distinta. Atos perlocucionários seriam uma subclasse de ações
teleológicas que o ator pode realizar por atos de fala, na condição de não confessar como tal o fim de
sua ação. Isto é: o falante, se quer ter êxito, não pode dar a conhecer seus objetivos. Ao contrário, os
fins ilocucionários só podem ser conseguidos fazendo-se expressos. Habermas considera, porém, que
essa distinção não tem caráter analítico, pois, se os efeitos perlocucionários são indício da integração de
atos de fala em contextos de interação estratégica, os ilocucionários, por sua vez, são incluídos em
ações teleológicas (orientadas ao êxito), donde se conclui que os atos de fala só servem a fins
perlocucionários se são aptos a fins ilocucionários (se o ouvinte não entender, nem atuando
teleologicamente o falante pode induzi-lo à sua finalidade). Mas, como os atos de fala nem sempre
funcionam assim, as estruturas da comunicação lingüística, para Habermas, têm de se explicar sem
recorrer às estruturas da atividade teleológica, pois a ação orientada ao êxito não é constitutiva do
sucesso dos processos de entendimento, nem mesmo quando inseridos em contextos de interação
estratégica.

Para Habermas, efeitos perlocucionários são uma classe especial de interações estratégicas
caracterizada por estados do mundo produzidos por intervenções no mundo e na qual as ilocuções são
meios em contextos de ação teleológica, num emprego sujeito, conforme Strawson, a determinadas
reservas, isto é, o propósito ilocucionário (ouvinte entender e contrair obrigações da oferta do ato de fala)
ser conseguido sem deixar perceber o propósito perlocucionário (no mínimo, um dos participantes se
conduz estrategicamente, engana os demais).

Já os efeitos ilocucionários se definem num plano de relações interpessoais, nas quais os


participantes em comunicação se entendem entre si sobre algo no mundo. Os êxitos ilocucionários se
produzem no mundo da vida dos participantes, sendo este o transfundo dos processos de entendimento.

A ação comunicativa é, pois, uma classe de interações, na qual os participantes harmonizam


entre si seus planos individuais de ação e perseguem seus fins ilocucionários sem reserva alguma, isto
é, o propósito é o acordo para a coordenação de planos de ação individuais. Habermas admite que, em
contextos complexos de ação, a ação comunicativa pode dar lugar a conseqüências não intencionadas
(quando o falante tem de recorrer a explicações, desmentidos, desculpas, e o ouvinte pode se sentir
fraudado e abandonar a ação orientada ao entendimento), o que significa que atos de fala em princípio
sob ação comunicativa podem ter valor estratégico e provocar efeitos perlocucionários em diferentes
contextos.

Ao definir que, numa condição standard, o falante não quer dizer nada diferente do significado
literal do que disse, Habermas busca reduzir a compreensão de uma emissão ao conhecimento das
condições sobre as quais a emissão pode ser aceita por um ouvinte: “entendemos um ato de fala,
quando sabemos o que o faz aceitável” (Habermas, 1981, p. 382). Ele identifica, pois, as condições de

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êxito ilocucionário às condições de aceitabilidade. Esse conceito, para Habermas, não deve ser
abordado de forma objetivista (aceitabilidade pela perspectiva de um observador), e sim como atitude
realizativa de um participante na comunicação. Aceitável é, pois, um ato de fala que cumpre as
condições necessárias (condições de reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão lingüística que
estabelece um acordo) para uma postura do ouvinte, frente à pretensão de vínculo do falante. Duas são
as condições pressupostas: correção gramatical (corretamente formadas) e condições gerais de
contexto.

Numa oração exigitiva, gramaticalmente correta, usada como imperativo em condições


adequadas de contexto (por exemplo: “Exijo que não fumes”), as obrigações relevantes para a interação
subsequente são as condições de cumprimento: o ouvinte entende a exigência se reconhece as
condições de produção do estado de coisas desejado e se sabe o que fazer ou omitir dentro das
circunstâncias, para que as condições se cumpram. Não basta, contudo, as condições de cumprimento,
para se saber quando a exigência é aceitável. Um segundo componente é o conhecimento das
condições para que haja um acordo. Isso significa que o ouvinte só entende o sentido ilocucionário da
exigência se sabe por que o falante espera poder impor sua vontade, isto é, quando aceita a pretensão
de poder do falante, pois conhece suas razões. Tais razões não se podem radicar no sentido
ilocucionário do ato de fala, mas no potencial de sanção, vinculado ao ato de fala de forma externa. A
conclusão é que as condições de cumprimento (o ouvinte conhece as condições sob as quais o
destinatário pode produzir o estado desejado) somadas às condições de sanção (o ouvinte conhece as
condições sob as quais o falante espera que o ouvinte se sinta forçado a cumprir-se, como, por exemplo,
sanções por descumprimento) engendram as condições de aceitabilidade (condições para uma postura
afirmativa do ouvinte).

Esse quadro se complica quando se analisa as exigências respaldadas por um transfundo


normativo (como a ordem para não fumar por causa das normas do tráfego aéreo internacional). Nesse
caso, o falante apela para a validade de normas de segurança, e, por não ser uma decisão motivada
apenas empiricamente, nem ser expressão de uma vontade contingente, revela uma pretensão de
validade, que só pode ser rechaçada na forma de uma crítica com adição de razões contra (a) a
legalidade da normativa (juridicidade de sua validade social), ou (b) a legitimidade da normativa
(pretensão de ser correta), ou (c) por uma justificação prático-moral. A pretensão de validade resulta,
portanto, de uma conexão interna por razões que derivam da força ilocucionária do ato de fala mesmo,
não necessitam de condições de sanção adicionais.

Habermas distingue ainda a validade (do ato ou da norma que o respalda), da pretensão de
validade (de que há o suficiente para que se cumpram as condições) e do desempenho (prova de que se
cumprem as condições de validade do ato ou da norma subjacente). É com a conexão interna entre
esses elementos que o falante pode garantir que aportará razões convincentes contra as críticas do

6
ouvinte à sua pretensão de validade. Assim, a força vinculante de seu êxito ilocucionário, o falante deve
não à validade de seu dito, mas ao efeito coordenador que tem a garantia que oferece no desempenho
da pretensão de validade de seu ato de fala. Sempre que o papel ilocucionário expresse, não uma
pretensão de poder, mas uma pretensão de validade, não nos encontramos diante de uma força de
motivação empírica, mas uma força de motivação racional, própria da garantia que acompanha as
pretensões de validade.

Só os atos de fala aos quais o falante vincula uma pretensão de validade suscetível de crítica
têm, por sua própria força, a capacidade de mover o ouvinte à aceitação da oferta, podendo resultar
como mecanismo coordenador das ações. Isso define uma precisão maior para o conceito de ação
comunicativa: não basta que os participantes persigam sem reservas, os fins ilocucionários: com os
imperativos em sentido estrito (vinculados a uma pretensão de poder, e não de validade) e nas
exigências não normatizadas, os falantes podem perseguir sem reservas fins ilocucionários e, apesar
disso, estarem atuando estrategicamente. Na ação comunicativa, pois, só se inserem os atos de fala aos
quais o falante vincula pretensões de validade suscetíveis de crítica.

Tais referenciais habermasianos, enunciativos de marcas dos tipos de discursividade, são


metodologicamente suficientes para efetuarmos uma análise do discurso conversionista, na esfera das
relações religiosas. Entretanto, uma conexão desses conceitos com as noções de alteridade e
dialogicidade em Emmanuel Lévinas conduz o estudo em direção a referenciais de ordem ética que nos
parecem importantes para uma reflexão posterior sobre a questão da fraternidade ou de sua ausência no
contexto das relações mediadas pelos conteúdos e práticas da religião.

2. A dialogicidade em Emmanuel Lévinas: o outro como espaço do indizível

A contribuição heurística de Lévinas é, sem dúvida, a da relação que estabelece entre a sua
concepção de alteridade, como sendo aquilo que não se dá ao conhecimento do eu, e a sua noção de
dialogicidade, isto é, ao fato de que a comunicabilidade com a alteridade do outro é, apesar disso,
possível. Por um lado, enfatiza ele que apenas coisas podem ser conhecidas, logo, não sendo coisa o
ser humano, dar-se ao conhecimento é significar-se a partir do que não se é. Entretanto, por outro lado,
Lévinas (1954) propõe que o “rosto” do outro (a emergência de sua alteridade como evento diante do eu,
ou, no dizer do próprio autor, “presença para mim de um ser idêntico a si mesmo” – Lévinas, 1954, p. 59)
se manifesta, evidenciando a diferença que lhe é constitutiva, que não pode ser ignorada pelo eu, porque

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lhe é vinculatória. E a relação do eu com o outro, na mediação inesperada do rosto, é o problema ético
fundamental da comunicação.

Ora, esse modo de ver apresenta a comunicação como um paradoxo: uma impossibilidade
cognitiva que, no entanto, ocorre concretamente. Impossibilidade, porquanto relação com o
desconhecido do outro; mas que ocorre, porque o sujeito social existe e se relaciona, apesar da
alteridade. O outro é espaço do indizível, mas há a relação com ele e relação tal que deixa marcas na
linguagem e nos contextos extra-lingüísticos. A linguagem é, destarte, verificação da distância e
condição da proximidade. Desperta o comum em nós, mas supõe alteridade e dualidade. Possibilita, a
um só tempo, transcendência e acesso. Acesso na mediação do conceito e transcendência porque o
conceito não esgota o ser. A alteridade na linguagem é a emergência do rosto de outrem, na sua
singularidade irredutível.

O conteúdo ético dessas considerações é imediato. O face-a-face é quando o rosto rompe o


sistema, via ética de um reconhecimento sem submissão, no qual a palavra se converte em “relação
entre liberdades, que não se limitam, nem se negam, mas se afirmam reciprocamente” (Lévinas, 1954, p.
61).

A comunicação é, nesses termos, definida como a relação de alteridade, da qual emerge o


evento. Relação de impossibilidade, porquanto a alteridade do outro é sempre por definição o
desconhecido, cuja emergência é rosto e toda conceituação não passa de ato de nomear, jamais
resultando em domínio e manipulação, senão como gesto de assassínio, rompimento da condição
humana que, no entanto, fracassa porque o outro enquanto tal é sempre resto, sempre escapa. Contudo,
a impossibilidade comunicativa é obrigatória ao eu, sendo mesmo condição para sua caracterização
como sujeito humano. O sujeito da comunicação é, portanto, sujeito orientado ao outro, eticamente
vinculado de forma irremediável à alteridade que lhe é inalcançável de um ponto de vista do domínio
cognitivo.

Nesse sentido, entram em conexão as perspectivas habermasiana e levinasiana. O ato


comunicativo, enquanto ato de fala nos quais os participantes persigam, sem reservas, os fins
ilocucionários e vinculando pretensões de validade – e não de poder – suscetíveis de crítica, são, sem
dúvida, fundantes de relações dialógicas, dentro das quais o rosto do outro se manifesta de tal forma que
sejam possíveis a recusa de ser conteúdo, a cura da alergia, o desejo, o ensinamento recebido e a
oposição pacífica do discurso 1 . A interação de tipo comunicativo, enriquecida pela dialogicidade
conforme Lévinas, foi denominada, de forma a nosso ver muito feliz, como alteritária, pelo professor
Weber Lima (Lima, 1998). Não me alongarei, contudo, nas considerações a respeito das perspectivas de
utilização das categorias de Emmanuel Lévinas para a pesquisa da comunicação, por já tê-lo feito em

1
Para uma exposição justificada dessas categorias, ver Signates, 1998a.

8
um trabalho anterior comunicado a este GT (Signates, 1998a), o que possibilita um aproveitamento do
espaço deste texto para as questões relacionadas ao seu objeto específico.

3. O conversionismo na discursividade religiosa: breves estudos de casos

Após as considerações teóricas enunciadas, a questão central deste trabalho pode ser
enunciada como a tentativa de proceder a uma avaliação empírica qualitativa da comunicatividade do
discurso religioso, no âmbito público da comunicação social (rádio, televisão e Internet). Examinando
com especificidade a discursividade conversionista, dada a sua característica moderna, a questão será
procurar perceber como se constrói esse tipo de discurso religioso como espaço de relações sociais,
tanto no sentido das pretensões de poder e/ou validade que o asseguram e que o vinculam ou às
racionalidades sistêmicas ou às relacionadas ao mundo da vida. Acredita-se aqui que uma reflexão a
partir do prisma dos movimentos religiosos, a respeito da tensão discursiva entre sistema e mundo da
vida, possa contribuir para situar as possibilidades de verificação do conceito de fraternidade ou de
solidariedade social num plano de análise ética fundada na natureza construtiva das regras
intersubjetivas e, com isso, propor aquele conceito dentro do quadro de uma ética comunicativa.

O quadro situacional desta pesquisa refere-se a dois campos diferentes de trabalho e a


observações igualmente situadas em tempos distintos. O primeiro, diz respeito a alguns programas
religiosos, de caráter espírita e pentecostal, veiculados por algumas emissoras de rádio e televisão de
Goiânia, durante o segundo semestre de 1997 2. Tanto a presença e o aperfeiçoamento dos discursos
movidos pela racionalidade estratégica, quanto a busca por um discurso de tipo comunicativo, podem ser
encontrados no interior dos movimentos religiosos e na relação que encetam a partir das programações
de rádio e televisão. Neste trabalho, citaremos três casos típicos.

O primeiro, diz respeito ao estilo de programação adotado pelo Ministério Comunidade Cristã na
Rádio Aliança, especialmente o “Show do Rádio”, veiculado por Marcelo Albuquerque, um jovem egresso
de um dos grupos de juventude dessa denominação e que, sem qualquer formação acadêmica ou
técnica, adquiriu experiência trabalhando como produtor e locutor de programas evangélicos em diversas
emissoras de Goiânia. Observa-se, na programação da emissora e, em especial, no programa
movimentado por Marcelo Albuquerque, uma tentativa de negociação de sentidos entre o vocabulário e o

2
Esta parte da pesquisa reorganiza material empírico colhido para a dissertação de mestrado do autor (Signates, 1998, p.
205-216).

9
modo de falar próprio dos freqüentadores da igreja, e a linguagem que histórica e culturalmente se
estabeleceu como a “linguagem do rádio”. Albuquerque defende um modelo de rádio alegre, vibrante,
ligado ao formato do entretenimento, e critica emissoras e programas que, segundo ele,
“... não têm a cabeça aberta para a comunicação. Só querem mostrar o que têm
para mostrar, e não o que o ouvinte tem para mostrar. São emissoras mantidas
pelo dízimo das igrejas. Mesmo uma rádio evangélica, como a nossa, que é
voltada para o segmento evangélico, precisa tocar o que o evangélico gosta.”

Na prática, o tipo de rádio que esse locutor faz é uma verdadeira mimetização do rádio popular
profissional. O “Show do Rádio” é um programa de dicas, curiosidades, perguntas, brincadeiras, prêmios
e diversos quadros, como de receitas de bolo, bolsa de empregos, sempre com participação do ouvinte,
e tratando de temas atuais, como aborto, homossexualidade, problemas sociais e econômicos, etc., e
muita música gospel. Todo o direcionamento dos assuntos é evangélico ou bíblico, ou culmina numa
conclusão que privilegie esse sentido. As perguntas feitas ao ouvinte, solicitando a participação por
telefone, são do tipo que envolve diretamente a vida dentro da igreja: “Descobre-se que um membro da
igreja é homossexual. O pastor deve ou não excluí-lo?”; ou se remete a temas sociais gerais, como:
“Você é contra ou a favor do MST?”

O propósito estratégico, subsumido no interesse conversionista, torna-se claro, nas declarações


de Marcelo Albuquerque. Ao criticar as emissoras concorrentes – como a Rádio Riviera, da Igreja
Universal –, ele afirma:
“Essas rádios muitas vezes não evangelizam falando a língua da pessoa que quer
evangelizar, mas usando a linguagem da própria igreja. Falando a língua do
não-evangelizado, facilita”.

Outro aspecto importante para a realização desse tipo de programação é a resistência que os
contatos comerciais dessa emissora têm para vender a rádio aos anunciantes. Segundo o radialista Túlio
Izac, diretor de programação da Rádio Aliança, o fato de a emissora ocupar o primeiro lugar no
segmento AM não impede que haja dificuldades desse tipo. Por isso, ele traz a própria experiência
profissional para tentar resolver o problema. Os comerciais são, então, produzidos com a finalidade de
criar alternativas para vencer a resistência dos anunciantes em anunciar em emissora evangélica. Assim,
por exemplo, o anúncio de uma marca de arroz é feita a partir de um estímulo à participação do ouvinte,
que sugere uma receita em que o produto seja ingrediente. A propaganda de um analgésico consome
um programete diário de 10 minutos a cada dia, pelo qual ouvintes são convidados a contar “qual é a sua
maior dor de cabeça” (que pode ser o vizinho, a sogra, etc.); após a narrativa, a emissora toca o jingle do
produto. Promoções no próprio ambiente do anunciante também são opções, como a propaganda de um
supermercado, para a qual se adotou o velho expediente de sortear um consumidor que ganha um

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tempo para encher o carrinho e ganhar produtos de graça, com o locutor junto, narrando ao vivo.
Garante Túlio Izac:
“Se não fizer assim, ele não anuncia de jeito nenhum. Para o comerciante, rádio
evangélica é aquele modelo de rádio de pregação chata. Eu nunca ofereço
inserção, nem na RBC, mas um projeto específico de venda do produto dele. E
vende.”

Se a solução empregada pela Rádio Aliança foi a de integrar, de forma estrategicamente


negociada, o discurso evangélico e o comercial ou o característico do veículo, a TV Record, por sua vez,
prefere marcar uma separação entre os dois tipos de programação. E é de tal modo feita essa separação
que Francisco Carlos de Almeida, membro à época da gerência de programação da Rede, em São
Paulo, chega a afirmar que “eu sequer tomo conhecimento do que vai ao ar durante o horário da igreja”.
Isso, contudo, não é tão complicado assim. A estratégia da Igreja Universal do Reino de Deus é
extremamente apelativa e se baseia em discursos e orações de seus pastores e bispos e, sobretudo, em
testemunhos, editados em VTs específicos ou obtidos por meio de “falsas entrevistas” (método, aliás,
muito utilizado em programas dotados de ideologia definida, como os religiosos e políticos).

As “falsas entrevistas” podem ser feitas de dois modos: o modo de edição, em que, primeiro,
grava-se todo o conteúdo de forma declaratória e, depois, no processo de edição, são incluídas as
perguntas; e o modo planejado, em que os ditos são anteriormente preparados pelo entrevistador, sendo
a gravação da entrevista uma espécie de encenação, dentro da qual inexiste a possibilidade de surpresa
ou contraditório para qualquer dos interlocutores. Os pastores da Igreja Universal, na TV Record, utilizam
principalmente este segundo tipo. As entrevistas feitas por eles são sempre dirigidas dentro de um
formato simples e repetitivo. São, invariavelmente, quatro os seus momentos.

1º momento: Sempre se começa pela narrativa das desgraças da vida da família e da pessoa,
motivada por uma pergunta típica: “como era a sua vida?”;

2º momento: O pastor incita o “entrevistado” a tornar a narrativa o mais negativa possível,


fazendo falsas perguntas de reforço, como: “Quer dizer que sua vida era um verdadeiro inferno?” ou:
“Você sentia que o diabo vivia com vocês?”, ou, ainda, de modo mais explícito: “Tudo o que você faziam
dava errado? Vocês não conseguiam ganhar dinheiro?”

3º momento: Em seguida, modifica-se o tom da entrevista, pois o relato se inverte, a partir do


momento em que o pastor convida o entrevistado a falar sobre sua entrada na Igreja Universal, que é,
invariavelmente, apresentado como divisor de águas para a vida da pessoa.

4º momento: O encerramento da falsa entrevista se dá com o pastor e seu entrevistado se


dirigindo ao telespectador, a fim de chamá-lo para a Igreja. Esse momento costuma começar com uma

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solicitação do tipo “Diga algo para aquele telespectador que está vivendo hoje um problema semelhante
ao que você viveu”, e normalmente termina com um comentário do próprio pastor, também nesse
sentido.

Durante todo o tempo da entrevista, são exibidos caracteres com nomes e endereços da Igreja
Universal. As variações de conteúdo ocorrem somente por conta do relato do entrevistado, que, naquele
momento, e dentro das condições de enquadramento formal da situação de falsa entrevista, expõe
fragmentos da própria vida, colorindo-os com as cores sempre berrantes que esse enquadramento
exige, seja para desqualificar totalmente a narrativa do passado (muitas vezes pontuada pelo combate
ao Espiritismo, à Umbanda ou ao Candomblé), seja para constituir uma imagem idílica do presente. O
cotidiano narrado torna-se, dessa forma, inteiramente subserviente do interesse da instituição que
possibilita sua narração. Sem que seja necessário duvidar da hipotética sinceridade do entrevistado, ou,
mesmo, sem pretender acusar a Igreja de “fabricar testemunhos” – talvez até porque tais gestos sejam
desnecessários, por conta do jogo de emoções desencadeado pelo exercício da fé – é notória a
condição de falsa entrevista em tais programas.

Essa seqüência se repete com impressionante exatidão, mesmo nos VTs editados, sem a
configuração de perguntas e respostas ou na ausência visível de um pastor. Os VTs são normalmente
longos (de sete a onze minutos cada). No rodapé, em caracteres, os VTs de testemunhos sempre
contam com um rodízio dos endereços da Igreja Universal em Goiânia.

É incorreto, contudo, supor que os movimentos religiosos engendram tais sentidos de maneira
absoluta, ou seja, que a vinculação estratégico-instrumental seja própria ou necessária na discursividade
religiosa. Na Federação Espírita do Estado de Goiás, houve no início de 1997 uma desavença interna
entre a diretoria e o grupo de profissionais (jornalistas, radialistas e publicitários, todos espíritas,
trabalhando gratuitamente para a instituição) que produzia o programa “Espaço Aberto”, em exibição até
hoje aos domingos na TV Brasil Central. O programa era dividido em três blocos, sendo dois de
entrevista e um último, intitulado “Tome Nota”, composto de informações gerais sobre eventos
promovidos pelos espíritas. No formato inicial, proposto e executado pelo grupo de profissionais, dois
convidados, um espírita e outro não-espírita, tratavam de um tema social, dentre os mais comentados
pela imprensa, sob mediação de um jornalista profissional. Foram feitos, por exemplo, programas sobre
“Impunidade”, quando da morte de PC Farias; aborto, quando da discussão do Projeto Marta Suplicy no
Congresso Nacional; etc. A argumentação dos coordenadores era a de justamente romper com o
formato monologal do discurso religioso, adotando uma perspectiva de diálogo social, dentro da qual os
espíritas entrariam com uma das opiniões. Resguardadas as proporções, o modelo era até certo ponto
semelhante ao “25a. Hora”, transmitido pela TV Record. Entretanto, as discordâncias internas na
Federação Espírita do Estado de Goiás provocaram, no início de 1997, uma mudança total no quadro de
direção do setor de comunicação da instituição, e o programa mudou sua denominação para “Espaço

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Espírita”, passando a adotar o modelo de falsa entrevista, em que espíritas conversam entre si sobre
temáticas tipicamente doutrinários.

Um fato semelhante ocorreu também na Rádio Aliança. Durante o ano de 1995, essa emissora
colocava no ar todos os dias úteis, às 15 horas, um programa de debates que, por coincidência, às
segundas feiras se intitulava “Espaço Aberto”. Nela, o diretor à época, Carlos Antonio, debatia com
não-evangélicos diversas temáticas sociais, inclusive controvérsias religiosas, para as quais convidava
membros de outras correntes e denominações. Porém, a política programática desse diretor entrou em
choque com a da Transmundial, proprietária da emissora, para a qual a função do rádio é pregar e
converter, e, por isso, ele foi afastado, ocupando o seu lugar o pastor Oziander Reis, que adotou um
formato mais monológico de discurso religioso, passando a evitar toda e qualquer controvérsia religiosa
no espaço programático e discursivo da Rádio Aliança.

4. Conclusão: por uma reconstrução alteritária do conceito de fraternidade.

Analisando o material colhido, em suas perspectivas lingüística e contextual, isto é, a partir de


um olhar pragmático e tendo em vista as categorias analíticas caracterizadas por Habermas e deduzidas
de Lévinas, a primeira conclusão a que se pode chegar é a constatação de que a discursividade religiosa
de orientação conversionista enquadra-se no âmbito das ações estratégico-instrumentais, dentro das
quais fracassa uma vinculação dialógica e alteritária. Tal constatação pode ser demonstrada pelo seu
cotejamento com as marcas desse modelo de ação em Habermas. Senão, vejamos.

A primeira marca diz respeito à natureza teleológica da ação conversionista. Segundo


Habermas, a teleologia da ação se revela pela orientação a objetivos que, em princípio, elege meios e
considera conseqüências para atingir uma meta de características monológicas. Ora, o ator religioso, ao
investir no discurso conversionista, articula uma visão instrumental da comunicação, a qual transparece
na interpretação de suas instituições como “meios” para se alcançar os objetivos da religião. Em
seguida, considera como conseqüências nas quais o estado de coisas desejado é a conversão do outro
aos conteúdos e padrões do eu ou do falante, e, com isso, efetua cálculos de eficácia a partir do êxito
em se alcançar a meta (trazer à igreja ou à aceitação de conteúdos predeterminados). Definida a
natureza teleológica do discurso conversionista, subsume-se que o falante ignora ou menospreza os
objetivos do interlocutor e, se os apreende, age de forma perlocucionária, fazendo-o com o propósito de
modificá-los em direção às condições preconcebidas.

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O resultado dessa construção de sentidos é o desenvolvimento de modelos monológicos de fala,
sem qualquer espaço para o diálogo, ou que, quando são criados, culminam, conforme se constata, em
jogos de encenações, destituídos das pretensões de validade caracterizadoras da interlocução
comunicativa. A televisão, nesse caso, é percebida e feita não como uma forma de sociabilidade, e sim
como um espelho do mesmo. A falsificação dos diálogos gera, na verdade, uma espécie de “monólogo a
dois”, em que o ego religioso se presume iluminado pela Verdade e intenta converter a sociedade. O
discurso autoritário3 (Orlandi, 1993) termina em mero espelhamento, pois, ao ignorar os componentes
identitários da audiência e os usos que o público faz das programações, é lícito presumir que o processo
de recepção desenvolva resistências e talvez esta seja uma das razões ponderáveis pelas quais os
institutos de pesquisa captam em tais programas e nos “horários políticos” uma queda significativa de
audiência.

Quanto à natureza estratégico-instrumental, a ação conversionista evidencia de forma


diferenciada ambas as características analíticas mencionadas por Habermas. As ações estratégicas são
ações sociais que se especificam como influência sobre o outro, percebido enquanto oponente – ao
menos de forma discursiva, fator que se observa na relação de conversão. Entretanto, a característica
instrumental parece ser historicamente mais recente, derivada dos condicionamentos tecnológicos da
construção das regras de interação no mundo moderno. A instrumentalização da discursividade religiosa
não é muito recente, estando presente nessas esferas desde os manuais de retórica sacra; mas,
tornaram-se inevitáveis e definidores, instalando-se no âmbito do próprio modo de produção discursiva,
na medida que os religiosos, assumindo posições no interior das instituições modernas de comunicação
social, passaram a incorporar especialistas, não obrigatoriamente vinculados às comunidades religiosas,
a fim de garantirem as condições performáticas do discurso, o que pode significar inclusive a melhor
ocultação dos sentidos perlocucionários.

Dos exemplos colhidos empiricamente, ressalta, como demonstração da existência fática de atos
de fala perlocucionários na discursividade conversionista, a utilização do modelo de falsa entrevista. O
contexto teleológico e o propósito perlocucionário só são percebidos pragmaticamente, isto é, apenas se
fazem evidentes quando a análise se desdobra para além da superfície do texto, abrangendo

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Eni Pulcinelli Orlandi (1993, p. 24) define o discurso do tipo autoritário como “o que tende para a paráfrase (o mesmo) e em que
se procura conter a reversibilidade (há um agente único: a reversibilidade tende a zero) e em que a polissemia é contida
(procura-se impor um só sentido) e em que o objeto do discurso (seu referente) fica dominado pelo próprio dizer (o objeto
praticamente desaparece)”. Tal discurso, para essa autora, opõe-se ao tipo polêmico, traduzido como aquele que apresenta “um
equilíbrio tenso entre polissemia e paráfrase, em que a reversibilidade se dá sob condições, é disputada pelos interlocutores, e me
que o objeto do discurso não está obscurecido pelo dizer, mas é direcionado pela disputa (perspectivas particularizantes) entre os
interlocutores, havendo, assim, a possibilidade de mais de um sentido: a polissemia é controlada”. Há, ainda, para Orlandi, o
discurso lúdico, que é “... aquele que tende para a total polissemia, em que a reversibilidade é total e em que o objeto do discurso
se mantém como tal no discurso”.

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circunstâncias de contexto, como a performaticidade insistentemente reproduzida e os conflitos que, não
raro, culminam em ações excludentes contra os adeptos que ousam romper com esse tipo de
discursividade. No discurso conversionista, percebe-se a existência de reservas (conteúdos a serem
ocultados pelo participante que atua estrategicamente na interação), derivadas do fato de as respostas
estarem prontas antes mesmo de as perguntas serem feitas, razão pela qual estas só comparecem na
interação de forma condicionada.

Resta, ainda, avaliar até que ponto o discurso religioso conversionista se efetua a partir de
pretensões de poder. Segundo Habermas, o modo de analisar esta categoria é a avaliação das
condições de aceitabilidade do ato de fala exigitivo em condições adequadas de contexto, sendo que tais
condições implicam razões radicadas no potencial de sanção, de natureza extralíngüística, vinculado de
forma externa ao ato de fala. Ora, no caso do discurso religioso contemporâneo, o potencial de sanção
só se dá em situações muito específicas de contexto, que é justamente o que as instituições religiosas
têm perdido ao longo do processo de modernização. Tais condições apenas existem de forma
importante no âmbito intrainstitucional, sendo interessante, na abordagem desses fatores, considerar os
estudos da microfísica do poder, em Michel Foucault. Assim sendo, pode-se concluir dessa análise que o
discurso conversionista é nitidamente estratégico e às vezes carregado de características instrumentais,
graças às pretensões de poder de que os seus falantes o revestem; entretanto, tais pretensões têm
perdido a capacidade de desempenho, devido tanto à fragmentação de sentidos, quanto à
democratização das capacidades de participação social.

Tais características parecem se enquadrar no que Habermas categorizou como patologias da


comunicação, isto é, a constatação de uma distorção sistemática, como resultado da confusão entre
ações orientadas ao êxito e ações orientadas ao entendimento. A esse problema, ele denominou
manipulação, quando pelo menos um dos participantes age estrategicamente e faz parecer aos outros
que cumpre os pressupostos da ação comunicativa; e defesa inconsciente (conceito psicanalítico), que
produz perturbações na comunicação, quando ao menos um dos participantes se engana a si mesmo,
gerando a aparência da ação comunicativa. É preciso fazer aqui, porém, uma ressalva às conceituações
de Habermas, a fim de que a noção de manipulação não nos conduza de novo a uma perspectiva
monológica, traduzida pela passividade necessária dos ouvintes, característica que tem sido superada
pelas mais recentes teorizações e pesquisas no campo da recepção. E isso o fazemos ao distinguir
analiticamente, numa perspectiva de pragmática sócio-interacionista em Habermas, as pretensões dos
falantes e os respectivos desempenhos. No âmbito destes, toda manipulação se desempenha negociada
por situações de contexto.

E, por fim, o último referencial analítico diz respeito à possibilidade de crítica às pretensões de
validade. Nossa conclusão a esse respeito é a de que o discurso religioso conversionista não admite a
crítica de suas pretensões – exatamente por não serem pretensões de validade, e sim de poder – sem

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se descaracterizar como conversionista. A ação conversionista traz, por definição, uma dinâmica
identitária, para a qual o rosto do outro surge como problema a ser anulado e não como possibilidade de
desempenho cognitivo ou afetivo. Isso significa que – e esta conclusão tem valor axiomático para a
busca em direção à qual este trabalho se encaminhou – a condição de possibilidade da interação de tipo
comunicativo dentro da discursividade religiosa é diretamente dependente da renúncia ou da perda de
seu caráter conversionista. Este axioma é fundante, no estudo das condições de possibilidade da ação
comunicativa no discurso religioso.

Um extraordinário estudo a respeito da religiosidade em Habermas é, sem dúvida, a obra


Religião e modernidade em Habermas (1996), de Luiz Bernardo Leite de Araújo, publicada a partir de
sua tese doutoral, defendida na Universidade de Louvain, na Bélgica. Este autor demonstra
copiosamente, em seus estudos, que Habermas propõe que a perda do fundamento absoluto das
verdades de crença não deve ser lamentada, pois o que resta dessa perda é suficiente para remeter as
sociedades modernas ao longo caminho do entendimento mútuo, ao abrigo de toda insinuação
dogmática. A perda da segurança quanto ao caráter absoluto das normas conduz os homens ao acordo
normativo fundado na validade racional dos atos de fala. A esfera religiosa é, pois, absorvida pela
comunicação. A argumentação, contudo, não aniquila a tradição, mas apenas a supera enquanto
autoridade anti-argumentativa, determinando que a construção da discursividade e da ação religiosas
subsuma não a preferência de valores, mas a validez prescritiva de normas de ação, o que, no entender
de Araújo, “é campo imenso para a esfera religiosa”. O religioso deverá assim buscar no mundo da vida,
onde prevalece a ética comunicativa, o seu lugar, já que ali há o debate livre acerca de conteúdos morais
concretos, a aspectos substantivos sobre os quais todo religioso tenha algo a dizer. A ética discursiva é,
portanto, uma ética de fraternidade despida do caráter dogmático e da fundamentação religiosa absoluta.

Em termos conclusivos, reunimos alguns indicadores de ordem ética e discursiva do que pode
ser uma reconstrução da noção de fraternidade no interior das práticas religiosas.

a) Ruptura com o conversionismo. Estabelecimento de suportes dialógicos, ancorados em


pretensões de validade suscetíveis de crítica.

b) Superação da auto-centração. Busca do outro enquanto tal, com o propósito constitutivo de


aprender com ele, assegurando-lhe alteridade sem perda da própria identidade, isto é, a
relação entre diferenças não obrigatoriamente redutíveis uma à outra.

c) Renúncia às pretensões de poder. O que significa evidentemente renúncia às garantias


extra-lingüísticas de coerção e sanção.

d) Desenvolvimento do sentido de reflexividade e auto-crítica. Busca da verdade sem jamais


supô-la; reestruturação ética das próprias posições, diante da alteridade manifesta.

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e) Desocultação das reservas. Efetuando com isso a ruptura com os procedimentos
perlocucionários.

f) Interação com conhecimentos e discursividades instaladas em outros domínios, visando


interlocução. Em termos religiosos, o ecumenismo possível.

Ao final, uma observação marginal, porém interessante... Existe, no arcabouço teológico da


tradição cristã, suficiente fundamentação para tal ética. Porém, o cotejamento teológico ou bíblico
escapa aos objetivos e à metodologia deste trabalho...

Bibliografia

HABERMAS, Jürgen (1981) Intermediate reflections: social action, purposive activity and communication.
In:___________ The theory of communicative action: reason and the rationalization of
society (V. 1). Boston : Beacon Press, 1996. (p. 273-337)

LÉVINAS, Emmanuel (1954) O eu e a totalidade. In: ________ Entre nós. Petrópolis : Vozes, 1997. (p.
34-65)

SIGNATES, Luiz (1998) O evento além das grades: um estudo sócio-interacionista e


fenomenológico da comunicação a partir das programações de rádio e televisão. Brasília :
UnB. (Dissertação de Mestrado)

SIGNATES, Luiz (1998a) Os espíritas na Internet: interatividade e alteridade no jogo das


identidades culturais. Recife : XX Intercom : GT Comunicação e Religiosidade.

LIMA, Weber (1998) Comunicação e experiência religiosa. Goiânia : UFG.

ARAÚJO, Luiz B. L. (1996) Religião e modernidade em Habermas. São Paulo : Loyola.

ORLANDI, Eni P. (1993) Discurso e leitura. São Paulo : Cortez.

TERRIN, Aldo N. (1992) Nova era: a religiosidade do pós-moderno. São Paulo : Loyola, 1996.

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