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Luiz Roneori RONCARI, L. D. de A. Machado Manifesto, O nacional e a utopia em Machado (Mestrado em Histéria Social) ~ Faculdade de Filosofia, Letras e Ciénd Humanas, Universidade de Sao Paulo. __. A poesia envenenada de Dom Casmurto. Duas meninas. S40 Paulo: Cot panhia das Letras, 1997. VIANNA, ©. Populagées meridionais do Brasil. .ed. Sao Paulo: Companhia Machado de Assis © aprendizado do escritor @ 0 esclarecimento de Mariana! Os primeiros contos izacao da primeira parte deste estudo beneficiou-se da publi- recente, pela Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, istos de Contos completos de dle Assis, organizados por Djalma Cavalcante (Assis, 2003). lca, até aqui, que a edicao é de fato completa, incluindo tanto tos reconhecidos de Machado quanto os atribuidos a ele;? traz as ‘sGes de um conto que o autor reescreveu, com alteracées para ificativas e que comentarei mais adiante; estabelece os textos base as publicagdes originais e optando, nos casos de Luiz Roncari © cio do sent da, ou a Eva dominada pela densidade corporal, e por isso mesmo mais sujeita as tentagdes demonfacas ou aos impulsos fisiologicos. Integran- do corpo e alma em um tinico ser, Machado procurava fugir dos dois esteredtipos da época, o romantico e o naturalista, que esto simboli- camente representados nos fcones da casa de Conceigao, personagem do conto “Missa do galo”/ os quadros da sala, do espaco entre o piblico © 0 privado, “Um representava ‘Cleépatra’; nfo me recordo do assunto «lo outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos”, os quais presidem a forte atragao erética entre Concei¢ao e Nogueira, o jovem héspede da outro {cone era a escultura de Nossa Senhora, provavelmente resguardada no quarto da personagem, “Eu tenho uma Nossa Senhora Concei¢ao, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, ndo pode pér na parede, nem eu quero. Estd no-meu-oratério” (Assis, 1974, p.610), Era para esta que-Coneei¢aio. deveria orar na solidao, mo naquela noite de Natal, uma festa familiar por exceléncia, mas na al o marido estava na casa da outra. Entre a puta cultuada no espaco visivel da casa, na sala, ea Santa parideira (como a propria sonagem Concei¢ao era chamada, “a santa”, além do seu nome), ‘ondida no recéndito do oratério, a mulher de Machado parece ccurar um lugar impossivel, que esta fora, pelo menos da visio e da e¢a dos homens. Por essa razAo, a vigilancia censéria maior de suas icagdes talvez viesse dos pais e maridos, atentos 4 forma de trata- }0 nao sé dos assuntos da moralidade familiar como também de juer tema mais sério, em especial o da vida politica e institucio- impos exclusivos das preocupagdes masculinas, e objeto igual- republicagio em livros, pela verso da ultima ediclo revista pessoal- ‘mente por Machado, ou, quando nao, pelo texto original do periédico, corrigindo apenas os erros tipogrificos e fazendo a atualizacio ortogrié- fica; por fim, e para mim o mais importante, essa edi¢4o apresenta 03 contos de Machado, nas palavras do organizador, “em rigorosa seqiién« cia cronolégica da publicacdo original”, sempre acrescentando uma nota ao final de cada um, que o situa em que érgio da imprensa ¢ quando foi publicado, e, quando € 0 caso, a que livro foi incorporado. A possibilidade de acompanhar a seqliéncia cronolégica, que reproduz mais ou menos a da produgao dos contos, ofereceu-me a oportunidade de detectar 0s problemas, literdrios e ndo-literarios, que 0 autor en- frentava eas solugdes que foi dando a eles. Como disse acima, até 0 momento s6 foram langados dois tomos, comportando basicamente of contos reunidos no primeiro livro de Machado, Contos fluminenses, ¢ 08 dos volumes organizados postumamente com o titulo de Histérias romanticas, da W. M. Jackson Editora, ¢ das varias coletaneas organiza das, em 1956 e 1958, por Raimundo Magalhies Jr. para a Editor Civilizagao Brasileira, Essa circunstancia, portanto, impée limites ao trabalho, ao qual pretendo dar continuidade um dia. Quase tudo o que Machado escrevia, antes de ganhar o formato de livro, passava pela imprensa, na forma de artigos, crénicas, criti poesias, contos e romances-folhetins publicados em jornais e revistiy, A publicagio imediata, se por um lado estimulava a produgao do aul e contribufa para a ampliago de seu ptiblico, por outro imp limites, estabelecidos pelo préprio leitor a quem se destinavam i publicagSes, sobretudo pelas mulheres da familia burguesa ‘¢ da critica do autor.’ Os Teitores que escreviam aos periédicos da segunda metade do século XIX. Todavia, as restrigoes m mando dos assuntos e da abordagem escolhidos por Machado talvez ndo viessem dessa parcéla de seu piblico, pois, como tentatt) “¢ exclusivamente homens, como aquele que assinava “Catur- mosirar, 0 ponto de vista critico feminino, em relagio a boa p aa de imoralidade 0 conto “Confissdes de uma vitiva moca”. contos, era mais favordvel que o dos homens. Sobre a visio a Talvez 0 elemento mais significative cla vicla politico-institucl da época fosse a vigilincia censéria do poder Imperial ¢ a dependes dos intelectuais dla protecio e tutela dessa esfera, o que tornava seth) conveniente a manutengdo do seu agrado (infelizmente, isso no Festringiu ao Império; quem viveu aqui nos anos recentes da décacla 1990 sabe de quanta maldade o Estado é capaz aos desafetos @ quantos beneficios aos afetos). Sobre o tema, é muito interes apreciar uma alegoria que Machado fez do Segundo Império; bast explicita, ela se esboca sobre forte fundo critica e irdnico, tanto qui autor nao a reeditou em livro. A alegoria de que falo encontrasse conto “A vida eterna”, de 1870, no qual o autor procura tambi ‘contextualizar 0 tema féustico, com Mefist6feles encarnando 1) _Estado e num regente caricatos,* A associagao é to veemente que, certa altura, uma personagem se corrige e se refere ao proprio EsW ali representado: “~ O Tobias nao podia encontrar melhor genro, 1 que andasse com uma lanterna por toda a cictade, que digo? por todo império” (grifo meu). O Império é alegorizado como um palacete velhos, “eram todos velhos, como o mordomo e 0 lacaio, e o met proprio sogro; finalmente velhos como eu também", regido por um de Tobias. Este aparece como uma figura ridicula ¢ demonfaca, monarca fantasiado com as cores da nacionalidade, em cujo retrato autor dissemina uma série de indicativos do Segundo Império brasil ro, que vale a pena aprecial 4B ingeressamte notar que esse conto foi publicado num momento em que Mac comesava a ser agracado (, com isso, eambém, aparentermente cooptado) pel Estado Imperial, 0 que deveria serena seu espitito liberal ecombatvo, em prol uma atitude mais coneliaéria, Era assim que Jean-Michel Massa interpretavi mudanga de sua ago jornaistica e Iter nesses anos. Tentarel mostrar aq ie sn attude foi na verdade outa; ele mudava sua literatura para poder centri @ foo justamente naquilo que devera ser evtado, tornando a clic, porét, alt ‘subterriinea: “Na verdade, o pacto de reconciliagaio com o poder estava assinada., ‘Algumas semanas antes ca sua nomea¢io para o Dirio Ofiial, em 16 de margo de 1867, Machado de Assis foi agraciado com o titulo de cavaleiro da Ordem da Rost Pademos consuitar, no Arquivo Nacional, o¢ documentos que se vinculam es orem, Desde 1865, 0s que se distingulam no campo de batalla recebiam a Orden do Cruzeiro, que recompensava os feitos da guerra, enquanto que a Ordem Rosa era de preferéncia atibuida aos civis” (Massa, 1971, p.568) 202 Ji disse que vinha embrulhado em um capote; ao sentar-se, abriv the o capote, ¢ vi que o homem ealgava umas botas ce couro branco, ves: tia calga cle pano amareto e um colete verde, cores estas que se estio bem. ‘numa bandeira, nfo se pode com j istiga dizer que aclornem e aformoseiem © corpo humano, ‘As feigSes etam mais estranhas que o vestudtio: tinha os olhos ves- fos, um grande bigode, um nariz & moda de César, boca rasgada, queixo saliente ¢ beigos roxos. As sobrancelhas eram fartas, as pestanas longas, a testa esteeita, coroando tudo uns cabelos grisalhos e em desordem. (As- sis, 2003, v1, 2, p.716-7) Esse reduto, para onde eram canduzidos os escolhidos, tinha como juardies de seu portal justamente as figuras de Merciirio e Minerva, seja, a unize do comércio com a inteligéncia, estando esta subordinada 40 primeiro: Subimos cu ¢ ele, por uma magnifica escada de marmore, até 0 topo, onde se achavam duas pequenas estdtuas representando Merciirio € Minerva. Quando chegamos ali o meu companheiro disse-me apontando para as estatuas. = Sao emblemas, meu caro gento: Minerva quer dizer Eusébia, porque éa sabedoria; Merctirio, sou eu, porque representa 0 comércio. (ibidem, p.7i9)s Eusébia, filha de Tobias, é apresentada como uma jovem deslum- bbrante, com quem o velho escolhido para fazer parte da irmandade il deveria se casar, como uma espécie de recompensa pela adesao a0 clube imperial. Porém, ela era apenas um engodo, usado para atragao e 0 tema da mercantilizagio da inteligéncia (assim como 0 do teatro e o da literatu~ ra) € mais freqtiente do que parece em Machado de Assis, Em outro trabalho, j4 analisel como 0 autor o embute numa cena do “Conto de escola” (Roncari, 2003). Em uma das “aquarclas” que Machado escreveu para O Espeho, que ele charma de 0 fanqueir lterério, ele observa: “O fanquelto literdrio é uma individualidade social e ‘marca uma das aberragdes dos tempos modernos. Esse moer continuo do espitito, que faz da inteligéncia uma fabriea de Manchester, repugna & natureza da pe6pria intelectualidade. Fazer do talento uma maquina, ¢ uma maquina de obra grossa, ‘movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do ta- Tento, ¢ 0 pudor da consciéncia” (Massa, 1971, em especial p.267). 203 ima grande § que portava um espelho no bico. Oct, do edificio, a falsa 4guia, com seus olhos agudos acima de todos, ¢ era para onde todos deveriam olhar e se reconhect sendo esta a fungao do espelho: cada particular se ver representado universalidade, ea u lade vista como a suma das partic des. No seria demasiado dizer que se tratava de um simulacro di Estado hegeliano-napolenico (sem querer entrar em toda controyé| sia a respeito), pois ele ndo era representado como 0 Estado de senhor dos senhores (como 0 fora 0 de Frederico, o Grande, e qu razio”, que realizava a sfntese do particular com o universal, na med em que espelhava 0 conjunto das particularidades e em que cit individuo se identificava na universalidade.® A falsidade da 4guia res) dia em ela imitar a universalidade apenas para alguns poucos ancifl eleitos, os velhos, portanto uma universalidade muito particular: ‘Nunca me hé de esquecer a vista da ala apenas se me abriram as pol tas. Tudo ali eta estranho e magnifico, No fundo, em frente da porta entrada, havia uma grande guia de madeira fingindo bronze, encostad parede, com as asas abertas, e preparando-s@ camo para voat, Do bico guia pendia um espelho, cuja parte inferior estava presa As garras, ci servando assim a posigio inclinada que costuma ter um espelho de pai de. (ibidem, p.720)? |\ 6 "Na medida em que o Estado é que 6 0 Espirito obj dito somente tem objetividade, verdade éticae so bro do Estado. A unio engu: © a destinagio dos individuos ¢ levarem uma vida universal. Todas suas satisfagSes particulares, suas atividaces, seus tipos de comportamento, etc ade substancal c universal 2o mesmo tempo como ponto de part como resultado” (Lefebvre & Macherey, 1999, p.123, comentando os Princlpios de {loofia do dite, de Hegel 7 Nio era a primeiza vez que Machado se utilizava do simbolo da guia para repre sentat 0 impécio napoleénico, Ele o usa nesta sua poesia da juventude, consagti ‘20 "Grand" Napoledo, pare contrasté-lo com “le Pett", Napoledo Il, nas mos «quem tanto havia softido o seu amigo proscrto por ter patticipado das bartica 204 descrito © ar da irmanda- tal da 10. Ela » poderia ser mais explicita nido da inteligéncia com 0 com wr excelente prato. Niio podemos assi-lo inteiro; 6 muito alto e gordo; néo cabe no vamos esquartejé-lo; venham Facas. Estas palavras foram ditas pelo Tobias, que imediatamente distribulu os papéis; 0 coronel cortar-me ia a perna esquerda, o condecorado a dirci- © padre um brago, ele outro e a condessa, amiga de nariz de gente, ja 0 meu para comer de cabidela. (bidem, p.726) ) O ocultamento e a forma Esse tipo-de alegoria.e a forma quase explicita de critica direta, hado logo iré abandonar. A exposicao imediata pela imprensa ¢ a lancia, tanto da sociedade senhorial-patriarcal como do poder Im- | itelar, induziram 0 autor a buscar, para nfo se render as pectativas dominantes, uma forma indireta de narrar, que, além de a 08 juizos extraidos dos fatos, permitisse-Ihe incubar, nos ele- 10s simbélicos, a possibilidade de uma outra leitura, mais profun- 10 mesino tempo critica e transcendente as contingéncias factuais, ie esté longe ainda de ser inteiramente decifrada. O que deverd singuir esta minha leicura de outras, em particular da psicanalitica, € «que procurarei apreciar o desenvolvimento dessa estratégia literdria de Machado como uma busca consciente do autor. Depois de a critica ocurar nos dados biogrificos os segredos da obra, ¢, num outro “Sobre a escarpada rocha ~ levantada / Na como guia (Cit. em Mas- de 1848, em Paris, Charles Ribeyroles; ‘aga - como umm tmulo marinho, / sob eterno luar, / César = d derrubada! / No seio agora desse estéril ninho /& forsa repous: sa, 1971, p.230). 205 revelado, tentar que consiga integrar “tempo” como as condicdes e pressupostos do trabalho intelecti elaboracio literfria. E este o objetivo da leitura, entender o método de composigaio de Machado como um trabalho de escritor, de um sujetto critico e reflexivo interessado em fornecer uma resposta literdria is inquietagdes de seu tempo e, no caso, em fazer ver, com toda veemén- cia, o que nao poderia nem deveria ser mostrado, embora estivesse 10 campo disseminado da ética social e a vista de todos. © que se nota, desde os primeiros contos de Machado, é que ele se esforga para combinar uma observagao realista e critica das priticas sociais e intelectuais com uma trama ficcional bem urdida, romanesci, que quase sempre se compée em torno das dificuldades e dos obstécus los do encontro e da realizacdo amorosa. E recorrente enrseus contos 0 jogo que faz o narrador com a expectativa de “romance” do leitor, ¢ a inten¢ao do autor de dizer “a realidade”. Os dois aspectos opostos, que conduziiam a narrativa para direcées distintas = uma realizando @ expectativa do leitor, e outra, as inteng6es do narrador-autor, romance @ realidade =, aparecem nos contos em dissociacdo, em uma dificil € improvavel combinacao. O resultado, sem dlvida, é algo desconjuntas do, desconexo, que se mistura, mas no qual os dois termos nfo se casam efetivamente um com o outro. Assim, alguns contos que comegam com, observagGes realistas sobre as préticas sociais logo cedem as aspiracdes do leitor e desenvolvem uma trama ao gosto deste pelas intrigas roma: nescas. Exemplar é 0 conto de 1864, publicado no Jornal das Familias, “Virginius (narrativa de um advogado)”. a histéria do amor do filho de um senhor patriarcal, protetor e generoso ~ “Olham-no todos como se fora um Deus”, e nfo por acaso chamado de Pai de Todos, “Pio nao tem: escravos, tem amigos” -, pela filha de um agregado, Julido, “a mulatinha mais formosa”. O conto € armado de modo que as distdncias e as barreiras & realizacdo desse amor tornem-se bem vistveis e realistas: Carlos e Elisa viviam quase sempre juntos, naquela comunhao da in- fancia que nao conhece desigualdades nem condigdes. Estimavam-se de- 206 ja mulher, podia aval wos 0s afetos de st homem, Conhecia as condigies da vida os gestos mostrou smo separava o fitho do protetor da filha do protegido. (Assis, 2003, v.1, t.1, p.98) alma no mais interessante nesse conto é que o impedimento 4 realizagio do 1 ndo vem do patriarca, que poderia nfo querer ver o filho tinico t-se com a filha “mulatinha” de um pobre agregado, mas vem do rio filho, que, apesar de bacharel, torna-se um cacador} “Carlos io tinha mais que uma ocupagdo e uma distragao: a caca. Levava dias as a correr 0 mato em busca de animais para matar, e nisso fazia stir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos os estudos”, © poder desmesurado do filho, de estender seu dominio e impor sua mntade sobre tudo e todos, herdado do pai, que o estimula a mudar a pectiva de seu afeto, do amor por uma mulher para a posse de uma esa. Quando Elisa, a “mulatinha’, relata ao pai o fato é assim que 0 “O Sr. Carlos, em quem comecei a notar mais amizade que a0 ‘nefpio, declarou-me hoje que gostava de mim, que eu devia ser dele, w s6 cle podria me dar tudo quanto eu desejasse, ¢ muitas outras coisas i eu nem pude ouvir, tal foi o espanto com que ouvi as suas meiras palavras” (ibidem, p.98-9, grifo meu). B ela continua, dizen- que, diante de sua reagio adversa, ele teria afirmado: “Has de ser ‘ninkal” (grifo meu). © conto € armado dese modo, com intenso realismo, mas depois se desenrola como “romance”. Para reparar a ordem ameacada no progresso da narrativa, os crimes so punidos, os ‘aus castigados, e os bons compensados na justa medida do que cabia ‘cada um. Em 1866, Machado de Assis faz uma experiéncia que considero um ‘pgsso significative no desenvol conto de 1862, que publicara na revista literaria O Futuro com o titulo “O pais das quimeras”) A narrativa discorre sobre um poeta que é iento de sua obra. Ele reescreve um 207 moral de os dons de Deus; e ainda vencido quando se achou com a corda no pescoco” ‘Trata-se de uma sativa, escrita na terceira pessoa, q\ maus costumes do pais chamado de “o reino das bagatel 0 poeta por meio de uma viagem maravilhosa, durante a quil observa 0 apego as fantasias como fuga e compensagio da dura real la aparéncia, a vaidade, a moda, as formalidades, as fumo, a irrelevancia intelectual dos fildsofos etc, Aot crevé-la, quatro anos depois, Machado faz pelo menos trés altera importantes. Muda o titulo de “O pafs das quimeras” para “U excurstio milagrosa”, deslocando assim © foco do leitor do objel alegorizado com intengées satiricas para a revelagdo que a Proporcionow ao heréi. Com esse recurso, a sétira deixa de ser de responsabilidade do autor-narrador para o esclarecimento do lelto Bla passa a ser mediada pelo relato do préprio herdi, por quem vive milagre da revelacao, e tudo o que é dito submete-se entio a si) responsabilidade. E é essa a segunda e mais importante mudanga niicleo da narrativa, a mudanga da terceira para a primeira pessoa, co) © her6i tomando a palavra e dando continuidade ao relato: “Aqui del de falar o autor para falar o protagonista” (ibidem, p.340, grifo met) Com isso, 0 autor-narrador se oculta e se isenta da responsabilidade dos exageros que a sétira se permite para suas finalidades criticas, terceira e decisiva altera¢o se d4 no final da narrativa, mais desenv vido na segunda verso, de modo que chame a atengio para o ganho de visio que a viagem fantéstica propiciou ao heréi, Ao mesmo tempo, essa alteraedo ressalta a licdo maior que teve 0 autor no percurso narrativo, 0 que o levou as mudancas com a nova forma de narrar, como a de se ocultar ¢ fugir as retaliagbes dos atingidos pela crueza day verdades reveladas: Ja a toda gente, atendendo-se a que ixe de ter na fundo do coragio esse dspide venenoso, nplo aos futuros viajantes e poetas, a quem acontecer a “Aprendam os outros no espelko deste. Vejam o que thes aparecer& mGo, mas rocurem dizer o menos que possam as suas descobertas e opines. (ibidem, p.348, srifo meu)* Esse final parece indicar que quem mais aprendeu com a viagem © autor, € nao 0 poeta. Se alguém tinha de empobrecer em conseqiién- das verdades reveladas, que fosse o heréi-poeta — por isso mesmo ‘Oi e poeta -, € ndo o autor, que agora aprendia a grande li¢iio de se ar. Apesar de todas as maravilhas que o protagonista péde obser- a0 longo da travessia, “a viagem milagrosa” foi, acima de tudo, ipreendida pelo préprio Machado, que encontrou uma forma de tinuar revelando todas as verdades que presenciava, sem com isso softer as uristes conseqiiéncias, principalmente as de ficar pobre ¢ infeliz, sem poder vender sua mercadoria. Como resultado literdrio, \ \s0 eu, a opgao pela narrativa na primeira pessoa, em Machado pel nenos, ndo teve apenas a funcio de relativizar o peso de realidade dos os narrados, em uma troca da verdade pela versio da verdade, mas adquiriu também uma fungio particular: a de ocultamento do autor, de | forma que ele pudesse representar e expressar os juizos sem se sujeitar | aos prejuizos decorrentes do Estado tutelar e da consideragio social fundada em um estatuto senhorial. 8 Texto no qual ressoam estas palavras do Fausto ao criado Wagner: “Quem sabe o préprio nome dar As cousas? / Os poucos que jamais o compreenderam / FE que Insensatos, descobrindo 0 peito, / Pensar e sentimento a0 vulgo abriram, / Na ogueira e na cruz o tém expiado” (Goethe, 1958, v.605-9, p.37). Desde entdo [Tito, o poeta] adquitiu um olhar de lince, capaz de de cobrie, & primeira vista, se um homem tem na cabera miolos ou mass gquimérica, 208 209 A redugdo e mutilagao do sujeito Terfamos ainda muito a ganhar com o aprenclizado devo dar agora um salto de quase duas déca pedagégico e estar em consonancia com nosso asst escritor e de uma heroina. A pedagogia é a do contraste dos contos com este, “Capitulo dos chapéus’, do livro Historias se 1884, de um Machado jé plenamente maduro, talve: que aprender, mas ainda capaz do espanto diante do mistério revelad Um dos aspectos que mais salta aos olhos do leitor em todas es hhist6rias de Machado sto os processos de redustio e mutilaso, qu muitas vezes se confuncem, da pessoa humana no ambiente social ¢} que as situa, néo por acaso de extracio escravista, ¢ que ele reprodi estilizadamente no texto. Dificilmente um protagonista, homem 0) mulher, é apresentado sem que sejam referidos quantos contos de rt tem. Ao lado do bom ou mau carter e da mulher mais ou menos pil © ntimero de contos de réis é sempre uma sombra que os acompanhi ¢ fornece a dimensio de sua pessoa." Nesse sentido, é exemplar o conto “Luis Soares”: ao perder a fortuna ¢ ficar reduzido a “seis contos!, 0 protagonista no s6 se torna pobre como também & subtraido de su autonomia, j4 que, para trabalhar, nfo bastam as qualidades ou of méritos pessoais, é também necessaria a recomendagio do tio para um) cargo piblico. Para obier o favor, Luis Soares vai morar na casa do tio como agregado e, para aspirar a sua fortuna como herdeiro, tem de comprometer ainda mais sua independéncia fucura, aceitando casar-se 9. Esse & um fato digno de andlise: como Machado se refere a fortuna de cada perso sagem mais pela quantidade de contos que possui que pelas propriedades, como casas, terras e escravos, no que se constituia boa parte das fortunes no tempo, ls90. parece se dever nao tanto ao maior desenvolvimento da economia monetérla, pore e & constituigio de uma burguesia de rentistas no Rio de Janeiro, como ao faro de que a reducao do sujeito concreto 2 um niémero abstrato de contos muda também, com a quantifcagio, a qualidade do sujelto. Se a erra.e os escravos dia nobreza e aristocratizam, o dinheiro venaliza, que é a sua maior qualicade, pelo alto poder corrosivo que comporta, Bsse processo de hipastasia revela a necessidis de de extremo cuidado ao se tentar usar o texto de Machado come documento bruto, e nfo como elaboracio literiviafiltrads pelo angulo do autor 210 resistivel. Aos olhos 1¢ aos clas mulheres, a pessoa de cada um s.da época, m: a0 nimero de contos que possui, e & essa quantia que lece a medida do carater e da autonomia, é esse mimero que ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Ao lado desse ess0 de redugdo, vemos Machado acrescentar um outro, 0 de jacio da integridade do sujeito, reduzindo-o a uma parte, a um jento: “Uns bragos”, os joelhos redondos de Nhi-lolé, do Bris ow um chapéu. Com isso, nosso salto pedagégico est dado, e mos mergulhar no “Capitulo dos chapéus”. Como j4 apreciei em outro conto de Machado, “Singular ocorrén- © processo formal-estruturante de ocultamento e revelagto, e de roca da posigdo do autor, afasta-se do narrador e deixa o leitor identi- jcar-se consigo na pessoa do heréi-narrador (Roncari, 2000, p.39). Tentarei agora verificar esse outro proceso de composi¢ao de seus contos: como o autor trabalha a impossibilidade de realizagao do individuo, no sentido bem hegeliano do termo, enquanto sintese do particular com o universal na vida social brasileira, através dos dois recursos estilisticos acima referidos, os de redugao e mutilagto, com profundos resultados critics, Como muitas outras coisas em Macha- do, esses recursos nao so de facil percepgo, justamente por estarem demasiadamente evidentes. 0 titulo do conto escothido, “Capitulo dos chapéus”, foi tirado de uma pequena farsa de.Molitre, Le médecin malgré lui (Moligxe, 1971, p.219), da qual um dos trechos é usado como epigrafe.?! Veremos que 10 Bo que o ara na moca:“Realmente, no sel como thes da que no me sent mal, 20 pé da moca, eajando gatridamente um vestido fino, um vestido que me dava ceécegas de Tartufo, Ao contempt, cobrindo castae redondamenteo joelho, fo «qe eu iz wma descoberta subi, a saber, que anatureza previa vetdra huma- na, condigfo necessiria ao desenvolvimento da nossa espéce” (Assis, 1971, vi XCVIM, "Suprimido",p.603) 11 Basa farsa tem muitos pontos rab na epigrafe.Existe uma muito semelhante no Gargantut: "= Para que uso dizeis ssa belashocas? disse Gargintua. ~ Para o uso de Feean [convento da regito de anos, inclusive a tirada humoristica usada au hous couvrions tous deux”, Géronte Ihe p ‘Neeta?”. Sganarelle responde que sim, ¢ Géronte qu qual capitulo; 6 quando o falso médico diz: “Dans son Schapeaux”. © tema da farsa é 0 mesmo do conto, o da vinganga mulher: Martine, depois de ser espancada com um bordao p beberrdo, Sganarelle, para se vingar, diz a dois servicais, que procul um médico para curar a mudez da filha do senhor para quem Iham, Géronte, que o marido é um médico excepcional, mas que cle oadmite debaixo de bordoadas. f que os criados fazem, espancam} até que confesse ser esse médico excepcional, e acabam leva Géronte. Este é um pai leviano que pretende casar a filha, Lucind interesse ¢ no pelas inclinagSes pessoais da moga, que ama Léand Como reagio, Lucinde para de falat; 0 pai pensa que & doenga, nenhum médico conhecido consegue curé-la. Esta é a intriga que que se encontrem Sganarelle ¢ Géronte, um marido espancadot ¢ Pai prepotente, mostrando que tanto na camada humilde da sociedad na dos criados, como na elevada, na senhorial, ¢ a mulher a princi vitima, Na farsa de Moliére, como toda a linguagem é maliciosa e pot sempre um segundo sentido, a alusio de Sganarelle ao chapéu que o cobriam, “Hippocrate dit... que nous nous couvrions tous deux” (o vet francés couvrir também tem, como “cobrir" no portugues, a acepcio dd ato da cépula do macho com a fémea, assim como a acepcio dé “ocultar’, pois € como Sganarelle aparece diante de Géronte, pot artimanha da mulher, disfarcaclo de médico, com um chapéu pontudo) Pode ser interpretada como sinédoque da mulher: a mulher estatia Cau], disse 0 monge, com erés salmos ¢ trés lige, ou coisa nenhuma quem ily Gulser. Jamals me sujeitei as horas; as horas sio feitas para o homem, e nilo @ |homem para as horas, Portanto,fago com elas 0 que se faz com o loro do estribo, 4 a8 encurto ou as alongo, como bem me parece. Brevis oratio penetra coelos, ‘Potato evacuat seyphos {uma prece curta entra no céu, um trago le im trago longo esvazia o9 copes], Onde esti escrito isso? — Bolt, disse Ponocrates, eu nao sei, meu fradezt ‘mas sei que yale muito. ~ Nisso nés nos parecemos, disse 0 monge. Mas ‘poeemus (vinde beber|" (Rabelais, 1991, p.202) 212 ade Géronte, a nourrice). Seja como farsa, comporta uma joldgica, que trata do intercdmbio fisico entre os homens mm © mundo, o que constitui um contraponto com o sentido ico que the procura atribuir, no conto, 0 marido de Mariana, ilo Seabra. Este diz que o chapéu nao é um objeto de livre escolha, em, mas um decreio ab eterno, que “ninguém o pode trocar sem ago” e que talvez “nem mesmo o chapéu seja complemento do mas 0 homem do chapéu...”. Nessa relagdo determinista (ele a Darwin e Laplace) e sacramentada, ele parece se referir a0 jento e ao risco de inversio que nele se processa com a mulher, objeto de desejo, procura trocar de lugar com o homem, 0 «leiro sujeito. Se foi essa a intengéo de Machado, seria inteiramen- pertinente a nosso tema, que ¢ o da oscilagdo da mulher entre o ral e o espiritual, entre o mundano € santo, como jé enunciei ao ir de Conceicao, do conto “Missa do galo” (a do marido, que na noite + Natal rezava na casa da amante), hesitando entre a puta e a santa, encontrar a possibilidade de uma alternativa. O barrete frigio de Mariana No conto “Capitulo dos chapéus” processa-se mais uma inversio om relagdo a farsa maliciosa: 0 chapéu deixa de ser sinédoque da wulher para ser do homem, Num primeiro momento, o chapéu signifi- aquilo que ocupa obsessivamente a cabega dos homens, como a de Conrado, que usa sempre o mesmo chapéu desde que se casou, “desde cinco ou seis anos, que tantos eram os do casamento”, € representa 20 que estavam reduzidas as mulheres na sociedade patriarcal, objeto de uso posse; mas,num segundo momento, a-situacao se inverte e 0 chapéu readquire a conotagio convencional de sfmbolo masculino, A certa altura, as duas amigas, Mariana ¢ Sofia, passam a se referir aos camente, como chapéus: homens, meto: 213 juto da Orcem dos Advogados”). Alexan- iz o seguinte: “A razdo dltima criminoso de toda ago na sociedade antiga é a separagao a da ruina do mundo pagao rsalida- ridades)” (Kojéve, 2002, p.100). Tinhamos, portanto, rdem fundada na inteira desigualdade: a mulher como a face ica dos homens, e estes como a face ptiblica delas. Quanto a isso, Jas profundas diferengas, o universo antigo guarda similaridades, ia em ambos .cravidéo. No mundo machadiano, a fuga das perspectivas diferen- desiguais, tragadas pela ordem para cada sexo, nos planos do -0, adquire também um cardter criminoso. Porém.a~ \cao do autor parece ser a de enuncié-la como a de um mundo pré- | lusaio Francesa (0 que the permite o diélogo com a farsa de Mol m autor do século XVII, e néo com um romance de Ba Jo ainda nfo incorporada a vida dos homens, e, a meu ver, nao caso evocada nos trés momentos mais significativos do conto | im como nossa revoluciondria Mariana recorda a Marianne, com 0 barrete frigio vermelho no alto das barricadas).* / alguns chapéus, — ou, mais corretam 08 pensamentos de Fulana; outro andava derret ele, tanto que eram certos na Rua do Ouvidor as q duas ¢ trés horas, Mariana ouvia aturdida. Na verdad ‘o, trazia uma gravata, e possufa um ar entre clegante e py ~ Nao juro, ouviu? Repl iva 0 chapéu denunciado. Havia a de igual porte e graca, e provavelmente os quatro falavam delas, bem. Mariana enrubesceu muito, voltou a cabeca para 0 outro ‘nou logo a primeira atitude, ¢ afinal entrou, (Assis, 1974, vil A naturalidade da expresso é dada pelo fato de as amigas es olhando de cima para baixo, da janela do sobrado, de modo que # Poderiam mesmo ver os chapéus dos homens;. mas, sutilmente, freqiiéncia da repeticfo do uso da palavea “chapéu”, ela vai se transht mando numa sinédoque com intencfo redutora, de modo que re 10S a seus objetos de uso, ou seja, as mulheres fizem com homens © que costumeiramente eles faziam com elas: revoltosas, red zem-nos também a objetos. Estamos, portanto, num conto que fila di uma uta de vinganga ou de libertagio entre homens e mulheres, senhores e escravos, “restituir-lhe a posse de si mesma”, diz Sofia amiga submissa. No mundo Antigo, pagio, segundo Hegel na Fenomeny: logia do espirito, 0 conflito se dava entre homens ¢ mulheres, consider. das to irresponsaveis (idiétes) quanto as criancas e os escravos (Hegel, 1983, cIV, p.145).!2.No mundo do conto machadiano, as mulhe1 pontos do estudo muito interessante de José Murilo de Carvalho, “Repiblica- coda secledae cites aio do Ext, se plc ‘Testa Bue cbcrvete so purgale 251 0 rie oa ed tO carter sagrado do exsainento a onra inereae a corporasio so o8 dois lomentn em orm do guns ge dcerizgfo de cca chil urgent (tse Machu 1998, 60 127) ae 1 Kanes eres Mo nen Fao dlc in che fama stn pan abel de Maina com rane algo aoe na feczu quando pert te alo thet em 208 12/0 fro de Concado Seabrapertecer a “Instituto da Ordem dos Advogados" ao | um detalhe de menor importancia, trario, Para Hegel, é justamente a corporagto que faz a meiagao entre a failia o Estado, o que arm oevtes da 0 toma:o dato un eldadto. E, portant, mais um era significa renciaglo, para distinguir o marido da domesticidade da mulher. & este lode Jean-PiereLefebsre e Pierre Macherey sobre a corpora: "Epo intermédio do seu percncimento & comporaci que o indivi pareulas 24 Ee 's pontos que d muito a propésito das representarSes da mulher que te a na obra de Machado: a lutuagio entre o papel de puta-e o de santa @ dificuldade de encontrar um terceiro papel, no qual se realizasse cfet Repiiblica, coisa pt cembora essa m Iho discorre sobre © momento em que Marianne se popularizou 1 Franca como a personificagio da Repiiblica. Isso se deu $6 aps revolugdo de 1848, quando ela surgiu como a mulher das barricad) usando o barrete frigio de cor vermelha, indicacao de radicalismo, e1 posigao ao Império de Napoleso III, o perseguidor e responsavel pel expatriacio de Charles Ribeyrolles, © amigo de Machado. © segundo sobre o significado de Marianne: a muther do povo que se envolve n; Has politicas, ou seja, a mulher que deixa 0 mundo doméstico invade e ocupa um lugar de lideranca na esfera piblica, o univers restrito aos homens. Se na Franca isso teve um alto significado ¢ fol motivo de glorifica¢io, primeiro popular e depois oficial, no Brasil e se tornaria num ato escandaloso: outro lado, a imagem da santa frutificou e passou a sar aceita verdadeira padroeira da nagio, Nossa Senhora da Aparecida: De fato, assim como na Franga do Segundo Império, também no Bra- Primeira Reptiblica Maria foi utilizada como arma anti-republicana. re um esforco deliberado dos bispos para incentivar o culto mariano, wretuda por meio de Nossa Senhora Aparecida. A partir do inicio do ), comegaram as romarias oficiais. Em 8 de setembro de 1904, ‘enhora Aparecda foi coroadsarainha do Brasil. Observem-se adata eo im dia apés a comemoracio da independéncia, es designagio nonérquica. No havia como ocultar a competicfo entre a Igreja.e © novo al sepecheatar ds tac] Oreos anc década de 30. Em 1930, Pio IX declarou Nossa Senhora Aparecida padrocira do Bra- Noano seguinte, D. Sebastio Leme, perante uma multido congregada a consagrou rainha e padrosia do pais... A batalha pela alegoria ferinina terminou em derrota republicana. Mais ainda, em derrota do efvico perante 0 religioso. (ibidem, p.93-4) Havia uma elite politica de homens, que eram chamacdos pitblicos, A ‘mulher, se pablica, era prostituta. Mesmo na fase jacobina da Repib durante 0 governo Floriano, a participagio eta exclusivamente masculing, Nao s6 as mulheres nao participavam, como nao era considerado pr6ptia {que elas participassem. Politica era coisa de homem. (Carvalho, 2008, p.92) i i A revolugao de Mariana Por fim, 0 terceiro ponto, também em decorréncia do estigma a gs que estava sujeita a mulher que se envolvesse na esfera puiblica, 6 0 que ressalta como no Brasil, além de nao haver uma fundamentagio social que suportasse a alegorizacio da Reptiblica como uma mulher, uma Marianne, logo apés a proclamagio a sua figuragao se bipartiu. Por um lado, ela passow a ser representada como uma prostituta, foi assim que @ caricaturizaram os cartunistas ¢ os que se desencantaram com 0$ rumos da Repiiblica: Quando Mariana decide reagir a0 fato de 0 marido nao aceitar wm dido seu, que vinha de uma observacao do pai, um tradicionalista ferrado aos hébitos”, de trocar o chapéu velho, que, segundo 0 sogro, ca “torpe" em comparagto “com outros chapéus altos de homens cos” (Assis, 1974, p402-3, grifo meu), sua primeira ativude 6 sair e curar uma amiga, Sofia, Esta sibia como 0 prOprio nome ea ave de Minerva (por duas vezes, ela é comparada nfo & coruja, mas ao gavi portanto também selvagem), faz a primeira observacio dizendo que “a bidem, p.404). Obviamente, querendo Os obsticulos ao uso da alegoria feminina cram aparentemente intransponiveis. Ela falhava dos dois lados ~ do significado, no qual a culpa ndo era do: marido” 216 cd servidio ¢ nao luta Sofia, em sua casa, jé invertera a relacdo, e era sua a vontade q imperava: “Nao Ihe pego uma cousa que ele me nio faca logo; mes quando no tem vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, obede logo” (ibidem,-p.404). Era essa a “harmonia” nova que Sofia hay! estabelecido em casa, e “Mariana ouvia com inveja essa bela definig! do sossego conjugal. A rebelita de Eva embocava nela os seus cl idem, p.404, grifo meu). Nés veremos que essa simples inversiio ordem, com a mulher passando a freqiientar a rua e a Camara dd Deputados, os lugares do piiblico e da politica, portanto, da universal dade, acabava tornando os dois, marido e mulher, criminosos aos 0} do outro (da consideracao social): ela, “mulher publica” (a prosticuta), ele, doméstico (0 corno manso), 0 que no resolvia o problema, Um pouco adiante, Sofia, pelo fascinio que exerciam suas palayn ¢ atitudes, é simultaneamente comparada ao deménio e a Bonapait aquele que, aos olhos de Hegel, teria promovido a sintese entre particular e o universal, na figura do cidadao, o trabalhador-soldadoy “Mariana aceitou; um certo deménio soprava nela as férias da vingan- ga. Demais, a amiga tinha o dom de fascinar, virtude de Bonaparte, nao lhe deu tempo de refletir. Pois sim, iria, estava cansada de vii cativa, Também queria gozar um pouco, etc., etc.” (ibidem, p.405, gril meu)."" E quando Mariana acompanha Sofia para a rua ¢ a Camara dos Deputados, os lugares do piblico ¢ dos homens por exceléncia, Soflt também a convida a ir tirar retrato, ao que Mariana responde: le esse por mas semanas, . E repetia-the que nto eva escrava de ninguém, etc. Mavi do dentra do coragio a marsethesa do matrimdnio. (ibidem, p.406, meus) a 1s da dialética hegeliana do cla, estamos aqui nos primé: € escravo, quando ainda o escravo, para libertar-se, pretendia ¢ no suprassumir 0 seu “senhor”, tornando-se por sua vez jor do senhor, reduzindo-o a seu escravo, como havia feito Sofia (© matido: “Sofia tinha consciéncia da sua superioridade”; 0 que m nao satisfazia, se era a igualdade que se procurava. Foi essa \icida percepao de Mariana, “a rola estava livre do gavido", a que esse caminho a conduziria ao crime naquela ordem patriarc os dois, ela ¢ 0 marido, tornar-se-iam criminosos, ¢ nao cidadaos: "Achou que, bem pesadas as cousas, a principal culpa eva dela. Que diabo cima por causa de um chapéu, que © marido usara ha tantos anos ide que se casara com ela]? Também o pai era exigente demai lem, p.410, grifo meu), ‘a esta a aporia, a mesma de Concei¢o da “Missa do galo’ ico pessoal nfo deixava & mulher outro papel sendo os de puta ou ¢ € acste iiltimo que Mariana retorna, quando volta para casa, inho de aconchego ¢ ordem, ironicamente saudado assim pelo “Santa monotonia, tu a acalentavas no teu regago eterno” (ibi- , p-410, grifo meu). Quando Mariana chega a casa, convencida de sua aventura irres- vel, a tinica coisa que estava fora da ordem doméstica era um vaso, 10 um simbolo de si ¢ de sua safda para a rua ea Assembléia, quando ntou ocupar o lugar do homem. Assim, 0 vaso, como ela, também weria retornar a seu lugar, e a ordem expressa que dé ao jardineiro 6 La “- Jodo, bota este vaso onde estava antes”. E dessa mancira que Maviana se dirige ao jardineiro, sem nenhum “por favor” ou “tenha a ileza”, mas no mesmo tom imperative com que talvez © marido, — J& tenho muitos. E para qué? Para dé-lo “aguele senhor”? po Sofia compreendeu que o ressentimento da amiga persistia, e, di» rante 0 caminho, tratou de Lhe pér um ou dous bagos mais de pimenta, 14 Sobre o significado de Napoleo, tanto como seferéncia para a estruturagao do juzo critico de Machado sobre a vida social e institucional brasileira, como pati apreciagio da ojeriza que nossa camada dominante escravista nutria por ele, sei interessante analisar 0 capftulo XI, “Um epis6dio de 1814", do. dde Birds Cubas, que se passa num banquete organizado pela familia do her6i pa celebrar a derroia de Napoleso, 218 29 sabia que a Pandora”, como Machado escreve algumas vezes)"* que escapoul “presente de grego” que Zeus mandou aos homens, para desgragar vida deles, como vinganga por ter sido enganado por Prometeus "\l ‘mal, en qui tous, au fond du coeur, se complairont & entourer d/amo leur propre malheur” [um mal, em que todos, no fundo do coragi comprazer-se-4o em cercar de amor, a sua propria desgraca]."" Desi 15 Como aqui, na sua fase liberal-combativa, num artigo no Poratba (de 26 de ju de 1858) atacando um projeto do ministro Sales Torres Homem: “© projeto do Sh Sales Torres Hlomem, 0 noss0 Epimeteo moderne, seré pois para nés © que foi pil 4 Antigiidade mitoldgica, a boveta de Pandora”, Ele usa o termo possi derivado do frances bosse, “vasilha", que formou os diminutivos dial bousset © boussette (Machado, 1956, p37 “A raga humana vivia outrora sobre a tera, afastada c a0 abrigo das penas, da fadiga, das doengas dolorosas que levavim os homens & morte. Mas a tirando com as suas mags a larga cobertura do jarto, dispersou-os pelo mundo p95 os homens aos seus tristes cuidados. Sé, a Esperanca permaneceu lf, 0 interior da sua cura pristo, sem ultrapassar os labios do jarro e sair para for porque Pandora j havia recolocado a coberta, por ser 2 vontade de Zeus, 0 cencaceador de nuvens, 0 que porta o escudo" (Hesfodo, 1951, p.69, tradugio ml nha). Froma 1. Zeitlin assim comenta a significagzo do jarre/vaso nos poemas de Hesiodo: "Para J-P. Vernant, a imagem do jaro representa 288, 8 oko, 4 mulher & a figura ambigua, de Epis, que permanece nela". E mais adiant taco 0 corpus hipocrético ¢ dos anatomistas mais tardios as teorias mais elabor das 0 dtero da mulher é comparado a uma jarra de cabeca para baixo, darada de duas orelhas ou asas. A representacio do ditero como um jarro, descrito nos termos que se referem parte superior do corpo (boca, pescogo), & compat ‘mulher, que acentus Hesiodo, la testemunba igualmente a imaginacio popular er entre a boca ea sua andloga uterina. Um jarro, como em Hesiodo, tem dois libios © um Gero também, e a analogia se prolonga na idéla de um lacre e uma rotha, necessévios para impedir © acesso quando ele preserve @ ssemente que af fol depositada a fim de permitir uma gestacéo .359-60, tradugdo minha). set subyerstio promovida pelos ideais os da Iustragio, seu reconhecimento como sujeito com aceitacio pelo outro: a to de Mariana recebew um choque violento, igual ao que Ihe 10 do jardim trocado ~ ou a0 que the daria uma lauda de Voltaire as folhas da Moreninha [que jé havia lido sete vezes] ou de Ivanhoe -zvezes] n Era not desigual no meio da harmoniosa sonata da vida. (biclem, p.tl0-1, grifo meu) esp A cena acontece justamente a0 entardecer, com o crepuisculo, lo levanta voo a ave de Minerva, e completa, numa seqiiéncia ida, 05 trés momentos cruciais da Revolugao Francesa: Voltaire, 10 0 representante maior da formulagdo de seu idedrio; a Marselhesa, 0 © hino do momento da ruptura revolucionaria com © Antigo nie; e Bonaparte, como a encarnagio do Estado que iria consolidé-la etsalizé-la. Mas nada soava mais estranho, no mundo social em se passava a nossa histéria dos chapéus, escrita quase um século is da Revolucéo, do que esses trés passos fundamentais da nossa lernidade hist6rica, Assim, penso eu, que o conto “Capitulo dos néus”, também poderia se chamar “O caminho do triste esclareci- wento de Mariana”? sles retorno 20 que era, mas wm. ganbo 7 Howe, por parte de Ma de consciéneia de sua condicao, que podia significar um transito do em si ao paras, como 0 primeiro passo nece rio para sua negacio e posterior afirmagio numa io recorrente na literatura brasileira ~ 0 ser'€ 0 nio-ser presentes sim interessante apreciar dois comentisios de Kojéve sobre a fenomenologia de Hegel: “Toonar-se diferente do que se é equivale a tomar posiga0 em relagio a si préprio, &existi (tal como se foi) para si Cal como se é atualmen- te). O ser que nega dialeticamente o real dado conserva-o também como negado, isto 6, como irreal ou ideal; conserva-o como sentido do discurso pelo qi 221 Referéncias bibiograficas M. de. Contos completos de Macl Juiz de Fora: UEJF, 2003. v.1, 2 —___. Obra completa, Rio de Janeiro: José Agi CARVALHO, J. M. de. “O imaginario da Re ra nas sus nee cau eat RUB aco Mae Roo EAD GLEDSON, J. Os contos de Machado de Assis: 0 machete eo violoncela lecture d'Heésiode. pe Cintas unaantloga de Machado de Assis So Paulo: Campa GOETHE, J. W. Fausto, Trad. Agostinho D’Ornellas. Coimbra: HEGEL, G. W. F. La phénoménologie de Uesprit. Trad. Jean Hy) Aubier, 1983. vil. HESIODO. Théogonie, Les travaux et les jours, Le boucler. Edicao b Paul Mazon, Par: Les Bales Leeds 1984, KOJBVE, A, Introdugao d leitura de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu, Rio ancto: EDUEN/Conraponto 02 LEFEBVRE, J.-P,, MACHEREY, P. Hegel e a sociedade. Sio Paulo: Discul 1999. MACHADO, J. P. Diciondrio etimolégiso da lingua portuguesa. Lisboa: Cont} i, 1950 MASSA, J.-M. A juventude de Machado de Assis. Rio de Jane Brasileira, 1971. MOLIERE: Onwt comple. Pais: Gallimard, 1971. vl. a co 56 existe em si e para os outros, identidade consigo mesmo e pelas relagées de diferenca que eres id€nticos no seia do cosmo: ele nfo existe para si € 08 outros no exist para cle”. E, pouco adiance, ele descreve abstratamente a cont 0 dialético até a sua conclusio: “O ser negador nega a kdentidade consig forna-se sou préprio oposto, mas permanece o mesmo set. ‘oposicao a si mesmo ¢ a sua afirmagio a despeico de sua negacio ow dissolugi até transformacio. E como afirmacdo negadara de si, & como re-afiemagao de ivamente tacional. Assim, o Ser que se reafirma como Ser idéntico asi depois de tet-se negado como tal nfo é nem identidade, nem negatividade, may sim totalidade, E € como totalidade que 0 Ser é verdadeiramente e plenamente Mas ele € totalidade porque & tame bém negatividade. A cotal 223

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