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Revista Da Faculdade de Direito Da Ufrgs Número 34
Revista Da Faculdade de Direito Da Ufrgs Número 34
Convergence and divergence between the conceptions of justice maintained by Rawls and Dworkin
REFERÊNCIA
HAMMES, Leila Viviane Scherer. Pontos e contrapontos das concepções de justiça defendidas por Rawls e Dworkin.
Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 34, p. 131-147, ago. 2016.
RESUMO ABSTRACT
Existem pontos de convergência e de divergência entre as Are there convergence and divergence points between the
concepções de justiça defendidas por Rawls e Dworkin? justice conceptions maintained by Rawls and Dworkin?
Esse questionamento será o fio condutor do presente This question will be the conducting wire of this article,
artigo que se baseia em pesquisa qualitativa e tem por which is based on qualitative research and aims to
objetivos analisar as concepções de justiça de Rawls e analyze the justice conceptions of Rawls and Dworkin and
Dworkin e identificar pontos de convergência e de to identify the convergence and divergence points between
divergência entre ambas as concepções. Para tanto, será both conceptions. Therefore, it will be used bibliographic
utilizada a técnica bibliográfica e o método dedutivo. O technique and deductive method. The justice theme is
tema justiça é recorrente entre os filósofos e pensadores regular among the philosophers and thinkers, having
tendo implicação na área do Direito. implications in the legal area. Contemporaneously, Rawls
Contemporaneamente, Rawls se propôs a desenvolver pledged to develop a new theory of justice specially to
uma nova teoria da justiça especialmente para combater o oppose the utilitarianism, once he doesn’t believe in this
utilitarismo, eis que não acredita nessa proposta de proposal of justice. Initially, his theory will be received
justiça. Inicialmente sua teoria será vista sob o enfoque under the moral approach. To establish the justice
moral. Para estabelecer os princípios de justiça as pessoas principles, people should be in an original position,
deveriam estar numa posição original, vestindo o véu da wearing the veil of ignorance, in order to establish the
ignorância, para estabelecer o contrato social. A proposta social contract. The Rawlsian proposal will be called into
rawlsiana será questionada e um dos pensadores que se question and one of the thinkers that pledged to do it is
propõe a fazê-lo é Dworkin. A principal crítica que este Dworkin. The main critic this author builds is that
autor constrói é a de que a teoria da justiça de Rawls não Rawls’s theory of justice doesn’t respects or considers
respeita ou não considera os talentos e dons de cada each person’s talent and gift. Rawls considers the critics
indivíduo. Rawls considera as críticas e propõe-se a and pledges to clarify some points highlighting that his
esclarecer alguns pontos destacando que sua pretensão é a pretention is to develop a political concept of justice.
de desenvolver uma concepção política de justiça. Analyzing the conceptions of justice and elements such as
Analisadas as concepções de justiça e elementos como balance, contract, original position, and utilitarianism, it
equilíbrio, contrato, posição original e utilitarismo, is concluded that there are more convergence than
conclui-se que existem mais pontos de convergência do divergence points between the conceptions of justice of
que de divergência nas concepções de justiça desses dois these two authors.
teóricos.
PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Concepções de justiça. John Rawls. Ronald Dworkin. Conceptions of justice. John Rawls. Ronald Dworkin.
SUMÁRIO
Introdução. 1. A concepção de justiça desenvolvida por John Rawls. 2. A concepção de justiça desenvolvida por
Ronald Dworkin. 3. Pontos e contrapontos das concepções de justiça desenvolvidas por Rawls e Dworkin. Conclusão.
Referências.
*
Mestranda em Direito com pesquisa em Políticas Públicas de Inclusão Social (Universidade de Santa Cruz do Sul –
UNISC). Especialista em Gestão Universitária (Centro Universitário Univates, 2013). Graduada em Direito (Centro
Universitário Univates, 2005).
o contratualismo rawlsiano tem uma ideia fato de que ninguém conhece seu lugar na
diferente de igualdade que tem a ver com “nosso sociedade, a posição de sua classe ou o status
igual status moral”, ou seja, a igualdade sob o social, nem sua inteligência ou força. Então, os
aspecto moral. princípios de justiça são escolhidos sob o véu da
Por sua vez, Weber (2010, p. 232) explica ignorância.1 Assim ninguém seria beneficiado; a
que a cooperação social rawlsiana é baseada em escolha aconteceria pelo acaso natural. Dessa
duas condições de possibilidade atribuídas às forma os princípios da justiça são o resultado de
capacidades vinculadas à personalidade ou à um ajuste equitativo (RAWLS, 1997, p. 13).
qualidade moral. A primeira capacidade é a de A posição original possivelmente é um dos
ter senso de justiça, de ser razoável. A segunda fatores mais questionados na teoria de Rawls.
capacidade é a de ter uma concepção de bem, de Weber (2010, p. 234), por exemplo, afirma que a
ser racional. posição original é um artifício e uma
Constata-se que o fator razão/racionalidade representação, um acordo hipotético e a-
está vinculado ao conceito de justiça, o que histórico. Por sua vez, Gargarella (2008, p. 22)
reforça a ideia de que essa concepção de justiça esclarece que na posição original o que as
não advém da natureza, mas de uma construção pessoas de fato desconhecem é qualquer
racional. Nesse contexto, informação que diga respeito ao seu interesse, ao
seu favor.
a ideia norteadora é que os princípios da justiça É possível depreender que a intenção de
para a estrutura básica da sociedade são o objeto do
consenso original. São esses princípios que pessoas
Rawls foi a de partir de um ponto neutro, sem
livres e racionais, preocupadas em promover seus nenhuma interferência, nenhum pré-conceito ou
próprios interesses, aceitariam numa posição inicial pré-julgamento. Daí a crítica da impossibilidade
de igualdade como definidores dos termos
fundamentais de sua associação. Esses princípios do grau zero. Portanto, acredita-se que quando
devem regular todos os acordos subsequentes; Weber se refere à posição original como um
especificam os tipos de cooperação social que se
artifício e uma representação, quer ressaltar que
podem assumir e as formas de governo que se
podem estabelecer. A essa maneira de considerar os a posição original é uma estratégia adotada para
princípios eu chamarei de justiça como equidade compreender o sentido mais puro de justiça, por
(RAWLS, 1997, p. 12).
isso ocorre num plano hipotético sem um tempo
histórico definido.
A partir dessa afirmação, resta evidenciado
Entretanto, Rawls (1997, p. 24) acredita
o caráter contratual na concepção de justiça de
que além de hipotética a posição original é
Rawls, eis que diferentes expressões remetem a
também intuitiva “de modo que, conduzidos por
essa ideia: há uma proposta e uma aceitação,
ela, somos levados a definir mais claramente o
existem termos e condições, há um acordo.
ponto de vista a partir do qual podemos melhor
Porém, esse caráter contratual está no
interpretar as condutas morais da forma mais
plano moral, no plano da teoria da justiça. É “um
adequada”. A noção intuitiva possibilita
contrato muito peculiar – um contrato hipotético.
visualizar o objetivo à distância.
Rawls refere-se, portanto, a um acordo que
firmaríamos sob certas condições ideais, e no
qual é respeitado nosso caráter de seres livres e
iguais” (GARGARELLA, 2008, p. 15). 1
Rawls (1997, p. 147) explica que as partes que estão na
posição original, se situam nela “atrás de um véu da
E essas características – livres e iguais – ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas
que estarão presentes na posição original. Essa irão afetar o seu caso particular, e são obrigadas a avaliar
posição original é hipotética; é caracterizada pelo os princípios unicamente com base nas considerações
gerais”.
Pontos e contrapontos das concepções de justiça defendidas por Rawls e Dworkin
Aliás, analisando essa noção intuitiva tendência de decidir em favor da maioria quando
questiona-se se não seria ela uma espécie de pré- não se sabe como decidir. Nessas situações, de
conceito. Talvez, em virtude disso, Rawls – indecisão, normalmente questiona-se: qual é a
intuitivamente – não dê destaque ao proposta que satisfaz o maior número de
intuicionismo. interesses? Como consequência, apresenta-se
Na verdade, Gargarella (2008, p. 3) ainda outro argumento a favor do utilitarismo
observa que Rawls procura escapar do que é o igualitário, em que se busca a
intuicionismo, mas admite a necessidade de maximização do bem-estar (GARGARELLA,
reconhecer um lugar importante para nossas 2008, p. 2-6).
intuições na tarefa de buscar uma teoria da Mas, o que Rawls irá questionar é se em
justiça. A oposição rawlsiana ao intuicionismo é todas as situações é justo agir em favor do
fundamentada na “incapacidade de propor um interesse da maioria – afinal, qual é o espaço da
sistema de regras capaz de hierarquizar nossas minoria dentro da teoria da justiça. Por exemplo,
intuições (sobre qual princípio de justiça adotar numa situação de proliferação de um vírus
em determinada situação), no caso habitual de contagioso, seria justo matar as pessoas
serem gerados conflitos entre elas” contaminadas para evitar que o restante da
(GARGARELLA, 2008, p. 2-3). população fosse infectado?
Observa-se que o intuicionismo defendido A crítica de Rawls consiste justamente no
por Rawls não prevê nenhuma regra de fato de que “o utilitarismo tende a ver a
prioridade entre os princípios. Mas afirma que é sociedade com um corpo, no qual é possível
preciso “simplesmente atingir um equilíbrio pela sacrificar algumas partes em virtude das
intuição, pelo que nos parece aproximar-se mais restantes” (GARGARELLA, 2008, p.7-8). O
do que é justo” (RAWLS, 1997, p. 37). Assim, utilitarismo aceita certos sacrifícios presentes,
“nosso objetivo deveria ser formular uma com o objetivo de obter maiores benefícios no
concepção da justiça que, por mais que apele futuro. Exemplo: “o desejo de impor sacrifícios
para a intuição, ética ou sábia, tenda a tornar às gerações presentes em prol de benefícios para
convergentes os nossos entendimentos meditados gerações futuras” (GARGARELLA, 2008, p. 7).
sobre a justiça” (RAWLS, 1997, p. 48). Portanto, Outra crítica apresentada por Rawls (1997,
a partir da obra Uma teoria da justiça constata-se p. 30) é a de que “o utilitarismo não leva a sério
que, ao discutir os pressupostos mais a diferença entre as pessoas”, portanto, afirma
fundamentais de uma teoria, é preciso apelar que pretende desenvolver uma teoria da justiça
para intuições compartilhadas ou à técnica do como alternativa ao utilitarismo.
equilíbrio refletido de comparar intuições Para a maioria dos utilitaristas a prioridade
refletidas aprovadas pelo escrutínio racional. somente pode ser definida de acordo com o
Contudo, Rawls considera o intuicionismo princípio da utilidade. Considerando que Rawls
um rival relativamente fraco para a sua teoria da não vê nenhum problema em recorrer à intuição
justiça. Para ele, o utilitarismo 2 é o verdadeiro para resolver questões de prioridade, ele enfrenta
fantasma da teoria da justiça, porque existe a esse problema utilizando duas maneiras simples:
2
usando um princípio geral, a moral, ou usando
Kirste (2013, p. 147) explica que no utilitarismo clássico
“a melhor ação é aquela que busca a maior felicidade para uma pluralidade de princípios (RAWLS, 1997, p.
o maior número de pessoas; e a pior, aquela que, de modo 44-49). Afinal, “uma teoria da justiça é
semelhante, ocasiona miséria [...] o bem-estar de todos não precisamente isso, uma teoria. É uma teoria de
é, entretanto, necessariamente bom para cada indivíduo:
existe o risco de o valor do indivíduo ser subordinado à sentimentos morais [...] que estabelece os
utilidade para o todo”.
Pontos e contrapontos das concepções de justiça defendidas por Rawls e Dworkin
princípios que controlam as nossas forças original, considerando a capacidade moral dos
morais, ou mais especificamente, o nosso senso cidadãos.
de justiça” (RAWLS, 1997, p. 54). Rawls, em Uma teoria da Justiça (1997, p.
Constata-se que a moral tem destaque 80), acredita que dois subprincípios do segundo
acentuado em Uma teoria da justiça. Nas obras princípio da justiça3 seriam definidos, na posição
posteriores Rawls buscará corrigir possíveis original, por consenso: quais sejam o das
equívocos com o intuito de desfazer más liberdades iguais e o princípio da igualdade –
compreensões. este subdividido em princípio da diferença e
Ao referir-se aos princípios de justiça, princípio de igualdade de oportunidades.
Rawls (1997, p. 56) ratifica que eles podem Portanto, ele defende que não cabe ao
identificar algumas condições morais que são ordenamento social estabelecer e assegurar as
pertinentes e, portanto, as regras de prioridade perspectivas dos que estão em melhores
poderiam indicar a ordem de utilização dos condições sem que contribua com os menos
princípios quando esses entrassem em conflito afortunados.
entre si. Assim,
Para tanto, refletindo sobre os elementos
apresentados por Rawls, seria preciso chegar a social and economic inequalities are to be arranged
so that they are both (a) to the greatest expected
um consenso, por meio do qual pessoas livres e benefit of the least advantaged and (b) attached to
em condição de igualdade definiriam de forma offices and positions open to all under conditions of
cooperada os termos desse acordo, isso tudo fair equality of opportunity (RAWLS, 1999, p. 72).
caracterizaria a justiça como equidade.
Ainda no início de Uma teoria da justiça,
Observa-se desde logo que o autor não
trata justiça e equidade como expressões Rawls apresenta a noção geral dos princípios,
mesmo sem fazer menção expressa a eles,
sinônimas, mas equidade seria como um adjetivo
afirmando que
de justiça. É necessário que haja esse
complemento, pois não basta alcançar um
a ideia intuitiva é a de que, pelo fato de o bem-estar
resultado justo ele precisa ser equânime para de de todos depender de um sistema de cooperação
fato ser considerado justo. Enfim, "para originar sem o qual ninguém pode ter uma vida satisfatória,
a divisão de vantagens deveria acontecer de modo a
um resultado justo, requer-se que criemos uma
suscitar a cooperação voluntária de todos os
situação de equidade” (WEBER, 2010, p. 233). participantes, incluindo-se os menos bem situados
Nas palavras de Rawls (1997, p. 51), (RAWLS, 1997, p. 16).
esses – diferentes – também estejam em situação uma forma de liberalismo político. Com efeito,
de igualdade. Rawls apresenta a teoria da justiça como
Nesse sentido, olhando para a nossa equidade como a forma mais razoável de
sociedade, destaca-se a importância de políticas liberalismo político. Assim fazendo, remodela os
afirmativas e inclusivas voltadas aos menos argumentos básicos a favor dos dois princípios
favorecidos ou menos dotados, tais como negros, de justiça, que constituem o fundamento central
índios, idosos, crianças, pessoas com deficiência, de uma concepção de justiça como equidade
pessoas em condição de miserabilidade, entre (RAWLS, 2003, introdução).
outros. Considerando o contexto global é No prefácio de Justiça como equidade,
possível afirmar que os países que o fazem com constam também os objetivos que o autor tinha
maior mérito são também melhor desenvolvidos com essa obra sendo um deles “retificar as falhas
economicamente e culturalmente. Assim, mais graves de Uma teoria da justiça,
verifica-se que ambos os princípios coexistem e esclarecendo como deve ser entendida a justiça
complementam-se, especialmente no intuito de como equidade”. Rawls diz que na primeira obra
justiça como equidade. não “discute se a justiça como equidade é uma
Mas, em determinado momento, Rawls doutrina moral abrangente ou uma concepção
verifica que sua teoria de justiça não havia sido política de justiça”. O que ele esperava com a
bem compreendida. Portanto, escreve Justiça primeira obra é que “seria razoável o leitor
como equidade. Na introdução dessa obra, esse concluir que a justiça como equidade foi definida
autor explica que começou a desenvolver a ideia como parte de uma doutrina moral abrangente
de que uma análise da justiça de cunho liberal que poderia vir a ser desenvolvida
seria mais bem entendida enquanto uma posteriormente caso os bons resultados a isso
concepção política. Uma concepção política de convidassem”. Com a reformulação, em Justiça
justiça baseia-se em valores políticos e não como Equidade, Rawls elimina essa
deveria ser apresentada como parte de uma ambiguidade e afirma “agora, a teoria da justiça
doutrina filosófica, religiosa ou moral. Dessa como equidade é apresentada como uma
forma, concepção política de justiça” (RAWLS, 2003,
prefácio).
os princípios de justiça mais razoáveis seriam Weber (2010) entende que essa mudança
aqueles que fossem objeto de acordo mútuo entre
pessoas em condições equitativas. A justiça como
efetuada por Rawls é fundamental, pois permite
equidade é portanto uma teoria da justiça que parte uma melhor compreensão e esclarecimento da
da ideia de um contrato social. Os princípios que justiça como equidade. Ele cita como exemplo a
articula afirma uma concepção liberal ampla de
direitos e liberdades básicos, e só admitem posição original, que seria mais bem entendida
desigualdades de renda e riqueza que sejam por meio de uma concepção política de justiça.
vantajosas para os menos favorecidos (RAWLS,
Nesse sentido explica que
2003, introdução).
Dessa forma, constata-se que Weber a ideia é que, numa democracia constitucional, a
entende que a concepção de justiça, além de ser concepção pública da justiça deveria ser, tanto
política, é liberal na medida em que protege os quanto possível, independente de doutrinas
religiosas e filosóficas sujeitas a controvérsias. É
direitos e liberdades fundamentais. Não apenas por isso que, na formulação de tal concepção,
porque tolera, mas vê como saudável a existência devemos aplicar o princípio da tolerância à própria
filosofia: a concepção pública da justiça deve ser
de diferenças. política, e não metafísica (RAWLS, 2002, p. 202).
De fato, em Justiça como equidade (2003,
p. 282-285), Rawls irá nos dizer que uma Mas, qual seria a concepção de justiça de
sociedade bem ordenada será aquela em que seus outros estudiosos, como Ronald Dworkin? É o
cidadãos tiverem fins últimos em comum e que, que se passa a analisar.
numa concepção política de justiça, esses fins
últimos são os necessários. 2 A CONCEPÇÃO DE JUSTIÇA
Logo, pode-se inferir que fins últimos DESENVOLVIDA POR RONALD
necessários não se limitam somente às DWORKIN
necessidades básicas materiais, mas também aos
direitos e liberdades fundamentais, como forma Ronald Dworkin é um estudioso da Teoria
de constituir uma sociedade bem ordenada. do Direito e da Justiça, mas defende o
A partir dessas considerações, percebe-se liberalismo igualitário, com raiz em Rawls. Tem
que, na obra Justiça como equidade, Rawls o intuito de aperfeiçoar também o igualitarismo,
começa a lançar os fundamentos de Justiça e e deixá-lo menos imune a críticas.
democracia – obra iniciada no final de sua vida. Contudo, adverte que o bem deve ser
No final do prefácio desta última obra, Rawls analisado a partir da própria moralidade – que é
destaca que existem questões antigas – do um dos pontos fundamentais das suas obras.
período da Reforma protestante, ou antes – Acredita que os critérios objetivos da justiça
relacionadas à democracia que precisam de somente podem ser analisados no seu próprio
resposta. Nesse sentido, contexto de objetividade. Da mesma forma a
moralidade objetiva somente existe no seu
o liberalismo político tenta fornecê-la elaborando contexto de objetividade. Ao interpretar
uma concepção política de justiça que seja
independente e que, a partir das ideias políticas determinada norma haverá uma preconcepção
fundamentais, latentes na cultura pública de uma moral que perpassará a análise, que poderá
democracia, formule os valores políticos essenciais
de um regime constitucional. Essa concepção
propiciar somente uma análise individual de
política de justiça não pressupõe nenhuma doutrina bem, a partir do contexto de quem interpreta.
abrangente particular. É por isso que ela funciona Afinal, o que a moral requer e o que a justiça
como um componente – um módulo, poder-se-ia
dizer – que se pode acrescentar ou adaptar a exige são aspectos diferentes da mesma grande
numerosas doutrinas distintas ou que delas se pode questão (DWORKIN, 2011).
derivar. Dessa forma, ela pode ser a base para um
consenso, proveniente de uma superposição de
doutrinas, em favor das instituições democráticas Value is one big thing. The truth about living well
(Rawls, 2002, prefácio). and being good and what is wonderful is not only
coherent but mutually supporting: what we think
about any one of these must stand up, eventually, to o comportamento de simulação de mercado quando
any argument we find compelling about the rest. I os direitos abstratos entrassem em conflito, mas que
try to illustrate the unity of at least ethical and não pressuponha nenhum dever pessoal de agir
moral values: I describe a theory of what living sempre de algum modo que torne a comunidade
well is like and what, if we want to live well, we mais feliz como um todo.
must do for, and not do to, other people. That idea –
that ethical and moral values depend on one
another – is a creed; it proposes a way to live. But
Contudo, esse sistema de responsabilidade
it is also a large and complex philosophical theory deve ser analisado no âmbito da justiça
(DWORKIN, 2011, p. 1). distributiva:
Por sua vez Gargarella (2008, p. 6) relata Assumimos responsabilidade por nossas escolhas
que Dworkin apresenta uma tentativa de mitigar de variadas maneiras. Quando essas escolhas são
algumas aparentes imprecisões da teoria da feitas livremente, e não ditadas ou manipuladas por
outros, nós nos culpamos se concluímos que
justiça e afirma que para muitos autores liberais, deveríamos ter escolhido de modo
como Ronald Dworkin, o igualitarismo dessa diverso. [...] Nossas circunstâncias são outra
história: não faz sentido assumir responsabilidade
postura surge do fato de que o utilitarismo por elas a não ser que sejam o resultado de nossas
considera como iguais os desiguais. escolhas. Ao contrário, se estamos insatisfeitos com
Por isso, segundo o pensamento de nossos recursos impessoais e não nos culpamos por
nenhuma escolha que afetou nossa parcela nesses
Gargarella, Dworkin acredita que recursos, é natural que reclamemos que outros
geralmente os oficiais de nossa comunidade foram
o único modo de o utilitarismo poder assegurar o injustos conosco. A distinção entre escolha e
mesmo respeito a cada indivíduo é por meio da circunstância é não só familiar, mas fundamental
incorporação de um conjunto de direitos, capazes em ética de primeira pessoa. [...] Não podemos
de se impor a reivindicações majoritárias baseadas planejar ou julgar nossas vidas senão pela distinção
em preferências externas [...]. Os direitos entre aquilo sobre o que devemos assumir
funcionariam como limites destinados a impedir responsabilidade, porque o escolhemos, e aquilo
que alguma minoria sofra desvantagens na sobre o que não devemos porque estava além de
distribuição de bens e oportunidades pelo fato de nosso controle (DWORKIN, 2005, p. 455).
uma maioria de indivíduos pensar que aqueles
poucos são merecedores de benefícios menores que A partir do binômio escolha e
os recebidos pela maioria (GARGARELLA, 2008,
p. 10). responsabilidade, Dworkin defende que as
pessoas são responsáveis por suas escolhas
Com essas palavras este autor apresenta, de relacionadas aos recursos materiais – impessoais
certa forma, os fundamentos do princípio da – e que isso, de certa forma, se deve ao esforço
diferença, na medida em que os direitos empreendido. Mas, ao mesmo tempo, não podem
incorporados deveriam servir para propiciar ser responsabilizadas por circunstâncias que
igualdade. Por isso, Dworkin (1999, p. 349) estão além do seu controle ou mesmo da sua
também questiona o utilitarismo: “Suponhamos possibilidade de escolha. Nesse contexto, aplica-
que os extremistas raciais sejam tão numerosos e se a igualdade distributiva.
sádicos que a tortura de um negro inocente Na obra Justiça para ouriços, Dworkin
melhorasse o nível geral de felicidade da adverte que a distribuição é o produto das
comunidade como um todo. Isso justificaria a decisões dos governantes relacionadas às leis ou
tortura?”. às políticas públicas. Ao testar a sua teoria utiliza
E como alternativa – ao utilitarismo – a simulação de mercado num primeiro momento,
Dworkin (1999, p. 353) afirma que onde as pessoas são livres para vender ou
comprar a sua força de trabalho e para conseguir
deveríamos, portanto, buscar um sistema de o que for possível nesse espaço de disputa.
responsabilidade diferente, que também recomende
Contudo, salienta que as pessoas nem sempre são propriamente dito, mas talvez possa ser
responsáveis pelo seu destino, inclusive porque identificado como um argumento, pois não
não tem ingerência sobre suas heranças genéticas importam as razões pelas quais os cidadãos o
ou por seus talentos – percebe-se semelhança firmaram. Afinal, um contrato hipotético não é
com a teoria da loteria natural defendida por contrato de fato. Mas, para que os cidadãos
Rawls. Observa também que o modelo de justiça concordassem com o contrato, deveria haver
distributiva que ele defende é somente um passo razões, ou uma força vinculadora (DWORKIN,
inicial para uma teoria da justiça mais 2002, p. 236-239).
generalista. Afinal, como identificar os princípios de
Dworkin, em dado momento da obra Uma justiça num grupo de pessoas livres e iguais?
questão de princípio, chega a escrever sobre o Dworkin (2002, p. 242-244) nos diz que pode ser
que a justiça não é. Talvez como forma de relativamente difícil identificar um conjunto
desconstruir sua concepção para reconstruí-la na coerente de princípios, a partir das noções
sequência. Pois, na obra Levando os direitos a intuitivas de todos. Mas, acredita que pode
sério (2002) inclui um capítulo sobre a justiça e acontecer que a maioria4 concorde com os dois
os direitos. Nela, aborda a questão da posição princípios de justiça – diferença e igualdade,
original, observando que aqueles que estiverem caracterizando assim a questão do equilíbrio
ocupando a posição original, para definir o reflexivo. Constata-se assim que esse autor
contrato, devem estar de acordo com os termos entende ou vê com dificuldade a possibilidade de
desse contrato, antes de retornarem a sua posição todos que estão na posição original concordarem
natural (DWORKIN, 2002, p. 235). com esses dois princípios, mas a maioria pode
Afinal se há conteúdo pré-acordado o concordar – o que caracteriza o equilíbrio
contrato não seria mais original. Nesse ponto, a reflexivo.
crítica de Dworkin é no sentido de que a posição Essa ideia de aceitação da maioria está
original seria tão somente um argumento. vinculada à democracia. Dworkin (2001, p. 89-
Possivelmente esse autor acredite que se os 90) trata da questão do processo e democracia e
termos do contrato fossem firmados na posição menciona que é necessário ter noção do poder
natural poderia haver divergências ou político adequado para servir à concepção
discordâncias implicando na quebra do acordo igualitária de democracia. Porém, é preciso
estabelecido na posição original, pois – talvez – distinguir entre um direito e o valor desse direito.
não estariam mais livres e em pé de igualdade. Ao fazer essa distinção ele afirma que se
Portanto, Dworkin conclui que a inspirou na obra Uma teoria da justiça, de
Rawls. Assim, acredita que
posição original de Rawls é um poderoso
mecanismo de reflexão sobre a justiça, pois o a igualdade política exige pelo menos que todos
intuito dessa posição incorpora e aplica a teoria da tenham a mesma oportunidade de influenciar as
igualdade profunda [...] as partes consentem decisões políticas, de modo que quaisquer
princípios de justiça sem nenhum conhecimento de impedimentos jurídicos se apliquem a todos,
quaisquer qualidades ou atributos que lhes deem deixando de lado a questão de se a igualdade
vantagens sobre outros, e sem nenhum política também exige que as oportunidades de
conhecimento de que concepção do bem sustentam todos tenham o mesmo valor para cada um deles
em contraposição a outros (DWORKIN, 2001, p. (DWORKIN, 2001, p. 90).
418).
4
Pondera-se se esse entendimento de Dworkin poderia
Esses princípios de justiça, consentidos na estar revelando um fraquejo no que tange ao utilitarismo,
posição original, não são um contrato pois a decisão seria a da maioria ou em prol do bem-estar
da maioria.
Pontos e contrapontos das concepções de justiça defendidas por Rawls e Dworkin
vez, Dworkin faz uma crítica semelhante – ponto permitem que alguns sujeitos sejam desfavorecidos
por circunstâncias que não controlam, dado que sua
de convergência – no que diz respeito a esse teoria da justiça “define a posição dos que estão
ponto, baseando seu argumento na ideia das pior em termos da posse de bens primários de tipo
preferências externas. Ou seja, preferências social – por exemplo, direitos, oportunidades,
riqueza, etc.” –, e não em termos de bens primários
relacionadas à destinação de bens para outras de tipo natural – por exemplo, talentos, capacidades
pessoas ou aos direitos e oportunidades que mentais ou físicas etc. Essa opção leva a alguns
resultados contra-intuitivos. Por exemplo, uma
outras pessoas deveriam gozar
pessoa com salário um pouco maior que o de outra,
(GARGARELLA, p. 9-10). mas com graves afecções físicas, estaria – de
Verifica-se que embora sob argumentos acordo com a teoria de Rawls – melhor que esta
última, mesmo que seu salário maior não seja
diferentes, Rawls e Dworkin adotam crítica suficiente para pagar os remédios que necessita,
semelhante ao utilitarismo e sugerem que os devido a suas desvantagens naturais
resultados gerados pelo utilitarismo sejam (GARGARELLA, 2008, p. 67).
questionados, especialmente a partir dos reflexos
Nesse caso, mesmo havendo a distribuição
que causam para as pessoas.
igualitária, as desigualdades naturais não
Quinto. Gargarella contribui para traçar o
propiciariam condição de igualdade, pois a
comparativo entre esses dois autores. Ele
pessoa doente não está livre dos contratempos
entende que “os vínculos entre as concepções
que advém da sua condição.
defendidas por Rawls e Dworkin em torno da
A ideia de que a teoria de Rawls não é
justiça são claramente mais fortes que suas
suficientemente sensível à ambição defende que
diferenças” (GARGARELLA, 2008, p. 65).
as desigualdades sociais são aceitáveis se
Esse mesmo autor, com o intuito de
atuarem em benefício dos que estão em pior
apresentar os vínculos existentes entre esses dois
situação. Para ilustrar seu questionamento
pensadores, nos diz que Dworkin desenvolve sua
Dworkin utiliza como exemplo o fato de duas
concepção liberal igualitária baseada em quatro
pessoas, sendo que uma trabalha muito e
aspectos que são semelhantes aos verificados na
consegue aumentar a sua renda e a outra prefere
teoria rawlsiana, quais sejam: a) o liberalismo
uma vida mais tranquila e consumista. Isso acaba
igualitário deve diferenciar a “personalidade” e
sendo insensível pelo fato de que a segunda
as “circunstância” que envolvem as pessoas; b) a
pessoa se beneficia do trabalho da primeira, eis
rejeição do bem-estar ou a satisfação
que nessa situação caberia ao governo criar um
pessoal/particular; c) a justiça é uma questão de
imposto para transferir recursos da primeira
recursos iguais; d) o liberalismo igualitário está
pessoa para a segunda, para que fiquem em
relacionado à tolerância, à neutralidade
condição de igualdade (GARGARELLA, 2008,
(GARGARELLA, 2008, p. 65-66).
p. 68). Portanto,
Mas, Gargarella (2008, p. 67) também
aponta a primeira e fundamental distinção entre
do ponto de vista de Rawls – assim como do ponto
as duas concepções de justiça consistente no fato de vista do igualitarismo de recursos de Dworkin –
de que Dworkin afirma que a teoria da justiça não seria irracional (mas, ao contrário, justo)
defender um sistema institucional no qual os mais
rawlsiana é insensível aos dons de cada pessoa e talentosos sejam levados a pôr seus talentos a
não suficientemente sensível às ambições de serviço dos menos talentosos. Recorde-se, a esse
cada um, conforme se verifica na sua explicação: respeito, o princípio da diferença, segundo o qual as
únicas desigualdades econômicas que se justificam
são aquelas destinadas a favorecer os mais
O fato de a teoria de Rawls ser insensível demais desfavorecidos (GARGARELLA, p. 38-39).
aos dons de cada um pode ser explicado do seguinte
modo: os dois princípios de justiça de Rawls
enquanto que Dworkin tenta apresentar sua Há também pontos de divergência, sendo o
concepção aplicando-a na prática, mas que, mais crucial vinculado à questão dos talentos e
como visto, se torna tão teórica quanto a de dons naturais de cada pessoa.
Rawls. Outros pontos de divergência visam ao
Rawls desenvolve sua concepção de justiça aperfeiçoamento da concepção de justiça
propondo uma teoria da justiça como equidade rawlsiana, como a integridade apresentada por
por discordar da proposta do utilitarismo e Dworkin, quando não há correspondência entre
entender que não ele não trata as pessoas como justiça e equidade. O que se verifica também nos
livres e iguais, ofendendo assim o propósito fatores do equilíbrio refletido, do contrato, da
democrático. Para desenvolver sua teoria sugere posição original e na concepção política de
um contrato social, imaginário e a-histórico, em justiça é que esses fatores têm muito mais o
que as pessoas estariam numa posição original, aspecto da divergência no sentido melhor
vestindo o véu da ignorância, para escolher os apresentar ou esclarecer esses pontos. Ainda que
princípios de justiça. na questão do contrato, Rawls mantenha sua
Dworkin, por sua vez, procura muito mais posição vinculada aos princípios de justiça,
aperfeiçoar a proposta de Rawls trazendo alguns enquanto Dworkin tente trazê-la para o âmbito
novos elementos para a reflexão, como a do direito.
alternativa do leilão e do seguro. De fato, esse intuito de aperfeiçoamento é
Analisando as duas concepções de justiça, relevante e notável, visto que Rawls em muitos
constata-se que ambas apresentam muitos pontos momentos agradece a Ronald Dworkin por suas
em comum, desde o ponto de partida, vinculado ponderações e contribuições. Essa também foi
ao liberalismo, passando pela rejeição ao uma das razões pelas quais Rawls revisou alguns
utilitarismo e pela distribuição dos bens/recursos, de seus conceitos, o que certamente tornou esse
dentre outros. diálogo, composto por pontos e contrapontos,
ainda mais interessante, para além da pertinência
do tema – justiça.
REFERÊNCIAS
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WEBER, Thadeu. Rawls: uma concepção política a justiça. In: TEIXEIRA, A. V.; OLIVEIRA, E. S.
(Orgs). Correntes contemporâneas do pensamento jurídico. São Paulo: Manole, 2010.