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RESENHAS REVIEWS 451

Os batalhadores brasileiros: nova classe mé- de Holanda, Raimundo Faoro e Roberto DaMatta,
dia ou nova classe trabalhadora?. Jessé de aprofundado em outras publicações, não foi
Souza. Editora UFMG, 2010, 354 p. abandonado. O intuito é criticar as interpre-
tações do Brasil assentadas na negatividade da
Marcia de Oliveira Teixeira herança ibérica, no personalismo, no patrimo-
Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil nialismo e na caracterização de uma moder-
<marciat@fiocruz.br> nidade incompleta.
Há um diálogo secundário com a produção
etnometodológica, com as concepções da teoria
Maria, Maria ancorada e com o interacionismo informando o
É o som, é a cor, é o suor desenho da pesquisa, a prática de campo e a
É a dose mais forte e lenta análise das concepções de mundo formadas e
De uma gente que ri operadas pelos batalhadores. Especificamente
Quando deve chorar com relação à teoria ancorada, destaco o zelo
E não vive, apenas aguenta pela empiria.
Mas é preciso ter força Um aspecto valorizado por Jessé de Souza
É preciso ter raça (para contrapor-se à ideia da nova classe média
É preciso ter gana sempre no Brasil) é o fato de Batalhadores resultar de
Quem traz no corpo a marca uma extensa pesquisa de campo. Entretanto,
Maria, Maria em nenhum momento o leitor conhece as
Mistura a dor e a alegria condições de realização da pesquisa de campo,
(Maria, Maria – Milton Nascimento) tampouco sobre os instrumentos de pesquisa.
Pouco foi dito sobre a escolha das regiões, das
cidades e sobre os entrevistados. A descrição
Economistas e sociólogos debatem a emergência das condições de realização da pesquisa for-
de uma nova fração da classe média no Brasil; talece o argumento, além de ser tópico obri-
para muitos, efeito das políticas de transferên- gatório em face do quadro teórico-metodoló-
cia de renda e acesso ao microcrédito, enquanto gico utilizado.
para outros, da estabilidade econômica. A con- Ao contrário dos economistas, para Jessé de
tribuição de Jessé de Souza e da equipe do Cen- Souza as análises centradas na renda não per-
tro de Estudos sobre Desigualdade ao debate é mitem compreender os processos constitutivos
parte de um projeto de pesquisa de maior fô- das ‘classes sociais’ e suas fronteiras. Ele parte
lego. Os batalhadores brasileiros: nova classe mé- da economia política, privilegiando as dinâmi-
dia ou nova classe trabalhadora?, somado a outras cas entre as relações de produção e as classes
publicações, é uma tentativa de construir uma sociais para construção de sua teoria sobre
teoria de classes sociais para o Brasil contempo- classes no Brasil. Essa opção é essencial para en-
râneo. Para tanto, destaca a reprodução dos pri- tendermos porque batalhadores não formam
vilégios de classes e das desigualdades sociais nova fração da classe média.
duráveis, as dimensões simbólicas e não-econô- Classes sociais são constituídas por aportes
micas constituintes da reprodução das classes, ideológicos, éticos, morais, educacionais, com-
bem como a dinâmica entre relações fordistas e preendidos pela noção de cultura. Mas não é
pós-fordistas em uma sociedade periférica. possível gerar uma teoria do processo de pro-
O quadro interpretativo de Batalhadores foi dução do mundo social (e sua compreensão
construído no diálogo com Max Weber, Pierre pelos indivíduos) e da formação de classes cen-
Bourdieu, Bernard Lahire e Richard Senneth. trada na matriz cultural. O desafio de Jessé de
Ele enfatiza o passado incorporado dos atores Souza é construir uma análise não hierárquica
individuais e sua posição na compreensão prá- capaz de considerar os diversos fluxos entre as
tica do mundo, as disposições construídas e ope- dimensões cultural e material.
radas em diferentes situações de vida; os con- Batalhadores distinguem-se, e, portanto,
textos de socialização e de atuação significativos autorizam Jessé de Souza a reivindicar sua
na trajetória de vida dos indivíduos de determi- condição de classe, pela “pequena incorporação
nada classe. O diálogo ácido com Sérgio Buarque dos capitais impessoais mais importantes da

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sociedade moderna, capital econômico e capital dos batalhadores é formado por trabalhos flexí-
cultural” (p. 327). A burguesia define-se pela veis, pela provisoriedade de estratégias de vida,
reprodução de ambos, enquanto a classe média pela necessidade de adaptar-se rapidamente às
pela reprodução do capital cultural. condições de trabalho mutantes e a mercados
Como ‘renda’ não é um elemento delimita- reconfigurados por tendências da estação. Os
dor de ‘classe’, observamos uma enorme diver- batalhadores são efeito do processo de incor-
sidade entre os indivíduos caracterizados como poração de trabalhadores pobres excluídos da
‘batalhadores’. Há ‘batalhadores empreende- sociedade fordista às novas formas de organiza-
dores’ constituídos por pequenos comerciantes ção do trabalho e da produção.
(lojinhas de garagem, barracas de rua ou em Os batalhadores asseguram inserção no
feiras, lojinhas de bairro e comunidades popu- mundo do trabalho do capitalismo financeiro
lares), donos de indústrias de pequeno porte (como proprietário de pequenos negócios e/ou
(confecções, serralheria, carpintaria) e pequenos empregados) pela constituição de um conjunto
agricultores. De modo geral, são ex-trabalha- de disposições, entre outras, para disciplina,
dores rurais, ex-empregados do comércio ou do autocontrole e pensamento prospectivo. Esta-
setor industrial, os quais perderam seu em- mos lidando, por conseguinte, com uma classe
prego por demissão ou fechamento das empre- social apta e pronta para trabalhar em jornadas
sas. No caso das mulheres, o abandono dos extensas, em pequenos negócios realizados em
maridos as transforma em única fonte de gera- ambiente improvisados, sem garantias e direitos
ção de renda da família. Há também os batalha- trabalhistas; onde o dono e o empregado, em
dores ‘assalariados’ dedicados ao trabalho em geral de uma mesma família, labutam lado a
pequenas e médias indústrias, vendedores, lado e estão sujeitos às mesmas condições de
técnicos, profissionais do setor de serviços trabalho pouco salubres; onde as relações de tra-
como telemarketing. balho e a produção são imprevisíveis, pois de-
Jessé de Souza destaca mobilidade entre pendem de mercado de consumo de produtos
frações de classe e classes (batalhadores, em- sazonais, formados por consumidores de pe-
preendedores e ralé). Muitos depoimentos tratam queno poder de compra, recentemente fortale-
de mudanças bruscas no nível de renda, acesso cido pelos programas de transferência de renda,
a trabalho permanente e a moradia. Mesmo os além da previdência social; onde muitos ‘pa-
‘batalhadores empreendedores’ não se afastam trões’ estão sujeitos a tornarem-se empregados
significativamente de situações de vulnerabili- pela escassez de créditos, mudanças bruscas no
dade. Patrão ou empregado portam as mesmas mercado de consumo, aumento da concorrên-
marcas constitutivas da classe, a dinâmica das cia, ação da fiscalização. Digo que os batalha-
interações sociais, as visões de mundo e o modo dores estão aptos e prontos porque possuem os
de operá-lo e, principalmente, estão sujeitos às conhecimentos práticos e intelectuais (dispo-
mesmas práticas de dominação do capital finan- sição), além do potencial para desenvolvê-los, e
ceiro. O trabalho desempenha uma posição es- admitem as condições do trabalho flexíveis.
sencial na reprodução material e na concepção Eles (in)corporam essas condições como natu-
de mundo do batalhador. rais, porque as relacionam com condições her-
É preciso compreender o mundo que auto- dadas ou compreendem que por intermédio de-
riza o ‘batalhador’ a se reproduzir como classe. las poderão assegurar para si e para sua família
Para Jessé, não se trata do mundo dominado condições de vida mais dignas. Nos relatos,
pelas sobrevivências coloniais ou por arranjos “condições de vida mais dignas” significam
pré-capitalistas, tampouco pelo fordismo. Ao acesso permanente a trabalho, moradia, comida
contrário, há uma correlação entre a emergên- e educação. Os batalhadores não se afastam de-
cia dos batalhadores e o processo de transição finitivamente de situações de vulnerabilidade,
para o capitalismo financeiro. Processo de tran- afastam-se apenas das mais extremas.
sição situado na periferia, na qual a produção Para compreendermos a disposição para
fordista foi severamente excludente, mantendo o trabalho dos batalhadores é preciso olhar
parte da força de trabalho à margem. Ele expli- com mais atenção os processos de construção
ca assim o grande impulso que os batalhadores e reprodução de concepção de mundo e das
conheceram nos últimos anos. O mundo social ‘disposições’.

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Jessé de Souza considera a religião como um resultados). Mas ao final de 248 páginas de
dos elementos fundamentais na construção de apresentação e análise de material empírico,
mundo dos batalhadores e, nesse sentido, de o leitor espera mais do que uma retomada à
sua reprodução como classe social no capitalis- crítica do livro A classe média brasileira: am-
mo periférico. A religião opera por intermédio bição, valores e projetos de sociedade de Bolivar
das trajetórias exemplares (mescladas aos exem- Lamounier e Amaury de Souza. Esse livro é im-
plos familiares); da valorização do strabalho ár- portante enquanto representativo de estudos
duo (‘trabalho duro’ no roçado, no pequeno comprometidos com ideologias de classes e par-
comércio ou pequena oficina), no desenvolvi- tidos políticos. A crítica à incapacidade desses
mento e exercício de uma solidariedade com estudos colaborarem para a compreensão da
familiares, vizinhos e membros da congregação; dinâmica das classes sociais no Brasil na perife-
na reprodução de uma concepção herdada de fa- ria do capitalismo financeiro era o ponto de
mília; na valorização de atitudes em prol de partida de Batalhadores. A conclusão deveria
uma vida melhor. Cabe aqui observar a conexão retomar exatamente o projeto de produção de
entre ‘vida melhor’ e futuro (inexistente na uma teoria original, apresentado na introdução,
ralé). Para os batalhadores, projetar o futuro im- agora à luz dos dados sistematizados.
plica não voltar a viver situações de extrema O trabalho de Jessé de Souza tem o mérito
vulnerabilidade. A concepção de mundo fruto de preservar a complexidade das relações so-
da vivência religiosa (em uma ‘comunidade’ ciais e das interações entre classes (simplificadas
congregada em torno de uma igreja e seu pas- ou desconsideradas por outros estudos). Mas é
tor) associa-se às percepções forjadas na vi- necessário aprofundar a análise dos fluxos e
vência prática em diferentes situações de vida fronteiras entre a classe média, os batalhadores e
regulada pelo trabalho. a ralé; bem como ampliar os estudos empíricos
A formação das dimensões éticas e morais para testar a capacidade explicativa do modelo
essenciais ao trabalho duro nos batalhadores proposto por Jessé de Souza. Será que ele seria
com origens rurais, notadamente no nordeste, diverso em espaços onde encontramos relações
estão imbricadas com ações de entidades liga- de produção fordistas e dinâmicas econômicas
das à Igreja Católica. Nas periferias urbanas e, diferentes das encontradas no Norte, Nordeste
mais recentemente na região rural, as religiões e mesmo na zona da mata mineira?
pentecostais dominam. De fato, Jessé de Souza
chama atenção para como religiões pentecostais,
desde sua origem nos Estados Unidos da América
na primeira metade do século XX, capturaram
as demandas sociais e religiosas de migrantes do
Trabalho e dialética: Hegel, Marx e a teoria
campo, trabalhadores da pequena indústria e
social do devir. Jesus Ranieri. São Paulo: Boi-
do comércio das periferias urbanas.
tempo Editorial, 2011, 176 p.
Outro elemento constitutivo da concepção e
interações sociais dos batalhadores é a família.
Maurício Vieira Martins
Família e relações familiares que transcendem o Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de
modelo pais e filhos, cuja lógica de estruturação Janeiro, Brasil
é o direito sucessório na propriedade do capital. <mauriciovieira9@gmail.com>
Trata-se de famílias com configurações bastante
diversas, mas firmemente amarradas pela va- A relação existente entre o pensamento de Marx
lorização do ‘trabalho duro’, do compromisso e o de Hegel sempre foi tema que dividiu os es-
com a manutenção da reprodutibilidade da tudiosos do marxismo. Dentre as várias posições
própria família, o estímulo para investir na que se delinearam a este respeito, podemos citar
melhoria da educação, mas sempre conciliada a de Louis Althusser, que entendia que o corpus
com o trabalho. teórico marxiano deveria ser expurgado do
A conclusão decepciona, mesmo conside- pensamento de Hegel, para que ele encontrasse
rando que o volume de dados exige prazos mais finalmente sua cientificidade mais genuína.
dilatados (necessidade que não é acompanhada Na outra ponta do debate (embora sem pole-
pelo imperativo da publicação mais célere dos mizar explicitamente com Althusser), temos a

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