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em primeira pessoa abordagensdeumateoriadaautobiografia ae etait Galle/Ana.Cecilia Olmos _— elit RCW enact Pave elect ora FELCH USP ee abordagens de uma teoria da autobiografia pe Organizadores Helmut Galle Ana Cecilia Olmos Adriana Kanzepolsky Laura Zuntini Izarra Em primeira pessoa. abordagens de uma teoria da autobiografia FFLCH USP me SFAPESP abordagens de ume teoria da auiobiografia Infothes Informagto ¢ Tesauro Sumario GIS Gale Heim Ow ¢ Outs Em primeira pessow sbordagens de ums tec da aatbiograin,/ Organza por Helmut (ait; Ana Cecilia Olmos, Adrian Karzepolsy, Laura Zoi Tera ~ Sto Paulo: Anaabne; apes; FFLCH, USP, 2008 Srp; 16x23.an ISBN 978.85:7419.938.2 |. Autbiograia, 2. Romance Autbiogafce. 3. Estos Liereios. 4, Dio Avr 5 Psicologia Narativa. {Tia Olmos, Ana eel, Ox Il. Kanaepley. Adriana, Or. 1V. Tas, Lara Zui, Or, cov s091 ed 9 Apresentagio ga ana por Wa aca Schl ~CRD mi - Cen 19, 1. Aescritura autobiografica entre literatura ¢ realidade EMPRIMEIRAPESSOA ABORDAGENSDE UMA TEORIA DA AUTOBIOGRAFTA Ruth Klager 21 Verdade, mentira fogao em autobiogratias ¢ romances autobiogrificos Code etl i Thmuna Mercado 31 Testemunho, Verdade e literatura pa Sylvia Molloy 37 Direto de propriedade. Cenas da escrturaautobiogréfica coma cies Clenen Michacia Hotdenried Si Defragmentagio erecomposi¢io. Sobre a problemética da identidadejudaico- rie seeteut) lemina literatura autobiogritia esobreviventes. O caso Goldschmidt ors Pett Ca ‘Nona Bal fer A ios da meméria autobiogrifica sa at akc ar 61 2. Aspectos eognitvos psicoligieos og ia Mar ard ace Gastre Berto Kruse Hans J. Markowitsch Mara Lore See menrion) 63 Pre-requisites emocionais ecogntivos da memériaautobiogrfica Peto ober co LacesaDAleio Fara Jargen Straub 79 Meméria autobiogrficn e identidade pessoal. Consideragbs histrico- et: jm 209 culturais, comparativas esistematieas sob a 6tca da psicologia narrativa © Helmut Galle, Ana Cecilia Otmas, Christine Delory-Momberger ‘ dina Rasp. ae Zn era 95 Filiagdese rupturas do modelo autobiogréfico na pés-modemidade ANNABLUME elitr comunics8o RuaMMD.C, 217. Buant 08510021, Sao Panto: SP- Bri ‘Tl eFax (Ol 3812-6764 —Teevenda 3031-1954 ‘vanablae om br nt 13 133 141 143 i 193 203 209 225 27 237 249 abordagens de uma teorla da autobiografia 3. Configuragdes modernas e pés-modernas da subjetividade Leonor Arfuch = (© espago biogrifico na (re)eonfiguragao da subjetividade contemprinea Jaime Ginzburg Impacto da violéncia e constituiglo do sujeito: um problema da teoria da autobiografia Jeanne-Marie Gagnebin “Entre moi et moi-méme” (“Entre eu e eu-mesmo”) (Paull Ricoeur) 4, Testemunho e meméria da violéneia estatal Raril Anteto Agamben e o testemunho centrifugo: ato sem esséncia, poténcia sem ago Mércio Seligmann-Sitva (© testemunho para além do falocentrismo: pensando um outro paradigma Berta Waldman Sobre gatos ¢ ratos, autobiografia e biografia Diamela Ettie ‘Ameméria tela Werner Mackenbach Ottestemunho na América Central: entre meméria, epistemolégicos e historicos téria e fice. Avatares 5. Eseritura autobiografica brasileira e hispano-americana Ligia Fonseca Ferreira ‘Avoz negra na ‘autobiogralia’: 0 caso de Luiz. Gama Horst Nitschack A escrita autobiogréfica de Graciliano Ramos: buscando 0 espago da subjetividade Kathya Araujo Individualismo e heteronomia. ConfiguragSes de sujeito e lago social no texto autobiogrifico Lorena Amaro Borges: seguimento de uma heranga 279 281 289 303 313 321 331 343 351 365 6. Relagdes entre a meméria autobiogritica © a constituigio da obra literaria Heloisa Costa Milton Romance picaresco e artificio autobiogrifico: o caso Lazarrillo de Tarmes Claudia Amigo Pino ‘Notas sobre a consquista espacial (e uma breve busca do quarto perdido em. We d’Henry Brulard, de Stendhal) ‘Marcos Piason Natali José Maria Anguedas e o aquém da literatura Adriana Kanzepolsky fundo da lingua Ewridice Figueiredo Como fazer a autobiografia de um negro... ¢ inovar Elizabeth Muylaert Duque Estrada (© homem do subsolo: uma protodesconstruso da autobiografia Daniel Samoilovich Poesia © moméria Bibliogeafia Os autores Apresentagao fom 0 propésito de enriquever 0 debate sobre as formas da escritura autobiogrifica que nos tiltimos anos ganhou uma signifcativa relevn ‘em diversos campos disciplinares, este livro oferece uma selego de textos relacionados a historia e @ teoria das escrturas de si, assim como leituras criticas, de casos especificos provindos de diferentes literaturas. O conjunto de artigos aqui reunidos permite tragar um percurso que, sem apelar ao rigor da cronologia historica ou a formulae de principios teéricos concludentes,ilumina momentos, autores, obras e perspectivascritcas decisivas para a configuragdo do género autobiogrific. A guisa de introdugao as questdes debatides ao longo destas paginas, consideramos oportuno tragar um répido esbogo das vicissitudes hist6ricas etebricas, que foram reformulando o campo discursivo da autobiografiae deslocando seus limites ‘com relaglo a outras modalidades que pode assumir a narrativa de vida. Em linhas Betas, é possivelafimar que o géneto autobiografico teve origem, aps inicios menos idade, nas Confssdes de Santo Agostinho (354-430), redigidas fem torno do ano 400!, Ainda que esta seja uma referéncia indiscutivel, 6 preciso esperar até a segunda metade do século XVIII para que se iniie um desenvolvimento modemo do género. Alids, um processo que se realizaré em convergéneia com a ascensio do romance e em interdependéncia com ele. Nesse petiodo, ttulos como Confissies de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) ou Minha vida, Poesia e verdade 7 Come fol assinalado por cferentss autores, de Misch (1849) 2 Foucault (1983), 6 possivel Feconhecer nos primortos da cultura ocidental algumas manilestagbes das formas dicursvas autobiogriicas. Para Misch (1949), 0s rudimontes de uma narratva de vida podem ser Identesdos nas inscrigdes sepulcrais¢ res gestae dos rls, Também a grande’ Cart Vil de Platio ou a defesa Antcosis de Isécrates podem ser pensadas como as primelras formas ‘utobiogrfcas que secume a escrturs, embora solom efrturadas por regras rericas © ‘bjetivos juris, Entre os romanos, Misch cansidera a poesia de Propécio, Catuloe Ovo ‘06 esctos dos estioos Seneca, Epicictoe Marco Aurbo. Certamente, como explicaFoveadt ‘ possivel pencareeta Irate Floscica a cura ul como precursora da autobograha cit ‘manifesta em Santo Agostino. sbordagens de ur teoria da autobiografia de Johann Wolfgang Goethe (1749-1832) secularizaram o género, estabelecendo ‘modelos discursivos para geragdes de autobidgrafos posteriores?. Nao obstante, no séeulo XX, as certezas nas quais a autobiografia se fundava, a saber, a concepsio Positive de um “eu” consciente de si, a configurago da experiéncia de vida como ‘uma unidade coesa e a confianga inabalavel na lingua como veiculo de representaso, comecaram a desmoronar. A autobiografia, em evidente sintonia com o romance do period, respondeu a esse desafio com experimentos formais que transgrediam 0s ce6digos precedentes e dinamizavam os principios de produsao discursiva das formas ‘utobiogrificas, estabelecendo um jogo de submissio e transgressflo as leis do ‘g@nero que, longe de provocar uma recessao desse modelo de discurso, estimulou a produtividade dos autores até os dias de hoje Por sua vez, areflexdo te6rica ea prtica critica nfo permaneceram indiferentes este proceso e se debrucaram, com uma ateng&o crescente ao longo dos anos, sobre estas formas discursivas da subjetividade, Tomemos como ponto de partida © século XVIII, quando parece se manifestar primeiro interesse sobre 0 género ‘autobiogrifico: em 1791 publica-se uma colegio de autobiografias, Bekenntrisse ‘merkwitrdiger Marner von sich selbst [Confissdes de homens notdvels sobre si ‘mesmo]?, com uma série de cartas introdutérias do fl6sofo alemfo J. G. Herder (1744- 1803), nas quais ele recomendava 0 estudo das memérias de homens extraordindrios Por serem “uma contribuigo excelente para a histaria da humanidade™. Esse critério, de exemplaridade historica explica a preferéncia de Herder por Francesco Petrarca, (1304-1374) ao invés de Santo Agostinho, ou por Benjamin Franklin (1706-1790) em lugar de Jean Jacques Rousseau, dado que esses autores, afirmava o pensador alemio, no se perdem na indagaao da inteioridade de suas vidas que, para ele, est fora do alcance de nossa compreensii ¢ de nosso juizo objetivo. A projecdo dessa linha de ppensamento talvez.explique porque, no século XIX, a episteme historiogréfica apelou. as formas discursivas da autobiografia como fontes positivas de dados sobre a vida dos autores e seu tempo. Porém, no inicio do séeulo XX, as observagdes do filésofo Wilhelm Dilthey (1833-1911) acerea dos aleances e das particularidades do discurso autobiogrifico {nstauram novas perspectivas. A autobiografia entendida como “a reflextio do homem, 2, Sobre a relaglo entre 0s dois gneros nessa épaca cf. Mil, Klaus-Dele: Autcbiographle Lund Roman. Studien zur iteraischen Autobigraphie der Gostiezet. Tubingen, 1975, Taylor, Chases. Soures ofthe Self The Making af the Moder Ideniy. Cambridge Unversty Pres, 1989 e Holdenied, icnzela. Auobiograpie. Sutgar Reciam, 2000. 3. MOLLER. Johann Georg (ed). Bekenntnsse mercvdrager Miner von sich solbst Winterthur 1791-1798, 4. HERDER, Johann Gotti. ‘Bekenntnisse merkrsiger Manner on sich selbst, Ehletende Bee": Herdors Sammdicne Werke. Ea. Suphan, Bernhard. Vo. 1, Bein: Weldmann, 1883 376 10 Apresentacso sobre a trajetéria de sua vida" que, em alguns casos atinge formas de expressto altamente literdrias, assume, no pensamento deste autor, o estatuto de fendmeno antropolégico universal, vale dizer, um gesto que se retera constantemente em cada individuo’. Com efeito, para ilthey, endo permaneceualheiodstentativasmodemas de defini bases positivas para as ciéncias humanas, a autobiografia apresents-se no apenas como a fonte central de informagaes objetiva, sendo também subjetives, a5 quais garantriam, através de um processo hermenéutico, a compreensto dos sujitos enresi. Essa posigao central que aautobiografia ganha na reflexto filoséficade Dilthey encontra uma manifestagfo equivalente no projeto monumental de uma histéria do ‘ginero, que seu discipulo e genro Georg Misch (1878-1965) empreendeu em 1907 e terminou s6 com a sua morte, Redigido no turbilhfo das guerase dos exlios que marcaram 0 século XX, o trabalho do alemo Misch que, so longo de cinco volumes debruga-se sobre a Antigtidade, a Idade Média e a época Moder, para culminar na ‘obra de Goethe, configura uma traetéria teleolégica das formas de escritura que a cerescente autoconscientizagaio do homem assumiu no decurso da histéria. Nomesmo periodo, inicia-se, no campo dos estudos literarios em outras linguas, uma nflo menos instigantereflexdo sobre o g2nero autobiogrfico. Ei 1909 publica- s¢ 0 livro de Anna Robeson Burr, The Autobiography: A Critical and Comparative Stud [A autobiografia: um estudo critico e comparativo), junto a oustos tiulos ‘que se propunham distinguir a autobiografia dos géneros afins: memérias, dirs, cartas, biografias e romances autodiegéticos”. A referencia ao livro de Burr permite trazer a um primeico plano um dos aspectos mais relevantes do género: a relaglo com a verdade.A autora airma que a especificidade da autobiografia nfo se definiia, necessariamente pela verdade dos fatos narados, mas pela veracidade intencional do aulobiégrafo e perspectiva totalizadora sobre a sua vida, Uma linha interpretaiva que serd seguida, mais tarde, por outros autores, porém, deslocando o enfogue do eu" referencial do autor para o mbito da subjetividede, isto, para as mareas que a expresso subjetiva desse “eu” autora insereve na composigSo narrativa “3 Em um texto escito entre 1906 e 1911 ¢ publcado postumamante em 1926, Dithey afrma Die Selstiographie lt nur de zu stvstelergchem Ausdruck gebracne Sebstbesinnung do Mengchen Uber ssinen Lebensvelut Selene Selostbesinnung aber erneuet sic nirgendeinam (Grade in Jedem Inaviouum. Sie ist immer 38, sie auSer sich I mmer nouen Formen. [A autebiograia 6 somente a expresso Itera da auto-refexio do homem sobre sua tales fe vida Esse outoreflendo, todavia, ve ranove, em algum gra, em cada indivduo. Ela wstd ‘sempre presente e se ealiza cada vez em novas formas. | Dithy, inal. ‘Das Erleben und ce Selestbiographie In: Niggl Gunter (org): ie Autobiographie. 2ur Farm und Geschctl ener IRerarechen Gatung. Darmstadt: WEG, 1908, pp. 21-32 8. Boston, 1908, a cf. SHUMAKER, Wayne. Engish Autobiography. ts Emergence, Materials, Forms, Berkeley ‘Angeles: Universi of California, 1954. 8, Robeson Bur, 1900: 28s. abordagens de uma teoria da autobiogratia Com efit, apesar da importancia que a maioria dos autores atribui a questiio dda verdade ou da veracidade pata definir a autobiografi, surgem, desde as primeiras abordagens teéricas, as vozes que enfatizam as virtudes literérias do género, demandando o direito a expresstio de uma verdade nfo menos legitima para aquelas escrituras autobiogréficas que, como a obra de Goethe, trabalham explicitamente fem favor de uma construgdo poética, deixando em um segundo plano a fidelidade factual’. Para Wayne Shumaker (1954), por exemplo, a tendéncia histérica do género no século XX deixa em evidéncia os processos pelos quais os autobiégrafos foram se apropriando cada vez mais dos procedimentos narrativos do romance". Por sua vez, Georges Gusdorf (1956) considera que a expressdo de uma verdade “mais profunda”, (ue seria inerente a0 texto autobiogrifico, diz respeito a uma esséncia criativa ¢ individual que € reconhecivel tanto na dimensfo existencial do eseritor quanto nna sua prtica artistica!, Mais radical, Roy Pascal (1959) aborda a autobiografia, decididamente como forma artistica e chega a afirmar que o género deve ser apreciado pela critica “de modo estético, como resultado da sintonia de acontecimentos, reflexdes, estilo, cardter e no de modo histérico, conftontando a autobiografia com. fatos hist6ricos"*, Todas estas posiges aproximam-se das reflexes posteriores de ‘Jean Starobinski (1970) que colocou, de forma decisiva, o estilo da autobiografia no ceme da anilise do género, estreitando os vinculos entre o presente da instancia da eseritura ¢ 0 passado narrado”. Porém, & particularmente 0 livro de Philippe Lejeune, Le pacte awtobiographique' [Opacto autobiogréfico] (1975), titulo que se apresentacomo umn ddos aportes mais influentes e nfo menos polémicos das dltimas décadas. A referencia, a0 “pacto autobiogrifico", como instincia definitéria do género, remete ao modo particular que arecepeao literdria assume nas escrituras desi. Segundo Lejeune, nestas, formas discursivas, uma disposigto peculiar de determinados elementos textuais & paratextuais permite sugerir que a leitura soja realizada sob o pressuposto de que autor, ' GLAGAU, Hans: Das romanhate Element der modemen Selbetbigraphia im Utell des Historikers. (1808) I NIGGL, Gunter (org): Die Autobographie, Zur Form und Gesoheht enor Meraischen Gatung, Darmstadt WG, 1998, po. S5-71 10. GUSDORF, Georges. “Voraussetzungen und Grenzen der Autobiographi ". (Conditions ot Tmites de Fautobigraphis, 1986) In: NIGGL Gunter (og) Die Autobiographi, Zur Form und Goschicha sine teranschen Gatung. Darmstadt: WEG, 1888. pp121-147 11, SHUMAKER, Wayne. Engish Autobiography ts Emergence, Materials, Forms. Berkeley / Los ‘Angeles: University of Calforia, 1954 12 PASCAL, Roy: "Die Alobiogranhie als Kunstm?, (Autobiography a8 an At Form, 1986) [NIGGL, Gunter, (ed. Dio Autobiographe. Zur Form und Geschichte einer erarischon Gatun, Darmsiadt Wissanschatione Buengeselechat, 1298, p.158 19. STAROBINSKI, Jean. Le style do Fautebiographi.” In: il vvant Ia vlan enti, Paris, Galimard 1970, pa 14, LEJEUNE, Philippe: Le pace auiobiogranhique. Paris, Sul, 1975, 12 Apresentagdo narrador e protagonista se identificam, Nesse ponto, segundo o autor, a autobiograia diferencia-se dafiogao, Uma diferenga que néo reside na substancialidade da ealidade representada, mas na peculiaridade da convengiio social que define o ato da leitura do texto autobiogréfico. Essa convengfo exige que as afirmagaes da autobiografia sejam entendidas em termos referenciais, a0 passo que as da ficydo em termos de imaginacdo ou invengdo. Em outras palavras, os fatos narrados na autobiografia podem ser submetidos a uma verificagdo extratextual que comprove a veracidade das afirmagées do autor, enquanto que a reatidade ficcional exige ser apreendida pelos ppardmetros da verossimithanga. Na linha de uma andlise atenta dos processos de produgdo textual, o modelo de Lejeune teve instigantes desenvolvimentos na rflexa0 te6rica de Gérard Genette. No seu livro Diction et fiction (Dicgdo e ficedo} (1991), ‘este autor interroga-se acerca dos critéios de literariedade que, para além de um sistema delimitado de génetos, permitem pensar as formas textuais que, como a utobiografia, nfo assumem as condigtes da produgéo e da recepeto da fiegfo, mas 4que sim participam da intransitividade poética que definiria todo disourso literdrio. Noutras palavras, essa perspectiva te6rica coloea a pergunta sobre a peculiaridade ddessas formas discursivas que, segundo as convengdes estabelecidas, postulam ‘enunciados de realidade e supéem atos de linguagem auténticos, mas que, a partir de um trabalho de estilo, conseguem ir além da fungi pragmtica da linguagem e produzir textos suscetiveis de reconhecimento como objeto esttic. ‘Além dos mencionados acima, outros referentes tedricos convergiram neste trabalho de defnigdo do gnero autobiogritico. As perspectivas tebricas pragmaticas de Austin e Searle, por exemplo, ofereceram fundamentos a Elisabeth Bruss (1974) para definir 0 género como um ato performativo euja funglo ilocuciondria difere segundo o contexto histérico' A partir a mesma referénciatedrica H. Porter Abbott (1988) postula uma “atitude textual” especifica da autobiografia, estabelecendo uma diferenga com o romance e a historiografia. Para este tebrico, o ato performative que supe toda enunciagdo autobiogréfica igualmente supe um trabalho de configuracao da subjetividade pelo qual oescritor visa, entre outras coisas, atingir uma determinada projegdo social'®. Algo que nio acontece na modalidade ficcional do romance nem na factual do discurso historiogréfico, ainda que um romance ou um livro de historia, possam ser lidos com critérios alheios as dimensdes crativa ou factual que definem. 4 atitudes de leitura convencionadas para esses géneras. JB. BRUSS, Elisabeth: Aufobloraphical Acs. The Changing Stuation of Literary Gen. Bkimors, ins Hopkins Unversity, 1872 a 16. ABBOT, H,Pocer:"Autolography, Autograph, Fiction. Groundworks fora Taxonomy of Te ‘Categorie. In: Now Lorry Hstory 19, 1987/8, p. 597-515. 13 abordagens de uma teoria da autobiograia Por outro lado, no restam dividas de que, durante as Gitimas décadas, o trabalho de Paul Ricoeur enriqueceu de maneira significativa a reflexdo tedrica sobre as formas autobiogréficas, Nos seus livros Temps et récit [Tempo e narrativa] (1983- 85), Sol-méme comme un autre [Si mesmo como 1am outro] (1990) e La Mémoire, histoire, Voubli (Memoria, historia, esquecimento] (2000), para mencionar apenas 65 titulos mais relevantes sobre a questdo autobiogréfica, 0 fildsofo francés aborda © problema da referencialidade textual 20 se interzogar acerca das possibilidades de conciliar a distincia abismal que se abre entre © mundo ontolégico e a dimensdo simbéica da linguagem. As diferentes fases que pode assumir a mimesis (aprefigura¢a0 narrativa de toda ago humans, © préprio ato da poiesis e, ainda, o reencontro do mundo narrado com o mundo real no ato de recepsao do leitor) supBem instancias hermenéuticas particulares por meio das quais o sujeito “refigura” o mundo. Nesse sentido, as diversas possibilidades textuais,sejam elas ficeionais ou no, convergem ‘em uma mesma forma de refer8ncia (ou “refiguraglo", eomo Ricoeur prefere), porém. sem perder a especificidade do alvo de cada categoria discursiva. Essa instincias hhermenéuticas, baseadas na andlise da dimensio simbélica, permitem a compreensto ‘do mundo ontolégico e, sobretudo, apresentam-se como condigao de possibilidade do “eu”, na medida em que € nelas que o sueito se objetiva por meio de uma narrativa continua e plural que, na sua permanente reconfiguragdo, enuza ofitiio eo fact Se na perspectiva te6rica de Ricoeur ainda € possivel reconhecer uma distingio discursiva segundo o grau de controle exereido sobre a ilusto referencial, © te6rico Paul de Man (1979) desconstei, de forma radical, a distingdo entre fieg80 « autobiografia. Segundo ele, esta ultima ndo atingiria uma especificidade em termos de género literdrio, sendo que se limitaria a uma figura retriea que diz respeito nfo apenas as particularidades da configuraedo textual, mas também ao ato da letra «que — virtualmente — pode reconhecer essa figura retérica em qualquer (ou nenhum) texto literério™. Nesta linha de pensamento, o pacto de recepgdo destacado na teoria de Lejeune perde relevancia perante a consttuigao trépica do texto autobiogrifico «que, segundo de Man, somente pode apresentar uma prosopopéia, a ilusto ficeional do referente e, nesse sentido, ndo diferir essencialmente da fiegao. Enquanto as perspectivas tedricas litrérias parecem ter chegado a um ponto extremo no ceticismo desta posigdo, € possivel observar que outras diseiplinas insistem em definir uma especificidade da narrativa autobiogrifica. A convulsa historia do século XX e as atrocidades perpetradas nos sucessivos e diversos confit bélicos intemacionais e nacionais encontram-se por trés desta demanda. 7. DE MIAN, Paul, “Autobiography as Detacoment* In: Modem Language Notes 84 (1879), pp. 19.930, 1“ Apresentagio. Pain re peer Se aaas Snel ete ee Ta Ura ogo on conn totos [a Dm spoon co-tom,am mart oso sin, cma crt es re ssdonesebaon reste vert OCD catemrnosspores petra arena a du nlorata na erature, Honora 9 eueag, sr alee Sopocicos sobre gnaoe an. 6 abordagens de uma teoria da autobiografia testemunho, Desde outro viés, o artigo de Tununa Mercado, uma escritora argentina que sofreu o exitio durante a iltima ditadura do pais, explora o processo da escrita e sustenta que seus livros, consuls nos limites imprecisos do testemunho, a meméria cou a autobiografia,relatvizam o predominio do factual. A segui, Sylvia Molloy, uma destacada historiadora da autobiografia hispano-americana e autora de alguns livros que oscilam entre a meméria ea narativa ficcional, reflete erticamente sobre anogl0 de autoria nos textos biogrficos ¢ autobiogrificos e se interoga acerca das relagbies de propriedade que 0 sujeito pode (ou no) estabelecer com seu proprio relato de vida. Uma instigante reflexio sobre o cardter inapreensivel do géneroliterdtio em questio e, também, da vida, No titimo texto da seglo, Michaela Holdentied analisa 4 obra de Georges-Arthur Goldschmidt, um autor frane8s de origem judsico-alema «que ap6s a publicagao de uma série de romances autobiogrificos de marcado cardter experimental, empreendeu a tarefa de escrever uma autobiografia que, por cates menos experiments, reine os motives dos textos anteriores numa sequencia cronol6gica. Na comparago desta produgfo textual, que aponta uma relago de complementaridade, Holdenried mergulha em quesifes relaivas aos modos de representagdo inerentes a narativa do século XX que, marcades pela fragmentagdo, o hibridismo e a dissociagdo, permitem estabelecer relagdies com 0 topos do indizivel ue a esctita autobiogréfica da Shoa colocou em um primeiro plano. ‘A segunda parte do volume, Aspectas cognitivos e pricolégicos dla meméria autobiogrifica, esta dedicada a disciplinas que, recentemente, confibuiram com nnovas perspectivas aos estudos autobiogréficos. Hans Markowitsch faca as condigies emocionais ecognitivas que, segundo as pesquisasneuro-psicolégicas,fundamentam € modelam amemériaautobiogrifica. As amplaspossibilidadesWenicas da nvestigaglo 4o cérebro humano permitem compreender cada vez melhor o funcionamento da ‘meméria e, nesse sentido, s6 pode ser proveitoso 0 dislogo que as disciplinas que focam a materialidade textual memorialistaestabelegam com aquelas que se ocupam 4as condigaes biologicas. No mesmo sentido, ene as neurocitncias e a literatura, a ual psicologia narativa pode fazer significativos aports. Retomanda criticamente as cignias da meméria e sua relevincia no séoulo XIX, como uma insténcia de aénese destes estudos, Jigen Straub apresenta argumentos em favor de uma nova concepgao da identidade “transitéria” do sujeito na modernidade que se distancia de certo uso infaciondrio da nocéo de identidade miltpla. Por stim no ambito das i@ncias da educagto, Christine Delory-Momberger indaga as fontias narativas de formagio tradcionais como modelos dominantes na comunicagto social que, usados € modificados pelos sueitos ao longo das profundas mudangas histérias da (pés) ‘moderidade, ainda garantem sua vigéncia. 16 ‘Apresentagso A terceira parte do livto, Configuacdes modernas e pés-modemas da subjetividade, debrusa-se sobre & questio do sujeito nas condigées historicas da modernidade e na pretensa superapdo das mesmas na denominada pés-modemidade. Nessa linha de pensamento, Leonor Arfuch pergunta-se acerca das razes da énfase biogréfica na cultura contemporfinea e indaga seus tragos mais evidentes, isto é, a impossibilidade de completude do relato autobiogréfico ¢ a busca nunca acabada de novos sentidos para o relato de una vida. Por sua vez, Jaime Ginzburg coloca em. didlogo os questionamentos modemnos de uma eoncepsto positva do sujeito e sua funcionalidade na configuragao do texto autobiogrfico do séeulo XX. Finalmente, em didlogo com os textos anteriores, Jeanne Marie Gagnebin reflete sobre aconfigurasdo de uma identidade narrativa na eseritura autobiogrfica como instincia critica a uma identidade substancial do sujeto e explora, ainda, as conseqUéncias éticase poitcas que essa eritiea comporta ‘As reflexdes em tomo 20 testemunho, como uma das formas autobiogréficas mais relevantes da atualidade, tém um espago particular na quarta parte do livro, Testemuanho e meméria da violéncia estatal. Nesse campo do conhecimento, Rail ‘Antelo retoma as reflexses de Giorgio Agamben acercado testemunho e consttuigdo do sujeito nesta forma discursiva. Em um instigante ponto de intersegao cultural com José Bergamin e Angel Rama, Antelo visa questionar as posigdes teéricas que desestimam a perspectiva de Agamben porque consideram que © conceito de testemunho por ele elaborado em termos de dessubjerivagdo nao seria mais do que ‘um reeuo estetizante, Por sua vez, Seligmann-Silva, em um interessante contraponto com a tragédia grega,reflete sobre os modelos de tetemunho eas possibilidades reais de sua configuragdo. Segundo o autor, esta forma autobiogrfica, nas suas peculiares relagdes com a meméria ¢ a histéria, questionaria as fronteiras entre o literétio, 0 ficcional e o descitve, sem deixar de aportar uma dimensto étca para a eseritura de vida. Ainda em tome ao testemunho, o texto de Berta Waldman analisa com instigante Iucidez. Maus, a histéria em quadrinhos de Art Spiegelman, para se perguntar acerca da distancia que separa o evento da lembranga, sobre aidentidade do portador dessa rmeméria que visa impedir o esquecimento , inclusive, eolocar a interrogante acerca do grau de violéncia adequado (se houver) para a exposigio dos fats. O texto da escrtora chilena Diamela Eltitintroduz uma aguda reflexio sobre o testemunho na ‘América Latina e suas relagSes nfo pouco conflitantes com as poiticas de Estado a indstria cultural como instaneias devisivas na administragdo de uma meméria coletiva, que nem sempre oferece espago para 0 desenvolvimento de uma dimensio critica na reconstrugio do acontecido. Por iiltimo, Werner Mackenbach revisa cexaustivamente a configurapto de um pensamento teérico acerea do testemunho na ‘América Latina, analisando as mudangas do paradigma dessa forma narrativa entre 7 abordagens de uma teoria da autobiografia as déeadas de 70 e 90, a partir de suas relagBes com outros geéneros e subgéneros, ‘sem deixar de colocar a pergunta acerca de sua potencialidade na construso de uma memiéria dos setores subalternos, Finalmente, reservamos um espago particular para a abordagem de autores € obras destacados de diversas literaturas. As duas tltimas partes do livro apresentam contribuigdes que se debrugam sobre as particularidades que assume o género autobiogrifico em ambitos literdrios especificos. Os nomes e as obras dos brasileiros Luiz Gama e Graciliano Ramos comparecem junto a uma apurada anélise da configuracio do sujeito autobiogrifico no Peru do inicio do século XX. O romance picaresco espanhol do século XVII, iluminado desde a perspectiva autobiogrifica, acompanha as Ieituras das obras de Stendhal, Dostoiévski, José Maria Arguedas, Jorge Luis Borges e Tununa Mercado. Por ultimo, escolhemos a sutil reflexto do poeta argentino Daniel Samoilovich sobre a fungao da meméria no ato da produgo lirica para fechar 0 volume e, dessa forma, trazer ao debate a idéia de que o gesto de rememorar ndo ¢ exclusive das formas narrativas. Esperamos que os artigos reunidos neste volume possam set considerados lum aporte substancial e abrangente para a pesquisa brasileira sobre as formas autobiogréficas. Com essa finalidade foi elaborada uma bibliografia de referéncia que completa o volume. Agradecemos especialmente aos autores que petmitiram a ppublicagao dos seus textos e, ainda, aos tradutores pelo trabalho dedicado, Este livro foi publicado com subsidios da Fundago de Amparo a Pesquisa do Estado de Sio Paulo (FAPESP) e dos seguintes Programas de. Pés-Graduagao a USP: Lingua ¢ Literatura Alemd; Lingua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana; Letras Orientais; Estudos Linglisticas e Literdrios em Inglés. 0 congresso “Escrever a vida” foi realizado com auxilios de FAPESP, da Coorden: dde Aperfeigoamento de Pessoal em Nivel Superior (CAPES), da Fundagtio Alemii de Pesquisa Cientifica (DFG) e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas dda USP. Agradecemos as instituigdes que contribuiram para a realizagio do evento e dda publicacao. ‘Hetmut Gate ‘Awa Czcitia OLmos ve ‘Sto Paulo, setembro de 2007 18 Aescritura autobiografica entre literatura e realidade Verdade, mentira e ficcao em autobiografias e romances autobiograficos Ruri Kiocer para cuja elaboraedo tomei o maior cuidado em contar a verdade, a mais precisa, pude perceber que a linha diviséria entre histériae ficedo pode ser ‘muito ténue em se tratando de relatos pessosis, mas ela existe. O que corrobora na cconstrugto dessa linha € 0 contrato entre autor e leitor, em particular, a expectativa deste se voltada a fatos ou a ficgo. Um historiador que relata um fato nfio-verdadeito ‘mente, 20 passo que um romancista que faz a mesma coisa esté apenas tecendo sua est6ria, Entrctanto, © romance autobiogrifico, assim como © romance histérico, presenta uma série muito mais complexa de problemas. O romancista apela, em certas partes do livro, ao nosso conhecimento prévio e quer que lancemos mao de ‘tudo aquilo que sabemos antes de abrir livroe fazer letura da sua verso dos fatos. Isso fica patente em romances historieas cléssicos como Guerra e Paz de Tolst6ie em ‘Um conto de duas cidades de Diekens, Se Napoledo nao tivesse invadido a Russia e se a Revolugio Francesa nto tivesse acontecido, essas obras nao fariam sentido, Além disso, ambas partem do pressuposto de que o leitor se interessa pela istériae pela interpretagto do ocorrido pelo autor. O impacto causado pelo romance autobiogrifico também deriva consideravelmente do nosso conhecimento (ou adivinhaeo) de que pelo menos uma parte da narrativa é verdadeira. Mas quanto? E «em que momento nossa sensibilidade estétca e nosso sentido de realidade se dividem? Essas so as duas perguntas que eu gostaria de explorar neste artigo. Para comegar, um caso simples envolvendo uma fraude. Um pouco de licenga poética em literatura ndo nos incomoda se a época é bastante remota e se o autor no se compromete com a precisto histérica. Uma cena em que Elizabete I e Maria da Escécia se encontram pessoalmente (0 que de fato nunca aconteceu) no nos incomoda se o efeito dramiitico ¢ eficaz. Passamos a nos incomodar & medida que n0s aproximamos do nosso préprio tempo e das questées que consideramos importantes } J: ‘qualidade de autora de uma autobiografia baseada em minha meméria, abordagens de uma teoria da autobiografia ¢¢~atengdo! ~ se o autor nos leva crer que estamos lendo um relat verdadeiro da realidade. As obras sobre o Holocausto so um bom exemplo, porque a maioria dos Jeitores fica indignada quando descobre que a realidad foi alterada. Foi isso que ocorreu hi 10 anos com o autor Binjamin Wilkomirski, um sugo- alemio que afirmava er enttadoilegalmente na Suiga quando crianga apéster perdido familia inteia em campos de concentragao alemtes, em Majdanek e em Auschwitz, tmais exatamente. livro trazia detalhes horipilantes de como ele havia escapado, Ele fo criado discretamente por uma familia bem de vida, tomou-se miisico e 6 20550 anos resolveu eserever sobre esses fragmentos de lembrangas. Em seu novo lar, ele afimava que ndo lhe era permitido falar sobre as experiéncias que viveu. Seus Pais adotivos suis se ecusavam terminantemente a ouvir qualquer coisarelacionada 4 seus primeiros anos de vida, 0 que, por sua vez, o fez sofrer de ansiedade e até mesmo de reagdes parandieas. O livro foi publicado em 1995 pela famosa editora Subrkamp, de Frankfurt e recebeu o titulo de Bruchsticke, fragmentos. Fragments € 0 titulo da traduglo em inglés seguido de um subttulo chamativo: Memories of Wartime Childhood. O livro reeebeu étimas resenhas e foi traduzido para, pelo menos, doze linguas. Transerevo uma eitaedo extraida de uma resenha publicada no ‘New York Times. Wilkomirski lembra do Holocausto com uma poderosa imediagéo pproporcionada pela inocEneia, inserindo acontecimentos bem fundamentados cheios de terror e agudeza. Construido em flashes de ‘meméria, 0 livo se desenvolve em rompantes de associagto, 0 jeito ‘que criangas contam estrias... Ele esereve com a visio de um posta, 0 estado de gaya de uma crianga. Beis 0 que Maurice Sendak, um famosoilustrador de livros infants, disse: "Nese breve, aganizante e estranhemente lindo lio, todes as crangas~ prineipalmente as riangas do Holocausto~ foram finalmente vingadas, ‘Wilkomirski extingue « nogao insensatae perigosa de que as criangas no tém memra. Essesfragmentos quebrados penetram a alma etiram sangue, Mais que justia, faz-se arte com essas duras memérias TT Nota da vadutera: No Brasil ovr recabouo title de Fragmentos:Memerias de uma infancia 1998 1947 (ad, Sérgio Tllarl) ofl pubicado pela Cia. das Letras em 1902. 2 41. A esartura autobiogréfica entre literatura @ realidade Wilkomirski aderiu a organizagdes de crianas que sobreviveram ao Holocausto tomou-se seu porta-voz. Freqllentava reunides de psiquiatras e impressionava a ‘todos. O presidente do Instituto de Pesquisa sobre o Anti-semitismo de Berlim, um historiador de reputacdo ilibada, chegou ao ponto de consideraro livro de Wilkomirski supetior ao Ditirio de Anne Frank, pois, segundo ele, os leitores so confortados pelo relato de Anne Frank porque nfo contém relatos de horror, a obra de Wilkomirski, Por outro lado, nos dé a realidade e, portanto, ele deve ser considerado 0 autor mais importante em matéria de criangas e o Holocausto. Wilkomirski recebeu o Prémio do Holocausto da Federago Judaica da Franga ‘em Patis, que depois foi revogado. Ele fez um filme para a televistio sobre sua vida @ sobre a solidio ¢ 0 isolamento que eram sintomas permanentes de memérias incrradicaveis, E foi tudo uma fraude, Em 1998, um minucioso jornalista suigo descobriu provas de que a historia toda havia sido mancomunada, Wilkomirski nem sequer era judeu. Havia nascido em uma cidadezinha da parte francesa da Suiga e sua mae 0 hhavia dado para adogao por ser filho ilegitimo. Assim, ele passou um tempo em umm corfanato—o orfanato tem um papel importante no livro —até ser adotado por um casal suigo economicamente estivel em Zurique. A histéria da vida dele se passa inteira € interruptamente na Suiga. A historia de seus anos softidos é mera invengao, quer seja baseada em fraude dolosa, quer seja baseada em delirios parandicos ou, no meu pponto de vista, uma combinago dos dois. ‘Sempre houve dividas sobre a veracidade em Wilkomirski. A editora alema admitiu que durante a produgdo do livro ele foi advertido de que havia alguma coisa suspeita sobre sua autobiografia. Chegaram a parar as maquinas e a enviar um informante a Israel para consultar historisdores e psiquiatras, Receberam respostas satisfatrias e pediram que 0 autor escrevesse um posficio sobre a autenticidade dda obra. Assim, deram continuidade & produsdo do livro. Entretanto, os psiquiatras € historiadores que a editora consultou s6 poderiam ter feito afirmagées sobre a plausibilidade dos relatos, nfo se os fatos se baseavam em experiéncias vivid, Wilkomirski afimma: “Minhas memérias so minhas memérias, e nfo posso mudé-las”. hd alguns psiquiatras e crticos com inclinaglo para a psiquiatria que concordariam. Afirmam que se alguma coisa esta firmemente enraizada na mente, ‘no importa se esté baseada em experiéncia vivida ou experiéncia imaginada. Um trecho do posficio de Wilkomirski diz: “A verdade oficial é uma coisa ~a verdade da ‘vida é outra”. Mas ha uma estranha falsidade nisso: nlo sfo os fatos, so as memérias que ele insite ter. E quem somos nds para contradizer o que esté tia cabega dele? O posficio co 23 abordagens de uma teoria da autobiografia ‘Anos de pesauisa, muitas viagens de volta a lugares em que lembro ‘que as coisas aconteceram, ¢ intimeras conversas com especialistas © historiadores me ajudaram a esclarocer muitos fragmentos de meméria ‘que antes cram inexplicéveis, a identifica lugares pessoas; aencontri- los de novo e estabelecer uma ordem mais ou menos cronolégica de tudo. Ele certamente pesquisou, caso contritio, nfo teria conseguido produzir os detalhes, Mas ele nunca havia estado em um campo de concentragao antes de visitar ‘um para pesquisar, ‘© caso fica interessante, do ponto de vista de um critic literério, no momento ‘em que passamos dos fatos comprovveis eobjetivos no mundo interior das percepgses subjetivas e quando nos dizem que esses uiltimos sfio a realidade, a realidade do sujeito. E um ponto de vista que ja conhecemos sob diversas nomenclaturas dadas nas itltimas décadas, Comerando de uma forma bastante simples com a New Criticism = apenas matérias textuais ~, passando pelo desconstrutivismo ~ trabalho literdrios so construgties verbais e nflo servem para muita coisa, E um ponto de vista muito difundido entre os historiadores mais jovens de que até mesmo a histéria escrita por historiadores ¢ apenas uma questo de construgio em que intrinsecamente no se pode confiar, Mas quando se trata do Holocausto, esses pontos de vista assumem um ‘outro tipo de agudeza, porque a reaedo vinda das entranhas do leitor entra em ago e informa nossas observagdes cerebrais. s leitores que se envolveram intimamente com o livro Fragmentos eo recomendaram aos amigos sentiram-se enganados ¢ com raiva, da forma como nos sentimos somente em relaydo as noticias didrias. Ou passaram a se perguntar como se deixaram enganar por esse tipo de kitsch ou trash. Serd que havia algo de errado ‘com suas habilidades criticas e emocionais? Tiveram vergonha do entusiasmo que sentiram ¢ tiveram vontade de engolir as palavras que disseram. E, por outro lado, hhouve outras pessoas que continuaram a defender o livro com argumento de que se cra uma boa autobiografia, deve ser um bom livro de fiegio, pois 0 texto continuava ‘o mesmo, O género, afirmam, independe do mérito literario, Eu s6 lio livro depois de a fraude ter sido descoberta ¢ 0 achei cansativo, repleto de clichés. O texto mediocre e a perspectiva da crianga, pouco convincent Mas, eis 0 que me fascina. A autobiografia, sustento, & a forma mais subjetiva de historiografia. E histéria na primeira pessoa do singular. Por necessidade, contém informagio que no pode ser comprovada ~ pensamentos e emogtes - ¢ & freqiientemente confundida com um romance. De fato, a autobiografiasitua-se na fronteira que divide a historia e a literatura imaginativa, E, na fronteira entre palses, 24 1. A.escrtura autobiogréfica entre literatura e realidade os habitantes de cada um dos lados normalmente falam ambas as linguas. Mas, se ‘me permitem continuar com a metéfora, cada uma das cidades claramente pertence umn desses paises, e a autobiografia pertence ao pais da historia. Do outra lado dda fronteira, esté o romance autobiogréfico que pertence, to claramente quanto, a0 reino da literatura imaginativa, nfo importando a precisto com que reflete a vida do autor. A distincia entre uma cidade e a outra as vezes pode ser percorrida a pé, mas, ‘mesmo assim, ainda estariamos indo de um pats a outro, cruzando a fronteira. ‘Acdistancia entre a “verdade oficial” ¢ a“verdade de uma vida” ndo faz sentido para oleitor. O eitor quer distinguir entre identidade narrada e identidade historia. Porque, e isso nos traz. a0 ponto tedrico da questo, em uma autobiografia, o autor e o narrador so um. Ao ler um romance, por outro lado, sempre pressupomos que 0 narrador ndo se confunde com o autor. Mas, é possivel argumentar, se o livro & plausivel, no final das contas, ele flo poderia ser lio como literatura? Como j4 salientei, muitos leitores que ficaram, impressionados com os Fragmentos de Wilkomirski, hoje se perguntam o que tomou conta deles, pois ao relerem o livro, ndo ficam impressionados. A razdo & que nés, ‘muito corretamente, encaramos um texto de forma diferente quando achamos que se trata de historia ¢ quando o texto é apresentado como fic¢do. Estamos realmente lendo textos diferentes, apesar de as palavras nfo terem mudado, O texto é diferente porque passou de um género a outro. Nosso juizo estético depende das circunstncias que envolvem o texto. E isso ocorre porque juizos de valor ndo sZo absolutos. Relatos falsos nfo viram literatura quando se descobre que foram inventados. Mentiras nfo so ficedo. Mas, éplausivel que seja kitsch, é uma de suas caracteristicas mais conhecidas até, 6 claro, que passemos a vé-lo sob a dptica da pseudoplausibilidade, E por que deveriamos duvidar da verossimilhanga de um relato, sem termos Juma boa razio para tanto? A literatura sempre depende de um contexto externo, nfo literério. © contexto que deveriamos ter levado em conta, em relaglo a este livro, foi nada menos que a Shoé? e 0 contexto de uma vida especifica dentro dos parémetras que fazem parte do nosso conhecimento hist6rico. Mesmo se 0 fatos contadas por Wilkomirski, como se tivessem acontecido com ele, tivessem acontecido com outras criangas, ainda assim a reirada ce uma voz autobiogréfica auténtica faz do espeetador ‘uma pessoa passada para tris e do relato uma mera reconstrugao das experiéneias de otras pessoas. Mas temos que continuar lendo histéria diferentemente de ficea0 © cconfiando no que o autor e a editora dizem ser um ou outro. Nto & culpa do leitor se as decepgdes complicam as coisas. Um caso como 0 de Wilkomirski nos ajuda a ‘esclarecer nossas idéias sobre o qué e porque lemos. 7 Nota da Trad ~ Terme om hebraico para Holocaust, 25 ‘Todavia, nfo tenho certeza da minha posigtio, como parecem indicar meus comentérios, Hi muitos autobiégrafos que discordariam das minhas distingses ‘marcadas, Endo estou nem falando de um escritor como Roland Barthes que, dentro da teoria pés-moderna, insistiu que nao havia nenhuma diferenga entre literatura factual ¢ literatura ficticia e desejava que sua prépria autobiografia recebesse o tratamento de um romance. Estou falando sobre um trabalho realista recente, e uma das mais mpressionantes autobiografias que ja li, A Tale of Lave and Darkness de Amés Oz. Amés Oz, um dos autores de maior renome em Israel, conta a historia de sua familia, de sua infincia, mescladas com a historia da Palestina sob mandato britdinico e durante os primeiros anos do estado de Israel. Apesar de o livro ser claramente ‘baseado em fatos privados ¢ historicos, o autor nos pede para tomar cuidado antes de se perguntar se tudo que ele conta “realmente” aconteceu com ele. Em vez disso, aconselha 0 autor, pergunte-se se poderia acontecer com voc8. Este é um conselho dde um eseritor de fice. E, de fato, hd trechos no livro em que eu ndo me importo se o fato aconteceu com ele ou se foi inventado, porque transmite uma verdade mais, profunda de um jeito ou de outro, e essa é provavelmente a verdade ds ficso. Um ‘exemplo marcante so as duas ocasides em que uma crianga judia se encontra com palestinos drabes. Amés, aos quatro anos de idade, havia se perdido dentro de uma loja de roupas em Jerusalém, e por estar com medo de uma mulher que ele pensava ser uma bruxa, escondeu-se dentro de um armério. Depois de muito tempo de procura, lum funcionario érabe muito gentil o encontrou, acalmou-o, consolou-o e, por um ‘bom tempo, representou a figura do pai para o menino que se abragou a ele e nele confiou cegamente. Mais adiante, lemos sobre a visita que o autor, 20s oito anos, fez propriedade cde um arabe rico que havia convidado Amés e seu tio porque este the havia feito um favor. Isso aconteceu pouco antes de as Nages Unidas eriarem o estado de Israel. Ao brincar no jardim, 0 menino quis impressionar uma bonita menina érabe, que estava tomando conta do irmfozinho, com sua destreza acrobitica, Ao se exibir, causou lum acidente em que o pé do menininho ficou muito e, talvez, permanentemente machucado. Com maestria, Amés Oz descreve a cena seguinte em que o horror, a culpa e a impossibilidade de reconciliagdo se misturam. O ucidente, nunca revelado 4 seus pais, passa a ter um lugar fixo na sua mente, é parte da terrivel consciéncia que abrange o conilito maior entre israelenses e palestinos, Essas duas recordagbes dda inflincia, principalmente a segunda, so to fortes e marcantes em relagto a problemas nao resolvidos, que pouco me importa se elas aconteceram do jeito que foram contadas ou se o autor as inventou no todo ou em parte. “3. Nota da Trad. — No Basi, o Evo recabeu 0 tule de De amor e reves © foi pubicado pela Cia, 6a Letts em 2006 (Trad, ton Land), 28 — 1. Aescritura autobiogréfica entre Iteraturae realidade E agora um caso diferente, embora relacionado ao Jiltimo. O autor quase- contempordneo de Amés Oz, Philip Roth, usou sua inffincia e suas origens, em seu iltimo romance The Plot Against America’, da forma mais detalhada ja vista ‘Autobiografiaefiego se mesclam e, 20 mesmo tempo, sto cuidadosamente separadas. O livro em questo 6 o contrério de uma autobiografa confdvel, porque € uma utopia, cou melhor, uma distopia. Por um lado, aprendemos como ¢ erescer na parte judaica de uma cidade de tamanho médio no estado de Nova Jérsei, no final dos anos 30, ¢ Philip Roth nos dé relances de fatos reais daquele periodo. Além disso, ele fornece tum apéndice em que arroa eilstra, com detalhes enciclopédicos, as personalidades piiblicas que aparecem no seu romance. E, de repente, ha uma inversdo, quando o ano de 1942. passa a ser fiogdo. O que realmente aconteceu foi que, é claro, Franklin Roosevelt foi eleito presidente pala terceira vez, fato sem precedentes. No livro de Roth, quem vence as eleigdes & 0 famoso aviador Charles Lindbergh, o primeiro homem a cruzar 0 Atléntico em vo solo. Ele admirava os nazistas e recebeu uma medalha kitsch de Herrmann Goring, cujofilho veio a morrer durante um famoso seqiestro (o seqiesto também faz parte do “compl6” do “Compo de Roth). Por dois anos Estados Unidos, de acordo com © romance, sio um estado fascistaincipiente. Oleitor sente-se irrtado e estimulado pelo constante movimento de idas e vindas do que realmente acontecou durante agueles anos ¢ a imaginagio de Roth. Se, por um lado, ele facilta nossa tarefa, principalmente com o apéndice que eu consultei durante toda a leitura, por outro, ele 1 dificulta, pois nfo podemos, nem por um minuto sequer, esquever que se trata de tum jogo, de um quebra-cabecs, ainda que um quebra-cabeca sério em que realidade e ficpdo se misturam. Ele nos levaa pensar que essa mistura& de certa forma perigoss, ilicta e um pouco louca. Estamos acostumados a provar nossa sanidade sabendo diferencia entre os dois reinos, oda fcgao eo da ealidade, e aqui os dos se fundem. ‘Uma imagem distinta da que temos dos Estados Unidos durante o fim da década de 30 e comeco da de 40 vem a tona, sé para ser minada por uma distopia horrpilante fem que ndo acreditamos, mas que é, todavia, verssim ‘Aestériaabandona ahistériaem um ponto especifcoe voltaparaahistoriografia em outro ponto to espectfica quanto, eu seja, o ano em que os Estados Unidos entreram na Segunda Guerra Mundial. O que jaz no melo 6 o.reino da fantasia: 3 como se estivéssemos passeando por uma estrada que conecemas bem e de repente avistamos uma placa dizendo: Desvio para Terra de Ninguém; em seguida, apés viajar longa e extenuadamente por uma paisagem de pesadelo, nos vemos, com wim ‘Nota da Trad, ~ Traduzio por Compld contra 2 América pela Ca. das Letras em 2005 Trad. Paulo Henriques Brio), 27 suspiro de alivio, de volta estrada principal. Certamente, as diferengas estabelecidas, claboradas ¢ retiradas do a0 leitor algo em que pensar, ndo apenas sobre politica, ‘mas também sobre epistemologia e estética E, por fim, um outro caso bem recente sobre o papel que a imaginagto representa na comunidade como um todo. O elo entre ficgdo autobiogrifica e 0 ‘mundo objetivo acaba de ruir no mercado alemdo de livros. O Superior Tribunal dda Repiblica Federal da Alemanha manteve a decisio de duas insténcias inferiores contra um livro considerado préximo demais da realidade. A situago é que existe e {em existido por alguns anos uma proibigdo contra a venda e distribuigdo do romance eserito pelo respeitado, embora controverso, autor Maxim Biller. O titulo do romance 6 Esra. Ainda ndo 0 li, por razies ébvias: nio consigo compré-lo, foi proibido nas livrarias. Eu provavelmente conseguiria ter acesso a obra por outros meios (pedir & ‘minha editora, a amigos na imprensa), mas até o momento essa idéia tem me causado aversiio, Maxim Biller, os senhores devem saber, é bem reconhecido, tanto como autor de fiero como na qualidade de jomalista, Seu nome pode ser encontrado nas referéncias de trabalhos sobre literatura contemporanea. Seus dois livras mais conhecidos stio Land der Vater und Verrater (Land of Fathers and Traitors)! e 0 romance Die Tochter (The Daughter)’, ambos reconhecidamente chocantes para uma vvovozinha como eu, mas silo uma mostra de inteligéneia provacadora e de mérito literério inquestiondvel. (© que aconteceu foi que Biller escreveu sobre um caso amoroso que teve com uma mulher facilmente identficdvel na obra. Por exemplo, tanto a heroina quanto seu modelo ganharam um certo prémio do cinema alemdo que permite a identificago da personagem. Nao havia como confudi-la. A mulher 0 processara e ganhara com © argumento de que o livro violava seu direito a privacidade e atentava contra sua dignidade de ser humano. A constituigdo da Alemanha diz: “A dignidade humana & inviolévet” (Die Warde des Menschen ist unantastbar). Ponto. O mesmo documento também dispde: “A arte é livre” (Die Kunst ist frei). Ponto, Entio o que acontece se ‘arte ofende a dignidade de uma determinada pessoa, Isso atinge 0 amago da minha convicg#o de que flestlo e nfo-ficglo sto categorias distintas, € que a autobiografia pertence a uma, ao passo que o romance utobiogrifico a outra. Minha primeira reapto foi afirmar que a decisfo do tribunal estava errada, Esra é um romance. Se o autor diz: “Isso & um romance”, ele nega, a relago com a realidade. Ele afirma: “E minha invenefo”, niio importa em que se baseou. Mas ao examinar o caso mais de perto, e principalmente apés falar ‘Obra no tradunda pare o portuguts. A traducto do to seia Tere de Pals @ 6. Nota da Trad. ~ Obra ndotraduzita para 0 poruguts. A tradupdo do tuo seria A Fa, 28 41. Aeseritura autobiogrfica entre literatura e realidade com um advogado especializado em direitos autora © matétias afins, percebi que meu ponto de vista poderia estar predominantemente baseado em consideragbes strates, ¢ eu poderia ndo estar alcangando a complexidade de casos reais tal como esse caso do romance Esra, O judiciério alemao decidiu que odirito a privacidade (Personenschuta”) se sobrepie a iberdade artistca. Surpreendentemente, nio teve mportincia 0 fato de os acontecimentes relatados serem “verdadeiros”, de terem realmente acontecido. Se aconteceram, violam o direito individual a privacidade; se no aconteceram, é uma forma de crime contra a honra, tendo a mesma natureza que as mentiras contadas em revistas de celebridades. Havia ainda um fato agravante no caso da obra de Biller: aheroina tna uma filha de 14 anos que, tanto no livro como na vida rea, sofra de uma doensa incurivel. Mas, na vida real, no sabia que ia morrere ficariasabendo, ao le o Fivro, que ao tinha mais muito tempo de vida Isso parecia muito eruel. Peter Raue, 0 advogado que mencionei, diss: “Isso atinge © mago do direto & privacidade”. Na qualidade de académica, eu ainda gostaria de afirmar que o autor renuncia & alegago de dizer & verdade, de ser jurdicamente levado “a sério" e por esse prego ele adquireo dieito de lidar arbitrariamente com os fatos que o inspiraram. ‘Um eseritor vé uma crianga doente e, em sev liv retrata uma crianga que esti morrendo, Sea crianga de verdade morreré ou nlo, no cabe a livro informa. apenas um romance, apesar de tudo, Apenas um leitoringénuo, eu afirmaria, conclu ue olivro contém um diagnstico médico. Ese o autor inventar uma cura milagrosa? Isso quer dizer que ele est resomendado que a mie faga uma peregrinagi a cidade de Lourdes? £ claro que nto. Entdo por que responsebilizs-lo por um diagnestico que ro pode ser Vélido dado © contextoficticio? ~ Todavia, como me sentiia se a filha fosse minha? Serd que eu ainda estaia argumentando no pape de eftealiteriia ou estaria indignada com o que 0 autor, meu amante ou ex-amante fez com 0 estado de espiito de minha filha? E ainda, de novo um pouco mais do outro lado: qualquer autor de fiegto usa seu ambiente e prinipalmente sua propria vida como local e eonteido, Aristételes escreveu que a precisio é preocupagto do historiador, jé a preocupaetio do posta ou dramaturgo eram a probabilidade e a necessidade intrinseca. As personagens inventadas, defendia 0 filésofo, sfo protstipos, nlo pessoas, nio importa de onde vieram. Se um romance é lido da forma que 0 Judicirio o leu quando decidiram a ‘favor da autora daapio, ele vira mera fofoca. Eo que parece sero cere da quest: um romance é uma obra de arte ou um escdndalo com aparéncia de feo projetado para tratar de assuntos picantes relacionados as pessoas vivas? Quem pode responder? O ‘material das colunas de fofoca e das grandes tragédias 6 0 mesmo. (Ambas tratam de incesto e morte provocada, paixSes avassaladoras e inveja entre amigos e parentes). 29 3 autores podem usar sua historia de vida para expor seus amigos e parentes ou para jogar uma Iuz duradoura sobre a eondigo humana. Certamente, muitas obras literérias aclamadas nto teriam sido publicedas, ¢ talvez nem mesmo eseritas, se fossem aplicados os mesmos padrGes usados em relagio ao romance Esra, Peter Raue, que ji escreveu sobre casos como esse, acredita que 0 Judicaio deve decidir caso a caso se uma determinada obra merece a prego constitucional 8s obras artistcas.E ele sugere que 0s profissionas do direito devem se voltar para 10s, 0s especialistas em literatura, para decidir © que é o que nfo art. Ou seja, le afasta a possibiidade de toda obra de ficed0 ~seja. kitsch, trash, lxo estilistico ou a obra de um génio =, merecer 0 dirito a liberdade antistca e de toda obra de literatura imaginativa ser igual perante a lei. Se o Judicifrio esabelece a diferensa entre o que €e0 que no € arte com base no mérito nfo pode evita fazer julgamentos de valor, O Judiciio esta qualificado para emitir ais juizos? Se nfo estiver, quem estaré? Os académicos, os criticos? Eles estio sempre em divergéncia. Quando & que todos 0s eriticos eoncordam em matéria de obras contemporéness? Theodor Adomo estava certo quando enfatizou que 0s jutzos de acedémicas da literatura, necessariamente,fazem parte do cenério cultural de uma época, nfo esto baseados ‘em criterios objetivos incontestiveis. Esereveu: “O privilégio de sua posigdo e © scimulo de conhecimento permitem que falem o que pensam como se fose a propria vor da objetividade, Mas trata-se apenas da objetividade da opinito que prevalece, que os préprios académicos ajudam a construir". © que acontece com @ literatura contempordnea se ela for sujetada a tais regras? As editoras passardo a recusar manuscrits, talver até obras de génios, para evitar agdes judiciais¢ 0 autores, provavelmente, nem comegario a escrever livros que poderdoirazer problemas. Entfo, resta-nos o dilema. Procure apresentar os trés aspectos da autobiografa, O primeiro 6 o problema da fraude, ilustrado pelo caso Wilkomirski. O segundo, o ineremento da realidade por meio da interpretagio em romances autobiogrificas. Isso pode variar entre 0 embelezamento de acontecimentos lemirados ¢ histricos e a fantasia manifesta de um livro como The Plot against America de Peter Roth. terceiro & 0 aspecto 4a literatura autobiografica no mercado, enffentando problemas de crimes contra a hhonra eo direito& privacidade ‘Tran. LuctaNa Canvao Fonseca Cornea Pivto 30 Testemunho. Verdade e literatura ‘TUNUNA MERCADO hipétese ou a constatagdo de que haveria ali, de forma expliita ou oculta, “elementos” autobiogréficos. Nao parece existir risco em afirmé-lo por melo de referéncias « uma instineia aparentemente exterior & gestagto e concepsto. do texto, uma biografa do autor que se tem a vantagem de conhecer e eujos ecos estariam ressoando e deixando-se reconhecer naqulo que se 18. Assim acontece em, cera patografia analitica, que deve algo psicandlise, segundo a qual uma imagem recortente pode “significar” um trauma, corroborado em seguida por um testemunho uma contissdo, A coida que tessoa pole remeler uti letpe bistiriey Ou referin= se a um espazo social, mas pode também ressoar paradoxalmente na maneira em que se oculta nos intersticios do texto e nos recursos proporcionados pea literatura, ~essa grande enganadora ~, para disciplinr a escrita: sujeito da narragdo, pessoa do relatoe suas variedades; da primeira i terceira pessoa, sem contar onobre e oportuno reflexivo que eria disténcia e anonimato, Pessoas atrés das quais busea-se ocultar ‘eu da escrita ou da pessoa, para se prevenir justamente das identificasdes criadas pela presungo de que hi um ou uma que “se” conta, um eu impudico que nao sabe Aesaparecer, que expde 0s fos, revelando suas chaves eas do seu tempo. Que padece, digamos, de uma fraqueza narcsista em sue hstéria pessoal ou em sua personalidade de escrita Ha uma transposigfo misteriosa na eserita, que dé a impressio de que algo cai, vem de cima até a letra, o trgo, a linha no espago, o sintagma inesperado. Algo 4que genha forma nessa descida da cabera até a mo, num gesto rendido, de entrega ou oferecimento. Deve ser por essa direso em queda, sendo a cabega o lugar do pensar organizado, © a mio o do trabalho, que se fala de uma inspiragao que cai do 6u, gratuitamente, se dria, Mas 0 “anjo", o anunciador da chegada da imagem, nfo anuncia nem assinala uma iluminag0 no vazio sendo a partir daquilo que se vinha gestando em sucessives momentos de acumulagio, ou isso que se chama saber: A E 1m toda leitura interpretativae critica de um texto aparece em algum momento abordagens de uma teoria da autoblograia descarga em ato recupera uma seqiiéncia de busca em que o arrecadadore sua matéria percorreram diversos estados; aquele com a vontade de dar forma, esta com o deseo de ser forma: reunito, selesao, filtragem. Se esse imponderavel processo tivesse que se chamar inspiragdo, falsearia seu cardter porque é mais um movimento horizontal, € mais um encadeamento paulatino de elementos produtivos do que um dom que se derrama sobre certos morta. E, no entanto, o impulso parece descer e se irradiar. Descarga, disse, para me referir passagem A escrita, a essa energia que choca «se esparrama antes de se concentrar, circunscrita, e em seguida desencadear 0 texto, O que roda, entio, parece niio er um impulsor com nome e sobrenome. Nesse instante o trem nunca se afitma como eu. Alguém que se perguntasse “Sou eu quem esti colocando lenha na panela?” perderia o trem. E, neste jogo de metiforas, surge ‘outra, jé usada em um jogo anterior, para descrever o trem da escrta: transporte alienado, dois termos que querem dizer a mesma coisa, embora o primeiro tenha dois, significados, o de deslocamento ¢ o de se alienar da razAo ou do sentido, por paixo, @xtase ou acidente. Tentarei voltar depois a esse trem de carga. A idéia de descarga leva a outra, a de catarse, que tende a ser pejorativa 20 esignar um texto que se soltou de forma incontida, para atenuar uma catistrafe e aliviar emoges, e que provoca desconfianga por seu imediatismo, Foi apenas ‘uma descarga emocional, diz-se, para insinuar um exeesso em sun fabricagin @ um arrebatamento extraliterdrio. No entanto, nio raro, quando alguém assinala o ‘emendismo de um texto, o acusado recorre a uma desculpa: “Bom, na verdade... ‘oi uma catarse necessaria”. O acusador se acalma, pois Ihe foi concedida a razfo. Tnspiragto,catarse.J4 so duas as categorias deixadas de lado, Mas 0 ew segue nesse transporte alienado, Entdo surge outra nog: o escritor como médium, um. intermedia atravessado por um raio que o fixa em sua condigio viedria, Mas o médium transmite a palavra da alma em pena, escorregadia ¢ etérea como a alma humana em geral. Embora até essa palavra possa ter sua eserita. Em uma casa da cidade de Cérdoba (Argentina), foi encontrado um velho eaderno escolar do comego do século XX com uma série de anolagGes que ninguém imaginaria que pudessem ter sido feitas sem cair no delirio. As anotagdes eram transcrigBes do que espiritos tinham escrito em varias sessOes de “espiritismo” doméstico, se for possivel chamar assim jogo do tabuleiro com letras no qual um copo invertido vai armando as frases. Esse modo to estranho de escrita, de um inconsciente teimoso, seduziu em sua época 4 ninguém menos que Tolst6i; mais modestamente, fui testemunha uma vez dessas, proezas escuras: os textos que se armavam na mesa etam coerentes mas elusivos, por vezes de tom autortério e até ofensivo. Proferidas por espititos maleriados ou brincalhdes, ou entdo por almas com saudades da vida no mundo, quem os ranscrevi era textual, sem sacrficar nada. E de fato “copiados” desta forma geravam, nao 32 oscritura autobiogrifica entre Itersturae reaidade cobstante intangibilidade de sua origem, a ilusio de ser reais, isto é, de ter sido escritos por esas almas pesarosas. Mas quem 0s escrevia? £ tamanho o extravio que precede a eserita que quem a executa sequer pereebe que escolheu uma pessoa por acaso: abre e 0 ex se impée, porque todo enunciador é primariamente um eu que pede um voc® e escapa por um ele; pode permanecer ali, mas por cortesia permite que se passe a terceira pessoa, ou com audécia experimenta 0 “voce”. Em todos esses casos so estaréaceitando uma voz e aquilo que essa voz arrasta ao se compor: uma intrincada rede de pressupostos em que tera que se encaixar por ter eleito esse “de onde”. De onde? Curiosamente essa éa primeira interrogacdo feita a0 espirito errant... quando o jogo do tabuleiro se abre. Se no fosse porque a literatura acreditou poder fixaressasinsténcias do narra em determinados sueitos ~ eu, voce, ele, nds se elas no estivessem rogulamentadas em eategorias, seria dificil estabelecer de onde se escreve. Desde um saber da lingua, dizem; pelo impulso vital docontar que define aespécie humana desde que Deus soprou a Ado 0s nomes do que fora criado. Ou simplesmente porque vislumbramos de repente que um instrumento pode situar, implantr, algo que soubemos abstrair de uma massa indiscriminada em que o real eo simbélico, a conseiéncia eo inconsciente, a memériae o esquecimento, outras duplas tuam, e ao saber abstrair Ihe conferimos sentido. Esse algo flisolado, © instrumento o articulae the dé forma. io estou evitando filar em primeira pessoa. Seria de minha parte um exercicio pueril de ocultapto, se no ilustrasse o iavoluntirio recato no uso das pessoas da narragdo em meus primeiros textos. Digo involuntério porque nfo acredito que tivesse fixado uma poética 4 que tinha que responder. Naturalmente a terceira pessoa, por pudor, por cortesia, se impunha, ¢o eu ficava atrés e permanecia calado, talvez porque essa era a norma que eu tinha incorporado ou que me havia sido imposta para narrar dentro de uma tradigdo, fora da qual, se dizia, ameagava o fantasma da ininteligibilidade. Foi justamente esse condicionamento, que implicava correlativamente a existéncia de personagens num jogo dramético préprio da fcpto, que comegou a soar flso para mim. Bra verdade:aficglo gerao fictcio; ou fctcio & 0 proprio da ficgao. E se a fics goza de um prestgio merecido, o fictcio, que ‘emana dela ou a define, dfieilmente se liberta do descrédito quando anunciado em vo ata “Mas hé mods na eserita que so gerados sozinhos. E possivel montarorelato, thé casos, sobre uma forma verbal, um infinitive, por exemplo,e deixé-lo fazer sua cadeia de maneira espontinea, sem prever que isso provocari um efeito na letuta Inevitavelmente, o melhor leitor, o mais afado, tentrd dara filiagao de uma pessoa. 2 esse verbo no infinitive. Um texto de puras ag6es ~ em um universo domstico — acahou ganhando uma personagem, feminina por aeréscimo, em meu prépri texto 33

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