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Introdução
(...) o amor tem sido "bom" para pensar pois coloca em jogo fichas valiosas. É o
próprio sujeito que se pensa, a ameaça constante da morte e do abandono, a
possibilidade de romper, por um momento que seja, a barreira invisível que o separa
do outro e das forças estranhamente similares que parecem atuar na aparente
desordem do universo (p. 11).
Desenvolvimento
O ciclo arturiano permite que reconheçam traços de antigas crenças nos poderes
mágicos e iniciáticos do amor. Algumas provas a que são submetidos os cavaleiros
consistem em atravessar o vale da morte, enfrentar seres do outro mundo e resistir
às terríveis tentações do desejo quando belas donzelas lhes oferecem o leito após
dias de duras lutas e caminhadas. Castelos habitados por mulheres encantadas
aguardam o herói que, em suas aventuras, deve dar prova de sua capacidade de
conter-se. Esta contenção significa domar em si mesmo a força da natureza
rebelada: a alegoria do combate com o leão costuma pontuar os momentos desta
vitória integradora dos diferentes níveis da alma humana, tal como o compreendia a
tradição céltica da qual o ciclo arturiano é tributário (LÁZARO, 1996: 81).
Era um jogo de homens e, entre todos os textos que convidam a ele, há pouco que
não sejam marcados por traços misóginos. A mulher é um engodo, análogo a esses
manequins contra os quais o novo cavaleiro se lançava, nas demonstrações
esportivas que se seguiam às cerimônias de sagração. Não era a dama convidada a
enfeitar-se, a disfarçar e a revelar os seus atrativos, a recusar-se por longo tempo, a
só se dar parcimoniosamente, por concessões progressivas, a fim de que, nos
prolongamentos da tentação e do perigo, o jovem aprendesse a dominar-se, a
controlar seu próprio corpo? (1989: 61)
Não se deve entender, conforme Duby nos alerta, que a lírica cortês tenha
realmente alçado a mulher a uma posição social mais elevada. Ela era, na
verdade, um chamariz nesse jogo civilizatório, que era a cortesia. As
relações são mais complexas do que as de causa-efeito: o movimento de
elevação do amor a elemento essencial à instituição do casamento
realizado pelo pensamento burguês romântico e presente ainda no
imaginário moderno busca conciliar, pelo menos nos romances
hollywoodianos e nas telenovelas brasileiras, a paixão arrebatadora à
rotina do casamento, o que foi obra de longos e intrincados eventos sócio-
culturais. Duby, por exemplo, vai relacionar a invenção do "amor delicado"
a uma forma de organização social da nobreza dos séculos X, XI e XII, que
limitava o número de casamentos dos rapazes, sendo esta uma estratégia
de concentração e conservação de riqueza. Assim, apenas o primogênito
possuía direitos de propriedade, as mulheres eram excluídas da partilha e
recebiam dotes quando casadas. Era regra, portanto, que as famílias
casassem todas as filhas e reforçassem os obstáculos ao casamento dos
filhos, exceto do mais velho. Isto fazia com que jovens celibatários fossem
expulsos da casa paterna, correndo atrás das prostitutas, sonhando nas diversas
etapas de sua aventura errante em encontrar donzelas que, como dizem eles, os
apalpem, mas primeiro em busca, ansiosa e quase sempre vã, de um
estabelecimento que os transforme finalmente em seniores (proprietários), em busca
de uma boa herdeira, de uma casa que os acolha e onde, como se diz ainda em
certos locais no interior francês, eles possam "ser genros". (DUBY, 1989: 23)
A seleção feita por Hector Megalle não contém todos esses episódio. É de
se mencionar também a fragmentação deste texto, com personagens que
entram e saem sem conexão com a linearidade da narrativa, como, por
exemplo, o protagonista Gallaz, que desaparecerá no fragmento 676, sem
reaparecer ou dar explicações de seu destino. Este é um elemento
complicador para a leitura da obra, em especial por não conhecedores do
enredo.
* Amadis de Gaulla
Quanto a esse último núcleo temático, é digno de nota como esta novela
de cavalaria valoriza os encontros e desencontros amorosos de Amadis e
Oriana: em todos os episódios, mesmo nas lutas mais cruentas, Amadis
encontra sua "inspiração" no amor que sente por Oriana. Veja-se o
exemplo abaixo, em que Amadis luta contra um poderoso adversário num
combate assistido pela corte, mas, ao avistar Oriana, após muitos anos
sem se encontrarem, ele titubeia no duelo,
Mas, ah! Senhores, assim como Oriana o ia perdendo, Oriana o salvou: porque
Amadis lembrou-se que a fraqueza poderia ser julgada covardia. Então, como
acordando de um sonho, sentiu que lhe afluía ao sangue uma força invencível. E,
crescendo para Dardan, arrancou -lhe o elmo de um golpe e o Soberbo rolou ao
chão! (AG, 1983: 77)
(...) é que toda história que se vos conta, só por amor dela se pode contar. E entre
todas as Bem-Amadas nenhuma foi mais bem-amada. Nem Genevra, a quem tanto
amou Lancelot do Lago; nem Brancaflor, a quem tanto quis Flores, nem mesmo a
loira Iseu, por quem morreu Tristan de Leonis, foram mais adoradas que Oriana.
(AG, 1983: 59)
esse Amadis ficou sendo um dos livros prediletos de fantasia, tanto em cortes,
palácios e solares, como em casas burguesas, hospedarias e celas de frades e
freiras, lido e relido pelos reis, fidalgos, letrados, artistas e santos. (AG, 1983: 12)
o puro dos puros porque nunca pecou contra a castidade, a única falha que parece
verdadeiramente impedir o acesso ao Graal, a menos que a purgação seja longa e
sincera, como a de Boorz." (MONGUELLI, 1992: 72)
Deste modo entregou seu amor ao demo, e ele deitou -se com ela, como o pai de
Merlim com sua mãe. E quando deitou com ela teve tão grande prazer que esqueceu
o amor de seu irmão tão mortalmente que mais não poderia. Um dia estava diante
de uma fonte com seu amigo, o demo, e começou a pensar muito. E ele lhe disse: —
Que pensais? Pensais como podereis matar vosso irmão? — Por Deus — disse ela
— isso. E ora bem vejo que sois o homem mais sisudo do mundo, e rogo-vos por
aquele amor que tendes por mim que como posso o matar, porque não há nada no
mundo com que tanto me agradasse. (DSG, 1996: 126)
Considerações finais
Digo-te que aquele que achaste no mar será a flor da cavalaria: fará tremer os fortes,
humilhará os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará com honra. E será
também o cavaleiro que com mais bela lealdade há de manter seu amor. (AG, 1983:
51)
Tal como já havia dito o apóstolo Paulo sobre o sofrimento por amor a
Cristo, Amadis poderia responder a possíveis interlocutores: "Pois, quando
sou fraco é que sou forte" (II Carta aos Coríntios, 12:10). O amor torna-se,
no Amadis de Gaulla, um método de subjetivação e aperfeiçoamento; a
fraqueza torna-se força em uma relevante inversão de significantes
culturais. Ao contrário do que aconteceu com Erec, à beira da Fonte da
Virgem, a realização do amor e do erotismo não torna Amadis mais frágil,
sendo a sua aparente fraqueza transformada em força combativa e
guerreira. A fraqueza reside em não viver a paixão, em estar longe do
amado, e não na vivência do amor. O amor é, no Perfeito Amador,
plenamente legitimado.
Notas
(3) Amadis é, como o patriarca bíblico, atirado às águas dentro de uma arca que
continha um pergaminho com as seguintes palavras: Este é Amadis sem tempo, filho
de Rei; além do pergaminho a arca continha um anel dado, por D. Perion, a Elisena,
além de sua espada. Isto ocorre por que Elisena, sua mãe, escondia sua gravidez
por medo do que poderia lhe acontecer e a seu filho, caso se descobrisse seus
amores secretos com D. Perion, que, pelo tempo do nascimento de Amadis, estava
ausente.
(4) Conforme anotado por Duby (1989: 58), a sentença da Igreja para a relação
conjugal era de uma cordialidade e amizade: "O amor do marido por sua mulher se
chama estima, o da mulher por seu marido chama-se reverência".
(5) Termo freqüentemente usado na Demanda para designar algum evento que
causasse espanto, admiração ou pasmo, segundo Jacques Le Goff : "Com o termo
mirabilia estamos perante uma raiz mir (miror, mirari) que comporta algo de visivo.
Trata-se de um olhar. Os mirabilia não são naturalmente apenas coisas que o
homem pode admirar com os olhos, coisas perante as quais se arregalem os olhos;
originalmente há, porém, esta referência ao olho que me parece importante, porque
todo um imaginário pode organizar-se à volta desta ligação a um sentido, o da vista,
e em torno de uma série de imagens e metáforas que são metáforas visivas." (1985:
20) As maravilhas são, portanto, exemplos para serem vistos.
DUBY, Georges (1989). Idade Média, idade dos homens : do amor e outros ensaios.
São Paulo: Companhia das Letras.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares (1992). "A prosa de ficção: Amadis de Gaulla".
In: A literatura portuguesa em perspectiva. Vol. I , São Paulo: Atlas.