You are on page 1of 33
O MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL: O EXEMPLO DE LA CATHEDRALE ENGLOUTIE, DE DEBUSSY" Jean Jacques Nattiez RESUMO: Em seus trabalhos, JJ. Nattiez vem apresentando com freqiiéncia 0 modelo tripartite de semiologia musical, seja de modo teérico, seja em sua apli- cagio a problemas genéricos (como as nogdes de objeto musical ou a concep- cio estética de Hanslick, por exemplo). Neste artigo, ele se propée pela primei- va vez a aplicacdo deste modelo 4 andlise de um texto musical empirico, os quinze primeiros compassos de La Cathédrale Engloutie, de Debussy. Esta slustracao é precedida de uma exposicio do modelo tripartite que traz em seu ojo algumas correcées essenciais de suas formulagées anteriores. RESUME: Dans ces éctits, JJ. Nattiez présente toujours son modéle tripartite de sémiologie musicale, soit-il de fagon théorique, soit-il dans son application & des problémes d’ordre génétique (comme les notions d’objet musical ou la conception esthétique de Hanslick, par exemple). Dans cet article il s‘occupe pour la premiére fois de I’application de ce modéle 4 un texte musical empirique, A savoir, les prémiéres quinze mésures de La Cathédrale Engloutie, de Debussy. Cette illustration est précedée d‘une exposée du modéle tripartite qui contient quelques corrections essentielles dans les formulations antécédentes. 1 Bste texto reproduz uma conferéncia de introdugio 4 semiologia musical lida pela primeira vez no II Encontro da ANPPOM (Porto Alegre, 13/12/1989). A andlise da Cathédrale Engloutie foi assunto de cursos, conferéncias ou seminarios nas seguin- tes instituicdes: Conservatério de Lidge (29/03/1988), Depto. de Musicologia da Univ. de Genebra (8-9/05/1989), Depto. de Musica da Univ. de Cornell (17/09/ 1990), Depto. de Muisica da U.C.L.A. (Los Angeles, 26/02/1991), Centro de Estudos Avangados em Misica Contemporinea de Buenos Aires (6-10/09/1993), na Facul- dade de Muisica da Univ. de Edmonton (28-30/09/1993), na Univ. de Artes ¢ Musica de Tokio (14/06/1994), na Univ. de Cuyo, em Mendoza (Argentina) (22-23/08/ 1994), na City University de Londres (16/01/1995), na Faculdade de Musica da Univ. de Oxford (24/01/1995), no Departamento de Musica ¢ Artes Cénicas da Univ. de Bolonha (30/11 ¢ 01/12/1995), Seminario de Musicologia da Univ. Nacional Au- ténoma do México (03/03/1998), Depto. de Musicologia da Univ. de Lyon 2-Lumiére (18/03/1999), Unidade de Musicologia da Univ. Catdlica de Louvain (21/05/1999), Depto. de Musicologia da Univ. de Paris IV-Sorbonne (23/03/2000), Faculdade de Musica da Univ. de Toronto (30/03/2000), Depto. de Musicologia da Univ. de Cremona (08/05/2000), Instituto de Musicologia da Univ. de Mainz (12/05/2000), Seminétio de Musicologia da Univ. Humboldt de Berlim (15/06/2000), Depto. de Musica da Univ. da Columbia Britanica (Vancouver, 26/02/2001). Agradeco a O MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL Ts A CMa chee) nao existe A semiologia nao existe por duas tazdes estreitamente ligadas: 1) as investigacdes que, desde o final do século XIX, as quais se atribuiu © rétulo semiolégico, invocam diferentes orientacdes epistemologicas ¢ tém um passado cientifico extremamente diverso; 2) ninguém parece ter proposto um paradigma de andlise suficientemen- te coerente, um corpus de métodos universalmente aceito, de modo a que se possa falar da semiologia como uma disciplina auténoma ¢ homogénea. Poder-se-ia objetar que a lingiifstica, por exemplo, que foi intimamen- te associada ao reaparecimento das preocupacées semioldgicas durante a década de 1960 e, por vezes, considerada, a época, como a “ciéncia pilo- to das ciéncias humanas”, no oferece, ela também, modelos unanime- mente aceitos pelos especialistas. Porém, mesmo que haja diferentes es- colas fonoldgicas, praticas distribucionais ¢ igrejinhas gerativas, os diver- sos ramos da lingiifstica tém um objeto claramente definido: a linguagem humana, ¢ cles acumularam um acervo de procedimentos e de resultados a partir dos quais, segundo 0 bom ctitério de Popper, as criticas ¢ os progressos foram possiveis. A situagao na semiologia esta longe de ser comparivel. Inicialmente, porque o signo esta em toda parte: na linguagem, por certo, mas também no cinema, na pintura, na literatura, no mito, na musica, sem esquecer a vida social, o cddigo de transito e, talvez, o inconsciente. Conseqiiente- mente, séo pesquisadores e pensadores com horizontes epistemoldgicos muito diversos que se propuseram a desenvolver 0 projeto semiolégico: lingiiistas, tedricos da literatura, fildsofos, especialistas em légica, soc todos os meus colegas ¢ estudantes que, nessas diversas ocasides, ofereceram objecdes criticas ou propuseram questdes dificeis que levei em consideracio na presente reda- Gao. As secdes 3.a 5 deste artigo resumem ou retomam, entretanto com certas modifi- cages essenciais, as piginas 32-38, 171-179 e 193 de Musicologie générale et sémiologie (Nattiez, 1987). Uma primeira versio deste texto foi publicada em francés sob o titulo “De la musicologie générale 4 la sémiologic musicale. L’exemple de La Cathédrale Engloutie, de Debussy”, in Protée, Theories et pratiques semiologiques, v. XV, n. 2, outono de 1997, p, 7-20. Este texto foi revisado para a presente publicagio, JEAN JACQUES NATTIEZ logos, psicdlogos. Portanto, uma histéria da semiologia, ou antes, das semiologias, que seria, ao mesmo tempo, a historia de uma palavra magi- ca ca busca utépica de uma ciéncia universal, ainda est por ser esctita. Hi cerca de uns quinze anos, uma efémera revista italiana de comuni- cacao, apés uma feliz iniciativa pedagdgica da Hochschule Air Gestaltung, de Ulm, publicou um “mapa semiolingiiistico” inspirado na planta do metré de Londres (cf. ex. 1). Ele mostra tanto a autonomia relativa quan- to as conexées das grandes correntes de pensamento que deram origem 4s investigacdes semioldgicas: a linha lingitistico-econémica (Marx), a li- nha lingiifstico-estrutural (Saussure), a linha cibernética (Wiener), a liriha semiético-filos6fica (Peirce), a linha psicanalitica (Freud) ¢ a linha logica (Wittgenstein), desembocando tespectivamente em diversas “estagdes” como a escola russa de semistica (Ivanoy, Lotman), 0 estruturalismo fran- co-italiano (Barthes, Greimas, Eco), a semanilise (Kristeva) etc. Sem men- cionar as “estages de transbordo”: Jakobson, que conduz tanto ao es- truturalismo quanto a Chomsky, Peirce conduzindo quer a Morris quer a Eco, e Greimas, que escapa a influéncia de Peirce, a quem contradiz, ou de Carnap, que ignora. Hoje em dia, seria provavelmente necessatio cons- truir algumas linhas suplementares em diregdo aos subtirbios: remontar ao Norte, mais remotamente no tempo (Santo Agostinho, Leibnize, Condillac, entre outros), reintegrar os grandes ausentes (Mounin, rastreando Buyssens e Martinet; Metz, o fundador da semiologia do cine- ma), colocar em evidéncia outras “correspondéncias” (Greimas/Lacan, Husserl/Jakobson etc.), acrescentar novas correntes: a sistémica, 0 pen- samento cognitivo, a desconstrugao, a corrente feminista. J4 se pode vis- lumbrar 0 aparecimento, em breve, de uma neuro ou bio-semiologia. Diante dessa babel epistemoldgica e metodolégica, ha duas atitudes iveis: efetuar a pesquisa semiolégica em um dominio especifico — a po! miisica, por exemplo! — testando a aplicabilidade em diferentes contextos musicais de cada uma das teorias que se basciam na semiologia; confiar numa determinada orientacao semiolégica ¢ explora-la a fundo, para que renda frutos. O primeiro desses procedimentos foi aquele que eu adotei parcialmente na parte critica de meu primeiro trabalho em 1975, Fondements d’une sémiologie de Ia musique, onde, entretanto, me limi- tei as proposigdes de Saussure, Hjelmsley, Peirce, Barthes, Mounin, Granger e Gardin. A partir de 1987, optei pelo segundo procedimento (Musicologie générale et sémiologie), no qual, excetuando uma discus- O MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL o sio sobre a posigao geral de Eco — no calor do debate semiolégico da- quele momento -—, adotei a concepgio tripartite da semiologia proposta por Jean Molino, fundamentada na concepeao peirceana do signo. Evidentemente, nao posso erigir meu itinerario pessoal como exem- plo. Creio que todo estudante que queira abordar a musica do ponto de vista semioldgico deve fazé-lo apés haver freqiientado os fundadores dos diversos patadigmas de pesquisa e de pensamento: Saussure, Hjelmslev, Peirce, Morris, Mounin, Barthes, Lévi-Strauss, Jakobson, Greimas, Eco. O estudante deve se exercitar em estabelecer pontes entre as teorias, com- preendendo como elas se completam, se contradizem, ou se ignoram. Porém, 0 objetivo deveria ser sempre o de buscar 0 modelo ou as propo- sigdes mais adequadas em fungio de sua propria concepgao da musica, de sua propria leitura critica da musicologia ¢ da avaliacao de suas neces- sidades. No que me concerne, optei muito cedo pelo modelo semiolégico tripartite de Molino. E este o modelo que vou export e completar aqui, de inicio, por um prisma puramente tedrico e depois propondo sua apli- cago a uma passagem musical. Nao imponho minha opgio a ninguém, mas estou pronto a defendé-la com vigor. De qualquer mancira, ha mui- to tempo tomei para mim a afirmacio do lingitista Emmon Bach: “Onde vive a controvérsia vive a ciéncia, e quando todos estivermos de acordo, este ser4 o sinal de que nossa ciéncia estara morta”. A semiologia estuda as formas simbdlicas Todo estudo semiolégico considera seu objeto como uma forma sim- bélica. “Forma” porque toda produgao humana, quer se trate ela de um enunciado lingiifstico, de uma obra de arte, de um gesto estético ou de uma acio social, tem uma realidade material. Se puder responder a al- guém, contemplar um quadro ou escutar uma sinfonia, admirar um dan- carino ou discutir sobre uma situagao sociopolitica, isto é possivel por- 2 Molino, Jean. Fait musical et sémiologie de la musique. Musique en jeu, n* 17, 1975, p. 37-62. 3 Bach, E. Linguistique structurelle et philosophie des sciences. Problémes du langage. Paris: Gallimard, 1966, p. 116-136, JEAN JACQUES NATTIEZ 10 que as produgées ¢ as agées humanas deixam vestigios matetiais. Portan- to, esses vestigios constituem formas simbédlicas porque sio portadores de significagées para aqueles que os produzem e para aqueles que os percebem. Ei preciso evitar aqui reduzir o termo “simbélico” ao sentido sinénimo de “alegérico”, que ele tem numa expresso como: “Uma mu- Ther com os olhos vendados ¢ uma balanga na mao é um simbolo da justiga”, ou ao sentido formal que ele toma no contexto da légica simbé- lica. “Simbélico” tem aqui uma significagao geral: uma forma simbélica remete a uma outra coisa diversa. E uma forma simbélica é feita de sig- nos: o signo, dizia Santo Agostinho, é qualquer coisa que é colocada no lugar de outra coisa para alguém. Aliquid stat pro aliquo. Esta é a propriedade de todo vestigio: se eu vir a impressao de um pé na neve diante de uma casa, posso imaginar, a partir disto, que um dos meus filhos j4 retornou ao lar; se sou um policial e sei que um crime foi cometido naquela casa, posso fazer hipdteses sobre 0 peso € 0 nivel so- cial do suspeito ao examinar a profundidade do vestigio, 0 tipo de calga- do que ele usava ete, Por remeter a qualquet coisa ausente, a pegada é um signo, produzido por alguém, intencionalmente ou nao, ¢ interpretado por outrem. Parece que os elementos de significagdo associados a uma forma, tanto pata o produtor quanto pata o receptor da forma simbélica, sio em nimeto ilimitado. Por esta tazo, prefiro tomar como fundamen- to de todo empreendimento semiolégico nao precisamente a concepgio do signo como unio de um significado e de um significante, proposta pelo lingitista genebrino Ferdinand de Saussure — que é razoavelmente estatica —, mas aquela do filésofo americano Charles S. Peirce, para quem © signo remete a seu objeto por intermédio de uma cadeia infinita de interpretantes, que sio, pot sua vez, portadotes de atomos de significa- Gio desencadeados pelo signo em sua designacao do objeto. A proposta de Peirce tem 0 mérito de ressaltar que a significacao de uma forma sim- bélica qualquer é especifica ¢ nao deve ser confundida com as significa- goes da linguagem verbal, como é perigosamente sugerido pelos concei- tos de Saussure. Os signos, que constituem as formas simbélicas, remetem, portanto, a qualquer coisa distinta do proprio sign um sentimento, uma outra forma simbélica, Sob este aspecto, a nogio de um objeto, uma idéia abstrata, signo e a universalidade do fendmeno de significagao so tanto fundado- res da hermenéutica quanto da semiologia. A hermenéutica € tao antiga JEAN JACQUES NATTIEZ 12 quanto o mundo: ela é a disciplina que se prope, desde a Politica de Platio (é hermeneutiké techné), a interpretara significacio dos produtos e das acdes humanas. Um exemplo tipico de pratica hermenéutica é a exegese religiosa: Deus inspirou 0 texto sagrado, mas, para compreender sua mensagem, é necessario interpretar este texto, seja esmiugando ao infinito suas significagdes, como faz a teologia crist’, ou entao jogando com a ordem das letras e das palavras, como na exegese judaica. Mas também existe uma hermenéutica literaria, filosdfica, jutidica ete. O projeto semiolégico moderno nasceu bem mais tarde, com Saussure na Europa e Peirce nos Estados Unidos, a partir de duas tradiges filosé ficas diferentes. Porém, o que distingue, entre outras coisas, o projeto semioldgico da pratica hermenéutica é a intencio — no caso de Saussure, a0 colocar sistematicamente em relacio o significante com 0 significado e, em Peirce, o signo com as cadeias de interpretantes. Neste sentido, a semiologia tem uma dimensio muito mais formal do que a hermenéutica, porque lhe é necessario delimitar e definir sistematicamente quais sio os aspectos do objeto estudado que constituem a face material do processo semiol6gico de remissio, mesmo que, como mostrarei em obra em pre- paro, a andlise semioldgica inclua campos de investigacio reivindicados pela hermenéutica. Mas sera que a explicitagao dos clos entre signos e interpretantes sera suficiente para propiciar a um determinado empre- endimento semiolégico uma especificidade em relagio a hermenéutica? Nao ctreio. Existem diversos modelos do funcionamento semioldgico: translingiifstico, légico, psicanalitico, sociomarsista, estruturalista etc. Um modelo explica a natureza do processo pelo qual, na perspectiva de Peirce, um signo remete a seus interpretantes: a teoria semiologica tripartite de Molino é aquela que me parece ser a mais adequada para explicar o fun- cionamento simbélico das praticas e das obras humanas em geral e da muisica em particular, Em seguida, passo a explicar os seus principios. A concep¢io tripartite da semiologia Tomarei de Molino um exemplo particularmente evidente, pot cle uti- lizado quando das primeiras apresentagdes piiblicas de sua concepgio da semiologia na década de 1970. © MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 13 Trata-se de um jogo literario, praticado no século XVII, mas que nio deixaria de encantar os surrealistas. Tal jogo consiste em produzir um enunciado do tipo: A est para B assim como X esta para Y, utilizando tetmos tomados ao acaso. Poder-se-ia obter, assim (pratique 0 jogo vocé mesmo): O Rio esté para a Bahia assim como Mato Grosso esté para Mi- nas Gerais. A cultura esté para a geléia assim como as escovas de dentes estao para as lanchas. A semiologia esté para a antropologia assim como a lingtiistica esté para a musicologia. Fica evidente que estas frases sio mais ou menos absurdas, pois fo- ram enunciadas sem que se refletisse sobre o que elas querem dizer. Porém, além do fato de que pertencem 4 lingua portuguesa, é dificil sustentar que tais frases nao tenham sentido. Como elas sao construidas sobre o modelo de uma telagio légica clara, é sempre possivel a um Ieitor extrair, da infinidade de interpretantes que se pode associar a estas palavras, aqueles que, sendo comuns a estes termos, tomados dois a dois, permitirao a construgao de um patalelismo plausivel. Deixo aos leitores a tarefa de decidir que sentido (ou sentidos) desejariam dar a estes enunciados! Que conclusées semioldgicas podemos tirar deste pequeno jogo? a) A escolha dos quatro termos resulta do acaso. Portanto, nao existe aqui uma intengfo significante sustentando cada um destes enuncia- dos: do ponto de vista do emissor, estes enunciados nao tém sentido. Entretanto, eles foram produzidos segundo uma regra de jogo perfei- tamente explicita, sem a qual tais enunciados nao existitiam em sua realidade material. b) Todavia é possivel, do ponto de vista do receptor, attibuit um senti- do, ¢ até mesmo mais de um, aos enunciados produzidos. O sentido de um texto, ou mais exatamente a constelacdo de suas significagdes Possiveis, nao é, pottanto, a transmissao por um emissor de uma men- JEAN JACQUES NATTIEZ 14 sagem que seria em seguida decodificada por um “receptor”, ¢ sim a atribuig’o construtiva — e esta palavra é capital — de uma rede de interpretantes a uma forma: + por um emissor; + por um ou varios “receptores”; * ou pelos dois, nao havendo, porém, garantia de que as redes de interpretantes sero as mesmas a montante ou a jusante do texto. ©) Em face de uma coleg&o de enunciados produzidos segundo a regra indicada, porém sem conhecé-la, é possivel, nao obstante a arbitrarie- dade dos interpretantes que possam ser emprestados a eles, atribuir a esses enunciados uma descri¢do formal idéntica, e deduzir, apenas por meio de sua observacio, a formula: A esté para B assim como X esté para Y. Esta é, por conseguinte, a prova de que, mesmo no caso de uma auséncia intencional de significagio ou de um sentido absurdo, esses enunciados sio em todo caso analisdveis, a0 menos em parte, precisamente porque eles existem sob uma forma material. O exame desse pequeno jogo demonstra, portanto, que, do ponto de vista semioldgico, uma forma simbélica nao é constituida por um s6 ni- vel, mas por trés: a) A dimenséo poiética: mesmo que, como aqui, ela esteja destituida de qualquer significacao intencional, uma forma simbélica resulta de um proceso criador passivel de set descrito ou reconstituido; na maioria das vezes, 0 proceso poiético se faz acompanhar de significagdes que pertencem ao universo do emissor. b) A dimensio estésica: confrontados com uma forma simbdlica, os “te- ceptores” atribuem uma rede de significacdes, geralmente multiplas, a forma. Diante dos trés enunciados acima, eu criei uma rede pessoal de interpretantes para dar-Ihes um sentido. Os “receptores” nao recebem a significagio da mensagem (inexistente ou hetmética), porém eles a constroem num processo ativo de percep¢ao. ©) O nivel neutro: a forma simbélica se manifesta fisica e materialmente sob 0 aspecto de um vestigio acessivel 4 observacio. Trata-se real- © MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 15 mente de um vestigio, porque o processo poittico nao é imediatamen- te inteligivel nele: as vezes € preciso “sair” da forma simbélica para obter acesso a este processo. Para designar este vestigio, Molino pro- pés 0 termo controvertido de “nfvel neutro” — controvertido porque a palavra “neutro” leva a entender que o analista desse nivel seria “neu- tro” em relacao a seu objeto. Para evitar polémicas intiteis, chamei-o por vezes de “nivel material” ou de “nivel imanente”. B possivel pro- por uma descricao objetiva das configuragées desse nivel neutro, in- dependentemente dos interpretantes poiéticos ¢ estésicos agregados a cle. Este nivel é neutro porque, como objeto, ele tem uma existéncia material independente das estratégias de produgo que o originaram e das estratégias de percesao dele oriundas. A anilise do nivel neutro descreve a forma simbélica, independentemente das estratégias de produgao e das estratégias de percepgio do objeto estudado que lhe so agregadas, Juntamente com a andlise poiética € a anilise estésica, a andlise do nivel neutro é uma das trés opetacGes analiticas propostas no Ambito da concepgao tripartite da semiologia. Entre 0 processo poiético e o processo estésico existe, portanto, um vestigio material que nao é em si mesmo portador de significagdes ime- diatamente inteligiveis, mas sem o qual as significagdes ndo poderiam existir. Para que se possa estabelecer a que signos se relacionam as tedes de significacées, é preciso ser capaz de identificé-los, de delimité-los ¢ de descrevé-los. Por conseguinte, a semiologia nao ¢ a ciéncia da comunicagao. Ela é 0 estudo da especificidade do funcionamento das formas simbélicas, isto é, a analise da organizacio material de scus signos (a andlise do nivel (9 provocados por esses signos: essas neutro) e dos fenédmenos de remi: remissdes se repartem entre 0 pélo poiético € o pélo estésico. A anilise do nivel neutro descreve formas e estruturas mais ou menos regulares (tazfio pela qual seria preferfvel falar de quase-estruturas, nio obstante ser este um termo algo portentoso); as andlises poiéticas e estésicas des- crevem ¢ interpretam processos. JEAN JACQUES NATTIEZ 16 Esquematizacao das situagoes analiticas Poder-se-ia pensar que, usando uma terminologia diferente, Molino redescobriu o esquema clissico da comunicagio: Emissor ze Mensagem > Receptor Nio se trata disso. Além do mais, este esquema j4 foi abandonado pelos peritos da inteligéncia artificial em seu tratamento da linguagem. Crcio ser necessitio substitui-lo pelo seguinte: Processo poiético Processo estésico Emissor > Vestigio material € “Receptor” A diferenga pode parecer minima, mas a inversio do sentido da seta é essencial. Com efeito, na teoria de Molino, a) uma forma simbélica nio é intermediaria de um processo de “comu- nicagio” que transmititia a uma audiéncia significacdes intencionadas por um autor; b) cla é 0 resultado de um processo complexo de criagio (0 processo poiético) que diz respeito tanto a forma quanto ao contetido da obra; ©) €0 ponto de partida de um processo complexo de percepgio (0 pro- cesso estésico) que reconstréi a mensagem; @) enfim, os processos poiéticos e estésicos nao coincidem necessaria- mente. O poiético pode nfo deixar vestigios, discerniveis como tal, na forma simb6lica em si. Como afirma Molino, 0 poiético nao tem ne- cessariamente a vocagio para se comunicar. Em sentido inverso, 0 “receptor” projeta sobre a forma simbdlica configuragées indepen- dentes das estruturas criadas pelo processo poiético. Essa teoria nfio é uma negagiio da comunicagio. Ela é uma teoria do fancionamento simbélico que considera a comunicagio nada mais do (© MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL V7 que um caso particular dos diversos modos de troca, uma das conse~ qiiéncias possiveis dos processos de simbolizacao. Isto posto, como podemos considerar as relagdes entre os trés polos da triparticio semiol6gica? Proponho que se distingam seis casos de configuraces, que cortes- pondem a um igual ntimero de situagées analiticas. Vou detalh-las fa- zendo intervir, desta feita, diversas praticas da musicologia ¢ da anilise € comentando cada um dos scis esquemas seguintes: a) nivel neutro b) proceso poiético € _ nivel neutro poiética indutiva ©) nivelneutro > ~—_—processo estésico estésica indutiva d) processo poiético > nivel neutro poiética externa e) nivel neutro € proceso estésico estésica externa 1) processo poiético nivel neutro processo estésico CT comunicagao musical Na primeira situagio analitica (a) — andlise do nivel neutro, anilise imanente, anélise material — apenas as configuragées imanentes da obra sfio consideradas. Um exemplo tfpico é, sem diivida, a andlise do ritmo da Sagracao da primavera, de Stravinsky, pot Pierre Boulez: “Devo repe- tir aqui que nao tive a inten¢do de descobrit um processo de criagdo, mas apenas descrevet 0 seu resultado, sendo as telagdes aritméticas as Gnicas tangiveis. Se pude observar todas estas caracteristicas estruturais, foi por que elas ali se encontram, e pouco importa se foram utilizadas consciente ou inconscientemente (e com que grau de acuidade) no seio da inteligén- cia da concepgao ou, ainda, com que interferéncias entre o trabalho e a JEAN JACQUES NATTIEZ 18 genialidade”.* Aqui, o poiético foi claramente preterido em favor das con- figuracGes estruturais. E fica evidente que, em seu detalhamento, essas relaces, trazidas 4 luz pelo autor, nio podem a priori ser consideradas como pertinentes em termos estésicos ou, pelo menos, nao integralmen- te. A set-theory de Allen Forte® se constitui também numa anilise de nivel neutro da misica atonal. A proposigao da andlise do nivel neutro sofreu forte resisténcia. Para~ doxalmente, ela é, de fato, praticada por 90% dos analistas musicais, por- que estes, muito raramente, colocam em relagdo as configuracdes imanentes da obra com as estratégias composicionais e as estratégias perceptivas. Como diz Molino, com humor, nfo é o nivel neutro que é recusado pelos musicdlogos, e sim a triparti¢fo, isto é: a necessidade de pensar trés niveis 20 mesmo tempo. Existe algo mais dificil do que o pensamento contrapontistico? Dou 4 segunda situagao analitica o nome de andlise poiética indutiva. Parece-me ser esta uma das situagdes mais freqiientes da andlise musical: a quantidade de procedimentos recorrentes que se observa em uma obra ou em um conjunto de obras é tal que custa a crer “que 0 compositor nio os tenha pensado”. Inversamente, o musicdlogo pode proceder a partir de um documen- to externo 4 obra (cartas, projetos, esbogos), com a ajuda do qual inter- preta do ponto de vista poiético as suas estruturas, dai o nome poiética externa. Este € 0 processo usado com mais freqiiéncia pela musicologia historica. Idas e vindas podem ocorrer entre a poiética indutiva ¢ a poiética externa. Por exemplo: as vezes a hipétese poiética do analista ¢ confir- mada pelos dados fornecidos pela tetceira situagio analitica; outras vezes a andlise poiética indutiva revela estratégias poiéticas que a andlise exter- na nao havia posto em evidéncia. Mutatis mutandis, vamos teencontrat estas duas situagdes no campo estésico. Tal como a poiética indutiva, a estésica indutiva constitui igualmente © caso mais freqiiente na andlise musical. Ela consiste em elaborar hipd- + Boulez, P. Relevés d’apprenti, Paris: Seuil, 1966, p.142. * Forte, Allen. The Structure of Atonal Music. New Haven and London: Yale University Press, 1973. © MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL. oti] teses sobre a maneira pela qual uma obra é percebida, tomando por base a observacao de suas estruturas. Na grande maioria das andlises que se consideram pertinentes do ponto de vista perceptivo, o musicdlogo se assume como uma espécie de consciéncia coletiva dos ouvintes ¢ decreta ‘que é isto 0 que se ouve”. Este tipo de andlise se funda na introspec¢io perceptiva, ou ainda sobre um certo niimero de idéias gerais que se possa ter a proposito da percepcao musical. Inversamente, pode-se partir de informacSes colhidas com os ouvin- tes para tentar saber como a obra foi percebida, razdio pela qual Ihe de- mos o nome de andlise estésica externa — fundado atualmente no que se denomina psicologia cognitiva ~, que se enquadra nesta quinta situagao. ‘Assim como existem idas ¢ vindas entre a poiética indutiva e a poiética externa, estas também ocorrem entre a estésica indutiva ¢ a estésica ex- terna: os experimentos dos cognitivistas vem confirmar as hipoteses pro- postas por analistas que, como Meyer’ ou Lerdahl Jackendorf,’ propoem tuma andlise das estruturas pertinentes do’ ponto de vista perceptivo; € a partir de tais formulacées tedricas que as experiéncias podem ser empre- endidas. 'A tiltima situacio analitica corresponde & comunicagao musical pro- priamente dita, Em tal caso 0 analista considera que sua andlise imanente € to pertinente para o poiético quanto pata O estésico. A teoria de Schenker é um bom exemplo disto, pois o autor pretende se apoiar nos esbogos de Beethoven para afirmar que suas andlises indicam como as obras devem ser tocadas e percebidas. Sem dtivida, neste caso especifico, a estésica indutiva de Schenker é normativa. Trés esclarecimentos a propésito do modelo semiolégico tripartite Para que a relacio entre os trés pélos seja bem compreendida, con- vém esclarecer trés problemas que sao freqiientemente objeto de davida, “Meyer, Leonard. Explaining Music. Berkeley-Los Angeles: University of California Press, 1973. > Lerdahl, Fred & Jackendorf, R. A Generative Theory of Tonal Music. Cambridge: The MIT Press, 1983. JEAN JACQUES NATTIEZ 20 notadamente em razao de sua especificidade musical, e que se referem ao status e a0 lugar da percep¢o neste modelo. 1) O primeiro diz respeito 4 posigdo do analista ou do musicdlogo em face desses esquemas. Seu discurso abrange 0 poiético, o nivel neutro € 0 estésico. Porém, ele proprio se encontra em posi¢ao estésica em relagio a0 que estuda: Metalinguagem Objeto +{ |« Poiético Nivel neutro Estésico Exemplo 2 Em posigio estésica porém num segundo nivel, de carater meta- lingiiistico. Esta diferenca é consideravel, porque no podemos confun- dir 0 processo de percepgao em tempo real dos ouvintes — que é 0 objeto da anilise estésica propriamente dita ~ e o processo perceptivo pelo qual © musicélogo tem acesso a seu objeto, idéntico ao de qualquer outro pesquisador cientifico. A dificuldade no campo musical advém de que o discurso do analista deve simular, a fim de descrevé-los e explicd-los, condutos de produgio de execugao ¢ de recepeio cujo objetivo é levar a percepgfio de um vestigio sonoro. Ha uma grande diferenca entre a per- cepgio de um fenémeno natural por um fisico — o sistema solar nao foi criado para ser percebido — ¢ a percepgao de um fendmeno musical: 0 que seria uma obra que nao pudesse ser musicalmente percebida? O fato de que a petcepco do musicdlogo nfo pode ser confundida com a per- cep¢ao natural dos ouvintes é uma das razdes que tornam necessfria a andlise do nivel neutro. 2) A segunda confusio provém do papel da percepgio no préprio mo- delo tripartite. De minha parte, prefiro, sistematicamente, falar antes de “estésico” do que de “percepcaio”, porque o compositor percebe, ele mesmo, a musica que produz durante o processo criativo — seja por tentativa e etro quando compée ao teclado, seja fazendo uso da- © MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL on 3) quilo que Varése chamava, tZo apropriadamente, “o ouvido interior”. Nio € este o tipo de percepgio tratado pela anilise estésica, porque a percepsao particular do compositor nao deve ser confundida com a percep¢ao em tempo real dos ouvintes. O compositor pode até fazer previsdes sobre a mancira pela qual sua obra sera ouvida, mas as estra- tégias perceptivas especificas dos ouvintes poderao acabar por frustra- las. E por esta raz’o que a imaginacio perceptiva do compositor per- tence, de fato, ao processo poiético. O terceiro problema, que estd longe de poder ser negligenciado, refe- re-se ao lugar do intérprete — cantor, instrumentista ou regente — den- tro do esquema tripartite. Consideto que, dentro da tradi¢ao musical do ocidente, é a partitura que permite ao compositor transmitir a sua intengiio composicional (isto é, a rede de relacées entre os elementos que compéem a obra: alturas, ritmos, harmonias etc.); é igualmente a partitura que permite 4 obra existir com sua propria identidade: a0 transcender as quinhentas ou sciscentas versdes diferentes, registradas em gravacio, da Quinta Sinfonia de Beethoven, é, de fato, a partitura que garante a existéncia de uma entidade “quinta sinfonia”. B claro que, quando a partitura no garante essas relages de identidade, como no caso de certos aspectos da musica antiga e do barroco, ou no caso bastante complexo das misicas de tradi¢io oral de que nao tratarei aqui, a andlise do nivel neutro deve se basear em algo que nfo a parti- tura: é preciso substitui-la por uma notagio descritiva concebida para a analise. Mas, no contexto da miisica ocidental, 0 intérprete é mesmo alguém que interpreta, no sentido hermenéutico do termo, esse vesti- gio que é a partitura. Por conseguinte, se couber, em determinada andlise, que sejam levadas em consideracio as opcdes especificas de um intérprete, penso que estas devem fazer parte da andlise estésica. O modelo semiolégico como quadro critico e como programa de trabalho Note-se que, ao fazer uma sinopse do que acredito serem as seis gran- des situagées da andlise musical do ponto de vista da triparticao, eu tomei os meus exemplos nao das anilises de inspiragdo semiol6gica, mas JEAN JACQUES NATTIEZ 22 da literatura musicoldgica corrente.* Com efeito, uma das primeiras coi- sas propostas pela semiologia musical é um quadro critico para as andli- ses musicais existentes. Os seis esquemas desenham uma geografia das andlises que permite definir 0 alcance real de uma determinada anilise. A despeito das pretensGes holisticas da triparticao, so de fato os limi- tes da anlise musical que delineiam as seis situagdes analiticas propostas. De um ponto de vista mais positivo, esse quadro permite determinar, para uma dada anilise, qual é a sua pertinéncia, E ainda mais importante f2zé-lo quando as circunstancias — auséncia de informac6es ou de conhe- cimentos especificos, falta de ferramentas metodol6gicas apropriadas — impedem, por vezes, empreender o tipo de andlise que a tazio ou os enigmas exigem. Sio muitas as obras para as quais nao dispomos de es- ‘bocos; a psicologia cognitiva nao dispée ainda de protocolos de experi- éacia aptos a conhecer a exata natureza perceptiva de todas as configura- Ges musicais. FE o que, entre outras coisas, vai mostrar um exemplo empirico de anilise. Deixando de lado o modelo tripartite como instrumento critico, vou tentar mostrar algumas das remissGes presentes nos quinze primeitos com- passos da Cathédrale Engloutie, de Claude Debussy. Existem diversas dimensdes semiol6gicas numa obra musical: + As remiss6es intrinsecas, isto é, aquelas pelas quais as estruturas mu- sicais remetem a outras estruturas musicais (“A musica é uma lingua- gem que se significa a si mesma”, disse Jakobson,’ dentro de uma perspectiva tanto estruturalista quanto formalista), aquilo que certos autores chamatam de relagées de sentido em miisica. Podemos, por sua vez, dividir as remissOes intrinsecas em duas categorias: + as remissdes de unidades a unidades, que chamatei de taxionémicas, + as remissGes descritas pelo modelo prolongacional de Schenker’ ou pelo modelo implicacional-realizacional de Meyer," que cha- marei de Jineares. Para uma ilustracao sistemitica de um exame critico e aprofundado de diferentes mo- delos de anilise de um texto musical (0 tema da Sinfonia em sol menor, K.550, de Mozart), cf. Nattiez, JJ. “A Comparison of Analysis from the Semiological Point of View”, Contemporary Music Review, vol. XVII, parte 1, 1998, p. 1-38. * Jakobson, R. Essais de linguistique générale Il. Paris: Editions de Minuit, 1973, p. 99. ™ Schenker, Heinrich. Der Freie Satz. Wien: Universal Edition, 1935, © Meyer, L. Explaining Music Berkeley-Los Angeles: University of California Press, 1973. (© MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 23) Profondément caime (dant une brume doucement sonore) Exemplo 3 * Hf ainda as remissées extrinsecas, estudadas pela semantica ¢ pela hermenéutica musicais, pelas quais a musica remete ao mundo em seus aspectos os mais diversos: os objetos, 0 movimento, o tempo, os sentimentos, mas também 0 sécio-histérico, o ideolégico, 0 filo- sofico etc., ¢ que so da alcada daquilo que denominamos geral- mente o campo das significagoes. No ambito deste artigo ilustrarei em detalhes como o modelo semiol6gico tripartite se aplica ao dominio das remissdes taxiondmicas. JEAN JACQUES NATTIEZ Em uma secio final, darei um resumo do funcionamento semiolégico das remissdes lineares. Deixarei de lado as dimensdes semanticas ¢ hermenéuticas, que ja foram objeto de um estudo profundo realizado para este preltidio por Michel Imberty.'” Uma anilise semiolégica tripartite das remissdes taxionémicas a) Andlise do nivel neutro. Comecemos por uma anilise do nivel neutro. Esclareco de saida que se pode langar mao de varios modelos analiticos para descrever as rela~ des entre as configuragées constitutivas da obra. Por evidentes razGes de espaco, ¢ para fins de demonstra¢o, apenas irei privilegiar um deles, 0 modelo paradigmatico que historicamente se acha ligado ao inicio da semiologia musical na década de 1960. Inspitando-se tanto nas andlises do mito por Lévi-Strauss quanto nas anilises de poemas por Jakobson, Ruwet" propés decompor uma linha monédica em unidades, de modo a por em evidéncia as suas relagdes de repeticio e transformacao. Como no exemplo canénico de um Geisslerlied do século XIV:"* Imberty, M.. La Cathédrale engloutie de Claude Debussy: de Ia perception au sens. Canadian University Music Review / Revue de musique des universités canadiennes, vol. VI, 1984, p. 90-160. ® Ruwet, N.. Langage, musique, poésie, Paris, Scuil, 1972. Reese, G.. Music in the Middle Ages. Londres: Dent and Sons, 1940, p. 239. © MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 25 ‘Ao se atribuir a tarefa de reescrever a peca da esquerda para a direita e de cima pata baixo, de modo a colocar em evidéncia, sobre eixos paradigmaticos, as repetigdes ¢ transformagoes, obtém-se um quadro como este, que comporta igualmente uma hierarquizagao das unida- ides; Exemplo 5 Aplicando o mesmo principio aos quinze primeizos compassos de La Cathédrale, fazemos apatecer duas grandes familias de associacoes paradigmaticas: + por um lado, a ocorréncia de acordes de quintas e de quartas superpostas, no inicio dos compassos 1, 3, 5, 13, 14 e, na mio es- querda, no compasso 15 (nao vamos nos deter nesse ponto); + por outro lado, a “paradigmatizagio” dos compassos 1, 3 5-6 poe em evidéncia um motivo 1, rémi-si, Este motivo sera objeto de uma série de transformagées: Ruwet, 1972:116. JEAN JACQUES NATTIEZ 26 1) Desde os dois tempos iniciais do primeiro compasso hé a transferén- cia do motivo a uma oitava ¢ a supressfo de sua Ultima nota, a qual, nos compassos 5-6 € seguintes, se transforma num pedal de mi: Exemplo 6 2) Nos compassos 2, 3 ¢ 13, 0 motivo é invertido (ré-soL-f) ¢ transposto (d6-fi-mi, mi-si-ré-d6): Exemplo 8 © MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 27 3) Nos compassos 14 ¢ 15, a interrup¢io inicial, ao final do compasso 1, é completada por uma sucessao ascendente: rémi-si-ré-mi, seguida de uma sucessio descendente si-mi-ré-si-mi-ré Exemplo 9 4) O motivo 1, r&misi, é também objeto de transformagées no seio da- quilo que certos analistas, com ou sem razio, denominam o tema des- ta peca, uma melodia que se desenvolve do compasso 7 20 13. E pos- sivel propor sua andlise paradigmatica: Ela mostra que, de um lado, o motivo 1, constituido por uma segunda e uma quinta ascendente (ré-mi-si), se transforma num motivo 2, cons- titufdo por uma segunda e uma quarta ascendente (do#-ré#-solit; sol¥#- Léi#-ré#), e, por outto lado, que cada unidade desse eixo paradigmati- co é precedida pot uma terca descendente: mi-do#, si-soli#. JEAN JACQUES NATTIEZ 28 5) A varredura paradigmatica da primeira pagina faz ainda surgir uma outra ocorréncia do motivo 1, rémi-si, aquela que delineia a nota su- periot dos acordes iniciais dos compassos 1, 3 ¢ 5 (ré), 0 pedal de mi (compassos 5-6 a 13) ¢ a nota superior do acorde inicial do compasso, 14, si, Por oposigio a0 motivo rémi-si do ptimeito compasso, que denominarei “microestrutura”, vou designar a ocorréncia “estendida” do motivo como uma “mactoestrutura”. Por que o inventatio sistematico das relacdes entre as diversas ocor- réncias do motivo rémi-si ¢ suas transformacées se constitui numa ana- lise do nivel neutro? Porque, justamente, ela descreve relagdes de estrutu- tas, mas jamais se pronuncia sobre a pertinéncia poiética ou estésica dessas relages. Para fazer isto é necess4rio empregar outras ferramentas. b) A andlise poiética indutiva. Vejamos de inicio 0 que seria isto, do ponto de vista poiético, e come- cemos por uma andlise poiética indutiva. Poderia eu fazer uma hipétese quanto & pertinéncia composicional dessas relacées? Em todas as ocasi- Ses em que apresentei essa andlise em conferéncias, jamais encontrei al- guém que duvidasse, por um s6 instante, que Debussy nao tenha pensa- do e desejado as diversas transformacées do motivo 1, ¢, em particular, a ligacao entre o motivo em seu aspecto microestrutural (no compasso 1, por exemplo) e seu estiramento macroestrutural nos compassos 1, 3, 5- 13 e 14. Por qué? Simplesmente, porque a configuracao segunda + quin- ta ascendente € por demais especifica para que sua presenca nessa pagina seja resultante do acaso. Aqui, a andlise poiética indutiva revela as intengdes composicionais pensadas!®, (Nao quero dizer com isso que a empreitada poiética nao deva se interessar pelos processos composicionais inconscientes, mas este é um problema assaz complexo que nao posso abordar aqui.) Se insisto na dimensio intencional da estratégia poiética acima descrita (ligacio entre repeticdes ¢ transformacdes e o elo entre uma microestrutura ¢ uma macroestrutura), € porque tem sido muito repetido apds Wimsatt e * NT: No texto original: “intentions compositionnelles réalisées”, expresso cunhada por Célestin Deliége para designar aquelas inten¢des do autor cujos vestigios podem set encontrados na obra, O MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 29 Beardsley, passando por Barthes, e com 0 endosso musicolégico de Meyer, entre outros, que é preciso desconfiar da “ilusdo intencional”. Na reali- dade, quando a anélise poiética se situa nesse nivel, ela pode conseguir, como no caso em questo, por o dedo sobre as intengGes; entretanto, para fazé-lo, ela precisa apresentar argumentos. O primeiro é de ordem estrutural (tornar evidentes as telagdes); o segundo € de cardter estatisti- co (tais relagdes sio por demais numerosas para que sejam frutos do acaso); 0 terceiro é de ordem estilistica (essas relagdes sao demasiado especificas pata que no tenham sido desejadas). Este tltimo argumento é de grande importancia: cle se baseia implicitamente na colocacio em série. Com efeito, € porque comparamos, sem nos darmos conta, essa configuragio de alturas ¢ intervalos com outras bem mais comuns ~ como, por exemplo, o arpejo dé-mi-sol — que a especificidade desse ré-mi-si adquire uma pertinéncia poiética. Tomarei um exemplo contratio para demonstrar que nem tudo aquilo que a anilise de nivel neutro coloca em evidéncia é pertinente para o poiético. O paadigma do “tema” (ex. 10) destaca uma terca descendente como componente estrutural desse tema. Esta tetca pode ser posta em relagio paradigmatica com a descida compreendida no ambito de uma terga que pode ser observada nos baixos dos compassos 1 a 5 (sol-fa-mi), ecom o prosseguimento desta descida nos compassos 13 e 14 (mi-ré-do). Tudo isto pode ser sempre ptoposto pela andlise paradigmatica como uma observagio estrutural ¢ relacional; todavia, seria ela correspondente a uma intengao poiética de Debussy? Hesitamos em responder exata- mente porque um intervalo de terga é um fendmeno bem pouco especi- fico (diferentemente da conjungao de segunda + quinta do motivo) e porque nfo vemos o que poderia levar Debussy a pensar uma relacao entre midé# e sol-fi-mi, 20 passo que a relacao entre uma microestrutura e uma macroestrutura pertence ao estoque possivel das estratégias composicionais. Vé-se claramente 0 que distingue uma anilise do nivel neutro de uma analise poiética. A anilise do nivel neutro é descritiva; a andlise poiética € interpretativa: ela atribui uma pertinéncia a um fendmeno das estruturas que ela interpreta poieticamente. Ocorre que para levar a bom termo esta interpretagio faz-se necessdrio dispor de uma teoria poiética, explicita ou implicita. Mas € melhor que seja explicita — aquela a qual recorro aqui é, a0 mesmo tempo, estrutural, estatistica e estilistica. JEAN JACQUES NATTIEZ 30 c) A andlise poiética externa, Evidentemente, desejarfamos ver esta hipdtese, fornecida pela anilise poiética indutiva, confirmada pela investigacao poética externa. De fato, existe um manusctito de La Cathédrale, de resto facilmente acessivel na colecio Dover, que, entretanto, nao nos informa rigorosamente nada em relacdo a este poblema especifico. Além disso, nenhum esboco de La Cathédrale nos chegou as mios. Quer isto dizer que nao existe documento algum de carater externo relativo a esta obra? Sim, a gravagao pelo proprio Debussy, ao piano Welte- Mignon, de La Cathédrale (Bellaphon 690-07-011). Ela de nada nos ser- ve no que se refere a relaciio entre micro e macroestrutura. Em compen- sacao, esclarece uma ambigiiidade muito importante da partitura, ou seja, a enigmatica indicagao métrica 6/4 = 3/2 no inicio da obra. A gravacio estabelece de maneira indubitavel que os compassos em 3/2 (compassos 7. 12) nao devem ser tocados no mesmo andamento que os compassos em 6/4 (minima = minima), como faz a maioria dos intérpretes da pega, mas que a minima na base dos compassos em 3/2 deve ter a mesma duragio que a minima na base dos compassos em 6/4 (seminima = mini- ma). Tais indicagdes foram evidentemente registradas na edicio critica de Roy Howatt. A investigagio filolégica permite esclatecer 0 poiético."” Esta informagao confirma a adverténcia que acabei de fazer: mesmo que se possa esperar que uma informacio poiética externa venha confir- mar as hipéteses do procedimento indutivo, a documentagao de que dis- pomos nem sempre nos permite atender a esta exigéncia. Pelo contrario, é preciso tet sempre em mente que tanto a poiética indutiva quanto a poiética externa sao igualmente necessdrias. Porque quando elas nao se reforcam mutuamente, elas se completam ao abranger aspectos diferen- tes da obra: no caso do enigma métrico, por exemplo, a anilise de nivel neutro em nada esclareceu o significado dado pelo proprio Debussy a seu 6/4 = 3/2. E se insisto particularmente sobre esta complementaridade, € porque ela traz a baila as barreiras institucionais que a histéria particu- lar da musicologia ¢ da anélise musical erigiu entre as especialidades de nossa disciplin: 1 a poiética indutiva é, sobretudo, um assunto dos music NT: O autor utiliza 0 termo investigasdo filolégica no sentido lato, referindo-se aqui a0 “texto” musical, O MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 31 theorists, enquanto que a pesquisa de uma gravacio de Debussy diz res- peito as atividades do historiador. Um dos objetivos do modelo tripartite da semiologia musical é 0 de contribuir para a unidade da musicologia. d) A anilise estésica indutiva. Voltemo-nos agora para o lado do estésico. B certo que a percep¢io do musicélogo interveio para estabelecer as relagdes de repeti¢ao ¢ de transformagio entre as diversas manifestagdes do motivo rémi-si, mas nao podemos considerar que esta petcepgao, realizada no siléncio do gabinete de trabalho, com a possibilidade de multiplos retornos a partitu- ra, i gravagio € ao piano, correspondam 4 percepcao em tempo teal dos ouvintes, que a analise estésica tenta capturar, Tal como para a andlise poiética indutiva, se queremos atribuir uma pertinéncia estésica as obser- vagoes da andlise do nivel neutro, e proceder a uma andlise estésica indutiva, é preciso dispor de uma teoria estésica, Ocorre que, para aquilo que ele chama as “relagdes de conformidade”, que correspondem mais ou menos as relacdes evidenciadas pela andlise paradigmatica, Leonard Meyer propés em sua obra Explaining Music a seguinte formula, entre outras: regularity of individuality similarity of STRENGTH OF pattern (schemata) * of profile patterning PERCEIVED = CONFORMANCE variety of intervening temporal distance events between events Em outras palavras, quanto maior for a variedade de eventos intervenientes € maior for a separagio no tempo entre dois eventos compardveis, tanto mais manifesta teré de ser a forma do modelo para que uma relagao de conformidade seja percebida. Ou, colocando a questao de modo inverso: quanto mais regular ¢ particular a configuracio (e, naturalmente, quanto mais parecidos sejam os eventos quanto a intervalo, ritmo etc), maior poderd ser a separacao temporal entre 0 modelo e a variante, ¢ maior a variedade de motivos intermediatios permitindo reconhecer ainda uma relacao de conformidade. O interessante nessa f6rmula é que ela inventaria, acima da linha, os fatores positivos e, abaixo, os fatores negativos. Nao se trata de um ins- trumento formal — que nos diria, com toda a certeza, que, em tal caso particular, a regularidade do esquema o transporta através da distincia entre os eventos considerados, ou inversamente. Ao contrario, trata-se de uma proposigio que deve ser utilizada qualitativamente. JEAN JACQUES NATTIEZ 2) Portanto, no caso das relagdes postas em evidéncia pela anlise paradigmatica de La Cathédrale, a distancia entre 0 primeiro motivo e sua repeticao imediata, mesmo sem a tiltima nota, é muito provavelmen- te apreendida (similatidade de configuracio, auséncia de eventos entre as duas ocorréncias). Por outro lado, a distancia entre o compasso 1 € os compassos 14 ¢ 15 permite perceber 0 movimento descendente do mo- tivo como 0 fechamento, a “resolugao” da suspensio sobre o mi, criada desde o final do compasso 1? Pode-se pensar, neste caso, que a repeticio da suspensio (final dos compassos 3 ¢ 5), 0 prolongamento do mi por seu ostinato entre os compassos 5 e 13, mantém o fio entre o compasso 10 14, onde o mié, por fim, encadeado ao siagudo inicial do compas- so 15. A similaridade da configurago também é, sem divida, relevante. F possivel perceber a ligacao entre o ré-mi-si inicial e sua transfor- maco no compasso 2, a outra transformacdo, nos compassos 7-8, ¢ 2 macroestrutura que atravessa a pagina? Isto é, a priori, bem mais duvi- doso. No caso da ligagao rémi-si / ré-sol-f4 / mi-si-ré-d6, a individua- lidade do perfil se perde, e entre os compassos 2 ¢ 4, por um lado, ¢ os compassos 13-14, pelo outro, a distancia é, sem divida, muito grande. Entre ré-mi-si e dé# -ré# - sol# (comp. 7-8), receia-se que a integracao do motivo na continuidade do “tema” torne difusa toda ¢ qualquer regularidade esquemética; por outro lado, a individualidade do perfil (segunda-quarta/quinta, sempre ascendentes) é mantida. Enfim, no caso da relagao entre micro e macroestrutura, a grande variedade dos ele- mentos intervenientes entre as trés ocorréncias do ré (compassos 1, 3 ¢ 5), durante 0 ostinato do mi (comp. 5-6 a 13) e 0 afastamento entre o si do compasso 14 e os enunciados iniciais do motivo 1 (comp. 1,3 ¢ 5), nos obtiga a fazer sérias resetvas quanto pertinéncia estésica dessas relagdes. Essas observacdes mostram, ainda mais uma vez, a legitimidade da analise do nivel neutro, de vez que, se essas relagdes nao sao percebidas, foi justamente gracas a uma anilise anterior de nivel neutro que se tor- nou possivel estabelecer a sua pertinéncia poittica. A anilise estésica indutiva, aqui baseada sobre a teoria de Meyer (po- der-se-iam invocar outras teorias), permite estabelecer uma espécie de hierarquia dentro da plausibilidade de sua pertinéncia estésica: uma cer- teza quanto 4s relagdes no seio do compasso 1; uma quase-certeza quan- to 4 relacio entre o compasso 1 € os compassos 14-15; uma hesitacio © MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 33) quanto 4s transformagées dos compassos 2 € 4; ¢, no tema, uma grande divida quanto as relages entre micro e macroestruturas. ¢) A andlise estésica externa. Torna-se claro que apenas a andlise estésica externa permite verificar essas hipoteses. A despcito de seu grande desenvolvimento atual, a cién- cia cognitiva ainda no esta plenamente equipada para responder as ques- tes sugeridas da anilise estésica indutiva. Crici um roteiro de experiéncia que, mesmo nfo sendo perfeitamente ortodoxo segundo os cinones da psicologia experimental, me parece capaz de verificar se a relacio entre rémi-sie suas diversas transformagoes € percebida. ‘A experiéncia se realiza em quatro etapas com um grupo de misicos: 1) Pede-se aos misicos para responder 4 questao: “Existe um motivo que seja reencontrado ao longo de todo este trecho?” Em caso afir- mativo, “qual?” Em seguida sfo escutados os quinze primeiros com- passos. Logo apés, pede-se aos ouvintes que esctevam numa folha em branco, grafando as notas musicais ou esctevendo os seus nomes, 0 motiyo em questao. 2) Toca-se a0 piano o motivo ré-mi- vo aparece no inicio da peca? (Toca-se 0 primeiro compasso.) Vocés 0 i. Segue-se a pergunta: “Este moti- reencontram em outto lugar além deste? De forma idéntica? Trans posto? Transformado?” O grupo responde por escrito, sem ter ouvi- do novamente o trecho. 3) A mesma pergunta é feita apés uma segunda escuta. 4) A mesma pergunta é repetida apés ter sido distribuida ao grupo a partitura, Pede-se-lhes que marquem com um cfrculo as ocorréncias do motivo em questio. Em seguida, pergunta-se se alguém do grupo ja analisou ou tocou ao piano a peca. Publicarei em outro local os resultados, estatisticamente detalhados, desta experiéncia, que foi levada a cabo com grupos de cerca de trinta pessoas, em seis cidades. Os resultados foram espantosamente conver- gentes: * tanto a relacio entre o motivo do inicio e sua repeticao 4 oitava, como sua “completude” nos compassos 14-15, é percebida pela grande maioria do grupo; JEAN JACQUES NATTIEZ 34 + um bom ntimero dos participantes identificou 0 retorno do moti- vo no seio do “tema”, na forma “encolhida” dé#-ré#-sol#, + aligac4o entre o motivo inicial e suas transformagdes nos compas- sos 2, 3 ¢ 13 é raramente percebida; * a relacao entre a macro ¢ a microestrutura foi notada excepcional- mente, ¢ apenas na etapa de sua identificagao na partitura, pelas pessoas que ja conheciam a peca e/ou eram altamente versadas na pratica da andlise musical. Portanto, pode-se afirmat que a relacio entre a micro ¢ a mactoes- trutura sé é pertinente do ponto de vista poiético. 6) A anilise comunicacional. Como se vé, passamos, até aqui, através das cinco primeiras situacdes analiticas derivadas do esquema tripartite da semiologia musical. A sexta situagdo nos permitir4 responder a questao: qual é 0 status da comunica- cao musical na Cathédrale Engloutie? Fago, inicialmente, uma observacgao importante. No decorrer deste texto, estudei apenas um aspecto dos quinze primeiros compassos da obra: 0 motivo ré-mi-si e suas transformacées. Para esta dimensao em particular, ficou estabelecido que: * a pertinéncia poiética do intetvalo de tetga descendente poderia ser suspeitada, enquanto que as relagdes entre as transformacdes do motivo 1 eram pertinentes sob o ponto de vista poiético; + as cinco familias de relacdes transformacionais estabelecidas pela andlise do nivel neutro correspondiam a niveis perceptivos distin- tos, indo da relacio percebida 4 relagio nao percebida. Isto significa que nfo se pode abordat o problema da comunicacio musical tomando a obra em sua totalidade, mas sim pardmetro a paraémetro. Isto é decisivo, tanto do ponto de vista metodologico quanto do ponto de vista téorico. Nao se pode afirmar que as estratégias criati- vas de um compositor sejam globalmente acessiveis, ou inacessiveis, 20 ouvinte, Elas o sao parcialmente, conforme modalidades proprias a cer tas familias de fendmenos, o que € necessirio distinguir no curso do pro- cesso analitico. O MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL 35 As remissées lineares em La Cathédrale Engloutie E claro que a demonstracao a propésito do motivo ré-mi-si esta muito longe de cobrit 0 conjunto de La Cathédrale, Primeiro, porque me limitei a um s6 fenémeno esttutural; depois, sobretudo porque considerei, até o momento, apenas um tipo de remissio: aquele que podemos verificar ¢ perceber de uma unidade para outra. No nivel das relacdes intrinsecas, gostaria de fornecer algumas indicacdes em relacdo 4 questo da andlise das relagées lineares. Empregarei aqui o modelo “implicacional- realizacional” de Meyer. A partir das idéias fundamentais de Schenker, que analisava a conduta harménica das vozes em termos de prolonga¢io, Meyer mostra que determinadas notas fazem esperar cettos compotta- mentos melédicos que se realizam desta ou daquela maneira. Vamos ima- ginar que se cante um dé seguido do mesmo dé uma oitava acima. O que vita depois? Uma descida em diregio 4 tonica inicial é bem provavel: l-sollé-sol-fa-mi-fé-mi-ré-do. Para os primeitos quinze compassos de La Cathédrale, é possivel por em evidéncia diversas relagdes de prolongagao e de implicacao: ov ee ee re | w Exemplo 11 Para explicar 0 motivo rémi-si, nao basta identificar as suas repeti- gGes e transformagées. Este motivo tem também uma estrutura melddi- ca propria (linha 3), De safda, sua terceira nota, o si, que se encontra sobre o segundo tempo do compasso em 6/4, adquire um peso ligeita- mente maior que as duas primeiras notas. O movimento ascendente e o intervalo de quinta entre 0 mie o si ctiam o que Meyer denomina um gap, um buraco, que devera ser preenchido. Este si adquire uma impor- tancia ainda maior porque esta ausente do primeiro tempo do compasso. JEAN JACQUES NATTIEZ 36 2, quando a repeticio do motivo se faz esperar. B somente no compasso 15 que esta espera é atendida, porém de maneira insatisfatéria, porque Debussy escolheu, para preencher o gap (ou o que Meyer denomina fill the gap), 0 tetorno em espelho do motivo do compasso 15 (si-mi-ré-si- mi-ré. Apenas 0 estudo de toda a pega permitiria dar conta da sorte reservada aos prolongamentos do sie suas transposicées. Todavia, pode- mos dizer que é no compasso 85, cinco compassos antes do fim da pega, que este sileva a um sol dominante, completado no baixo pela tonica dé (no terceiro tempo do compasso 86), com uma etapa intermedidria no compasso 28, que, entretanto, nao se realiza na continuidade do motivo rémi'si, porém naquela do motivo sob-lé-ré. O desfecho do motivo, no compasso 5, sobre um pedal de my (com- passos 5 a 13) surge como uma prolongacio do segundo mi do compas- so 1 € de seu retorno no compasso 3 (linha 2). O “tema” dos compassos 7 a 13 exerce, entao, a fungao de parénteses no interior daquilo que acaba de ser posicionado. Este desfecho apresen- ta, por sua vez, um sistema de prolongacées e de implicagées cujo detalhamento é mostrado no exemplo abaixo: Exemplo 12 Ele leva novamente a um si, de modo que nao houve progresso algum em relago a0 motivo inicial ré-mi-si, a no ser o de preencher as expec- tativas ctiadas ao final dos compassos 1 ¢ 3 (linha 2). Este sido compasso 13 junta-se de fato a um sistema linear de nivel hierdrquico superior (Ji- nha 1), constituido pela tepetigio do ré agudo nos compassos 1, 3 € 5, pelo pedal de mi nos compassos 5 a 13, e de sua reiteracio uma oitava acima no compasso 14. Seria este inicio, portanto, destituido de todo e qualquer repouso so- bre a ténica? Nao; 0 dé esta presente. Uma linha descendente de baixos — sol-fé-mi — faz com que este dé tenha que esperar do compasso 1 até o 5 (linha 4), 20 que se segue uma longa suspensio sobre a mediante, do (© MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL a7 compasso 5 ao 13, para que essa linha no registto grave seja completada, nos compassos 13 ¢ 14, pela seqiiéncia descendente mi-ré-d6. Mas nesse momento o acorde da mio esquerda, dé-sol-dé, tangencia o da mio direita, si-misi, e, a partir do compasso 16, seremos levados a um deslizamento em diresdo ao si, preparado pelo movimento /é-si, na sego superior dos acordes do baixo (linha 4) e, certamente, pelo papel que este desempenha na mio dircita, nos compassos 14 ¢ 15. Mais uma vez, a verdadeira resolucio desta rede de prolongagdes somente se dara a0 final da peca, a partir do compasso 72 (Au mouvement). A descrigio linear que acaba de ser mostrada constitui, ela também, uma anilise de nivel neutro que pode ser lida tanto do ponto de vista poiético quanto do ponto de vista estésico. Para atribuir-lhe uma pertinéncia poiética, podem-se utilizar argumentos idénticos aos usados numa anilise paradigmiatica: a reiteragdo de configuracdes interrompidas e sua “resolu- cao” no compasso 15 evidencia um procedimento composicional, a0 mes- mo tempo recorrente ¢ légico, que exclui 0 acaso, assim como a friegio entre dée si, nos compassos 14 ¢ 15, corresponde bem demais ao desejo, expresso pot Debussy, de “afogar a velha senhora” (a tonalidade), para que tais caracterfsticas estruturais no sejam o resultado de estratégias poiéticas conscientes. A situacio é diferente sob 0 angulo estésico. Se utilizarmos a regra de Meyer, em que nos baseamos acima, podemos nos perguntar se no seria demasiado grande a distincia entre as suspensdes sobre 0 mi, nos compassos 3 € 5, € 0 desfecho sobre o si, nos compassos 14 15, para que essa resolugio seja percebida no contexto dessa conti- nuidade, ainda que se considere 0 pedal de mi, nos compassos 7 a 13. O mesmo se d4 com a descida dos baixos em ditegio ao dé, com relagio a distancia entre os dois mi, um no compasso 5 ¢ 0 outro no compasso 13. Apenas experiéncias ad hoc permitiriam verificar isso com certeza. sok Como se vé, este esboco de andlise ficou muito distante de abranger a totalidade das dimensédes semiolégicas da Cathédrale Engloutie. Os te- sultados da andlise linear, bem como aqueles da andlise paradigmatica, somente poderiam adquitir o seu sentido pleno se a pega fosse abordada em sua totalidade. Também nfo tratei aqui das relacdes extrinsecas, estu- dadas pela semintica ¢ pela hermenéutica. Mesmo no que se refere ape- JEAN JACQUES NATTIEZ 38 nas ao nivel imanente e taxiondmico, esta andlise ficou muito aquém de ser completa. Nada falei sobre a harmonia, sobre as escalas tonais ¢ modais, sobre a organizagao métrico-ritmica, sobre.os registros. Nao é de espan- tar que o rascunho desta anélise de La Cathédrale ja ocupe quase duzen- tas paginas. Ela sera publicada na integra em um Tratado de semiologia musical, em vias de ser terminado. Nesta tentativa de introducio ao modelo semiol6gico tripartite apli- cado 4 miisica, desejei demonstrar a legitimidade da distin¢ao entre os niveis neutro, poiético e estésico. Ainda resta muito a fazer. Setia isto desencorajador? Nao creio. Ninguém € obrigado a dar conta de uma obra em sua integralidade, ¢ sob todos os seus aspectos. Uma andlise musical, semiolgica ou nao, seri sempre parcial. Uma das contribuicdes do pro- jeto de semiologia musical é de provocar uma tomada de consciéncia em relacio as diferentes dimensées que, no seio de uma obra, possam ser objeto de uma andlise — cada uma das seis situacdes analiticas aqui mos- tradas pode se aplicar is remissdes taxionémicas ou lineares, bem como aos diferentes tipos de significagdes. Cabe a cada um decidir sobre suas priotidades, tendo em mente que, afinal de contas, um certo ntimero de aspectos da obra sempre permanecera na obscuridade. Porém, estou con- vencido da necessidade, pata a andlise musical, de distinguir entre estru- turas, estratégias poiéticas ¢ estratégias estésicas, desde que se pretenda dar conta da complexidade do funcionamento da misica. Por essa tazio, actedito ser preciso levar em conta essa distincao antes de qualquer pro- cedimento analitico ou exegético. Traducao: Luis Paulo Sampaio. JEAN JACQUES NATTIEZ é professor de musicologia na Faculdade de Misica da Universidade de Montreal. Considerado como um dos pioneitos da semiologia musical, cle publicou Fondements d'une sémiologie de la musique («10-18», 1975), Musicologie générale et sémiologie (Bourgois, 1987), De la sémiologie 4 la musique (Cadernos do Departamento de Estudos Literérios da UQAM, 1987), Le combat de Chronos et d’Orphée Bourgois, 1993) e La musique, la recherche et la vie (Leméac, 1999). Tam- bém aplicou alguns de seus conceitos a Wagner (Tétralogies - Wagner, Boulez, Chéreau, Bourgois, 1983; Wagner androgyne, Bourgois, 1990) e abordou a questo das relacdes entre miisica ¢ literatura (em Proust musicien, Bourgois, 1984). Além disso, é 0 editor dos textos de Pierre Boulez de diversos discos de miisica de tradicio oral (dos esqui- més Inuit ¢ Ainou e dos Bagandaenses de Uganda). Publicou seu primeiro romance, Opéra, em setembro de 1997, pela editora Leméac. O MODELO TRIPARTITE DE SEMIOLOGIA MUSICAL Bo)

You might also like