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LUFSCar - Universidade Federal de Séo Carlos ia Geral de Educagso a Distancia Je Educagio a Distancia SEaD ‘Aline M. de M. R. Real Coordenagie SE8D-UFSCar Sandra Abb ‘Vania Poula de Almeide Nevis EdUFSCar ~Editore da Universidade Federal de Sao Carlos courscar Ness-UFSCar~- Nacleo de Coordonador Valter Roberto Siberia Universidade Federal de Ss0 Carlos im 235 CEP: 13865.905 Sio Carlos, SP Brasil arbr- E-mail edufscar@ufscarbr- Twitter. @ESUESCor SEaD UFSCor RELACOES ETNICO-RACIAIS: UM PERCURSO PARA EDUCADORES Volume | Mércio Mucedula Aguiar Professor Doutor Valter Roberto Silverio Erica Aparecida Kawakami M Thais Fernanda Leite Madeira j lorgonizado th 80 Carlos, 2013 Notas 1 © conceito de mestigagem é ume construsio que s6 adquire sentide quan: do considerada em relacSo a seu par, anogio de raca. Ele nos condus 9 vin pacadoxo bésico do idsia de mestigagem. Um mastigo se forma de dugs ou mais tacos. Assim, 0 paracigma dominante dos ciéncias biolégicas afm, ‘veementemente, que no existem ragas, mas somente ura: 8 raga humana, De acorclo com essa concepséo, convencionou-se 2 nogéo de populagdes como um substitute heuristico do obtoleto conceito de raga, de ontinuer usando a ideia de mestigagem. Contudo, a palavra mestigagem encant \6gico de {aracterizar alguns grupos humanos que se autodefinem, estrategieamen- te, em face de outras considerados “puros” ov homogéneos racialmente, ‘como mestigos. Essa ideologia da mestigagam é especielmente importa. tena América Latina, que se v8 mestiga em oposigso 20s Estados Unicios dda América @ 3 Africa do Sul (durante © regime do apartheid), nagées que 2 definem segregadas e, em coneequincia, no mestias (Bataan, A. Gracin J. L: Careona, M. Dewsro, M. (Cords). Dicionsrio de relaciones intercultreles: diversidad y globalizacién. Madr: Ecitoriol Complutense, 2007), Pare um melhor entendimento da histrie do colonialsmo, sugerem-se as seguintesleituras: ‘Anoersow, 8, Comunidades imaginades. Tradugo de Denise Bottman. S5o Paulo: Companhia das Letras, 2009 Davoson, 8. A politica do luta armads: libertago nacional nas col sanas de Portugal. Lisbos: Caminho, 1976. Dus, J. Histéria da colonizagéo - Afica (be. XVILXX). Revista Ler Histéra, Lisbos, n. 21, p. 128-48, 1991, Disponivel em: . Acesso em: 08 maio 2012 Fano, M. Mistéria das colonizagées. $30 Pavle: Companhia das Letras, 1996 1121-1129, 1983, Disponivel em: ‘550 em: OB maio 2012 Diferengas, sociedade e a escola Fernando de Figueiredo Balieiro Primeiras palavras Oleitor deve ter notado como a tematica das diferengas esta ‘80 em voga nos iiltimos anos. Por que da recorréncia dos termos iferenga", “diversidade”, iticas stuais? Como surgiram e se tornaram tio centrais nas discusses de hoje em dia? Como esses assuntos se relacionam com a escola? O que eles tém a ver com a pratica docente? Per- guntas oportunas abrem essa nossa discussio. E é a partir delas que comegaremos a refletir. Nosso objetivo € situar a questo das diferengas na escola, dentro do nosso momento histérico, em que as politicas voltadas. 8 questo das diferencas tomam lade no espaco pill ‘multiculturalismo" nas discussdes central |. Politicas que fazem a diferenca As diferencas na escola e no espaco piiblico Tomemos como ponto de partida, para a discussio, as re- centes transformagées sociais importantes no cenario nacional @ internacional. As titimas décadas foram ricas em mobilizagdes, saciais, quando emergiram na esfera piblica os movimentos negros, indigenas, femi travestis e transe: icidades, a am tos de cidadania e acesso igualitério no espago publico e no mercado de trabalho, Torna-se entéo publico e notério que, embore em termos formais.sejamas “todos iguais perante ale", persistem desigualdades que hierarqui zam socialmente as diferengas. As mulheres ganham menos do que ‘9s homens, assumindo a mesma funcao profissional, e esto muito ‘menos presentes nos cargos de chefiae cargos politicos; negros e egras frequentemente ocupam posicdes subslternas no mercado de trabalho e estdo entre a populacdo mais pobre do pals; e, por fim, lésbicas e gays sao impedidos de expressar suas preferéncias afetives © senuais sob 0 risco de sofrer discriminagdes, muitas vezes, violentas ao extremo. As lutas travadas no.espaco pail extrapolam 2 questo des desigualdades econémicas de nosso als ou da estratificagao social determinada por classe social ¢ se ‘2m para as subaltemizeges das diferengas de género, sexua- idade e étnico-racizis. Figura 1 Marcha Muncial de Mulheres ‘sconhecimento de governos e organizagées no a Organizagdo das Nagées Unidas (ONU) e Organizagao is Nagdes Unidas para a Educago (Unesco, do inglés United ions Educational, Scientific and Cultural Organization) da ne- ssidade de combater as desigualdades, preconceitos e discri- 1agbes direcionados as diferencas. Especialmente da década adas em que t is foram firmados visando ntir © respeito as diferentes culturas dentro dos pafses, bem omo © combate ao racismo, 8 violéncia sobre as mulheres, &s inagées direcionadas aos lomossexuais. Disseminaram-se politicas focadas na busca por igualdade no que diz respeito a género, otientaco sexual e dife- rengas étnico-raciais Figura 2 Parlamentares negros e representantes da culture afro 1na aprovagao do Estatuto da Igualdade Racial, em 2010. No.contexto esas questdes emergiram fortemen te no periodo de redemocratizacao na década de 1980, ea Cons- tituigdo de 1988 deu um grande passo a0 considerar como crime 2 discriminas30 por cor, nacionalidade, sexo, condiggo social " ete. Jé nos anos 1990, surge um numero expressivo de programas € iniciativas dos governos federal e estadual voltados & questo da diversidade, dentre eles 0 estabelecimento de “pluralidade cultural” como tema transversal nos Pardmetros Curriculares Na- icou-se a importancia atribuida as politicas relativas as diferencas, o que foi expresso na criagio da Secretaria Especial de Politicas para as Mulheres (SEPM), em 2003, da Secretaria de Politicas de Promocio da Igualdade Raci (Sern), também em 2003, e da Secretaria de Educagéo Continua- da, Alfabetizago e Diversidade (Secas), em 2004. Especialmente a partir desse periodo, observamos a criago de leis, programas nacionais e conferéncias municipais, estaduais e federais buscan- do combater desigualdades, preconceitos e discriminagdes. Essas transformagées fizeram com que a sociedade, que se pensava come homogénes — garantindo direitos iguais a todos -, se voltasse para as diferengas que ocuparam a cena piiblica em busca de torné-los sujeitos de direitos. A partir de entdo, a socie- dade é pensada tendo em vista sua heterogeneidade, que leva em conta a centralidade das relagées étnico-raciais, de género e sexualidade na sua conformacdo. Nesse cenério, um novo olhar se abriv, permitindo novas questées sobre a escola e seus sujeitos. O leitor j5 pensou no quao heterogéneos sio a sala de aula eo espaco escolar em que trabalha? Que diferengas o leitor percebeu 1no dia a dia de sua profissio? Jé pensou no quanto elas so impor cionais. Nos ditimos anos, inten tantes para se compreender as relages sociais que ali vicejam? Os sujeitos que frequentam a escola, como professores/as, estudantes, inspetores/as, faxineiros/as, gestores/as etc, tm muito em comum uns com 0s outros: moram provavelmente na ngua e trabalham ou estudam Mas também carregam muitas diferengas en mesma cidade, falam a mesma no mesmo loc tre si no que diz respeito a sua inserc3o sociocultural. Ou seja, s80 marcados por experiéncias culturais di mundo, costumes e valores norteadores que muitas vezes con- convivem. Quando falamos em diferengas, pensamos na questio da classe social como um eixo importante. Em uma sociedade de classes, como se caracterizam tas, com visdes de trastam com 0s dos outros que 0 as sociedades capitalistas, as diferengas de classe social constitutivas das experiéncias dos individuos. Pense em co 08 padres de vida contrastam entre o/a professor/a da escola ¢ ola cozinheirola e mesmo entre os/as seus/suas estudantes. Es sas diferengas conformam espagos sociais distintos aos si ®, especialmente, delimitam oportunidades de forma desigual. Situar-se socialmente entre as classes privilegiadas significa obter maiores recursos para sucesso profissional, maior acesso & educa- $0 e satide de qualidade, maior expectativa de vida etc. itos Entretanto, no podemos reduzir as diferengas a questo da desigualdade econémica e a divisdo da sociedade em classes sociais. Esta é uma caracteristica importante, mas que se conecta a outros ejxos de diferenciagao na sociedade, dos quais pode- mos citar: género, sexualidade, religido, regio e as diferengas étnico-raciais. Na mesma escola podem conviver sujeitos de diferentes grupos étnico-raciais, de distintas filiagSes religiosas 05 que nao sio religiosos. Nela convivem homens e mulheres, meninos e meninas que vivenciam seu género e sua vida afetiva sexual de forma particular, compartilham o mesmo espago com pessoas de origem sociogeogréficas distintas, alguns viacas de outros estados e regides do pals ou mesmo de outros paises, \ém daqueles que vieram da érea rural ou que sdo da drea.ur- bana, Ainsercéo sociocultural desses sujeitos a partir desses eixos conforma a maneira como eles vem e se veem no mundo, além da forma como so vistos pelos outros. Perceber a existéncia das diferencas como constituintes dos sujeitos ne escola ¢ primeiro passo para nao privilegiar urna nica forma de ser e estar no mundo social. Mesmo que todas essas diferengas no estejam presentes na escola, os sujeitos que esto sendo formados, de uma forma ou de outra, tém ou kero contato com elas. Devemos atentar especialmente para que com- Be nosso pats, com diversos grupos culturais que convivem plicando em diversas formas de se organizar socialmente, de ordenar e classificar o mundo e em normas e comportamentos io convivem mais de 200 povos essa questdes pensando na diversidade étnico-raci especificos. Em nosso terri a indigenas com mais de 180 linguas diferentes, mais de 2.200 comunidades remanescentes de quilombos (Instituto SocioaM- sewtat, 2012a, 2012b), além de populagdes urbanas com distintas origens geogréficas e culturais: portuguesas, italianas, japonesas, africanas, dentre outras. N3o hé divida que nossa sociedade e nossa cultura so tributérias dessas diversas contribuigées. Mas serd que so valorizadas da mesma maneira? Figura 3 Indios Kayaps, Embora haja um predominio nos discursos sobre o Brasil como “o pals da diversidade cultural", nem sempre as expresses cul tursis distintas so valorizadas na riqueza de sua espe E mister reconhecer que alguns grupos culturais so socialmen te valorizados @ outros, a0 contrério, s50 desvalorizados: alguns 880 tidos como mais “avangados", *racionais", al “progresso", outros classificados co z ‘atrasados". Nosso pasado colonial, que subjugou es povos africanos e indigenas, constituiu um modelo que ainda persiste, em que 0 referencial de perfeicao ¢ 0 padrio eurcpeu, modemo ¢ Urbano, e qualquer afastamento deste é apresentado como-uma forma inferior de humanidade. Nessa linha de pensamento, outras culturas de influéncia africana ou indigena, bem como comunidades 2 inhas € tradicionais, so caracterizadas pela falta, pela defi cia ou atraso em relago 8 civilizacao europeia Observamos aqui uma postura de julgamento de outras cul ras a partir de padres culturais préprios, tidos como corretos « civilzados. Denomina-se esta atitude de etnocentrismo. Uma ‘erspectiva critica a essa postura 6 essencial na medida em que teconhecemos como cada sistema cultural tem seu desenvoh mento préprio e esta assentado em valores que contrastam com outras culturas. Além disso, temos registros histéricos de como vis6es etnocéntricas sustentaram formas de dominaso.ecanémi smo, em que os povos colonizados eram caracte- rizados como bérbaros ou selvagens. Ao pensarmos na construcéo de uma sociedade em que as diferentes culturas sejam respeitadas evalorizadas, propomos-nos a desconstruir tal visio. Como sabemos, © que distingue as sociedades humanas das coletividades animais é a capacidade humana de simbolizaco, ou seje, de classificar e organizar a realidade que nos cerca e nossas ages dentro dela. Por meio dessa capacidade, os seres huranos desenvolveram formas sofisticadas de cultura, ¢ a diversidade cul- tural é um aspecto bisico a0 pensar as sociedades humanas. No entanto, instituiram-se tentativas de comparacdo entre as culturas a partir de um modelo nico e obrigatérie de desenvolvimento, que fez com que as diferentes culturas fossem hierarquizadas, Dentro do periado colonialista, forjou-se a ideia de que as socie dades europeias representam 0 formato mais acabado de civiliza- ‘20 € de que todas as outras sociedades passariam por estagios " semelhantes até alcangé-la. No entanto, essa pers- Pectiva afronta uma das caracteristicas mais bésicas des culturas humanas. Como afirma a educadora Sandra Riscal (2009), de “evolugaa’ © estabelecimento de um tinico padrio ci atério 6 a egaco daquilo que seria a mais impressionante caracte- stica humana, a sua capacidade de se constituir de forma diferente. Oe enfrentar a diversidade de problemas ¢ obs. téculos impostos pelos eventos histéricos de forma variada a © propria em um processo continuo de reinventar-se e su- erar-se, Nao hé trajetérias culturais que no sejam nicas, © a diversidade de experiéncias e de sentidos atribuidos 8 propria vida é 0 maior testemunho da vocacdo humana para a diversidade (Riscat, 2008, p. 23), Eo que tod essa discussio tem a ver com a escola? Devemos Compreender que a escole é um ambiente de socializagzo em que © sujeitos incorporam um conjunto de préticas e valores que ga- rantem sua insergéo na sociedade. Os sujeites escolarizados ndo apenas devem estar aptos a0 mercado de trabalho e dotados de um conhecimento instrumental para enfrentar a realidade, como também devem obter ferramentas para classificar, pensar agir no mundo. Os estudantes tomam contato com interpretagoes do mundo social por meio das diversas disciplinas e livros didéticos, de fala de professores e do contato com colegas. Podemos pen sar: de que forma a escola dé significado aos diferentes grupos étnico-raciais da sociedade? E as diferencas de género e sexua- lidade? Esses sujeitos escolarizados esto aptos para pensar 0 mundo social de forma que as diferencas no sejam hierarqui- zadas? Como a cultura afro-brasileira, por exemplo, com suas manifestacdes religiosas ¢ vises de mundo, aparece nas repre- sentagdes em livros di icos € nas falas dos/as professores/as © mesmo entre os/as estudantes? Serd que ela possui o mesmo status que as culturas de origem europeia e a religiSo catélica? Quando a diversidade étnica dos povos indigenas é trazide para a discussio na riqueza de suas especificidades? u Figura 4 Reuniso de adeptos do candomblé, Em geral, hé alguns eventos em que a diversidade cultural € uvatada nas escolas: em feiras da diversidade cultural brasileira, 35 comemoragdes do Dia do Indio, nas Festas das Nagdes ou, ‘nals recentemente, em algum evento na Semana da Consciéncia Negra, Podemos pensar até que ponto esses eventos escapam ‘uma visio estereotipada da diferenca, vinculando 0 negro spenas 2 manifestagées culturais especificas, como a capoeira, > tratando o indio genericamente e no passado, esquivando-se de discutir as diversas etnias que atualmente convivern conosco. Uma segunda questo é se essas atividades se relacionam com 0 ‘culo de forma integrada e abrangente, ao longo do proceso de ensino, ou 56 ocorrem de forma pontual, uma vez 20 ano, e no interferem no restante das atividades escolares. Sandra Riscal (2009) atenta para o mado como essas atividades podem se resumir ia a0 que estas, manifestagdes possuem de diferente, e que apresenta aos olhos (ibid, p. 20). Podemos enfim nos perguntar como a escola se caracteriza em termos de organizacao curricular, na rotina pedagé tempo e espaco escolar, no que diz respeito as diferencas étnico-raciais, de género e sexwalidade 2 “uma espécie de concessio que fez referé: dos ocidentais como exético ou foleléric w Pode-se dizer que o que predominou e ainda predomina no curriculo e nas praticas escolares é um modelo universalista, ou seja, aquele que se baseia na adocdo de modelos homogéneos @ universais como definidores de uma humanidade em abstrato, negando a diversidade de experiéncias vivenciadas e repre- sentadas pelos sujeitos. Em geral, o universalismo carrega trés ceracteristicas: ele é eurocéntrico, masculinista e heterosse: Eurocéntrico porque toma como referencial privilegiado as cu turas europeias, atribuindo-thes sempre o protagonismo na his- téria geral da humanidade, em detrimento. das civilizagSes ndo europeias. Ele é masculinista porque atribui ao homem o papel de sujeito historico, ocultando e subalternizando as mulheres. E heterossexista porque apresenta como natural as relagdes.afeti- vas e sexuais heterossexuais e com fins reprodutivos, ocultando ‘ou alocando outras manifestagées a esfera da perversio, da anor- malidade, da doenga ou do desvio. No momento histérico em que vivemos e atuamos, a pers: pectiva universalista é questionada. Hé uma profusao de politicas ue visam combater 0 eurocentrismo, o heterossexismo e a domi- nage masculina. Nesse cenério, a forma com que o pats é pensa- do se transforma de uma visio homogénea e monocultural para uma realidade agora vista como heterogénea e multicultural, Nes palavras do socidlogo Valter Silvério (2005), quando se fala em multicultural refere-se 20 conjunto de expresses culturais @ étnicas diversas dentro de um ter. io determi ular. Por extensio, ou pluriétnico compreende 0 do diversidade de povos, no sentido cultural de nacionalidade em desenvolvimento, existentes dentro de um espace politica e adminis rminada (ibid, p.%), pode-se dizer que 0 mul conju ativamente det ‘A. compreensio do Brasil como um pais multicultural nos re- totna ao contexte descrito no comeco deste capitulo. Quando 105 referimos a um conjunto de leis e programas sobre as dife- fencas étnico-raciais, devemos ressaltar a emergéncia de duas 6 vs importantes no cenario educacional: a Lei n# 10.639, de 9 de \eiro de 2003, e a Lei n® 11.645, de 10 de marco de 2008. A pri- ralei diz respeito & inclusdo da historia e cultura africana e dos ‘o-brasileitos no curticulo escolar, e @ segunda complement @ com a incluso também da histéria e cultura dos povos, idigenas. A partir do que foi discutido até aqui, pensamos como sformagao social inerente a essas leis exige uma atitude ica que aponta para a necessidade de repensarmos todo o ulo e as praticas escolares. No préximo tépico, faremos um anorama histérico, demonstrando que as diferengas, de alguma lorma, sempre foram e continuam sendo objeto de priticas polit as e pedagégices, refletindo sobre as mudangas de perspectivas 1s potencialidades de transformagao contidas no presente. As diferengas na historia Convido-os a um olhar histérico mais amplo para pensarmos como as préticas pedagégicas se transformaram substancialmen- te no que tange as diferengas, compreendendo seus vinculos com © contexto social, as probleméticas p nas de compreenséo da realidade disponiveis. Passamos por uma mudanga consideravel no modo como observaros e lidamos com as diferencas, do século XIX aos dias atuais, Perceber esas mudangas, @ essencial para se pensar, especialmente, como nosso olhar sobre as diferencas 6 marcado pela forma como as significamos, ou seja, como as descrevemos, narramos, representamos e, no amos sobre elas, Por um lado, 0s significados que atribuimos diferencas se relacionam com as prSticas socials que caracterizam um determinado momento histérico; por outto, a significago das diferencas gera ndo somente um olhar sobre elas, mas também sobre as praticas sociais, politicas e educacionais a seu respeito. Segundo o socidlogo Richard Miskolci (2005), 0 século XIX foi marcado por um olhar para as diferencas que as alocava para a esfera do desvio de uma ordem considerada normal e desejével. Naquele periodo, as ciéncias biolégicas substituiam em grande icles que eram fornecidos pela religiéo, a partir dos iticas envolvidas e as for. parte os m u quais © mundo era compreendido. Em 1859, foi publicado o livro Classico de Charles Darwin: Sobre a origem das espécies através db selegio natural ou a preservacdo de ragas favorecidas pela vida. Nele, 2 compreensio do mundo natural, na qual as espécies eram vistas como fixas e de origem divina, foi substituida por outra, que analisava as espécies como “eternas mutantes [que evoluiriam] através de um processo natural de variagéo, luta e se- lecao dos tracos favoréveis a sobrevivéncia" (Misxo1ci, 2005, p. 14) O impacto da obra foi tdo forte que a década de 1860 foi proficua no desenvolvimento de teorias relacionadas 3s descobertas de Darwin e que buscavam estender suas consequéncias para a es- fera social ibid, p. 16) Oavanco das ciéncias biolégicas, correlato ao avango da me- dicina, fez com que a sociedade passasse a ser compreendida 2 partir de analogias com 0 organismo. A avaliagio do “corpo social” era entdo pautada no binémio normal/patolégico. Em ou- tros termos, aquilo que se distinguia das convengées e normas socials era considerado patolégico em analises marcadas pelo objetivo de profilaxia, ou seja, de extirpar a doenca e tonar a so- cledade sadia. Comportamentos que contrestassem com o pado de normalidade ocidental e bur patolog esa eram clessificados como ! perversdo, Mulheres solteiras e/ou que tendessem A pol 860s tidas como masculinas, homens considera- dos femininos ov que se relacionassem afetivamente com outros homens eram considerados "desvios” de uma normalidade que definia rigidos padres de género e sexualidade. Qualquer desvio Poderia ser enquadrado como patologia. Esses ditos “desvios” de comportamento, junto com os criminosos, prostitutas, alcoélatras, cram vistos como perigosos, pois poderiam levar 0 corpo social a se degenerar. ica ou a ps Esse periodo coincide com 0 auge do colonialismo, em que 08 modelos cientificos eram marcados por uma perspectiva etno Entra; assim, considerava-se como um perigo iminente a dege- neragéo da sociedade europeia em fungdo do contato com ovos colonizados. Desenvolve-se um saber cient tros ta, de ico racial B ho biol6gico, que instaurou a existéncia de divisSes profundas ‘re supostas "ragas” humanas, expressas em fronteiras absolu: rn que diz respeito a padres de comportamento, moralidade tacionalidade. A nocd de raga enquanto biolégica, hoje con- terada ultrapassada nos circulos académicos, justificou © em- 1a medida em que se criou a ideia de povos leriores e selvagens que demandavam sua propria subjugacéo. Nesse contexto surge @ eugenia, termo cunhado por Francis Galton, sobrinho de Darwin, em 1883, definide como: conjunto de estudos e préticas voltadas para 0 controle da hereditariedade humana visando & preservacdo de grupos jores © a contengao da repro- ‘racials’ considerados sup dugo dos grupos e individuos que representassem uma ameaga, sobretudo as ‘ragas inferiores,, os portadores de deficiéncias fisicas, doentes mentais e desviantes em geral (Miskoxcy, 2005, p. 18). Normalmente, associamos a eugenia ao contexto alemo na- zista. No entanto, as associagdes eugénicas se desenvolveram entre 0 fim do século XIX e © comego do século XX em todo o ive no Brasil, com a presenca de intelectuais do pe- ‘iodo, como o escritar Monteiro Lobato. Em cada contexto foram propostas préticas distintas, os quais respondiam a uma suposta ameaga de degeneracio das populacdes. Dente elas podemos citar a esterilizagdo, a segregacao ¢, no limite, a cémara letal. O exemple histérico mais marcante embasado na eugenia foi o holocausto empreendido pelo regime nazista de Adol ciganos, comunistas a qual milhdes de pessoas homossexu: especialmente judeus, considerados racialmente inferiores, fo- ram exterminadas, n Figura 5 Cenas do holocausto nazista e imagem de Adolf Hitler O fim da Segunda Guerra Mundial © da experiéncia nazista Fepresentou um ponto de viragem, uma inflexdo a partir dos horrores que resultaram das préticas embasadas nesse olhar hege. monico sobre as diferencas, respaldado por um saber biologicista do social, cada vez mais contestado nas esferas académicas. No momento histérico pés-holocausto, hi uma inflexao do saber e das politicas sobre a diferenga, primeiramente @ "rac corréncia das tragicas consequéncias das pol teorias marcadas pela ideia da ex em de- icas ancoradas nas téncia de uma superioridade facial. A Unesco patrocinou pesquisas nas quais o saber “racialista” {oi desmontado (Horoavss, 2006). Progressivamente, as diferencas ", senuais e de g&nero) icos de organizagées int ram alvo de saberes e de proje acionais e de érgios governa- tals que procuraram combater preconceitos e discriminagSes dos. O modelo eurocéntrico, masculinista e heterossexista é Irxionado a partir de politicas que visam combater © preconceito de género e de sexualidade, além do preconceito direcio- 28 culturas, considerades inferiores ou “primitives”. As ser compreendidas em outros moldes, no mais lus de caracteristicas inetas inferiores, mas como pro- As diferengas entre os povos de origens distintas atores de origem natural ou biolégica, :ragSes culturais particulares. Os padrées de géneroe ‘cle também passaram a ser entendidos como resultados social, variando de periodo a periodo e, portanto, néo reduzidos a explicacdes biolégicas. ido a nossa reflexio, podemos pensar: como a escola jou todo esse percurso em relagao as diferengas? Qual a » entre a escola € as formas como.a diferenca é pensads? abemos, a escola & uma instituigo social que forma sujei- im, contribui para construir a prépria sociedade. Devemos rar que a escola esté imersa em um contexto social, difun- ‘i valores préprios de seu tempo. Como exemplo, no final do XIX @ comego do século XX, a medicina higiénica exerceu forte influéncia nos modelos educacionais. A educagio era como um na construcéo da nacdo. Baseada v-saberes cientificos da época, em especial o racialista, a edu- »,80 de viés elitista buscava isolar os filhos da elite - dentro internatos - do restante da populacdo pobre © negra que ncialmente os degeneraria. A educagao se institucionalizou se periodo, visando 8 constituigdo de uma elite politica e strativa @ partir de uma formagio assentada em modelos vilizatérios eurocéntricos e elegendo © homem como sujeito volitico em esséncia ribuidas iF essenci , muitas mudangas ocor- ram no que diz respeito s praticas pedagégicas, ao curriculo uscolar e &s politicas pu do persistem ainda algumas abordagens que subalternizam as diferengas? Como.os diversos grupos étnico-raciais que compem 1n0880 pais so representados na escola? Por que se discute tanto, ‘em vérias disciplinas, o legado das civilizagdes ocidentais na nossa sociedade em contraste com a auséncia da discussio sobre © le- gado das civilizagées afticanas e indigenas? Como podemos com- preender a discrepncia nas representagées, as quais privilegiam a Daquele contexto aos nossos dias, icas educacionais. No entanto, seré que matriz europeia, quando pensamos que nosso pais é constituido de pessoas de matrizes cult ais distintas: europeias, africanas & indigenas? Nao se trata apenas de uma questéo , do quanto as uantitativa, isto ferencas sdo representadas, mas também de uma questo quelitativa: como trabalhamos com as diferengas na escola? Atribui-se a populagoes afro-brasileiras, indigenas, qui bolas o mesmo status atribuido 8 populacdo de origem europeia? ‘Como elas tém sido representadas nos livros didaticos ou nas falas dos/as professores/as? Quando trabalhamos com as diferengas Etnico-raciais? Em situagées atipicas e muito raramente ou pen- sendo em todo 0 curriculo escolar? Questionamos 0 universalismo ‘eurocéntrico ou apenas apresentamos as diferengas de modo exé: tico ou folelérico? No decorrer do capitulo, buscamos demonstrar como a realidade social e escolar & marcada pela heterogeneidade so- ciocultural dos sujeitos. Trabalhamos explicitande que, depen- dendo da forma como essa heterogeneidade ¢ compreendida € abordada, pode resultar em desigualdades, preconceitos e dis- criminagées. O leitor percebeu como a abordagem em relagao a essa heterogeneidade na escola se transformou, especialmente a partir do engajamento de movimentos sociais e do reconhe- cimento de Estados e organizaces internacionais, que visaram combater as formas como as diferengas de género, sexualidade ico-raciais sao social mente subalter izadas. Estamos em um jade de questionamento dessa subalterizagao, erodindo as bases do univers ista e heterossexista periado que representa uma possi rad mo eurocéntrico, masc s- Para saber mais O site do Instituto Socioambiental (ISA), voltado a questées sociais ¢ ambientais, hospeda uma variedade de informagdes so- bre os povos indigenas e suas problem icas. Nele, podemos nos Alem disso, hé uma pagina voltada a textos e atividades para criangas. informar um pouco mais sobre os povos indigenas do Brat + chttpilfsa.orgb> Assista a0 video Museu Affo Brasit Attica, diversidade e perma: «ia sobre a cultura de variados povos afticanos que foram trazidos na condigdo de escravos + . Diferengas, processos e experiéncias Diferengas, discursos e relagées sociais Ja refletimos sobre a heterogeneidade sociocultural. que ca- colar, além das leis, programas politicas educacionais focadas.em combater desiqualdades, scteriza a sociedade e 0 espaco escolar, as de género, sexualidade e relacSes étnico-raciais, Acompanba- nos 0 processo histérico no qual se constituiu um modelo univer- alista eurocéntrico, masculinista e heterossexista que alocou as liferengas & subalternidade. Neste capitulo vamos trabalhar de modo mais conceitual sobre como as diferengas adquirem signifi- cado socialmente, como s8o compreendidas em relagdo a0 con- loxto e 8s préticas sociais &s quais esto vinculadas. Tornando a abordagem mais complexa a partir de agora, vamos reflatic sobre romo as diferencas adquirem sentido a partir das relagdes sociais, jneconceitos e discriminagdes que se relacionam com as diferen- inais_amplas em que esto inseridas. Nos termos da socidloga ndo-britanica Avtar Brah (2006), entendemos que a “diferenca 6 constituida e organizada em relagbes sistematicas através de cursos econdmicos, culturais e politicos e préticas institucional id, p. 362), Vamos pensar 0 que isso sig) Costuamos clas ‘2 em termos mais praticos icar de “negro” individuos que vemos na cua una escola com determinadas caracteristicas fenotipicas, como corda pele, cabelo etc. No ents nos servem para diferenciar essa pessoa de outras pessoas vis~ por que esas caracteris! tas como brancas? Sera que essa classificagdo é neutra e objetiva ou ela depende de significados cultursis? A primeira vista, podemos n pensar que se trata de uma classificagéo isenta de juizos de valor, mas com um olhar sécio-histérico podemos compreender que é algo mais complexo. Quando felamos de populagéo afro-brasileira, Poderiamos pensar que hd uma homogeneidade em suas origens, © que é muito redutor, tendo em viste a diversidade de poves affi canos, que vieram a0 Brasil, situados em contextos geograficos e culturais cistintos. Chegaram ao Brasil africanos sud jjes, dentre outros, que foram escravizados e se tornaram perten- centes a um grupo homogéneo aos olhos dos portugueses: ses, bantos, 910s". Em seus contextos de origem, eles no eram vistos ou se viam como “negros", mas como pertencentes a um determinado grupo étnico-cultural, A despeito de suas culturas serem distin- tas, uma série de processos os classificou nesta nova categoria de "negro", dos quais salientamos 0 coloni ciéncia do século XIX. Da mesma forma, os indigenas nao se viam ou eram vistos como “indios” antes do inicio da colonizagao portuguesa. Convi viam e ainda convivem diversas etnias onde hoje se localiza o ter- ritério brasileiro: Krenak, Tupinambs, Kaingang, Terena, Guarani, dentre muitas outras, Passaram a ser denominados “indios" com 1 da colonizagao, a partir de um olhar europeu que se © 0s homogeneizava apesar de suas culturas serem to as. Podemos pensar também no exemplo dos ismo, 0 escravismo ea al igrantes aneses, turcos, japoneses que vieram a0 1880 contexto, passaram a ser chamados de “italia- lemies” sujeitos que em seus paises eram classificados io outros critérios, como regio de origem, pertencimento ico etc. Os imigrantes de paises predominantemente srabes Passaram aqui a ser chamados de "turcos”, a despeito de serem origingrios de outros paises e da diversidade cultural presente na Turquia, Libano e tros. O que esses exemplas sublinham, leitor, € que no vernos 0 mundo e as pessoas de forma neutra ou cobjetiva, A forma como classificamos os outros e a nés depende da sociedade em que estamos inseridos. Compreendemos e classificamos a realidade que nos cerca a irde un repertério de significados disponiveis a nés, dentro de in contexto cultural e histérico particular. Quando pensamos nas, rengas étnico-raciais, de género e sexualidade, temos exem- los de como estes significados socials n3o apenas interferem na inaneira como vemos © mundo, mas também na maneira como agimos nele, Podemos pensar, por exemplo, como os significados de feminilidade e mascul s tradicionais brasileiras do final do século XIX, considerava-se que idade se transformaram. Nas fami as atividades vinculadas 20 espago doméstico e ao cuider eram femininas, enquanto as atividades no espaco piiblico eram mas- culinas. Assim, as mulheres eram educades para desenvolver afa- zeres domésticos e para a maternidade e proibides de participar de outras atividades. Por sua vez, homens eram educados para participar da vida pal ar atividades domésticas. Hoje em dia, esses significados foram transformados, e conhecemos mulheres atuando em éreas antes tidas como masculinas, como o direito, a politica, o futebol etc. Os movimentos feministas foram essenciais nessas transformacées, ica e profissional e desencorajados de rea- questionando os lugares sociais subalternos destinados as mulhe- res na sociedade. © sociélogo anglo-jamaicano Stuart Hall (1997) trabalha com a ideie de que a realidade é constituida discursivamente. O que significa isto? Discurso para 0 autor é uma série de afirmacées, em qualquer dominio, que fornece inguagem parase poder na de produzir um tipo particular de conhecimento. O lar sobre um assunto e uma 0 refere-se tanto & produgo de da linguagem e da representago, quanto a0 modo como conhecimento: institucionaizado, madelando préticas sociais @ pondo novas préticas em funcionamento (bid, p. 2) Os discursos nada mais so do que a produgao de significa- dos sobre a realidade por meio da cultura e das praticas sociais. Eles ndo apenas descrevemn uma realidade dada, mas so 0 meio pelo qual temos acesso a ela, Nesse sentido, ndo € equivocado 5 dizer que os discursos criam a realidade. € por meio de um siste- ma de significados que vemos e apreciamos © mundo. Pense, tor, em como vocé ja se deparou com pessoas de outras culturas ou de outras geracdes, com visées de mundo substancialmente diferentes da sua. A visdo de cada pessoa € fornecida por um sistema cultural de significados que se transforma no decorter do tempo e, por isso, muda de geracdo a geragao. Os discursos esto presentes no nosso dia a dia, eles fornecem uma referéncia para aval r pessoas e situagées, amparando-nos também sobre como devernos nos portar nas relacdes cotidianas. lagdo com os outros e das respostas que estes nos dio sobre © que somos. Recuperando a contribuigdo teérica do filésofo norte-americano Georg Mead, nas palavres do sociélogo alemao ‘Axel Honneth (2003), um sujeito s6 pode adquirir uma conscincia de si mesmo na medida em que ele aprende aperceber sua prépriaacso. a perspectiva, simbolicamente representada, de uma se- gunda pessoa (bid, p. 131. A forma como os outros nos avaliam, se somos bonitos. agra- dveis, inteligentes, competentes, nos fornece um_parametro ara pensar 0 que nos define em nossa singularidade. Oa mesma forma, quando avaliamos outras pessoas em nosso cotidiano, lades que sdo incorporadas por elas, de modo a constituir uma imagem que elas fazem de si. Obviamente, essas avaliagdes nem sempre precisam ser explicitas. A forma como 1n05 relacionamos com as pessoas dé sinais de como as consi deramos e que importéncia atribuimos a elas. Por exemplo, se fassemos um empresirio € selecionéssemos uma pessoa para ‘emprego, poderiamos estar passando a ela a ideia de que igéncia. Ou, a0 contrério, 6 menosprezada ou sofre \ceito entre os colegas. Sabemos que uma situag3o isolada + no ter um impacto decisivo na vida de uma pessoa, o que 1 ressaltando & a importancia do conjunto de avaliagSes, :tras pessoas sobre si. Nesse sentido, a partir das respostas s, podemos desenvolver uma boa imagem de nés ou Mas 0 que isso tem a ver com 08 discursos? Quando classificamos alguém, nio partimos do nada. As ava snes que emergem das interages cotidianas sempre se baseiam ignificados que sao culturais. Por exemplo, uma menina é da: “mas que bonita! Como é branquinha! E que olhos mais, ", ou ento, “mes que cabelo lindo, lisinho!”. Nesse-caso,.o .gio direcionado a menina se baseia em discursos que vinculam nquitude, tragos europeus e beleza. Ao mesmo tempo em que pode se compreender como bela nessa situacdo por seus at 10s, sua colega com tragos africanos pode se sentir menos bela la falta desses atributos. O problema no €.0 elogio que se faz 8 imeira menina, mas que imediatamente toda outra forma de bele- 6 desconsiderada porque nao responde ao padre eurocéntrico. Sdo muitas as expresses e classificacdes que alocam os negros 1 uma posiggo de inferioridade em relago aos brancos, conside- rando-os bons para 0 servigo bracal e néo intelectual, quando nao. potencialmente_perigosos,.agressivos.e.voluptunsas. Embora ex p em situagdes de briga ou mesmo em piadas, os negros muitas.vezes sdo representados como sujos, ignorantes ou incompetentes, 950s abertamente racistas no sejam mais socialmente aceitas, Apartir desse exemplo, pretendemos demonstrar que a atribui G0 de valores, qualificagées e juizos de outrem 6 aspecto essencial na formacao de nossa identidade. Essa atribuigio depende dos dos que esto disponiveis em certos contextos, culturais e que podem positivar ou negativar a forma como nos ve- valores e signi mos e nos compreendemos no mundo. Observamos como noses relagdes sociais mais prosaicas esto perpassadas pelos discursos 10s significados as diferengas (étnico-raciais, de género, sexualidade) os quais moldam a forma como nos relacio- ecializagio, 24 -orporam 03 valores de uma determinad so- amos com as pessoas. O_processo fe_em que 0s individuo: ciedade, marcado pela interiorizagao dos discursos. Por meio do contato com pais e maes, professores/as, colegas, livos, desenhos ” animados, filmes @ outros meios, a crianga apreende certos signif cados que vo servir para classificar e nortear suas relagdes com Outras pessoas, Aqui temos que nossa subjetividade é perpassada pelos discursos, que sio culturais ¢ histéricos e se referem a pro. ess0s sociais abrangentes. Mas 0 leitor deve estar se perguntando onde surgem esses discursos? Como eles ganham forca? Por que eles se modificam no decorrer da hist ia eso distintos em cada contexto social/cultu ral? Anteriormente nos referimos a uma série de acontecimentos Socials importantes que marcaram a forma. como as diferencas apareceram na histéria moderna: o colonialismo, a ciéncia sacia- sta © 2 eugenia. Trata-se de fenémenos econémicos e politicos ‘que constituiram as bases da sociedade moderna e sé funcionaram Por meio da criagao de discursos que sustentaram certas préticas socials marcadas pela subalternizacao das diferencas. Esse longo Periode foi rico em producao de significados que se basearam em uma viséo eurocéntrica, masculinista e heterossexista. Embora contestados em muitas esferas da sociedade, pode-se dizer que ppersistem discursos que conferem privilégio aos homens brancos @ heterossexuais @ alocam a posigées inferiores mulheres, ho. mossexvais © as populagdes afrodescendentes e indigenas, Voltando 8 questao inicial deste tépico, quando pensamos na forma como classificemos algué: como negro ou branco, devernos nos atentar para os processos que constituiram essa for. ima de classificagao. Que significados so acionados relacionados & negritude? Quais as origens historicas e a que processos sociais se referem esses significados? O coloy ismo, a escravidao © 2 cléncia racialista crieram significados distintos e opostos entre brancura ¢ negritude, em que a populagéo de origem africana {oi considerada “inferior”, “selvagem", “primitiva’, “menos sof, ticada’, e 20 mesmo tempo a populagio europeia foi qualificada como "superior", “civilizada’, “avancada” e “mais sofisticada’” Proceso que chamamos raci izago. O processo coloniale a es- cravidéo foram justificados por essa concepcao etnocéntrica, Du- Fante 0 século XIX, com 0 desenvolvimento do saber cientifico de cunho biclogicista, vemos a criagdo da ideia de racas biolégicas, 3 lumas superiores, vinculadas & branquitude, e outras inferiores, iculadas 8 negritude. Nas palavras do sociélago Antonio Sérgio imardes (2003), isso redundou na compreensio de que @ espécie humana poderia ser dividida em subes- pécies, tal como © mundo animal, e de que tal divisso estaria associada ao desenvolvimento ferencial de valo- res morais, de dotes psiquicos e intelectuais entre os seres humanos (bid, p. 96) Essa compreensio racialista de mundo passou a ser progres- sivamente desacreditada. No entanto, esses processos ainda con- figuram formas de ver o mundo. Até hoje persiste a compreensio de que a cultura europeia é mais sofisticada do que as culturas de origem africana. Nos curriculos escolares, a historia e a cultura de civiizagdes europeias predominam em relagio & histdria afri- cana e afro-brasileira. Além disso, muitos esteredtipos negativos em relago @ pessoas negras, oriundos desses processos, so comuns: elas so vistas muitas vezes como menos inteligentes, menos bonitas, menos espertas, menos esforcadas etc. Perceba, itor, que se, de um lado, temos a caracterizagdo das pessoas negras pela falta, de outro lado, temos @ caracterizagéo da com- pletude e perfeicgo associada a branquitude. Mesmo que nao expressos explicitamente, esses preconceitos sdo visiveis quando, no mercado de trabalho, as pessoas negres slo preteridas em re- lagao as brancas, por exemplo. A exigéncia de "boa aparéncia” s antincios de emprego oculta, nao raramente, uma preferén- formas de classificago que alocam a neqritude para posigdes ubaltemas. No entanto, as lutas antirracistas se faze cada ver 's evidentes, questionando essas formas de classificagzo. Os grificados atribuidos 4 negritude podem variar em relagdo a rma como os sujeitos aderem ou nao a determinados discur 10s. No entanto, no podemos perder de vista que seus sig ados so sempre histéricos e relacionados a processos soc A produgéo de significados no é neutra e objetiva. Os discursos, 20 mesmo tempo em que se vinculam.a amplos processos sociais, moldam a forma como as relagdes sociais se efetivam. Obser- vamos como eles podem ser 0 veiculo de subalternizagao.social das diferengas étnico-raciais, de género e sexualidade. Por outro lado, podem ser o meio de questionar essas subalterizagées, E onde entra a escola nessa discussio? A escola lida com discutsos © tempo todo. A produgao de significados é um aspeécto central na formagao de estudentes. Em cada disciplina, certos conted: dos slo selecionados e ensinados, alguns valores so passados abrem a visdo dos estudantes sobre como interpretar ¢ mundo. Podemos refletir sobre a relacdo entre a producio de signifi cados na escola e 2s diferengas: como as diferencas étnico-raciais, de género e sonualidade sfo representadas, descritas ou ensinadas na escola? Quais os significados explicitos e ocultos mobilizados pelos livros didaticos, pelas falas dos/as ptofessores/as e pelas demais atividades escolares? Os discursos produzidos na escola apontam para a subaltemizagéo das diferencas ou, 20 contrério, para a desconstrucao dos significados que as subsltemizam? Devemos levar em conta que os significados so criados tanto pela linguagem escrita e falada quanto por meio de im: Quando ha uma precominancia de figuras masculinas e brancas em posigdes de destaque nos livros didaticos ~ como cientistas, Profissionais bem-sucedidos, sujeitos politicos etc. -, que tipo de significados esto sendo criados a respeito da populagio negra, indigena e/ou feminina? Quando figuras de mulheres negras $6 so representadas em situagies subsltemas @ de pobreza ou em profissdes desvalorizadas socialmente, que tipo de associagio estd sendo feita implicitamente entre pobreza, negritude e fem nilidade? Como voeds, letores, dam com essas imagens? De que forma as aulas expositivas significam as diferengas? Diferencas, experiéncia e subjetividade Agora propemos uma reflexso sobre 2 produgio de signifi cados ¢ 0 cotidiano escolar. Como jé discutimos, a escola uma instituiggo social que pertence a determinado contexto histérico, acompanha processos sociais e difunde determinados valores, Salientamos a profunda ligago entre os idedrios racialistas ¢ ou. rocéntricos @ a escola brasileira do final do século XIK e pensamos como esta se transformou no decorrer do século XX e, nos dias de hoje, abre a possibilidade de uma transformagio radical no que se refere as diferengas. Nese momento, discutimos como 2 sociedade e dentro dela, a escola, produzem discursos sobre a realidade, que moldam as formas nas quais os sujeitos vem # so vem no mundo, além de fornecerem modelos de como devem agit. Nesse sentido, as significados e os conhecimentos gerados na escola néo apenas refletem determinado contexto, como tam. bém atuam sobre os sujeitos, moldando concepgdes ¢ formas de agir no mundo, Ou, nos termos que trabalhamos, a escola cris discursivamente o mundo social Vamos nos deter sobre as relagdes mais cotidianas na escola e 2 produsao de significados sobre as diferencas. Na escola temos diversos sujeites: professores/as, estudantes, diretor/a e demais incionérios/as. Esses sujeitos estao inseridos em um contents social abrengente, em que certos discursos circulam e dio sen. tido 8 realidade na qual eles vivem, No entanto, cada sujeito tem Sua experiéncia e incorpora de maneira particular os significados disponiveis. Nas palavras do sociélogo Stuart Hall (1997), hé um dislogo entre 0s conceitos e definigées que sie represen: tados para nds pelos discursos de uma cultura e pelo nosso esejo(consciente ou inconsciente) de responder 208 apelos feitos por estes sir id, p28) ads, de sermos interpelados por eles Nesse aspecto, Hall (1997) esta se referindo a como os sujet os no $80 passives, eles t8m possibilidades de escolha dentro dos discursos presentes em um determinado contexto. Vamos agora a um exemple hipotético pare melhor compreen- der essa discussdo. Uma garota chamada Flavia, negra e de origem humilde, é étima aluna e adora especialmente as aulas de literatura Portuguesa e brasileira, Ela lé cuidadosamente todos os romances indicados pelo seu professor, Roberto. Tem uma preferéncia pela lteratura naturalista! do final do século XIX e presta atengao as descrigdes das personagens negras, com as quais muitas vezes se identifica por suas dificuldades de “vencer na vida". No entanto, Sente-se incomodada com as descrigdes de personagens negros ‘que ora tendlem a uma sensualidade exagerada ou sio caracteri- zados como seres instintivos. Seu professor dé aulas expositivas fascinantes, o que influenciou o gosto da aluna pela leitura, mas no toca na questéo das relagdes étnico-raciais das obras, pois no considera sua responsabilidade trabalhar essas questdes. Nas duas vezes que Flévia tentou participar da aula questionando o racismo Presente nas descrigdes, seu professor desconversou e afirmou que no estamos mais naquela época e que tais questdes nao cabiam na sua disciplina. Aqui vemos como Flévia toma contato com os discursos hegeménicos disponiveis, mas no adere a eles simplesmente. Flavia resolve prestar 0 vestibular para o curso de Letras adentra uma respeitada universidade na capital de seu Estado. Durante esse periodo, sente-se identificada com um movimento cultural afro-brasileiro que se reine e apresenta expressdes ar. tisticas no centro da cidade, com um viés critico que dé relevo 20 processo histérico de escravizagio que os povos de origem africana sofreram no Brasil, bem como aos preconceitos raciais que sofrem os negros na sociedade. A aluna comega a participar do movimento e se insere em um grupo de estudos de relagses Etnico-raciais de sua universidade. A estudante toma contato com varios escritores afrodescendentes dos quais nunca tinha ouvi- do falar e comega a se debrucar sobre suas narrativas. Nesse 8 momento, ela rev8 os indmeros discursos e representagdes que toma ¢ tomou contato em sua vida: na universidade, em sua cidade patel em case € na escola quando aluna de ensino médio, leon Branclo-se do contato com seus ex-colegas, exprofessores @ che os que leu, Embasada em suas discusses académicas, gelnterbretaos significados que tinha de negritude, A part das discussbes e estudos que empreende, Flavie aprofunda suas, Sncas em relagao ds maneiras correntes de perceber e atribuir valor 4 negritude e a branquitude. Nos Frias, Févia volta para sua casa e resolve passar na escola Bare Conversar com seu professor que tanto a influenciou para in. aressar no curso de Letras. Ao chegar na escola, ela conta tode » {ei 10.639/03, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educagio Nacional (LOB) n# 9.394, de 20 de: dezemibro de 199%, 8 exige a in- comporagao da histériae cultura africana e afro-bra pies escolares. Os dois resolvem estudar juntos durante as férioe Sobre come inclure trabelhar com as ciferenges étice acige nas avlas de literatura, tanto explorando os signiicados strbuichn a negritude e 3 branguitude na literatura canSnica brasileie por tiss2, como inserindo autores africanos e afro-brasileiros nes leturas obrigatérias dos ebtudantes. A partir de entdo, Roberto Passa a discutir em sala de aula as relagdes 6 ico-raciais que es. 0 tetratadas nas obras liteérias em que trabalha e passa a vefleth Sobre que significados esté construindo com sous estudentar Na estoria descrita, 8 adesio a certos discursos depen cia experiéncia de cada um. Veja que a estudante 5 fare wisi critica em relago as representagses de negros noe rae ees ave lia, Fodemos conjecturar que sua experiéncia de vide, os ambientes que frequentou e as pessoas com quem teve Contato fornecsram um outro repertério de significados sabre 5 negritude, © que lhe possibiltou refletir © recusar ae descrigdes Setig2s nos livros naturalistas em que se debrucava. Tamers observamos, na estéria, que. aluna buscou imagens Positivadas a“ u elaborar uma boa imagem de '. Vernos como a identidade est vinculada & experiéncia, que sua vez se conecta a um contexto mais amplo de discursos ue esto em conflitos em um determinado contexto social. O professor qve a principio no se deixave tocar peas questses vtnico-raciais em sua pratica docente, quando ouve a experién cia de sua aluna Flavia, percebe a importincia de trabalhar essas questdes em sala de aula. Seu c< una o fez perceber @ importancla das mudangas legislativas na esfera educacional, contribuindo para repensar 0 seu trabalho, os seus objetivos de ensino e 0 seu papel importantissimo enquanto professor. A estéria aponta para as varias maneiras como podemos significar as diferencas na escola. O professor Roberto preferia no explorar a tematica das relagdes raciais nos romances. Em que medida ele nao estava contribuindo com uma ideia que ava a negritude? A mudenca de comportamento do professor ndo aponta para uma possibilidade de representar as diferengas de modo a problematizar sua subalternizacao? Que ‘transformagées isso pode trazer para as visSes de mundo de seus estudantes? Que outros exemplos vocé pensaria em relagdo a ou- tras diferengas, como as de género e sexualidade? O que esse pequeno exemplo pode nos fazer pe diferengas? A primeira conclusio a que estamos chegando é qe as.diferencas nao existem emsi, elas s80 produzidas por meio de pré- ie Sociaise discursos que as significam. Nesse sentido, a forma como descrevemos, representamos ou ensinamos as diferencas produz as formas como podemos enxergé-las, classi icé-las @ agit em relagao a elas, Repensar a prética docente em relaco as die rengas 6 uma tarefa que exige pensar o vinculo entre o conhecer e ntato coma sar sobre as © produzir significades. Para saber mais * Ouga a misica No tabuleiro da baiana, de Ari Barroso, gra- vada em 1936 e cantada por Caetano Veloso e Gal Costa: 6

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