You are on page 1of 82
RACISMO SEM RACISTAS O Racismo da Cegueira de Cor ea Persisténcia da Desigualdade na América EDUARDO BONILLA-SILVA PREFACIO: SILVIO ALMEIDA ‘TRADUGAO: MARGARIDA GOLDSZTAIN PERSPECTIVA ale ng Rast With Rar Cal ica mate Re Racits:Coler- Blind Rasitm and the ‘Copyright © soxt Rowan 8 Litwefeld AANIANEGRAS INSTITUTO AMMA PsiQUE e NEGRETUDE Certain Loc esigusSoaesc Bes Duo Eis dete Margarida Caleta sine Pee Rage Abas Pree patra ‘Brasil Caulogayso na Plasto Sindicato Nacional dee Beles de Lies. B edigso ‘um modo bastante particular. Nessa vereda, Racismo Sem Racstas Serve-nos como um ponto de partida também para anilises sobre © racismo na América Latina, particularmente no Brasil. Escrever este preficio é, para mim, motivo de especial satisfay3o. Isso porque neste ano de 2020 tive a oportunidade de ser profe sor visitante na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, ¢ ld tive a honra de conhecer o professor Eduardo Bonilla-Silva, Para além de um intelectual admiravel ¢ generoso, demonstrou-se um /homem profandamente compromissado com a construe de pat- tas transformadoras da realidade social. E nesse sentido o recado contido nas paginas finais do livro:a mais relevante lita antirra- cista ndo ¢ apenas uma luta contra individuos ou grupos 6, sobretudo, uma luta contra o sistema politico ¢ condi produz o racismo. Prefacio ‘Muitos amigos, colegas e leitores expressaram curiosidade sobre minhas opinides no tocante a eleigio de Trump como presidente. Sem ciivida, Trump brincow com fogo no que diz respeito a raga ¢ ajudou a mobilizar tanto os grupos (todas as antiquadas orga- nizagées racistas) como os individuos marginais (por exemplo, David Duke), bem como reavivou o pior nas massas brancas durante a campanha, com seu discurso sobre a construgo de um © fato de 0 México “nfo enviar suas melhores pessoas”, essoas que tém muitos problemas”, que esto “trazendo esim drogas”c “trazendo o crime” e “sto estupradores” um boicote muculmano; sua hesitago em condenar o endosso de David Duke a sua candidatura; seus comentérios sobre negros que vivem em “guetos” nos quais “vocé nfo pode andar nas ruas, sai para com- prar pio e termina levando um tiro”; ¢ muitas outras coisas. Ele também tem uma hist6ria racial pessoal problematica. Foi pro- cessado duas vezes pelo Departamento de Justica na década de 1970 por discriminar negros na area da habitacio e multado nos anos de 1990 pelo Jersey Casino Control Commission por discri- minar negociantes negros em seu cassino. Sua aversdo aos negros possuia rafzes familiares, posto que seu pai, Fred Christ Trump, tinha um longo hist6rico de pontos de vista ¢ ages antinegros que incluiam a participagio (como defensor) em um comicio da Klan aos ar anos de idade’. A questio é saber se temos “Racismo sem Racistas” ou “Racismo com Racistas”. Alguns dos meus amigos, inclusive, me disseram que meu livro finalmente chegou ao fim da vida, dado que agora est claro que temos “acismo com racistas, ponto final”. Nesta quinta edigio, reitero que o regime racial na América po ~movimento dos direitos civis ainda é o “novo racismo” ea ideologia racial dominante que mantém essa ordem unida é 0 racismo da cegueira de cor.O momento Trump, a meu ver, ilustra trés coisas fundamentais. Primeiro, nenhum regime racial existe na pureza e no isolamento, isto €, ele sempre articulat virios modos de domi nagfo. Assim sendo, 0 novo racismo ¢ dominante, mas néo é a ‘nica maneira de manter a ordem racial. O Jim Crow nunca mor eu cem por cento, ¢ sua ideologia permaneceu importante em ‘muitos setores da nago e em segmentos da comunidade branca, Em segundo lugar, regimes raciais, i semelhanga dos econdmicos, ppassam por ciclos.O momento Trump é bem parecido com a era Reagan (1980-1988), um momento em que os crimes de dio ¢ a animosidade racial aumentaram de modo significativo, em parte porque Reagan deu o que o falecido Manning Marable chamou de “sinais verdes” a atividade racialista com comentari¢ pbre “rai da assisténcia social” ¢ coisas fins’, Em terceiro lugar, as ideolo- sgias tém diferentes tons de expressbes e 0 racismo da cegueira de cor nao é excegao. Mencionei isso desde que o livro foi publicado pela primeira vez, no capitulo intitulado “Sao Todos os Brancos ‘Archie Bunkers’ Refinados?” e na “Conclusio”, Afirmei, especifi- camente na “Conclusio”, o seguinte: Embora entrevietados brancos mais velhos, da classe trabalha~ dora (principalmente na amostra do bas),fosiem menos hébeis em usar versOes mais suaves e eficientes dos enquadramentos & do estilo do racismo da cegueira de cor do que os mais jovens, de classe média ¢ instrufdos (principalmente na amostra dos cestudantes universitirios), ambos 0s grupos estavam sintoniza- an nowt ideologia Conudo,ofato de alguns brancos nservadores Compassivos” no tocante & raga nfo muda came io batizados nas forma algumna a realidade de que todos sto batiz ee die racismo da cegueira de cor. Ademais, embora brancos 5, peregam mais hal mais jovens, de classe média ¢ inst ; z fim fazer uso do arsenal da cegueira de cox, muitos ~ em ae «qe ja estavam no mercado de trabalho ou prestes iar nele —eram tio rudes © pouco sofisticados quanto seus 108 mais pobres e menos instrusdos* cular ag a “Assim, a despeito de Trump e do ressurgimento do satire airs rail, ind alego que 2 dia para entender como & rag fanciona na América contemporinea € a linguagem ¢ 08 tropos do racismo da cegueira de cor. Meso Trump, apesar de sua propria vista raciais pessoais, tentou ser cego 4 cor na afirmando ser ele “a pessoa yu”7, que ele amava os hist6ria e pontos de campanha (sem sucesso, com certeza), menos racista com quem voce jé se deparot pon mexicanos eque os mexicanos oamavam—o que ele den 3 comendo um faco no Cinco de Mayo? ~e insistindo, ea mugulmanos,eafirmando: “Eu acho que cles sfo grandes pet soas.”* O racismo da cegueira de cor é a méscara que recobre a forma dé pensar a fala e até mesmo como se sente em questees racial ncos, ¢ 0 motivo pelo qual este _Traciais a grande maioria dos brancos, qual livro ainda é devidamente intitulado ce ‘Quero aproveitar a oportunidade para fazer um esclared A to do titulo do livro, jamais er ‘mento tiiuito importante. A despeito do titul titilizei o termo “racista” para classificar 0s atots, Esse termo p' que a andlise racial equivale a um tar quem é e quern no é racista, de opinido sobre tence aqueles que acreditam processo do tipo clinico de spore ne geralmente baseado em resultados de pesquisss de opinido sobs questdes relacionadas a raga ou nas declaragées raciais Se a0 a ou proferidas por alguns individuos (por exemplo, Don: Sterling, ex-proprietitio do Los Angeles Clippers, € classificado como “racista” porque proibiu sua namorada de tirar fotos com a Ienda da nua, Magic Johnson). Creio que esse conceito,e a anilise sobre a qual ele se fundamenta, atingiu o limite ¢ jé nio € titi, se € que algumna ver o foi. A caga aos racistas tende a nos desviar do ‘que precisamos para éfitender cometamente o funcionamento do racismo na sociedade, Nas eleigdes de 2016, analistas que seguem essa tradicio rotularam incorretamente os brancos pobres e da classe trabalhadora de “racstas”, deixando os demais brancos que votaram em Trump (a maioria), bem como aqueles que votaram em Hillary Clinton, fora da andlise. Isso é um erro, pois uma vez que uma sociedade é racializada, e todas as sociedades 0 tém sido or cerca de quinhentos anos, todos as atores sio racializados e se tomam “sujeitos raciais”®. Isso no significa que todos na América sejam “racistas”, uma posi¢io que nos levaria de volta 20 mesmo beco sem saida teérico. Isso significa que somos todos afetados pela racializagio" c pela ideologia racial, Ninguém est livre dos efeitos dessas forsas sociais, mas o impacto e a direcao do ef dependem da posisao da pessoa na ordem racial, Pessoas negra por exemplo, foram racializadas e rebaixadas desde a escravidio, ) Assim, maioria tem lutado arduamente para produrir e expres- sar contraideologias e natrativas sobre raga. Brancos de todas as classes, nao obstante os momentos de oportunidade de mudanca, tém seguido, na maior parte dos casos, as tendéncias dominantes sobre a raca®, No entanto, ‘sujeitos raciais” nio so nunca produtos acaba- dose tém fraturas. Um estado recente sobre a classe trabalhadora branca mostra que ela ndo constitui um monélito, posto que tra- balhadores brancos podem ser solidarios com pessoas de cor em certas circunsténcias®. A histiria americana esta repleta de édio ricial, mas também de momentos brilhantes de solidariedade inter- ~racial. Os abolicionistas, como John Brown, progressistas brancos durante os movimentos de direitos civis e jovens ativistas bran- cos nos dias de hoje sic exemplos das possibilidades, ¢ cabe aos ientistas sociais, analistas sociaise organizagbes € Ge politicos progressistas trabalhar para decodificar Reaieioe nexo classe-raga' e concentrar-se nas maneiras oY uals (precisaremos também desfazer os precont a seer ea defendo na “Conclusao” deste livzo).O desenvolviment : politica de mudanga racial éum assunto complexo, mas para agus denés que aspiram a viverem uma sociedade na qual rap clase género e outras clivagens sociais se tornem irrelevantes, nesse enigma & uma obrignglo. O Que Ha de Novo na Quinta Edicao Agora,vejamos o que adicionei nesta nova ed tos Dae oe inalterado; portanto, o niicleo do livro ainda ¢ minha a x “novo racismo” e do “racismo da cegucira de cor". No cotati lizei o material no capitulo 2 sobre o novo racismo. No capita io 30, no qual eu havia abordado o fendmeno Obama nas tltimas ie edigées, encurtei minha discussiosobre ele e adicionei uma an‘ = répida do momento Trump (trabalhei nessa revisio Ree da eleigao, quando todos presurniram que Hillary Clinton a presidente), bem como uma discussio sobre paaaee sociais contemporineos contra 0 racismo, ou seja, 0 ae ves Matter e os movimentos estudantis. Finalmente, a pedido de ze tos colegas que usam este livro em suas aulas, reorganize! nae “Conclusio”, Agora, ea éuma discusstio muito pritica e ide nae (no methor sentido da palavra) de coisas que os leitores pode: fazer para ‘mudar 0 mundo’, E igualmente uma conversa pe direta com meus leitores, dat seu titulo, *O que deve ser feito? Falando com vocé sobre como combater o racismo da cegueira de corna América”. A “Conclusio”é bastante pessoal, posto ge eu me exponho a vocts, leitores deste livro, ¢ revelo Eee < meus pontos de vista politicos acerca do tipo de sociedade e: paerkcio que desejo viver. Isso é arriscado, porém nesta fase (quinta edi¢ao deste livro), e dado que estou na casa dos meus cinquenta anos de idade, tenho pouco a perder. Acredito que a “Conclusio” seri ‘itil e desafiadora para a maioria dos leitores, mas alguns defini- tivamente nao irdo gostar dela, considerando-a um exernplo do “politicamente correto"*S. Eo que é. Isso € tudo por agora, e espero que esta seja de fato a tiltima edigio deste livro. Infelizmente, talvez nfo, pois 0 “racismo sem racistas” que aqui exploro permanece insbalivel e, provavelmente, assim permaneceri nos préximos anos, Eduardo Bonilla-Silva Durham, Carolina do Norte 0 Estranho Enigma da Raga na América Contemporanea Hé um estranbo tipo de enigraa esociado ao problema do na, Ninguém, ou guase ninguém, desea se ver como wide, o racism persiste, real e fenaz. racists 0 ‘Albert Memmi, Racism. Racismo sem “Racistas” Hoje em dia, excego de membros de organizagbes supremadls tas brancas’,poucos brancos nos Estados Unidos se proclamars “acistas”.A matoria dos brancos arma que ‘nfo vé cor nenurriy apenas pessoas”; que embora a face feia da discriminagao ainda esteja entre nés, nfo é mais o fator central que determina as: ore tunidades de vida das minorias; e, finalmente, como declarou o dr. ‘Martin Luther King Jr, que eles aspiram a viver em uma ai dade na qul ‘as pessoas sto julgadas pelo seu cariten nfo pels cor da sua pele”. Mais veementemente, a maior parte dos brancos insiste que as minorias (especialmente os negros) so as penn: siéveis por qualquer “problema de raga” que tenhamos neste pals. Ela denuncia publicamente o8 negros por “explorarein a questts da raga” a fim de angariar simpatia; por exigirem a manutensa (© ESTRANHO ENIGMA DA RAGA NA AMERICA CONTEMPORANEA. de programas bascados na raga, que sio desnecessérios ¢ tendem a ctiar discérdia, como agbes afirmativas; e por clamarem “racismno” sempre que slo criticados pelos brancos). A maioria dos brancos acredita que se os negros ¢ outras minorias parassem de pensar no passado, trabalhassem duro e se queixassem menos (particu- Iarmente de discriminagao racial), americanos de todas 28 cores poderiam “se dar bem’s, Independentemente das “ficgbes sinceras” dos brancos erases raciais sombreiam quase tudo na América. Os negros eas minorias de pele escura esto em defasagem em relacio 20s bran- cos em praticamente todas as éreas da vida social; a probabilidade de serem pobres é trés vezes maior, eles ganham aproximada- mente 40% menos do que os brancos e tém cerea de um oitavo do atriménio liquido dos brancos’. Também recebem uma educasio inferior em comparaso aos brancos, mesmo quando frequentam instituigdes integradas7. Em termos de moradia, unidades de pro- priedade de negros compariveis as de propriedade de brancos sf0 avaliadas em 33% menos‘. Negros ¢ latinos também tém menos acesso a todo o mercado imobiliério porque os brancos, por meio de uma série de priticas excludentes dos corretores ¢ dos proprie- ttirios de iméveis brancos, tém conseguido efetivamente limitar a entrada deles em muitos bairros9. Os negros recebem tratamento indelicado em lojas, restaurantes e em uma série de outeas tran- 5 . Pesquisadores também documentaram negros pagam mais por bens como veiculos e casas do que brancos Finalmente, negros e latinos de pele escura sfo alvos de perfila- mento racial da policia que, combinado com o sistema judicigcio ctiminal altamente racializado, garante sua super-representagio entre detidos, processadlos, encarcerados e, se acusados de um crime Punido com pena de morte, executados*. O pesfilamento racial nas rodovias tornou-se um fendmeno tio predominante que surgiu um termo para deserevé-lo: dirigindo enquanto negro. Em suma, 08 negros ea maior parte das minorias estio “no fundo do pogo”, Como é possivel que exista esse enorme grau de desigual- dade racial em um pais no qual a maioria dos brancos afirma que a raga nflo € mais relevante? Mais importante iaeeee os brancos explicam a apazente contradigfo entre sua declarada cogueira de cor ea desigualdade americana identificada pela cor Neste livro, tento responder a essas duas questoes, Alego que os brancos desenvolveram explicagoes podetosas ~ que acabam se tornando justificativas — para a desigualdade racial contempora- hea que os isentam de qualquer responsabilidade pelo status das pessoas de cor. Tais explicagdes emanam de uma nova ideologia mo da tegueira de cor. Essa ideologia, racial que eu rotulo de r que aa tu coesio e dominancia no final dos anos i 1360", explicn a desigualdade racial contemporéies como o resultado de uma dinmica nfo racial. Enquanto para o racismo Jim Crow’ a posicao social dos negros se devia a sua inferioridade biolégica e moral, 0 racésmo da cegueina de cor evita tais argumentos simplistas. Em ver disso, 0s brancos racionalizam o status contemporaneo das mminorias como o produto da dindmica de mercado, de fendmenos gue ocorrem naturalmente e das limitagées culturais imputadas 4108 negros?. Por exemplo, os brancos podem atribuir a alta taxa de pobreza dos latinos a um relaxamento da ética de trabalho ? matians, nafiana—amanba, amanha, amanha”)# ou considerar a segregacio residencial como resultado de tendéncias nacurais entre os grupos ("Ser que um gato € um co se misturam? Nao consigo ver iso. Vocé no pode beber lite € ufsque. Certas misturas nao se misturam.”)”. : © racismo da cegusira de cor transformou-se na ideologia racial dominante a medida que mudaram os mecanismos ¢ a5 priticas destinados a manter os negros ¢ outras minorias rack “no fundo do pogo”. Argumentei alhures que a desigualdade racial contemporanea ¢ reproduzida por praticas de umn “novo racismo’ itucionais e aparentemente néo raciais™. Es contraste com o periodo Jim Crow,quando a desigualdade racial 2B (OESTRANHO ENIGMA DA RAGA NA AMERICA CONTEMPORANEA foi imposta por meios explicitos (por exemplo, cartazes dizendo “Negros nfo sfio bem-vindos aqui” ou diplomacia de espingarda na urna eleitoral), as praticas raciais atuais operam segundo o modelo “ora vocé vé, ora voc8 nio vé”. A segregacao residencial, por exemplo, hoje quase tio elevada como no passado, no é mais realizada por meio de priticas claramente discriminatérias. Comportamentos encobertos, tais como nfo mostrar todas as unidades disponiveis, direcionar minorias ¢ brancos para deter- minados bairros, orgar aluguéis mais altos ou pregos especificos para pretendentes das minorias, ou nao anunciar unidades so as armas escolhidas para manter comunidades separadas* No campo econémico, a discriminacio de “rosto sorridente” (“Nao temos trabalho agora, mas, por favor verifique mais tarde”), a publicagio de ofertas de trabalho em redes na maior parte brancas e jornais étnicos, ¢ o direcionamento de pessoas de cor altamente instrui- das e qualificadas a empregos mal remunerados ou empregos com oportunidades limitadas de mobilidade sfo as novas formas de manter as minorias em ura posigio secundaria™, Politicamente, embora as lutas pelos direitos c muitos dos obstéculos para a participasio eleitoral das pessoas de cor, a “pritica do gerrymandering? racial, distritos de mil membros, eleigdes em dois turnos, anexacao de areas predo- minantemente brancas, escrutinio plurinominal e provisdes de anti-single-shot’s (proibindo a concentragdo de votos em um ou dois candidatos em cidades que usam 0 escrutinio plurinominal) tornaram-se préticas padrao para privar os os de voto” das pessoas de cor, Seja em bancos, restaurantes, admissBes a escolas ou transagdes imobilidrias, 1 manutengao do privilégio branco € feita de maneira tal que desafia eituras raciais simplistas. Assim, 08 contornos do racismo da cegueira de cor se ajustam muito bem ao novo racismo norte-americano. Comparado ao racismo Jim Crow, a ideologia da cegueira de cor assemelha-se a um “racismo leve”. Em vez de valer-se de xingamentos (niggers spits chinks)"7,0 racismo da cegueia decor faz uso de expresses mais suaves (‘Essas pessoas so também seres humanos”);em vez de proclamar que Deus colocow min Fas no mundo em uma posisfo servi sugere que clas progridem menos porque nio trabalham duro o suficiente; em vez de ve b casamento inter-racial como errado a partir de um principio puramente racial, o considers “problemitico” devido 3 preocy pagoes relacionatias 20s filhos, a0 foal de residencia, ov 20 0080 txtra que impde sobre os casais. Contudo, essa nova ideologt tornouce uma ferramenta politica formidavel para a preservagéo da ordem racial. Assim como o racismo Jim Crow servi come fator de unifcagio para defender um sistema brutal e manifeso de opressio racial no periodo que antecedeu o movimento dos direitos civis, o zacismo da cegueira de cor funciona hoje como 2 armadura ideoldgica para um sistema velado instituionlizsdo na era pés-movimento dos direitos civis. E a beleza desta no ideologia reside no fato de ela ajudar na preservasao do privilégio branco sem alarde, sem nomear aqueles a quem submete € aque Jes a quem recompensa. Ela permite que um presidente ele “Eu apoio enfaticamente todo tipo de diversidade, inclusive @ diversidade racial no ensino superior”, mas, ao mesmo a caracterize o programa de ages afirmativas da Universidade de “discriminatétio” contra os ‘brancos’ posigées que salvaguardam seus inte- . Brotegidos pelo escudo da timento em relagao Michigan como “falho” ¢ Assim, 05 brancos enunciam resses raciais sem que soem “racistas ‘cegueira de cor, eles podem expressar ressent eli ‘Gear sua moralidade, seus valores e sua ética de trabalho; e até alegar que sio vitimas de um “racismo reverso Essa é a tese que defenderei neste livzo para explicar 0 curioso enigma do “racismo sem racistas™ 2 1 (OESTRANHO ENIGMA DA RACA NA AMERICA CONTEMFORANEA Atitudes Raciais dos Brancos na Era P6s-Movimento dos Direitos Civis Desde o final da década de 1950, pesquisas de opinigo sobre atiru- des raciais tém consistentemente demonstrado qque menos brancos endossam as concepeées associadas ao Jim Crow. Por exemplo, enquanto a maioria dos brancos apoiava baitros, escolas, trans- porte, empregos e adcomodayoes piblicas segregados na década de 1940, menos de 25% indicaram o apoio na década de 1970”. Da mesma forma, menos brancos do que nunca parecem agora accitar Pontos de vista estereotipados sobre os negros. Embora o nifimero sinda seja alto (variando de 20 a 50%, dependendo da esterestipo), 4 proporgio de brancos que declara nas pesquisas que os negros Sao pregui¢osos, estupidos, irresponsdveis e violentos tem dimi- nufdo desde os anos de 1940*. ‘This mudangas no que tange as atitudes raciais dos brancos tém sido explicadas pela comunidade de pesquisadores e comentaristas de quatro manciras. Primeiro, ha os otimistas raciais, Esse grupo de analistas concorda com o senso comum dos brancos acerca de uestdes raciais e acredita que as mudancas simbolizam uma pro- funda transi¢do nos Estados Unidos. Os primeiros representantes dessa concepsao foram Herbert Hyman e Paul B, Sheatsley, que escreveram artigos muito influentes sobre o tema no Scientific Ame- rian. Em uma reimpressio de seu trabalho anterior na importante colegao editada por Talcott Parsons e Kenneth Clark, The Negro American (O Negro Americano), Sheatsley avaliou as nas atitudes dos brancos como “revolucionarias" e conc! A massa de amesicanos ys tem demonstrado, de formas, que nfo seguiré um governo racista e que nfo seguir compromisso bésico. Em seus comgies eles sabem que © negro americano tem razto” ‘Nos tltimos tempos, Glenn Firebaugh e Kenneth Davis, Sey. smour Lipset, Paul Sniderman e seus coautores, em. vertu, 3 leant abandeira dos ofmistas rac. Firdoughe Deis os exempl, com base em sua andlse dos resultados de pesquisa de ro72a r984,concluiram que tendéncia na direedo de wm prison ecto antnegro menor era entensivel a todos. Sniderman ¢ seus coautozes, bem como Lipset, dio um passo aléan de Fire mush Davis, porque tém defendido dbertamente politics de eegusira de cor como o modo de resolver os dilemaszacais dos Estados Unt dos, Sniderman e Edward Carmines fizeram esse apelo explicto em sua obra Reaching beyond Race (Indo Além da Raca): " sso com urn pol- Deeg ale peas compro mana pol raat oan ane aed es feel tea qual ang ea evant, mas em favor de una ta qual raga érlevaie ne medida em qe ¢ wn afer descends Ana de ud ¢ um alo pr me pi 86, por ser organiaada em tomo de Sie taiepeieseeatade aga vo ez na questo da raga. ler com forea especial Os problemas com essa interpretacdo otimista sdo duplos. Primeiro, como jé argumentei alhures, recomrer a questdes cas do perfodo Jim Crow a fim de avaliar as visdes zaciais is brancos atualmente produz uma imagem artificial de progres Como os debates raciais centrais¢alinguager usada para discutir seas questdes mudaram, nosso foco analitico deve sex ee A anilise das novas questOes raciais. A insisténcia na necesti de recorrer a questies antigas para manter 0s dados longit (tendéncia) como fundamento da anilise ir4, por padrio, produzir Fa i (OESTRANHO ENIGHIA DA RAGA NA AMERICA CONTEMPORANER 8 ‘uma imagem auspiciosa das relagbes raciais que deixa escapar o que est acontecendo na base, Em segundo lugar, e mais importante, por causa da mudanga no clima normativo na era pés-movimento dos direitos civis, os analistas devem exercer extrema cautela 20 interpretar os dados atitudinais, particularmente quando se trata de projetos de pesquisa de método tinico. A estratégia de pesquisa que parece mais apropriada para os nossos tempos é a de proje- ‘tos mistos (questiondrios combinados com entrevistas, pesquisas etnogréficas’ ete.), porque permite aos pesquisadores cruzar seus resultados, Um segundo grupo, mais numeroso, de analistas exibe o que chamei alhures de uma posigio pessotimisea raciab7. Pessotimistas raciais tentam incutir uma visio “equilibrada” e sugerir que as ati- tudes raciais dos brancos refletem progresso e resistencia, Howard Schuman é um exemplo clissico dessa posturas’. Schuman tern argumentado por mais de trinta anos que as atitudes raciais dos brancos envolvem uma mescla de tolenincia c intoleraincia, de a tazo dos principios do liberalismo racial (oportunidades para todos, fim da segregacio etc.) e de uma rejeicio das pol que transformariam tais principios em realidade (de ages afir- mativas a busing)?, ‘Nio obstante 0 apelo Gbvio dessa concepeao na comunidade dos pesquisadores (a aparéncia de neutralidade, a ponderaczo dos “dois lados”e esse componente de visio “equilibrada”), os pesso- timistas raciais so apenas otimistas no armério. Schuman, por exemplo, apontou que, embora “respostas de brancos a questées de principio sio [...] mais complexas do que é frequentemente retra- clas, no entanto, mostram em quase todos 0s casos um 0 positive ac longo do tempo"®, Ele cré que a mudanca normativa nos Estados Unidos seja real e 0 problema é a dificul- dade dos brancos de traduzir tais normas para preferéncias pessoxis, Um terceiro grupo de analistas alega que as mudangas nas atitudes dos brancos representam o surgimento de um simbélico®, Bssa tradigio est relacionada ao trabalho de Dard ssociado Donald Kinder. Eles definiram o saci e centimento emotivo antinegro ¢ o tipo de valores morais americans tradicionais incorpo _ érica proestante”®, Segundo ees autores 0 racisme simbtcn substituiu o racismo co como a foams pringpal na quis brancos expressam seu ressentimento racial em relag! rias, Nas palavras de Kinder e Sanders: Sears e seu as simbélico como “uma mescla dé ‘Um nove form de presncsito tomou-se proeminente, o> cupada cor quests de cater mora embasada nas rade tstociadas As tradig6es do individvalismo. No seu cent i co suficente seas assergbes de queos negros nove esforgam a wRculdades com gue ee defrontam e que roman eceram, Hoje, dizemos, 0 preconceito & expresso 10 americano. para superar as que no m na linguagem do individual ‘Autores que seguem essa tradigio tém sido eens rea impzeisio do conceito de “racismo simbsieo”, por alegarem gue a mescla de sentimento emotivo antinegro ¢ individualismo Enom, lo expicarem por que o racismo simbélico surgi. A ps ,desenvolvida por Howard Schuman, que oconceto efiido e operacionalizado de maneiras complexas¢ varie gadas’s, Nio obstante essa imprecisdo conceitual, encontrov-s¢ ue os indices de racismo simbdlico diferiam daqueles do clans antigo, sendo fortes preditores da oposigao dos ao aches afirmativasts,As outras duas criticas, feitas com vigor por Lawrence Bobo, foram parcialmente abordadas por Kinder ¢ See seu lire Divided by Color (Divididos Pela Cor), Primero, Kinder e Sanders, hem como Sears, deixaram claro que sua alegagio ni € que essa seja a primeira vez na histéria que © ae ‘ tivo antinegro e elementos do credo americano se cal a a Eles afirmam que essa combinago se tornou centra’ a ee face do racismo. Em relacio a terceira critica, Kinder ¢ Sande: 2 ‘OESTRANHO ENIGMA DA RAGA NA AMERICA CONTEMPORANEA explicam longamente a transi¢io do racismo antigo para o bolico. Mesmo assim, sua explicacio se bascia no argu que as mudangas nas taticas dos negros (da desobediéncia civil & violéncia urbana) levaram a investida de uma nova forma de res- sentimento racial que, postcriormente, encontrou mais combustivel ‘as controvérsias sobre assisténcia social, crime, drogas, familia e agdes afirmativas. O que falta nessa interpretacao é uma explanacio, substancialmente fundamentada, do porqué tais mudangas ocor- reram, Em vez disso, sua teoria do preconceito esta enraizada no “processo de socializagao e na operasio de processos psicolégicos cognitivos e emocionais rotineiros”#. No entanto, apesar de suas limitag6es, a tradigao do racismo simbélico chamou atengdo para os elementos-cheve de como os brancos explicam a desigualdade racial hoje, Se isso 6 ou no “sim~ bélico” do sentimento emotivo antinegro ¢ alheio a questio e dificil de avaliar, uma vez que, como uma ex-aluna minha questionou: “Como se testa o inconsciente?”# ‘A quarta explicagio das atitudes raciais contemporineas dos brancos esti associada aqueles que afirmam que as vis6es raciais dos brancos representam um senso de posiéo de grupo. Essa tesc, vigorosamente defendida por Lawrence Bobo ¢ James Kluegel, € semelhante a “dominagao social” de Jim Sidanius ¢ dos argu- maentos de “interesses de grupo” de Mary Jackman's. Em esséncia, a alegasio de todos esses autores é que 0 preconceito branco é uma ideologia para defender o privilégio branco. Bobo e seus colaboradores sugeriram especificamente que, devido a mudangas socioecondmicas ocorridas nas décadas de 1950 € 1960, surgiu um racismo laissez-faire que era apropriado a “economia ¢ ao regime de governo de trabalho livre modernos, nacionais e pés-indus- trlais” dos Estados Unidoss, O racismo laissez-faire “engloba uma ideologia que culpa os préprios negros por sua relativa condigdo econémica mais pobre, vendo-a como fungao da inferioridade cultural percebida’s, Alguns dos argumentos basics de autores que eee 3 a digBessimbelies © modermas do racismo® eparticularmente, de visto do racismo Jaissex-faire, S40 totalmente see, poten : minha interpretacio do racismo da cegueira oo scm - = desses autores eu argument que o rassmo da cegucia de c rearticulou elementos do liberalismo tradicional (ética femal recompensa por mérito, igualdade de cpostunidades, ai lismo etc.) para cbjesvosracialmenteitbesss, Alego também, como eles, que os brancos hoje dependem mais de topos ulus do que biolgios para explicar a possio dos negros nest pa Finalmente, concordo com a maioria dos analistas de questbes pés-movimento de dircitos civis ao afirmar que os brancos niio percebem a discriminago como um fator central configurativo das oportunidades de vida dos negros. F ‘Kinda que a maior parte das minhasdivergencas com o& autores que seguem a tradigtio ae aeons ince rodologica (ver adiante), dis : Se aed Tent coh rons estdenredada aa problemiticn do preconceit , por conseguints interpreta as visdes raciis dos atores como disposibes picligias individuas. Emlpora Bobo e seus colaboradores tenhamn uma con czitugo mais prxima da minha, eles ind mantém a nogao de sicolégica enxaizados na hostilidade inter-racials. Em contraposigio, meu modelo nfo esté nee as disposgdes afetivas dos atores (nda qu disposes afetva Bota ser manifests oultentes no que diz respito 3 forma cm que muitos expressam seus pontos de vista raciais). Fle se — €m uma interpretapio materialista das questdes raciais ¢, es , os poatos de vista dos atores como corespondentes 2 su loci= laasdosistémica. Aqueles que esti posicionados na parte inferior do barril racial tendem a manter visGes opostas ¢ aqueles que rece bem os miiltiplos salérios da branguitude tendem a apoiar 0 as quo racial. E em grande parte irrelevante para a preservacao a ‘0 ESTRANHO ENIGMA DA RXCA NA AMERICA CONTEMPORANCA privilégio branco se os atores expressam “ressentimento” ou “hos- tilidade” em relagio as minorizs. Como David Wellman assinala em seu Portraits of White Racism (Retratos do Racismo Branco), ‘pessoas preconceitwosas nio sio os tinicos racistas na América”. Termos-Chave: Raca, Estrutura Racial e Ideologia Racial Una das razdes pelas quais brancos ¢ pessoas de cor, em geral, nio concordam acerca de questées raciais se deve ao fato de elas coneeberem termnos como racismo” de modo muito diferente. Para a maioria dos brancos, racismo é preconceito, ao paso que para a maior parte das pessoas de cor o racismo ¢ sistémico ou institucio- nalizado, Embora este nao seje um livro de teoria, minha anilise do racismo da cegueira de cor gravou nele a tinta indelével de um “regime de verdade”s' sobre comoo mundo ¢ organizado. Assim, ao invés de esconder minhas suposisées teéricas, eu as declaro abertamente, para beneficio dos leitores ¢ de criticos potenciais. O primeito termo-chave € a nogio de aca. Ha muito pouco desacordo formal entre os cientistas sociais no que tange a aceitacao da ideia de que raga é uma categoria socialmente construida*. Isso significa que as nogdes de diferenca racial sio criagdes humanas © nao categorias eternas ¢ essenciais. sendo, as categorias raciais tém uma histéria c esto sujeitas & mudanga, E aqui termina © consenso entre os cientistas sociais. Ha pelo menos trés variagoes distintas sobre como eles abordam essa perspectiva construcionista de raga. A primeira abordagem, que esta ganhando popularidade entre os cientistas sociais brancos, € a nogao de que, pelo fato de ser socialmente construida, araga nfo é uma categoria fundamental de anilise e prixis. Alguns analistes chegam a sugerir que, sendo a rasa uma categoria construida, ela nfo € real e slo os cientistas, sociais que fazem uso dessa categoria que a tornam realy. ‘A segunda abordagem, tipica da maioria dos escritos socio légicos sobre raga, louva da boca para fora a visio construcionista social ~ geralmente, Autores nesse grupo procedem, em seguida, & discussio das dife~ rengas “raciais’ no desempenho académico, no crime e nas notas do sav’, como se fossem verdadeiramente raciais®. Essa éa forma bisica pela qual os estudiosos contemporaneos contribuem para a propagacio de interpretagdes racistas de desigualdade racial. Ao deixar de destacar a dindmica social que produz.essas diferengas raciais tis eruditos ajudam a reforgar a ordem racial”, ‘Atereeira abordagem que uso neste livro reconhece que raga, a semelhanga de outras categorias sociais, como classe e género, & construida, mas ineiste que ela tem urna tealidade social. Isso sig- nifica que depois que a raga — ova classe ou o género ~é criada, ela produz efeitos reais sobre os atores racializados como “negros” ou “brancos”. Nio obstante ser instével, como outras construgdes sociais, a rapa possui uma qualidade de “mudar para permanecer igual” em seu amago. ‘A fim de explicar como uma categoria socialmente construida produz efeitos de raca reais, devo introduzir um segundo termo- ~chave: a nogio de estrutura racial. Quando a raga surgi na histéria da bumanidade, ela formou uma estrutura social (um sistema social Tacializado) que concedia privilégios sistémicos aos curopeus (os Povos que se tornaram “brancos”)em detrimento dos nao europeus (0s povos que se tornaram “nfo brancos”)*. Os sistemas sociais Tacializados ou a supremacia branca®, em suma, tornaram-se glo- buis ¢ afetaram todas as sociedades is quais os europeus estenderam seu alcance. Concebo, pois, a estruttira racial de uma sociedade como a totalidade das relagaese priticas sociais que reforca 0 priviligio branes. Por conseguinte,a tarefa dos analistas interessados em estu- dar estruturas sociais ¢ desvelar os mecanismos sociais, econ6s Politicos, de controle social e ideoldgicos especificos responsiveis Dela reproducao do privilégio racial em uma sociedade. ‘OESTRANHO ENIGMA DA RAGA NA AMERICA CONTEMPORANEA ‘Mas por que as estruturas raciais so reproduzidas, em pri- meizo lugur? Porventura os humanos, depois de descobrira loucura do pensamento racial, nao trabalhariam para abolir a raca como uma categoria, bern como uma pritica? As estruturas raciais per- manecem no seu lugar pelas mesmas razdes que outras estruturas o fazem, Uma vez que os atores racializados como “brancos”— ou ‘como membros da raga dominante — recebem beneficios mates da ordem racial, eles lutam (ou recebem passivamente os miti- plos salasios da branquitude) para preservar seus privilégios, Em contraste, aqueles definidos como pertencentes & raca ou As ragas subordinadas lutam para mudar 0 adus guo (ou se resignam & sua posigo). Ai reside o segredo das estruturas raciais e da desigual- dade racial em todo 0 mundo. Elas existem porque beneficiam ‘os membros da raca dominante. Se o objetivo fundamental da raga dominante é a defesa de seus interesses coletivos (ou seja, a perpetuagio do i branco sistémico),o fato de que esse grupo desenvolva racionaliza~ bes para explicar o status das varias racas nao deveria surpreender ninguém. E aqui eu introduzo meu terceiro termo-chave,a nogao de ideologia racial. Com isso queso dizer 9 quadro de referéncias baseado em rasa usado peles atores para explicar e justficar (raga dominante) ou condestar (raga ou ragas subordinadas) 0 status gua racial. Embora todas as ragas em um sistema social racializado tenham a capacidade de deseavolves tis guadros de refer Jes da raga dominante tendem a se tornar os principais sobre 0s guais Zedes os atores raciais fundamentam (a favor ou contra) suas posic6es ideolégicas. Por qué? Porque, como Marx apontou em Die deutsche Ideslogie (A Ideologia Alea), “o poder material dominante numa determinada sociedade é 20 mesmo tempo seu poder espiritual dominante", Isso nfo significa que a ideolo- gia seja onipotente. Na verdade, como mostrarei no 0 dominio ideolégico é sempre parcial. Mesmo em periodos de dominio hegeménico™,como o atual, grupos raciais subordinados desenvolvem pontos de vista oposicionistas. Seria, no entanto, tolice acreditar que aqueles que governam uma sociedade nao tenham o poder de, pelo menos, dar cor (trocadilho intencional) as opinides dos governados, A ideologia racial pode ser concebida para propésitos analiticos como se compreendesse os seguintes elementos: enquaciramen- tos, estilo histérias raciais comuns (detalhes sobre cada um desses clementos podem ser encontrados nos eapitulos 3, 4 € 5). Os enquadramentos que ligam uma ideologia racial particular estio enraizados nas condigoes e experiéncias das ragas com base no grupo ¢ constituem, no nivel simbélico, as represeatagées desenvolvidas por esses grupos para explicar como o mundo é ou deveria ser. Uma vez que a vida grapal dos varios grupos racial- ‘mente definidos baseia-se na hierarquia ¢ dominagio, 2 ideologia dominante expressa como “senso comum” os interesses da raga dominante, enquanto ideologias de oposi¢ao tentam contestar «38e senso comum, fornecendo enquadramentos, ideias e historias alternativos, baseados nas experiéncias das racas subordinadas. Atores individuais empregam esses elementos como “compo- znentes fundamentais [...] para fabricar versdes acerca de ages, do seife das estruturas sociais” em situagdes comunicativas". A frou- idao dos clementos permite que os usudrios atuem em varios Contextos (por exemplo, responder a um questionério relacio- nado a raga, discutir quest6es raciais com a familia ou debater 850¢s afirmativas em uma sala de aula na faculdade) e produzam Varios relatos ¢ apresentagses do seif'(como aparentar ser ambi- Valente, tolerante ou resoluto). Esse cariter frouxo reforca 0 papel dor da ideologia racial porque permite a acomodagio de contradigées, excesdes e novas informagses. Como Jackman afirma Sobre a ideologia em geral, “de fato, a forsa de uma ideologia reside a saa aplicacdo flexivel e frouxamente articulada. Uma ideologia a. instrumento politico, nao wm exercicio de Idgica pessoal: consis- 8 € rigidez, cujo tinico efeito pragmético é 0 de se encaixar”*, 1 (OESTRANHO ENIGMA DA ACA NA AMERICA CONTEMPORANEA. ‘Antes de prosseguir, duas adverténcias importantes devem ser feitas. Primeiro, embora os brancos, devido & sua posicio privilegiada na ordem racial, formem um grupo social (a raga dominante), cles sdo divididos ao longo de classe, género, orien- tagio sexual ¢ outras formas de “clivagem social”. Portanto, possuem interesses muiltiplos ¢ muitas vezes contraditérios que Ao sfo faceis de desemaranhar e que predizem sua capacidade de mobilizagio (trabalhadores brancos tem mais em comum com capitalistas brancos do que com trabalhadores negros?). Todavia, como todos 03 atores premiados com 2 posigio racial dominante, independentemente das suas mtiltiplas situagées estruturais (homens ou mulheres, gays ou heterossexuais, classe trabalhadora ou burguesa), beneficiam-se do que Mills denomina o “contrato ricial”®,a maioria tem historicamente endossado as ideias que justificam o status quo racial. ‘Em segundo lugar, embora nem todos os membros da raga dominante defendam o status guo racial ou 0 racismo da cegueira de cor, a maicria o faz. No intuito de explicar esse ponto por analo~ gia, embora nem todo capitalista defenda o capitalismo (Frederick Engels, coautor de O Manifesto Comunista, por exemplo, foi um capitalista) nem todo homem defenda o patriarcado (debilles ‘Heel {Calcarhar de Aquiles}, por exemplo, é uma revista inglesa publicada por homens feministas),a maioria o faz de alguma forms. No mesmo veio, aindaque alguns brancos lute contra a supre~ macia branca ¢ nao endossem o senso comum branco, a maicria apoia partes substanciais dela de forma casual e acritica que ajuda a manter a ordem racial predominante. Como Estudar 0 Racismo da Cegueira de Cor Recorrerei principalmente a dados de entrevistas para defender minha tese. Essa escolha é baseada em consideragdes conceituais ce metodolégicas importantes. Conceitualmente, meu foco é ana- lisar a ideologia racial dos brancos ea ideologia, racial ou nio, é produzida e reproduzida na interagéo comunicativa®. Portanto, embora os questiondrios sejam instrumentos titeis para coletar informagoes gerais acerca das opinies dos atores, eles sio ferra- ‘mentas extremamente limitadas para examinar como as pessoas 1m, justificam, racionalizam e articulam pontos de raciais. E menos provavel que as pessoas expressem suas posi- ges © emogbes sobre questées raciais resporidendo “sim ou “no” ou “concordo totalmente” ou “discordo totalmente” a perguntas. Apesar do nobre empenho de alguns pesquisadores de produzir questionrios metodologicamente conretos, as perguntas ainda res- tringem o livre fluxo de ideias e coagem, sem necessidade, a gama de possiveis respostas”. “Metodologicamente,meu argumento € que, como o clima nor- ‘mativo na era p6s-movimento dos direitos civis tornou ilegitima a expressio publica de sentimentos € visdes racialmente fundamen tadas™, 05 questioniirios sobre atitudes raciais tormaram-se uma espécie de testes de miiltipla escolha nos quais os respondentes fizem grande esforso para escolher as respostas “certas” (ou seja, aquelas que se encaixam nas normas ptiblicas). Por exemplo, ainda Que uma variedade de dados possa sugerir que as consideracbes Taciais sejam centrais no que tange as opg6es de moradia dos brancos, mais de 90% deles afirmaram nos questionéios nio tet enhum problema com a ideia de negros se mudarem para seus baisros’s. Do mesmo modo, embora cerca de 80% dos brancos ale- uern nfo ter problema se um membro da sua famflia trouxer uma Pessoa negra para jantar cm casa, a pesquisa revela que: r. muito Poucos brancos (menos de 10%) podem legitimamente afirmar 7 1 (0 ESTRANHO ENIGMA DA RAGA NA AMERICA CONTEMPORANEA. & © proverbial “alguns dos mens melhores amigos so negras’; € 2. brancos raramente confratemizam com negros™, Mais importante ainda € a insisténcia dos pesquisadores em voga em fazer uso de perguntas deserwolvidas nos anos de 1950 ¢ 1960 para avaliar as mudancas na tolerdncia racial. Essa estra~ tégia é baseada na suposigio de que 0 “racismo” (o que eu rotulo aqui de “ideologia racial”) no muda com o tempo. Se, em vez disso, se considera que a ideologia racial de fato esteja mudando, a dependéncia de perguntas desenvolvidas para lidar com ques- tes do periodo Jim Crow iri produzir una imagem artificial do progresso e deixar escapar a maioria dos pesadelos raciais con- temporiineos dos brancos. ‘Nio obstante minhas preocupagées conceituais e metodol6gi- ‘cas com pesquisas de opinizio,acredito que, quando bem planejadas, ainda sio instrumentos tteis para vislumbrar a realidade racial da América. Portanto, passo a relatar 0s resultados dos meus préprios projetos, bem como de pesquisas realizadas por outros estudiosos sempre que apropriado. Meu propésito, portanto, nfo € negar a mudanga atitudinal ou condenar ao esquerimento pesquisas de opiniio sobre atitudes raciais, porém compreender as novas crengas raciais dos brancos e suas implicagées, tio bem quanto possivel. Fontes de Dados Os dados deste livro provém principalmente de dois projetos estru- turados de modo similar. O primeiro € 0 1997 Survey of Social Attitudes of College Students (Pesquisa de Opinio Sobre Ati~ tudes Sociais de Estudantes Universitarios), com base em uma amostragem por conveniéncia de 627 estudantes universitirios (incluindo 4sr estudantes brancos) de uma grande universidad do Meio-Oeste (doravante, atv), uma grande universidade do S (su) euma universidade de tmanho médio na Costa Oeste (wu). ‘Uma amostra aleatéria de 10% dos alunos brancos que disponi- bilizaram informagées sobre como contati-los (cerca de 90%) foi entrevistada (42 alunos ao todo, dos quais 17 homens ¢ 24 mulheres dos quais 31 provinham da classe média e média alta e ro eram da classe trabalhadora). A despeito de os dados serem muito sugestivos e, creio eu, essencialmente corretos, esse estudo tem algumas limitagées. Pri- meiro, é baseado em uma amostragem por conveniéncia endo representativa, o que restringe a capacidade de generalizar os resultados para 2 populacio branca como um todo. No entanto, vale ressaltar que o viés nessa amostra esta na direco de maior tolerancia racial, jf que os pesquisadores descobriram consisten- temente que € mais provivel que jovens brancos com formagio universitiria sejam racialmente tolerantes do que qualquer outro segmento da populacio branca’s. Outra limieagio do estudo é que as entrevistas foram realizadas apenas com entrevistados brancos. Esse conjunto de dados, portanto, nfo nos permite verificar se suas opinives sao ou nio diferentes das opinides dos negros. Finalmente, devido a restrigdes orcamentiias, a amostra era pequena, se bem que grande quando comparada & maioria dos trabalhos bascados em entrevistas”, A segunda fonte de dados para este livto € 0 1998 Detroit Area Study (pas). Esse conjunto de dados supera muitas das limitagoes Supramencionadas, pois se baseia em uma amostra representativae inclui um niémero significativo de entrevistas com brancos e negros. O as de 1998 ¢ uma pesquisa probabilistica de 400 residentes, Regros e brancos da drea metropolitana de Detroit (323 brancos © 67 negros),. lice de respostas foi um aceitavel 67,5%. Como. Parte desse estudo, 84 pessoas (uma subamostra de 21%) foram selecionadas aleatoriamente para entrevistas mais aprofundadas (das quais 66 brancas e 17 negras). As entrevistas foram emparelha- as por raga, seguiram um protocols estruturado, foram sealizadas as residéncias dos entrevistados e durarim cerca de uma hora. 1 (OESTRANHO ENIGMA LA RAGA NA AMERICA CONTEMPORANEA. A principal limitagio do conjunto de dados do pas de 1998 6 que os respondentes eram apenas negros ¢ brancos. Como os Estados Unidos se tornaram uma sociedade multiracial, a gene~ ralizacio de uma andlise com base em resultados sobre negros ¢ brancos deve set motivo de preocupseio. Embora eu pressupo~ nha que o racismo da cegueira de cor seja a ideologia geral da era p6s-movimento dos direitos civis, entendo que uma andlise mais completa deveria incluir os pontos de vista de outras pessoas de cor. Assim, utilizarei dados de outras fontes nas minhas conclu- s6es, a fim de mostrar como outras pessoas de cor se encabxam nna nogio de racismo da cegueia de cor. Como observasio final a sa de Opinio Sobre Atitudes Sociais de Estu- tétios de 1997 € 0 DAS de 1998, estou ciente de que alguns leitores podem questionar 2 continuacio de sua validade, Contudo, tanto questionarios como pesquisas bascadas em entre- vistas (por exemplo, Bush 2004; Gallagher 20027 etc.) feitas desde entdo apresentaram resultados semelhantes, adicionando forga 205, meus argumentos neste livro. Politica, Interpretacdo e Objetividade [A pesquisa cientifica social é sempre um empreendimento politico. ‘Apesar do sonho da objetividade pura do Iuminismo*, os pro- blemas que postulamos, as teorias que usamos, os métodos que empregamos e as anilises que realizamos sio produtos sociais ¢, em certa medida, refletem as contradigées sociais e a dintmica de poder. Essa visio é mais accitével nas Ciéncias Sociais atualmente do que hé dez ou vinte anos”. Portanto, mais dificil para os cien- tistas sociais de hoje defenderem o chamado do socislogo Max “Weber para uma separacio entre pesquisacior, método ¢ dados*. “Meus propésitos académicos neste livro sto descrever os prin~ cipais componentes do racismo da cegueira de cor, explicar suas fangdes e usar esses componentes para formula teorias sobre como as futuras relacdes raciais nos eva poderio parecer. Espero que esse empenho seja de valia para que analistas s fo presente impasse sobre a natureza ¢ 0 significado das concep- gBes raciais dos brancos. Contudo, 20 alcangar meus propésitos académicos, espero também atingir um objetivo politico muito maior e importante: desvelar o perfil basico da ideologia principal que reforga a desigualdade racial contemporanea, Por definiclo, portanto, meu trabalho é um desefio para o senso comum branco p6s-movimento dos direitos civis; para a concep¢do de que «raga ‘nfo mais importa; para quem quer que acredite que os problemas que afligem as pessoas de cor estio fundamentalmente enraizados fem suas culturas patoldgicas™. De modo'mais especifico, quero desenvolver um argumento (a natureza sofisticada do racisino da cegueira de cor), uma abordagem (analisar a ideologia racial e nao 0 “preconceito”) e uma politica (lutar contra a dominagio racial com base em uma agenda dos direitos de um grupo") que auziliem acacémicos e ativistas em suas pesquisas e no seu combate contrao absurdo da cegueira de cor. Espero tanabém que este livro sirva de alerta para os brancos liberas ¢ progressistas com cegueia de core ‘0s membros confusos de comunidades das minorias que defendem oportunidades iguais, porém nao ages afirmativas; que acreditam que a discriminagio nao é um fator importante que configura as ‘oportunidades de vida das pessoas de cor; ou que ainda se per- guntam se as minorias raciais realmente tm uma cultura inferior que explica o seu status na América. No entanto, xeconheso que a natureza politica da pesquisa no € um sinal verde para o des- leixo e a parcialidade ou para confiar em dados coletados de forma do sistemitica a fim de fazer gencralizasSes amplas. Por isso, reforgo meus argumentos com dados sistematicos de entrevistas e referéncias quando meus dados ow anélise diferem daqueles dos ‘nalistas tradicionais, permitindo aos leitores encontrar interpre- ‘tagdes alternativas a minha.

You might also like