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Aliciamento no contrato de prestacao de servicos: Responsabilidade de terceiro por interferéncia ilicita em direito pessoal Qists DAVI MONTEIRO DINIZ Mestre ¢ Doutor em Direito Comercial pela UFMG. SUMARIO: 1. O tema, 2. Regra geral: a protecdo contra ato lesivo intencional. 3. Re- gra t6pica: a protegao estabelecida em dispositivo da parte especial. 3]. A proi- bigdo relativa ao contrato de prestagao de servicas. 3.2. Interferéncia ilicita em contrato. 3.2.1. Noticia de direito estrangeiro. 3.2.2, A questo no Direito brasilei- 10. 3.3. Oaliciamento no contrato de prestagao de servigos. 3.4. Ressarcimento de eso a crédito contratual, 3.5. Contengao da responsabilidade civil de terceiro que colabora com o inadimplemento de obrigacdo conjugal, 4. Conclusao. 1,0 TEMA A doutrina de Direito Civil organiza os direitos subjetivos em duas categorias cardeais, direito absoluto e direito telativo, conforme imponham deveres adversus omnes ou t&o-s6 a sujeitos determinados. Trata-se de classificagao que repercute no tratamento dispensado aos efeitos de conduta ilegal, abonando o agrupamento das Tegras a respei- to de ilicitos civis em dois nuicleos respecti- Vos: o inadimplemento das obrigacdes ea res- ponsabilidade civil. _ Quanto a responsabilidade civil, aceito que ela nao decorre apenas de infra- go a direito subjetivo absoluto,’ pois outras Prerrogativas juridicas oferecem distinto ponto de partida para a formagao de dever de ressarcir. Nesse sentido, se o agente transgredir norma que impée dever a todos — por exemplo, a proibigao de colaborar com conduta ilicita’ —, poder ser obrigado a re- parar os danos subseqiientes, Desse ultimo critério, que combina infragdo 4 norma de ordem publica com de- ver de indenizar, derivam numerosos pro- blemas ligados ao campo da responsabili- dade, Dentre eles, destaca-se uma indaga- go que vem suscitando crescente interesse: sea conduta instigada for contra ius por ina- dimplir direito contratual, o estranho, cola- borador do devedor, também sera obrigado a ressarcir 0 sujeito lesado? Com 0 escopo de a ela responder, este ensaio investiga a possibilidade de o credor requerer reparacao de terceiro que auxilia a parte a lesar direito contratual, propondo que tal pretensio pode fundamentar-se tanto 5 Registre-se que a duplicidade foi mantida pelo legislador de 2002. Cf. arts, 389 c 927 do Cédigo Civil Cf. Antunes Varela, 2000, vol. I, pp, 52-53. As | to subjetivo refere-se a prerrogativas que cont querer do respectivo titular dos meios para tutel 3 Cf. arts. 942 do Cédigo Civil ¢ 29 do Cédigo Pi igScs deste autor so aqui adotadas, aceitando-se que direi- m, além de yantagens asseguradas por Ici, a submissao a0 la-las diante de lesio ou ameaga. ‘enal. 28 _ REVISTA Fe em regra genérica, situada na parte geral do Cédigo Civil brasileiro em vigor, como ainda em regulamentos especiais,’ concentrando- se no estatuto pertinente ao contrato de pres- taco de servigos. 2. REGRA GERAL: A PROTEGAO CONTRA ATO LESIVO INTENCIONAL O art. 187 do Codigo Civil estabelece regras de ordem publica, constando ali or- dem de respeito aos bons costumes (boni mores).> Como enfatizado pela doutrina es- trangeira,° numerosos sao os fatos com apti- dao para ferir esse dever, do que dimana dificuldade em sistematiz4-los. Nada obs- tante, podemos destacar ages e omissdes pertinentes a dois grupos em que contrariar bons costumes aparece como denominador comum: em um, a violacao revela-se na conduta orientada por emulago, pela inten- go de causar dano sem que se tenha em conta a defesa de qualquer interesse legiti- mo; no outro, o infrator utiliza-se conscien- temente de meio ilegal para obter beneficio cujo desfrute nao suscitaria indignagao se fosse alcangado de modo licito. Pode-se dizer, portanto, que condutas guiadas por dolo ou por fraude incidem con- tra bonos mores, pois estio maculadas por intencional desonestidade. Logo, ao abala- rem 0s efeitos de negécio juridico’ ou de ou- tra posi¢o protegida, elas acarretarao as sang6es civis previstas em lei. Em reforgo a esse postulado, haa afir- magao de que instigar alguém a violar dever juridico, quando feito a revelia de qualquer motivo digno, perfaz conduta cuja imorali- dade é to forte que causa repulsa generali- 4 Cf, por exemplo, o direito de regresso do transportador na hipétese do art. 735 do Codigo Civil; també de contratos possessérios diante de terceiros; e Mesquita, 1999, tratan- Savatier, 1934, ao relatar a prote ENSI VOL. 375 zada." ‘Tal propicia a declaragao de ilega- lidade desses atos, resguardando a concreti- zagio de duplo objetivo: obrigar o agente a reparar as lesdes decorrentes ¢ evitar que a atitude vil seja imitada a ponto de desenca- dear ilegalidades em seqiiéncia Por outro lado, se 0 auxilio ou estimulo oferecido ao devedor para que nao cumpra a prestacio obrigacional é implementado em defesa de escopo legitimo, torna-se necess4- rio aquilatar os interesses envolvidos, urna vez que no haverd infragao, justificando-se a conduta. Verdadeiramente, trata-se de comportamento licito, embora esteja expos- to a ser erroneamente inquinado de ilegal se a andlise conduzir-se apenas por elementos objetivos. Desse modo, nao estario no mesmo patamar: o sindicato que estimula os empre- gados de uma sociedade comercial a greve e © concorrente mercantil que apoia a referida paralisacdo para arrasar economicamente 0 adversario; a associagao que conclama seus participes a interromperem contratos em ra- Zio de alta injustificada de pregos do forne- cedor e a que faz isso para extorquir vantagem indevida; ou o empresario que re- clama da conduta desidiosa de empregados de outra empresa e aquele que instiga a de- misso de trabalhadores para concretizar objetivo inaceitavel. Pelo até aqui exposto, mostra-se opor- tuno adicionar que, no caso de dano advindo de dupla infragao — a decorrente da conduta do contratante que rompe o pacto ilicita- mente e a provocada por terceiro que fere a lei por incita-lo ou ajudé-lo —, somam-se, naturalmente, responsabilidades de nature- za contratual e extracontratual: a primeira, por inadimplemento; a outra, por infrin- gir-se dever de carater geral.” do da hipdtese de tutela aquiliana de direitos pessoais de gozo. CF. Capitant, 1921, p. 70. Cf. Savatier, 1951, vol. 1, p. 45. Cf. Lima, 1962. Cf. Lalou, 1928. Cf. também AMES, 1904-1905, Cf, particularmente, arts. 148 ¢ 161 do Codigo Civil. DOUTRINA 29 3. REGRA TOPICA: A PROTECAO ESTABELECIDA EM DISPOSITIVO DA PARTE ESPECIAL 3.1. A proibigao relativa ao contrato de prestagao de servicos O art. 608 do Cédigo Civil de 2002 proibe que se alicie prestador de servigo que esteja vinculado por contrato escrito, penali- zando 0 aliciador com a obrigagdo de pagar consideravel quantia. Como se trata de orien- tago inspirada em outros ordenamentos, mostra-se de bom alvitre assim contextuali- zA-la, para depois retornar-se ao texto adota- do pelo legislador brasileiro. 3.2. Interferéncia ilicita em contrato 3.2.1. Noticia de direito estrangeiro A proibigao de aliciamento tem raizes seculares. Ainda no periodo medieval con- feria-se, em territ6rio de influéncia norman- da’ e com respaldo no Direito comum, ago que facultava ao autor alcangar reparagdes por prejuizos causados pelo aliciamento de servigais. Além disso, com o advento da Peste Negra, no século XIV, uma forte es- cassez de trabalhadores rurais permaneceu por anos, levando a que a defesa do senhor de terras contra a cooptagdo de trabalhador do feudo fosse reforcada por editos reais 10 __Relativo ao norte da Franga e o sul da Inglaterra. promulgados nos dois lados do Canal da Mancha, deslocando-se a proibigao do cos- tume a lei escrita.'! De tal modo enraizado, © instituto permaneceu na Idade Moderna e depois in- teragiu com as mudangas trazidas pela Re- volugao Industrial, periodo em que 0 mo- delo de proibi¢ao de aliciagao de trabalha- dor subordinado foi ampliado para envolver outros regimes de prestagao de trabalho, fe- némeno este inicialmente registrado em Inglaterra e Franga,'? de onde se irradiou para outros paises. Quanto ao desenrolar dessa trajetéria na tradi¢ao anglo-americana, sabe-se que as antigas regras sobre a protegao das relagdes entre master e servant diante de terceiros mostraram-se uteis para solucionar, no século XIX, litigios contratuais derivados de servi- gos prestados sem subordinagdo, aptido mais tarde aproveitada para dirimir lides a respeito de interferéncias perpetradas em outros contratos bilaterais.'” Trilhando essa evolugao, as Cortes inglesas e dos Estados Unidos construiram regras adicionais para punir situagGes de intromissio ilicita em re- lagdes contratuais, casos geralmente agru- pados no género tort of interference." A adogio dessas balizas pelo common Jaw foi feita com ponderaco, porquanto a jurisprudéncia pautou-se por considerar que a interferéncia de terceiro poderia ser aceita ou proscrita de acordo com os interesses em i Cf. Palma, 1992. Ao lado de reforgar tanto o poder dos senhores feudais como a Posi¢ao de inferioridade institucional dos trabalhadores, impossibilitados de buscar melhor pagamento, pode-se deduzir 0 sentido pratico da interdigdo: retirar ruralistas de uma drea agricola na época da colheita poderia significar a ruina da produgdo, perdendo-se a oportunidade de colher os frutos correspondentes. Além disso, quando a pres- tagao de trabalho nao se tratava de pura e simples servidio, os contratos correspondentes cram, na maioria das vezes, por prazo determinado. Inexistia, portanto, incerteza sobre o fato de que descumpri-los acarreta- ria sangGes juridicas para a parte inadimplente. 12 No Dircito inglés, a doutrina cita, como precedente inicial, o caso Lumley v. Gye (1853) [2 E & B 216], em que um empresario aliciou cantora de épera, levando-a a romper contrato anteriormente celebrado. No Di reito francés, veja a seguinte ementa: “I! y.a concurrence déloyale donnant ouverture d une action en dom- mages-intéréts dans le fait de la part d'un directeur de café-concert, des entendre avec un artiste pour lui Jaire rompre ses engagements avec un établissement rival” (C, de Paris, 4.2.1865, Lorge c. Thérésa Valladon €t Goubert.) In Annales de la Propriété Industrielle, Artistique e Littéraire, 1865, pp. 154-155. 13 CE.Note, 1980, 14 Cf. Prosser, 1941, pp. 972-1.012. Além de lembrar a interferéncia ilegal em outras posigSes juridicamente protegidas ~ e.g, unlawful interference with prospective economic advantage ~, 0 autor faz referéncia & formula inducing breach of contract. A linha mestra deste ilicito revela-se pela imputagao de responsabili- dade extracontratual (tort) a terceiro que perturba ou impede a regular execugao de contrato. 30 REVISTA FORENSE ~ VOL. 375 conflito. Todavia, no que respeita ao regula- mento de disputas econémicas nos mencio- nados paises de lingua inglesa, chama atengao o consenso no sentido de se repro- var firmemente a interferéncia de empresa- tio em contratos de rivais.'° Ja no Direito francés posterior 4 Re- volugao de 1789, a interdigdo de se interferir em contratos de locacao de servigos celebra- dos com operarios'® respaldou-se no uso dos ditames de defesa dos bons costumes, consi- derando-se o aliciamento ilicito civil. A partir de tais diretrizes, a proibigao de o emprega- dor turbar contrato de trabalho alheio pas- sou a constar de legislacao especial a partir de 1932, sendo hoje delineada no art. L 122-15 do Code du Travail."” Em apertada sintese, cumpre destacar que, por esse dispositivo, 0 novo patrao res- ponde de modo solidario pelos prejuizos cau- sados ao precedente empregador se: a) inter- feriu no contrato de trabalho anterior cola- borando para provocar ruptura; b) contratou 0 empregado sabendo que este permanecia ligado a contrato anterior incapaz de coexis- tir com 0 novo; ou c) apés contratar 0 em- pregado, soube da existéncia de outro con- trato de trabalho, mas ainda assim prosse- guiu com o pacto incompativel — ressalvan- do-se, quanto a este item, a previsao de ex- cegdes pontuais ao implemento de puni¢gao. Também no sistema juridico italiano verifica-se que, ao lado das hipéteses pontuais decalcadas no Cédigo Civil peninsular, a aplicacao das regras de responsabilidade em prol de uma ampla defesa do direito de cré- dito em face de terceiros vem ganhando prestigio na jurisprudéncia mais recente, aceitando os Tribunais a possibilidade de danno ingiusto em outras situagdes que a protecao de direito absoluto. Todavia, a doutrina adverte sobre as dificuldades percebidas no debate sobre essa hipétese de responsabilidade,'* uma vez que 0 tema envolve o deferimento de tu- telas por demais diferenciadas, englobando casos tais como contratos de trabalho, direi- tos de gozo sobre imoveis, responsabilidade de administradores de sociedade e perda de chances juridicamente protegidas, sem que neles se encontre um verdadeiro liame te6 co unificador."” 3.2.2 A questao no Direito brasileiro Com 0 advento da Republica, o Brasil acolheu parcialmente a disciplina francesa sobre 0 tema, como documentado em legis- 15. Ibidem, p. 738. Expe 0 autor: “(...) The courts have held that the sanctity of the existing contract relation takes precedence over any interest in unrestricted competition, and have enforced as law the ethical pre. cept that one competitor must keep his hands off of the contracts of another.” 16 Consoante a ementa a seguir: “L ‘individu qui, par le promesse de certains avantages, détourne un ouvrier des ateliers d'une usine pour le faire entrer dans une autre, peut étre condamné d des dommages. inter ts, foiten vertu du principe général posé dans l'art. 1382 duu Code Napoleén, soit par application des disposi tions spéciales de la loi du 22 germinal an XI” (C. de Paris, 26.1.1856, Her. d’Arlincourt ¢. Fleury) In Annales de la Propriété Industrielle, Artistique e Litteraire, 1856, pp. 124-125. Um extrato desta antiga lei pode ser encontrado na internet e1 17 Code du Travail, Article L 122-15: * ‘. rsqu'un salarié, ayant rompu abusivement un contrat de travail, engage aoe Ses services, le nouvel employeur est solidairement responsable du dommage causé @ |'employeur. précédent dans les trois cas suivants: 1. Quand il est démontré qu'il st intervenu dans la ruptures ?. Ouond ila embauché un travailleur qu il savait déjé lié par un contrat de travail: 3. Quand ila continué 6 occuper un travailleur aprés avoir appris que ce travailleur était encore lié d un autre employeur par un contrat de papal Dans ce troisiéme cas, la responsabilité du nouvel employeur cesse d'exister si, au moment ou ila caé averti, le contrat de travail abusivement rompu ar le salarié était venu & expiration, soit s ils agitde conirats d dance adlerminge par l'arrivée du terme, soit s'il s agit de contrats & durée indéterminge par ‘expiration da délai-congé ou si un délai de quinze jours s était écoulé depuis la rupture dudit contrat” (o texte dec, artigo ode ser encontrado na internet em ). 18 Cf. Alpa, 1991, p. 202: “(..) la dottrina odierna ha superato la dicotomia ammissibilita/ inammissibilita ‘sasaregare 1a fattispecie lesione del credito in diverse sotto-figure presentanti ciascuna und si, propria Siustificazione o una sua propria logica.” 19 Cf. Alpa; Bessone; Carbone, 1995, vol. 4, pp. 1-151, onde consta substancial registro das decisdes. 0” ¢ doutrina. Nao impressiona, pois, tro dessa influéncia no an- laga trar o regis i ferlor Cddigo Civil brasileiro,” que proibiu o aliciamento nos termos do art, 1.235.” Pa- ralelamente, aponte-se a proximidade entre os ordenamentos francés e brasileiro no combate 4 concorréncia desleal, como hoje se vé na redagao do art, 209 da Lei n° 9.279/96, que veda a interferéncia desleal de empresario em negécios de competidores. Relativamente as leis sobre trabalho, porém, as circunstncias politicas da primei- ra metade do séc. XX levaram o Brasil a adotar opgdes mais proximas ao Direito ita liano entao vigente. No bojo dessa tendén- cia, a Consolidagao das Leis do Trabalho de 1943 no se expressou a respeito de eventual responsabilidade de terceiro que porventura colabore com 0 inadimplemento de obriga- cdo estabelecida pelo contrato de trabalho.” 3.3. O aliciamento no contrato de prestagdo de servigos Nos termos do art. 608 do Cédigo Ci- vil brasileiro," quem estimular o prestador de trabalho a romper pacto laboral para prestar servigos a outrem ficara adstrito a pagar o prego que seria devido pelo tomador por dois anos de exist@ncia do contrato rom- pido. Como o dispositivo foi em grande par- te construido nos moldes do Cédigo Civil de 1916,” cabe destacar pontos de referéncia do antigo texto que ainda hoje auxiliam o cntendimento dos termos em vigor. Em primeiro lugar, a redago feita no século XX foi desenvolvida em consideragao a.uma época em que os contratos de trabalho 20 Cf. o art. 205 do Cédigo Penal brasileiro de 1890. 21 Lein® 3.071, de 1° de janeiro de 1916. 22 Art. 1.235 (Codigo Civil de 1916): DOUTRINA _ 31 eram majoritariamente negociados por prazo determinado.” Destarte, a regra condiciona- va-se pela previsao legal, também comum aos dias atuais,’’ de que a rescisdo do pacto antes do termo final poderia desencadear o dever de 0 denunciante indenizar a parte inocente pelo lapso de tempo inadimplido; conseqiiéncia que, rememore-se, nao se re- produz de modo idéntico na disciplina de contratos por prazo indeterminado. Além disso, perplexidade ha sobre os motivos legislativos de se estabelecer, ao in- vés de indenizagao pelo efetivo prejuizo cau- sado pelo aliciamento, multa prefixada, des- considerando-se as classicas balizas deriva- das da reparagaio de danos emergentes e lu- cros cessantes. A resposta para tal questéo parece estar no propdsito de o legislador pre- tender, em termos civis, a estabilizagdo de ru- dimeniar regra de ordem publica, voltada a proteger mais precisamente nao a esfera per- sonalissima do sujeito ou os seus bens, mas sim 0 exercicio de atividade empresarial, que no Brasil do inicio do século XX concentra- va-se nos planos agrario e comercial. Por derradeiro, ressalte-se ainda que na Europa e nos Estados Unidos esse meca- nismo foi utilizado ao longo do século XIX para responsabilizar outras pessoas além de empregadores, quais sejam, integrantes de sindicatos e associagdes de trabalhadores, quando interferissem em contratos median- te movimentos operarios de reivindicagao. Embora este particular uso do instituto te- nha sido progressivamente reduzido diante da afirmagao de direitos sociais ao longo do século XX, 0 interesse em que tal proibigio niio se restringisse a questoes de concorréncia ‘Aquele que aliciar pessoas obrigadas a outrem por locagio de servigos ‘agricolas, haja ou nao instrumento deste contrat, pagaré em dobro ao locatario prejudicado a importancia que ao locador, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante 4 (quatro) anos. 23 Decreto-lein® 5.452/43: “Nada obstante, o seu art, 482, ao versar sobre demissio por justa causa do empre~ gado, descreve situagdes de possivel conluio entre terceiro ¢ 0 trabalhador faltoso. 24 Art. 608 (Codigo Civil de 2002): “Aquele que ali iar ps "as obrigadas em contrato escrito a prestar servi- go a oulrem pagard a este a importéncia que ao prestador do servigo, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos.” 25 Inclusive mantendo-si trabalhador, com 0 objetivo de coopt-lo, 26 Cf, atualmente, art. 598 do Cédigo Civil, 27 Cf. arts. 602 e 603 do Cédigo Civil, © termo “aliciar”, envolvendo significados que transitam da sedugio ao suborno do 32 REVISTA FORENSE ~ VOL. 375 mercantil sobreviveu por décadas, influen- ciando a escolha por termos de maior ampli- tude, que nao se limitassem a punir empre- sdrios. Assim, as regras atuais pouco diferem daquelas do Cédigo Civil anterior, embora a sutil mudanga adicionada refira-se a ponto importante: o que antes protegia singular ca- tegoria de empreendedor atualmente extra- pola os limites da ento chamada locagao de servicos agricolas, vinculando quaisquer to- madores de servigo que participem desse tipo civil de contrato. 3.4, Ressarcimento de lesao a crédito contratual Ao se aceitar que terceiro, por ferir dever oponivel a todos, seja punido por dano causado a direito de crédito, desven- da-se um modo de utilizacao de regras de al- cance geral para defender o contratante diante de terceiros. A protegiio estabelecida no art. 608 do Cédigo Civil nao trata, é certo, de infragao a dever instaurado pela mera existéncia de crédito, mas sim dos efeitos de se contrariar outra espécie de regra — cogente -, cuja transgresso, quando acompanhada de lesdo a bem patrimonial, impde que se repare 0 dano resultante. Outrossim, se ha injustifi- cAvel desobediéncia a regime de ordem pui- blica que regule atividade ou liberdade (aio ilicita), concretizada mediante condu- ta que provoque lesao direta (nexo causal) a bens econdmicos juridicamente protegidos (no caso, a prestacao exigivel), a diminuigao patrimonial pode ser compensada por dever de ressarcir (dano indenizAvel). Neste ponto, porém, a matéria comega a ganhar contornos préprios, por se referir a situagdes que se diferenciam da protegao as- sociada a direitos como o de crédito, proprie- dade ou personalidade. Enquanto o dever de ressarcir por ato ilicito esté, quanto aos direitos subjetivos privados, em principio Vineulado a presenga de dolo ou culpa em senso estrito,”* os regulamentos especiais de atividade nado adotam necessariamente essa premissa, nada obstando a que restrinjam os tipos ilegais a casos dolosos;” ou prescre- vam deveres de abstengao de modo incondi- cionado, desconsiderando aspectos subjeti- vos.” Reafirma-se dessa maneira que, dife- rentemente do estabelecido para direitos subjetivos tradicionais, as posigdes protegi- das a que nos referimos nao compartilham de regime comum, porquanto nao sao trata- das de modo homogéneo pelo ordenamento Conseqiientemente, nem todo conluio com conduta infratora sera simplesmente punido com imposigao de dever de indenizar, ja que isto depende de conjugar-se o estatuto perti- nente ao dever geral transgredido com a na- tureza ~ particularmente, se patrimonial ou ndo — da posigdo juridica prejudicada pela conduta ilicita. Quanto a esse ponto em particular, ressalte-se que a eventual auséncia de inde~ nizagdo pecunidria no impede a protegao de prerrogativas pessoais por sangées de en- vergadura superior, tais como cassagao de direitos ou constituigao de abstengdes exigi- veis in specie, potencializando-se a protegao aos lesados sem descurar-se do interesse pi blico no uso de meios adequados para efeti- va-la. Tal pode ser demonstrado tomando-se em consideracao 0 estatuto aplicdvel ao di- reito pessoal que se forma com o casamento. 3.5. Contengo da responsabilidade civil de terceiro que colabora com 0 inadimplemento de obrigagao conjugal Embora hoje distanciados pela espe- cializagio das relagdes sociais, anterior pro- ximidade entre impedimentos trabalhistas ¢ proibigSes decorrentes de vinculos conjugais € rememorada, em termos histéricos, pela doutrina anglo-americana,”' que identifica o 28 Sem prejuizo de aplicarem-se sangSes inibitérias a revelia de incorrer o agente em culpa ou dolo. 29 CE, por exemplo, art. 1.228, § 2°, do Cédigo Civil. 30 Assim, enquanto a regra de protegao aos bons costumes a todos vincula, a aplicacao de pena por aliciamen- to de trabalhadores opera em campo restrito. 31 Cf. Sayre, 1922-1923. DOUTRINA 33 poder institucional do pater familias roma- no perante familiares e servos como 0 nas- cedouro das regras adotadas em paises com 0 intuito de impedir turbagées a tais relacio- namentos. Com efeito, os estudos demonstram que a vedagao de interferéncia em lagos fa- miliares era elaborada pelo antigo Direito costumeiro inglés de modo préximo 4 defe- sa das relacdes estabelecidas entre master e Servant, permitindo ao marido requerer in- denizagao de quem auxiliasse a consorte a descumprir deveres matrimoniais, pedido que inicialmente” se apoiou na alegacao de frustragao de servicos (loss of services)” de- vidos pela mulher no cotidiano doméstico.** Entretanto, no decorrer do século XX, ante a constatagao de que o exercicio dessa prerrogativa freqiientemente resultava em situagdo contraria ao interesse publico,”* leis vieram a abolir o direito de o varao ser inde- nizado por tal fato, até registrar-se o ban: mento da pretensdo na Inglaterra e na maioria das unidades federadas dos Estados Unidos.” Em abordagem de efeitos similares, 0 Direito alemao do inicio do século XX pu- blicou a tese de se revestir a relagao conjugal por direito pessoal absoluto, com eficdcia erga omnes, ensejando a formacio de pre- tensdes de abstengdo e indenizacdo contra terceiro que interferisse no cumprimento de dever matrimonial.”* Jé naquele tempo, po- rém, refutava-se que o cimplice de infideli- dade indenizasse 0 cénjuge inocente, ar- gumentando-se que o terceiro nao poderia responder em maior extensio que 0 infrator principal;” ¢ mesmo, hodiernamente, rela- ta-se que a jurisprudéncia continua a nao im- por a terceiro dever de indenizar apenas por participar dessa quebra de dever conjugal.” Quanto ao Direito francés, consta- ta-se a tradigdo"' de se impor ao cénjuge cul- pado o dever de ressarcir danos morais e materiais causados ao parceiro inocente, de acordo com o art. 1.382 do Cédigo Civil, aceitando-se ainda que tal dever enlace o cumplice de adultério. A doutrina atual con- firma a permanéncia dessa faculdade, mas sublinha o desaprego que ela pode suscitar.’” 32 Posteriormente, a jus‘ificativa deslocou-se para a idéia de loss of consortium. 33. Cf. Witt, 2000, pp. 723-724: “(...) Thus, a ‘master may bring an action against any man for beating or mai- 35 36 37 38 39 40 41 42 ‘ming his servant’ to recover damages for the ‘loss of his service’. A similar property right existed between @ head of household and his wife; just as the ‘seduction’ of a man’s wife created a cause of action by the husband against the seducer, so injury 10 a wife gave rise to an action in the name of the husband for loss of consortium — an action of trespass per quod consortium amisit (...)." Cf. Stephen, 1950, p. 330: “(...) Akin to this action by a master for enticement of his servant is the common law remedy which a husband may still seek against any person who, without lawful excuse, deprives him of the society of his wife.” Cf. Prosser, 1941, p. 937: “(...) Those actions for interference with domestic relations which carry an accusation of sexual misbehavior — that is to say, criminal conversation, seduction and to some extent alienation of affections — have been peculiarly susceptible to abuse. (...) that people of any decent instincts do not bring an action which merely adds to the family disgrac CE. Street, 1972, p. 389. CE. Corbett, 2001 Cf. Enneccerus; Kipp; Wolff, t. 5, vol. 1, pp. 189-190. Os autores descrevem uma hipétese aplicavel ao caso: “(...) por ejemplo: si un padre tiene encerrada a su hija, a pesar de que ésta quiere ir con su marido, éste puede, conforme al § 823, ap. 1, demandar del padre la reposicién natural, 0 sea que permita a la hija abandonar el domicilio del padre y le indemnice los daiios causados.” Ibidem, t. 5, vol. 1, p. 190, nota 9. Cf. Schliiter, 2002, p. 121. O autor lembra ainda causar ofensa ilicita a direito da personalidad: Cf. Lalou, 1928, p. 188. O autor relata o enter honestidade, por isso acarretando dever de in que outra serd a solugao se 0 terceiro conduzir-se de modo je ou aos bons costumes. ndimento pretoriano de se considerar falta grave contra a 5 lenizar, a conduta: “(...) par une femme mariée de se mal conduire et de causer ainsi un préjudice moral d son mari (Trib. Civ. ead So dee 1908 [..]) Cette décision Ce Male, mart te droit d'agir en dommages-intéréts contre le complice d adultére de sa femme.” ani Anes, 1995, pp. 231-232. “(..) La réparation civile prend la forme de dommages-intéréls, pardois accordés en cas d’infidélité, encore que cette indemnité soit mal vue: ilest choquant de voir la victime @'un adultére batire monnaie de son infortune et des aventures galantes de son conjoint.” 34 REVISTA FORENSE ~ VOL. 375. _ 7 No que concere ao Direito italiano, a doutrina acompanha com cautela os pronun- ciamentos da jurisprudéncia. Nesse sentido, uma decisdo em particular chama atengiio: trata-se de acérdio do Tribunal de Roma a respeito de litigio em que o autor pediu a condenagao do cimplice de adultério a pa- gar indenizagdo, restando provada a conduta ilicita pela juntada de sentenga civil que re- conhecia a participagao deste na violagiio de dever conjugal.” . aa Atendo-se a parametros mais atuais, a ago foi julgada improcedente. Conquanto o Tribunal tenha considerado razodvel reco- nhecer, em tese, 0 ilicito de indugdo ao ina- dimplemento de dever conjugal, assentou que tal implica mais que simples participa- ao na ilegalidade relativa: deve-se provar tanto que o terceiro efetivamente induziu ou instigou a conduta infiel, ampliando a pro- babilidade de que ela ocorresse, como ainda a presenga de imediato dano patrimonial ad- vindo da violagao do dever de fidelidade;** fatos que, in casu, no foram demonstrados pelo autor. No Brasil, além da ampla seguranga concedida ao crédito alimentar, tradicional em nosso ordenamento, o Cédigo Civil de 2002 prescreve a defesa da comunhio de vida instituida pela familia em face de tercei- ros, como disposto no art. 1.513.*” Nos ter- mos da redacao adotada, é natural que no baste, para delimitar o respectivo campo de aplicagaio, téo-s6 caracterizar-se situagado de interferéncia: mostra-se igualmente impor- tante averiguar se ela ocorreu de modo licito ou ilicito; e, no que respeita a eventuais pre- tensdes de indenizagao, perquirir se a falta proyocou efetivo ¢ direto dano indenizé& vel. 4, CONCLUSAO A explicitagao do dever geral de nao violar os bons costumes, presente no art. 187 do Cédigo Civil, auxilia a rigorosa con- denagao dos atos emulativos, embasando a responsabilizagao extracontratual de tercei- ro que dolosamente provoca, instiga ou au- xilia o inadimplemento de direito de crédito objetivando causar prejuizo ao titular. O crédito de natureza contratual participa des- se esquema de responsabilizagao, revelando patriménio efetivamente lesado em decor- réncia de ilicito delitual. Ademais, os termos adotados no men- cionado dispositivo so aptos para funda- mentar outros deveres gerais eventualmente protegidos contra atos dolosos ¢ culposos, 0 que poderé ampliar os limites dessa prote¢ao. A responsabilidade de terceiro que provoca a resolugao do contrat de servicos Por aliciar o prestador de trabalho decorre de dano patrimonial originado de infragao a dever extracontratual especifico, fixado pelo art. 608 do Cédigo Civil, cuja especia- 43 Cf. Alpa; Bessone; Carbone, 1995, vol. 1, pp. 277-282, 44 Ibidem, p. 278: “(..) Come autorevole dottrina ha osservato, sia il pitt moderno assetto dei rapporti tra co- niugi, sia la disciplina della fase patologica, stanno a dimostrare come la fedelta abbia perduto origina rio carauere di obbligo formale imposto dall'esterno e tutelato quale valore giuridico autonomo e ‘ilevante sul piano privatistico (separazione per addebito) e (una volta anche) sul piano penalistico (acul. serio ¢ concubinato) per assumere significato sostanziale, sganciato dal dovere di esclusiva sessuale ¢ col. legato invece al reciproco vincolo di responsabilita dei conjugi.” 45° dbidem, pp. 281-282. “(..) In altri termini, dal momento che un coniugi non ha diritto di essere garantito Sontre {ntschi del tradimento at quali é gia esposto per ilfatto che si ésposato, il problema della response. bilita del terzo danneggiante sussiste solo nel caso in cui quest ultimo, con la sua condotta, determint ap ampliamento delle probabilita che si verifichi violazione dell'obbligo di fedeltd. Pertanto, la tutela dit un imarito nei confronti dell'amante della moglie pud conflgurarsi sono in questa ipotesi enon in quella tn cut sia la mogiie a prendere la concreta iniziativa di tradire il marito cercando il rapporto sesouate 0 affettivo com il terzo.” 46 Cf. art. 948, II, do Cédigo Civil, 47 Art. 1.513 do Cédigo Civil de 2002. f defeso a qualquer pessoa, de direito piblico ou privado, interferir na comunhio de vida institufda pela famili 48 Sem mesclar-se essa questéo com aquelas em que ha violagio a dircito da Personalidade, cuja oponil 4 adversus omnes do dircito violado remete o problema para patamar diverso do aqui estolong DOUTRINA 35 lidade permite apurar a responsabilidade do infrator ndo apenas por dolo, mas também a. Por cuPa.fundiveis com direitos da perso- nalidade, direitos pessoais nao-patrimoniais por vezes refogem ao amparo pecuniério Gferecido pelo regime de responsabilidade civil, pois as conseqiiéncias advindas de se- rem infringidos reportam-se aos especificos estatutos de origem, 0 que repercute no de- bate sobre os efeitos da participagao de ter- ceiro no abalo a dever constituido inter partes. A diferenciagao das solugées legisla- tiva e jurisprudencial concernentes a res- ponsabilizagao daquele que, externo ao vinculo, interfere em direito pessoal revelaa dificuldade de adotar-se referencial comum para coordend-las — sem embargo da perma- néncia dessa desafiadora proposta.

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