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0 6 A experiéncia amorosa e a reflexdo sobre o Amor © Amor é, de facto, 0 principal tema de toda a lirica camoniana - como 6, n'Os Lusiadas, uma das grandes linhas que movem, organizam e dao sentido ao universo, elevando os herdis a suprema dignidade de, através dele, atingirem a divinizagao. Na Litica de Camées, o amor é, contudo, fonte de contradigdes vivamente senti- das: ele é sucessivamente «fogo que arde sem se ver», «ferida que déi e nao se senten, «contentamento descontente» ~ daf que dificilmente ele possa trazer consigo a ale- gria e a paz. E algo de indefinivel [.... © amor aparece nestes poemas sob uma dupla abordagem. Uma é a sua aborda- gem & maneira petrarquista, de raiz provencal e neoplaténica. Trata-se de um amor: espiritualizado, em que no se vislumbra 0 corpo dos amantes, que se compraz na adoracao e contempiacao do ser amado e que leva a que 0 amador se «transformen na «cousa amaday. Num amor assim vivido, a auséncia da amada no sé no é sentida com dor, mas é encarada como ocasiao de purificago do sentimento amoroso. A mulher amada, encarada como reflexo da beleza divina, 6 a ponte para a perfeigdo do «amador», Assim, ela no ¢ retratada com tragos fisionémicos precisos ~a sua beleza, que é grande, reside sobretudo no olhar, «brando e piedoso»,na postura chumilde», na bondade; o seu retrato é um retrato psicolégico da perfeicdio e pureza que dela ema- nam, Regista-se a impresso que a sua beleza causa, endo 0s tragos de que essa beleza é feta Trata-se de um Sor subime, dvinizado [J [Mas 0 amor aparece também visto sob outro ‘aspeto, numa outra abordagem. Camies, senor {de uma slonga experiénclaw de vida, apercebe-se a enorme distancia que vai do pensamento & realidede vivida~e sente, mais violentamente que Petrarca, que a vivéncia quotidiana do amor, longe {de trazertranquilidade © paz, se for dela excluido o fatorerético, razinquietago e perturbagso.(.] Da tensio entre Laura e Venus, entre 0 amor espirtual eo amor sensual resuitam, para quem Soothe Orca de ‘ama, confitos interiores, perplexidade, contrad- Herencaita 8s, angusta Ld E que, como se explica no soneto «Trensforma-se o amador na cousa amaday Ip. 208], «wo vivo e puro amor» no pode permanecer eno pensamento como ideian = mas, antes, «como matéria simples busca a forma», ou sea, pracisa de se realizar em contornas precisos que s6 0 corpo permite, de se coneretizar no mundo sensivel que 6 no 0 esquegamos, o dos sentidos. PAS: Anata Ps 2007-Ev can ano’ —Loea de Lue Canes Po: rep. 31-32) Arepresentacao da amada Amulher tem, na poesia de CamBes, uma presenga extremamente intensa e mar- canta, mesmo quando descritaa distancia ou evocada, Pode ser aprasentada de modos: bastante diversos, em intima correlagdo com o estado de espirito do poeta. [..] Em alguns casos, ¢ apresentada com recurso ao aparato estifstico-retorico petrar- 5 quista, cujo elenco demetaforas e imagens codificadas a aproxima da natureza: cabelos/ ouro; olhos/sot faces/rosas; lébios/coral, atc. CamBes mangja aste conjunto de atributos: na sualirica e também em Os Lusiadas. No entanto, nao segue a codificagao restritivaa que alguns petrarquistas italianos o submeteram, na sele¢o que opera nos elementos. do retrato, nas imagens que associa a cada um deles ou na ordem pela qual os enu- 40 mera. [ul] Noutras situagbes, a sua caracterizacdo é feita a partir de uma selecdo de elementos que privilegia dotes espirituais. [..] A mulher é envolvida por um halo angelicado, que dela faz uma presenga serena e gratificante, Trata-se, no entanto, de casos circunscri- tos, na medida em que a sua serenidade @ a sua celeste formosura tém por reverso, no. 15 raro, omgico veneno de uma Circe. De facto, os elementos petrarquistas que a caracterizam sao frequentemente reela- borados de modo a realgar o sofrimento amorose que uma indiferenga, por vezes feita crucidade, inculca 20 poeta. [.] Como tal, a mulher converte-se om reflexo engrande- cido das ansias e dos temores que dominam um amante desalentado pela aguda 20 distancia que entre ele e o mundo circundante se cava. Nios retratos ferrininos, CamBes atém-se a0 padiSo figurative petrarquista, mas no exclusivamente [.. ‘Aitidez de algumes das mais pitorescas figuras da sua poesia em redondiiha resulta da enumeracdo de detalhes bastante pormenorizados. A atitude corporal, as notacdes 25 crométicas e a espectficidade dos objetos associados @ Leanor que «descalga val para a fontes so desenhos de pormenor extrermamente trabalhados. A tradi¢o Iterdria @ antropoiogica peninsular para a qual remetem vestuario e aderegos desta figura, asso- clam-se.as imagens petrarquistas de dois excelaos metais preciosos, 0 oure ¢ aprata. {1 Por sua vez, a0 superiativizar a pretidéo da Barbora escrava, relativamente a um & padiao iterario e antropolégico de incidéncia secular, 0 petrarquista, é pioneiro na valo~ rizago de um tipo de retrato feminino que 6 mais tarde viria a ganhar foros noutras iteraturas. MARNOTO Rita. 2011, Petrarqusmo.om Cambess.o «Retratos ferininos na poesia de Canes InSLVA. \Vitar Aguiar Cad), 2011. elansro co Las de Caries, Aftagie: Camirhe pn. 682 @ 83-854) Areflexdo sobre a vida pessoal Excetuando algumas redondilhas ou um ou outro, raro soneto de teor exclusivamente ludico ou circuns- tencial, pode afirmar-se que toda a obra lirica de CamBes se centra na evacaczio de um itineraria pes- «5 Soal, assinalaco polo Engano ¢ polo Desengano, pela Caréncia e pela Culpa, pela amargura do desconcerto pela aspiracao a uma plenitude em que 0 Amor ‘ocupa, de facto, um lugar subordinante:[. Embora culturaimente situada no lastro" da cultura 40 tenascentista, a lirica de Camdes encontra-se real- mente jé distante do anelo* otimista que caracter’za, esse perfoda © que pressupée a crenga na capaci- dace humana de agir © conhacer. Em vez dessa tOnica de euforia, o que mais vezes se encontranas Rimas é ‘15 almagem do Homem diminuido nas suas faculdades, ‘s0b ago de foreas obscuras, incapaz de lidar com as. miiliplas contradigdes e insuficiéncias que se the Métio Cesariny Este 0 meu testamenio te Poets. 1384, doparam. © Amor, que teoricamente constitui um Catepaopariaaar moore valor absoluto @ inderrogavel’ (tal como so valores 29 OU entidades absolutas o Tempo, o Destino ou a Morte), surge-ihe mais como via de Perdicao do que como caminho de aperfeicoamento e de resgate; a propria Naturoza, tantas vezes encarada pelos renascentistas como lugar matricial’ de reencontro e de realizagao, surge em CamBes, muitas vezes, como referéncia contrastiva [... Pode: assim dizer-se, de alguma forma, que toda a lirica de Camées ¢ assinalada pela 2s demanda inconseguida da Natureza e do Amor e que é justamente dessa auséncia e a intranqulicade que ela provoca que resulta a vertente mais tragica do mundo sub- jetivo do poeta [1 Embora nos faltem certezas na ordenagao ldgica e cronolégica dos textos camo- nianos, 0 registo confessional que atravessa grande parte deles néo deixa lugar a 20 grandes dividas acerca de uma percegao autobiografica do canto, traduzida na narra- 40 de eventos e na sua posterior interpretacdo. Nesse sentido, e tal como sucede com Petrarca, pode dizer-se que Camées cultivou um lirismo de meméria, de questio- nagao, de inconformismo, de revolta e de tragédia [..J, confessando-se irremediavel- mente estigmatizado® por forgas que Ihe subtraem a liberdade. BERNARDES, José Augusto Cardoso, 1999. Histrie rtica de Literatura Portuguesa [Wumanismoe Renascimento. Vo. I. sboa: Verbo op. 373-376) Arepresentacao da Natureza Na lirica camoniana, a natureza aparece geralmente associada a expressaio do sen- timento amoroso, caracteristica, aids, que percorrea lirica nacional desde as cantigas trovadorescas até a poesia paleciana, Os quadros da natureza camoniana seguem predominantemente as regras do locus amoenus' classico: cendrios bucélicos’, diurnos, verdejantes, suaves, por onde cantam Aguas frescas e cristalinas. Associado a estes espacos idilicos” e perfeitos esté, muitas vezes, presente o sentimento da natureza, outra das influéncias petrar- quistas: 0 sujeito poético 56 é sensivel a beleza da natureza se a sua amada estiver presente ou se 0 seu amor for correspondido. H4, pois, uma relagéo de correspondén- cia entre 0 «eum irico © a natureza. RAMOS, Aula, © BRAGA, Zaida, 2010, Camas rice Porte Ideas de Le (pp. 30-31) 1. loeus emeonus: expresso latin que design icealde Naturezahurmaniosa: 2. ucicns: campestres: 3. eos ve lervotver sentiments temas « puras Otempo ea mudancga Num soneto imortal, Camdes comega assim: «Mucam-se os tempos, mudam-so as vontades, / mudia-se 0 ser, muda-se 2 conflanga; / todo © mundo ¢ composto de ‘mudanga, /tomando sempre novas qualidade.» Todos nés queremos segurar © tompa por- 5 que possut-lo é atingir a imortalidade |. = Porém, como sublnha Kaufmann, 0 tempo 6 a dimensao da mudanga. E esta tomade de cons- ciéncia de que o tempo é um movimento conti- uo que «muda 0 ser», que «muda a confianga», acabando por nos surpreender pelo futuro que festé a chegar, mas no conhecemos. Ter medo da mucianga ¢, de certo modo, recear 0 movi- ‘mento inexoravel do tempo. Porque 6 desagre- ‘Sa\ador Cal.Aporsitdncia da gador de antigas memérias, lugares de afei¢ao "Tamir 103) Musmino! eden 15 que eeomodam a confianca construlda pelas , rotinas do tempo vivido. Um lugar-comum muito usado afirma que «0 meu tempo & que era bom». De que tempo se trataré? E 0 que seria bom? O clima? © amor? A comida? Existe algo de infinito, sem possibilidade de datacao, neste «meu tempo» e tenho vides de que, se interpelarmos quem faz esta afirmacao, tera dificuldade em enu- merar 0 que era eboms, Porque, na verdade, essa idela é © reconhecimento de que a ‘mudanca nos transforma interna @ externamente, desconhecenco os novos sinals do tempo e, em desespero, procuranda agarrar a imutablidade do passado como uma ancora que se opce 4 mudanga. [.] Estamos num ponto do tempo que € paradoxal. Cada vez mais perto de todos 03 ccantos do mundo, de todos os milhées de seres que sfc nossos contemporaneos, ‘graces & Internet, e cada vez mais s6s, mais silenciosos, em frente a um mundo virtual ‘ue nos é oferecido pelo ecré de nosso computedor, Porém,naohé come fugira esta vibrante mudanga que acelera a vida até aa instante. FLORES, Francisco Veita, 2016, «0 terpo.0 mudangas.Montapi,°22, outono de 2016p. 38) O tema da mudanca Otema da mudanga ocupa um lugar significative na poosia camoniana. Ele nao so manifesta, contudo, de forma isolada, devendo ser relacionado com outros temas & em especial como tema do tempo. Amudanga refere-se a transformagao das pessoas, da natureza e da sociedade. 5 Ela acontece e é percebida porque nos damos conta da passagem do tempo: vamos. envelhecendo & medida que os anos correm, as estagées do ano sucedem-so no calendario, 0s valores e as atitudes sociais evoluem num certo tempo hist6rico, que também ndo se detém. Os efeitos da mudanga, em conjugaco com o tempo, s80 muitas vezes draméticos para quem os sente; e podem provocar um sentimento de 10 espanto e mesmo de desanimo [..]. Qumor espanto» de que fala 0 poeta explica-se pela sensagao de imprevisto que, afinal, caracteriza a mudanga; e esse imprevisto implica insequranga € receio, como. se ohomem fosse totalmente incapaz de anteciper a transformagéo e de se preparar para os seus efeitos. O que constitui, mais uma vez, uma afirmagao da fraglidade hu- 18 mana e do caracter fugaz da existéncia. REIS, Carlos, 2015. Rimas e Os Lusiadas. Luis de Camées, Porto: Porto Editora (pp. 38.¢ 41) O tema do desconcerto Omundo € um «desconcerto» tal ¢ um dos pensamentos favoritos de Camdes (O desconcerto do mundo aparece [..]a Camées sob diversas formas. E umao facto objetivo de os prémios e castigos ectarem distribuldos desencontradamente. Ha aqui um vicio social particularmente fiagrante na sociedade portuguesa do século XVI, em 5 que a expansao ultramarina proporcionava enormes contrastes e mucancas de opu- lencia e miséria e dava largas oportunidades aos aventureiros sem escrijpulos: «terra lescreve CamBes, referindo-se & India] ¢ mae de vildes ruins e madrasta de homens honrados». A ordem feudal é abalada por um terramoto, 0 qual, todavia, nao atinge os seus fundamentos ideologicos. 0 criterio dos valores continua sendo 0 mesmo, e por 10 isso justamente ressaltava e aperecia como cabtica a redistribuigao da riqueza do poder a que os acontecimentos davam lugar. Camées compara o mundo historico com a Babiionia confusa e viciosa, que o leva a erguer 0 pensamento para Sido ou Jerusa~ 'ém, o mundo da justica transferido para o além («Ca nesta Babil6nia donde mana» A nobreza, a coragem e o saber acham-se dominados pela cobiga € pela vileza ea 18 monarquia errada e cega julga que engana Deus com um nome vio. A ordem de valo- res esté violada,o castigo e 0 prémio trocados. Outro aspeto do desconcerto do mundo manifeste-se na completa falta de sentido co afa incansavel com que os homens de todas as categorias e qualidades se encaminham Para omesmo termo que é a morte. Este tema |..] para Camées parece ser uma ocasiéo 20 para sublinhar a irracionalidade do universo e a vaidade dos desejos humanos. [.] 0 terceiro aspeto do desconcerto do mundo é individual ¢ subjetivo. Que é a fortuna, que € 0 caso, que é 0 tempo, que é a morte - a que o Poeta se ve sujelto? [.] Tanto a razdo como o sentimento parecem sentir-se impotentes, quer perante a irracionalidade da ordem social, quer perante o absurdo das esperangas irrealizaveis 25 decontentamento. SARAIVA, Atrio José, 1897. Lu de Camées Lisboa Gradva (pp 83 €90-83)

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