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Marra Ceethia Londres Fonseca © Patrindnio um Pracesso : Lryeléria da politica gedeal de prstnagde te Best UFRT/ Min: TRAAN , 19947 Roce Tare, EMINARIG 2 Capitulo Trés $s 2 , WA FASE “HEROICAY Ao se alinharem & modernidade a partir de sua concep¢ao da arte como um campo auténomo, os modernistas brasileiros nao romperam apenas com uma tradigao estética; romperam com toda 95 A FASE “HERGICAT uma tradigao cultural profundamente enraizada nao s6 entre produ- tores e consumidores de literatura e de arte, como em toda a soci- edade. Como se explica, porém, a retomada e mesmo o profundo envolvimento dos madernistas com a tematica do nacionalismo, e seu engajamento na vida polftica e em instituigdes estatais? Nao signifi- caria essa atitude, ap6s um primeiro momento de entusiasta adesao ao futurismo, ao dadafsmo e ao surrealismo europeus, a retomada do mesmo padrao que a principio haviam repudiado? Eduardo Jardim de Moraes considera que nao, que esse movimento 6 resul- tante da reflexdo critica do Modernismo sobre si mesmo e de sua insergao enquanto movimento artfstico tanto no contexto brasileiro quanto no “concerto das nagdes”. Vale a pena acompanhar seu raciocinio.* Para Eduard Jardim de Moraes, o interesse dos modernistas pela questao da “brasilidade” decorreu de uma elaboragao no préprio campo da criagdo artistica, que teria ocorrido por volta de 1924, e que implicou na introdugao do conceito de tradigao como elemento estruturante de uma produgio artfstica que se queria ao mesmo tempo universal e particular — no caso, nacional. Ou seja, que se queria singular, artistica no sentido moderno. €sse autor considera que foi no contato com as vanguardas européias que os modernistas perceberam que a modernizagao da expressdo artistica, entendida corno rompimento radical com o pas- sado, s6 tinha sentido em pafses onde havia uma tradi¢ao nacional internalizada. Em pafses de formagao mais recente, como o Brasil, cuja tradi¢ao ainda estava por construir, a adesdo imediata ao novo descaracterizaria a produgdo artfstica no que ela teria de particular - © seu car&ter nacional - perdendo assim também o seu valor uni- versal, enquanto arte. Diz Eduardo Jardim de Moraes (1988:231): 6 como se o ingresso na ordem mundial, Portanto na vida moderna, ao exigir da producao cultural feita no Brasil uma contribuicao propria, nacional, exigisse ao mesmo tempo que esta explicitasse na sua visdo 936 © PATRIMONIO EM PROCESSO do passado rela¢des de cumplicidade que viessem definir para o caso brasileiro uma forma espectfica de modernidade.” Além disso, havia um fato que caracterizava a tradicZo bra- sileira em relagdo as “descobertas” que os vanguardistas europeus faziam entao das culturas primitivas e da cultura africana: se para esses artistas tratava-se de realidades distantes no tempo e/ou no espago, no Brasil essas manifestagdes estavam vivas no presente, embora fossem negadas ou mitificadas pela cultura europeizada dominante. O indianismo romantico exemplifica bern essa situagao. Adialética da particularidade e da universalidade da criagdo artistica 6 assim elaborada pelos modernistas no campo estrito da arte, indicando-Ihes o que ser4 um aspecto de sua missao social: a construgao de uma tradicdo brasileira auténtica. O movimento que os escritores modernistas fizeram na di- regao da tradigao - e que € analisado por Eduardo Jardim de Moraes - foi feito também no campo da arquitetura individualmente por Lacio Costa, a partir de 1928, ao passar da adesdo ao estilo neo-colonial Para a arquitetura moderna. O estilo neo-colonial representou a primeira reagao, a partir da segunda década do s€culo, a incorporagao acritica dos estilos hist6ricos europeus pelo ecletismo no Brasil, e ao desconhecimento e@ mesmo desvalorizagao da tradi¢ao construtiva vinda da coldénia. Seus seguidores procuraram produzir uma arquitetura que, inspirada nessas raizes, terminou por se converter em uma c6pia cujo efeito era de evocar o passado. Embora tenha aderido, de volta de longo periodo na Europa, ao estilo-neo colonial, Lcio Costa procurou, porém, fazer uma anélise mais profunda dos princfpios da arquitetura colonial brasileira. Diz, a respeito, Yves Bruand (1991:72): “desde o infcio suas pesquisas divergiram de séus colegas, preocupados principalmente em copiar as formas e os motivos decorativos do passado. A preocupagao com as solugées funcionais e com os volumes claramente definidos, caracte- rfisticos de suas primeiras obras, era um retorno consciente aos valores 97 A FASE “HERSICAT Permanentes que havia descoberto na arquitetura luso-brasileira dos séculos XVII e XVIII, da qual, em contrapartida, rejeitava o que era Pura decoragao. Suas preocupa¢ées profundas, longe de se oporem ao espirito racionalista, aproximavam-no dele. O que o chocava instin- tivamente no movimento moderno era o seu car&ter absolutista, in- transigente e o aparente desprezo de seus teéricos por tudo que dizia respeito ao passado. Preocupavam-no o radicalismo desses e o poder demolidor que confusamente neles sentia existir, a ponto de impedir seu aprofundamento no problema - problema, que, acima de tudo, parecia-lhe estar muito distanciado da realidade brasileira”. Ldcio Costa fez, portanto, um movimento inverso ao dos modernistas do inicio dos anos vinte, para chegar ao mesmo ponto: integrar modernidade e tradi¢ao, a partir de uma reflexdo sobre a especificidade de seu campo profissional (no caso, a arquitetura) e de sua relagao com a realidade brasileira. Vimos, portanto, que tanto de um ponto de vista diacr6énico (Antonio Candido) quanto sincrénico (Eduardo Jardim de Moraes), tanto em decorréncia da relagao dos modernistas com uma tradi¢4o cultural a que queriam se opor, quanto de seu desejo de se integrarem ao “concerto das nagées” civilizadas, a necessidade de reelaborar o Passado e de construir uma tradi¢ao brasileira a partir de uma postura auté6noma, critica e liberta de uma “visio patriético-sentimental” (Candido, 1967:94) se impunha como parte integrante do projeto maior do Modernismo. Nesse sentido, nao é dificil entender o que varios autores apontam como uma peculiaridade do Modernismo brasileiro: o fato de serem os mesmos intelectuais que se voltaram, simultaneamente, Para a criagdo de uma nova linguagem estética — no sentido de ruptura com o passado — e para a construgao de uma tradigao — no sentido de buscar a continuidade. A tematica do patrim6nio surge, portanto, no Brasil, assen- tada em dois presstipostos do Modernismo, enquanto expressao da modernidade: o car&ter ao mesmo tempo universal e particular das auténticas express6es artisticas e a autonomia relativa da esfera cul- 98 © PATRIMONIO EM PROCESS tural em relagao as outras esferas da vida social. A atuagao dos modernistas no SPHAN vai mostrar como eles puseram em pratica, num campo cultural e politico especifico, e sob um regime autorité- rio, esses pressupostos. 3.2.2 Os modernistas e Minas Gerais Dada a importancia de Minas Gerais e dos mineiras na criagao do SPHAN, interessa caracterizar a posigao desse grupo e o papel de Minas tanto no Movimento Modernista quanto na vida politica bra- sileira nas décadas de 20 e 30. Para os modernistas Minas se constituiu, desde a segunda década do século, em p6lo catalisador e irradiador de idéias. Foi numa viagem a Minas, em 1916, que Alceu Amoroso Lima e 0 ent3o jovem Rodrigo Melo Franco de Andrade “descobriram” o Barroco e perceberam a necessidade de proteger os monumentos hist6ricos. Foi numa viagem a Diamantina, nos anos 20, que o arquiteto Ltcio Costa, ent4o adepto do estilo neo-colonial, teve despertada sua admiracao pela arquitetura colonial brasileira. Foi também em viagens a Minas, uma delas em 1924, acompanhando o poeta Blaise Cendras, que Mario de Andrade entrou em contato com a arte colonial brasileira e com os jovens inquietos da rua Bahia (Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Emflio Moura, etc.), com os quais manteve contato pessoal e correspondéncia a partir de entdo. O fato 6 que nao s6 mineiros, como cariocas, paulistas e outros passaram a identificar em Minas 0 bergo de uma civilizagdo brasileira, tornando-se a protegao dos monumentos histéricos e artfsticos mineiros - e, por consequéncia, do resto do pafs - parte da construcao da tradigao nacional. Ao analisar a valorizagao do Barroco — até ent&o considerado um estilo rebus- cado e rude — pelos modernistas, diz Marisa Veloso Motta Santos (1992:26): . “Nesse momento, no que se refere a construg¢ao da nacg4o, o barroco € emblemitico, 6 percebido como a primeira manifestag3o cultural tipicamente brasileira, possuidor, portanto, da aura da origem da cultura 99 A FASE “HEROICAT brasileira, ou seja, da nagao. Daf o valor totémico que se constréi, sendo identificado, sistematicamente, como representa¢do de ‘autén- tico’, de ‘estilo puro”. E possivel que a convivéncia com os remanescentes da arte barroca tenha contribufdo para gerar em Minas um regionalismo que Lucia Lippi de Oliveira (1980:15) caracterizou como “um regionalis- mo que nao se revestiu de um provincianismo estreito ou de um localismo pitoresco.” Havia entre os mineiros um sentido de cons- titufrem uma elite intelectual e com a vocagao do espfrito pablico. Predominavam neles valores como o rigor, a sobriedade, a honesti- dade intelectual e moral, e sobretudo o senso do dever. Tudo isso matizado pelo humour, em Carlos Drummond de Andrade, e pela habilidade politica, em Capanema. Nesse sentido, Rodrigo Melo Fran- co de Andrade talvez fosse o mais “mineiro” entre os mineiros, e era considerado por todos o Ifder natural do grupo. Em todos eles, um sentido de independéncia que se expressava em sua resisténcia a aderir incondicionalmente a lideres como Getdlio, ou a politica par- tidéria. Na vida pdblica, em varias ocasi6es, deram demonstragao dessa independéncia -- como no pedido de demissao de Carlos Drummond de Andrade da chefia de gabinete de Capaneméa, por nao desejar comparecer a uma conferéncia de Alceu Amoroso Lima no MES, de cujas idéias entao discordava, ou ao nao hesitar em publicar poemas de cunho socialista enquanto ocupava cargo de confianga em um governo que perseguia os “comunistas”; e nas indmeros manifestagées — inciusive pedidos de demissao nunca aceitos — de Rodrigo M.F. de Andrade em protesto a atitudes, mesmo de Presiden- tes da Repdblica® que, no seu entender, desautorizavam o SPHAN ou seu diretor. €ssa postura, ao que tudo indica, nao era vista com reservas — e talvez até o fosse com admiragao — pelo mineiro Gustavo Capanema. Tendo aderido a Revolugao_de_30 movido por interesses da politica regional, Capanema, ao conhecer Gettilio, logo apés a Revolugao, se mostrou reticente quanto a figura do lider gaGcho e duvidoso quanto & sua capacidade de conduzir as mudangas que 100 © PATRIMONIO EM PROCESSO julgava fundamentais. Sua lealdade politica a Vargas nao o impediria; portanto, de ter uma postura independente e mesmo critica em rela- G30 a certos aspectos da ideologia do Estado Novo, no que, como veremos adiante, no encontrou obst4culo por parte de Getilio. A posigdo de Capanema garantiu ao MES uma fungdo muito além de mero instrumento de consolidagao do regime. Possibilitou, inclusive, a manutengdo no MES de um espaco de atuacdo para os modernistas (com quem se identificava em v4rios aspectos) a salvo de pressées polfticas. Sobre essa relagao, dizer os autores de Tempos de (Capanema: Era sem dtivida no envolvimento dos modemistas com o folclore, as artes, e particularmente com a poesia e as artes plasticas, que residia © ponto de contato entre eles e o ministério. Para o ministro, impor- tavam os valores estéticos e a proximidade com a cultura; para os intelectuais, o Ministério da Educag¢a4o abria a possibilidade de um espa¢o para o desenvolvimento de seu trabalho, a partir do qual su- punham que poderia ser contrabandeado, por assim dizer, 0 conteudo revoluciondrio mais amplo que acreditavam que suas obras poderiam trazer. (Schwartzman et alii, 1984:81) Seu primeiro gesto de clara adesdo ao ideSrio modernista no MES foi em relacao a arquitetura, ao apoid-la e, ao mesmo tempo, utiliz4-la para a criagdo de simbolos de uma nova era. Além de serem os construtores desses simbolos — de que o novo prédio do MES era © melhor exermplo — foi no SPHAN que os arquitetos modernistas atuaram enquanto integrantes da estrutura institucional montada pelo Estado Novo, sob a diregao do advogado, jornalista e contista Rodrigo Melo Franco de Andrade, de quem Capanema disse em entrevista: “era um dos homens mais ligados a mim.” (Xavier & Fisherg, 1968:32) 101 A FASE

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