You are on page 1of 10
Digitalizado com CamScanner I. O DISCURSO Digitalizado com CamScanner A Linguagem em Questiio HA muitas maneiras de se estudar a linguagem: concentrando nossa atengiio sobre a lingua enquanto sistema de signos ou como sistema de regras formais, e temos entio a Lingiiistica; ou como normas de bem dizer, por exemplo, ¢ temos a Gramitica normativa. Além disso, a prépria palavra gramatica como a | palavra Ifngua podem significar coisas muito diferentes, por | isso as gramaticas e a maneira de se estudar a lingua séo diferentes em diferentes épocas, em distintas tendéncias ¢ em | autores diversos. Pois é justamente pensando que ha muitas maneiras de se significar que os estudiosos comegaram a se interessar pela linguagem de uma maneira particular que é a que deu origem 4 Anilise de Discurso. A Anilise de Discurso, como seu proprio nome indica, nio trata da Ifngua, nao trata da gramatica, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a idéia de curso, de percurso, de | correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em | movimento, pratica de linguagem: com 0 estudo do discurso | observa-se 0 homem falando. Na andlise de discurso, procura-se compreender a lingua zendo sentido, enquanto trabalho simbélico, social geral, constitutivo do homem e da sua hist6ria. Por esse tipo de estudo se pode conhecer melhor aquilo que faz do homem um ser especial com sua capacidade de significar e significar-se. A Andlise de Discurso concebe a linguagem como mediagiio necessdria entre o homem ¢ a realidade natural e social. Essa mediagao, que é 0 discurso, torna possfvel tanto a permanéncia ¢ a continuidade quanto o deslocamento ¢ a transformagiio do homem e da realidade em que ele vive. 0 trabalho simbdlico do discurso esta na base da produgdo da existéncia humana. Assim, a primeira coisa a se observar € que a Aniilise de Discurso nao trabalha com a lingua enquanto um sistema 15 Digitalizado com CamScanner abstrato, mas com a lingua no mundo, com manciras de significar, com homens falando, considerando a produgiio de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. Levando em conta o homem na sua historia, considera os processos ¢ as condigGes de producio da linguagem, pela andlise da relagao estabelecida pela lingua com os sujeitos que a falam e€ as situagdes em que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua producio, o analista de discurso relaciona a linguagem & sua exterioridade. Tendo em vista esta finalidade, ele articula de modo particular conhecimentos do campo das Ciéncias Sociais ¢ do dominio da Lingiifstica. Fundando-se em uma reflexao sobre a his da epistemologia e da filosofia do conhecimento empirico, essa articulagio objetiva a transformagio da pratica das ciéncias sociais e também a dos estudos da linguagem. Em uma proposta em que 0 politico e 0 simbélico se confrontam, essa nova forma de conhecimento coloca quest6es para a Lingiifstica, interpelando-a pela historicidade que cla apaga, do mesmo modo que coloca questdes para as Ciéncias interrogando a transparéncia da linguagem sobre a qual elas se assentam. Dessa mancira, 0s estudos discursivos visam pensar o sentido dimensionado no tempo e no espago das p do homem, descentrando a nogio de sujeito e relativi autonomia do objeto da Lingiiistica. Em conseqiiéncia, nao se trabalha, como na Lingtifstica, com a lingua fechada nela mesma mas com o discurso, que €um objeto s6cio-hist6rico em que o lingiifstico intervém como pressuposto. Nemse trabalha, por outro lado, com a historia ea sociedade como se elas fossem independentes do fato de que elas significam. Nessa confluéncia, a Andlise de Discurso critica a pratica das Ciéncias Sociais e a da Lingiiistica, refletindo sobre a maneira como a linguagem esta materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na lingua. 16 Digitalizado com CamScanner Partindo da idéia de que a materialidade especifica da ideologia € 0 discurso ¢ a materialidade espec| do disc! eal arclagio lingua-discurso-ideologia. E: ‘Jo se complementa com o fato de que, como diz M. heux (1975), nao ha discurso sem sujeito ¢ nao ha sujeito m idcologia: 0 individuo é interpelado em sujeito pela ideologia ¢ é assim que a lingua faz sentido. Conseqiientemente, o discurso é 0 lugar em que se pode observar essa relagio entre lingua e ideologia, compreendendo-se como a lingua produz sentidos por/ para os sujeitos. Um Novo Terreno e Estudos Preliminares Embora a Andlise de Discurso, que toma o discurso como seu objeto préprio, tenha seu inicio nos anos 60 do século XX, o estudo do que interessa a ela - o da lingua funcionando para a produgio de sentidos e que permite analisar unidades além da frase, ou seja, 0 texto - jd se apresentara de forma nao sistematica em diferentes épocas e segundo diferentes perspectivas. Sem pensarmos na Antigiiidade e nos estudos retéricos, temos estudos do texto, em sua materialidade lingiifstica, em M.Bréal, por exemplo, no século XIX, com sua semantica hist6rica. Situando-nos no século XX, temos os estudos dos formalistas russos (anos 20/30), que ja pressentiam no texto uma estrutura. Embora 0 interesse dos formalistas fosse sobretudo literdrio, os seus trabalhos, buscando uma légica interna do texto, prenunciavam uma andlise que nao era a andlise de contetido, maneira tradicional de abordagem. A andlise de contetido, como sabemos, procura extrair sentidos dos textos, respondendo a questio: o que este texto quer dizer? Diferentemente da andlise de contetido, a Andlise de Discurso considera que a linguagem nao é¢ transparente. Desse modo ela nao procura atravessar 0 texto para encontrar um sentido do outro lado. A questao que ela coloca €: como este texto significa? 17 Digitalizado com CamScanner af um deslocamento, ja prenunciado pelos formalistas . onde a questio a ser respondida nao é 0 “o qué” mas o “como”, Para responder, ela no trabalha com os textos apenas como ilustragiio ou como documento de algo que jd esté sabido em outro lugar e que o texto exemplifica. Ela produz um conhecimento a partir do préprio texto, porque o vé como tendo uma materialidade simb6lica propria e significativa, como tendo uma espessura semantica: ela o concebe em sua discursividade. Ainda em termos de precursores, outra forma de andlise bem sucedida, que ja pesquisava o texto, é a do estruturalista americano Z.Harris (anos 50). Com seu método distribucional, ele consegue livrar a andlise do texto do viés conteudista mas, para fazé-lo, reduz 0 texto a uma frase longa. Isto é, caracteriza sua pratica tedrica no interior do que chamamos isomorfismo: stende © mesmo método de andlise de unidades menores (morfemas, frases) para unidades maiores (texto) e procede a uma anilise lingiifstica do texto como o faz na instancia da frase, perdendo dele aquilo que ele tem de especffico. Como sabemos, 0 texto nao é apenas uma frase longa ou uma soma de frases. Ele é uma totalidade com sua qualidade particular, com sua natureza especifica. Considerando o texto como unidade fundamental na andlise da linguagem, temos no estruturalismo europeu 0 inglés M.A.K.Halliday. Ele considera 0 texto como uma passagem de qualquer comprimento que forma um todo unificado, pensando a linguagem em uso. Segundo sua proposta, que trata 0 texto como unidade semintica, 0 texto nao é constitufdo de sentengas, ele é realizado por sentengas, © que, de certo modo, inverte a perspectiva lingtifs Suas contribuigdes sdo valiosas mas, 4 diferenga da Anilise de Discurso, ele nao trabalha com a forma material, ou com a ideologia como constitutiva e estaciona na descrigio. Digitalizado com CamScanner Filiagdes Teéricas Irso se constitui no espago de adas pela relagiio entre trés dominios disciplinares (© AO Mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: a ica, o Marxismo e a Psicanilise. A Lingilistica constitui-se pela afirmagao da nao-transparéncia da linguagem: ela tem seu objeto proprio, a lingua, e esta tem sua ordem pr6pria. Esta afirmagao € fundamental para a Andlise de Discurso, que procura mostrar que a relagdo linguagem/ pensamento/mundo nao é€ unfvoca, nao é uma relagdo direta que se faz termo-a-termo, isto é, nao se passa diretamente de um a outro. Cada um tem sua especificidade. Por outro lado, a Andlise de Discurso pressupde 0 legado do materialismo histérico, isto é, o de que hd um real da histéria de tal forma que o homem faz histéria mas esta também nao Ihe é transparente. Dai, conjugando a lingua com a histéria na produgio de sentidos, esses estudos do discurso trabalham o que vai-se chamar a forma material (nao abstrata como a da Lingiifstica) que é a forma encarnada na historia para produzir sentidos: esta forma é portanto lingiifsti i Nos estudos discursivos, nao se separam forma e contetido e procura-se compreender a lingua nao s6 como uma estrutura mas sobretudo como acontecimento. Reunindo estrutura e acontecimento a forma material é vista como 0 acontecimento do significante (Ifngua) em um sujeito afetado pela historia. Af entra entdo a contribuigdo da Psicandlise, com o deslocamento da nogdo de homem para a de sujeito. Este, por sua vez, se constitui na relago com o simbélico, na histéria. Assim, para a Anilise de Discw a. a lingua tem sua ordem propria mas s6 é relativamente aut6noma (distinguindo-se da Ling! ela reintroduz a nogiio de sujeito e de situagao na anilise da linguagem); b. a histéria tem seu real afetado pelo simbdlico (os fatos reclamam sentidos); 19 Digitalizado com CamScanner entrado pois ¢ afetado pelo c. osujeito de linguagem éd 0 po real da lingua e também pelo real da histéria, ndo tendo o controle sobre 0 modo como elas 0 afetam. Isso redunda em dizer que 0 sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideolog As palavras simples do nosso cotidiano ja chegam até nés carregadas de sentidos que nio sabemos como se constituiram e que no entanto significam em nds e para nés. Desse modo, se a Andlise do Discurso € herdeira das trés regides de conhecimento - Psicandlise, Lingiifstica, Marxismo - ndo 0 é de modo servil e trabalha uma nogao - a de discurso - que nao se reduz ao objeto da Lingiifstica, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a Psicandlise. Interroga a Lingiifstica pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o Materialismo perguntando pelo simbélico e se demarca da Psicandlise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele. As nogoes de sujeito e de linguagem que estiio na base das Ciéncias Humanas e Sociais no século XIX jé nao tém atualidade apés a contribuigio da Lingiiistica e da Psicandlise. Por outro lado, tampouco a nogao de lingua (como sistema abstrato) pode ser a mesma com a contribuigdo do Materialismo. A andlise de discurso, trabalhando na confluéncia desses campos de conhecimento, irrompe em suas fronteiras ¢ produz um novo recorte de disciplinas, constituindo um novo objeto que vai afetar essa formas de conhecimento em seu conjunto: este novo objeto é 0 discurso. Discurso A nogiio de discurso, em sua definigao, distancia-se do modo como o esquema elementar da comunicagiio dispde seus elementos, definindo 0 que € mensagem. Como sabemos, esse esquema 20 Digitalizado com CamScanner or, receptor, cédigo, referente ‘or transmite uma mensagem formulada em um cédigo lidade — 0 referente. Cujo elementar se constitui de: em Mensagem. Temos entiio que: 0 emi (informagiao) ao receptor, mensagem c: referindo gum elemento da re esquema é: Mensagem Cédigo E c—> PR Referente Para a Andlise de Discurso, nio se trata apenas de transmissao de informagao, nem hd essa linearidade na disposigao dos elementos da comunicagio, como se a mensagem resultasse de um processo assim serializado: alguém fala, refere alguma coisa, baseando-se em um cédigo, e o receptor capta a mensagem, decodificando-a. Na realidade, a lingua nao é s6 um cédigo entre outros, ndo hd essa separagiio entre emissor e receptor, nem tampouco eles atuam numa seqiiéncia em que primeiro um fala e depois 0 outro decodifica etc. Eles estio realizando ao mesmo tempo o processo de significagdo e no estio separados de forma estanque. Além disso, ao invés de mensagem, 0 que propomos é justamente pensar ai 0 discurso. Desse modo, diremos que no se trata de transmissiio de informagiio apenas, pois, no funcionamento da linguagem, que poe em relagio sujeitos e sentidos afetados pela lingua e pela historia, temos um complexo processo de constituigio desses sujeitos e producio de sentidos e nao meramente transmissio de informagao. Sao processos de identificagdo do sujeito, de argumentagao, de subjetivagao, de construgio da realidade etc. Por outro lado, tampouco assentamos esse esquema na idéia de comunicagio. A linguagem serve para comunicar e para ndio comunicar. As relagdes de linguagem sao relagGes de sujeitos e de sentidos e seus efeitos sfio miltiplos e variados. Daj a definigao de discurso: 0 discurso € efeito de sentidos entre locutores. Também nao se deve confundir discurso com “fala” na continuidade da dicotomia (lingua/fala) proposta por F. de 21 Digitalizado com CamScanner Saussure, O discurso nao corresponde A nogdo de fala pois nde se trata de opd-lo A Lingua como, sendo esta um sistema, onde tudo se mantém, com sua natureza social © suas constantes, sendo odiscurso, como a fala, apenas uma sta Ocorréncia eastial, individual, realizagdo do sistema, fato histérico, a-sistematico, com suas va cis ete, O discurso tem sua regularidade, tem secu funcionamento que & possivel apreender se nao opomos o social ¢ o histérico, 0 sistema e a realizagdo, 0 subjetive ao objetivo, o processo ao produto, A Anialise de Discurso faz um outro recorte teérico relacionando lingua ¢ discurso. Em seu quadro teérico, nem 0. discurso & visto como uma liberdade em ato, totalmente sem condicionantes lingiifsticos ou determinagoes histéricas, nema lingua como totalmente fechada em si mesma, sem falhas ou equivocos. As sistematicidades lingiiisticas — que nessa perspectiva nfo afastam o semantico como se fosse externo ~ sio as condigdes materiais de base sobre as quais se desenvolvem os processos discursivos. A lingua é assim condigSo de possibilidade do discurso. No entanto a fronteira entre ling sistematicamente em cada pratica discursiva, poi! tematicidades acima referidas, nao existem, como diz M, Pécheux (1975), sob a forma de um bloco homogéneo de regras organizado & maneira de uma miquina légica. A relagio é de recobrimento, nao havendo portanto uma separagao estdvel entre eles. e discurso & posta em causa Digitalizado com CamScanner

You might also like