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adad® ao MAG OS ~ apt" gon ginger a 4st0, sim, sb isto &a propria vinganca: a repulse dda vontade comira 0 tempo eo seu “oi |. Friedrich Nietwsche Em todos 05 lugares em que a organizasto se baseia nos lagos de sengue, observames 4 pritica da vinganca. A vida coletioa da comunidade encontra ai sua expressdo: uma forca incompreensivel que ultrapassa a ‘exfera do individuo e se torna o objeto de um > respeio religioso. Friedrich Nietzsche Matar aquele que matou Como nao era preciso matar, é preciso matar aquele que matou... A vinganca do assassinato constitui o primei- 0 circulo vicioso com o qual toda a sociedade humana depara, 0 circulo vicioso do qual foi necessério escapar o inicio, ha um fato simples: o assassinato é imeversi- ‘vel. Ea prépria evidéncia, mas a vinganga nao se resigna Capitulo 1 -vinganga dom — 21 a essa evidéncia. Entdo, sem poder anular o assassinato, la procura restituir o equilibrio perturbado aniquilando © assassino. Sua palavra de ordem: matar quem matou. Uma vez concretizada a vinganca, o equilibrio perdido € restaurado, mas, assim que ¢ restaurado, € novamen- te ameagado, porque as pessoas préximas do assassino morto desejarao aplicar a mesma palavra de ordem: matar aquele que matou. Pois os seres préximos do pri- meio assassino certamente nao estardo de acordo com sua execugao, Na “maioria das civilizagoes de vendeta", observa Frangois Tricaud, “o assassinato de um dos meus seres proximos, independentemente de sua justi- ficagio aos olhos do adversario, é para mim o comeco absoluto ¢ sagrado de uma divida da qual me desencar- regarei quando eu, por minha vez, tiver assassinado 0 assassino”, de tal forma que “cada reparacao deve por sua vez ser reparada, ao infinito”' Em relacdo & necessidade de lavar o sangue com sangue, © acordo entre os campos adversdrios é perfeito. Dessa maneira, a oposicdo mais extrema, a mais violenta, se baseia em uma identidade de principio. Mazar aquele que ‘matou: enquanto as duas partes estiverem de acordo em relagio a esse principio, o conflito ira se perpetuar por si sé, com a regularidade de um mecanismo que funciona sozinho. Os homens que participam da vendeta agem independentemente de sua vontade; eles nao passam de engrenagens do mecanismo. *FrangoisYricaud, CAccusation. Recherche sur les figures de Vagression ‘tiqu. Pais, Dalloz, 1977, p. 73 22 anatoma da vinganga 0 funcionamento desse mecanismo pode ser descrito Por uma férmula quase matematica: Vinganga = Matar faquele que matou). 0 vingador que abate o assassino se toma, literalmeiite ao mesmo tempo, assassino também, ‘A operagio descrita pela férmula faz 0 operador do “Ma- tar” ficar dentro dos parénteses, onde esta destinado a se tornar por sua vez o objeto da operagao. E uma operacdo que se realiza em seu proprio operador: Matar (aquele que matou) = Matar (0 operador da vinganca). Essa linguagem formal, impessoal, se jusifica pelo ca- réter anénimo do mecanismo. Sobre aquele que matou aquele que matou mio se diz que foi “o instrumento da vinganca”? Ele sé € 0 agente anénimo de um processo que o ultrapassa. 0 vingador s6 encama a Vinganga ~ e, como ultima encamnacao, é automaticamente marcado como a préxima vitima, Dessa forma, hé uma oscilagdo perpétua entre os papéis do assassino ¢ do assassinado, __ Papéis que sto desempenhados sucessivamente por uma série indefinida de agentes. Como nao pode anular 0 assassinato, a vinganca tem como objetivo eliminar 0 as- sassino. Contudo é impossivel destruir um assassino sem produzir um novo assassino. A vinganga néo consegue Festaurar o equilibrio entre grupos que o ato do primeiro “assassino perturbou, pois cada novo assassino que ela produz sempre é excessivo. 0 ajuste de contas continua, m nunca parar num ponto de equilibrio. assim, pelo menos, que as coisas se mostram quando esta no plano dos individuos que estao no processo ¢ ‘pltulo 1-vinganga.edom 23 © observam de dentro. Entretanto, se ficarmos mais no plano da relagao entre os individuos, se observarmos 0 Processo, por assim dizer, de cima, poderemos constatar que ha de faté um equilibrio. Porém, esse equilibrio no tem um ponto de imobilidade. 0 processo nao converge para um “ponte fixo", que os matematicos chamam de um valor préprio. 0 equilibrio que se trata de reconhe- cer aqui € de outra natureza, Ele reside na regularidade da propria oscilagdo, regularidade garantida pela circu- laridade do processo. E 0 equilibrio dinamico manifesta- do pela estabilidade do comportamento do sistema: néo ‘um valor préprio, portanto trata-se antes de um “com- portamento proprio’, ‘A manutencdo de um comportamento proprio perten- cea sistemas dotados de uma “vida propria” - ou seja, sistemas auténomos.’ A capacidade de se peipetuar, de se regenerar pelos produtos de sua propria atividade, é © que caracteriza os organismos vivos e qualquer outro sistema auténomo. A vinganga perpetua-se porque ela roduz, por sua prépria operacao, os assassinos nos quais € exercida, numa espécie de regressdo infinita. A repre- sélia nunca consegue anular 0 assassinato anterior: em ez de anular 0 passado, ela ndo para de reproduzi-lo. A vinganca olha sempre para tris, € 0 resultado é uma fuga desenfreada para a frente, * OF Jean-Pierre Dupuy, Ondres et Désrdres. Paris: Le Sev, 1982, Francisco 4. Varela, Autonome et Connalssance. Essai ser le vivant. Dumocher, Paulo (trad), Paris: Le Sevi, 1989. Um comportamenta préprio pode ser descrito or uma fungo autorreferencial:x = fx) = ffi). A repetiio indefinida ‘dessa funclo lembra a iteragoindefinida da nossa mula para vin _ganga:Vinganga = Matar faquele que matou] = Matar faquele que matou {equele que matou. 24 anatomia da vinganga Todas essas caracteristicas da vinganga so evidenciadas no liveo Abril Despedacado, de Ismail Kadaré. Esse ro mance austero faz o retrato do sistema vingativo albanés insistindo em sua inexorabilidade mecanica. 0 protago- nista, Gjorg, € conduzido apesar dele mesmo para o ciclo vingador pelo assassinato de seu irmao. 0 relato comeca no dia 17 de marco, quando Gjorg mata aquele que ma- tou o seu irmao, e acaba um més depois quando Gjorg, or sua vez, é morto. Agonizante, no chio, Gjorg ouve passos se distanciarem rapidamente, e ele se pergunta de quem sio esses passos. A resposta veio a sua mente como uma iluminagdo: “Mas so os meus! O dezessete de marco, a estrada, perto de Brezftoht... Por um momento perdeu a consciéncia, depois ouviu novamente ressoarem 6 passos, ¢ mais uma vez Ihe pareceu que eram os seus, que era cle © nenhum outro que corria assim deixando para tras de si, estendido na estrada, seu proprio corpo, que acabava de abater’? No momento em que 0 ciclo da violéncia se fecha nele, Gjorg se vé voltando para um més atrés; ele ouve seus Préprios passos fugindo da cena do assassinato que co- meteu. A fuga do vingador é uma fuga para a frente que leva inexoravelmente para @ mesma cena, para essa cena do passado em que o assassino ¢ morto, Matando © assassino, Gjorg se condenou & morte com a mesma certeza que se tivesse deixado 0 outro mata-lo antes... Deixar 0 outro mata-to antes - contanto que o outro © deixe maté-lo em seguida: esse ¢ o procedimento "Ismail Kado, Avril brisé, trad JusufVelon, Paris: Fayard, 1962, p. 216 cxpltlo 1 = vinganga edom 25 aradoxal que esta na base do desafio langado aos herdis éicos irlandeses pelo gigante Uath, o Estrangeiro, num, episédio d'0 Festim de Briciu. 0 Estrangeiro explica que ele percorre 0 mundo inteiro em busca de um homem que cuthpriré sua palavra € respeitard seu acordo com ele. Depois, ele especifica os termos do acordo, “Aqui temos ‘um machado, ele diz. Aquele que aceitar cortar a minha ccabega hoje, amanha eu cortarei a sua?” Esse desafio evoca o soho de um assassinato que nao sera irreversi- vel. Mas ele nao para ai, Da nogdo do assassinato rever- sivel, ele deduz a reversibilidade do ciclo da vinganga. Aquele que mata deve pagar com sua cabeca? Entdo, que dle pague adiantado! Inverter o ciclo da vinganga ¢ dar ao outro antecipada- ‘mente. Sem divvida, s6 um ser com o poder magico do gigante poderia se permitir oferecer sua cabeca a outro antecipadamente. Mas a légica do desafio langado pelo Estrangeiro em 0 Festim de Briciu nao é tao insélita quanto parece. Na realidade, nés a reencontramos nos préprios fundamentos da ordem social arcaica: no € send a légica que subentende a troca de dons. Nesta, de fato, algo é oferecido ao outro hoje para rece- ber dele amanha. Sem diivida, se 0 desejo ¢ ainda estar presente no dia seguinte, nao se da sua prépria cabeca.’ “Lady Isabella Augusta Gregory, Cuchulain of Murthemme. The Story of the Men of Red Branch of Uster.In:A Treasury of trish Miths, Legend, and Folklore, Nova York: Avenel, 1986 [1902], p. 422. Encontramos o mesmo de- saffo em outras ends medievas, como 2 de “Gawain ¢ 0 Cavaeio Verde” * Ando ser que se estipule uma enteega pdstuma, coma no cord propasto ‘em 1819 Samuel Marsden, misiondrio na Nova Zelindia, por um chefe ‘maori qu cobicava seu machado. Sabendo que coleionadoreseuropeus 28 anator a vinganga Ae Mas o objeto dado € sempre uma espécie de prolonga- mento do doador: “[..J apresentar algo a alguém, observa Marcel Mauss, ¢ apresentar algo de si" Apresenta-se algo de si prevendo que se receberd algo do outro. A diferenca , anid fo dessa vez € do tipo que paralisa a interagao: aquele f ¢caracteristico do duplo vinculo. Mas o problema é dar um fim & oscilagao saindo do circulo vicioso e, que isso seja possivel, precisamos novamente tentar anilise em termos de niveis lgicos. ‘pouco sugerimos que o duplo vinculo provém do ater paradoxal do reconhecimento: o contradom pelo al se deve reconhecer o dom vai destrui-lo como dom. omhecer 0 que nao se deve reconhecer: esse & 0 impe- tivo paradoxal imposto pelo doador. Esse imperativo se @ analisar a maneira de Bateson, como o produto de ma contradigéo entre uma primeira mensagem € uma ymensagem. A primeira mensagem, “Eu the dei um nte", requer que seja reconhecida por seu contetido | \ Barcan eroso. A metamensagem esté na forma do reconhe- nto esperado: € preciso dar um novo presente ~ 0 no contexto do problema tal como acabamos de mmular, seria impossivel de ser feito sem desobedecer & ira mensagem. ‘Toca modema de dons s6 coloca em jogo duas pessoas, Oparadoxo se deve ao fato de que as dias mensagens ue Se encaixam contraditoriamente vém de uma tinica mite: 0 doador. Para sair do duplo vinculo, é preciso sair Jum quadro restrito. Mas, a andlise de Mauss revela capitulo 2- dome contraéom 49 precisamente como a troca arcaica sai disso: gracas & resenca de um “terceiro”, 0 espirito do dom. Nesse novo jogo a trés, a obrigacao de devolver esté sempre presente, ‘mas esta nao é mais imposta pelo doador: 0 donatirio, nos diz Mauss, “é levado pelo hau do presente”, e o hau do presente diz: “Dé-Ihe entao um outro presente’ Dessa forma, quando se leva a sério a “forca” que Mauss ‘dentificou na coisa que se da, constata-se que o duplo vvinculo desaparece... como num passe de magica. E que 2 obrigagdo de dar de volta nao se apresenta mais como anente a i 10: “No fundo”, diz Mauss, “0 haw que quer voltar (.J"* Reificada na forma de espirito, a obrigago passa para um nivel superior, € a os cilagéo entre a mensagem de generosidade e a exigéncia de reciprocidade é interrompida. A reificagio nio € gra- tuita, pois ¢ gragas a ela que a gratuidade do dom pode _Ser protegia no plano dos individuos. 0 espirito que se ga da metamensagem encarna o metanivel da relagao. Ao reconhecer a transcendéncia desta na forma de espirito, sai-se do circulo vicioso pelo hau. Ea passagem para o metanivel, em suma, que abre 0 ca- minho para uma resolugdo simultanea das duas questées: sendo um dom, como se pode ser obrigado a devolvé- -lo? Levar em conta o espirito do dom permite nio sé responder & primeira pergunta, mas também ultrapassar € segunda, Portanto, Mauss tem razo duplamente a0 insistir na importancia da crenga indigena no hau. Mas de igual modo Lévi-Strauss tem razio ao dizer que nio ¢ * Marcel Mauss op. cit, 1983, p. 160, 50 sratomia da vinganga DY ivél se limitar a isso. Se devemos reconhecer na cren= indigena um lugar decisivo na pritica indigena, nio jdemos nos restringir a éssa crenga como se ela consti- ¢ em si unia resposta ultima, Isso significaria erigir pque é uma transcendéncia para os indigenas numa ins- k homens nao constitui sendo uma primeira resposta, to que cla implica, por sua vez, novas questées. De le vem a crenca? De onde vem a transcendéncia? “O enigma do terceiro” responder a essas tiltimas questées, sera preciso am- aro contexto do problema indo além do trio composto is promotores humanos da troca mais 0 espiri- om seu artigo “O enigma do terceiro”, Dominique sajus nos coloca numa nova pista, fazendo com que um “terceiro”, que é diferente de nés. O ter- (©, dessa vez, ¢ perfeitamente imanente, um verdadeiro de came ¢ osso. Casajus procura resolver um que incomodou durante muito tempo os leitores ninado”, diz o sdbio maori, “Porém, eu dou esse ar- um terceiro que, depois de decorrido certo tempo, dar algo de volta como pagamento (ut), cle copltulo 2 dom econtradom 51 $ me da algo de presente (taonga). Mas esse taonga que cle me da ¢ 0 espirito (hau) do taonga que eu recebi de vocés ¢ que dei a ele.” Conclusao: "Os taonga que recebi, Por esses faonga (de vocés), & preciso que eu os devolva a vocés [.] pois so um hau do taonga que voces me deram’, Aqui temos um texto “surpreendentemente claro as vezes", comenta Mauss, ¢ que “sé tem um aspecto obscura: a intervencdo de um terceiro"” De fato, se a intengdo é querer dizer que quando A da a B, 0 haw obriga B a fazer um contradom a A, por que nao dizer isso simplesmente? Por que fazer intervit um terceiro, C, para quem B entrega o que recebeu de ‘Ae que vai dar de volta outra coisa para B que B, por sua vez, vai dar para A? Isso nao significa complicar a historia inutilmente? A introdugdo desse terceiro parece totalmente gratuit Mas s6 € gratuita se partirmos do pressuposto moderno + segundo o qual toda troca é uma transagao entre dois individuos. Casajus propée uma mudanga de perspecti- va: 0 que esti em jogo na explicagao indigena é menos uma transagio individual do que a circulagao dos objetos na sociedade. Porém, do ponto de vista de um determi- nado individuo, essa circulagao € composta pelo fluxo de bens sucessivos dos quais ele participa. A encenacao concebida pelo informador maori tem como objetivo compreender a necessidade imperativa de respeitar esses fluxos. Se o fluxo num sentido é seguido por um fluxo no outro, o individuo mio deve se opor a isso. "idem, p. 158-58, 52 anatomi de vngange perspectiva sobre a obrigagao de devolver ¢ insélita, vex que dota os proprios bens de subjetividade, mas famente 6 qué'@ torna CoeTenie como Tato de que, ge de sercm objetos inertes, os bens em questo sio mados pelo hau. Para o individu que se encontra no jo de um desses fluxos, escreve Casajus, 0 haw repre- “a imperiosa necessidade de nao interromper esse a pessoa se dissolve de forma tio magica quanto 0 duplo vinculo ha pouco. Pois, tendo tomado como de partida no uma troca entre dois individuos, mas mito dos fluxos que constituem a circulago glo~ €-se que o narrador maori, ao atibuir para si ¢20 de B, se colocou simplesmente no meio de um fluxos: “Na realidade, ndo ha um ‘terceiro™, constata “mas duas pessoas que so, cada uma por vez, uma © outra mais préxima de B. O informador no fou um terceiro a um par; ele encontrou no inicio P e350a, B, depois adicionou um par’. Vista dessa forma, io ndo é sendo l6gica; afinal, para cada individuo, 10 local sobre uma circulagao geral da qual parti a multiplicidade de operadores da troca. igue Casaju,“Vénigme dela toisiéme personne” n:Diférences 5 Hrarctine.Galey, Jean-Claude (org). Paris: Etions de Ecole des Jes en sciences sociales, 1984, p. 70 mp. 69-70. ‘capitulo 2 dom e contradom 53 SY ‘A presenca de pelo menos trés parceiros é necesséria para ampliar o contexto da histéria para esse horizonte social. Como diz Comejius Castoriadis num outro contexto, “é {que enquanto sé existirem dois, ndo hé sociedade, Deve hhaver um terceiro para romper esse face a face". ——— Pois bem, primeiro evocamos um “terceiro” extra-huma- no para romper 0 face a face opressivo entre o doador & 0 donatirio, ¢ depois introduzimos 0 “terceiro” humano elucidado por Casajus. Como o narrador maori, vemo-nos agora com um de cada lado. E preciso escolher entre os dois? Tentemos antes fazer com que se encontrem apro~ fundando a andlise um pouco mais em cada caso. Comecemos pelo argumento de Casajus. Embora sua interpretagio seja divergente da de Lévi-Strauss, ele segue ‘0 mesmo caminho dizendo que o hau “ndo explica a ccocréncia” dos fenémenos de troca em questio, mas “sé a expressa’" Entretanto, ao dar relevancia aos fluxos de dadivas mais do que As transagdes individuals, a anilise de Casajus no resolve o nosso problema de saber 0 que ga~ rante a volta, s6 0 desloca. 0 problema agora é descobrir de ‘onde vem a necessidade imperiosa de nao interromper um fluxo de volta. E aqui é preciso retomar a ctenga no hau. Retomemos a explicagdo desse conceito que Mauss cita para o informador maori. “Os taonga que recebi por esses ™ Cornelius Castoriads, Bomaines de "homme. Les corefours du labyrinth, {LU Paris: Le Sei, 1986, p. 45-46. ™ Dominique Casajus, op. cit, 1984, p. 70. 54 anatomia da vinganga s me deram. Se eu conservasse esse segundo taonga "para mim, poderia acontecer algo ruim comigo, de verda- », até mesmo a morte. Esse ¢ 0 hau, 0 hau de proprieda- de pessoal, 0 haw dos taonga, o hau da floresta.”" o uxo, algo de rulm poderia acontecer comigo, até smo a morte, Esse é 0 hau... N4o menos do que 0 spirito da reciprocidade negativa, o da reciprocidade V sitiva é uma “coisa muito poderosa’. E, num certo Sentido, & a mesma coisa: deve-se conciliar 0 hau para {7 hilo ser morto, para nao ficar sob o jugo da vinganga. ‘outras palavras: para ndo percorrer no sentido con- ério o caminho que vai da vinganca ao dom. Nao se interrompo esse fluxo que é 0 retorno do primei- | designar o que C devolve para B como “pagamen- ‘Mauss assinala numa nota que, entre outras coisas, sangue”, Dom contra Dom ou golpe contra golpe, a palavra se aplica. E da mesma forma que um ssino deixa a troca de golpes dando um presente, isso que os maoris acreditam. Mas, uma por que confiam no poder de um espirito aa io? Para compreender as razdes de sua crenca, capitulo 2 dom e contadom 55 it etree Spins — primeiro é preciso considerar 0 paralelo entre 0 “hau dos taonga” ¢ o “hau da floresta’. Pois 0 sbio maori s6 fala do primeiro para explicar methor os deveres que existera em relagio a este ultimo, Ele usa a obrigagao de volta na troca de dadivas para esclarecer outra obrigagao ritual, a de oferecer a0 espirito da floresta as premissas da caga ‘as pissaros, “para que o hau dos produtos da floresta (4 possa retomar novamente & floresta’: Dessa forma, como observa Marshall Sablins, 0 techo de etnografia neozelandesa que se tornou célebre gragas a Mauss na verdade ¢ 0 “comentario explicativo da desericao de um rito sacrificial” Porém, a oferenda dos produtos da caga busca obter 0 hau, principio de vitalidade e de fecundi- dade da floresta, cuja abundancia ele continua a garantir com passaros. Restituida em seu contexto, portanto, a narracao sobre 0 espirito do dom sugere por analogia que a contradom & necesséria para se ter certeza de que se continua a ter 0 beneficio da abundancia produzida pelos ciclos de troca ritual."* 0 donatario que falta com sua obrigagdo de dar de volta é cortado dessa fonte magica de vitalidade. & nesse sentido que ele sofre um golpe - ou melhor, um custo ~ potencialmenté fatal. Compreendida dessa forma, a oferenda do contradom para ser compativel com 0 haw se mostra como a operacao sacrificial por meio da qual * Marshall Safin, Age de pierre, Age Pabondance. Jas, Tina (trad). Pars Galhinara, 1976, p. 203 “Huma erence serelhante nas Sociedades do nordeste da Sibria¢ do este do Alasca onde, segundo Mauss as trocas entre os homens “homOni- mos dos espritos”incitar 0s espiritos, os deuses€ a natureza a secemge= Therosos: 7A toca de presentes pradur a abundneia de tiquezas, explica-se™ (1983, p. 164-68) 56 anstomia da vingangs permanece no circulo da reciprocidade positiva e se / das represalias. deira extensao, Pois a abundancia produzida pela troca al é perfeitamente real, como observa Jonathan Parry: {€ a propria troca seja fertile favoreca 0 crescimento deve “desviando o hau”, B destruiria a fonte de sua propria produtividade e vitalida- de, ¢ sucumbiria portanto 8 bruxaria ou ficaria doente € morreria de uma outra maneira. Uma vez mais, a experiéncia prova a teoria, pois aquele que esta em falta nessas trocas deixar de ser um parceiro aceitivel, e serd excluido dessa Fonte aparentemente magica de cresei- mento ¢ produtividade.” ria circulacdo dos tons. Er 7 descobre-se 8808 “dois terceiros” representam uma tinica mesma mancira que 0 “terceiro” desconstruido ajus, o hau, na anélise de Parry, remete aos fluxos copitulo2- dom econtradom 57 ag is Causalidades circulares Essa tiltima conclusio, contudo, parece colocar em ques- to a conclusfo anterior. Pois, se afinal de contas 0 haw nao € sendo 0 proprio ato da troca, a existéncia desse espirito nao seria, entio, supérflua? Parece que nos apro- ximamos novamente do ponto de vista de Lévi-Strauss ~ como se estivéssemos presos numa oscilagdo entre a sua posigio ¢ a de Mauss.. 0 raciocinio de Lévi-Strauss merece ser visto mais de perto. Como interpretar, ele pergunta, essa “virtude” que, segundo Mauss," “forca os dons a circularem, a serem dadas e devolvidas”? Ela nao poderia existir “objetiva- ‘mente, como uma propriedade fisica dos bens trocados”, muito menos quando “os bens em questo néo sao s6 ‘objetos fisicos, mas também dignidades, cargos, privi- égios”, Porém, se concebermos, entao, a virtude subje- tivamente, “nos vemos diante de uma altemnativa: essa virtude nao é senao o proprio ato de troca, tal como € representado pelo pensamento indigena, ¢ nos encontra- mos presos num circulo; ou ela tem uma natureza dife- rente, ¢ em relagdo a ela, 0 ato de troca se torna entao um fendmeno secundatio™” Mas, ele continua, ao contrario, ¢ “a troca que constitui ‘© fendmeno primitivo, nao as operagdes discretas” - dar, receber, devolver ~ em que a vida social o decompée". E ele devolve contra Mauss um preceito que “ele préprio ja Ver Marcel Mauss, 1983, p. 214. Claude Lévi-Strauss, op. cit, 1983, p. XXXVI S52 anatomia da vinganga avia formulado em Ensaio sobre a Magia: ‘A unidade > todo € ainda mais real do que cada uma das partes” Esumamos, Ou, nos diz Lévi-Strauss, é a troca que ji em si o fenémeno primitivo ~ a virtude da coisa dada ide seria explicé-la por ela mesma: acabariamos ‘maneira num raciocinio circular, Ou seria preci determinar que a troca é secundaria em relagao as pperacdes individuais de dar e devolver pautadas pelo : mas essa explicagdo inverteria a hierarquia real, em componentes individuais. Conclusdo: nao ha lugar ee— 0 hau. tanto, mesmo desprovido de existéncia objetiva, 0 exerce um poder real pela crenca subjetiva que cle ira, portanto, é dificil reduzi-lo a uma “virtude ador- dora’. Explicar que 0 fumante de épio dorme gragas uma virtude adormecedora é como revelar que 0 Se- or Jourdain fala em prosa: s6 se colocou um nome no © interessado de qualquer maneira jé faz." Nao é sob idem. luslo 20 personagem da comédia de Moltre Le Bourgois gentithomme. ot Jourdain € um burgués, pouco intligente, mas que desja set como um cavalero aristocrats. (NT) captulo 2- dom e contador 59 do pelo haw oferece um motivo real ao ato de devolver. Como dar lugar a essa quantidade adicional que apesar de tudo parece necesséria? ‘A alternativa formulada por Lévi-Strauss opde uma cir- cularidade viciosa a uma hierarquia invertida. Pois bem, hha uma terceira possibilidade: a de uma hierarquia circu- lar, mas nao viciosa, entre a troca como unidade trans cendente € as operacoes individuais que a constituem. Por um lado, o fato de a troca, na qualidade de relacdo, ser transcendente em relagio as operacdes discretas de dar, receber ¢ devolver nao impede que, por outro, a existéncia da troca dependa do bom desenrolar dessas mesmas operacdes. Por mais transcendente que seja, a circulacio global ndo € imposta aos homens de cima: ela ‘emerge de sua interagdo através de um processo de auto- -transcendéncia (auto-transcendance), A transcendéncia do todo, na qual insiste Lévi-Strauss, ndo dispensa a construgio desse todo, como queria fazer Mauss. E a construcao requer que se acrescente a mescla essa quantidade adicional que é o haw, Mas é preciso interpretar este ultimo & maneira tanto de Mauss quanto de Lévi-Strauss: como reificagao da troca € como virtude que forca as dadivas a circularem. Se, em ossas andilises, fossemos pegos numa oscilagao entre as posigdes de Mauss ¢ de Lévi-Strauss, isso significa- ria que essas posicdes representam duas causalidades ‘univocas que tem a particularidade de ser cada uma téo justa quanto a outra, ao mesmo tempo que € 0 contrario da outra. Nao hé troca sem o hau, diz Mauss; nao hi hau sem troca, retruca Lévi-Strauss. A solugio consiste em reconhecer que as duas causalidades contrarias sto 60 anatomia da vinganga na verdade complementares: a troca se baseia na crenga individual no haw, crenca que decorre, por sua vez, do | | fendmeno coletivo da troca. Deixamos a oscilacdo entre - as duas causalidades univocas, reconhecendo a presenca "de uma causalidade circular, circular funcionando. Acabamos de descrever a cau- “Salidade circular que liga 0s dois niveis de nossa andlise: primeiro nivel em que se desenrolam as operagGes | as entre os atores, € 0 metanivel onde se encontra 0 | ‘que encama a troca enquanto tudo transcendente. ss poderiamos alegar que esse terceiro transcendente ‘sua existéncia mais precisamente ao fato de que as Sprias operacées constitutivas da troca estao ligadas sipor uma causalidade circular situada no primetro el. Essa ultima ideia, Georg Simmel a expressou com lareza extraordindria”® nas seguintes frases publica- quando, de forma totalmente simultinea, os dois pri- se tornam mutuamente causa e efeito™” sa causalidade circular traz problemas & medida desenrola no tempo. Como esses processos podem sais exroordinirio porque aeabava de negar de maneira clare Ei algumas paginas antes, que se pode consierar a troca um fen ado de eistencla propria, e noo simples somatoio desses atos a constituem (Georg Simmel, 1987, p. 58). mel, Philosophie ce argent, trad. Sabine Cornille« Philippe is: Presses Universitaires de France, 1987 [1900], p. 65 capitulo 2 - dom e contradom 61 ser simultaneamente causa ¢ efeito se justamente no ‘Go simulténeos? Na troca de dons, 0 fato de receber, 0 fato de retribuir no tém praticamente a simultaneidade dessas transacées de alta tenso que Jean-Pierre Dupuy gosta de evocar, nas quais cada um teme o pior: 0 paga- ‘mento de um resgate por um sequestrado, ou uma troca de espides na fronteira de dois paises inimigos. A troca de dons exige que se ultrapasse a falta de con- fianca que bloqueia as transagoes entre inimigos. 0 segundo dom s6 pode ser a causa do primeiro se 0 primeiro doador puder acreditar que a dadiva futura de fato ocorrerd. Mas, depois que se da o primeiro presente, © que garante que o donatario por sua vez vai retribuir? No fim do capitulo anterior, associamos esse problema a inversio de orientagéo temporal que implica a passagem da vinganca a reciprocidade positiva. A partir dat se vé que essa inverstio temporal esté ligada a um problema mais geral, o da causalidade circular das relacées sociais que implicam uma aposta no futuro. 0 hau € 0 veiculo da causalidade circular que caracteriza a relagio de troca. Seo problema do hau levou-nos a estudar 0 caso da toca direta, a figura do circulo se mostra de maneira ainda mais clara no da troca indireta, ou generalizada. Lembremos que messe tipo de troca A di a B, que, em vez de the devolver uma dadiva, dé uma nova dadiva a C. E somente C (D, ou N...) que vai fechar o circulo, dando a A. Dessa maneira, A dé a B porque B da aC porque C da a A... Nas Estruturas Elementares do Parentesco, Lévi- ~Strauss ressalta que a participagio num sistema desse tipo supde que o grupo “esta pronto, no sentido mais amplo do termo, a especular’. E uma aposta: para ganhar 2 anatomi 6 vinganga necessério “assumir o risco inicial”; sempre hd “um ele- ‘mento de confianga que interfere: é preciso ter confianga _gue o ciclo se fechard”. Em outras palavras, para explicar como os participantes constroem o sistema circular que 0s une, 0 proprio Lévi-Strauss faz intervir um tipo de aantidade suplementar, a confianca ou crenga: “A cren- funda a confianca”” a indireta foi uma das razGes que nos levaram a defi- a troca como o fato de dar, mio Aquele que deu, mas quele que vai dar. Essa formulagéo reconhece que nem / pre ha retorno direto e coloca a énfase mais na orien- 40 temporal, voltada para o futuro. Porém, vimos, a orientacdo temporal implica sempre uma aposta, crenga no haw. Mas a intervengao do hau signitic: , hum certo sentido, munca ha retorno rigorosamente Feto. Pois, mesmo no caso da troca que se chama direta, $iions circulam |...] com a certeza de que serdo de- Vidas, tendo como ‘garantia™, diz Mauss, “a virtude sa dada que é em si essa ‘garantia."”* Virtude ? Tentamos demonstrar o contrario. Essa virtu- a no € do tipo “adormecedora” atribuida ao (1981, p.§91-92). Mauss op. cit, 1983, p. 198-99, capltulo 2 dom e contradom 62 Ke pio. Ela se assemelha mais virtude estimulante do tabaco de Sganarello, aquela que incita a dar a0 outro antecipadamente. E se essa virtude € uma espécie de “terceiro” que encarna a circulagio geral, que diferenga ha entio em relagdo a troca generalizada? Esta se define Justamente pelo fato de que A espera scu retomno, néo de B, mas de C (ou de N} - ou seja, um terceiro que nao € sengio um retransmissor da circulago geral.. Na realidade, ha uma ideia de que € sempre do circuito global que se deve esperar a volta. E do ponto de vista do circuito global, nfo ha volta, s6 ha busca da troca. Em ultima anélise, ha trocas para trocar, no para ter um retorno, Trocar por trocar, essa é, sem duivida, uma logica circular, mas é $6 entrando no circulo positivo que se sai definitivamente dos diversos circulos viciosos. Devemos, portanto, tentar ultrapassar a problemitica da retribuicio. Da rodada de cerveja as costas viradas Para os aborigenes da Nova Zelandia, a autotranscendéncia da circulagto social se encontra no hau. Gracas ao hau, 0 ‘grupo esta presente mesmo nas trocas que ocorrem entre dois individuos. Também se pode imaginar um sistema em que as trocas sio intermediadas diretamente pelo grupo em Seu conjunto, sem a intervengao de forcas magicas. Bruce Kapferer d-nos o exemplo desse sistema entre os habitan- tes ndo aborigenes da Austrilia modema, e mais particu- larmente entre os homens que se consideram companheiros (ou “amigos” (mates). No “principio de reciprocidade” que 54 anatomis da vingarga apferer diz-nos, por um lado, Mancira desinteressada” ~ portanto, sar na retribuicdo - mas, por out deve dar 0 equivalente do que se locada na reciprocidade equilibrad: ios aparentemente contraditérios Segundo Kapferer, sua ética de camaradagem veremos um dilema conhecido. ue 0 “amigo perfeito dé de espontaneamente, sem 70 lado, especifica que Tecebe. A énfase é fa” Porém, esses impe- sao reconciliados na so em que a exigéncia de reciprocidade é “o que 2 mais em evidéncia’, ou seja, “o ‘dom’ de bebida” A bebida © em particular a cerveja tém lum peso simbélico forte na Austrélia, “Mates” homens (conhecidos e amigos) formam grupos de bebedores (as vezes chamados “escolas’). Idealmente, todo individuo na escola deve, cada um por vez, pagar uma bebida para todos os Outros membros da escola ao mesmo ‘tempo. Essa aco afirma a autonomia daquele que paga em relacao a cole- tividade dos outros “amigos” que nao perdem sua autonomia individual na coletividade. i203 pubs da Australia fotio que faz 0 papel do terceiro.C: apfrer, ‘Nationalist ideo 4, 1889, p. 175-76, ipo de dom descrito por Kapferer ~ que, alls, nao se 0 grupo de amigos como ‘ada um da a titulo 'oay and a corporative antropology’ ‘aptuo 2 - dome contradom 65 \dividual, mas cada um recebe como membro do grupo; & portanto, ao grupo todo que se deve retribuir, como é de todo o grupo que se deve esperar a retribuicao. A autonomia de cada individuo em relagdo a seus amigos € dessa forma preservada pela insergéo imediata ¢ ostensi- va de toda dadiva de bebida no circuito global.” De fato, sragas a essa mediagao direta do nivel coletivo, cada in~ dividuo pode oferecer dons a todos os outros individuos € recebé-los desses mesmos individuos sem que nenhum dom particular seja identificavel como a retribuigao de outra dadiva particular, A reciprocidade equilibrada € ‘mantida no piano global pelo fluxo continuo de cerve- Jja, apesar de nunca haver troca reciproca de bebidas no plano individual Essa troca direta de bebidas entre individuos ocorre, em contrapartida, no contexto do “cerimonial da refeic¢ao nos restaurantes baratos do Sul da Franca” descrito por Lévi- -Strauss num trecho célebre de As Estruturas Elementa- res do Parentesco, no qual se vé que o vinho tem, como 0 tabaco, a virtude de tomar as pessoas gencrosas: Lal nessas regides em que o vinho [é] a industria essencial, ele é rodeado por uum tipo de respeito mistico que 0 tora ‘0 “alimento rico” por exceléncia. Nos pequenos estabelecimentos em que o vi- tho esta incluido no prego da refeigao, cada comensal encontra, diante de seu ° Pode-se pensar aqu no raciacinio de Jean-Jacques Rousseau no Contrato Social 6) “eeda qual, dando-sea todos, nBo se da ninguém 8 anatomia da vingansa rato, uma garrafa modesta [..]. A pe= quena garrafa pode conter simplesmente lum copo, esse contetido sera servido, nao no copo do detentor, mas no do ‘Vizinho. E este fard imediatamente um esto correspondente de reciprocidade. ¥i-Strauss usa esse exemplo para enfatizar que o “prin- ho de reciprocidade” ultrapassa de longe o simples tulfbrio econémico: “Do ponto de vista econdmico, anhou e ninguém perdeu. Mas acontece que to mais, na troca, do que as coisas trocadas"* Um Eopo de vinho por um copo de vinho: essa é uma tran- Perfeitamente circular. Manifestamente, nao se dé i para receber, pois a coisa dada e a coisa recebida idénticas. E s6 para trocar que se di. E parece-nos na propria circularidade da transagio que se deve ar a fonte desse “mais em relagio as coisas trocadas Lévi-Strauss atribui 4 troca enquanto tal explicar 2 oposi¢ao entre essa forma de reciproci- ‘equilibrada descrita por Lévi-Strauss ¢ a analisada rKapferer. A pequena ceriménia do Sul encena direta- Ente 0 préprio tipo de troca de bebidas entre individuos costume australiano serve para evitar. Entretanto, a dos bebedores na Austrdlia nao poderia realmen- muito diferente da dos seus homdlogos franceses, final, independentemente das particularidades da ética hip nia Australia, os franceses conhecem também Fitica de pagar uma rodada para os amigos. ide Lévi-Strauss, op. cit, 1967 [1949], p, 68-68, ‘pitulo 2- dom econtadom — 67 ‘Mas justamente nao é entre amigos que o vinho é tr0- cado no caso evocado por Lévi-Strauss. Trata-se, pelo contririo, de estranhos: de “dois estranhos que esto um diante do outro, a menos de um metro de distancia, dos dois lados de uma mesa de restaurante’, E Lévi-Strauss interpreta a troca de bebidas como o meio de resolver 0 conflito criado por essa proximidade insdlita entre duas pessoas que nao se conhecem: “Elas se sentem ao mes- ‘mo tempo sés, ¢ unidas, obrigadas a discrigéo habitual entre estranhos, a0 paso que sua posicao respectiva no espago fisico, € a sua relagdo com os objetos ¢ os utensi- lios da refeicao, sugerem, e numa certa medida exigem, a intimidade’. Esse “contfito, sem divida nao muito agudo, ‘mas real", provoca nos comensais “um estado de tensio", “uma ansiedade imperceptivel’. “A distdincia social manti- da, continua Lévi-Strauss, mesmo quando nio é seguida de nenhuma manifestagao de desdém, de insoléncia ou de agressio, é, em si, um fator de sofrimento, no sentido de que todo contato social comporta uma solicitagao e essa solicitagdo € uma esperanga de resposta.” A troca dos copos de vinho acaba com essa “incerteza reciproca’?” [Num livro de inspiragdo cibernética escrito em cola- boragéo com o psiquiatra Jurgen Ruesch ¢ publicado nna mesma época em que As Estruturas Elementares do Parentesco, Gregory Bateson atribui o carter angus- tiante dessa incerteza reciproca a natureza paradoxal da mensagem que ela contém, Quando duas pessoas que mal se conhecem esto uma diante da outra, preferirio trocar palavras fiiteis “em vez de aceitar a mensagem que idem, 9. 68-70. 88 anatomia oa vngarcs éstaria implicita no siléncio ~ a mensagem ‘Nos nao nos ‘comunicamos”, Essa mensagem cria um mal-estar no 86 “porque implica uma rejeigdo", mas talvez também, __sugere Bateson, porque “explode por si s6 no paradoxo: "se duas pessoas trocam uma mensagem desse tipo, elas “sto se comunicando"?® «Nessa andlise que prefigura a teoria do duplo vinculo que _ Bateson desenvotverd em seguida, pode-se identificar uma variante do imperativo paradoxal que ja encontra- | mos na primeira parte do capitulo sobre a obrigagao de tribuir a dadiva: Reconhecer 0 que ndo se deve reconhe- Por uma circularidade negativa, reconhecer a men- gem “Nao nos comunicamos” significa desmenti-la. 0 oblema reside numa contradicao entre dois niveis, o da fransmissio da mensagem ~ o fato de comuntcar pro- Ptiamente dito ~ © 0 de seu contetido, a denegagao desse fato. A solucao consiste em atribuir esses dois niveis, stituindo a denegagdo por uma afirmacdo: em outras as, substituindo 0 siléncio embaragoso por uma municacdo explicita. Mesmo uma troca de palavras, temente fiteis, permite afirmar 0 préprio fato de Bateson. “De fato”, acrescenta, “esta talvez seja a Mensagem mais importante emitida e recebida."® sa analise batesoniana da comunicago da a resposta ma certa critica feita 4 teoria das trocas proposta por ‘capitulo 2 dom e contredom — 68 Lévi-Strauss. A sua ideia de que as trocas de mulheres € de dadivas compoem um sistema de comunicagao se presta a uma objeao evidente: vé-se com dificuldade que sentido pode ser veiculado por objetos de troca que, a0 contrario das palavras, nao séo dotados de contetido semantico. Que mensagem se deve comunicar? De fato, se ha uma mensagem aqui, ndo se deve buscé-la no plano das coisas trocadas, mas no plano da propria troca. 0 proprio fato de trocar permite afirmar a existéncia de uma telagdo entre as pessoas que esto trocando, ¢ ¢ essa afirmagio que constitu 0 contetido da mensagem. Como a troca de palavras na andlise de Bateson, toda troca é portadora da mensagem implicita “nés nos comunica- ‘mos’, Mensagem que se caracteriza por uma circularidade positiva, visto que reconhecé-Ia significa confirmé-la, No caso dos estranhos que estao um diante do outro no restaurante do Sul, 0 reconhecimento consiste em reiribuir uma bebida pela bebida recebida. Um copo de vinho por um copo de vinho: a circularidade positiva dessa transagdo permite fugir do circulo vicioso de uma (ndo) comunicagao paradoxal. Observemos que a cir- cularidade negativa da mensagem “Nés nao nos comu- nicamos” implica uma va tentativa de voltar para tras, ‘num tempo que nao existe mais, 0 tempo dando comu- nicacao abolido pela propria transmissao da mensagem. ‘A mensagem “Nés nos comunicamos” busca, pelo con- trario, por sua circularidade positiva, trazer 0 tempo que anuncla, 0 da comunicacdo. Entre esses dois exemplos, ha, portanto, ao mesmo tempo inversio da orientagao temporal e conservagio da circularidade. Langando uma mensagem, fazendo um dom, volta-se para o futuro que se quer suscitar. 70 anatomia da vinganga amente, 0 reconhecimento esperado é menos garan- Ho no caso da recepcdo de um dom do que no caso da epcdo de uma mensagem ~ se desta vez considerarmos ipo de “reconhecimento” que deve se expressar na de um gesto correspondente de reciprocidade. Afi- 0 primeiro que derrama 0 contedido da sua jarra no 0 do desconhecido sentado a frente aceita correr certo 0, como observa Lévi-Strauss, “risco que o parceiro Rsponda a libacao oferecida com uma porgao menos ge- Pierosa"; ou risco, ao contririo, que se entregue a excesso force (..] a perder, na forma da tiltima gota, a sua ltima vantagem, ou a fazer para prestigid-lo o sacrificio Geuma garrafa adicional”” Dar ao outro antecipadamen- €€ sem divida arriscado, mesmo quando se oferece $6 bebida ~ € nao, como na historia do gigante irlandés, la cabesa, O que esta em jogo é menos importante no faurante do Sul do que n’O Festim de Briciu, mas a sta & sempre a mesma: a de se langar numa circula~ ide positiva para instaurar uma relacdo de confianga it 0 Estranho, pub australiano, em contrapartida, os bebedores de apferer no sio estranhos, ¢ sim amigos. Jé existe uma jo de confianca entre eles; o problema & manté-la de limites convenientes. A ética da camaradagem lina exclui toda intimidade suscetivel de compro- ‘ autonomia do individuo. E preciso reconciliar a Héncia da reciprocidade com a necessidade de preser~ af ceria distancia entre os membros do grupo. 0 mesmo apltulo 2 - dom e cantradom 71 entre dois desconhecidos podera, pelo contrério, provocar um siléncio embaragoso em certos contextos de camarada~ ‘gem coletiva se ele se mostrar de forma muito personali- zada, Dessa mancira, em um grupo de amigos que jé esto boebendo juntos, provavelmente seria inconveniente of- recer uma bebida de forma exclusiva a um tinico membro do grupo. £ melhor que cada um receba como membro do ‘grupo. Mesmo que os dons ocorram no plano individual, ‘© grupo se interpde como mediador da generosidade. Um rito de reciprocidade praticado por guerreiros aborigenes dda Australia representa uma solugio original 20 mesmo problema da manutengio da boa distincia nas trocas entre 0s homens. Mauss cita esse rito, nas "Conclusdes de moral” do Ensaio, como exemplar do ideal do dom: ‘Num corroboree (danga dramatica publica)” de Pine Mountain (Centro Oriental de Queensland), um individuo por vez entra no lugar consagrado, ‘tendo numa das mfos seu propulsor de Janga, enquanto a outra mao fica nas costas; ele Langa sua arma num circulo no outro extremo do espago, nomeando ‘20 mesmo tempo em voz alta o lugar de onde vem, por exemplo: “Kunyan é a minha terra de origem"; ele para por lum momento € durante esse tempo os ‘seus amigos “colocam um presente”, uma langa, um bumerangue, uma outra arma, em sua outra mao. * 0 corroboree & um ato cerimonial dos abotigenes australianos (NT) 72 anatomi da viogange O circulo no qual o guerreiro lanca sua arma simboliza bem 0 circulo da reciprocidade social. Uma vez que ele langa a arma numa diregao para receber uma arma que vem de outra direcdo, 0 guerreiro se situa justamente no meio de um fluxo de bens. 0 que parte na diregio do coletivo pode até voltar multiplicado, provando assim 4 fertilidade das trocas. De fato, segundo o etndgrafo itado por Mauss, “assim um bom guerreiro pode receber mais do que sua mao pode segurar, em particular se ele tiver filhas para casar’? Com esse ultimo detalhe, Mauss propée ligar a troca em questo a0 contrato de casamento. Considerando a im- Portancia coletiva do casamento, isso tomaria ainda mais evidente 0 fato de que o donatario recebe como membro “do grupo. 0 outro detalhe comentado por Mauss, a indi- cio do cla de origem feita em voz alta pelo guerreiro mnguanto ele langa a arma, mostra também que nao se dé Aqui no plano individual. Esses companheiros de armas borigenes ndo tém a mesma ética de autonomia pessoal Gue 0s amigos no pub de Kapferer. Entretanto, um deta~ dhe que Mauss nao observa marca o isolamento simbélico lo guerreiro em relacdo aos companheiros que, por sua #2, Ihe dio. Depois que ele lancou sua arma com uma mos, 05 demais colocam um presente “na sua outra Mas essa outra mao, Mauss nos disse pouco antes, lerreiro a coloca “atrés, nas costas" Isso significa que esto correspondente de reciprocidade ocorre pelas as daquele que acaba de dar. Subterfiigio original que Mermite que a retribuigo mantenha, até certo ponto, 0 Mauss, op. cit, 1983, p. 264, ‘aptulo 2 dom e contsdom 75 mesmo anonimato que o pagamento de uma rodada de cerveja por outro mefo. ‘Quando se oferece uma bebida a todos os seus amigos ‘a0 mesmo tempo, cada donatario individual desaparece ‘na multidao. A reciprocidade se da no plano global sem ‘que nenhum gesto se mostre como a retribuigdo de outro esto feito por uma pessoa em particular. E assim que © grupo como um todo desempenha o papel do tercei- ro mediador da generosidade. Na ceriménia aborigene, em contrapartida, 0 donatario se destaca claramente da multidao, 0 presente de armas destina-se a um th dividuo, aquele que acaba de langar a sua prépria arma. E essa reciprocidade imediata ocorre de forma ainda mais personalizada porque, a0 contririo do dom da bebida, 0 presente de armas é um valor que varia segundo a gene- rosidade dos amigos do donatério. Mas, na hora, cle nao pode ver 0 que colocam em sua mao, As costas viradas, nao permitem que ele veja essa expressdo de sua bonda- de, Para ele, eles sto apenas os representantes invisiveis, de todo 0 grupo que esta atrds dele. Mas 0 sistema de trocas em que o grupo inteiro desempenha © papel de intermedirio da reciprocidade da maneira mais absoluta é, sem daivida, aquele em que ndo ha mais dom nas transagdes entre individuos, ou seja, 0 mercado moder- ‘no, As transagdes do mercado sio regidas por essa lei da “impessoalidade” que caracteriza a “sociabilidade secund’- ria” em oposigdo & *sociabilidade primaria": na sociabilidade rimdria, escreve Alain Caillé, “as relagoes entre as pessoas sto tidas como mais importantes ou como devendo ser mais importantes [Esse registro é 0 da familia, do parentesco ¢ da alianga, da amizade e da camaradagem. Na sociabilidade 74 anatomia da vingenga 5, nos dois exemplos australianos, apesar da grande cultural que os separa, pode-se ver que eles tém igdes que provém mais da sociabilidade primaria. lada de cerveja e as costas viradas permitem tomar 0 vendedor de cerveja, © agougueiro 0 padeiro Pagar um bem ou um servigo ¢ climinar toda necessida- de de uma relagao que iria além do préprio momento da fansacao. Dessa forma, ¢ no mercado que nao ha obri- agdo de retorno, é no mercado que nao ha exigéncia de [Ain Cail, “Sujets inviduels et sujet collect, Piiosphie et Anthropolo= =i Descars, Christan (apres) Paris: Centre Georges-Pompidou, 1996, pS, ‘pitulo2 dom e contadom 75, reciprocidade. Como escreveu um aluno de Mauss, Itsuo ‘Tsuda: “Quando compramos pao na padaria, nao estamos ligados por nenhuma obrigagao ao padeiro. Depois que se paga, estamos livres em relacao a ele, ¢ ele em rela~ do a nds’ Temos liberdade de voltar mesma padaria ou nao, depende da nossa vontade, Numa préxima vez, podemos comprar 0 nosso pao também em outro lugar. Nesse sentido, nenhuma retribuigo é esperada. Essas observacdes sobre a troca comercial s6 confirmam, or outra via, o que ja dissemos sobre a troca de dadivas na primeira parte deste capitulo. 0 fato de o dom reque- rer uma retribuigdo faz com que algumas pessoas pensem que nio se trata de um verdadeiro dom, mas de uma versio mais ou: menos bem camuflada, mais ou menos hipécrita, de uma mercadoria pela qual se paga. Ha ai um contrassenso que se refere tanto A obrigagao de devolver a didiva quanto a de pagar a mercadoria. Retribuir ume dadiva, reconhecer a generosidade do primeiro doador por meio de um gesto correspondente de reciprocidade, é reconhecer a relacdo cujo presente ante- rior nfo é sendo umn veiculo, De fato, longe de se resumir no valor do objeto que ele the da, a generosidade do primeiro doador reside, sobretudo, no fato de que ele tem © propésito de participar de uma relagdo de reciprocidade com voce. Essa relacdo é exigente, pois pode acarretar no futuro obrigagdes imprevisiveis no momento de dar. Uma relacio de reciprocidade evolui no tempo, visto que tem uma existéncia que ultrapassa cada transago particular. > Itsuo Td, Le Non-Foie Pars: Le Courier du Ure, 1973, p. 135. 1» nia a vinganga mento de uma mercadoria, pelo contratio, poe um “obrigagoes miituas das pessoas envolvidas na tro- fo ha exigéncia de reciprocidade além da transagao esto. Idealmente, a troca comercial faz com que ates sejam to estranhos um em relaco ao outro eram antes. Depois que a transagio esta conchui Porlem virar as costas um para 0 outro para sempre. maneira, pagar uma mercadoria significa cortar iz toda relacao de reciprocidade entre as pessoas idas na troca. cas numa economia em que a diviséo do trabalho / muito desenvolvida."* Como observa Adam Smith, os gcessos técnicos necessérios para a satisfagiio das ne- izada, [o home] precisa a todo ante da ajuda e colaboragao de uma multidio de ho- 0 passo que toda sua vida mal bastaria para ter a ade de algumas pessoas”. por essa razio que cada deve recorrer ao mercado, onde as transacdes mone- las transcorrem fora de qualquer relacao personalizada E reciprocidade. A generosidade nao tem importdncia, do a formula famosa de Smith, “nao é da benevo- 2 rasa comercia tampouco podeta se No propre sciedade Bbanads mercado a prestagds no comerciasacupom sempre um ger Eh. Como reslta Ahmet nse! (1883.2), 0 espag do dom, "em- antimico 20 mercado quant 30 se princiis ae funconamento, 6 deta de constitu uma forte aculta que alimenta o mercado: Esbo- | fndo ua mtagio quantitative do peso da prestagbes no comers na ede francesa contemporine, Isl che a grandezas considers ‘aptuo 2 dom e contradom 77 encia do agougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que ‘esperamos nosso jantar, mas de seu interesse proprio" 0 acougueiro The dard 0 que comer hoje sem esperar nada de vocé amanha. E seu dinheiro que o interessa; este Ihe permitird se abastecer por sua vez no mercado, Deve-se concluir que a economia de mercado nao conhece nenhuma forma de reciprocidade social? Isso significaria cometer, a respeito da economia modema, 6 mesmo erro que Lévi-Strauss denuncia em relagéo a0 casamento moderno. Sabe-se que Lévi-Strauss analisa as estruturas de parentesco nas sociedades “primiti- vas" baseadas no principio da troca de mulheres entre grupos. £ a forma particular do nosso préprio sistema de parentesco que nio nos deixa ver agit no casamen- to outra regra que nao seja o tabu do incesto. Porém, Insiste Lévi-Strauss, mesmo essa regra minima implica que cada homem renuncia a toda possibilidade de unio com as mulheres mais préximas para permitir que ca- sem com outros homens ¢ para receber em contrapartida o direito de procurar uma mulher entre todas aquelas as quais os outros homens terio renunciado também.” Em outras palavras, mesmo no casamento moderno, © principio de reciprocidade esta sempre presente: A tinica diferenga & que, nas sociedades primitivas, ¢ de maneira preponderante, °% Adam Sith, An inquiry into the Nature and Causes ofthe Weoith of Na ‘ton, Canaan, Edwin (og). Nova York: Moder Library, 1991 {17761 v. p82. 2 Observemar que esse raciocinio seria também vilido se formulado do ponto de vista das mulheres que eenunciam aos seus parentes do sexo maseulin, 78 snatomia do vnganga 4 estrutura simétrica da instituigao colo- ‘ca em questio dois grupos, ao passo que nas sociedades modernas, os elementos de simetria so, por um lado, uma classe que tende a se reduzir ao individuo, , or outro, uma classe que se amplia até se confundir com o grupo social consi derado em seu conjunto.™ Contudo, pode-se distinguir uma légica andloga atuando economia de mercado. A divisio do trabalho moderno vibe, quando nao formalmente, pelo menos na priti- depender de sua propria produgto para a satisfagto ‘suas necessidades materiais. Como 0 casamento, a onomia obriga cada um a sair de seu prorpio jogo de cas para participar de um mais vasto, Em geral, nao se sfonsome, ou nao principalmente, o que cada um produz, realidade, mesmo nas sociedades em que a divisio do balho ¢ pouco desenvolvida, 2 autonomia econdmica lar individual em geral & impensavel do ponto de vista social, pois esta implicaria 0 desfrute com culpa de um lo incestuoso, como sugere o aforismo Arapesh que Strauss cita, segundo Margaret Mead: “A tua propria Me | A tua propria irma / Os teus proprios porcos / 0s | aus préprios inhames que empilhaste / Nao podes comé- | } los” Da mesma forma, para Lévi-Strauss, o tabu do Mesto favorece a troca de mulheres, como a existéncia Eproibigdes cerimoniais sobre 0 consumo dos frutos do Gi préprio trabalho favorece a troca de dons. ude Uv Strauss, op. cit, 1967, p. 151, dem p31 ‘aptuio 2 dom e contrdom 75, Na economia modema, é a divisio do trabalho que de certa forma substitui proibigées explicitas e impde uma forma indireta de reciprocidade. Essa reciprocidade nao ‘se manifesta no plano da troca entre dois individuos. Me- nos ainda no da troca entre dois grupos: pouco importa para 0 meu agougueiro saber se “venho de Kunyan”. Na economia moderna, como no casamento moderno tal como ¢ analisado por Lévi-Strauss, os elementos de sime- twia sio, por um lado, o individuo e, por outro, o grupo social como um todo. 0 mercado coloca o individuo diante dessa “multidao de homens” de que fala Smit Como os bebedores no contexto da rodada de cerveja, cada agente econdmico se dissipa na multidao. Se os agentes sao estranhos uns a0s outros, se podem fazer ne~ écios ¢ depois dar-se as costas imediatamente, significa que a reciprocidade ocorre, por assim dizer, pelas costas, como sob 0 impulso de uma mao invisivel Como os espiritos invisiveis que presidem as trocas nos maoris, a mio invisivel do mercado remete & autotrans- cendéncia do social. 0 grupo social em seu todo 0 “terceito” que 0 intermedirio das trocas entre os indivi~ duos. De fato, é apenas no plano da totalidade das trocas, no plano do proprio mercado, que ocorre a reciprocidade nna economia moderna. Essa reciprocidade se baseia num principio minimalista, o da participacao de todos no mer- cado, Cada um renuncia a trabalhar s6 para si mesmo ou seus familiares e dd a todos os outros a possibilidade de se beneficiarem de sua atividade produtiva conduzindo-a para 0 mercado. Em troca disso, cada um procura bens ¢ servigos de que precisa entre todos aqueles que por sua vee terdo colocado no mercado. Se essa reciprocidade expressa uma realidade - a complexidade da divisio do trabalho 80 anatomia ds vngange mo -, ela apresenta também um carter normativo, le que escothe se retirar completamente do merca- recusando vender sua forga de trabalho ¢ morar, se limentar ¢ se vestir apenas de seus préprios cuidados, seri davida visto como um rebelde, um transgressor, como tivesse cometido um tipo de incesto econémico.” nitudo, uma vez mais, o comprometimento de cada um jogo global das trocas comerciais é a unica obrigagio essiala para garantir a reciprocidade. Nao ha obri- io necessria para garantir a reciprocidade, Nao ha rigacio de retribuir no plano da troca individual no itido de que o recipiendario de uma mercadoria nao nenhuma necessidade de fazer um gesto correspon- lente de reciprocidade. Esse gesto seria até mal recebido. dono de um pub ndo vera com bons olhos se, depois de pedido cerveja para todos os seus amigos, vocé sair em pagar dizendo: “Obrigado, eu Ihe oferecerei um bom ife € po amanha’ E possivel que vocé volte amanha ou ‘tio. Em vez de confiar em vocé, 0 vendedor de cerve- Ja prefere ficar com seu dinheiro, podendo até gasti-lo _¢m outro lugar para comprar carne ou pio se precisar. " Evidentemente, € s6 pelo fato de saber que seu dinheiro seri aceito por outros comerciantes que esse comerciante em particular o aceita: em si, 0 dinheiro néo tem nenhum valor. Isso significa que a troca entre vocé e seu vendedor _de cerveja seria radicalmente incompleta sem a presenga virtual de um ferceiro: 0 agougueiro ou qualquer outro comerciante com 0 qual ele gastaré seu dinheiro. 0 transgressor pode ser um individuo au um pas inteiro:atualmente, a ‘mesma reprovagdo do desvo incestuoto anima a retérica dos partidaries do lie-cambismo mundial ‘pitulo 2- dom e contradom Quando 0 sibio maori explicava o significado do haw, a intervencao de um terceiro em seu relato deixava Mauss | Perplexo. Para resolver o enigma, era preciso ultrapassar 0 Pressuposto modemno segundo o qual uma troca é uma tran- Ssagio que ocorre entre dois individuos. Mas 0 que constata- ‘mos agora € que esse pressuposto individualista & pouco vi- {ido também em relagio as trocas modernas. Toda transagio ‘monetéria comporta a intervencao virtual de um terceiro. Como 0 dinheito nao tem valor intrinseco, $6 0 terceiro pode assegurar que o que foi dado seré devolvido. Para ter um ar- tigo de valor em troca da bebida que ele Ihe dé, 0 vendedor de cerveja deve se dirigir a um terceiro. E a transagio entre 0 vendedor de cerveja ¢ © acougueiro também serd em si incompleta, Para receber um bem em contrapartida do bife que ele di ao vendedor de cerveja, 0 agougueiro seré obri- | Bado, por sua vee, a ir a padaria, e assim por diante, num Circulo sem fim, Como no exemplo maori, 0 terceiro remete na realidade aos fluxos continuos da circulago global. A diferenca entre os dois casos ¢ que 0 nosso vendedor de cerveja nao precisa ter boas relagées com 0 agouguei- / 70, nem 0 agougueiro com o padeiro. Os fluxes da circu- |_| laste comercial nao seguem os caminhos tragados pela |_| amizade, pela alianga, pelo parentesco. 0 circulo fecha-se |_| no plano global sem passar pelas relagdes de confianca |_| no plano individual que caracterizam a sociabilidade \ rimatia. A economia monetéria permite assim eliminar completamente o problema da confianga tal como este |se coloca nas trocas de dons. Numa transacao monetaria, indo € necessério ter confianga naquele para quem se dd. Nio se espera que cle por sua vez dé: basta pegar seu __ Mheiro. Mas a necessidade de confianga nao ¢ eliminada, » $6 deslocada: esta se refere agora ao préprio dinheiro, nheiro de volta, visto que cada um espera encontrar m terceiro que aceitard dar s6 recebendo dinheiro de preciso que todos aceitem jar adiando indefinidamente o “verdadeiro” retorno. O quanto aqueles que trocam acreditam que o dinheiro “de fato” valor, 0 agougueiro, o empregado, o consumidor, todos The rio que a economia moderna, quando nao toda a socie- | moderna, se baseia no valor do dinheiro. Contudo, | economistas ortodoxos tém a mesma preocupacao que -Strauss de ndo “se deixar mistificar” pelo “pen- rento indigena’. Da mesma forma que Lévi-Strauss Igcita o poder espiritual do dom como ilusério, esses | Heconomistas recusam “a ilusio monetaria’. Para eles, 0 linheiro ndo € sendo um instrumento neutro que nao tem | penuma realidade além das préprias transagées. Nessa oncepsao instrumental”, nota Bruno Théret, o dinheiro é*considerado um simples véu colocado nas trocas de ens ¢ servigos"" A mesma férmula ~ “simples véu colo- do nas trocas” ~ resume bem a concepgio estruturalista hhaw. 0 dinheiro é o equivalente moderno do hau? | no Theet, Souverainet& et legimité de la monnaie. Monnaie et impot' Souversineté leitimité de la monnaie.Aglitta, Michel e Oran, André Paris: Association d'économie fnancire/Centee de recherche em &pis~ je appliqués, 1995, . 71 ‘capitulo 2~ dom econtradom 83 Enquanto os maoris acreditam que o poder do haw garan- te 0 bom desenvolvimento das trocas, 0 bom desenvolvi- mento das trocas confirmard o poder do hau. Da mesma mmaneira, enquanto todos os agentes acreditarem no valor do dinheiro, 0 valor do dinheiro sera confirmado pelos fatos. Como ressalta André Orléan, a operagio do dinhei- ro comporta uma “autorrealizacdo das crengas no sentido de que, assim que os agentes se apropriam delas, essas crengas so corroboradas pelo jogo das trocas” No caso do dinheiro, como no do hau, a relagao entre as crengas individuais das pessoas que trocam ¢ o jogo coletivo das trocas é perfeitamente circular. As crencas dos individuos baseiam-se no fendmeno coletivo, mas este nem por isso deixa de depender das crengas dos individuos. Se quiser- mos construir a unidade do todo, € preciso “acrescentar & mistura uma quantidade complementar”: corroborando 0 que diz Simmel, “um complemento dessa “fé' sociopsico- ogica que apresenta semelhancas da fé religiosa’:* A fé dos individuos no valor do dinheiro é indispensi- vel para o funcionamento do mercado. Os economistas ortodoxos tentam reduzir a economia monetéria 2 uma série de transagdes contratuais entre pares de agentes individuais. Orléan mostra que esse mecanismo en- contra seu limite quando se trata de explicar 0 préprio dinheiro.** Este ndo € o resultado de um contrato entre “* André Orin, "Vorigine dela monnaie (La Rewue du Moussn. 14, 1991, p. 144 © George Simmel, op. cit, 1987, p. 198; citado em Oritan, 1982, p. 94 “André Orléan, “Le monnaie auto référentielle:refiexious su les evolutions ‘monétates contemporaines" n: Lo Mannoie souvervine.Aglieta, Miche! ¢ Orléan, André (org), Paris Oeie Jacob, 1998, 4 anatomia da vinganga individuos, s6 pode ser a expresso de um nivel trans- \dente ~ mesmo quando se trata do caso de uma “transcendéncia emergente, de uma autotranscendéncia. alizando-se no dinheiro, a autotranscendéncia do po social intervém como terceiro mediador nas transa- s entre individuos. E € porque o grupo como um todo €0 intermediirio de toda transagdo entre dois individuos cessas transagdes podem parecer independentes umas iS outras. Mas, na verdade, participam de um vasto circu: esperanga de que os outros fardo a mesma coisa, fragilidade desse circulo aparece claramente cada vez © dinheiro entra em crise. 0 circulo positivo trans ase enti em circulo negativo: cada um se recusa a ym a mesma aparéncia de fatalidade que a crenca em fu Valor. Quando falta o “complemento de fe" necessa- a unidade do todo, o dinheiro cai por terra. Ea ntemente, 0 citculo no age sempre de forma t8o ite. Em geral a sua vinganca € insidiosa; mani- se nao pela ruina do dinheiro, mas por uma erosio € progressiva de seu valor - ou, pelo contrario, por | aumento velado desse mesmo valor, que acaba tam- travando as trocas, Pois, se 0 dinheiro se torna uma doria demasiadamente rara, 0s consumidores vio Gitar em gasté-lo. Mas a renda dos consumidores deriva, investimento dos empresérios ¢ a renda das empresas orre do gasto dos consumidores: outro circulo positive cpltule 2- dom e contradom a5 i Pronto para mudar de orientagio assim que a confian- ‘5a desaparece. Dessa vez, cada um se recusaré a dar seu dinheiro temendo que os outros fagam a mesma coisa. Os trabalhadores terfio medo de comprar se no tiverem certe- za de poder encontrar um emprego bem remunerado, ¢ as empresas terdio medo de contratar se nfo tiverem certeza de poder vender seus produtos por um bom preco. A economia de mercado se baseia enfim na relaco cir- ccular entre dois principios muito simples: 1) 0 dinheiro & obtido na troca de bens; € 2) os bens so obtidos em tro- ca de dinheiro. Enquanto a maquina ficar dando voltas, pode-se acreditar que a articulagao desses dois principios € natural. Mas, como acabamos de ver, a maquina pode ficar paralisada de duas formas: ou os agentes temem nao obter dinheiro suficiente por seus bens, ou temem ndo obter bens suficientes por seu dinheiro. O primeiro temor traduz-se pela elevagio do desemprego ¢ 0 segun- do, pela alta dos pregos. Porém, cada um desses temores € autorrealizador. Depois que se instala, destina-se a se perpetuar. Os circulos viciosos da inflacdo ¢ do desempre- 0 nio sdo fendmenos marginais ou contingentes. Estes desnudam a circularidade na propria base do sistema. Prisioneiros do mercado © maior homem de Estado do século XX compreendia intuitivamente a circularidade. Diante da crise dos anos 1930, Franklin D. Roosevelt iniciou seu primeiro discurso ‘como presidente dos Estados Unidos, no dia 4 de marco de 1933, promunciando as seguintes palavras famosas: 186 anatomia da vnganca “A linica coisa que temos a temer é& o proprio temor’, © préprio temor, diz Roosevelt, esse “terror injustificado, sem nome e sem razao, que paralisa os esforgos neces- sitios para transformar o retrocesso em progresso”: ‘Mas nao basta identificar 0 problema para ultrapassé-lo, ‘Mesmo quando todos reconhecem que é preciso avancar sem medo, quem vai dar o primeiro passo? 0 primeiro a desafiar a tendéncia corre o risco de ir 4 faléncia. Nesse sentido, 0 terror nio ¢ injustificado. ‘ada um tem raz4o de recuar quando 0s outros 0 fa- zem. Contra essa situagio de reciprocidade negativa, as ‘boas vontades individuais néo podem fazer nada. Numa ‘onomia monetaria, cada transagdo entre individuos & “adicalmente incompleta em si ¢ radicalmente dependente, do conjunto das outras transagdes. E no plano do con- Hjunto que se encontra a reciprocidade, néio naquele dos | ' | f i iduos. Entre individuos, dissemos, nao ha obrigacao retribuigdo. Mas tampouco ha as outras duas obriga-~ es identificadas por Mauss, as de dar e receber.** Se os tes nao tém certeza de que 0 ciclo se fecha no plano lobal, terdo medo de dar dinheiro, ou entio de receber, € transagdes in iduais néo poderao ocorrer. condigdes, nao poderiamos nos limitar a dizer que nica cofsa que se deve temer ¢ o proprio temor. 0 pré- tio temor ¢ suficientemente forte para néo ceder diante simples exortagdes, ¢ Roosevelt sabia bem disso. Ele Hiculariza os porta-vozes do mundo dos negécios que | i lin, Roosevelt, The Roosevelt Reader Rauch, Bail org). Nova York, { Rinehart & Winston, 1957, p. 90 i ee! Mauss, op cit, 1983, p. 16 | ‘epitu 2 dom e contradom — 67 “recorreram as exortagdes, suplicando, com ligrimas nos olhos, 0 restabelecimento da confianga’*” Nada é mais inti, de fato, do que incitar os consumidores ou as empresas a retomarem a confianca quando a perdem. Ninguém vai apostar no futuro correndo o risco de sacri- ficar sua propria sobrevivencia material quando nfo sabe © que os outros fardo. Para transformar o retrocesso em progresso, para transformar a reciprocidade negativa em reciprocidade positiva, seria necessério que todos concor- dassem em dar 0 primeito passo juntos. Mas o mercado no comporta nenhum mecanismo que permitiria um consenso desse tipo dos seus incontaveis atores isolados. 0 vendedor de cerveja, 0 acougueiro ¢ 0 padeiro desejam ‘uma redugSo do desemprego," e isso no s6 por bene- voléncia, mas por causa do cuidado que dedicam a seus interesses, pois clientes sem emprego vio gastar pouco com eles, Se cada comerciante e cada industrial fizessem contratagdes, os seus esforgos seriam recompensados por ‘um aumento do consumo, Mas os esforgos necessarios para relangar esse mercado virtuoso sio paralisados pela propria estrutura do mercado, que impede o agouguei- 10 de confiar no padeiro, e o padeiro no vendedor de cerveja, Cada um poderia agir para promover seu pré- prio interesse se cada um pudesse ter certeza de que os outros fariam como ele. Infelizmente, esse nfo € 0 caso, © Franklin D. Roosevelt op, ct, 1957, 9.91, “Uma redugdo do desemprega, mas nfo necesariamente seu desapare- Cimento, exceto quando nao tém empregades para pagar. Como observa ‘Adam Smith, uma escassezexcessiva da mio de obra tem o inconveniente de provocar uma “concoreéncia entre os mestres" que os leva a volar seu “acordo ticito, mas constantee uniforme, para na aumentar 0 sario do trabalho” (Smith, 1937, p. 66,68). 88 aratomia d vngange

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