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EVA TUPINAMBA Ronald Raminelli Vin, pots, a mulker que o fruto da drvore era bom para comer, ¢ formoso aos olhos, ¢ de aspecto agradavel; etirou do fruto dela, ¢ comeu; e dew a seu marido, ‘que também comeu. E 0s olbos de ambos se abriram; @ tendo conbecido que estavam nus, coseram folbas de figueira, e fizeram para si chnturas. (Génesis. 3, 6-7) cotidiano feminino entre os tupinambas pode ser vislumbrado a partir dos relatos de viajantes que observaram a cultura indigena no Brasil colonial. E verdade que a documentacao dos séculos XVI e XVII € pouco, precisa e muito contradit6ria ao tratar dos antigos tupinambas; no entanto, ‘esses documentos sao bastante valiosos quando os concebemos como re- presentagao da realidade, como imagens européias sobre as sociedades indigenas radicadas no litoral do Brasil. E preciso antes considerar que os vviajantes adotavam uma perspectiva tipica da tradi¢Ao crist, pouco se pre- ‘ocupando com as particularidades dos habitantes do Novo Mundo; viam 95 tupinambas pelo viés europeu, que estranhava, julgava e por vezes reavaliava os prOprios valores. Nas terras do além-mar, os costumes beterodoxos eram indicios de barbarismo e da presenga do Diabo; em compensacao, os bons habitos faziam parte das leis naturais criadas por Deus. O que os conquis- tadores fizeram, entio, foi uma comparacio das verdlades prOprias do mundo ceristio com a realidade americana, A cultura indfgena foi descrita a partir do paradigms tealégico e do principio de que os brancos eram os eleitos de Deus, € por isso superiores aos povos do novo continente. O desconhe- ‘cimento da palavra revelada, da organizagao estatal e da escrita foram vis- tos como marcas de barbarie e de primitivismo. As diferengas eram consi- deradas desvios da fé, transgressdes capazes de conduzir os americanos ao inferno. A alteridade significava o afastamento das leis naturais. Se hou- vvesse habitos coincidentes, eles s6 comprovariam a catequese promovida pelo profeta sio Tomé, que no passado tinha percorrido 0 continente e difundido os ensinamentos cristaos. A marca de suas pegadas ms pedras ‘era a prova material de sua presenca entre os amerindios. ‘Assim, a l6gica das narrativas sobre o cotidiano amerindio prende-se aos interesses da colonizacao e da conversio ao cristianismo. Representar 603 indios como barbaros (seres inferiores, quase animais) ou denoniacos (iditos oprimidos do principe das trevas) era uma forma de legitimar a conquista da América, Por intermédio da catequese da colonizacao, 0 americanos podiam sair do estagio primitivo e aleangar a civilizacao. Esses ipios formavam uma espécie de filtro cultural que distorcia a logica prdpria dos ritos e mitos indigenas, Nesse sentido, a cultura nativa da col6nia nao era independente do imaginario do conquistador. Os habitos que os missiondrios descreviam eram ou reminiscéncias do cristianismo primitivo ou deturpacées promo- Vidas pelo Diabo; nao havia a hip6tese de serem concebidlos apenas como estranhos ao universo cristo. Essa possibilidade feria um importante prin- Cipio da ortodoxia crista: a idéia da monogenia dos seres humanos e de que todos os homens sio descendentes de Adio ¢ Eva, como registrado ‘na Biblia. ‘Veremos como as descricdes da mulher india sofreram influncias da tradig&o religiosa ocidental, como os colonizadores descreveram os nati- vos de acordo com os paradigmas teol6gicos cristaos, observando 0 Novo Mundo segundo padroes e valores muito distantes da realidade americana. ‘Acompanharemos o ciclo de vida cumprido pelas mulheres na sociedade tupinambd, desde o nascimento até a velhice, mas vamos focar especial- mente os esterestipos ligados as velbas canibais, pois foram clas as que mais despertaram a curiosidade dos viajantes e missiondrios nos séculos XVI e XVI. NASCIMENTO, nascimento de um tupinambé contava com a presenga ce todas as mulheres da tribo. O pai tinha uma participagao importante, pois, nos par- tos complicados, era ele ~ 0 marido ~ que comprimia o venire da esposa para apressar o nascimento; além do que as criangas do sexo masculino tinham 0 cordao umbilical cortado pelo pai, que para isso recorria aos VATURNAM) proprios dentes ou a pedras afiadas. J4 as meninas, estas recebiam os pri- meiros cuidados da mae mesmo. Os pequenos eram, ainda, banhados no rio; momento em que o pai ou o compadre achatava-Ihes 0 nariz com 0 polegar. Depois de secos, os bebés eram untados de dleo e pintados com ‘urucum e jenipapo. Estavam, entdo, prontos para 0 itamongavut: cerimonia de bom prességio cuja intencao era abrir os caminhos para o futuro guer- reiro ow favorecer o desenvolvimento de uma mulher forte e sadia Durante os trés dias que se seguiam ao parto, o pai permanecia ao Jado da esposa e abstinha-se de comer qualquer tipo de carne, peixe ¢ sal, alimentando-se apenas de farinha d'4gua, chamada de ouic. No resguardo ‘upinambé, os pais nao executavam trabalho algum e esperavam 0 umbigo da crianga cai, se isso no fosse feito, pais efilhos poderiam sentir thekéaip, nome tupinambé para célicas. huguenote francés Jean de Léry relata uma noite em que, a0 ouvir os gritos de uma mulher, pensou que ela estivesse sendo atacada por um. jaguar. Correu imediatamente em socorro da vitima que, na verdade, en contrava-se em trabalho de parto. Logo o pai recebeu o pequeno nos bra ‘cos e desempenhou 0 oficio de parteira cortando o cordao umbilical. De= pois, comenta Léry, 0 indio achatou com seu polegar o natiz. do filho ~ costume muito comum entre os selvagens do Brasil. Na literatura de viagem, o nariz achatado indicava a inferioridade co- ‘mum a povos primitivos e domesticdveis. Contudo, a descricto de Léry ressalta que 0 nariz achatado nao era congénito. Os indios da baia da Guanabara nasciam com 0 mesmo tipo de nariz dos europeus, s6 que ele, de acordo com 0 costume “aberrante” dos indios, era prensado e moldado até tomar a forma achatada. Na Europa, ao invés de comprimir para acha~ tar, as mulheres apertavam o natiz.dos filhos com a intengao de tornd-lo mais afilado.’ Depois do parto, a crianga era lavada e pintada de preto e vermelho. Se fosse do sexo masculino, 0 pai Ihe oferecia um pequeno tacape, um arco e flechas de penas de papagaio, na esperanga de que o filho se tor- nasse um grande guerreiro, Chegava entio 0 perfodo de resguardo. Al- guns relatos de viagem contam que o marido ndo se contentava apenas em manter um rigoroso jejum; ficava © tempo todo sentado na rede, para que mio pegasse nenhuma corrente de ar. As mulheres da tribo consolavam-no- da pena e da dor sentida na hora do parto. Se ele deixasse de cumprir os preceitos, a crianca poderia morrer ou iria sentir dores violentas no ventre, Para 0 etndlogo Alfred Métraurx, o resguardo paterno ~a covada ~ simbo~ lizava‘a importancia do papel paterno no ato de gerar uma crian¢a. Entre ‘os guaranis, as mulheres gravidas também obedeciam a um preceito ali- ‘mentar, que era nao comer carne de animais cujas caracteristicas pudessem ter influencia nefasta no desenvolvimento ¢ no aspecto fisico da crianca. O tempo de restrigdes terminava com a queda co umbigo da crianca. As maes logo se levantavam e pressionavam o Ventre contra os troncos mais fortes da cabana, medida adotada a fim de evitar a flacidez decorren- te do perfodo de gestacdio. Um més depois do parto, elas retomavam os ttabalhos na roga, Consta que a abstinéncia sexual era recomendada pelos i caraibas—chefes religiosos -, e seu cumprimento era necessdrio fara sem- pre garantir o nascimento de criangas fortes e valentes. Se os pais desobe- | decessem a interdicao, ficariam doentes, seriam acometidos de una molés- tia incurivel que os tornaria inaptos para o desempenho das principais atividades cotidiana MAES E FILHOS Algumas praticas mégicas eram empregadas pelas mulheres.ao longo da edueagio dos filhos. Nos momentos de choro continuo, as mies pu- ham algodiio, penas ou madeira sobre a cabeca dos pequenos. 0 cronista Cardim conta que, para ajudar no crescimento, elas colocavam os recém- nascidos na palma da mao, massageando-os fortemente.* Os filhos eram imamentados durante um ano e meio e, neste perfodo, eram transporta- «los em pedagos de pano conhecidos como fypoia ou typyia. Mesmo traba- Ihando nas rogas, as mes nao se apartavam dos filhos: carrezavam as ctiangas nas costas ou encaixavam-nas nos quadis. Nas palavras de Jean de Léry, os habitos na Europa eram muito dife- rentes, Na Franca, por exemplo, algumas maes cometiam a “desumanida- de de entregar seus filhos a pessoas estranhas, a amas, reencontrando-os somente depois que atingiam uma certa idade. As americanas, ao contri- fio, eram incapazes de abandonar seus rebentos, deixando-os sob a tutela de estranhos. Do mesmo modo que os animais, as indias mesmes nutriam e defendiam seus filhos de todos os perigos. Se soubessem que seu reben- {o linha mamado em outra mulher, nao sossegavam enquanto a crianga into colocasse para fora todo o leite estranho. Na América, também inexistia a pratica de enfaixar os bebés durante a primeira infancia, mas nem por isso cles ficavam aleijados, como se acredi- tavana Europa. Aqui, a temperatura e o clima ameno favoreciam o cresci- mento sadio, pois era possivel criar as criancas ao ar livre. Na Europa, 0 costume de enfaixar bebés se prolongava também durante o verio. Sobre rin tupi, pelo artista ‘© assunto, Léry observa: *Creio que muito prejudica a essas pequenas € holandés Alberto enras criaturas ficarem constantemente aquecidas e semi-assadas nesses Eckhout (1641). ‘cueiros que servem no inverno como no vero". Ele destaca, por conse- guinte, » educacao natural existente entre as comunidades tupinambas em ontiaposicao aos artificialismos da criacio européia.* \c conttirio de Léry, outros colonos viam as mies indias como feras Dprutas, como seres destituidos de sentimentos. Os caetés, por exemplo, ram considerados cruéis por nao respeitarem as relagdes de parentesco (pais vendiam 0s filhos, os irmaos, seus parentes, sem nenhum pudor). Em 1571, as margens do rio Sao Francisco, uma india caeté resgatada trazia consigo uma crianga. Para se livrar do seu choro insistente, a mulher resol- veu atiti-la no tio, O sertanista Gabriel Soares de Sousa relata esse epi dio como forma cle enfatizara debilidade do sentimento matemal entre o ipo He também narra a historia de uma india que trazia seu filho nas sta: . se dirigi. . toga para colher mandioca, Irritada com o choro do ‘menino, ela resolveu enterré-lo vivo. Os portugueses souberam da cruel- dade ¢ foram atras da crianca. Resgatada com vida, ela foi batizada e con- ‘seguiu sobreviver mais seis meses. Entre os tupinaés, o sentimento mater- nal pareeia ainda mais débil: as mulheres que ficavam grividas dos inimi- gos matavam e comiam os recém-nascidos.> Quando os maridos ficavam doentes, entao, a atrocidade das indias, era maior. Para promover o seu restabelecimento, as esposas matavam os filhose, com eles, alimentavam o doente enquanto durasse a convalescéncia. Se nio tivessem filhos, elas safam armadas de arco flecha a caca de uma crianga, Somente o frescor da infancia seria remédio adequado para recu- perat o marido debilitado. A dieta a base de criancas, acreditavam, aria 0 doente absorver uma forca vital capaz de devolver sua satide de guer- reiro.” De acordo com os testemunhos arrolados, o amor maternal e a preser~ vagao da familia pouco representavam para as comunidades nativas; tal descaso ilustrava, sim, a selvageria que podia ser encontrada entre os brasis ‘As mareas de barbarismo nao ficavam restrtas 20 universo familiar; as atro- cidacles cometidas contra os inimigos faziam dos silvicolas verdadeiros personagens saidos das paginas dos bestidrios medievais. DE MENINA A MULHER ‘As meninas atingiam a idade adulta depois da primeira menstruacao. Momento em que deveriam seguir um rito de passagem ~ descrito pelo ‘cosmégrafo francés André Thevet ~ que provocava grande temor entre as jovens indias, Antes da ceriménia, seus cabelos eram cortados rentes & cabeca com uma peda afiada ou um osso de peixe. Se nio houvesse ins- trumento cortante por perto, os cabelos eram aparados com fogo. Depois, as mocas subiam em uma peda plana onde os indios faziam-lhes incisOes na pele com um dente de animal, riscando-as das espaduas as nadegas. Os cortes formavam uma cruz em sentido obliquo e sua profundidade depen- dia da robustez ou da resisténcia das jovens. Alfred Métraux comentou: “Com isso, corre-Ihes 0 sangue por toda as partes, e, se nto fora o pejo ou temor, soltariam as mogas gritos horriveis'. Com o corpo sangrando, os indios esfregavam em suas costas cinzas provenientes da queima de abGboras selvagens, substincia que possuia capacidade corrosiva semelhante 4 pélvora € ao salitre. Desse modo, as cicatrizes das incisdes ficavam 4 mostra pelo resto de suas vidas. Esse ritual tinha intengdo de dar as futuras maes um ventre sadio e filhos bem- formados. Na mesma oportunidade, os nativos amarravam seus bragos € corpos com fios de algodio € envolviam-lhes © colo com dentes de um animal herbivoro, para que elas tivessem boa denticao e pudessem mascar bem o cauim. O martirio a que eram submetidas as mogas procurava, igual- mente, preserva-las de possiveis perigos que as ameacassem em algum momento critico de suas vidas. {As incisdes e 0 comportamento prescrito eram uma pratica também atribuida aos guerreiros que matassem algum inimigo. Recebiam incisOes ‘no corpo = tatuagens ~ e ficavam recolhidos, longe do convivio com os demais moradores da comunidade, por um breve espaco de tempo. O via- jante alemao Hans Staden descreveu o ritual: depois de receber as arranha- duras nos bracos, “davam-Ihes [aos guerreiros] um pequeno arco, com uma flecha, com os quais deveriam passat o tempo, atirando num alvo de cera. Assim procediam para que seus bragos nao perdessem a pontaria”, As jovens caberiam muitas outras restri¢des. Depois do primeiro ri- tual, elas permaneciam em uma rede de dormir durante trés dias: lé nao ‘comiam, nao bebiam nem eram vistas pelos parentes proximos. Ao térmi- no desse prazo, voltavam para cima da pedra e sofriam novos cortes. No deslocamento entre a rede € © local do martitio, nao podiam tocar no chao. Acompanhando as mogas, as mulheres, sobretudo suas mies e av6s, traziam um ticao aceso para espantar os espiritos do mal, que poderiam penetrar nos corpos das jovens indias através das partes intimas ou de qualquer outra parte do corpo. De volta 3 tede, as indias alimentavam-se de farinha e raizes cozidas e bebiam apenas gua, abstendo-se de ingerir sal e carne, Essas interdicdes eram mantidas até o momento do segundo fluxo menstrual, apés o qual as jovens recebiam novas incisdes e se repe- tia o mesmo ritual. Entio elas eram pintadas com certa tinta preta extraida do jenipapo. Nas demais menstruagdes, guardavam as mesmas proibicoes fon as MUtsERES NO BRASIL alimentares ¢ limpavam-se com um bastio branco e liso, mas agora os cortes na pele nao eram repetidos. Quando se casavam, as mulheres eram proibidas de manter relacoes sexuais com seus esposos no perfoco mens- trual. Em tais ocasides, elas diziam para os cOnjuges que nao estavam bem, pediam-lhes para se afastarem. ‘Nem sempre ha consenso nas narrativas européias no que diz respeito gs rituais indligenas. Jean de Léry presenciou as ceriménias nctivas de sangramento das jovens, mas nao percebeu que eram ritos de pessagem, ‘que simbolizavam a transicio da infincia para a idade adulta, Depois de conviver com os nativos durante um ano, percebeu que nunca tirha nota- do sinais da menstruacao das indias. Ele pensava que, a0 contritio das européias, as indias empregavam modos de sangrar pouco habituais: as meninas de 12.a 14 anos sofriam cortes, desde 0 sovaco até as coxas € 08 joelhos, e permaneciam sangrando por um certo tempo: “Creio que proce- dem deste modo desde o inicio para que nao thes vejam as impurezas Partindo dessa constatacio, Léry acreditou que as indias nao menstruavam como as européias. 0 primeiro fluxo menstrual de uma jovem era motivo de festa na tri- bo. Ela estaria entrando no mundo adulto e, em breve, poderia se casar. No entanto, o casamento somente se realizaria depois que seus cabelos voltassem ao comprimento normal. Nessa oportunidade, as donzelas eram enyoltas em um fio de algodao, adereco que indicava a manutencio de sua virgindade. Depois do primeiro ato sexual, elas eram obrigadas a rom- per o fio. Se tentassem esconder o defloramento, maus espiritos assalta- riam seus corpos.” ‘A FAMILIA INDIGENA. Para os europeus, as relagdes de parentesco nas comunidades indige- nas eram pouco rigidas, jé que o tio poderia desposar a sobrinka. Entre- tanto, os casamentos entre filho e mae, filho e irma e pai e filha eram proibidos. Os enlaces matrimoniais seguiam uma regra muito simples, se- gundo Léry. Desejando se unir, os vardes se dirigiam a uma mulher, vitiva ou donzela, e perguntavam sobre sua vontade de casar. Se o interesse fosse recfproco, pediam a permisso do pai ou do parente mais préximo. Depois de obtida a permissio dos parentes, os noivos consideravam-se casiclos, Nao havia ceriménias, nem promessa reciproca de indissolubilidade ou perpetuidace da relacao. O marido poderia expulsar a mulher e vice- versa, Se ficassem fartos do convivio, a unio estaria desfeita. Ambos po- deriam, entdo, procurar outros parceiros, sem maiores constrangimentos Entre os seluagens era costume, quando o esposo se enfadava da compa- nheira, presentear outro homem com sua mulher. A maioria dos indios tinha somente uma mulher. A poligamia, porém, era amplamente difundi- da entre os grandes guerreiros e caciques. Os chefes podiam viver com catorze mulheres sem causar estranhamento. Cada esposa possufa um es- paco exclusivo na cabana: E 0 que é mais admirivel: vivem todas em boa paz, sem cidmes nem brigas, obedientes todas a0 marido, preocupadas com servi-lo dedicadamente nos trabalhos do lar, sem disputas nem dissensoes de qualquer espécie.* A poligamia, entre os bravos guerreiros, era simbolo de prestigio. Enu- merar as esposas era uma forma de homenagear a sua virtude, Quanto maior 0 numero de mulheres, mais valentes eram considerados 05 ho- mens. Muitas vezes, os pais prometiam suas filhas, ainda meninas, aos chefes da tribo ou aos homens que com eles tivessem amizade. A uniao realizava-se somente depois que 4 menina atingisse a idade de casar. O enlace, contudo, persistia até o momento em que se repudiassem mutua- mente. O cisamento do chefe seguia os mesmos pressupostos de qualquer outra unio entre casais da tribo. Os indios tratavam suas companheiras muito bem, exceto quando se ‘embebedavam com cauim. Contudo, passados os momentos de embri ‘guez e de dio, tornavam-se amistosos. Os homens protegiam suas mulhe- res de diversas formas: sempre andavam juntos; longe da aldeia, em luga- res perigosos, eles caminhavam na frente para protegé-las de ciladas; se 0 inimigo aparecesse, eles lutavam, dando oportunidade para que elas fugis- sem. ‘Porém em terras seguras ou dentro da povoacio sempre a mulher vai diante, e 0 marido atras, porque sio ciosos e querem sempre ver a mulher.” As relagdes conjugais entre os nativos nem sempre eram cordiais. O frei Yves d’Evreux relatou as desavengas de um casal do Maranhio. Um ‘selvagem’, conta 0 religioso, aborrecia-se muito com o mau génio da esposa. Para conter as atitudes da mulher, o indio empunhou coma mao direita um cacete, enquanto segurava os cabelos de sua *amada” com a esquerda, “querendo experimentar se este dleo e blsamo adogariam 0 azedume de seu mal”. Na tentativa de abrandar o génio da mulher, o nati= vo provocou ainda mais a sua ira, tanto que ela logo alcangou também um cacete e devolveu os mesmos golpes que antes a haviam atingido. E assim se espancaram mutuamente. Ap6s 0 episédio, muito se comentou sobre 0 espancamento ¢ a humilhagao sofrida pelo marido, que no se incomodou com os comentarios e permaneceu casado com a mulher, suportaado seu azedume.? De acordo com as tradigoes dos tupinambis, uma vitiva devera casar- ‘se com o irmao mais velho do falecido. Na auséncia deste, ela se uniria 20 parente mais pr6ximo do marido. Por sua vez, o irmao da vitva era obriga~ do a esposar a filha desta, Se esse enlace fosse impossivel, por causa da falta de irmao, a moca teria como cOnjuge o parente mais chegado da parte de sua mie. O tio poderia recusar-se a casar com a sobrinha. Nem por isso cla estaria autorizada a juntar-se com outro indio qualquer, pois 9 futuro esposo era escolhido pelo tio - 0 mesmo que nao aceitara ser seu marido. ‘A mesma l6gica nao era valida para o irmao do pai. A ele estava proibida a unido, porque exercia a fungio de pai na sua falta ou falecimento. Para Gabriel Soares de Sousa, todos os parentes masculinos do pai viam a so- brinha como filha; a menina chamava-os de pai. Entio, o irmao do pai tommava-se pai da sobrinha e o irmao da mie, o marido da sobrinha. CO adultério feminino causava grande horror. O homem enganacio pod repudiar a mulber faltosa, expulsé-la, ou ainda, em casos extremos, mata- la, pautando-se na lei natural, Quando as mulheres engravidavam em uma relacao extraconjugal, a crianga era enterrada viva e a adiltera, trucidada ‘ow abandonada nas maos dos rapazes. Em compensacao, 0 marido nao se vingava do homem que havia mantido relagdes sexuais com sua esposa, para nao ganhar a inimizade de todos os parentes do outro, o que causaria uum rompimento e, possivelmente, daria origem a uma guerra perpétua. Para além da tigidez das penas contra a mulher faltosa, 0 relatos dio mostra de perplexidade diante da liberdade sexual existente antes do ca- samento. AS mocas podiam manter relagdes com rapazes e com aventurei- 10S europeus sem que isso provocasse a sua desonra, *Pelo que se pode cer’, assinalou Thevet, *€ muito raro entre eles que uma jovem se case virgem.” Jean de Léry chegou até a comentar que os pais nao hesitavam em prostituir as filhas. Antes de sua chegada ao Rio de Janeiro, soube que alguns normandos tinham abusado das mocas em muitas aldeias. Nem por so elas foram difamadas, Posteriormente se casaram, sem nenhum cons- trangimento ou temor de represilias por parte do esposo. Mas os instintos sexuais eram coibidos com 0 casamento, quando os maridos as vigiavam de perto, movidos pelo ciime.”” CLASSES DE IDADE Para Yves d’Evreux, "nos selvagensainda se encontravam vestigios da natureza divina, assim como se acham, nas encostas das montanhas, pe- dras preciosas. Somente um louco poderia pretender encontrar sob a terra diamantes lapidados, No afi de descobrir preciosidades, os homens passa- ‘vam e tornavam a passar sobre ricas pedras cobertas de jaca sem pereeber seu valor. Com essa metifora, o frei Yves d’Evreux alertava os missionarios sobre as potencialidades da conversio do gentio, sustentando que entre eles ainda havia resquicios da ordem natural, da ordem criada pela divin- dade. As ‘classes de idade”, por exemplo, seriam um indicio da ordenagao forjada por Deus. Assim, sob os rudes costumes, os europeus poderiam encontrar vestigios da ordem divina. Nas comunidades indigenas, homens e mulheres seguiam os ensinamentos naturais, percorriam 0 ciclo vital es- tabelecido por Deus. No intuito de aproximar os indios da cristandade, Yves d’Evreux desereveu, em detalhes, a evolugo das “classes de idade” entre os amerindios. Destacaremos as referéncias as india: Para o sexo feminino, existiam seis “classes de idade Primeira classe de idade—comum 20s dois sexos, ot seja, 05 peque- nos pouco diferiam ao nascer. Depois de sair do ventre materno, 08 bebés cram chamados de pettam. Segunda classe de idade ~ estendia-se até o sétimo ano depois do nascimento, Ai comecavam as distingdes entre os sexos, sobretudo em relagao as atitudes, comportamentos ¢ deveres préprios da idade. [As meninas, chamadas kugnantin-myri, levavam mais tempo se ali ‘mentando com leite materno do que os meninos. Muitas vezes, seu perfodo de amamentacao se prolongava um ano a mais em relacao as criangas do sexo masculino. Em certos casos, as meninas mamavam até 0s seis anos, embora comessem bem € se comportassem como os demais. Nas tarefas cotidianas, comumente ajudavam as maes, fiando algodio e confeccionando uma redezinha. Por vezes, amassavam bar- ro e imitavam as mais habeis no fabrico de potes e panelas. Os rapa- zzes da mesma faixa etdria carregavam consigo pequenos arcos ¢ fle- chas, com os quais atiravam em uma cabaca para que pudlessem, des- de cedo, treinar a pontaria Terceira classe de idade— aqui encontramos as mogas com idade entre 715 anos. Yves d’Evreux conta que nesse momento elas ganhavam_ onome de kugnantin e perdiam a pureza em razao das fantasias surgidas com a idade. Apesar dos ensinamentos divinos e do convite aladocao de um comportamento inocente, que trariam a imortalidade, as selvagens preferiam seguir os conselhos do “autor de todas as des- lade, as meninas aprendiam todos os deveres da mulher: fiar algodao, tecer redes, cuidar das rocas, fabricar farinha e vinhos e, sobretudo, preparar a alimentagao difria. Nas reunides, guardavam completo silencio e aprendiam a seguir os designios do mundo ma culino, Os rapazes também iniciavam, nessa idade, sua participacio nas tarefas desempenhadas pelo grupo masculino. Eles se dedicavam a busca de comida para a familia e capturavam animais, seguindo os ensinamentos da arte da caga transmitidos pelos pais. ‘A mocidade era ainda incentivada a participar de exercicios mecani- cos, que os distrafam e desviavam das mas inclinagdes, que eram favorecidas pelo dcio caracteristico da idade. O missionério Yves d'Evreux condenava os impulsos sexuais que comecavam a aflorar nese periodo do ciclo vital. Quarta classe de idade- retine as jovens de 15 a 25 anos, que tece- biam 0 nome de kugnammucu, que queria dizer “moca ou mulher completa”, Nessa fase da vida, elas cuidavam da casa, aliviando 0 trabalho das maes. Logo receberiam um convite de casamento, caso seus pais nao as oferecessem a um francés em troca de géneros. Antes do enlace matrimonial, iniciavam-se nas praticas sexuais. Frei Yves d’Evreux prefere calar sobre esse assunto: *Passaremos em silencio 0 abuso, que se pratica nesses anos, devido aos enganos da nacao, repu- tados como leis para eles”, Para o religioso francés, as tentagOes e as fantasias sexuais eram ativadas pelo autor de todas as cesgracas, o Diabo. Depois de casadas, as indias andavam sempre acompantadas do ma- rido, carregando nas cosias todos 05 utensilios necessarios ao preparo da comida ou provisoes alimenticias capazes de sustenté-los em uma jornada, O frei Yves d'Evreux comparou as mulheres zmerindias a burros de carga. Assim como os europeus abastados contavam sua riqueza pelo ntimero de tropas de burro que possuiam, os indios con- tavam seus doies militares e bravura pela quantidade de cargas e pelo ntimero de mulheres que traziam, ‘mormente havendo entre eles 0 costume de serem estimados ¢ apreciados pelo grande nimero de mulheres a seu cargo”. No periodo da gravidez, as indias eram chamadas de puruabore, que significa “mulher prenhe”. Ao contrario das européias, as gravidas amerindias nao deixavam de trabalhar até a hora do paito, nem pro- curavam uma cama nessa hora, apenas se sentavam e contunicavam as vizinhas que nio tardariam a dar a luz, Logo a noticia se espalhava pela aldeia, atraindo' um grande némero de mulheres para junto da parturiente. Depois do nascimento, a mulher continuava a exercer normalmente suas tarefas comeésticas, enquanto o homem era cumpri- mentado pela aldeia, Ele ficava de cama e era tratado como se estives- se gravemente doente. O procedimento, lembrou Evreux, é muito co- mum aos costumes dos paises civilizados. Porém, do outro lado do Atlantico, eram as mulheres que recebiam visitas e cumpriam um se- vero resguardo. Gabriel Soares de Sousa também descreveu as atividades desempenha- das pelas indias. Conforme observou o sertanista, as nativas nem Co- iam, nem lavavam, apenas fiavam algodao. Como desconheciam a téc- nica de tecer, faziam tefas com os fios obtidos para confeccionar redes de dormir. As mulheres de idade avangada traziam as costas a mandioca das rogas para as casas e faziam farinha, o alimento difrio das comuni- dades indigenas. Eram também encarregadas de construir utensilios de barro, como panelas, pticaros e potes, onde era fervido o vinho e cozi- daa farinha, Para tornara forma mais resistente, os recipientes de barro eram assados no chio, sob uma fogueira. Porém, a mesma mulher que confeccionasse o utensilio no poderia assé-lo, sob o risco de “arreben- tar no fogo”. As jovens costumavam criar cachorros, que auxiliavam 03 maridos nas cagadas, além de passaros e galinhas. ‘Quinta classe de idade— para Yves d'Evreux, nesse momento as mu- heres atingiam o seu maior vigor. Possuiam idade entre 25 € 40 anos € recebiam 0 nome de kugnan, “mulher em todo 0 vigor’. Algumas indias ainda conservavam tracos da mociclade, porém, nessa fase se iniciava um processo de decadéncia fisica, notado sobretudo pela queda dos seios. Quando jovens, mantinham-se limpas; com 0 avan- ar da idade, descuidavam da higiene e tornavam-se “feias e poreas”, de acordo com as descrigées horrorizadas dos conquistadores. ‘Ao descrever essa “classe de idade’, Yves d’Evreux mais uma ver cri- tica os desregramentos sexuais e as priticas de canibalismo entre 03 indios. Ele termina sua descri¢ao com o seguinte comentario: Nao quero demorar-me muito nesta matéria, e concluo dizendo que a recompensa dada neste mundo a pureza € a incorruptibilidade e intei- reza acompanhada de bom cheiro, mui bem representada nas letras santas pela flor de litio puro, inteiro e cheiroso. Desse modo, o frei Yves d’Evreux queria demonstrar que os preceitos religiosos promoviam a conservacio do corpo. Os habitos regrados pela ortodoxia cristi nao permitiriam a decadéncia das formas € 03 odores malcheirosos. Na Europa, era consenso que os corpos dos santos, mesmo depois de mortos, permaneciam integros e preserva- dos, e mais: exalavam perfumes. A santidade era capaz de impedir 0 processo de decomposicao de seus corpos, enquanto a perpetuiagio dos desregramentos, ao contrario, resultava na degradacao da carne. Consideradas “feias e porcas”, as velhas indias trariam na pele as mar- cas do pecado e dos desvios de conduta. A caracterizacao das ancias torna-se mais evidente na descricao da Ultima classe etaric. Sexta classe de idade— depois dos 40 anos, as mulheres presidiam as cerimOnias de fabricagao do cauim e de todas as bebidas ferments das. Quando ainda se encontravam em pleno vigor, eramencarrega- das de assar o corpo do inimigo e guardas a gordura da vitima para, ‘em outra oportunidade, fazer mingau. As tripas eram misturadas com farinha e couve e, em seguida, cozidas em grandes paneles de barro. Cabia as anciais a distribuicao desse repasto canibal. Para Yves d'Evreux, © comportamento das velhas deixava claro seu “descaramento", sua “falta de pudor": “nem me atrevo a dizer o que elas sd, o que vie observei’, anot: A morte das velhas no causava comogio, pois os selvagens preferiam as mogas. Os homens da sexta classe etéria nao recebiam 0 mesmo tratamento, Para eles, essa era a idade mais honrosa de todas. Eles viam cercados de respeito e veneracdo, continuavam soldados v: lentes ¢ capities prudentes. O falecimento de um velho guerreiro era acompanhado de homenagens, sobretudo quando tombava no campo de batalha, A sua morte em armas tornava-o herdi e enobrecia seus filhos e parentes Iss0 mio acontecia com as velhas indias que, ao invés de exibirem a experiéncia e a sabedoria da idade, expressavam por meio de seus compos a degeneracio moral. Elas demonstravam, de forma ostensiva, a degradacao da idade e o resultado das transgressdes da mocidade. Em relagio a elas, Yves d'Evreux aponta: Nao guardam asseio algum quando atingem a idade da decrepitude, € entre os velhos e as velhas nota-se a diferenca de serem os velhos vene- riveis e apresentarem gravidade, e as velhas encolhidas ¢ enrugadas como pergaminho exposto ao fogo: com tudo isto slo respeitadas por seus maridos e filhos, especialmente pelas mocas e meninas, AAs “classes de idade” concebidas pelo religioso francés epresentam uma forte misoginia. Ao longo de suas descrigGes, o missiondrio destaca a fragilidade moral das mulheres. Na puberdade, quando descobriam a se- xualidade, as mogas perdiam a cabeca, tentadas pelo Diabo, enquanto os rapazes auxiliavam a familia, cagando e pescando, sem demorstrar tenta- ‘G0es libidinosas. A sexvalidade pertencia ao mundo feminino, ¢ 0 trabalho era a tOnica entre as “classes de idade” masculinas. A narrativa do frei Yves d'Evreux muito se aproxima do Génesis, so- bretudo quando ele aborda a conduta de Eva e o advento do pecado ori- ginal. Ado obedecia aos preceitos divinos e mio tocava no fruto proibido. Logo apés a sua cria¢o, Eva no se conteve, comeu da fruta ¢ ainda a ofereceu ao companheiro. Desde enti, a raga humana sofre os castigos divinos, originados do desatino de uma mulher: E disse a Adao: Porque deste ouvidos a voz de uma mulher e comeste da drvore, de que eu tinha ordenado que nao comesses, a terra seri maldita por tua causa; tiraras dela o sustento com trabalhos penosos todos os dias de tua vida. (Génesis: 3,17) Os desregramentos, 0 pecado a danaglo originaram-se da fragitida- de moral do sexo feminino, A serpente conseguiu convencer a mulherem razio da debilidade de seus principios morais. Para Yves d’Evreux, as ve~ Ihas indias reuniam em sia decadéncia corporal e espiritual da humanida- de, Entre as mulheres, o tempo ndo provocava o aprimoramento do espiti- {o, masa sua degradacio. Por isso as ancias estavam incumbidas da prepa- ragio da cauinagem, origem das bebedeiras e das cerimOnias que antece- diam a ingestao de carne humana. As transgressOes perpetradas durante a vida traduziam-se em rugas, seios caidos e costumes abomindveis. SEXUALIDADE INDIGENA Como os homens, as mulheres andavam nuas e arrancavam todos os pélos que cresciam sobre a pele, inclusive pestanas e sobrancelhas. Os cabelos femininos cresciam naturalmente, mio eram tosquiados na frente nem aparados na nuca. Essa seria uma das diferengas entre os sexos. AS mulheres mostravam grande apreco pela cabeleira; lavavam os cabelos, penteavam e faziam trangas, cuidadosamente, com corddes de algoda0 pintados de vermelho. As indias ainda diferiam dos homens pelo fato de no furarem os lébios nem as faces para ornd-los com pedras. Faziam sim orificios nas orelhas, onde penduravam conchas.. Para alguns europeus, a nudez feminina incitava @ lascivia e& luxtiria. Jean de Léry assegurava, no entanto, que os enfeites usados pelas france- sas eram mais sedutores do que a nudez explicita das nativas. Os atavios, 8 cabelos encrespados, as golas de renda, as anquinhas e sobressaias exeitavam muito mais os instintos masculinos do que a nudez. habitual das amerindias. francés Claude d'Abbeville repetiu a mesma argumentacao de Léry € considerou as indias americanas mais modestas e discretas, mesmo es tando nuas. Nelas eram imperceptiveis gestos, palavras e atos ofensivos a0. olhar. Ciosas de sua honestidade, nada faziam em ptblico capaz de provo- car escindalos. Em vez de usar dos requebros, lubricidades 2 invencOes das mulheres européias, as indias comportavam-se com naturalidade, por isso sua nudez era discreta. Assim concluiu d’Abbeville: “Em verdade, tal costume € horrivel, desonesto e brutal, porém, o perigo € mais aparente do que real, e bem menos perigoso € ver a nudez. das indias cue os atrati- vos ltibricos das mundanas de Franca’. Anudez das indias levou Jean de Léry a refletir sobre a relacao entre 08 costumes do povos civilizados e dos birbaros. A essa questo Léry dedicou um capitulo inteiro de seu livro. Ele conta que as indias resistiam em vestir roupas alegando o incémodo de retird-las na hora dos banhos — prética arraigada entre as mulheres, que chegavam a tomar coze banhos em um tinico dia. E, durante a faina difria, elas preferiam enfrentar o calor do sol, esfolar a pele na terra e nas pedras, a suportar um tecido sobre 0 corpo. A indias se deleitavam em andar nuas, Nas narrativas dos missiondtios franceses, detectamos mais uma vez 0 contraponto entre simplicidade e antficialismo. O antagonismo entre natu- reza e cultura, presente no pensamento do fildsofo francés Michel de ‘Montaigne, também aparece nos relatos dos viajantes que percorreram 0 Brasil. Segundo estes, a natureza e a simplicidade da nudez nio promo- viam a corrupgio dos costumes e das regras, ao passo que o artficialismo dos aderecos e dos gestos provocava tentagao ¢ luxtiria." Entre os portugueses, no entanto, a nudez ea sexualidade das indias no gozavam do beneficio desse conceito. Os corpos nus provocavam a libido dos religiosos, que se autoflagelavam como forma de reprimir os impulsos bestiais; a beleza fisica das indias tentava contra o voto de casti- dade. O padre Anténio da Rocha, por exemplo, confessou suas fraquezas em relacio & nudez das indias. Desde que chegara ao Espirito Santo, 0 religioso nao passava uma hora sem sentir “estimulos gravissimos”. Em. Portugal, fora acometido pelos mesmos arroubos, mas lé a volGpia surgi de forma mais branda, pois as mulheres andavam vestidas. Nos tr6picos, as indias ostentavam ‘as partes intimas € nao hesitavam em provocar a laseivia nos homens. No Brasil, portanto, os religiosos tinham mais neces- sidade de ajuda espiritual, que diariamente deparavam com estimulos & luxtiria.” ‘AS perversOes sexuais marcaram as representagdes do indio. Os tupinambas eram afeigoados ao pecado nefando, e sua pritica era conside- rada uma conduta normal. Os “indios-fémeas” montavam tendas publicas para servirem como prostitutas. Algumas indias cometiam desvios contra a ordem natural e furtavam-se de contatos carnais com os homens, vivendo um estrito voto de castidade, Deixavam, por conseguinte, as fungdes femi- ninas e passavam a imitar os homens, exercendo os mesmos oficios dos guerreiros: “Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os ma- chos, e vao a guerra com seus arcos e flechas”, Cada fémea guerreira pos- suia uma mulher para servila, "com que diz que € casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher” A luxtiria dos “negros da terra” ~ expressio comumente usada para fazer referéncia aos indigenas - nao tinha limites, argumenta Soares de Sousa. Eles nao respeitavam “As irmis ¢ tias, e porque este pecado nao é contra seus costumes, dormem com elas pelos matos, e alguns com suas prdprias filhas...” Para além dos desregramentos sexuais, os nativos ainda ficavam insatisfeitos com o tamanho do falo concedido pela natureza, Para aumentar suas proporgdes, eles colocavam sobre o pénis 0 pélo de um bicho peconhento, procecimento que causava muitas dores: Gabriel Soares de Sousa dedicou uma parte de sua crdnica aos des vios sexuais comuns entre os nativos ¢ considerou os tupinambas excessi- vamente luxuriosos, porque cometiam todas as modalidades de pecado da came. Os indios com pouca idade nao se furtavam de manter relagdes sexuais com as mulheres. As velhas logo os introduziam no pecado, ens nando-Ihes os prazeres do sexo. Por conta de suas debilidades fisicas e da perda do vigor da juventude, as indias de idade avancada eram pouco procuradas pelos homens. Assim, era sauito natural que investissem sobre os meninos para satisfazer seus desejos. Gabriel Soares de Sousa conta que as velhas se aproximavam dos garotos com mimos e regalos, e ensina- vam a fazer o que eles nao sabiam, ficando com eles a qualquer hora, seja durante o dia, seja durante a noite." As indias velhas também foram descritas como elemento pervertedor, capaz de subverter as imposicdes da lei natural. O apetite sexual descrito pelo sertanista era comparado a0 desejo das velhas de comer came huma- nna e deliciar-se na vinganga contra o inimigo. Para Gabriel Soares de Sousa, inferimos ento, o canibalismo € os desregramentos sexuais eram ambos filhos da luxGria. A imagem da velha canibal, nesse sentido, reunia em si 05 piores atributos de Eva AS INDIAS NAS CERIMONIAS CANIBALESCAS Viajantes e cronistas destinaram 3 mulher um papel curioso nos rituais antropokigicos. Por meio da narrativa de Pigafetta, tomamos conhecimen- toda origem do canibalismo na América, A hist6ria comega com uma velha cujo tinico filho morreu nas mios de inimigos. Tempos depois, c assassino torna-se prisioneiro e é conduzido a presenga da ancia. A mulher compor- ta-se como fera, atira-se sobre o oponente com o desejo de devori-lo vivo ¢ fere seu ombro. O prisioneiro consegue desvencilhar-se das garras retorna a sua aldeia, onde relata o acontecimento. A noticia prcvoca uma contra-reacio e,a partir daquele momento, os guerreiros, cesejando supe- rar a valentia da velha, partem contra o inimigo a fim de transfo-mé-lo em repasto, dando continuidade & acio iniciada pela india." Histoire universelle des indes occidentales et orien‘ales et la conversion des indiens, Cornille Vytfliet e Anthoine Magin fazem mengao a um epis6dio curioso que destaca as mulheres como incentivadoras da vin- ganca. Eles contam que durante uma manha, entre o despertar e c desjejum, tum velho percorria a cabana com passos graves e lentos, conclamando os ‘guerreiros a fazer amor com suas mulheres para “nutrir o desejo de vingan- ‘¢a contra os inimigos”."* Assim, por intermédio da relacio sexual, os ho- mens reforcavam o sentimento de vinganca contra as tribos rivais. O amor conjugal, sobretudo o contato sexual com as fémeas, conduzia os homens A guerra e a0 massacre de seus inimigos. No entanto, os relatos asseguram que a participacao das mulheres no ritual nao se fazia apenas de modo indireto. A condluta das indias nos rituais de canibalismo deixou 0 jesuita José de Anchieta at6nito. O religioso narra a morte do prisioneiro em cores muito fortes, ressaltando o prazer sentido pelas mulheres. Os indios puxa- vam como lobos a vitima para fora da choca e logo quebravam-the a cabe- ¢a. Assim promoviam grande regozijo, sobretudo o das mulheres, que can- tavam, bailavam e espetavam com paus afiados os membros decepados do condenado. Depois, as nativas untavam as mos, caras ¢ bocas com as gorcuras desprendidas do assado, e “tal havia que colhia o sangue com as ios e o lambia, espetéculo abominavel, de maneira que tiveram uma boa ccarniga com que se fartar”.” Referéncias éuriosas como esta, relacionando mulheres e canibalismo, nilo eram registradas apenas nas narrativas de viagens ou cronicas sobre 0 cotidiano amerindio. H4 também gravuras que retratam a participacio do sexo feminino nos banquetes canibais, As mulheres ocupavam uma posi¢ao de destaque, exercendo fungdes que supostamente seriam reservadas aos, homens, valentes guerreiros. Nesse sentido, causam estranheza as imagens pict6ricas sobre o canibalismo produzidas nos séculos XVI e XVI, pois con- trariam a predominancia masculina no comando das guerras ¢ da vinganca. Em 1509, os relatos das viagens de Américo Vespticio ganham mais uuma edigto alema, dessa vez do editor Johannes Grininger, de Estrasburgo. Uma gravura do livro retrata um marinheiro e trés amazonas, que parecem seduzi-lo com a nudez. de seus corpos. Porém, as mulheres apenas des- viam a atengao do europeu para que uma outra, portando uma maga (arma de ferro), acerte sua cabega. O marinheiro pensava atrair as belas selva- ‘gens de corpos desnuclos, mas Novo Mundo reservou-lhe surpres: desejo 0 tornou presa facil para 0 repasto canibal."* Nos relatos sobre o cotidiano indfgena, nao ha mencio 4 morte de um inimigo levada a cabo por uma mulher. Entretanto, verifica-se uma énfase excessiva na participacao da mulher no sacrificio do “contrario”. A gravura citada poderia ser, igualmente, uma forma de lembrar aos marinheiros os perigos que rondavam as aventuras sexuais no Novo Mundo. O aspecto curioso dessa gravura é a relacao estabelecida entre sexo, sedugio, mulhe- res e canibalismo. Ela ainda mantém um vinculo tematico com o epis6dio narrado por Magin ¢ Vytiliet: em ambas, 0 sexo feminino € 0 pivo da vinganga e do canibalismo e remete 2 luxtria das velhas, que introduziam (os meninos nos jogos sexuais. Na colecao Grandes viagens, de Theodor de Bry, ha intimeras referén- cias as indias canibais. Em seu terceiro volume, Americae Tertia Pars (1592), as alegorias do canibalismo aparecem logo no frontispicio. Um indio nu, enfeitado de penas e munido de uma maga, e uma india completamente despida, com uma crianga sobre os ombros, devoram, ele uma perna, ela um braco humanos. © casal tupinamba encontra-se em nichos laterais, € no centro inferior da figura ha um moquém & moda brasilica, rodeado de indios. Enfim, a primeira pagina do volume jé fornece pistas dos temas presentes nas gravuras de Theodor de Bry. Esse volume consagrado aos indios do Brasil € fartamente ilustrado. Bry inspirou-se nas imagens e nos textos contidos nos livros de Hans Staden ¢ de Jean de Léry, publicados em alemio e francés, respectivamente, Na versio de 1592, 0 editor publicou as narrativas sobre o Brasil em latim para alcangar um publico maior e aproveitou a oportunidade para recriar as gravuras existentes nas primeiras edigdes. Nessa nova versio, as cenas dos rituais antropofigicos ganham uma enorme beleza plastica e retratam 0 cotidiano indigena com detalhes impressionantes. Curiosamente, 0 gravurista nunca cruzou 0 oceano, tampouco chegou a conviver com os natives do Novo Mundo. Sua visao sobre os indios é interessante por constituir um testemunho singular, quando comparado a0 dos europeus que visitaram as tribos vivenciaram o cotidiano dos tupinambas. Assim, a fidelidade aos textos e as gravuras originais nem sempre ocorreu, ¢ isso nos permite decifrar alguns caminhos percorridos pelo produtor das imagens. Os descompassos entre as imagens de Bry € os (OR Das MELIEEES No mRast, vA TUPINAM textos de Léry e Staden permitem que se identifiquem os aspectos hiperdimensionados pelo gravurista, Ao representar as indias, ele valori- zou em demasia sua participago nos rituais de canibalismo. Este sera o fio que guiaré nossa andlise das mulheres canibais presentes nas gravuras da colegio Grandes viagens. A primeira referéncia iconogréfica que supervaloriza a parcicipacao das mulheres nas ceriménias canibalescas aparece no momento da imobi- lizagao do prisioneiro. execucio do oponente ocortia no cen:ro da al- deia, A vitima permanecia presa a uma corda — mu¢urana-encuanto os guerteiros seguravam as pontas, imobilizando-a para que o matacor desfe- risse um golpe fatal em sua cabeca. As mulheres seriam coadjuvantes no episédio, uma vez que reter o prisioneiro por intermédio de cordas e de- pois maté-lo correspondem a procedimentos proprios da esfera masculina de agio. Mas as indias de Bry gesticulam, mostram ansiedade, mordem as milos € 05 bracos, se contorcem, enquanto os homens permanecem na postura de cavalheiros, como se fossem auténticos guerreiros medievais Na cena, as mulheres ocupam posicio central, junto da vitima; os homens, protagonistas do evento, encontram-se 3 margem do espeticulo. Uma passagem de Hans Staden ajuda a entender a gravura e 0 com- portamento feminino nela retratado: AAs mulheres estio pintadas e tém 0 encargo, quando for ele [o prisio- neirol cortado, cle corer em volta das cabanas com os primeiros qua- tro pedagos. Nisso encontram prazer «lemais. Fazem entio uia foguet fa, a dois passos mais ou menos do escravo, de sorte que ese neces- sariamente a vé, e uma mulher se aproxima correndo com a maga, 0 “ibipirema”, ergue ao alto as bordas de pena, di grito de alegria ¢ passa correndo em frente do prisioneiro, a fim de que ele o veja.” Bry traduziu o prazer das mulheres diante da morte ¢ diante do esquartejamento do inimigo por meio dos gestos e dos movimentos das indias e também da postura contida dos guerreiros. As belas nativas, de corpo escultural e vastas cabeleiras, desfilam nuas nas gravuras de Bry, exi- binclo bracos e pernas decepados, euféricas com a vinganca. Mais ma vez, uma india morde a mio € se contorce, como se estivesse embriagada pela desforra. Os homens, no entanto, cumprem impassiveis a tarefa de ‘racionar 0 Cotpo € retirar os éxgitos que serio cozidos no moquém e no tacho. Um exemplo mais contundente expressivo é colhido na representa- to da mulher do morto. Logo apés a chegada do prisioneiro & aldeia, 0 chefe da tribo designava uma mulher para casar com ele. Ela se tornava, entiio, uma esposa como qualquer outra, capaz de engravidar e formar uma familia, até o dia do sacrificio do prisioneiro, ou melhor, de seu mari- do. A tribo tinha essa india escolhida em alta consideracio, e ela no podia se afeicoar ao inimigo. Devido ao risco de envolvimento, muitas vezes ela era filha de um *principe” ou irmi do matador indicado para sacrificar 0 cunhado prisioneiro. Depois da morte do esposo, ela se colocava junto do cadaver e fingia um choro curto, tal qual um crocodilo que mata um homem e verte uma lagrima antes de devoré-lo. A esposa do prisioneiro, comenta Léry, simula va derramar lagrimas junto ao corpo do morto, Kigrimas de crocodile como parte de uma encena¢ao explicit j& que ela também tinha a esperanca de provar um pedaco da carne do falecido. Na Franga do século XVI, havia Indias aguardam ansiosas a execucio do prisioneito, alguns provérbios muito adequados a ocasiao: “mulher ti quando pode chora quando quer’, “choro de mulher, lagrima de crocodilo’ ete.” Em Americae Tertia Pars, hd uma ilustrago da passagem referida por Léry. A imagem € dedicada & preparacio do corpo da vitima:as mulheres arrastam-no para fogo, descamam sua pele e por fim tapam seu anus com uum pau, a fim que nada dele se escape. Na verdade, a composi¢ao mostra duas cenas consecutivas, sendo a primeira protagonizada pela esposa do infeliz, Na gravura, a vidva esti ajoelhada, sobre as pernas segura a cabeca do defunto e no rosto esboca sofrimento. O corpo do companheiro morto serii em seguida limpo e preparado para o banquete. Mulheres seguram partes do corpo da vitima esquartejada; aldeia exibindo-as e gritando de jubilo. gravurista retratou também um citculo composto de mulheres a se fartarem de cabeca e visceras humanas: no centro da roda, hé trés utensf lios redondos e rasos, em um deles ha um crinio, no outro, intestinos, € um terceiro esti vazio. As fémeas comem partes sdlidas e bebem um caldo contido em terrinas. Uma delas esté com 0 dedo na boca e olha para as carnes expostas, demonstrando 0 desejo de se servir de mais um pedaco. A mesma india tem a sua mio esquerda na virilha, gesto que possui uma forte conotagao sexual.” Em resumo, as gravuras ¢ as narrativas sobre o ritual antropofiigico destacam dois tipos de vinganca: a masculina, caracterizada pela execugio ‘Ao preparar o corpo da vitima pa a pele limpa ¢ tay ‘© moquém, 's indias depelam © morto até deixa ym-Ihe o anus com um pau a fim de que nada escape. € pelo fracionamento do corpo; ¢ a feminina, expressa na alegria, no pra- ere no escarnio, Também as gravuras remetem a trilogia *prazer, caniba- lismo e mulher” e as passagens biblicas sobre Eva. As ilustragoes do terceiro volume da colecao Grandes viagens veiculam ainda informagdes ausentes dos textos de Hans Staden e de Jean de Léry. Na gravura dedicada ao ato de preparagio do corpo da vitima, quatro mulheres raspam a pele, descamando-a, como se preparassem um porco, Jima das mulheres possui na mio um instrumento cortante, que emprega para abrir o morto no sentido da coluna vertebral. O procedimento contraria koa parte das narrativas sobre o canibalismo no Brasil ¢, principalmente, opde-se aos escritos de Staden e Léry, as matrizes dos desenhos de Theodor de Bry. O fracionamento do corpo ¢ o emprego de utensilios de corte eran tarefas masculinas, sobretudo dos velhos. Duss outras gravuras provam a divisio sexual no manejo do corpo, indicando os homens como os responsiveis por abrir o corpo do prisioneiro para a retirada de suas entranhas.# A imagem pict6rica veicula, portanto, dados ausentes nos textos e reforga a presenca ativa das mulheres no ritual. No momento do saerificio do prisioneito, segundo os relatos, os guerreiros € que eram protagonistas, do evento. Porém, as indias de Bry e seus gestos, contradizendo cs relatos dos cronistas, dominam a iconografia dedicada 4 morte do inimigo. As imagens tornam-se, entio, um artificio do artista para destacar as mulheres no ritual antropofagico. descompasso entre texto e imagem persiste na ilustragao intitulada Boucan et Barbarorum culina. Um moquém assando bragos, pernas e cos- telas humanas ocupa o centro da gravura; ao redor ha indios comendo 0 repasto canibal. De um lado, duas mulheres saciam sua sede de vinganga comendo os membros da vitima — um braco e uma perna. A primeira mu- Iher, jovem, possui compo escultural, seios firmes, alguns ornamentos € devora um brago sem perder os gestos de coguette; as velzas, em contrapartida, com rugas na testa, seios caidos, cabelos desalinhados ¢ ralos, lambem os dedos e sorvem a gordura do morto. Do lado aposto, os indios comem bracos, costelas, mastigam ossos, e um menino brinca com amao do morto. A cena é tinica por representar homens ingerindo carne humana. Entretanto, o mais relevante nessa imagem refere-se 2 relacao entre os sexos e as partes do corpo ingeridas. O texto de Hans Staden é categérico quando afirma que as mulheres cabiam as visceras e as partes do cranio. Os miolos e a lingua desiinavam- ses criancas. Gabriel Soares de Sousa fornece outras informagées sobre a dieta canibal: “Os homens mancebos e as mulheres mocas provam-na so- mente, € os velhos e velhas so os que se metem nesta carnica”.® Como jé foi mencionado, o frontispicio de Americae Tertia Pars con- tém uma alegoria do canibalismo que ndo possui respaldo nos escritos de Hans Staden e de Jean de Léry ~ uma india antropofaga devorando um brago, fragao do corpo humano destinada aos guerreiros. Theodor de Bry conhecia profundamente as narrativas de viagem, do. contririo nfio conceberia imagens tio ricas. Portanto, os descompassos entre texto e imagem podem ser consiclerados uma linguagem reveladora de uma dada concepcao de mundo. A infidelidade aos relatos, repetimos, permite decifrar alguns caminhos percorridos pelo artist As mulheres cozinham as entranhas e preparam uma espécie de mingau carne que dividem com as criangas. Devoram também um pouco das entranhas, da cabega, 0 miolo ¢ a lingua; as criancas comem o que sobra. Por intermédio das gravuras, Bry emitiu opinides € inseriu os tupinambis no imagindrio europeu. Uma andlise de sua obra realizada de forma menos etnogratica e mais cultural permite detectar os debates teol6- gicos, as disputas religiosas ¢ os esterestipos - caldo cultural em que se inseriam os produtores dos textos e das imagens, Enfim, ao representar os indios, o artista nao se prendeu apenas 2 realidade e & tradicao indigena descritas pelos viajantes, mas procurou inserir nas gravuras questdes pal- pitantes de seu tempo como forma de chamar a atengao de seus contem- poriineos para a obra produzida. A luta contra a hegemonia cats a América, a demonizacao e a caca as bruxas sio temas presentes na cole- (io editada e ilustrada por Theodor de Bry. Em sintese, o editor-gravurista Concebeu as mulheres como expressio da alteridade. O esterestipo fe nino tornou-se um meio para representar a estranheza do Novo Mundo. Nas imagens pictéricas, as mulheres ganham um espago importante, exercendo atividades sabidamente da algada dos homens. Elas matam 0 prisioneiro, manuseiam instrumentos cortantes e ingerem bracos e pernas moqueadas, repasto sempre reservado aos homens. Essas representacdes também hiperdimensionam o gosto dos indios por to exotica iguaria. A onografia, desse modo, transformou essas mulheres em simbolos maxi- os do canibalismno Consideremos: a vinganca e a guerra eram atribuigdes dos guerreiros. Os maiores combatentes recebiam enormes privilégios na tribo, ¢ a cles dos destinos da comunidade. Era portanto o papel social do homem que estava vinculado ao canibalismo e a vinganga; as mulheres eram apenas coadjuvantes e exerciam fungdes “a-militares”.* Apesar da alta posicao na hierarquia da tribo, os homens ganharam pouco cestaque cerimOnias concebidas pelos ilustradores quinhentistas e seiscentistas. Com esta afirmativa niio pretendemos desconsiderar a importanciz do gru- po feminino nos ritos, procuramos to-somente enfatizar que seu papel foi exaltado e hipervalorizado devido 2 misoginia que reinava na Europa du- rante os séculos XVI e XVI As mulheres, indias ou européias, cram filhas de Eva ¢ reuniam em si os piores predicados. AS SELVAGENS DE SEIOS CAIDOS as inclias belas e jovens dominam a iconografia, as velhas recebem atengao especial nas narrativas dos missiondrios viajantes. Quando Yves Evreux estabelece as “classes de idade”, ressalta o aspecto fisico das velhase suas fungdes no preparo do cazime no repasto canibal, tarefas pouco edificantes na ética européia. O religioso francés descreve as ancias, como sujas, porcas, descuidadas da higiene, enrugadas, de seios caidos ¢ com uum desejo incontrolavel de comer a carne do inimigo. Muitos relatos tratam do assunto € todos enfatizam o interesse das velhas pela carnificina e pela vinganga. As indias idosas, na visio mis6gina dos europeus, pareciam ser um locus privilegiado para observagio ¢ des- criglo das atitudes de um canibal, Hans Staden, por exemplo, demonstrou pavor em face de velhas nativas que, com arranhes e pancadas, ameaca~ vam devorii-lo, Pero de Magalhies Gandavo, narrando um episédio de canibalismo, conta que o sangue jorrava e os miolos caiam por terra apos a morte de um prisioneiro. Para nao desperdicar o manjar, uma india de idade correu e meteu um cabago grande no cranio do oponente morto, Homens, mulheres e criancas participam do repasto canibal, para nele recolher os miolos e o sangue. As velhas, garantem os testemu- thos, nao queriam perder parte alguma do corpo do oponente, nem mes moa gordura que escorria do moquém. Nanarrativa de Jean de Léry, hd uma passagem que também menciona © interesse das velhas pelos restos dos mortos. As velhas “gulosas", lembra © huguenote, reuniam-se para recolher a gordura que se desprendia do corpo que estava sendo assado. Depois de exortar os guerreiros para sem- pre prover a tribo com tais petiscos, elas lambiam os dedos e diziam igatu = “est muito boml”. Léry descreveu esse estranho comportameato com detalhes. Ele acreditava que as indias de mais idade se embriagavam 20 ‘comer carne humana e nao participavam do ritual motivadas somente pela vinganca. O frei Claude d’ Abbeville revela a mesma coisa na descr. c4o que faz de um ritual canibalesco. Depois do sacrificio e do esquartejaento, os nativos deitavam fogo debaixo da grelha, sobre a qual depositavam as cares para assar. ‘Tudo bem cozido e assado, comem os barbaros essa carne humana ‘com incrivel apetite. Os homens parecem esfomeados como Icbos e as mulheres mais ainda. Quanto as velhas, se pudessem se embriagavam. de came humana, de bom grado o fariam. Nessa passagem, ha uma nitida gradacdo: o prazer era mais intenso entre as mulheres; e no grupo feminino, as velhas demonstravam seus sentimentos com mais intensidade ainda — ‘se pudessem, se embriaga- ‘vam’. Os velhos guerreitos nao constam da lista, foram simplesmente es- ‘quecidlos, fato que reitera a boa reputacio dos idosos, pensamento este semelhante ao de Abbeville e de Yves d’Evreux. Abbeville ainda escreve sobre as motivagdes que levavam a ingestao do “contrario”. Nao era 0 prazer - esclarece o frei ~ que induzia as nativas a comer tais petiscos, nem ‘mesmo 0 apetite sexual. Na verdade, a mé digestao e os vOmitos exam recorrentes depois das cerimOnias canibais. A ingestio era comandada pelo desejo de “vingara morte de seus antepassados e saciar édio invencivel € diab6lico” alimentado contra os rivais. A ingestio de came humana deixava marcas profundas na fisonomia das mulheres canibais. As rugas, a perda dos dentes € os odores malcheirosos tinham sua origem nesses costumes abominaveis. A imagem das velhas 4 despertara a atengio do frei Yves d Evreux. Tambémo padre Luiz Figueira notara a relacao entre sua aparéncia e os habitos quetinham. Para esse religioso, a decrepitude e a decadéncia fisica das ancias revela- vain 0 terrivel habito de comer carne e roer ossos humanos. Seios caidos, Tosto enrugado, corpo em franco processo de degeneracdo somavam-se a va TORN dentes mais que deteriorados. Assim escreve o padre Figueira: “Quando cle [um indio] safa de casa, permanecia no recinto uma velha prima e com ela a sogra, que ja nao tinha dentes de tanto roer ossos humanos”. O padre Joao de Azpilcueta era um religioso que nao administrava 0 batismo aos nativos que possufssem o contumaz habito de ingerira carne do prisioneiro, Em seus relatos, 0 missionério destaca, como todos os outros viajantes, 0 gosto das velhas pelas iguarias mencionadas, escrevendo que somente elas se fartayam dessas carnicas. E 05 seus contatos com os rituais de canibalismo nao se restringiam apenas a ouvir dizer: 0 sacerdote teve a oportunidade de presenciar pessoalmente alguns desses ritos. Ele constatou com seus prdprios olhos os desvios “demonfacos” das indias idosas. Visitando uma aldeia, o padre entrou em uma cabana e deparou com uma grande panela em forma de tina, onde eram cozidos bragos, pés € cabegas de homens. Em torno do tacho, havia seis ou sete velhas dangan- do, apesar do peso da idade e da dificuldade de locomogao. As mulheres, comentou o religioso, mais pareciam “dem6nios do inferno”. Os séculos passaram mas as hist6rias de velhas ¢ seus vicios antropofagicos continuaram a aparecer. Em pleno século XVIII, Antonio de Santa Maria Jaboato escreve uma passagem macabra a respeito de uma india idosa que, estando no leito de morte, insistia em deglutir um prato ex6tico, Procurando satisfazer a vontade da velha potiguar, um padre re- solveu oferecer a ela agdcar ou alguma outra especiaria. A moribunda, porém, declinou da oferta e lembrou-se de algo capaz de anima-la: “Se eu livera agora uma maozinha de tapuia, de pouca idade, e tenrinha, e Ihe chupara aqueles ossinhos, entio me parece tomara algum alento”.” ‘Siio recorrentes as imagens de velhas de seios cafdos nas gravuras da obra Grandes viagens. Elas simbolizavam o afastamento do amerindio da humanidade, decorrente de suas falsas idolatrias, de sua nudez e sua an- tropofagia, Essa recorréncia intensifica-se com 0 correr da obra e, nos tilti- mos volumes, a selvagem de seios caidos assume feigoes monstruosas. Tal simbologia pode ser explicada pela relacao entre os europeus e os nativos. Inicialmente, a colegio Grandes viagens dedicou-se a combater os espa- nhéis, divulgando as atrocidades praticadas no Novo Mundo. Os amerindios seriam retratados como vitimas dos espanhdis, por isso no aparecem muitas mulheres com seios cafdos nos primeiros volumes. Para além da informa- Gio sobre 0 cotidiano amerindio, o empreendimento editorial incentivava 6s protestantes ~ grupo que até aquele momento estava excluido das no- vas dreas descobertas — a colonizarem a América. No entanto, o empreen- dimento foi prejudicado pela resistencia nativa, pelas guerras, pela antro- pofugia e pelas atrocidades praticadas contra os invasores europeus. Esses entraves setiam os responsdveis pela representacio recorrente de mulhe- res com seios caidos nas gravuras da colecao. O volume de nimero trés, dedicado ao Brasil, € 0 primeiro a retratar as velhas decadentes.” ‘Ao realizar uma comparagio entre as indias velhas e jovens na iconografia concebida por Bry, nio percebemos vinculos entre o compor- tamento e a forma fisica, ou melhor, as condutas e as formas nao pessuem equivaléncia. As jovens indias sio pintadas fazendo coisas cruéis tanto quanto as velhas; desfilam pela aldeia com pernas e bracos, mordem as ‘ios, introduzem bastdes no anus do prisioneiro morto e comem sia car- ne com gestos graciosos. As velhas, por sua vez, aparecem destituidas de eencantos fisicos: cabelos desalinhados ¢ ralos, rugas na testa e seios flicidos. Perderam o vigor da juventude, perderam as formas esculturais e no mais recorrem aos aderecos, os colares e brincos, que enfeitam as jovens. A falta de dentes restringe a participacao das ancias no repasto, e issc expli- também sua disposica0 em sorver gorduras, tomar sangue e sua ansie~ dade em recolher essas substancias dos mortos. Existem sutis diferencas entre jovens e velhas:® Degradacéo fisioldgica: a falta de dentes obriga as velhas a recorre- rem a alimentos em estado natural, alimentos crus ~sangue e gordu- ras ~, ao passo que as jovens podem comer carne assada, iste é, ali ‘mentos transformados pelo homem, pela cultura. Regressdo cultural:a falta de ornamento e cuidado com 0 corpo apro- xima as velhas da natureza, dos animais; as jovens, por sua vez, mo- delam seus corpos e utilizam aderegos, indlicios de civilizacao Rogressio fisiolégica e cultural: 0 corpo das velhas retrata a aco da natureza sobre o ser humano, o desgaste e a degradacao fisica; as jovens, no entanto, mantém seus corpos dentro de um ideal d= bele- za, Desse modo aproximam-se mais de um modelo civilizacional O tempo marcaria a diferenca entre jovens e velhas, ¢ 0s “costumes abomindveis" promoveriam, de modo infalivel, a degracacao do corpo. A ‘mesma l6gica serviria para demonstrar a dinamica das civilizacoes. Seguin- do esse raciocinio, poderiamos afirmar que os amerindios originaram-se de uma sociedade perfeita; o tempo teria promovido sua degradacio, sua destruigao, eosteria levado a ruina social, simbolizada pelo canibalismo pelas velhas de seios caidos. INDIOS, SERES DEGENERADOS Os seleagens, porunto, nessa orcem de idéias, provinham ce uma ‘uma sociedad criada segundo asleis naturaisconce- va TURNAMIA bidas pelo Criador. Sua evolugao, ow involugio, remete a uma teoria dedicada a explicar as diferengas culturais entre os povos, entre cristios € pagios. A teoria da degradacio natural esclareceria a diversidade cultural € asseguraria o primado biblico da monogenia. No principio, os homens. seguiam as leis divinas, viviam no Paraiso, na mais perfeita ordem, na mais, perfeita harmonia. Com o passar do tempo, porém, esqueceram os ensinamentos divinos ¢ cairam em danacao. A histéria da humanidade, portanto, segue a mesma trilha de Adio e Eva: os homens desobedeceram ‘05 preceitos e receberam o castigo do Criador.® (Os missiondrios portugueses entendiam a catequese dos amerindios como uma retomada da evolucao humana. Os cristlos e os amerindios descendiam de um mesmo nticleo populacional. Ambos possu‘am, portan= to, as sementes do cristianismo e carregavam consigo os alicerces da ver- dadeira religido. Eles seguiram juntos pelos mesmos caminhos até 0 mo- ‘mento da separaco, quando os primeiros emigrantes deixaram para tris 0 Velho Mundo e se embrenharam por terras desconhecidas. O jesuita Simao de Vasconcelos acreditava que os americanos fossem provenientes de Atlanta, uma alta e nobre civilizacio. Na América, 0s indios sofreram alteragoes na pele, na linguagem e ‘nos costumes. O canibalismo, a cor escura, 2 nudez € os erros dlemonfacos representavam a segunda degeneracio, a segunda queda. A nova morada tinha acentuado os desvios advindos do pecado original. Os missionérios procuravam, entdo, direcionar os nativos ao cristianismo, tinico caminho capaz de reverter o proceso degenerativo. 5 religiosos queriam conduzir os indios para a iltima etapa da evo- lucdo. Para tanto, eles teriam de abandonar os vis costumes, converter-se © morrer como cristios. Desse modo, a vida dos selvagens seria absorvida pela temporalidade cristi, dividida entre pasado, presente e futuro. A concepcio de tempo exposta pelos religiosos constitui uma filosofia da hist6ria, caracterizada pela Teoria do Declinio e pela Restauracdo Futura. Os eventos descritos seguem uma légica fundada na queda progressiva e nna ascensio final. A humanidade viveu 0 seu periodo glorioso no inicio dos tempos; desde entio 2 vida dos homens foi marcada pela decadéncia. futuro promoveria o acirramento desse estado de coisas até o momento ‘em que um agente externo interferisse no processo. O cristianismo, nessa perspectiva, pretendia reverter 0 quadro de progressiva degradacao da humanidade ¢ implantar o reino dos céus. O futuro seria um retorno @ primavera dos tempos, uma volta 20 mundo antes do pecado original. Para Simao de Vasconcelos, a decadéncia das sociedades indigenas ti- nha acontecido com muito mais intensidade do que a degradacio que se ATOR DAS MULHERES NO ARAST. abateu sobre os humanos do Velho Mundo, As perdas culturais, esua com- pensaco, os ensinamentos divinos, tomavam proporcées inigualiveis no novo continente, O meio americano intensificou o proceso, porque Atlanta, lugar referido pelo autor, abrigava uma grande civilizagio, capaz de rivali- zar com a alta cultura grega. Os vestigios de seu esplendor, porém, tinham desaparecido por completo entre os indios da costa do Brasil. A escrita, a centralizacao do Estado, a lingua e os costumes enfraqueceram até a quase extingio, Simao de Vasconcelos destacou @ magnitude da decadncia dos americanos, comparando-a a uma hecatombe. A descoberta tardiz do novo continente ea ignorincia prolongada em relacio aos ensinamentes cristios teriam proporcionado a perda quase completa das leis naturais. O estado de barbie teria sido ainda acelerado pelo dominio demo- njaco sobre a América. O tema da ‘coorte infernal’ € recorrente nas pri- meiras crdnicas sobre 0 novo territ6rio. Depois da vit6ria do cristianismo na Europa, os deménios teriam voado em grande quantidade para o Novo Mundo, procurando refiigio e novas almas para atormentar. La, depois da chegada dos missiondrios, existiriam duas igrejas: uma boa e catolica e utra diabdlica, Varios relatos partiram desse principio para explicar a di- fusdo de priticas abomindveis, como o canibalismo e o primitivismo das sociedades americanas. A fome, a nudez, a falta de pudor e de regras seriam obras da miséria promovida pelo Diabo.* A teoria da degeneragio refere-se as comunidades amerindias como um todo, Mas como explicar o fato de que a degeneracio retratada pelos observadores do cotidiano indigena recaia mais sobre o grupo feninino, ¢ principalmente, sobre as velhas? Para retomar a discussio em torno da consideragao do sexo feminino, é importante lembrar a misoginic da tradi- io crista, No final do século XVI, varios teGlogos reafirmavam que 0 sexo ‘oposto era mais frigil em face das tentagdes por estar repleto de paixdes vorazes € yeementes. No entanto, esse sentimento em relacac ao sexo oposto nao era caracteristica apenas dos tedlogos quinhentistas seiscentistas. A Biblia jé havia representado a mulher como fraca e suscetvel. Des- de Eva, as tentacdes da carne e as perversées sexuais surgem do sexo feminino. Os eruditos do final da Idade Média partem comumente da falta de autocontrole para explicar as perversoes sexuais das mulheres. Af esta incluido 0 desejo canibal, que aproxima o ato de beber e comer da c6pula. A correlagio ¢ fartamente repetida entre os viajantes e missionirios que descreveram 0 cotidiano amerindio. ‘Sea misoginia crista explica a ligago da imagem femininaa perver- sfo, a teoria da degeneracio permite entender as caracteristicas tribuidas vA TuPINAM &s velhas indias. Elas foram descritas como pervertedoras sexuais, apre- sentando aos meninos os prazeres da carne. A carne, aqui, possui um duplo significado. O apetite sexual e o estranho gosto de ingerir carne humana no sao antag6nicos, mas complementares; constituem caracteris- ticas inseparaveis das mulheres enrugadas e de seios caidos. Sua decadén- fisica e moral ganha sentido quando entendemos a concepgao de his- {6ria do mundo cristo. Na primavera dos tempos, os homens viviam no Paraiso. O envelhecimento das sociedades humanas teria promovido a de- gradacio das leis naturais e a decadéncia da humanidade. ‘As velhas indias, portanto, encarnam esse estado avancado da decrepitude, ressaltado em seu pendor para os prazeres da came. Os des- vios da sexualidade e 0 gosto pelo repasto canibal constituem indicios inegaveis da degeneracao. Os homens, por sua vez, foram poupados pelos missionérios e viajantes e nao eram vistos dessa mesma forma. Em relaci0 as representagdes do sexo masculino, as das velhas receberam uma dupla carga estereotipada: primeiro, por serem mulheres; segundo, por suas ida~ des avancadas. Em suma, elas simbolizavam o afastamento das comunida- des amerindias da cristandade e, sobretudo, a inviabilidade de se prosse- guir com os trabalhos de catequese e colonizacio. Esses seres degenera- dos eram incapazes de participar da nova comunidade que se inaugurava no Novo Mundo. A irreversibilidade dos costumes e de sua moral tornava- as um entrave aos avancos da colonizagao. As velhas de seios caidos per- sonificavam, nessa perspectiva, a resisténcia indigena contra os empreen- dimentos coloniais europeus. NOTAS (2) Frank Lestringant, Le cannibal. Pacis: Petin, 1994. p. 52:53. @) Alfred Métraux. A religiao dos tupinambds. S30 Pavlo: Nacional, Edusp, 1979. p. 8698; Frei Vicente do Salvador, Hstria da Brasi, Belo Horizonte: Ktatiia, Sto Paulo: Edusp, 1982. p. Bly Jean de Léry. Viqgem a terra do Brasil Belo Horizonte Ratisia, S30 Paso: Edusp, 1980. p. 225. G) Femio Cardin. Tratado da trae da gente do Brasil Belo Horizonte: latai, Sto Pauls Edusp, 1980p. 91, (Ley. Op est, p. 226-227 (G) Gabriel Soares de Sous, Thatado descrtivo do Brasil em 1587. Sto Paulo: CNL Bras INL, 1987. p. 55, 63, 302, 332-353 c 339; Pero de Magalhies Gandavo. Traiado da tera do Bras Distria da provincia de tanta Cruz. Belo Hoelzonte: Hatiais, Sto Paulo: Edusp, 1980. 5, 58, 122, 130-133 e 140. (6) Noticia summara da vida do beneditine matyrPadse Francisco Pinto In: G.Studar (org). Documentos para a biséria do Braz Foralezs: Typ Stodar, 1904, p. 46-49. ‘@) Metraux. Op. el, p. 100-102; Hans Saden. Duas viagens ao Bras. Belo Horizont: Katia, So Paulos Edusp, 1974. p. 184185; Lésy. Op. elt, p. 228 (@) Claude & Abbeville, Histor da mssdo as padres capuchinbor na iba do Maranbao, Belo Horizonte: laisi, Sio Paulo: Edusp, 1975. p. 223 (9) Cardima Op. cit, p. 93; Yves d Evreux. Maem ao norte do Brasil Maranhio, 1874. p. M6. 44 misTOMA Das muLiERES NO BRASH. (410) Sousa. Op. ct, p. 309: Léry. Op. cit, p. 228-224; Thevet, Op. es. 138, (LD Todas as reteréncias a este subitem enconiram-se em Yves CEVieUX. Op. ci, p. 127-139. (42) Ley. Op. ci, p. 121; Abbevie. Op. ct, p. 217 (13) Aspects do firasl em 1571, uma cata init do Pade Antonio da Rocha, superior do Espirito Santo, (Org. por Sertfim Let) Lisboa: Congreso Intemacional de Historia dos Descobri mentos, 1961 p. 55, (a) Sobre a invesoes sexuais, ver Sousa. Op cit, p. 308 # 334) ¢ Gandavo. Op. et, p. 128 (15) Antonio Pigafeta. Pnmervialeentorna del glo. Buenos Aires spass-Calpe, 194 p60 (16) Cormlle vytiet e Anthoine Magin. Histoire wniersolle des Indes ccesdentaleseorentales ta conversion des indtons. Dovay- Frangois Fabel, 1611. p. 71-72 UD Jose de anchieta, Caras: informacoes, tragmentos e sermbes. Belo Horizonte: Itai, ‘Sto Peulo: Esp, 1988, p. 256, (Us) Amerigo Vespucel. Diss bucblin saget wio dle 2u6. Srassbueg: Johannes Grosinge, 1509. 9) Vile ressalar que a andlise aqui exposta, sobre a pancipaeio feminina nos situa anuropotigicos, @ uma versio levemente modiicada de meu arigo Mulherescanibate, Revista USP ‘Gossie Nova Histria), 23,1994 p. 128-131. A ctag20 encontra-se em Staden. Op. cit. p. 180-81. A [ravor encooirase em Theodor de Bry (Ed). Amercae Torta Pars Frankf, 1992. A. 125, pl. (G0) sobee as gravuras, ver Ley Op cit p. 194 Jean Delumeau. Histéria do medo no oclden- 1. Sto Paulos Companhia das Letras, 1989p. 343. Sobre a gravure, ver Amoricae Teta Par fl. 127, PL 66.1. 126, pl 65. (QD AmericaeTeria Par. 8.128, pl 67. (22) Pars as gravure, ver AmericaeToria Pare. 126, gl. 65; 127, pl. 66; . 71. Sobse 0 cxquartejamento, ver Léry. Op. et, oc. cits e Suaden, Op cit p. 183 (G5) Staden. Op. cit, p. 183-184 e Sousa, Op. cit, p. 328 (G0 Florestan Femandes. a uneao da guerra na sociedade tupinambd, Sdo Paulo: Poncl, usp, 1970. p. 147-148 (5) Ley. Op. ct, p. 199: Staden. Op. it, p, 108; Gandavo, Op. cit, p. 139; Abbeville. Op ct, P.233, (26) Lue Figueia (org). Sova Tete Lisbon: Agéncia Geral da Colbnia, 1940. p. 192. (G7) Cartas do padee Joto Axpileuets. Im. Cartas das primerosjouitas do Bras Sao Paulo. CComissio do IV Centenirio da Cidade de Sto Paulo, 1954. v. 1, p. 182-183; Antonio de Santa Maria Jabostao. Nov orbeserdfieobrarlice ou Crénca dos padres mronores da provi do Bras. (ed, 17GIL. Rio de Janeico: Tip. Brasilia de Maxisniano Ribei, 1858. v1, . 13-14 (28) A dra Grandes Viggens fol edtada por Theodor de Bry e pubienda em treze volumes na Europa entre 1580 ¢ 1634. Ver Bernadette Bucher. La sautage auc seins pendants. Pais: Hermzae, 1977 (29) Bemadente Bucher: Op. ct (G0) td oid, p. 55-77 (Gh) Ronald Raminel. Imagens da colonizagdo, Tese (Dovtoraéo) defendida no Departamen to de Histéria da Universidade de S30 Paulo, io Paulo, 1994. Ver sobretudo 0 capitulo 2 Copyright 1997 os Aus nro: Mary Del Pe Comrades: Cara Basser Proje grifice: ine sky sag deca: “Dade Vero", Corgi de Abuse, 1925 ova: Mica Aina ls AR Programas: Nae Rose evstos LRM Assos Btoia Inpresae: Grea C¥e ‘Dade Internacnne de Catalogo na Publeagio (CIP) (Cimaraliradicea delve SY Bem) eras riers oral Mary Det Pare Cala Busan ed ‘ten Ba Sto Pal Cmte 197, 1. Muteres— Brit 2 Miers Bris Del Pio Mary roms eppsia.s NuNewe 30 Indies para cago sistemsitin: 1. et Maher: Hist Soflogia 3S 2058. ios AFAPESP 191 Prati repedo tao pi vince ser censor fra "EDITORA CONTEXTO (Eos Pesty Lida) dior Mine Pinsky Cina Fona 111 ~CEP-05122970 Ts (01D 2S8- Fa OID) 2561

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