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A

U
tendimento a
pacientes psicóticos
uma experiência em processo

ma equipe formada por psicólogos e psiquiatras vem, há três anos, ambulatorial tradicional: medicalização
desenvolvendo novas práticas no atendimento a neuróticos graves da doença mental.
Neste texto vou restringir-me a mi-
e psicóticos, que representam uma alternativa ao modelo tradicionalnha experiência pessoal com pacientes
que apresentam o seguinte perfil: diag-
centrado na medicalização. O presente texto apresenta algumas refle- nóstico de esquizofrenia, faixa etária de
xões sobre tal experiência, que é desenvolvida no Posto de Assistência28 a 40 anos e média de uma a oito
internações no decorrer do surgimento
Médica da Engenhoca, do Serviço de Saúde Mental de Niterói. da patologia até os dias atuais. Estas pes-
soas acham-se enquadradas na catego-
ria de pacientes crônicos por ter sua
com pacientes psicóticos, no Serviço de doença aparecido no início de sua vida
Ingrid Robinson Canedo Saúde Mental de Niterói, localizado no adulta, impedindo-as de estabelecerem
Psicóloga da Fundação Municipal de Saúde de Posto de Assistência Médica da qualquer vínculo social (trabalho, ami-
Niterói. Especialização em Saúde Pública e Engenhoca. gos) e afetivo (namoro, casamento, fi-
Psiquiatria Social pela ENSP/FIOCRUZ. lhos). Vivem isoladas em suas casas, sen-
Formação Clínica em Gestalt- Terapia.
A equipe formada por psicólogos e do totalmente dependentes de suas fa-
psiquiatras vem tentando nestes três mílias.
anos construir uma prática de atendi-
Este trabalho é um processo de re- mento a psicóticos e neuróticos graves Minha proposta terapêutica inicial
flexão sobre uma prática de três anos que diferencie-se do atendimento foi a criação de um espaço individual
onde elas fossem ouvidas e acom-
panhadas em suas necessidades.
Neste contato conversávamos so-
bre sua história de vida, sua visão
atual dos seus problemas- "delíri-
os"? - e realizávamos algumas ati-
vidades: jogar dominó, desenhar...
Este espaço mostrou-se adequado
em função dos vínculos estabele-
cidos com a terapeuta e da opor-
tunidade dada a estas pessoas de
falarem sobre seus desejos, sonhos,
medos e angústias, a partir do seu
referencial: "Eu não saio de casa
porque sei que as pessoas vão sa-
ber o que eu estou pensando". Ex-
plicação de uma paciente sobre os
motivos que a faziam isolar-se. Es-
tas pessoas vinham com assiduida-
de às sessões e sentiam falta quan-
do estas eram interrompidas por
motivo de greve no Serviço ou de-
vido as minhas férias.
Esta proposta mostrou-se, con-
tudo, ainda limitada. Era necessá¬
rio que elas compartilhassem sitos", por serem gordos, mal
suas vivências com outras pes- vestidos e falarem coisas estra-
soas e formassem vínculos dife- nhas, como indivíduos capazes.
renciados do vínculo terapeuta- No olhar de medo e descrédito
cliente. Além disso, os pacientes destes, observa-se agora tam-
mais calados e isolados sentiam- bém a presença de um sentimen-
se constrangidos e incomodados to de fascinação e respeito. Atu-
com o contato próximo e cons- almente existe uma intimidade
tante do terapeuta, dizendo: "Eu entre os funcionários e os mem-
sou chato. É monótono ficar só bros deste espaço. Falas como:
comigo. Eu não tenho vida. Não "Ingrid, a Joana está deitada no
tenho o que falar". banco da sala de espera. Acho
Criou-se assim, em conjunto que ela não está bem"; "Cadê o
com outro psicólogo, um espa- João, ele não veio hoje?" refle¬
ço grupal. O principal objetivo tem isso.
era o encontro de diferentes sub¬ Em função da saída do Ser-
jetividades, com o fim de viço de um dos terapeutas, o es-
compartilhá-las, vivenciá-las e paço operativo mantém-se há
respeitá-las. Buscava-se tornar um ano e meio com apenas a mi-
coletivo as diversas formas de nha presença. Houve receio de
compreensão do mundo, através que o afastamento dele ocasio-
da convivência com modos di- nasse um esvaziamento e
ferenciados de percepção da re- desmobilização. Os pacientes,
alidade. contudo, foram capazes de acei-
O trabalho grupal iniciou-se tar esta modificação, falando
com freqüência semanal, num sobre seus sentimentos de tris-
período de duas horas e com teza mas também de satisfação
dois terapeutas. As primeiras pela melhora profissional do
sessões mostraram-se caóticas. terapeuta. Ainda hoje ele é lem-
Tínhamos seis pacientes que en- brado nas sessões e devido a ma-
contravam-se em seus próprios nutenção do vínculo de amiza-
mundos, mantendo vínculos de entre nós, ofereço notícias
apenas com estes e com os suas a eles.
terapeutas; alguns "deliravam", A saída deste psicólogo trou-
outros solicitavam a atenção in- xe uma nova configuração na
tegral dos psicólogos e os mais estruturação deste espaço. Exis-
retraídos permaneciam calados. Neste A pedido deles passamos a festejar tia agora, apenas um psicólogo, um co-
momento foi necessário uma participa- os aniversários. Cada membro do gru- ordenador, para um grupo de seis paci-
ção ativa dos terapeutas, estimulando- po, psicólogos inclusive, encarrega-se de entes que até então exigiam uma aten-
os a romperem suas bolhas existenciais trazer um ingrediente. Prepara-se então, ção constante. Neste momento acho in-
e relacionarem-se entre si. Através de em conjunto, o bolo de aniversário. Es- teressante falar de maneira breve sobre
atividades conjuntas, como: desenhar, tes são feitos a partir de medidas arbi- o meu entendimento do que seria
cantar, cozinhar, usar argila, contar pi- trárias, baseadas nas vivências de cada terapêutico para estes pacientes.
adas, jogar dominó, estimulamos a um sobre como se faz um bolo, sendo a O meu trabalho clínico com qualquer
integração, reforçando os interesses co- massa mexida por diversas pessoas e as pessoa, seja psicótico ou não, baseia-se
muns e despertando a curiosidade de coberturas criadas a partir da na minha compreensão de que o sujeito
cada um pelo mundo particular do ou- criatividade de cada um. Os bolos saem a minha frente, independente da pato-
tro. A relação de amizade, descontração, sempre deliciosos. O aniversariante con- logia, é um ser digno de confiança e só
afeto e espontaneidade existente entre vida algumas pessoas presentes no dia pode ser entendido através de um olhar
os psicólogos e entre estes e os pacien- no Serviço: parentes, psicólogos, pesso- holístico, ou seja, ele só é compreendi-
tes contribuiu em muito para as mudan- al de limpeza, médicos e outros pacien- do na sua interligação com o todo. A
ças que pouco a pouco observamos nas tes, para comemorarem com ele. minha prática tem por base os funda-
dinâmicas grupais. mentos da abordagem gestáltica, onde
Esta atividade alterou a percepção
Lentamente, vivenciamos o interes- destas pessoas com relação a si próprias o terapeuta busca no processo terapêu-
se destas pessoas pelas dificuldades do e a relação destas com os familiares e tico compreender com o seu cliente suas
outro, a falta sentida pela ausência de funcionários. Falas como: "Não é que vivências, procurando não explicações
algum membro e as atividades torna¬ ficou bom mesmo!" "Que delícia!" "Mi- causais mas sim respostas existenciais.
rem-se mais grupais. Passamos a cha- nha filha não sabia que você fazia bolo O terapeuta acredita na capacidade de
mar esta atividade de espaço operativo, tão bem assim. Por que você não faz lá auto-regulação do indivíduo, entenden-
pois entendíamos que o relacionar-se, em casa?" propiciou a estes o contato do que este se encontra em constante
produzia e operava novos olhares, no- com suas possibilidades de produzirem, estado de troca com o mundo. O ges¬
vas escutas, possibilitando a estas pes- em conjunto, algo prazeiroso para si e talt-terapeuta entende a pessoa a sua
soas saírem de suas solidões existenci- para os outros. Ao mesmo tempo, pa- frente como um organismo capaz de sa-
ais e arriscarem uma nova forma de "es- rentes e funcionários passaram a perce- tisfazer suas necessidades, desde que
tar no mundo". ber estes pacientes vistos como "esqui- não existam bloqueios ou interrupções
no fluxo natural, eu -
mundo (1). Através de
"experimentos" (2), o
terapeuta faz com que
o seu cliente conscien¬
tize-se no presente de
seus bloqueios e dificul-
dades, buscando novas
formas de lidar com a
realidade.
Passo então a esti-
mular a responsabilida-
de e a participação de
cada membro na coor-
denação e manutenção
do espaço operativo.
Em cada sessão é defi-
nido pelos pacientes o
que conversar, que ati¬
vidade realizar. Utilizo-
me também de experi-
mentos, ou seja, quan-
do possível procuro fa-
zer com eles não apenas falem sobre o dos respondem que estão bem. Ela per- qualquer atividade. Foi encaminhado ao
que desejam ou o que os incomodam, gunta: "Vão filmar?" Peço, então, que espaço com diagnóstico de esquizofre-
mas que vivenciem concretamente nas ela, em conjunto com os outros, procu- nia, sendo definido como um paciente
sessões, estas situações. A percepção que re na sala uma máquina de filmar. Al- com elevado grau de empobrecimento
cada um tem de seu mundo existencial guns riem e dizem: "Não existe uma afetivo e embotamento intelectual.
é compartilhada através da descrição de filmadora aqui". Helena olha a sala e diz Numa das sessões onde cantávamos e
seus objetos - relações familiares, vín- sorrindo: "Não pegou mal" e pede para mexíamos com instrumentos musicais,
culos afetivos, rotina diária - no aqui - colar o desenho na parede em conjunto Tomaz oferece a Júlio o violão. Este acei-
agora de cada sessão grupal. Usando com o dos outros pacientes. Desde en- ta e começa, para surpresa de todos, a
uma linguagem fenomenológica, é mais tão, ela passou a participar das diversas dedilhar diversos sons, mostrando o seu
importante neste espaço a descrição do atividades propostas e tem até se arris- conhecimento do instrumento. Diz que
que o julgamento. As indagações sobre cado a propor novas idéias, tais como: aprendeu através de revistas e da ob-
o mundo do paciente se dão através do fazer bonecas de pano e estudar Inglês. servação de outras pessoas tocando.
conhecimento da relação que ele esta- Torna-se interessante observar a ca- Passa então a ser admirado, principal-
belece com seus objetos, em sua vida pacidade destas pessoas em acolherem mente por Tomaz que lhe diz: "Você vai
diária. O relato da sessão, a seguir, des- umas as outras. João é um paciente com ser meu professor, me ensina?" A partir
creve melhor o que foi dito acima. mais de quarenta anos e com diversas dessa sessão Júlio tornou-se mais pró-
Uma paciente, que vou chamar de internações em diferentes clínicas psi- ximo do grupo e tem descoberto novas
Helena, não conseguia realizar qualquer quiátricas. Passava a maior parte do tem- habilidades: joga dominó e monta que-
atividade por acreditar que tudo o que po em seu quarto, vendo televisão ou bra-cabeça mais rápido e com mais efi-
ela fizesse "pegaria mal" e pudesse ser dormindo. Possui muitos problemas ciência do que qualquer um, inclusive a
"possuída por espíritos". Sente-se feia, com os familiares que não o aceitam e terapeuta.
morta e passa as sessões dizendo: "Sou querem sempre interná-lo. Atualmente E importante mencionar o cuidado
feia. Estou morta. Sou burra. Não posso é um membro bastante querido por to- que sempre houve aos limites dados por
desenhar, vai pegar mal. Vão filmar". dos. Às vezes, devido a dificuldades fa- estes pacientes - seu desejo de não par-
Numa certa sessão foi parada a ativida- miliares, volta a isolar-se, deixando de ticipar de uma atividade, sua necessida-
de e solicitado aos pacientes que escu- freqüentar o grupo. Os outros pacientes de de deitar-se e dormir durante o gru-
tassem o que Helena dizia. João, paci- mobilizam-se com sua ausência e vão po, não querer conversar e até poder
ente com diversas internações e defini- até a sua casa, que é próxima ao posto, afastar-se, retornando em seguida. A
do como crônico, sorri e diz: "Não en- chamá-lo. João sorri ao vê-los, arruma- relação com estes ocorre a partir de dois
tendo. Você não é feia. Eu te acho boni- se e retorna às atividades grupais. Sen- pólos: contato, troca, presença; e res-
ta. Isto é da sua cabeça. Como o dese- te-se neste momento uma pessoa signi- peito por suas necessidades de afasta-
nho vai pegar mal?" Outra fala: "Não ficativa e importante para o grupo. Este mento, retraimento e quietude.
tem problema, se pegar mal a gente não paciente só foi internado duas vezes por
Peter Pál Pelbart, num trecho de seu
se importa". Helena então sorri e sente- curtos períodos (1 a 2 semanas) nestes
livro A Nau do Tempo Rei, compara os
se estimulada a desenhar em conjunto três anos. Há um ano só se trata
loucos aos anjos do filme Asas do Dese-
com os outros. No final mostra os dese- ambulatorialmente.
jo: "Há na loucura um sofrimento que é
nhos, que são elogiados e pergunta a A entrada de outros membros tam- da ordem da desencarnação, da atem¬
terapeuta: "Não pegou mal?". Respon- bém tem sido vivenciada de forma tran- poralidade, de uma eternidade vazia, de
do: "Eu estou ótima, para mim não pe- quila. Júlio participa, há pouco tempo, uma ahistoricidade, de uma existência
gou mal". Peço que faça a mesma per- do espaço operativo. Fala pouco e apre- sem concretude (ou com excesso de con¬
gunta aos outros membros do grupo. To- senta grande dificuldade em realizar cretúde) sem começo nem fim, com
aquela dor terrível final diz sorrindo:
de não ter dor, a "Até que fiquei bo-
dor maior de ter nitinha" e vai em-
expurgado o devir bora.
e estar condenado Estes exemplos
a testemunhar mostram como
com inveja silenci- uma mulher a par-
osa a encarnação tir de um vínculo
alheia... E alguns com outra, dita
de nós, terapeutas normal e que pos-
de psicóticos, que sui um outro
nos encarregamos referencial do que
dessa tarefa insen- seja belo, pode cri-
sata de ajudar a ar a sua própria
encarnar os anjos, percepção e possi-
o que pretende- bilidade de beleza.
mos com isso? ... Desde que, é claro,
Um Hospital-Dia exista uma relação
para psicóticos ou onde se permita a
um Serviço Expe- esta pessoa mani-
rimental podem festar sua singula-
ser muita coisa, ridade - "talvez en-
entre outras coisas tendendo que ele
podem vir a ser está tocando outra
um dispositivo música, ou com-
institucional a pondo um ritmo
mais de normatização do social". novo ou inventando um instrumento
caixa com escova, batom e blush. Passa inusitado. E aí, por mais que ele soe de-
Retirei este trecho porque durante o safinado na orquestra da cidade, é pre-
meu trabalho com essas pessoas, esta então a escovar os cabelos, prendendo-
os de diversas formas: com laços enor- ciso acomopanhá-lo musicalmente". (4)
tem sido a minha maior preocupação. O espaço operativo tem tido a preo-
O não desejo de que este espaço seja mes, fitas... e a utilizar o batom como
blush. Faz cada movimento com cuida- cupação de oferecer diferentes disposi-
"um jardim de infância pedagógico, uma tivos, para que estes pacientes possam
indústria de cera ou um depósito de es- do e atenção. Fica sempre atenta ao seu
olhar dizendo: "Este olhar é de vampi- reconstruir-se a partir de seus próprios
tranhos personagens". (3) Acredito que recursos. Ainda referindo-me a Peter Pál
estas pessoas têm podido ser sujeitos ro". "Hoje meu olhar está mais bonito".
"Com este modo de olhar eu fico mais Pelbart, lembro-me de um trecho do seu
deste trabalho, na medida em que o livro, A Nau do Tempo Rei, onde ele fala
encontro ocorrido no espaço operativo sedutora". Arruma a roupa, prendendo
às vezes as mangas da blusa nas alças sobre a importância dos terapeutas de
se faz através de um compartilhar, ou psicóticos estarem atentos à questão do
seja, de uma tentativa de um penetrar do sutiã para esta virar camiseta. Vai
criando, a partir destes instrumentos, o tempo. Ele comenta: "É preciso dar tem-
no mundo do outro, sem que exista uma po a essa gestação com que se confronta
intenção ou desejo de dizer qual é o seu referencial de beleza. Quando está
satisfeita diz: "É, agora eu estou bonita, a loucura, a essas tentativas, a essa cons-
mundo "normal" ou correto. Isto fica trução e reconstrução, a esses processos,
claro no relato descrito abaixo. estou bem". Comentou, certa vez: "Nes-
te espelho eu fico mais bonita do que a esses acasos. Um tempo que não é o
Joana sempre observa-me, nota se no espelho da minha casa; no da minha tempo do relógio, nem do Sol, nem o do
estou magra ou gorda, arrumada, can- casa eu não consigo ficar assim". Este campanário, muito menos o do compu-
sada e comenta: "Ingrid, você está can- ritual repete-se em todas as nossas con- tador. Um tempo sem medida, amplo, ge-
sada, abatida; seu cabelo não está le- sultas, sendo sempre original e criativo. neroso... A questão seria saber como as
gal" (normalmente nestes dias eu real- Compartilho em silêncio desta constru- propostas alternativas em Saúde Mental
mente estou mais cansada); "Hoje você ção. Vejo não apenas uma mulher en- pensam preservar a possibilidade de uma
está bonita"; "Esta calça eu gosto em feitando-se, mas sim uma pessoa ten- temporalidade diferenciada, onde a len-
você". Eu escuto suas observações, agra- tando construir, naquele momento, uma tidão não seja impotência, onde a dife-
deço os elogios e quando é o caso refor- imagem de beleza e sedução possível rença de ritmos não seja disritmia, onde
ço sua percepção dizendo: "Joana, você para si. os movimentos não ganhem sentido ape-
está realmente atenta a mim. Eu hoje nas pelo seu desfecho".
estou sentindo-me cansada e não me ar- O comportamento desta paciente
rumei muito". Esta paciente normalmen- tem feito com que outra, já referida an- No espaço operativo esta questão en¬
te chega às sessões com o cabelo e a rou- teriormente, que se acha feia, comece contra-se sempre presente. É fundamen-
pa desarrumados. A relação estabelecida atualmente a arriscar pequenas tal que eu suporte e conviva com o tem-
por ela com a minha imagem, a tem le- olhadelas no espelho. Numa sessão após po destas pessoas em relação ao que fa-
vado, naturalmente, a ficar atenta a sua olhar neste, disse: "Estou desarrumada. zer com o espaço oferecido. Em muitas
auto-imagem. Atualmente no final das Meu cabelo está de maluca". Digo: sessões existe apenas o caótico, o de-
sessões, ela se aproxima do espelho, "Quer a escova?" Ela me olha, sorri e sorganizado, em outras, o parado. Nes-
olha-se por alguns minutos e pergunta: aceita. Começa, lentamente, a pentear te espaço não funciona o programável,
"Tem escova? Tem batom?" - em fun- os cabelos, arrumando-os do jeito que o controlável. O planejamento de uma
ção destas solicitações existe na sala uma prefere. Não aceita qualquer pintura. Ao atividade de uma sessão para outra,
pode ou não ocorrer. Muitas vezes com- convivem. Numa consulta individual, esquizofrênicos nos levam a perceber o
binamos algo para o próximo encontro Joana comenta: "Ingrid, outro dia eu per- poder do contato pessoal em toda sua
e esta atividade não acontece, devido a guntei ao rapaz da venda se ele achava plenitude... Um contato no qual o
uma mudança de interesses, ao desejo que meu olhar era de vampira, embora terapeuta participa da sintomatologia,
de fazer algo diferente ou mesmo o de eu fosse de cavalo (este comentário tem permitindo se "sujar", assumir papéis
nada fazer. É necessário que o terapeuta haver com a vinculação que esta pacien- falsos, dizer coisas sem nexo... Onde o
disponha-se a vivenciar o imprevisto, o te faz do surgimento de seus sintomas esquizofrênico possa perceber que a lou-
não organizado, assim como a inércia e com um filme de Drácula. Acredita que cura não é privilégio, nem desgraça pu-
o não acontecer o que se planeja. Entre- foi mordida por um vampiro e ramente sua. É do terapeuta também. E
tanto se for dado ao psicótico o tempo correlaciona isto com o horóscopo chi- se isto acontecer de uma forma atuan-
que ele necessita para organizar-se da nês). Ele não entendeu nada e ficou temente serena, com certeza o paciente
sua forma, surgem propostas surpreen- olhando-me". Comentei: "É Joana, nem perceberá que sua loucura não é um
dentes, como a descrita abaixo. todo mundo entende o que você está fa- caminho de mão única; ele pode sair
Joana fala numa sessão sobre o seu lando. Você tem que conversar com as dela como faz seu terapeuta".
desejo de ser professora e dar aula para pessoas o que elas podem entender". Ela O trabalho com estas pessoas é um
o grupo. Combinamos esta atividade me olha e diz: "É verdade, com ele eu processo que se constrói e transforma-
para o próximo encontro. Todos com- tenho que falar sobre o Fernando se a cada momento, a cada sessão.
parecem. Uma paciente traz caderno e Henrique, sobre a falta de dinheiro...".
lápis. Joana traz seu livro. Arrumamos O estabelecimento de uma atmosfe- "Não devemos parar de explorar
um quadro negro, giz, folha e lápis. ra de cumplicidade e afeto no espaço E o final de toda a nossa exploração
Joana dá uma aula de Geografia onde o operativo, em muito tem contribuído Será chegarmos ao lugar de onde
tema é espaço. Explica aos outros mem- para o êxito deste trabalho. Para isso foi partimos
bros do grupo o fato de uma rua per- necessário que eu me aproximasse da E conhecemos o lugar pela primeira
tencer a um bairro, o bairro a uma cida- minha loucura, podendo assim compar- vez".
de, esta a um Estado... Ao final propõe tilhar da loucura dos pacientes, e criar T.S. Eliot
o exercício do livro: a construção de uma um contato real com eles.
bússola, passando a descrever os pon- (1) Serge e Anne Ginger-Gestalt - Uma Terapia do
Utilizando-me das descrições de Sér- Contato.. Cap. 8 - A Teoria do Self. Ed Summus, SP,
tos cardeais. Todos ficam atentos, alguns gio Buarque (5) sobre os elementos ne- 1987.
riem, mas atendem aos seus pedidos. cessários para um bom contato com pa- (2) Experimentos: é um conceito e uma técnica da
Copiam, respondem as perguntas. Per- cientes esquizofrênicos, eu diria: "A mi- Gestalt - Terapia que busca restaurar a ligação da
mitem que ela seja professora e tornam- nha relação com estas pessoas tem se
abordagem perifrásica ("falar sobre") com a ação.
se seus alunos. Através da experiência no presente da situação
apoiado não no medo, estranheza e conflituosa, o indivíduo é capaz de romper a
Alguns destes pacientes solicitam agressividade mas sim num "contato paralização perifrásica e mobilizar seus recursos a
além do espaço operativo, uma escuta amplo e seguro", onde eu posso com- superação desta dificuldade, vivenciando formas
novas de lidar com a situação. Ver Gestalt-Terapia
individual que é realizada por mim, an- partilhar do "incompreensível", da imo- Integrada Erving Poster - pág. 208 (vide bibliografia).
tes ou após o grupo. Outros se satisfa- bilidade, da periculosidade e permito- (4) Pelbart, Peter Pál - A Nau do Tempo Rei. Imago,
zem apenas com o contato grupai recu- me participar dos "sintomas" e "delí- 1993, RJ-pág. 70.
sando qualquer outra forma de atendi- rios", sem uma "intenção de cura". (5) Buarque, Sérgio - A Abordagem Gestática e a
mento. Todos possuem consultas regu- esquizofrenia. Apresentação no III Encontro Nacional
Finalizo com as palavras de Sérgio de Gestalt - Terapia - mimeo.
lares com o psiquiatra. Existe uma atua- Buarque (6): "O trabalho com (6) Buarque, Sérgio - Op. Cit.
ção conjunta entre Psicologia e Psiquia-
tria, através da discussão freqüente da
evolução dos casos e possíveis estraté-
gias terapêuticas - alteração na medica-
ção, visitas domiciliares... Com relação
aos familiares, é necessário que eu pos-
sua certa disponibilidade para ouvir suas
BERG, J. H. Van Den - O Paciente Psiquiátrico - Esboço de Psicopatologia
angústias e dificuldades no trato com Fenomenológica. Ed. Mestre Jou, 1981, SP.
estes pacientes. Alguns se contentam
com este contato, enquanto outros bus- BENNETTON, JÔ -Trilhas Associativas. Ed. Lemos, 1991, SP.
cam atendimento psicoterápico. BUARQUE, Sérgio (1991) A Abordagem Gestáltica e a Esquizofrênia Mimeo, Trabalho apre-
É interessante notar como a possibi- sentado no III Encontro Nacional de Gestalt-Terapia, realizado em Brasília em 1991.
lidade dada a estas pessoas de CARVALHO, Maria Margarida M. J. (Coord.) - A Arte Cura? Recursos Artísticos em
direcionarem as atividades grupais, as Psicoterapia. Ed. Workshopsy, 1995, SP.
têm capacitado a direcionarem melhor CASSANO, Luiz Carlos Júnior - Uma proposta política para a psicose ou psicose - fascis-
suas vidas. Participam das festas reali- mo e multirealidade. Mimeo, dezembro de 1993.
zadas no Posto: Festa de Natal, Festa
Junina e reivindicam uma maior inser- GUATTARI, F. e ROLNIK, Suely (1986) Cartografias do Desejo. Ed. Vozes, 1986, RJ.
ção nas atividades familiares. Com ex- LAING, R. D. - O Eu Dividido, Ed. Vozes, 1987, RJ.
ceção do paciente já referido anterior-
PELBART, Peter Pál - A Nau do Tempo Rei. Ed. Imago, 1993, RJ.
mente, nenhum sofreu internação nes-
te período de atendimento (três anos). POLSTER, Erving e Miriam -Gestalt-Terapia Integrada.Ed. Interlivros, 1979, Belo Horizonte-
Além disso elas têm sido capazes de MG.
estabelecer relações diferenciadas com os GINGER, Serge e Anne - Gestalt - Uma Terapia do Contato. Ed Summus, 1987, SP.
diferentes espaços e pessoas com quem

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