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ÍNDICE

1. PRIMEIRA PARTE
1. O VALOR DA VIDA
2. CAPÍTULO 1
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
3. CAPÍTULO 2
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
4. CAPÍTULO 3
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
5. CAPÍTULO 4
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. CAPÍTULO 5
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
7. CAPÍTULO 6
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
8. CAPÍTULO 7
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
9. SEGUNDA PARTE
1. ENTRE DOIS MUNDOS
10. CAPÍTULO 8
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
11. CAPíTULO 9
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VII
7. VIII
8. IX
12. CAPÍTULO 10
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
13. CAPÍTULO 11
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
14. CAPÍTULO 12
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
15. CAPÍTULO 13
1. I
2. II
3. IV
4. V
5. VI
6. VII
7. VIII
8. IX
9. X
16. TERCEIRA PARTE
17. A MORTE IRREVOGÁVEL
18. CAPITULO 14
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
19. CAPÍTULO 15
1. II
2. III
3. IV
4. V
5. VI
6. VII
20. CAPÍTULO 16
1. I
2. II
3. IV
O processo de uma sociedade idealista

JACOB WASSERMANN, escritor judeu alemão de fama internacional cuja obra foi
traduzida praticamente para todas as línguas cultas, figura na primeira plana da ficção
contemporânea e é expoente das letras germânicas.
Redator de Simplicissimus, — semanário ilustrado que se publicava em Mônaco, célebre
por seu conteúdo polêmico e satírico, — ali divulgou seus primeiros artigos, poemas, contos
e novelas. Espírito inquieto, não resistiu à tentação das viagens e, assim, percorreu vários
lugares da Europa, África e Estados Unidos. Além de peças de teatro, produziu inúmeros
ensaios de crítica literária e duas biografias de larga repercussão: uma de Colombo e outra
de Stanley. Não fez estudos regulares, mas sua sede de conhecimentos não tinha limites,
era insaciável e, como autodidata, supriu os reclamos de sua inteligência e sensibilidade:
sabia diversos idiomas e freqüentava quase todas as literaturas, interessando-se também
pelas ciências e artes — acervo esse que aproveitaria em toda a sua obra, notadamente na
ficção romanesca.
Politicamente era liberal - e acreditava na democracia como a única forma digna da vida
humana. Com o advento do nazismo, provou o amargor do exílio, tal qual os seus amigos
Thomas Mann, Alfred Doblin, Richard Dehemel, Hugo von Hofmannsthal, Franz Werfel,
Stephan Zweig e Arthur Schnitzler, todos escritores representativos da literatura alemã. Por
perseguição racial também foi destituído de sua cadeira na Academia Prussiana de Letras.
JACOB WASSERMANN encontrou no romance o veículo ideal para a expansão e expressão
do seu talento de escritor. Mais de um crítico assinala que, nele, com espantosa
prodigalidade, coincidiam as qualidades do ficcionista genial: ritmo crescente e
empolgante da narrativa, que é conduzida por uma inventiva, a um só tempo, audaz e
original, e auxiliada pela força passional, a precisão das descrições, a sutileza da psicologia
— o poder de sentir a vida como um fluxo impetuoso e permanente.
É o que se pode observar em O Processo Maurizius, obra de intriga fascinante e riqueza
de caracteres, todos esmiuçados em suas motivações psicológicas aparentes e recônditas;
de fantasia romântica, criadora de episódios sensacionais onde o imprevisto e mesmo o
estravagante assumem aspectos de um realismo agressivo e contundente, em que o libelo
e a denúncia são constantes.
Nele se estuda, até o âmago da profundidade, a evolução de um espírito em. sua crise
moral.
Esta é a história de Etzel Andergast e de sua luta para repor o mundo nos padrões de
justiça - dignidade com que a sua juventude sonha, e que não hesita em enfrentar os mais
poderosos obstáculos a fim de demonstrar a inocência de um homem condenado por um
erro judiciário - erro de que seu próprio pai, como magistrado, é o principal responsável.
O Processo Maurizius propõe, assim, os temas da arbitrariedade da justiça humana, o
conflito das gerações, a indiferença dos homens em relação aos outros, a denúncia social e
a acusação dos falsos postulados que a burguesia erigiu e em cuja defesa é capaz de ir até
o crime. Obra de uma grandeza tolstoiana, O Processo Maurizius participa do romance
psicológico, do romance social - até do romance policial — mas sem nunca perder a sua
rara dignidade artística, pois é uma das, mais belas e atraentes peças literárias do nosso
tempo.
Retrato de uma era de crises e conflitos, expõe a confusão dos espíritos e. dos valores que
informam uma sociedade alicerçada em fundamentos idealistas, que não considera os
fatôres sociais como elementos constitutivos e inseparáveis do homem e do seu destino.
Assim, esse romance é também o processo de uma estrutura social, o levantamento dos
seus erros e mistificações, de suas falsidades e mitos.
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
MÁRIO DA SILVA BRITO
diretor editorial

 
O PROCESSO MAURIZIUS
BIBLIOTECA DO LEITOR MODERNO

volume 39
JAKOB WASSERMANN
romance
tradução de

OCTAVIO DE FARIA
e
ADONIAS FILHO

EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.

RIO DE JANEIRO

Do original alemão:
Der Fall Maurizius

Desenho de capa:
EUGÊNIO HIRSH

Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA


S.A., Rua 7 de Setembro, 97 - Rio de Janeiro, que se reserva a propriedade desta tradução.

1963
Impresso nos Estados Unidos do Brasil
Printecí in the United States of Brazil
Biblioteca pública Arthur Vianna
 
NASCIDO em Füchs, na Francônia, em 1873 e morto no exílio, na Áustria, em 1934, Jacob
Wassermann estreou em 1897 com um romance inspirado nos costumes da sua raça, "Os
Judeus de Zirndorf". Ern seguida, durante mais de trinta anos, veio produzindo, num
esforço constante e vencendo inúmeros obstáculos, uma série de grandes livros, na maioria
romances. Ao lado de diversos estudos sobre arte, de duas biografias notáveis (Cristóvão
Colombo e Stanley) e de um livro autobiográfico "Meu Caminho como Alemão e como
Judeu" (1921) , convém salientar em sua vastíssima obra os .sequintes romances: "A
História da Jovem Renata Fuchs” (1900), "O Moloc" (1902), "Alexandre em Babilônia"
(1904), "Gaspar Hauser" (1908), "As Máscaras de Erwin Reiner" (1910), "O Homem de 40
Anos" (1913), "O Hornem dos Gansos" (1915), "Christian Wahnschaffe" (1919), "O Trópico"
(I, II, III e IV - 1920-1924), "O Advogado Laudin" (1925), "O Processo Maurizius" (1928) e os
dois romances que o continuam: "Etzel Andergast" e "Joseph Kerkhoven", sem dúvida
alguma o ponto mais alto de sua obra, tão desgraçadamente interrompida pela morte.

Se todo século tem seus grandes desconhecidos, seus Nietzsches e Stendhals, também
tem seus grandes semidesconhecidos, aqueles que um relativo sucesso coloca num plano
sem dúvida elevado, mas muito inferior ao em que realmente deveriam estar, tendo em
vista a excepcionalidade de suas figuras. Como um Kierkegaard ou um Lawrence, o
romancista Jacob Wassermann, celebrado por muitos na sua terra natal e lido por bem
poucos fora dela, está perfeitamente no caso desses semidesconhecidos.
Grande entre os maiores, Jacob Wassermann ainda não alcançou a celebridade a que tem
direito. Revela-o num dos seus maiores momentos criadores — e revela-o com o máximo de
fidelidade possível, não obstante as imensas dificuldades que uma tradução do "Processo
Maurizius" apresenta — parece-nos não só uma empresa de real utilidade para a formação
da nossa cultura, como uma justa e imprescindível homenagem à genialidade criadora do
maior de todos os romancistas alemães.
Não hesitamos, por outro lado, em afirmar que Jacob Wassermann ocupa no romance
mundial um lugar igual ao dos maiores, mesmo tendo presente ante os olhos as figuras
excepcionais de certos romancistas russos, ingleses e franceses, mesmo pensando que
existe um Balzac, um Tolstói, um Dostoiévski, um Lawrence, um Proust, um Hardy. De um
modo geral, sua obra o aproxima impressionantemente da figura de Balzac, com quem tem
um sem-número de pontos comuns. É de ressaltar, sobretudo, a semelhança com o grande
mestre francês nisso que se pode chamar a capacidade criadora de todo um mundo.
Invencivelmente, é na riqueza inesgotável da "Comédia Humana" que faz pensar o mundo
de criaturas ciclópicas de Wassermann. Cada um dos seus romances — pensamos
sobretudo em obras-primas como "Christian Wahnschaffe" ou como a trilogia que começa
com "O Processo Maurizius" — faz viver diante de nós uma série incalculável de
personagens extraordinários que têm uma vida própria, de uma densidade dramática, uma
realidade humana, que ficam "de pé" diante de nós, que possuem um "peso" (se nos for
permitida a expressão) que, até hoje, só os maiores entre os maiores romancistas lograram
atingir.
Os simples nomes desses heróis: Joseph Kerkhoven, Christian Wahnschaffe, Gregório
Waremme, Eva Sorel, Betina Herzog, Martin Mordann, Wolf Andergast, Ganna Melwis, Luisa
Dercum, Dietrich Oberlin, Constância Altacher, Erwin. Reiner falam-nos desse “peso"
humano, trazem consigo essa força de realidade e de grandeza, de riqueza psicológica e de
tamanho de destino que nos vai conquistar em frações de moncentos e nos escravizar às
suas histórias poderosas e terrificantes. São nomes como que marcados de antemão pelo
destino, e que forçam o paralelo com outros grandes nomes igualmente marcados, nomes
de Emma Bovary ou de Ana Karenine, de Tess ‘Uberville ou de Dimitri Karamazof, e
sobretudo nomes balzaquianos de Lucien de Rubempré ou de Eugène de Rastignac, de
Eugérnie Grandet ou de Louis Lambert, de Ursule Mirouêt ou de Cesar Birotteau, de
Henriette de Mortsauf ou de Maxime de Trailles, de Modeste Mignon ou de Antoinette de
Langeais.
É portanto com a certeza de proporcionar ao nosso público O conhecimento de um dos
romancistas mais significativos do século — tão admirável no desenho e na pintura da
variedade humana de sua época ou de épocas próximas a ela, quanto o foram Balzac na
"Comédia Humana" ou Tolstói em a "Guerra e Paz", Proust em "Em Busca do Tempo
Perdido" ou Galsworthy em "A Crônica dos Forsyte" — que nos empenhamos, com a
necessária honestidade e evidente humildade de espírito, na árdua tarefa de apresentar
pela primeira vez em tradução brasileira "O Processo Maurizius".
Que se nos perdoem as imperfeições, certamente involuntárias, pelo desejo que tivemos
de acertar, reproduzindo fielmente o pensamento complexo e a espantosa finura
psicológica de Jacob Wasserrnann.
O. de F.
 
 
 
 
 
 
PRIMEIRA PARTE
 
O VALOR DA VIDA
CAPÍTULO 1
 
I

ANTES mesmo do aparecimento do homem de gorro de marítimo, era visível que o jovem
Etzel se agitava com vagos pressentimentos, oriundos talvez daquela carta selada da Suíça
que, voltando do colégio, vira sobre o aparador do vestíbulo. Apanhara-a e fixara-a
atentamente com seus olhos míopes. A letra o impressionara como uma coisa esquecida
que não se consegue mais situar. Quanto mistério em uma carta fechada! Aquela trazia,
em letra redonda e rápida, que parecia correr maravilhosamente, o enderenço do barão
Wolf de Andergast. "Rie, que poderá conter esta carta?" - indagou, dirigindo-se à
governanta que saía da cozinha. Chamava-a, desde os primeiros anos, de Madame Rie ou
Rie, simplesmente.
Há mais de nove anos ela habitava a casa, sendo-lhe tão familiar e próxima quanto se
pode tornar uma mulher chamada a ocupar o lugar de uma mãe a quem substitui,
realmente, em todas as questões de ordem material. Digamos aqui que o barão de
Andergast se divorciara fazia nove anos e meio e que as cláusulas draconianas do divórcio
obrigaram a mãe a se afastar do filho, não tendo o direito da vê-lo, nem de lhe escrever,
não devendo também ele lhe escrever. A quem quer que fosse, em sua frente, era proibido
falar sobre ela. Desse modo, aos dezesseis anos, o rapaz nada sabia da mãe. O espírito
reinante na casa sufocara nele qualquer curiosidade a respeito. A única coisa que lhe
haviam dito, incidentemente, e fazia já muito tempo, como se se tratasse de pessoa
estranha e indiferente, era que ela vivia em Genebra e que, por razões que saberia quando
fosse homem, não podia vir visitá-lo. Fora obrigado a contentar-se com aquilo. Se esse
assunto ocupava secretamente seu pensamento, nada se podia saber em virtude da reserva
que guardava sobre tudo o que se relacionava com sua vida interior.
Aprendera a calar-se, conhecendo até que ponto eram invencíveis as barreiras opostas
nesse terreno à sua curiosidade. Quanto mais se interessava apaixonadamente pelas
coisas, mais se sentia na obrigação de mostrar-se impassível. Todas as perguntas que fazia
tinham, como aquela que acabara de dirigir a madame Rie, uma espécie de ressonância
hipócrita. Permanecia de sobreaviso e seus olhos míopes observavam os acontecimentos e
os homens com uma atenção intensa.
Rie ainda não vira a carta. Tomou-a da mão de Etzel, examinou-a atentamente e, com um
ar de forçada inocência, disse: "Isso interessa apenas a seu pai. O doce está na mesa. Não
devemos apoderar-nos de cartas que não nos são endereçadas." - "Meu Deus, como você é
aborrecida, Rie! - replicou o rapaz. Você acha que não sei de quem é esta carta? Chegam
freqüentemente! Escreve ela algumas vezes?"
Atrapalhada, Rie fitou o rosto enérgico dirigido a ela. "Que eu saiba, não! - murmurou
com embaraço. - É a primeira vez."
Novamente olhou o rosto pálido, fino e inteligente. E, intimidada, baixando os olhos, fixou
a frágil silhueta, dos ombros aos pés.
"É verdade, Rie?" - indagou Etzel, com manhoso sorriso nos lábios, desmascarando-se
súbitamente. "O que leva você a supor?" - perguntou Rie, impacientando-se. "Você é um
verdadeiro detetive. Quererá armar-me uma cilada? Mas, sou tão esperta quanto você."
- "Não, Rie, eu juro que você não o é" - respondeu Etzel, fitando-a com comiseração.
"Diga-me francamente, essas cartas vêm frequentemente? Você já viu alguma?" Ele a
interrogava com enormes olhos abertos, nas profundezas dos quais se viam cintilações de
bronze. O que lhe parecia miserável era a falta de jeito com que a governanta o procurava
enganar. Cada vez que tinha oportunidade de comparar a acuidade dos seus sentidos com
a dos seres que o cercavam, sentia uma compaixão cheia de espanto - e também sentia
medo, como alguém que, inesperadamente, descobrisse uma enfermidade até então
irrevelada.
"Nunca. E a primeira vez" - continuou Rie. - "Eu gostaria de estar presente quando ele
abrisse e lesse a carta", murmurou Etzel, mordendo a ponta do dedo que conservava entre
os dentes. Pronunciara aquela palavra - "Ele" - em um tom de respeito, credulidade, receio
e aversão. Girou sobre os calcanhares e, balançando com a mão direita a pacote de livros
presos por uma correia, conservando sempre o dedo na boca, encaminhou-se para o quarto.
Rie, descontente, acompanhou-o com os olhos. Não gostava daquele gênero de conversas
dúbias. De todos ali, Etzel era o único em quem a sua alma sensível encontrava eco porque,
na casa, muito longe de se exigir, não se concedia nenhum valor à sensibilidade. Era uma
casa austera.
O dono não tolerava e não desejava a menor familiaridade. Tudo o que esperava era que
todos cumprissem o dever em silêncio; quanto a veleidades de simpatias, caso nele se
manifestassem, permaneceriam inexpressas. Se lhe prestassem devotados serviços, indo
até à abnegação, abster-se-ia de mostrar-se grato e observaria que os criados eram pagos.
Rie ouviu Etzel ir e vir no quarto com seus passos excessivamente pequenos. Sentiu-se
inquieta lembrando-se do rosto voltado para ela com a cintilação de bronze no fundo dos
olhos. "Agora, ele se tornou um homem. Até aqui, era apenas uma criança insignificante.
Mas, de onde veio este homem assim de repente?"
Há muito tempo que o conhecia. Era uma criança tranquila, antes sonhadora que
turbulenta, dócil porque sem desejos e cobiça, que não conhecera, mesmo através de
crises, esse aborrecimento (o termo é muito fraco) que oprime tantas crianças com seu
enigmático tormento. Emanava dele uma atmosfera de permanente alegria, e, apesar de
seu aspecto sizudo, não lhe faltava certa nota cômica. Sua avó, a velha baronesa de
Andergast, quando ele tinha doze anos, chamava-o de Liliput, doutor e filósofo, e, graças a
ela, as suas divertidas respostas chegavam aos ouvidos de todos as conhecidos. Rie
desempenhava o papel de mãe "oficial" porque a mãe instituída por Deus, de quem ela
possuía somente noções imprecisas, se tinha subtraído ao dever. Influenciada pelo clima de
casa, eis como via as coisas: cumprimento do dever, esquecimento do dever, tais eram os
dois polos, positivo e negativo, entre os quais oscilava o mundo de Andergast, isto é, o
mundo em geral. Etzel, a seu ver, era uma criança abandonada, e porque lhe era possível
mimá-la, pôs-se a amá-la ternamente, particularmente convencida de que a compreendia.
Este erro constituía a sua felicidade.
II

É provável que o barão Andergast também achasse que o insignificante menino houvesse
subitamente se tornado homem, porque as ações, o emprego de tempo de Etzel, seus
trabalhos e leituras foram submetidos a um controle ainda mais severo. Bastara uma
alusão de Rie ao incidente da carta para que pressentisse o perigo possível e tomasse suas
medidas. Se lhe noticiavam semelhantes incidentes, era em conseqüência da coação moral
que exercia sobre os que o cercavam e, caso fosse a narração incompleta, ele a concluía
graças à perfeita faculdade de conexão que era uma das suas características mais notáveis,
justamente aquela pela qual subjugava os espíritos. Ela sempre lhe assegurava a vantagem
de conservar intactas suas forças de reserva: porque, em geral, não era obrigado a exibi-las
quando conduzia os acontecimentos e os indivíduos que queria utilizar, não deixando ver
os cordéis com que os fazia mover, assim como acontece nessas instalações elétricas onde
funcionam, com toda segurança, comutadores, fios condutores invisíveis,
transformadores...
Fora entre os elementos dessa impecável organização que Etzel crescera, adaptando seus
nervos, embora se mostrassem rebeldes de vez em quando. Vivia em uma casa de vidro. As
faltas que praticava não eram seguidas de ameaças, nem de modo algum comentadas.
Contentavam-se em anotá-las. Era o método do silêncio. Esta anormal situação de família
tinha como resultado que os habitantes da casa pareciam executar espontâneamente a
espionagem; fornecedores, carteiros, porteiros, todos estavam sujeitos àquela vontade
superior, sensível em todos os lugares, e que governava sem declarar abertamente seu
poder supremo e sem cogitar de informar a cada um em particular. Todos eles eram levados
à obediência e impelidos à delação pelo simples fato de que ela reinava ali, esmagadora e
grandiosa como uma montanha. 
Eram essas as suas impressões de infância. Toda inteira fora ela colocada sob a vigilância,
ainda que dissimulada, de um olho de lince. Cada coisa era encarregada dessa vigilância.
Folhinha, emprego de tempo, relógio, cadernos, boletim escolar. Tudo nascia de um
programa ideal e tendia a entrar na realidade com um automatismo oficial Mas, para isso,
não se formulava expressamente nenhuma prescrição, nem se exigia respeito mediante
meios exteriores — obtinha-se tacitamente, e tudo se impregnava de um caráter de
necessidade tão fria que ninguém pensava em contradizer. Excutavam-se os trabalhos e o
tempo se repartia com o austero rigor das prescrições imutáveis; almoçar: uma hora e um
quarto; jantar: sete horas e meia; banhos: quarta-feira e sábado às nove horas; dinheiro de
bolso: um marco por semana; relações com X... ou Z...: pouco recomendáveis, portanto a
evitar. Quem levantasse um olhar surpreso ouviria perguntar: "Você tem alguma
observação a fazer?" Permanecesse embaraçado e hesitante: "Que acha você?..." Tudo isso
dito com muita amabilidade, muita frieza, muita medida, em tom perfeitamente social.
Quando um homem de muita personalidade deixa um aposento, a atmosfera criada por
ele não se abranda imediatamente: sua força se irradia sobre as coisas. Muito mais ainda se
manifesta essa influência nos lugares onde ele passa a vida; o leito onde dorme, a cadeira
em que se assenta, o espelho em que se olha, a secretária em que trabalha, as cigarreiras e
os cinzeiros de que se serve, todas essas coisas trazem sua marca, um pouco de sua
expressão, dos seus gestos, até mesmo de sua temperatura, como se lhes infundisse
diariamente algumas gotas de seus sangue.
Desde que se sentira capaz de pensar e de recordar, Etzel ouvira sempre uma certa porta
se abrir e se fechar do mesmo modo - ela se abria ampla e lentamente, como se fosse
necessário à poderosa silhueta medir o espaço primeiro para dele se apossar depois; ela se
fechava de uma maneira irrevogável, como se lacra uma carta cujo conteúdo é decisivo.
Essas impressões geravam na sua imaginação um encadeamento de quadros invariáveis:
sentia-se afastado daquele mundo inacessível onde horríveis coisas se produziam; via certa
mão fixar solenemente sua assinatura em documentos importantes; via seu pai aprisionado
em uma solidão que o intimidava. Criança, insinuara-se algumas vezes até a porta do
escritório e a examinara longamente os olhos muito abertos, como que querendo decifrar
invisíveis ruas de que estivesse coberta. Ouvindo o pai tossir, esfregar os pés no chão, ir e
vir gravemente, ritmando o andar como um homem assaltado por uma horda de maus
pensamentos, retirava-se sem fazer barulho, tentando no silêncio do quarto adivinhar
algum daqueles pensamentos, daquelas decisões, algum fragmento do mundo
desconhecido, sombrio e perigoso, em que seu pai vivia.
Acontecia a mesma coisa com os toques de campainha que, por serem tão
imperiosamente breves, só podiam provir dele - às sete horas e meia, precisamente, do
quarto de dormir; às duas horas e meia justas, depois da sesta, do gabinete de trabalho,
salvo nos dias em que os debates no Foro se prolongavam até a tarde. Etzel se
sobressaltava com o ruído de cada toque e duas vezes por dia se sentia tomado pela
mesma opressão acompanhada de pancadas mais fortes do coração. E um fenômeno que
fora antigamente para a criança um constante pesadelo reproduzia-se agora ainda com
muita freqüência: despertava em pânico porque a campainha soara no seu sonho.
Espreitava e via em frente, muito perto, tal uma moldagem iluminada num fundo sombrio,
a mão de seu pai, o dedo indicador imperiosamente estendido. Esta mão - e ele a conhecia
melhor que a sua própria - se inseria em uma série de visões que voltavam
incessantemente em seus sonhos; mão estreita de aristocrata, de dedos finos com unhas
amareladas e, no reverso, uma camada sedosa de pelos escuros. Algumas vezes, no sonho,
ela se movia sobre uma pasta azul, semelhante a um estranho réptil. Por vezes, sua
eloqüência muda ou sua imobilidade expressiva faziam pensar na mão de um ator. De um
ator de indiscutível primeira ordem e particularmente esperto que só encarna caracteres ao
mesmo tempo severos e serenos e que, tendo-os meditado bem, representa-os, no entanto,
sem os viver, precisamente para demonstrar que guarda distância em relação a eles. Cedo
Etzel se familiarizara com essa noção de distância. embora sua natureza, inversa à do pai, o
levasse a se aproximar dos outros, tendência aliás que a sua miopia parecia acentuar
exteriormente.
III
 
 
Este sistema mudo de vigilância só aparentemente atingia seu fim, tendo Etzel tomado
disposições eficazes para livrar-se dele. Sentia mais dificuldades do que o teriam outros
rapazes em seu lugar, sua lealdade o prendendo a certas convenções e sua independência
de espírito o impedindo de se abrir com um camarada de sua idade. Também não lhe era
possível reunir-se a um dos grupos ou partidos que incessantemente se formavam e se
reformavam entre seus companheiros. Não tinha nenhum prazer nas suas discussões e
apenas raramente e contra a vontade assistia às suas reuniões. Não era coisa fácil levá-lo a
opinar sobre uma questão, em um ou outro sentido, e suas soluções categóricas só lhe
despertavam dúvidas. Percebiam eles, aliás, que em sua reserva havia mais coragem que
nas gritarias dos energúmenos e, coisa estranha, era em conseqüência ainda mais
estimado por todos. Apesar disso, o único amigo que possuía (interiormente, era muito
circunspecto na atribuição desse título que, em público, aceitava por simples cortesia) era
um espírito agitado, de opiniões radicais; mas, em última análise, não fora por suas ideias
que elegera Roberto Thielemann, apenas pela franqueza de sua natureza, nascendo assim
entre eles relações fundadas sobre o princípio das compensações, em que o grande e o
pequeno, a lentidão de um e a vivacidade de outro, a rudeza de uma parte, a delicadeza de
outra parte, completavam-se pelo próprio contraste. Thielemann gostava de desempenhar
o papel de protetor de Etzel, em quem reconhecia superioridade intelectual, ou melhor,
superioridade de educação. Comumente, não compreendia aquela originalidade de
pensamento, de julgamento, que tocava por vezes à extravagância, mas, vendo Etzel tão
pouco desenvolvido fisicamente, vendo sua delicadeza tímida (sob a qual, é verdade, se
ocultava uma força que ele não percebia), sentia-se impelido a proteger o camarada mais
jovem e mais frágil. Não somente ele, mas todos o tratavam com. consideração.
Etzel, pois, não idealizava a sua amizade por Thielemann. Tinha absoluta consciência do
que havia nela de provisório e, também, de insuficiente. E procedia como o indivíduo que,
seja por discrição, seja para não se fazer notar, seja porque nada encontre de melhor,
contenta-se com uma habitação exígua, embora seus meios lhe permitam instalar-se com
mais confôrto. Era este sentimento de transitoriedade que geralmente prevalecia em suas
relações com os outros, sem que soubesse de onde vinha aquela impressão ou pudesse
evitá-la. Dificílimo mesmo escondê-la dos outros quando, muito frequentemente, não
conseguia mais escondê-la de si mesmo. Pois possuía, precisamente, esse dom de poder
dissimular alguma coisa a si mesmo - árdua operação que exige astúcia e alguma imagina-
ção. (Mas Etzel não concedia nenhum valor à imaginação, não queria saber dela, e era este
um outro traço curioso de seu caráter).
Desejara muito falar a Roberto Thielemann do homem de gorro de marítimo. Absteve-se,
porém, receando tornar muito sensível a si mesmo a inquietude que sentia. A aparição três
vezes repetida do velho ocupava e obscurecia, sem descanso, seus pensamentos. No dia
em que viu com os próprios olhos que o indivíduo misterioso seguia também seu pai, e
também o ousava afrontar, e que essa audácia, apesar de todo o orgulho que o outro
revelava, da sua frieza distante, parecia não o deixar indiferente, nem ser considerada
como um sintoma desprezível - Etzel acreditava estar seguro disso - desde esse dia aquela
simples inquietude se transformou em uma desconfiança nervosa, incessantemente
crescente em relação a tudo que o cercava, pessoas e coisas, como se as paredes que
sustentavam o teto não oferecessem mais nenhuma garantia, como se nos armários fossem
conservados produtos sutis, deletérios, como se uma mecha ardesse no porão prestes a
fazer explodir uma caixa de dinamite. Com períodos de descanso mais ou menos longos,
esse estado de expectativa durou até o dia em que, entre os autos do pai, Etzel pôs a mão
no documento que teve sobre seu destino influência decisiva.
IV
 
 

Os modos e o traje do homem de gorro de marítimo, embora à primeira vista fossem


comuns, tinham, no entanto, alguma coisa de fantasmal, quando mais não fosse pelo olhar
inquiridor com que examinou o rapaz desde o primeiro encontro, pela obstinação com que
o seguiu passo a passo, tentando deixá-lo atrás e fixando-o à passagem, depois pela
rapidez da sua desaparição, tão súbita quanto seu aparecimento. Era um velhinho seco
que, pela aparência, — não sendo um "senhor", nem um operário, só podia ser um homem
da pequena burguesia. Podia ter setenta anos aproximadamente, mas possuía um aspecto
bastante vigoroso e não lhe faltava agilidade nos movimentos. Usava um jaquetão escuro
bastante surrado, luvas de lã e punhos de orla vermelha. Seu braço esquerdo caía rígido ao
longo do corpo. Nas duas primeiras vezes em que o encontrara, fumava um pequeno
cachimbo inglês, talvez mesmo apagado, entre os dentes, mas, em todo caso, percebiam-
se, atrás dos lábios raspados e finos como um trato de pena, dentes estragados, quase
negros. Etzel poderia reproduzir todas as linhas daquele perverso rosto, ossudo e curtido,
seus olhinhos brilhantes sempre à espreita, seu olhar astigmático - dir-se-ia que um dos
olhos era de vidro - suas orelhas cômicamerte puladas, ultrapassando escassos tufos de
suíças de um grisalho esverdeado e que pareciam dois feios pássaros depenados em um
bosque de árvores ressecadas. Etzel o vira pela primeira vez na ponte inferior do Mena.
Estava com Roberto Thielemann, Schlehlein o gago, Jax Schuster o de pescôço de garça
que representava um papel no "movimento dos Jovens", o gordo Nicolao Mohl (o voraz,
como o chamavam por causa da sua eterna fome), Muller n.° 1 e Muller n.° 2. Sustentavam
uma discussão política ocasionada por uma amarga reflexão de Thielemann sobre as
pérfidas manobras de Schuster. O grupo de que ele era o chefe fizera correr boatos
malévolos sobre o grupo republicano, e Thielemann o censurava por tramar torpes intrigas
e deixar-se levar como boneco, sem nunca tomar partido, por pessoas de quem se podia até
mesmoo perguntar se não eram aliciadores pagos pela reação. "Vocês são uns imbecis!" -
clamava incessantemente. E sua voz lenta e preguiçosa contrastava de um modo divertido
com sua cólera. Agitava os braços no ar e o escândalo dos seus gritos provocava a
desaprovação dos transeuntes. Não inspirava grande confiança com seu topete de cabelos
vermelhos cor de fogo, seu rosto coberto de sardas, e sua capa de fazenda grosseira,
oscilando sobre os ombros. Quando, finalmente, lançou a seguinte acusação: "eles e seus
acólitos já aterrorizavam os professores que até então se podiam chamar de puros, e
mesmo um homem como Camilo Raff não se declarava mais abertamente, mas se
encarquilhava intimidado no canto dos observadores prudentes" - neste momento,
Thielemann ficou verde de raiva e pareceu bem próximo de se atirar sobre Schuster e os
dois Muller. O primeiro teve um riso de escárneo onde havia tanto de desafio quanto de
embaraço, e Schlehein o gago, sabendo-se protegido pela maioria, colocou-se frente a
Thielemann e, sem a menor vergonha, disse: "É verdade... t...teu Raff é b...bem um desses
para...parasitas. Ele tre...treme pe...pela sua situação." Thielemann o mediu cem um olhar
de desprezo e disse: "Cala-te, imbecil!" Com os olhos, procurou em torno alguém que o
apoiasse, mas todos estavam contra porque Etzel, que tinha horror de cenas semelhantes,
se afastara do grupo e avançara muito. Vindos da praça dos Suíços, alcançaram a ponte; e
enquanto Thielemann olhava em torno de si em busca de um auxílio, seu rosto tomou uma
expressão de pavor. Viu Etzel no meio da calçada andando como um sonâmbulo em direção
a um caminhão que se aproximava estrepitosamente e que inevitàvelmente o esmagaria
num instante. Gritou com todas as suas forças: "Atenção, Andergast, atenção, que diabo!"
Alcançou-o num salto e arrastou-o justo o bastante para que o para-choque não lhe roçasse
senão no quadril.
Ouvindo o nome Andergast, um homem que, apoiado na balaustrada da ponte, o
cachimbo entre os lábios, olhava o rio como se não visse nem entendesse o que se passava
perto dele, voltou-se bruscamente, fitou os rapazes, deteve sobre Etzel seu olhar agudo, e
quando Thielemann segurou o braço do outro, dizendo num tom meio teimoso meio
autoritário: "Venha, Andergast, deixemos estes sórdidos", ele seguiu os dois rapazes pela
Nova Rua de Mayence, andando a uns vinte passos atrás deles. Somente quando pararam
na praça da ópera, diante da vitrina de uma livraria, foi que os passou e esperou que
continuassem o caminho, fitando Etzel ainda uma vez como na ponte, com seus olhos
inquiridores e brilhantes, mas de um olhar sonhador e calmo. "Você o conhece?" - indagou
Thielemann, surpreso, enquanto continuavam a andar. "Não" - disse Etzel sentindo todavia
uma espécie de mal-estar nas costas.
Dois dias depois, o homem estava em pé na frente do portal do liceu. Era meio-dia. As
classes transbordavam, vindas do pátio, dispersando-se em todos os sentidos no meio de
uma algazarra ensurdecedora. Etzel ficara entre os retardatários. Seu primeiro olhar,
quando se achou fora, caiu sobre o homem de gorro de marítimo. Desviou os olhos,
embaraçado, e parou. O homem o fitou sem sorrir, sem pestanejar, e acompanhou-o. Como
Etzel novamente sentisse, e ainda mais forte do que na véspera, a sensação de mal-estar
nas costas, pôs o pacote de livros sobre o braço e andou tão depressa que, em cinco
minutos, deixou o desconhecido que o perseguia a um quilômetro de distância.
V

Na terceira vez, ele estava em frente da casa dos Andergast, no ângulo da rua das Tilias.
Etzel voltava de sua lição de ginástica com Henrique Ellmers. Esse Ellmers, filho de um
arquiteto, excelente matemático, oferecera-se a Etzel para o ajudar a resolver uns
problemas de álgebra, contra os quais batalhara durante toda a noite da véspera. No fundo,
não gostava de Ellmers, que era um pretensioso e que, alguns meses antes, estivera
arriscado a ser boicotado por toda a aula devido a uma história de denúncia que nunca se
esclarecera direito. Ellmers, porém, oferecera seu auxílio com uma insistência tão sincera
(sem dúvida, ficara seduzido pela ideia de poder dizer que ia em casa do barão Andergast),
que Etzel não achou nenhuma razão para recusar — mas, desta vez, sentiu medo quando
avistou o homem de gorro de marítimo. Aquela repetição tinha, em si, alguma coisa de
ameaçadora e de inevitável. Do mesmo modo, a proximidade mais imediata daquele
homem, a calma da rua deserta, tudo aquilo fazia nascer o medo. Sua miopia, até então,
tinha-o impedido de distinguir nitidamente os traços do estranho e os detalhes de sua
pessoa. — Agora, porém, o homem estava tão perto que podia discernir o pardo amarelado
dos olhos e mesmo os botões de pano, já gastos, do seu jaquetão. Quando ele se voltou na
rua para entrar no jardim de casa (Ellmers sempre o acompanhando), o porteiro conversava
com um guarda-civil no portão. O porteiro e o polícia o cumprimentaram, conscientes de
que era filho do procurador-geral. Etzel teve uma sensação de vertigem quando viu que o
homem de gorro de marítimo se dispunha igualmente a entrar. Esperava, naturalmente,
acompanhando os passos dos dois rapazes, passar sem obstáculo diante do porteiro e
evitar perguntas importunas; lia-se esse cálculo no seu rosto. Assim o fez, realmente. O
porteiro lançou um olhar suspeito, é verdade, mas deixou-o passar. Deteve-se na entrada,
seguindo os rapazes com os olhos. Etzel deixou cair o pacote de livros. Ellmers o apanhou.
"Obrigado", disse Etzel. Todo ele era ouvido, e quanto mais se aproximava do segundo
andar, mais redobravam seus esforços para ouvir. Quando subiram alguns degraus do
segundo andar, voltou-se e escutou o que se passava embaixo. Ellmers olhou Etzel com
inquietude e perguntou: "Você está-se sentindo mal, Andergast? Como você está pálido!"
Etzel ouviu, murmurando depois: "Ele está-nos acompanhando?" - "Quem? A quem você se
refere?", perguntou o outro, surpreso. Etzel se agarrou ao corrimão. Verificou que alguém
subia com um passo hesitante. "Que significa, afinal, este homem se agarrando assim a
mim com tanta obstinação?" - pensava Etzel, enquanto a perseguição do desconhecido lhe
inspirava um medo sempre crescente. Neste momento, e com uma acuidade inteiramente
nova, Henrique Ellmers sente que é profundamente antipático a Etzel. Ergue um olhar
sombrio e um pouco hostil para o rapaz que se encontra dois degraus acima dele — que,
por sua vez, o rosto novamente contraído, olha para o alto, pois ouve passos descer, passos
que conhece muito bem. Um momento depois, a alta silhueta do barão Andergast apareceu
no retângulo da janela. Atinge ele então o girante da escada e, embaixo,— homem de gorro
de marítimo chega ao girante correspondente. Etzel tem a impressão de que aquela
coincidência é extremamente importante, embora a razão lhe afirme ter sido puramente
fortuita. O barão Andergast faz um sinal de cabeça aos dois rapazes, dirige-lhes uma
pergunta banal (vocês já acabaram as aulas? ou alguma coisa parecida) sem parar na sua
descida, e depois o seu olhar cai sobre o homem. Este se detém imediatamente, de costas
coladas na parede, dois dedos na viseira do gorro, e diz com uma voz ridiculamente
grasnante e com um laconismo militar, de efeito igualmente grotesco: "Eu me chamo
Maurizius". Ao mesmo tempo, sua mão procura alguma coisa no bolso interior do jaquetão,
num movimento desajeitado, devido por certo à rigidez do braço. O barão Andergast volta a
cabeça, olha-o um segundo, dois segundos, e sempre com o seu porte altivo, através das
pálpebras semicerradas, fixa-o com um olhar triste e segue. Depois, volta a cabeça ainda
uma vez, a testa ligeiramente franzida, faz com a mão um gesto de mau-humor e apressa o
passo. Tudo isso não durou mais de um minuto e meio, mas Etzel tem agora a certeza de
que seu pai, também ele, conhece o homem de gorro de marítimo e não foi naquela escada
que o viu pela primeira vez. Adivinha tudo pela expressão do pai, pelo sinal de mau-humor,
pelo movimento das costas e pela maneira como desce agora a escada, degrau por degrau,
enquanto Maurizius, ainda de pé, contra a parede, tem os olhos fixos na penumbra da
escada.
VI

Etzel acertara. O barão Andergast vira muitas vezes o velho surgir em sua frente com a
calma plácida e a persistência de um homem à espreita. Inúmeras eram as pessoas que
interrompiam seu caminho, mas nenhuma o fazia sem receio e, bem poucas, sem angústia.
O velho, porém, parecia não sentir nada de semelhante. Em verdade, não dava a impressão
de um vagabundo ou de um desclassificado, antes fazia pensar num provinciano que se
achasse numa situação difícil em uma grande cidade, e não soubesse como se sair. Havia,
no entanto, em sua atitude, uma ausência de consideração, uma certa arrogância que
irritava os nervos do barão Andergast. Não sabia quem era aquele homem. Julgava não o
ter visto nunca. E eis que um belo dia o homem se plantara diante dele como alguém que
quisesse a todo custo chamar sua atenção. Era meio-dia. Possuído pelo mesmo arrepio que
o assaltava sempre que deixava o Foro, e que não desaparecia nem mesmo com o quente
sol de março daquele dia, o barão Andergast abotoou o capote, respondeu com um sinal de
cabeça e sem sequer olhar a saudação do porteiro, tomando o caminho de casa. Fazia a pé
aquele percurso todos os dias.
Nas ruas movimentadas, era obrigado a tirar o chapéu muitas vezes e, embora fizesse
aquilo sem conceder o menor olhar a ninguém, sua atitude e seu gesto correspondiam
sempre à situação social daquele a quem respondia, quer tocasse apenas na orla do
chapéu, ou o tirasse para fazê-lo descrever no ar um curto semicírculo calculado, pondo-o
depois, lentamente, sobre a cabeça calva. Mas eles, os outros, quem quer que fossem,
operários, pequenos comerciantes, diretores de banco, redatores, proprietários,
conselheiros municipais, mostravam nos seus cumprimentos a solicitude a que se julgavam
obrigados devido à alta função do barão Andergast e ao homem temido que ele era.
Habituado ao respeito de toda uma cidade, atravessava-a com frieza. Seu olhar, sempre fixo
diante de si, não se interessava por nenhum dos espetáculos da rua. Mais ainda: de certo
modo, seu aspecto lhes negava realidade, como se essa realidade fosse uma cilada, e o
chocava, porque muito íntima. E seu andar tinha não somente aquele modo embaraçado,
próprio aos homens que se habituaram a se mover em espaços acanhados, mas também a
pressa característica dos que constantemente têm de se defender de importunos. E eis que
aquela figura estranha aparecia em seu caminho. Um desconhecido ousava fitá-lo face a
face, a ele barão Andergast, procurador-geral. E com um cachimbo na boca. E fitá-lo e
segui-lo, como percebia sem se voltar. Depois andando mais depressa, ultrapassá-lo e,
chegando a uma esquina da rua, deter-se, e olhá-lo ainda! Com o cachimbo na boca! Coisa
incrível! No dia seguinte, a mesma coisa, a mesma arrogância. E três dias depois, tudo
recomeçava. Talvez fosse um louco, um desses numerosos demandistas, muito conhecidos
da justiça e da polícia, que trazem sempre consigo um requerimento não deferido,
tentando com isso impressionar as autoridades. O mais sábio era ignorar o homem e, na
primeira ocasião, apontá-lo ao guarda-civil do bairro. Veio depois o encontro na escada.
Violação de domicílio! Era demais! Fazia-se necessária uma sanção! Era indispensável
tomar medidas. A princípio, o barão Andergast não identificou o nome que a indivíduo
suspeito pronunciara. Quando o fez, fitou-o ainda uma vez, voltando-se involuntàriamente.
E não pode esconder sua surpresa.
No dia seguinte, por via oficial, o requerimento foi apresentado. Não era, certamente, o
primeiro — mas, um entre muitos outros que o tribunal recebia sempre e proveniente da
mesma fonte. O incidente recebia assim uma explicação aparentemente inofensiva,
embora a audaciosa atitude do homem permanecesse incompreensível. Em todo caso, a
história não merecia que se pensasse muito tempo nela.
CAPÍTULO 2

 
I

No espírito de Etzel, a aparição do homem de gorro de marítimo — em particular, seu


encontro imprevisto com o pai, na escada — permanecia indissoluvelmente ligada à
imagem da carta selada da Suíça, cuja letra lhe falava uma linguagem familiar. Desses dois
acontecimentos, emanava uma ordem ou uma provocação. A única diferença era que o
primeiro permanecia exterior e o outro totalmente interior, de tal modo que tinha a
impressão de ficar entre os dois como um pêndulo que oscila. Um e outro provocavam nele
profunda perturbação, desviando a tal ponto suas ideias de seu curso habitual e de suas
obrigações quotidianas que, certa manhã, em lugar de tomar automaticamente o caminho
do liceu, tomou direção oposta, afastando-se cada vez mais, perdido em seus devaneios.
Deixando os livros na estação de Bockenheim, foi em direção ao Taunus. Em Oberursel,
desceu do trem, tomou o caminho das ruínas de Saalburg e, finalmente, sem mais se
importar com sua intenção ou com o caminho, pôs-se a errar pela floresta sem se
preocupar com a tempestade e os aguaceiros que, de quando em quando, desabavam
sobre as árvores. Quando a chuva se tornava muito forte, procurava um abrigo debaixo de
uma árvore ou em uma cabana de lenhador. Caminhava, tendo, aparentemente, ar
sonhador. Aparentemente, sim, porque nada temos a ver com um sonhador - e este é um
fato que precisamos estabelecer antes de mais nada. Etzel sabia o que fazia, discernia as
coisas perfeitamente, não se deixava enganar e sabia exatamente onde tinha o nariz: a
prova disso é que, à uma hora e quinze, apresentou-se para o almoço, pontual como
sempre e tendo antes mudado de roupa. Deslindar um problema (e isso com o auxílio
exclusivo de sua inteligência), não se enganar sobre si mesmo, perceber de relance a causa
e as conseqüências, poder concluir, tal era sua ambição e nisso se exercitava a cada
oportunidade. Desta vez, ainda era isso o que desejava. E fora o que o levara a se evadir.
Mas, dessa vez, não o conseguira, tal a sua perturbação.
Na noite do dia seguinte, durante a conversa obrigatória que sempre mantinha com o
pai, verificou uma mudança na atitude deste último. Não era fácil adivinhar em que
consistia. Nem com que intenção se verificava. Seus desígnios e pontos de vista, quando os
queria ocultar, somente um adivinho, na melhor das hipóteses, seria capaz de os descobrir.
Estava mais amável que de costume e tornou-se mesmo atenciosa. Ofereceu queijo duas
vezes a Etzel e perguntou-lhe, sorrindo, se não iria breve cortar o cabelo. Etzel logo
compreendeu que seu pai sabia da sua excursão matinal e da sua ausência da escola, e
que, a propósito, acabariam chegando a uma daquelas dúbias explicações que tanto
receava. Não era absolutamente certo que lá chegassem, mas a que podia ser pior era que
tudo ficasse envolvido em silêncio e entre eles suspenso como uma ameaça. Aquilo fazia
parte das peças do processo. Visivelmente, o barão Andergast queria que Etzel falasse por
livre vontade. E, de certo modo, pela sua doçura, a isso o convidava. No entanto, quanto
mais se esforçava, mais o rapaz se sentia sem jeito. Acabou por se calar, olhando do outro
lado da mesa, quase sem bater as pálpebras, aquele rosto imponente e hermético que nele
sempre despertava o sentimento de sua insuficiência. Não lhe era possível fazer o que dele
se exigia com tamanha pressão moral — ainda que não se proferisse uma só palavra. Se o
pudesse, então já o teria podido fazer desde a véspera. Por que não o fizera, e por que se
sentia incapaz? Ignorava-o. De nada serviria ter coragem e arranjar argumentos para uso
próprio. Olhando o pai com uma expressão desconcertada, o que aparentemente não
perturbava em nada o barão Andergast, Etzel quebrava a cabeça para descobrir como fora
informado tão depressa (certamente, não pelo professor principal, pelo doutor Camilo Raff,
que não tinha o hábito de assinalar bagatelas e que, além disso, tinha atenções especiais
para com Etzel e Rie não o vira entrar) ; também se perguntava por que tentavam arrancar-
lhe a confissão usando de subterfúgios ao invés de o interrogar simplesmente e pedir
explicações. Por certo, este procedimento não era novo para ele. Não havia nada de simples
nas suas relações em casa. Assim refletia sobre elas, logo seus pensamentos assumiam um
feitio complicado.
Mas, para esclarecer essas relações entre o pai e o filho, faz-se necessário explicar
primeiramente o que se deve entender por aquela "conversa obrigatória" a que nos
referimos.
II

Viam-se apenas em casa. O barão Andergast, excessivamente absorvido pelo trabalho da


sua profissão, não passeava, não freqüentava teatros nem concertos. Não gostava de
aparecer em público e, salvo com alguns colegas muito íntimos, como o presidente da
Corte de Apelação, Sydow, e sua família, por exemplo, não mantinha quase nenhuma
relação mundana. Não tinha a menor necessidade de estar com os outros. Achava
enfadonhas as cerimônias oficiais, às quais não se podia furtar. Uma vez por mês ia ver sua
velha mãe, a generala - como a chamavam - em sua casa de campo, em Eschersheim.
Consagrava as tardes de domingo e dos feriados ao estudo dos processos.
O fato de passar duas horas com Etzel, cada dia, entrava no plano de sua vida do mesmo
modo como o estudo dos autos. Impusera-se a si mesmo, como um dever, tirar daquelas
conversas o caráter regulamentar e a intenção educativa. Contava somente com as horas
da noite. Durante o almoço em comum, do qual, aliás, frequentemente se ausentava por
razões profissionais, permaneciam ambos totalmente estranhos um ao outro. A fisionomia
do barão Andergast se conservava fechada; por detrás da fronte que revelava uma
inteligência extraordinária, ainda se via a luta de diversas opiniões; os olhos violeta, no
fundo dos quais fermentava um sombrio e imóvel ardor, tinham um ar de ausência. Além
disso, Madame Rie assistia às refeições e, tanto mais o barão Andergast reconhecia a
utilidade do papel desempenhado por ela como governanta, tanto mais se aborrecia em vê-
la quando fora do seu trabalho. Sua presença também não agradava a Etzel; gostava dela,
conversava de boa vontade com ela, mas somente quando estavam sozinhos; em presença
do pai e principalmente à mesa, o enervamento que ela causava podia chegar até a
aversão. Sentava-se em uma cadeira com um ar tão satisfeito consigo mesma que se diria
estivesse endereçando tacitamente a si própria infinitos elogios sobre a excelência da
refeição, conseguida apesar das dificuldades que discretamente silenciava. Prestava uma
calada homenagem a si mesma comendo com grande apetite, e o que dizia era tão banal
quanto as máximas de um livro de leitura de um pensionato de moças.
À noite, ficava em seu quarto. Tirada a mesa, o barão Andergast acendia um charuto e
descansava em virtude de um ato evidente da sua vontade, relachando a atitude e a
expressão sem nunca permitir que ultrapassassem certos limites. Os olhos violeta, porém,
não brilhavam mais como o fogo sob a cinza e lembravam de modo surpreendente os olhos
ingênuos de uma moça. Habitualmente, começava com perguntas inofensivas.
Escaramuçava um momento, pegava um assunto, levava Etzel à contradição, sentia prazer
nisso, aparando o golpe com uma habilidade de esgrimista, defendendo ideias tradicionais
e experimentadas contra audaciosas teses reformistas, propunha compromissos e, depois
de uma ardente disputa, mostrava-se disposto a admitir, teoricamente, determinada
opinião revolucionária. Etzel, no entanto, embora entrasse violentamente na luta, ressentia
o mesmo sentimento de quando imaginava a mão do pai como sendo a mão de um ator.
Tudo aquilo se assemelhava a um jogo, e a nada mais do que isso - ao jogo sarcástico de
um parceiro que não quer-se aproveitar da sua posição incomparavelmente superior. "Ele é
tremendamente inteligente" - pensava Etzel, ao mesmo tempo cheio de furor e de respeito
- "nunca se compromete." No seu ardor juvenil e ingênuo, chegava sempre às opiniões
extremas que só se pode sustentar com paradoxos, e lançava-se nelas com uma louca
temeridade, enquanto seu adversário, conhecedor de mil golpes, abundava em
lamentações jesuíticas. "Você não é apenas batalhador" - dizia, o barão Andergast olhando
o seu relógio de ouro - "mas abusa de fintas e rodeios com os quais é preciso tomar
cuidado." Então Etzel o olhava boquiaberto, o ar surpreso e desconfiado, porque
seguramente não era aquele elogio que julgava haver merecido.
Era geralmente assim que terminavam suas conversas, sem nada que pudesse aproximá-
los, deixando freqüentemente uma impressão de penoso vazio. As nove horas e meia
precisamente, o barão Andergast se levantava com uma expressão que não condizia em
nada com as últimas palavras pronunciadas; surpreso, com uma pressa um pouco pueril,
Etzel se dirigia para a porta, segurava a maçaneta e se inclinava com o sorriso incerto de
alguém que acabasse de ser enganado por outro, mais esperto. Era realmente verdade,
tinha a impressão de haver sido enganado e não podia dizer por quê. E de todas as vezes
que deixava o aposento, sentia-se despedido como depois de uma repreensão do diretor do
liceu.
Quando o barão Andergast tinha de sair à noite, entrava no fim da tarde no quarto de
Etzel, sentava-se à mesa onde estudava, pedia-lhe que continuasse, calmamente, e ficava
vendo como trabalhava. Depois de alguns instantes, Etzel se perturbava, perdia o fio e se
detinha: "Que está você fazendo?" - perguntava o barão Andergast. Se fosse por acaso um
problema de matemática ou uma composição de história, o barão Andergast se mostrava
interessado. Com o grande dom oratório que possuía de “valorizar" as palavras, como
dizem os atores, um dia exaltava a honestidade intelectual, a que as matemáticas
habituam, a magia da figura, da figura pura em particular. "São elas, as matemáticas" -
afirmava ele - "que nos dão uma visão viva das leis naturais e que, do mesmo modo como a
coroa de uma cúpula junta e reúne tudo o que aparentemente se exclui e se repele, podem
conciliar as faculdades humanas as mais elevadas e as mais contraditórias." Etzel ouvia
com atenção, mas tinha o ar de um pequeno cão recalcitrante que não estivesse disposto a
obedecer. De uma outra vez que seu pai, com a mesma doce insistência, recomendava o
estudo das ciências históricas, fez ele uma ardente oposição, contestando principalmente
que se tratasse de ciência, naquele caso. Fosse ciência, e seriam então obrigados a chamar
de ciência a redação de relatórios e a leitura dos jornais. Onde estava a certeza"? Onde
estavam as leis? Quando se pisava em terreno firme? Aquilo, a seu ver, era apenas
atravancamento da memória, nomenclatura, cronologia, e, na melhor das hipóteses,
romance! "Eh!" - disse então o barão Andergast com o gesto de um regente de orquestra
quando os pratos fazem muito ruído.
No fundo, eram exercícios dialéticos que se desenvolviam num domínio estritamente
limitado pelo barão Andergast. Etzel sabia que não devia transpor a fronteira. Aquele
mesmo homem que com tanta amenidade prestava atenção às suas emoções intelectuais,
que acompanhava suas deduções freqüentemente infantis, quase sempre muito
categóricas e algumas vezes bastante apaixonadas, fatalmente se transformaria em um
bloco de gelo se lhe passasse pela cabeça falar de incidentes exteriores, de acontecimentos
do dia, das suas relações com um amigo ou professor, ou se fizesse perguntas relacionadas
com a profissão, a vida privada, o passado do pai. Se se arriscasse, com uma simples
alusão, embora soubesse que seria severamente chamado à ordem, o barão Andergast se
levantaria, franziria a testa, e diria com um olhar oblíquo e fugidio: "Discutiremos isso em
momento mais oportuno". Etzel tinha certa razão de supor que ainda não lhe fora dado
experimentar os últimos rigores daquele frio glacial, a baixa de temperatura resultante de
qualquer extravagância lhe inspirava uma angústia já por si suficiente. Nos momentos em
que não se julgava observado (eram ainda mais raros do que supunha, porque a pessoa do
barão Andergast, toda ela, era "olho", ou consagrada ao serviço de informação do olho)
examinava o pai como uma torre inacessível, sem portas e sem janelas, que se ergue bem
alta, poderosa, e que, da base ao topo, guarda inúmeros segredos. Sua profunda admiração
tinha por irmã Gêmea um medo igualmente profundo. Sendo filho único e sem mãe.
permanecia frente a ele num isolamento sem igual. Era sempre assim que representava a
situação de ambos: face a face e a uma distância imutável um do outro. E quando se
dispunha, em imaginação, a se aproximar do pai, via-o logo recuar — mas se, por outro
lado, o pai avançava, sentia-se logo presa de um pavor que o forçava à prudência. Havia
muito tempo que Etzel conhecia a sua fama de severidade, de implacabilidade, de
inflexibilidade de princípios. Não chamavam seu pai de Andergast o sanguinário?
Injustamente, por certo, porque se deixara penetrar até o âmago pela consciência da
nobreza superior do seu dever e do seu ministério. Mas opiniões daquela espécie
circulavam como bactérias nocivas e, se não chegavam diretamente aos ouvidos de Etzel,
ouvia-lhes o eco, e os sonhos que tinha, acordado — sem os fixar, no entanto, e sem
permitir que a imaginação tocasse neles — geravam figuras dantescas, infernais, uma vez
que as coisas existem em cada homem desde a primeira hora da sua vida, mesmo as nunca
vistas e sabidas, e seu pai lá estava de pé sobre uma fornalha ardente, julgando as coortes
dos danados.
 
 
III
 

O barão Andergast estava sentado na sombra, pois não podia suportar em cheio a luz
crua da eletricidade, seus olhos se inflamando depressa; todos os Andergast tinham maus
olhos, e sua mãe sofria há muitos anos de uma doença no nervo ótico. Talvez que isso se
interpretasse assim: quem vive somente pelos olhos, sofre também pelos olhos. O violeta
intenso dos olhos do barão Andergast, em verdade, tinha alguma coisa de anormal. Estava
sentado, as pernas cruzadas, o busto aprumado por um esforço par demais visível, a cabeça
erguida - uma cabeça de um oval alongado, com um crânio polido e brilhante, cercado de
uma coroa de cabelos grisalhos, cortados rente. Nesta atitude de soberano que reina e que
só pela metade pertence ao mundo comum, existia uma força por meio da qual captava os
olhares de Etzel. Como se enrolasse fios numa lançadeira, atraía o olhar do menino,
parecendo, no entanto, não querer nada. Aquela figura do pai, sentada de lado, as pernas
cruzadas, era-lhe tão familiar como uma figura emblemática que se vê todos os dias. Com
efeito, tinha alguma semelhança com os personagens dos tempos egípcios, quando se o
entrevia assim na penumbra. É um jogo funesto a gente se familiarizar com as formas
estereotipadas, e conhecê-las não significa para nós adquirir liberdade ou qualquer
esclarecimento. Em Etzel, a timidez e o sentimento de distância permaneciam sempre
iguais e igual, também, sua avivada atenção que se dirigia sobre dois pontos: a possível
diminuição da temperatura e, depois, o minuto em que seria "despedido". Era sempre com
essa mesma tensão de espírito que fitava a penumbra. Todas as noites, como hoje, sentia
um inquieto espanto vendo aquela estatura de atleta, aquela fronte poderosa, o nariz
grande e reto, os lábios grossos, o pescoço vigoroso oculto em parte apenas pela barba
feita em ponta, curta, bem cuidada, já começando a encanecer. Uma indefinível atmosfera
de melancolia banhava toda a sua pessoa — uma triste insatisfação, como sentem aqueles
que não podem viver conforme o que julgam ser o seu destino e que, desgostosos do fim
que almejavam outrora, lembrando-o como uma miragem, escondem, por detrás de um
orgulho distante, a sua decepção. Apenas o sentimento da sua solidão lhes confere algum
valor aos próprios olhos, e experiências e desilusões confirmam-nos neste ponto de vista.
Mergulhando uma vez por todas nesse isolamento, tornam-se tão estranhos, tão
indecifráveis, tão à parte, que parece não mais existir linguagem através da qual os outros
possam fazer-se compreender por eles. Tal era a impressão que frequentemente dominava
Etzel... "É terrivelmente longo o caminho até ele" - pensava - "e quando finalmente
chegamos, a fadiga nos torna absolutamente estúpidos". Conseqüência sem dúvida de
uma sensibilidade exagerada, mas reunida a uma tal consciência de seu parentesco, que
aquilo que os separava era-lhe uma tortura dez vezes mais cruel. Raramente sofrera tanto
como naquele dia. Uma ou duas vezes estivera na eminência de se levantar bruscamente e
deixar o aposento, alegando dor de cabeça.
Difícil saber o motivo que impelia o barão Andergast a se informar tão minuciosamente
da aventura da véspera (realmente, ele falava em "aventura", embora o termo conviesse
pouco àquela "gazeta" e àquela corrida desordenada sob a chuva). Soubera de tudo de um
modo relativamente simples: um advogado vira Etzel na estação de Oberursel e, pela
manhã, contara-lhe, casualmente. Um acaso que explorava agora a seu jeito. Era
curiosidade de psicólogo, ou receio que aquilo inaugurasse uma série de atos de
independência ou de faltas? Impossível discernir, dada a infinita complicação do seu
espírito. Era necessário, tanto quanto possível, por um freio às iniciativas pessoais, mas
como e por que meios? O que era preciso domar não era o espírito, na verdade a matéria
explosiva mais perigosa do mundo? Em primeiro lugar, reconheceu o que havia de
defeituoso no engenhoso sistema das distâncias observadas. Depois, o fato que o próprio
sistema se vingava perfidamente sobre aquele que o empregava, pois só os atalhos tendo
sido usados, apenas eles permaneciam praticáveis, e seria preciso um incrível acréscimo de
tempo para tornar acessíveis as estradas diretas inutilizadas. Os carcereiros têm seu amor
próprio profissional. Sentem-se responsáveis não somente pelo detido, mas pela casa, pelas
paredes, peias grades, nela porta, pela fechadura e pelas chaves. E, em conclusão, o
próprio carcereiro perde a liberdade.
A sua voz sonora enchia o aposento, Em todas as circunstâncias, torturava as pessoas. A
lentidão no falar (um dos seus inimigos chamava, a esse processo, linguagem de júri)
provinha do esforço de achar para os pensamentos a forma mais aguda. Por momentos,
tinha-se a impressão de que ele se estava ouvindo com complacência mas, na verdade, não
tinha essas fatuidades; apenas, a consciência de sua superioridade, consciência que lhe
entrara no sangue e que se manifestava em suas relações com os seres sob a forma de um
seco pedantismo ou de uma objetividade puramente lógica. Neste particular, era
extraordinariamente alemão - no sentido mais moderno da palavra. Quase todos os
oradores de talento são propensos a considerar seus auditores como menores, mas nunca
essa atitude é menos justificada do que quando em face de um autêntico menor. Quanto
mais se esforçava, mais sua impaciência aumentava ao sentir que suas palavras se
evaporavam. Não encontrar obstáculos, eis, por certo, o mais invencível dos obstáculos! Na
verdade, de que causa se julgava o campeão? Contra que pregava? Havia diversas coisas
em jogo: além da "aventura" do Taunus, existia a história da carta, o encontro com o velho
idiota na escada. Previa perguntas próximas que não se ousava formular, mas que não
desejava de modo algum que fossem apresentadas. Na véspera, Etzel ousara por em
dúvida a legitimidade de um juramento em num processo político, audácia espantosa,
verdadeira ruptura do cerimonial consagrado. Seus camaradas de aula estavam
apaixonados por aquele caso. Etzel assim o dissera. Pelo que conhecia do caso, parecia-lhe
descobrir uma desproporção odiosa entre a falta e o castigo, sendo um insignificante e o
outro inumano. O barão Andergast, naquela noite, voltou à conversa que bruscamente
cortara na véspera. "Coisa deplorável" - dizia ele - "que um caso de justiça se transformasse
em palestra leviana de rua; jogo perigoso, aquela contaminação da justiça pelo sentimento,
que redundava em subordinar o absoluto ao relativo. O direito" - continuava - "é uma ideia,
não uma questão de coração. O direito não é um compromisso arbitrariamente
estabelecido entre as partes, mas uma instituição sagrada e eterna, verdadeira e de valor
intangível desde que existem juízes que condenam os culpados e códigos que classificam
os delitos por artigos." Mas, que poderá ser aquela flama incrédula nos olhos do menino? A
lei instituída, eterna! Ei-lo que se agita na cadeira e morde o dedo com embaraço. Ouviu
murmurar baixinho que o Estado tinha mão direita e mão esquerda, — duas medidas, a
primeira para essa mão, a segunda para a outra, e balanças diferentes e, para cada
balança, diferentes pesos. Que existiria de verdade em tudo aquilo? Não fez a pergunta em
voz alta os olhos interrogavam. Aliás, não punha em dúvida o valor do direito como ideia,
apenas a equidade de uma sentença recente, pura questão de pensamento e raciocínio, da
qual ficava excluído o coração. "Você se meteu nisso, meu caro pai, mas é melhor não
tocarmos mais no assunto" - diziam seus olhos.
O barão Andergast talvez compreenda a linguagem silenciosa de que se faz interprete
aquele rapaz de dezesseis anos, porta-voz do espírito negativista e incrédulo de sua
geração, espírito contaminado pela doença e anarquia da época! Foi um acesso da cólera
acumulada que o levou aquele erro tático. Provas, exemplos, explicações - esforços vãos. As
trevas não se tornam luz porque se mobilizou contra elas um exército de argumentos. A luz
não pode convencer os que nasceram cegos, nem se tornar sensível aos que não querem
ver. Esse espírito novo de que tanto falam, de que se inspira, onde está ele? Neles próprios,
dizem. Não existe escola nova, nem velha escola. O homem, sua carreira, seu nascimento,
sua morte, nada mudou desde seis mil, sessenta mil anos. Ser efêmero e querer fazer de
cada lustro uma época, que loucura! Quanto menos valem para si mesmos, mais esperam
do tempo. É sempre a torrente que faz mover os moinhos, e eles imaginam haver
modificado seu curso porque a sua roda também gira nas suas águas.
Julgava vencê-lo ainda aqui, e excedia-se em virtuosismo no instante mesmo em que ele
e o seu despotismo estavam perto de soçobrar. Naturalmente, esperava algum dia ser
forçado a deixar-se afirmar no filho uma individualidade diferente da sua, e talvez esta
diferença sobressaísse bem cedo, porque, no seu ceticismo estereotipado, para isso estava
bem e de há muito tempo preparado: o medo engendra o próprio objeto que se teme. Mas
não era o despotismo do pai que experimentava a derrota. Era o do funcionário. Para o
barão Andergast, a função era vocação, e a vocação, missão. Era mandatário de um senhor
absoluto, de quem regresentava os interesses, em nome de quem agia e cuja onipotência
asiática não queria ver comprometida por um afrouxamento de instituições legais. Este
senhor, mesmo desaparecendo como pessoa real, permaneceria como símbolo E seu
servidor também era um símbolo e, como tal, não tinha história, nem antecedentes, nem
vida privada. Em face das obrigações profissionais, todo vínculo puramente humano
possuía apenas importância secundária. A imutabilidade, eis o princípio que o sustenta.
Sua época — o tempo absoluto, e a fé religiosa na hierarquia a que pertence transfigura-o
em monge, em asceta, e mesmo, se necessário, em fanático. Diziam dele —e seus colegas,
pelo menos, o glorificavam por isso — que o vigor da sua objetividade triunfara em
inúmeros casos (e casos dos mais difíceis e obscuros) e lhe trouxera aquele enorme
prestígio que nem a desordem nem as inovações administrativas tinham podido abalar.
Coisa essa bem compreensível, pois por que seria ele abalado por comoções exteriores, ele
cujos fundamentos interiores eram de tal modo inabaláveis?
 
 
IV

Agora, eram nove horas e meia. O barão Andergast tirou do bolso o relógio de ouro. Etzel
se ergueu, inclinou-se, deu boa-noite e, com o seu andar de fugitivo, encaminhou-se para a
porta. Aí, teve um movimento de hesitação. De olhos fixos na parede, indagou em tom
rápido e medroso: "Quem é esse Maurizius, meu pai?" O barão Andergast se deteve no
limiar do seu gabinete de trabalho. "Por que quer você saber?" - perguntou par sua vez,
medindo friamente o filho. - "É tão-sòmente..." - continuou Etzel - "é porque..." E parou,
sem dizer mais nada.
Interrogara também Rie. Ela tentara lembrar-se, mas sacudira a cabeça, depois. Nesse
mesmo instante, Etzel se prometeu interrogar outras pessoas, a começar por sua avó, em
casa de quem devia almoçar dois dias depois, como fazia todos os domingos. Recordou-se
que o homem de gorro de marítimo dissera seu nome como se tivesse consciência de ser
conhecido, mais ou menos como alguém que falasse: eu me chamo Bismarck, mas num
tom bem mais triunfante do que indignado. Ele ouvia, ainda, aquela entonação!
“Não é um assunto de que possamos falar um com o outro" — disse o barão Andergast e,
como uma torre inexpugnável, ergueu-se entre nuvens geladas.
"É preciso que eu escreva a ela" - pensou Etzel, andando de um lado para outro no seu
quarto. Tinha, em frente, a paisagem de uma campina; além, uma colina e, mais longe
ainda, o sol que se deitava; a inflexão da terra era semelhante à espinha de um gigante.
Sentiu uma comichão na garganta.
Sentou-se e, sobre uma folha que arrancara de um dos seus cadernos, escreveu:
"Acontecem muitas coisas sobre as quais venho refletindo muito. É terrível que não
conheça você. Ao certo, aonde está? É possível que, um dia, tome o trem e vá para junto de
você. Talvez durante as férias? Você, naturalmente, sorrirá desse projeto de menino. Se
deixar escapar a menor palavra, na certa meu plano fracassará. Por quê? — o que eu me
pergunto! Aliás, existe um mundo de indagações esperando resposta. Nesta idade, ter os
pés e os punhos atados! Talvez que, uma vez desfeitos os laços, se esteja para sempre
subjugado e paralisado. É isso, sem dúvida, o que eles querem. É indispensável que se seja
dominado. A você, também dominaram? Não quererá dizer-me o que devo fazer para que
nos possamos encontrar? Farei o que quiser, mas é preciso guardar segredo. Você deve
compreender por que. Ele sempre sabe de tudo. E imprescindível que esta carta
permaneça secreta. Ficarei adulto com o tempo, mas isso vem vindo com uma lentidão
desesperadora! Não conseguirão subjugar-me. Você pode acreditar: quando vi a carta no
vestíbulo, foi como se um raio caísse no meu cérebro. Gostaria de saber o que aconteceu.
Você me compreende, não? Sinto que foram injustos para com você. É verdade? Há ainda
alguma coisa de que preciso falar - é da abominável quantidade de injustiças que chegam
todos os dias aos nossos ouvidos. É necessário que você saiba que, de todas as coisas do
mundo, a injustiça é a que me causa mais horror. Não posso explicar o que sinto quando
sou testemunha de uma injustiça, comigo ou com os outros, não importa. É uma coisa que
me penetra até as entranhas. Sofro no corpo e na alma - é como se houvessem enchido
minha boca de areia e me sentisse asfixiado."
Deteve-se. Constatou, com um movimento de descontentamento, que estava escrevendo
ou a si mesmo, ou a uma criatura imaginária, nunca a uma pessoa real. Não podia nem
mesmo enviar a carta, pois lhe faltava o enderêço. Esquecera de olhar o reverso do
envelope que chegara de Genebra. Além disso, era de temer que seu pai fosse informado
daquilo como o era sempre de todas as suas ações e gestos. Criança, imaginava o pai
residindo no centro do universo, inscrevendo as faltas e os crimes de todas as pessoas da
cidade em uma mesa de mármore, com um estilete também de mármore. Ainda
subsistiam nele fragmentos dessa crença, e dali nasciam, em certos instantes, cenas
interiores e conversas imaginárias. Seu pai estava de pé, autoritário, no meia do aposento.
Sendo mágico, tinha o poder de passar através de portas fechadas. Era por causa daquela
fôrça que Etzel o apelidara de Trismegisto1  . Chamava-o assim toda vez que o imaginava
nas suas funções de justiceiro. Eis como o diálogo se desenvolvia: "Trismegisto: Onde estás,
Etzel? - Etzel: Aqui estou! - Trismegisto: Por que te escondes de mim? - Etzel: Eu não me
escondo, tirei apenas a minha máscara. - Trismegisto: Como! Ousaste apresentar-te sem
máscara na minha frente! - Etzel: Quando se está sozinho, pai, não se tem necessidade de
máscara. - Trismegisto: Mas eu estou vendo dentro de ti. E sinto-me surpreso, muito
surpreso, quisera não te ter vido sem máscara."
Dobrou a carta, colocou-a no envelope, escreveu como sobrescrito - “À minha mãe, não
sei onde" - e escondeu-a em um compartimeto secreto que tinha preparado na gaveta de
sua secretária. Nesse compartimento, achavam-se outros papéis, notas, reflexões, poesias
e, coisa preciosa entre todas, duas cartas que recebera de Melchior Ghisels. Permaneceu
sentado, o queixo nas mãos, os cotovelos na mesa. Deveria estar deitado havia muito
tempo, mas reinava em seu coração uma agitação que não podia acalmar. Da rua vinha até
ele um assobio prolongado. A chuva caía sobre as árvores. Levantou-se, deu uma volta no
quarto e parou em frente da prateleira onde estavam seus livros. Cada um deles era um
amigo, comprara-os um a um, com o próprio dinheiro, a não ser alguns que conseguira de
sua avó, e outros de seu pai. No lugar de honra estavam duas obras do seu muito querido
Melchior Ghisels, volumes bem encadernados, com dedicatória do autor. Melchior Ghisels
era um deus para Etzel. Cada frase dos seus livros constituía uma revelação. Somente os
jovens de dezesseis anos podem ressentir uma tal veneração por um autor. E unicamente
um espírito cujo ardor ainda está inteiramente concentrado é capaz de guardar um fogo
tão puro. A admiração que Etzel votava ao homem e à obra era ao mesmo tempo
impregnada de ternura. Ghisels, que tinha a profundeza do filósofo Kierkegaard, era o seu
profeta e o seu guia. Freqüentemente, antes de dormir, lia em grande recolhimento, muito
lentamente, retendo a respiração, uma meia página em um capítulo já lido dez vezes.
Depois, apagando a lâmpada, adormecia sorrindo. Não o conhecia pessoalmente.
Escrevera-lhe, uma primeira vez, para lhe pedir uma. dedicatória e, uma segunda vez,
muito intimidado, para indagar o sentido de uma passagem bastante delicada de um
magistral estudo sobre as idades da vida. O livreiro Thielemann, pai de Roberto, fornecera o
endereço. Assim que soube residir Ghisels em Berlim, Berlim se tornou para ele Lhassa, a
cidade santa. Tinha tanto ciúme de Ghisels quanto se pode ter de uma jóia de preço
inestimável e sentia grande satisfação em verificar que seus artigos eram conhecidos
apenas de um pequeno número. Um nome célebre talvez o esfriasse na sua admiração.
Fora Camilo Raff quem primeiro o introduzira naquele domínio de sublimes pensamentos.
No verão anterior, quando estivera doente, Camilo Raff viera visitá-lo e trouxera um livro de
Ghisels. Lera-o, em voz alta, durante toda uma tarde.
Tirou da prateleira um dos livros de Ghisels, deitou-se a fio comprido no assoalho, abriu o
livro e começou a ler. Somente nessa posição, assim estirado, conseguia ler com
recolhimento. No entanto, no fim de um momento, sua mão cessou de virar as páginas, a
fronte caiu sobre o braço, as pernas se distenderam. Estava dormindo. Despertou às duas
horas, olhou em torno com um ar assustado, ergueu-se de um salto, despiu-se
bruscamente, apagou a lâmpada e deitou-se no leito sem fazer o menor ruído. A cabeça já
agora enterrada nos travesseiros, murmurou palavras em que se misturavam sua confusão
e seu desejo de se desculpar. E, qual um garoto de dez anos, puxou a língua para si mesmo,
envergonhado e sonolento.
V

A generala Andergast pertencia a um desses tipos de mulher que estão a caminho de


desaparecer. Era uma mulher de setenta e três anos a quem jamais se daria tal idade.
Pequena, extremamente viva, um pouco nervosa. Possuía traços expressivos, golpe de vista
rápido, olhos brilhantes de curiosidade protegidos, por causa da sua enfermidade, por uma
viseira de papel verde. A voz era clara e fresca como a de uma moça. Havia vinte anos que
era viúva. Depois da morte do marido - que fora mau, tirânico e hipocondríaco - começara a
viver e fizera grandes viagens. Estivera na Síria, na índia e passara muitos meses em casa
de uma prima, na América do Sul. Tinha experiência do mundo e um gosto artístico que
atingia objetos muito diversos; sua ocupação favorita era a pintura. Apesar dos olhos
doentes, passava uma hora todos os dias, no seu "atelier" e pintava, com uma paciência
desinteressada, quadros no estilo dos impressionistas franceses, cheios de discrição e
elegância. Quando alguém falava ou desejava ver esses quadros, enrubescia como uma
colegial e desviava imediatamente a conversa. Não se entendia com o filho, procurador-
geral. A seu ver, ele era muito autoritário e a fazia lembrar-se do marido morto. Do mesmo
modo, ele desaprovava em silêncio, é verdade, sua liberdade de maneiras na sociedade, a
negligência com que administrava a fortuna e a renúncia em manter sua atitude de
respeitável senhora. Sentia medo dele e respirava mais livremente quando se despedia,
beijando cerimoniosamente sua mão. "Eu não estou todos os dias em estado de
comparecer diante do tribunal de ordem moral universal e de prestar contas; sou uma
natureza por demais imperfeita e muito tímida" - suspirava, quando ele censurava suave e
respeitosamente sua excessiva precipitação ou alguma infração das leis mundanas. Depois
que se separou da mulher, tinha contra ele queixas mais sérias do que o seu formalismo e
os seus princípios austeros. Não se haviam explicado um com o outro, mas o barão
Andergast não conservava a menor ilusão e tomava nota, como um censor, cada vez que
lhe regateavam aprovação, quer se tratasse de sua pessoa ou de seus atos. A mãe não lhe
perdoava a dureza com que condenara a mulher ao exílio. Tivera em mão todo o poder,
usara-o até o fim, é claro que observando escrupulosamente a lei, que estava do seu lado.
Se a generala sentira, mesmo antes do divórcio, alguma simpatia por Sofia Andergast, não
se sabia ao certo. Mas agora, certamente sim, pois, mesmo depois de Sofia Andergast ter
deixado a cidade havia muito tempo, a velha ainda falava dela com franca simpatia. Um dia
mesmo, no salão de uma das suas amigas, levantou-se com indignação contra a crueldade
de se impedir a uma mãe toda e qualquer relação com o filho e de se tornar irrevogável e
sem apelo uma medida tão impiedosa. As pessoas presentes ficaram bastante
atrapalhadas. Provocara mesmo um pequeno escândalo, é verdade que por causa da
observação infeliz de um jovem conselheiro que, fosse por miserável servilismo ou por ser
um rigorista nato, se excedera em palavras elogiosas exaltando a audácia e a segurança do
barão Andergast. O caso, bem entendido, chegara até o público e engendrara os mexericos
habituais. Foram principalmente aqueles termos "audácia" e "segurança" que puseram a
velha fora de si. Depois de exprimir suas opinião, de pé, os olhos faiscando, apanhou o xale,
a bolsa, e deixou apressadamente a reunião que, pasma, durante muito tempo não soube
se devia admirar a coragem da senhora ou sorrir das suas ideias absurdas. Dois dias depois,
o barão Andergast a visitava. Sem que se falasse sobre aquela cena, nem sobre outra
qualquer coisa, divórcio ou existência de Sofia, obteve da velha, após uma rápida
discussão, a solene promessa de que não pronunciaria em frente de Etzel o nome de sua
mãe e que sobre sua vida guardaria silêncio absoluto. A sua tática saíra vencedora.
Impusera-se de tal modo a ela, daquela vez que, até aquele dia, não rompera a sua
promessa, por mais difícil que isso fosse quando o garoto, sentado aos seus pés, tagarelava
e a interrogava, cheio de confiança.
Aos domingos, quando esperava Etzel, fazia os seguintes preparativos: uma mesa bem
posta em um aposento bem aquecido. Consigo mesma, a generala não tinha cerimônias.
Algumas vezes, esquecia de fazer as refeições: à noite, então, sentindo fome súbita,
mandava a criada que empregara para raspar a tinta das telas dos seus velhos quadros,
comprar alguns sanduíches, que comia, andando infatigàvelmente pelo aposento,
monologando e cantarolando baixinho. Etzel achava sua avó encantadora. Sòzinha,
continha mais mistérios que a maior parte das pessoas com as quais tinha contato. O que
chamava mistério era a norma pela qual avaliava os outros. Todo homem, mesmo o mais
humilde, o mais maçante, possuía alguma coisa de secreto e insondável que começava a
atuar no momento em que desaparecia do seu campo visual. Dava tratos à imaginação,
perguntando-se: que faz agora que voltou para o seu mistério? No entanto, o que o fazia
refletir mais era a atitude que cada homem podia ter quando na solidão.  Como aquele se
comportava? E aquele outro? Que fazia quando estava sozinho? Impossível saber. O olho
que observava aquele estado enigmático, fazia com que cessase pelo fato mesmo de que o
observava. Assim, Etzel se representava Trismegisto traçando grandes círculos com um
compasso sobre uma folha de papel de desenho e cobrindo a superfície com números.
Enquanto que sua avó, ele a imaginava desprezando as leis da gravidade e da estática,
movendo-se no teto de pés para o ar, ou então, quando estava na rua, e ninguém a
observava, subindo no ar como um balão este era o seu mistério, aquilo que ninguém podia
descobrir nela.

 
VI
 
No fim do almoço, Etzel fez aflorar a pergunta que desejava apresentar à avó. Pensava
muito no homem de gorro de marítimo, embora não mais o tivesse visto. Não era possível
que a avó conhecesse, precisamente, aquele nome. Ela confundia a maior parte dos nomes,
mesmo os das famílias que freqüentava e, assim fazendo, havia criado inúmeras confusões.
Longe de considerar isso como um defeito perigoso, estourava de riso toda vez que lhe
acontecia fazer uma dessas trapalhadas com famílias, pessoas de destaque social ou
celebridades de diferentes categorias. Cada dia chamava por um nome diferente a sua
criada Nanny, já em sua casa havia quatorze anos: era Berta, Elisa, Bebete, como lhe
passava pela cabeça. Porque, era sempre a criatura do instante e, praticando a mais amável
das perfídias, não se escravizava a nenhuma obrigação. Foi, pois, a ela que Etzel dirigiu sua
pergunta e, para se dar um ar indiferente, e para que a informação solicitada parecesse
insignificante, pôs-se a examinar de muito perto e com uma fingida curiosidade o saleiro de
prata, como se se tratasse de um navio em que quisesse fazer uma longa viagem.
Maurizius! Não desconhecia aquele nome. Largou a faca de sobremesa, pôs os cotovelos
nas ancas e, as pálpebras levantadas,(o que dava ao seu rosto uma expressão aloucada)
começou também a fixar o saleiro. Era um nome do qual se exalavam trevas. Pronunciando-
o, ou ouvindo-o, vinha à face um sopro gelado e um odor de mofo, como se se abrisse a
porta de um porão. Recordações de catástrofes surgiam na memória, visões desaparecidas
retomavam forma e automaticamente suscitavam o horror que antigamente traziam à
cidade, à região e mesmo ao país inteiro. Era tal como um pântano ressecado em que um
golpe de enxadão fizesse borbulhar, na superfície, o bafo de suas águas pestilenciais. "O
que tem você com isso, pequeno?" - perguntou ela, contrariada. - "Que interesse pode ter
isso para você? — uma história do outro mundo. Passaram-se já muitos anos... O que foi
que fez você pensar nisso?" Etzel viu a impressão que aquele nome causara em sua avó. "O
que foi"?" — murmurou, esfregando num gesto maquinal as palmas das mãos que estavam
entre os joelhos. — "Conte-me isso, vovó, e direi em seguida por que quero saber." —
"lmpossível contar", afirmou a generala - "eu já disse, isso vem de muitos anos... Espere
que eu estou calculando. Seu avô havia muito estava morto. Deve ter sido no ano da sua
morte, talvez um pouco mais tarde. Não muito, porque, dezoito meses depois, fui ao
Oriente. Faz, pois, dezoito anos, isto é: dois anos antes do seu nascimento. Como poderei
contar isso agora, mais de dezoito anos depois? E o que é que tanto interessa a você
nisso?" Em lugar de responder, após alguns minutos, Etzel perguntou, em vez ainda mais
baixa: - "Meu pai esteve envolvido? Envolvido, é estúpido que eu o diga, vovó, mas a
senhora sabe bem o que quero dizer." Seu olhar ansioso se fixava no saleiro, transformado
em um transatlântico que, nesse ínterim, se aproximou do cais pronto para receber os
passageiros. "Seu pai? Sim, eu creio..." - disse ela em tom hesitante - "Creio bem que sim.
Então, ele era apenas substituto, e me parece que foi esta história que o pôs em evidência.
Não me engano, é mesmo quase certo: ele se distinguiu então brilhantemente. Sem ele,
Maurizius teria sido finalmente absolvido." Calou-se, e sorriu com embaraço. Naquele
instante, parecia-se estranhamente com aquele neto mais jovem do que ela cinquenta e
sete anos.
Etzel, porém, insistia, insistia. Com uma consumada astúcia, fazia como se aquele
ardente desejo de saber que o dominava totalmente, aceso pela aparição de uma
determinada pessoa e tendendo para um fim ansiosamente pressentido, fosse apenas uma
vulgar curiosidade de menino. Aproximou sua cadeira, segurou a mão da avó que levou de
encontro à face, enquanto sua boca e seus olhos mendigavam. A velha sacudiu a cabeça
com espanto. "Escuta, pequeno, você está inteiramente doido" - disse, ralhando. - "Acho
que você tem ido ultimamente ao cinema às escondidas, e perdeu a cabeça olhando as
abominações que lá são exibidas. Dizem que há rapazes que, de vê-las, ficaram
inteiramente loucos. Aliás, cá entre nós, eu vou algumas vezes, mas não me deixo seduzir.
Bem, não me olhe com este ar desesperado, estou procurando o que ainda sei dessa
história. Apesar de estar com a melhor vontade do mundo, não me posso lembrar de tudo.
Um velho cérebro como o meu é como uma peneira com enormes buracos. Não quero
tentar saber de onde vem esse seu interesse. Saberia talvez de alguma coisa
desagradável... Pois bem, foi um caso terrível. Durante semanas, só se falou nisso. Todo
mundo se inflamava, a favor ou contra, em todos os cafés e em todos os círculos. Houve
ajuntamento no dia em que a sentença de morte foi conhecida e foi preciso vir a polícia.
Nessa época, eu estava em Hamburgo e recordo que o médico me proibiu de ler os jornais.
E mesmo muito depois do processo ter terminado e de Maurizius - qual era o seu primeiro
nome? Eu o esqueci ... - da pena de Maurizius ter sido comutada para prisão perpétua, o
caso ainda não estava enterrado. Inúmeras pessoas permaneciam firmemente convencidas
da sua inocência. Talvez unicamente porque, até o fim, ele afirmara a sua inocência. Além
disso, não se tratava de um criminoso vulgar. Não, certamente não! Era um sábio, e alguns
achavam que era alguém na sua especialidade. Outros, é verdade, diziam que era um
estouvado. Em todo caso, apesar da sua mocidade - creio que não tinha ainda vinte e seis
anos - possuía posição social e autoridade como historiador de arte. Tenho mesmo um
pequeno livro de sua autoria. É preciso que o procure, deve estar em um caixote, no porão.
Lembro-me agora do título: Da influência da religião sobre as artes plásticas no século
dezenove. Na época, tudo isso me interessou muito: a arte, a religião, eram assuntos
apreciados em salões. Quem tomaria semelhante homem por um assassino? Em verdade,
nunca pude acreditar que tivesse assassinado. Matar a própria mulher, e de surpresa! E em
que circunstâncias! É uma história muito atrapalhada. Uma história diabólica, uma história
lamentável, de que naturalmente não retive um só fato. Sei apenas que ele teve tudo
contra si, homens e coisas, espaço e tempo. Todos testemunhavam contra ele. Era um
encadeamento impecável de presunções, como dizem os juristas. E o mérito do seu pai foi,
ainda me lembro, estabelecer e fazer sobressair esse encadeamento. Sentia-se muito
orgulhoso com isso. Um fundidor não o fica mais, quando tem êxïto num trabalho difícil. E
seu pai, sem dúvida, podia vangloriar-se com mais razão ainda, pois o que fez me parece
bem mais delicado que a fundição de sinos. O velho conselheiro Demme, que não era um
asno, me disse um dia que uma boa exposição das presunções era para o criminalista o que
é, para o astrônomo, o cálculo exato da trajetória de um cometa. E eu compreendo isso.
Conseguir fazer com que um acontecimento fale mais a verdade do que o seu autor, não é
coisa insignificante."
Sentado perto, Etzel olhava a generala. O homem de gorro de marítimo se tornava cada
vez mais enigmático. Como não era possível que fosse o mesmo Mzurizius condenado a
passar a vida inteira entre as paredes de uma prisão, era preciso descobrir que laços uniam
um ao outro. Que desejava? Por que se punha no seu caminho, medindo-a com os seus
olhos vesgos? Desempenharia alguma missão? Teria uma mensagem a lhe transmitir? Que
mensagem? Quereria conquistar sua intercessão junto ao Trismegisto? Transformá-lo no
espião do Trismegisto? Tinha de que se arrepiar. Se existia mistério em alguma parte, ali
estava. Precisava estar atento, pronto para tudo. O menor indício tinha sua importância.
Enquanto meditava, sentado, seu rosto se cobriu de uma palidez semelhante ao reflexo da
madrepérola. Alguma coisa fremia noâmago do seu ser, e curvava os ombros como se
estivesse ameaçado de receber um golpe.
"Que tem você, pequeno?" - perguntou a avó num tom severo - "de há tempos para cá,
seu aspecto não me agrada." Levantou-se num movimento ágil, deu-lhe um pequeno
piparote na face, e quando ele ficou de pé deu-lhe o braço e foram para o salão. Aí,
acendeu um cigarro, ofereceu a Etzel com a mesma naturalidade como se fosse um amigo
íntimo que partilhasse dos seus hábitos, segurou-lhe no braço ainda mais fortemente e pôs-
se a atravessar o imenso aposento. - "Agora, continuou ela, confesse, que tem você? Por
que esse aspecto de derrota? Alguma atrapalhação, na escola? No outono passado, você
ainda tinha a esperança de ser o primeiro. Com tôcla franqueza, não dou muita importância
a isso. Os alunos-modelos não se tornam homens-modelos e os gênios não nascem entre
eles. O gênio é o trabalho, dizem os alemães. Talvez isso seja verdade em relação a eles...
Gosto muito de você, você é a meu único neto e sou sua única avó. Se você tivesse meia
dúzia de irmãos e irmãs, talvez escolhesse um deles de preferência a você, porque você é
um pouco sonhador demais. De qualquer modo, gosto muito de você, tal como é - ainda
que sinta medo, algumas vezes, quando olho para você".
Ela é assombrosa, pensava Etzel. Sorriu-lhe (eram quase da mesma estatura), deteve-se
bruscamente, e conservando um resto de sorriso para atenuar a gravidade da pergunta,
indagou: "Diga-me vovó, onde está minha mãe? E por que nada sei a seu respeito?” Seria
trabalho perdido querer encontrar a associação de ideias que o impelia tão violentamente a
fazer irrupção na alma serena da generala. Talvez proviesse do homem de gorro de
marítimo, daquela zona que beirava desde a narração da velha; talvez fosse um fato
perfeitamente natural que se revelou então como uma das colunas sobre as quais passava
a ponte do seu destino. Em todo caso, a avó ficara imóvel de pavor e mais uma vez o achou
de uma impertinência extraordinária. Em seguida, sua expressão traduziu extremo
descontentamento: decididamente, abusava da sua paciência e fora unicamente para
torturá-la que preparara todo aquele fichário de perguntas. Nada é tão detestável como
ouvir uma série incessante de perguntas explodindo diante de nós. Hoje é isso, amanhã,
aquilo, depois de amanhã, outra coisa - pouco importa... Mas, aquele súbito bombardeio
geral ultrapassa todos os limites. Além disso, comera demais e precisava repousar. Era
necessário conversar pouco depois das refeições porque, não fazendo assim, poderia sentir
opressão e não dormir durante toda a noite. - "Etzel é um rapazinho muito amável que vai
voltar para casa, não é mesmo? Você abraçará seu pai, e apresentará os meus
cumprimentos a Rie. Até logo!" Depois, transbordando de vivacidade e de eloqüência,
levou-o ao vestíbulo, agarrou-lhe a cabeça entre as mãos finas e delicadas, beijou-o
levemente na testa e nos olhos, e fechou ruidosamente a porta atrás dele.
CAPÍTULO 3
 
 
I
 
 
O DOUTOR RAFF aproveitou a ocasião de falar sobre Etzel com Roberto Thielemann.
Estava preocupado. Etzel se descuidava do seu trabalho de um modo inquietante. A sua
irregularidade e a sua desordem haviam dado lugar, nos últimos tempos, a muitas queixas.
Chamaram-lhe a atenção, mas isso não produziu o menor efeito. "É lamentável" - disse o
doutor Raff, andando no corredor com Thielemann. - "Não queria recorrer aos castigos, não
gosto disso. Que tem ele? Você sabe?"
O queixo pontudo de Thielemann se destacava, como um bico, sobre o colarinho
amarrotado. Sentia-se lisonjeado que o viessem inquirir e vexado por não poder dar
informações. Há oito dias mais ou menos que Etzel o evitava, como evitava todos os outros
— confessou com certa hesitação. — "Não me imporei a ele. Faça o que bem entender" -
disse, num tom rabugento. - "Talvez não me ache bastante elegante e, em casa, recebesse
ordens nesse sentido." "Deixe disso, Thielemann!" - disse Camilo Raff.
Roberto passou os dez dedos no seu topete avermelhado. Seu ar de desdém e o modo de
ser áspero eram destinados a dissimular seu despeito. - "É possível que o pai de Etzel tenha
sabido que eu não sou, do ponto de vista político, um modelo de santidade, pelo menos
dado o gosto do senhor barão..."
O doutor Raff reprimiu um sorriso. "Meu Deus", pensou ele, "vêde esses Marat, esses
Saint-Just!" - "Isso me penaliza muito, muito!" - acrescentou com o seu acento alsaciano. -
"Julgava que tivesse alguma confiança em mim. Sempre se abriu comigo, mas agora
mudou. E será preciso saber por que motivo. Thielemann, procure sondar Etzel na primeira
oportunidade, mas não insista demais. No momento, dado que ele não está com a razão,
você tem maior vantagem. Mas não lhe feche todos os caminhos." Fez um pequeno sinal de
cabeça e afastou-se. Visto pelas costas, pequeno, delgado, ágil, ainda possuía o aspecto de
um colegial. Thielemann o acompanhou com o olhar, contrariado. "Não me obstinar!" -
resmungou. - "Tem graça. Talvez seja necessário abraçá-lo, suplicar-lhe que me permita ir
vê-lo. Esperará muito tempo, ele e o Andergast dele, por quem está embevecido, posso
jurar ... "
Nesta idade, são as convenções imutáveis que regulam as relações mútuas. São
respeitadas tão mais estritamente quanto são estabelecidas tacitamente e sem
entendimentos prévios. Sua origem é tão frágil e obscura como é natural a obediência às
suas leis. Isto é: em conseqüência de um acordo tácito, Etzel não ia à casa de Thielemann.
Roberto é que o visitava, mas nunca sem ser convidado. Etzel algumas vezes fora ver
Thielemann, mas tão-somente na sua livraria. Uma ou duas vezes, Roberto aludira. a esse
estado de coisas, mas apenas para salvar as aparências. Na realidade, não desejava que
Etzel o visitasse e receava mesmo sua visita. Não tinha quarto próprio. O aposento em que
trabalhava e dormia, compartilhava-o com dois irmãos mais moços com os quais não se
entendia bem. Isso, porém, não era o pior. Sua casa era um verdadeiro templo de discórdia.
Davam-se brigas constantes entre seu pai e sua mãe. Ofereciam aos filhos o triste
espetáculo desses esposos que não podem ficar dois minutos no mesmo cômodo sem se
dizer coisas amargas e se bombardear com censuras. À ideia de que Etzel, um dia, pudesse
testemunhar uma cena daquelas, era-lhe intolerável. Isso explicava, por um lado, a
desigualdade de suas relações mútuas. Por outro lado, era também o sentimento da sua
inferioridade social, duplamente vigilante e acentuado em um temperamento já por si
inclinado à rebeldia. As doutrinas revolucionárias de um rapaz ainda muito jovem têm
freqüentemente suas raízes na discórdia que reina no lar. Em muitos meios burgueses, a
ternura que outrora aquecia o lar morreu há várias gerações. É indispensável ter um
coração excepcionalmente bem nascido para não se tornar vingativo depois de ter sofrido
uma fome de ternura jamais satisfeita. Um coração tão bem nascido, porém, é coisa rara.
II

Etzel descobriu no gabinete de trabalho do pai o requerimento do velho Maurizius. É um


pedido de indulto. Pedro Paulo Maurizius, antigo agricultor e proprietário, domiciliado à rua
do Mercado, 17, em Hanau, requer ao senhor procurador-geral que apóie um pedido de
perdão em favor do seu filho Oto Leonardo Maurizius, há dezoito anos e cinco meses detido
na prisão de Kressa.
Tal era a introdução. Etzel, com a consciência de se haver rebaixado ao papel de espião, e
com uma duplicidade de casuísta, procura justificativas para atenuar sua vergonha. Por
certo, reconhece o que havia de pouco glorioso nos meios que utilizara, mas justifica-se
invocando as circunstâncias que não lhe permitiam escolha. Revelou um faro puramente
animal. O homem de gorro de marítimo representava ali o mesmo papel que o espectro no
Hamlet. "Olha um pouco o que se passa em sua casa" - tinham dito os seus olhinhos
perversos e obstinados - "preste atenção e você verá belas coisas!" Toda vez que esta
advertência volta ao seu espírito, Etzel pensa na criatura que escrevera a carta da Suíça.
Gostaria muito de ler aquela carta. No íntimo, espera encontrá-la em uma gaveta ou em
uma pasta. "Preste atenção e você verá belas coisas!" Esta advertência o persegue. A mão
imperiosa do Trismegisto aparece na noite, verdadeira moldagem resplandecente nas
trevas. O símbolo da caixa de dinamite no porão torna-se cada vez mais real e ameaçador.
Não obstante, há advertências ainda mais importunas. Um fantasma de papel sai da
escritório do pai, carregado de autos e cadernos azuis e ocupa todos os aposentos. Há
muito que esses fantasmas habitam a residência dos Andergast, unicamente perceptíveis
aos ouvidos de Etzel, povo de sombras sem nome de quem ouve os passos e que apenas
seus olhos vêem - seus olhos que, em certas horas, percebem melhor as sombras do que os
corpos. Neste ponto, sua sensibilidade confina com a histeria. Por se ter ocupado sempre de
coisas abafadas e secretas, corre o risco de ver seu espírito invadido por visões obsedantes.
Pode, aliás, escapar a essas visões, ele que, ao nascer, trouxe consigo, Deus sabe de onde,
aquela centelha, ele que cresceu em um domínio onde, todos os dias, perversidades e
aberrações humanas diversas eram chamadas - infame multidão - a prestar contas, onde se
lançava a precária ponte da expiação sob os pés do criminoso. É provável que esses
fantasmas já o tenham cercado no berço, adormecendo-o com seus gemidos. Em seu mais
alto potencial, o destino impera naquela casa. Como querer que não o sinta, ele que não é
senão uma membrana entre a esfera das trevas e a esfera luminosa do mundo?
Ei-lo, pois, que caminha dirigido pelo olhar obstinado dos perversos olhos vesgos, através
dos aposentos da casa silenciosa, torturado por um nome, por um acontecimento
legendário e vago que se oculta, ameaçador, por detrás daquele nome como um viscoso
molusco atrás dos vidros negros de um aquário. Vai de quarto em quarto, e recomeça
sempre. Estamos no fim de março, a tarde já bem adiantada, e seu pai telefonou avisando
que não viria para casa. Hilda Sydow ia ficar noiva e o barão Andergast mandara levar ao
escritório o seu traje de rigor. Para Etzel o problema era ocupar Rie de modo a prender-lhe a
atenção alhures; com uma astúcia pouco comum, levou-lhe um capote rasgado e pediu que
o remendasse, apelando para sua habilidade; no mesmo momento, por força de insinuante
persuasão, obrigou-a a prometer que faria sonhos recheados, aquela noite, já que estariam
sozinhos. Sabe que Rie os preparará pessoalmente, não deixando que a cozinheira ponha a
mão neles. Tem a sua receita própria e se sente feliz por ver que o rapaz, tão sem apetite
naqueles dias, reclama uma gulodice. - "Bem, bem, eu farei o que você pede, pequeno." E
ei-la totalmente inofensiva por algumas horas. Etzel está de pé no salão, absorvido pelas
suas reflexões. Lá fora a noite desce e, através da janela, um pedaço róseo de céu flameja
como um estandarte. Sente-se atraído pela porta fechada do gabinete do pai; abre-a, entra
no aposento cheio de tapeçarias escuras e impregnado do cheiro nauseabundo de cigarros
apagados. Pára diante de uma pilha de processos. Ali estão, amontoados, com capas azuis
ou verdes, tendo cada um uma etiqueta branca e oval, com uma inscrição bem nítida.
Nunca ousara abrir nenhum e, agora, ei-lo que levanta a capa do primeiro. "Pedidos de
indulto" - lê na etiqueta oval, e o que o seu olhar encontra logo é o nome de Maurizius.
Acasos semelhantes são fenômenos naturais, elementares e normais.
Procurar-se-á inutilmente o tom humilde do solicitador nos argumentos do antigo
agricultor e proprietário. Pelo contrário, o que impressiona é o tom irônico e amargo.
Refere-se a velhos incidentes, já por ele assinalados e que se relacionam com pretensos
erros do processo. Facilmente se reconhece serem suas conclusões as de um profano. O
requerimento parece ter sido redigido sem o auxílio de um funcionário ministerial, talvez
porque os conselhos dos técnicos no assunto não tenham dado resultado anteriormente e o
autor, agora, queira chegar ao seu fim através da força convincente da lógica pessoal. Daí,
aquela linguagem sem prudência. No entanto, o que resulta em definitivo está muito
afastado da lógica; são afirmações apaixonadas, é a volta obstinada à mesma ideia, como
alguém que se batesse no escuro contra uma porta fechada, é o desejo violento e
convulsivo de se livrar do pelo de uma obsessão. Em dois lugares o nome de Waremme está
mencionado. Percebe-se que devia ser uma das testemunhas principais. O autor do
requerimento não ousa acusá-lo abertamente de falso testemunho mas, entre as linhas, lê-
se a acusação. Ainda mais, dir-se-á que se trata de uma coisa há muito conhecida e que
ninguém pensa negar, quando é bem possível que só exista na imaginação doentia do
autor. Se a Côrte se decidisse - assim se exprimia ele no requerimento - a verificar a
exatidão das declarações de Gregório Waremme, ainda agora, depois de dezoito anos,
encontrar-se-iam justas razões para a revisão do processo. Talvez, então, uma certa
senhora, funesta entre todas, de quem era inútil dizer o nome, aparecesse sob outra face.
As palavras "funesta entre todas" estavam sublinhadas duas vezes e seguidas por dois
pontos de exclamação entre parêntesis, detalhe que mostra por si só como o requerente
pouco entendia do modo de apresentar um documento oficial. Aliás, o alto magistrado
escrevera obliquamente com lápis vermelho: "Parecer desfavorável, Andergast." O antigo
agricultor e proprietário não tem a menor ideia da maneira como se pode tornar agradável,
pois, dez linhas adiante, declara-se disposto a tornar conhecido da Côrte o atual domicílio
da testemunha Waremme - que se tem por desaparecido - o que faz pensar realize ele
próprio suas investigações. Isto é: uma intrusão de diletante que não é de natureza a
conquistar a boa vontade das autoridades competentes.
Enfim, para concluir, chega a atingir uma retórica de teatro. Seria esse Pedro Paulo
Maurizius uma espécie de sectário religioso que vivesse na ingênua crença de que se pode,
por intermédio de uma solene adjuração em estilo bíblico, impressionar a magistratura
prussiana? Posto de lado o ridículo da pretensão, há, no entanto, nessa adjuração enfática,
um acento de inegável verdade - verdade sem dúvida inteiramente subjetiva - e, então,
Etzel se vê no mesmo estado de alma de Hamlet quando o espírito de seu pai lhe fala do
seio da terra. "Fala, pobre espírito" - diz ele com aflição e surpresa. As palavras se fixam em
seu cérebro. Sabe que jamais as esquecerá. Mesmo que o arrancassem do leito à meia-
noite para repeti-las, poderia recitá-las como um autômato, do mesmo modo como recitaria
uma passagem da guerra das Gálias, aprendidas de cor: "Por Deus e suas coortes sagradas,
é um inocente que há dezoito anos se consome enterrado vivo no túmulo de pedra da
prisão. Nunca cometeu a ação pela qual foi condenado, quaisquer que tenham sido as
aparências em contrário. Sua vida inocente foi partida ao meio em plena mocidade;
inocente, carregou o jugo expiatório - eis o que proclamarei bem alto e o que garantirei
sempre, enquanto tiver sopro de vida no peito."
"Fala, pobre espírito...
III

Foram insensatos os ardis empregados por Etzel, nos dias subsequentes, para despistar a
atenção dos que o observavam. Com o mesmo dispêndio de energia e astúcia poderia
continuar a ser um aluno exemplar, em lugar de cair em tal inércia que fazia seus
professores abanarem a cabeça a seu respeito. Mas, não se sentia capaz disso. A criatura,
que fora até certa hora de um determinado dia, parecia-lhe envelhecida e inútil. Produzira-
se em si mesmo um acontecimento para o qual lhe faltava um ponto de comparação e
medida. Poucos dias depois da conversa entre o doutor Raff e Thielemann, começaram as
férias da Páscoa: isso lhe valeu uma pausa durante a qual sua atitude pode
momentaneamente escapar à crítica dos que o cercavam. Restava-lhe somente enganar o
pai e Rie, dando a impressão de que nada escondia dos seus pensamentos e estava de bom
humor e alegre. Assoviava canções, quando atravessava o vestíbulo; ouviam-no cantarolar,
no quarto; encontrando Rie, ria satisfeito da vida, e se ela fazia uma pergunta, respondia
alegremente; estando com o pai, ouvia-o com um ar particularmente submisso e dócil,
apoiava-o com uma solicitude afetuosa e muda que se lia em seus olhos brilhantes.
Ouvindo-o responder: "Sim, obrigado" - "Não, obrigado" - como supor que escondesse
intenções tão opostas às do rapaz gentil, do filho modelo que hipocritamente
representava? Desempenhava tão bem o papel que a próprio barão Andergast, com sua
profunda experiência dos erros humanos e das súbitas reviravoltas do caráter, julgaria uma
estúpida calúnia a simples insinuação de que não estava sendo sincero. Todavia, se as
coisas aparentemente impossíveis não se verificassem, a vida seria coisa muito simples,
cada um de nós estando a todo momento preparada para a realização do possível. Por
enquanto, porém, tudo ainda estava em germe. Talvez mesmo o rapaz não soubesse muita
coisa do que com ele se passava. E isso que eu acabo de chamar hipocrisia, fosse
simplesmente o fruto da resolução tomada de resolver tudo por si mesmo, de esclarecer
únicamente com a própria inteligência o que permanecia obscuro e não se deixar levar por
nenhuma divagação sentimental, por nenhum inútil devaneio. Mas, apesar de todo o
esforço para alcançar a "liberdade de espírito" - como dizia, empregando ingenuamente
uma expressão técnica - não podia deixar de soçobrar, durante a aula, como numa água
profunda em que se afogasse, ele e todas as suas ideias encarregadas de o esclarecer.
Sucumbia finalmente sob o esforço que fazia para permanecer sentado num banco a
metade do dia e para se acomodar com uma presença que, bruscamente, não lhe concedia
mais espaço do que o volume de um grão de ervilha. Certamente, com aquela formidável
obrigação que germinava no seu peito, teria mais lugar num grão de ervilha da que
naquelas salas e no meio daqueles homens. Assim, acontecia-lhe seguir reto em frente à
orla de pedra da calçada, sem se afastar da linha reta, com o desejo de constranger desse
modo a atividade do pensamento, por isso que, presentemente, essa atividade não levava a
nenhum resultado. Contava as árvores da avenida: um número par significava: esperemos;
um número ímpar: não percamos tempo. Mas, esperar o quê? Não perder tempo, como
assim? Que era preciso fazer? Por onde começar? Como ir adiante? E, em primeiro lugar,
que se podia fazer? Quem estava bem informado? Com quem se aconselhar? A quem se
confiar? Não existiria uma única pessoa que não se pusesse a rir, a rir muito, e não
respondesse: - "Isso é insensato, pequeno. Que interessa isso a você? Que pretensão, a sua!
Sem dúvida, você enlouqueceu. Olhe para ver se o seu crânio não está rachado." Afinal,
seriamente: a quem se dirigir?... Pôs-se a imaginar que uma jovem mulher, de coração
muito nobre, compreendia o que queria e que era impelido lentamente a uma decisão com
inelutável necessidade. Mas, não conhecia nenhuma jovem nessas condições; o mundo que
conhecia, sob este aspecto, ainda estava despovoado de seus deuses. O que via, como
mulheres e como moças - sua avó, para ele, não tinha sexo - era tão desprezível quanto as
cabeças de cera das vitrinas dos cabeleireiros. Sob esse ponto de vista, era um mundo
miserável, de repugnante masculinidade, ao qual faltava Orfeu para obter de Hadés e de
Persefona. a libertação de Eurídice. É necessário, pois, a Etzel, um auxílio, um apoio, um
ensinamento, um socorro prático, sem o que tudo não será senão um disparate e terminará
antes mesmo de ter começado. E anda no quarto, comprimindo o peito com a mão
esquerda, a mão direita no bolso da calça sacudindo o canivete e as chaves. Reflete. Seu
cérebro é uma fornalha que elabora imagens, ainda que queira exigir produção de
pensamentos lógicos. Calcula que dezoito anos e cinco meses são duzentos e vinte e um
meses ou, aproximadamente, seis mil seiscentos e trinta dias. Atenção: seis mil seiscentos
e trinta dias e seis mil seiscentas e trinta noites porque, é preciso distinguir, os dias e as
noites são coisas diferentes. Chegando, porém, a esse ponto do cálculo, não vê e não
compreende mais nada - tem diante de si apenas um número que nada exprime e é como
se se encontrasse em frente a um formigueiro disposto a contar a multidão de formigas.
Quer-se se representar o que significam seis mil seiscentos e trinta dias para ter uma ideia
precisa. Imagina então uma casa com uma escada de seis mil seiscentos e trinta degraus.
Mas é muito difícil. Uma caixa de fósforos com seis mil seiscentos e trinta fósforos; uma
bolsa que contenha seis mil seiscentas e trinta moedas. Impossível. Impossível, também,
imaginar um trem com seis mil seiscentos e trinta carros. Um livro de seis mil seiscentas e
trinta folhas (é preciso que sejam folhas e não páginas, as duas páginas de cada folha
correspondendo então ao dia e à noite). Aí, consegue chegar a uma representação
concreta: vai buscar uma pilha de livros na prateleira; o primeiro tem cento e cinquenta
folhas; o segundo cento e vinte cinco, o terceiro duzentas e dez; nenhum ultrapassa
duzentas e sessenta, ao contrário do que imaginara; faz uma, pirâmide de vinte e três
volumes e só consegue reunir quatro mil duzentas e vinte folhas. Renuncia, então,
demonstrando certo pasmo nos olhos. E pensar ainda que cada hora vivida por ele era uma
que se acrescentava na prisão! A sua própria vida contava apenas cinco mil e novecentos
dias e, no entanto, como parecia longa, como decorria lentamente! Cada semana se
assemelhava a uma caminhada penosa na estrada e certos dias a ele se colavam como
uma pez de que não conseguia libertar-se. E veio-lhe o sentimento do que devia ter-se
passado com o outro, durante aquele tempo: enquanto dormia e lia, ia à escola e brincava,
conversava e fazia projetos, enquanto vinha o inverno e depois a primavera, e o sol brilhava
e a chuva caía, nascendo a manhã e caindo depois a noite, enquanto tudo isso acontecia, o
outro estava na prisão, exatamente durante o mesmo número de horas e durante as
mesmas horas, e sempre, e sempre, na prisão! Ainda não era nascido (que infinito mistério
aparecia de súbito naquela palavra: nascer!), e ele já lá estava, no primeiro dia, no
segundo, no quinto, durante dois mil duzentos e trinta e sete dias. Faz um gesto para se
libertar de duas mãos que o seguram pelos ombros como tenazes de aço; olha em volta,
furioso, impaciente, intratável; segura a régua de ébano; põe-se a bater compassadamente
como um regente de orquestra. É um dos seus divertimentos. Aos oito anos de idade. já
tinha predileção por aquele brinquedo. Agora, raramente recorre a ele, salvo nos momentos
de confusão ou de insuperável abatimento. Considera como atavismo aquela volta a uma
manifestação pueril, e logo depois cai num mal-estar indizível, como no dia imediato ao de
uma orgia. Seu papel de regente de orquestra consiste em berrar uma sinfonia da sua
própria invenção, mistura de todas as suas possíveis reminiscências musicais, em imitar os
pratos, os címbalos; os contrabaixos, brandindo com ardor e frenesi a régua que lhe serve
de batuta. Ele é a orquestra, é a música, é o regente, e a exaltação tumultuosa em que fica
com seus cantos e gritos acaba por atrair Rie que, descontente, convida-o a ficar calmo,
não compreendendo aquela crise de exaltação. Lembra que o barão Andergast pode entrar
a qualquer momento. Coberto de suor, o rosto escarlate, com a régua levantada na mão,
Etzel a olha como se não a conhecesse e, abatido e contrariado, diz: "Feche a porta, Rie, o
vestíbulo tresanda a cebola, vou sentir-me mal."
IV

No dia seguinte, às quatro horas da tarde (era uma quarta-feira), Etzel surgiu de
imprevisto em casa dos Thielemann. Levaram-no ao quarto de Roberto e, súbitamente,
achou-se em face do amigo estupefato que nem sequer o ouvira entrar. Fora uma sorte
Roberto estar fazendo seus deveres porque, nessas horas, dispunha do quarto só para si.
Era um enorme aposento de forma pentagonal, sem conforto, cujas janelas davam sobre
um estreito patio; em consequência, era tão sombrio que, à tarde, se fazia mister acender a
luz. Thielemann precisou de alguns segundos para refazer-se da sua estupefação; como
Etzel nunca viera à sua casa, via-se diante de uma situação nova, sem falar da mágoa que
guardava da inexplicável conduta de Etzel nos últimos tempos. Além disso, naquele dia,
reinava uma atmosfera tempestuosa em casa. O próprio Roberto não sabia ao certo o que
se passava; na mesa, os pais tinham permanecido sob silêncio glacial e nenhum dos três
filhos ousara dizer palavra; comido o último bocado, o velho Thielemann se levantara e
partira; sua mulher se fechara no quarto sem conceder sequer um olhar aos filhos.
Contrariando seus hábitos, o pai voltara decorrida meia-hora. Comumente, jogava bilhar, no
café até quatro horas e meia, indo depois para o trabalho. Naquele momento, estava no
pequeno salão que deixava uma ou outra vez para atravessar o corredor, batendo a porta, e
depois reinava novamente o silêncio. Roberto, porém, desconfiava daquela calma, certo de
que a cada momento a tempestade poderia explodir. Que fatalidade fizera com que
Andergast viesse precisamente naquele dia! Seguramente existiam dias melhores, dias em
que não se estava pisando em carvões ardentes. Não encontrava uma só palavra para dizer.
Atrapalhado, apanhou um mata-borrão, pôs a caneta atrás da orelha - hábito que Etzel
detestava porque aquilo o fazia parecer com um caixeiro, coisa, aliás, que já lhe dissera
várias vezes... Roberto, porém, não estava querendo ser agradável a Etzel. De modo algum
agiria como se não tivesse havido nada entre eles. Piscou os olhos e fitou com um interesse
apaixonado a lâmpada elétrica acesa que pendia do teto sem abajur, presa a um fio. O que
leu no rosto de Etzel, olhando-o de soslaio, o predispôs à indulgência. "Só o diabo sabe
como este pigmeu se arranja", pensou; "basta vê-lo para se esquecer o que se tem contra
ele." - "Aconteceu alguma coisa?" - perguntou, deixando errar o olhar através do quarto,
como para se certificar que não provocava uma impressão por demais desagradável, e que
o contraste com o ótimo quarto de Etzel era menos sensível a este último do que a si
próprio. "Aconteceu alguma coisa?" - repetiu. "Você está bastante mal-vestido para um
rapaz da sua condição social..." A sua voz já readquirira então uma entonação onde havia,
sem que quisesse, afeição e solicitude. Um pouco despeitado, constatou que suas relações
com Etzel eram bem diferentes das que mantinha com seus camaradas. Etzel retomou
fôlego. "Eu andei muito depressa" - disse, sentando-se um pouco intimidado em frente de
Roberto na sua mesa de trabalho. "Queria discutir certa coisa com você... quero dizer... se
você tiver tempo... não muito tempo, pois eu mesmo estou apressado, devendo estar em
casa às cinco horas. Apenas... é um negócio terrivelmente delicado. É necessário que você,
Roberto, prometa guardar segredo. Ninguém nos ouve aqui, não?" Lançou em torno um
olhar inquiridor; tinha nos cantos dos lábios um tremor de criança de quem se quebrou o
brinquedo e que julga, desde então, conhecer a maldade do mundo. Era sempre assim: por
mais experiência que tivesse adquirido e apesar do aspecto de homem amadurecido e
resoluto, ainda subsistia nele a criança de oito anos. "Vamos, desabafe" - disse Roberto com
menos segurança do que quisera demonstrar - "não existem espiões aqui." Etzel, as mãos
entre os joelhos unidos, refletia, franzindo as sobrancelhas. Não sabia como começar.
Inclinou-se para a frente e, baixando a voz incerta que só tinha um som viril nas notas
médias, disse que geralmente não gostava que rapazes falassem de suas questões de
família, assunto próprio de moças. Mas como, no momento, encontrava-se numa situação
complicada e não tinha outro amigo senão Thielemann, resolvera dirigir-se a ele. Em
verdade, nada queria além de uma resposta a uma questão de consciência. Não se cogitava
de meditar sobre um assunto, nem de gastar muitas palavras. Thielemann tinha apenas de
dizer sim ou não, espontaneamente, segundo seu instinto. Tratava-se da sua mãe. Tratava-
se das relações entre seu pai e sua mãe, ou antes, da inexistência dessas relações, o que,
naqueles últimos tempos, se tornara a causa de um cruel conflito interior. "Você
compreende, Thielemann?" - indagou com o olhar límpido e amável. Roberto estremeceu.
"Não compreendi nada" - murmurou, sacudindo-se como alguém que estivesse debaixo de
uma goteira. Seu rosto se ensombrou, não estando absolutamente preparado para
semelhante confidência. Sentiu-a quase como uma ironia, pois vivia torturado pela
discórdia existente na própria família e por um velho mal-estar que tinha acumulado nele
muito rancor. Seu pai e sua mãe, dois partidos opostos e cheios de ódio, desprezavam-se,
perseguiam-se, maldiziam-se, cada qual se esforçando numa cegueira desesperada para
conquistar a adesão dos filhos. Sentiu-se atormentado com a suposição de que Etzel
estivesse a par daquela situação degradante e que isso o houvesse encorajado a exibir
diante dele - de certo modo, por simpatia - as misérias de sua família. O seu orgulho de
pequeno burguês se revoltava. Assim, seus pensamentos, já desviados pelo mal, levavam
ao erro, de tal modo era grande a confusão de sua alma. No entanto, para desculpá-lo,
anotemos que não era particularmente inteligente, mas um bom rapaz e fácil de se
comover. Enquanto fitava Etzel, sondando-o, seus olhos tinham uma expressão famélica;
não podia esquecer o que se preparava em casa, mas enquanto procurava fixar a atenção
que a inquietude atraía alhures, sua desconfiança em relação ao amigo desapareceu e,
imaginando de súbito que era a primeira vez que Etzel falava daquelas coisas, sentiu-se
tocado até as lágrimas. - "Eu compreenderei, meu amigo, vamos, desabafe!” Etzel sacudiu
a cabeça. "Escuta" - disse ele - "não conheço minha mãe, nunca ouvi falar dela
diretamente, e é apenas por caminhos transversos que tive algumas informações, aliás as
mais sumárias. Ignoro mesmo seu endereço, sabendo unicamente que reside - ou residiu -
na Suíça, em Genebra. Se está doente ou com saúde, rica ou pobre, sozinha ou com outros,
nada sei. Por quê? Não sei. E não sei também por que não tenho o direito de saber. Sobre
ela, não faço a menor ideia. Nenhuma imagem permanece no meu espírito, porque há
muito tempo que desapareceu da minha vida e a lembrança que ficou - coisa, aliás, que
não posso explicar-me - apagou-se em mim. Não existe nenhum retrato, não tenho uma só
fotografia ou miniatura. É como se a tivessem riscado completamente de minha vida. Por
quê? Não posso deixar de me perguntar. Ela, por certo, não renunciou espontaneamente a
manter ligação comigo, mas o que foi que a forçou a isso? Uma falta cometida? O
sentimento de sua culpabilidade? Seria espantoso que, por uma razão dessas, uma mãe
abandonasse seu filho e o esquecesse. Portanto, meu pai deve estar envolvido nisso.
Interrogá-lo, porém, é coisa impossível - expulsar-me-ia do quarto sem delongas. Rie, de
nada sabe. Minha avó sente-se forçada ao silêncio por motivos que não conheço. As
conveniências sociais me impedem de indagar de outras pessoas. Estou diante de uma
conjuração, de um verdadeiro complot. No coração dessa conspiração ou no centro dessa
aliança, pouco importa, está meu pai. Foi ele quem tomou as medidas, é ele quem tem
todos os fios nas mãos. Tudo o que o embaraça, ele o exclui: qualquer curiosidade ou
reclamação, qualquer espírito de pesquisa. As coisas sucedem assim e ele quer que
sucedam assim. E, como é todo poderoso, as coisas realmente sucedem assim..." Etzel
sente tudo isso como uma injustiça. Pergunta a si mesmo se deve continuar a se submeter.
Por momentos, considera como um ato de obediência a uma ordem interior, o fato de
praticar uma brecha na represa erguida a sua volta. Isto também lhe parece indispensável
para restabelecer o equilíbrio que falta à sua vida. É então que Etzel faz uma comparação
estranha e engenhosa: até aquele instante, tocou piano apenas com a mão esquerda - sabe
perfeitamente que nunca ouvirá o desempenho simultâneo das duas mãos, mas desejaria
muito ouvir, um dia, os movimentos da mão direita para poder, pelo menos na sua alma,
reconstituir a sinfonia. A dificuldade residia nisso: não gostaria de enganar o pai. Não
queria proceder incorretamente, reconhecia seus deveres de filho. Para ele, obediência e
respeito não são - até certo grau - palavras vazias de sentido. O pai cuidou dele à sua
maneira, à sua maneira também lhe dedica certa afeição. Não é possível passar por cima
dele, é uma personalidade muito forte.
"Agora, Thielemann, diga-me" - Etzel se ergue com bastante rudeza, e brilha agora em
seus olhos a cintilação de bronze líquido - diga-me o que devo fazer. Você é um espírito
justo. Você sente e pensa de um modo justo, eis o essencial; diga-me: devo considerar-me
como vinculado, conservar-me pacientemente junto a ele até o dia em que lhe convenha
dizer-me: eis tal coisa e eis tal outra coisa; há isso e há aquilo, escolha, vai para a direita,
vai para a esquerda, fica no meio; em todo caso, você agora está informado? Não, isso
nunca acontecerá, essas palavras jamais virão aos seus lábios. Mas então, será necessário
não contar com ele, firmar-me sobre meus dois pés e fazer... sim... o que é preciso fazer...
Inútil falar disso por enquanto. Não sei ainda o que acontecerá, mas é preciso estar
preparado em casos dessa natureza. O que você me aconselha, Thielemann? Não reflita,
você conhece o brinquedo: mesa voa, pássaro voa... trata-se de levantar o dedo
imediatamente. Diga depressa sua opinião."
Essa exposição luminosa, medida e eloqüente, refletia toda a limpidez de espírito, toda a
audácia, toda a sinceridade de um rapaz que não admitia vacilações quando se tratava das
suas convicções morais. A pergunta talvez não fosse dirigida unicamente a Thielemann -
que, sem dúvida, era apenas o pretexto e um fortuito substituto de outros - mas a todos os
seus camaradas em geral, ao espírito de companheirismo, ao mundo circunjacente e, em
definitivo, a si mesmo. É provável que, no íntimo, fizesse esse cálculo: conseguindo levar
essa pergunta a uma fórmula precisa, não mais me poderei iludir. Faltava apenas coragem
para formular a pergunta, e era sem dúvida o mais difícil. Sempre que tinha coragem de
fazer nitidamente uma pergunta sobre um assunto qualquer, ganhava força e liberdade de
movimentos para realizar atos inteiramente estranhos àquele assunto. Eis o que, antes de
mais nada, é preciso salientar e imprimir em letras grandes, tendo em vista a complicação
dessa alma, rica de muitas camadas subjacentes, apesar da sua encantadora simplicidade.
Roberto Thielemann não se apressou em responder. Levantou-se vagarosamente, pôs-se a
andar com os pesados sapatos em torno da mesa, passou os dedos no seu topete
avermelhado, resmungou e tossiu antes de articular a resposta: - "Há o ponto de vista do
coração e o ponto de vista do cérebro. São duas correntes diferentes, e ignoro qual das
duas tem mais força. De certo modo, você nasceu envolto em seda. É mais difícil rasgá-la
do que pano de saco. Você é uma criatura surpreendente, mas arrasta consigo um monte
de preconceitos ou tradições, ou como você as quiser chamar..."
Etzel não o ouvia mais. Em silêncio, esboçava um sorriso indulgente e decepcionado.
Logo que o outro dissera "mas", ele começara a sorrir. "Desde que alguém me diz "mas",
não me serve mais" - pensava Etzel. Sentou-se, apanhou uma folha de papel e um lápis e
desenhou um cavalo com chifres de veado e que mantinha no ar as patas dianteiras.
"Thielemann se sentia no mesmo estado que na aula de grego, quando recebia uma nota
má pela sua composição. Sua fronte enrubesceu. - "Eu vou dizer a você uma "coisa" -
começou ele, inclinando-se para Etzel em tom de mistério - "eles nos dão de que comer,
tudo está nisso; não têm a menor ideia do que se passa conosco. Ficam atrasados e não
sabem o que os espera. É um sistema asqueroso, fétido, mas eles controlam a comida e
assim se tornam os donos da situação. Se você soubesse como eu gostaria de acabar com
tudo isso, assim!..." Agarrou o papel em que Etzel, sorrindo sempre, continuava a garatujar,
e rasgou-o em dois pedaços num movimento de cólera.
Nesse momento, ouviram-se os gritos agudos de uma mulher e, ao mesmo tempo, uma
voz de homem, furiosa e tonitruante. Apenas três segundos decorridos, uma porta bateu
com estrondo. Depois, um silêncio que durou o tempo de se respirar e, sem dúvida, a porta
se abriu porque a voz da mulher gritou mais forte do que antes, lastimosa e esganiçada,
quase se acabando à força de subir. O homem respondeu, de um pouco mais longe que da
primeira vez, com injúrias e ameaças terríveis. Num salto, Etzel ficou de pé, certo de que
houvera um acidente. Quis chegar até a porta, mas Roberto o segurou pelos ombros,
retendo-o, dizendo-lhe no ouvido, a fisionomia transtornada, rangendo os dentes, com uma
voz enrouquecida: - "Não se mexa ou é comigo que você se verá!" Acontecera, pois, o que
receava, o que quisera dissimular como se esconde uma erupção asquerosa na fronte.
Acontecera o que o humilhava tanto e obscurecia sua mocidade. Ele e Etzel estavam a dois
passos da porta. Roberto, segurando sempre Etzel pelos ombros, tinha o rosto tão pálido
que suas sardas apareciam quase negras como salpicos de lama sobre um pergaminho.
Acompanhando de longe a odiosa briga, Etzel abaixara os olhos. Compreendia a aflição do
amigo. Não ousava erguer os olhos sobre Roberto. O ruído, então, cessou bruscamente,
como se as duas vozes tivessem sido sufocadas sob um montão de areia; o silêncio durou
aproximadamente quinze segundos e, de repente, alguém começou a tocar uma valsa num
piano incrivelmente desafinado. Nada havia de extraordinário naquilo: era um dos irmãos
de Roberto que, no pequeno salão, ensaiava exercícios musicais. No entanto, aquela
sucessão - primeiro, os gritos infames; logo em seguida, aquela valsa tão mal tocada que
revelava no músico uma insensibilidade de animal - permitiu a Etzel ler na vida daquela
família como se lê em um livro aberto. Estendeu a mão a Roberto num gesto hesitante e
disse baixo: - "Agora, Thielemann, eu vou embora. Aliás, estou atrasado, adeus." Já estava
do lado de fora. Esgueirou-se medroso pelo corredor e desceu a escada aos pulos. "É
abominável que eu tenha saído assim, fugindo", pensava, andando sob a chuva na rua
Feyerlein, olhando o céu, a boca contraída -"mas se ficasse mais tempo, ele também não
teria ficado satisfeito."
Andava lentamente, abismado nos seus pensamentos. Ao fim de um instante, parando
bruscamente, as duas mãos comprimindo o peito, o coração pulsando com violência, disse
alto: - "Tudo isso não serve de nada, não conseguirei paz enquanto não for encontrar aquele
velho, lá, em Hanau."

 
V

Queria ir na quinta-feira, mas transferiu a viagem para a sexta, dia em que seu pai devia
comparecer a uma reunião. Disse a Rie que ia ao cinema, que seria bom deixar um
sanduíche na mesa, que voltaria tarde, mas, em todo caso, nunca depois de oito horas. Na
realidade, retornou quase às nove porque não encontrara logo o velho Maurizius. Somente
no fim de uma hora o descobriu, quando voltou pela segunda vez à sua residência. Dissera-
lhe um locatário que o velho estava no café da Lebre, no canto da rua. Etzel olhou através
das vidraças sem perceber aquele a quem procurava. Andou de um lado para outro, como
um soldado de ronda, diante da enorme construção da rua do Mercado, e já eram seis
horas, quando afinal viu o homem de gorro de marítimo, chegando. O aposento do velho
dava sobre o pátio; para atingir o primeiro andar, era necessário subir uma escada de
moinho que contornava exteriormente a casa, seguir um corredor de madeira até uma
porta que se abria diretamente sobre dois quartos sem nenhum conforto. Havia, perto da
porta, uma campainha sob a qual estava fixada uma placa de cobre com esta inscrição: P.-P.
Maurizius, antigo proprietário. Encontrando-o na rua, Etzel tirara o chapéu, mas ele não
prestara atenção ao cumprimento. Evidentemente, era raro que o cumprimentassem e,
sem dúvida, conhecia pouca gente na cidade. Etzel o seguiu no pátio, esperou que
desaparecesse no corredor de cima e, tomando o mesmo caminho, bateu levemente na
porta. Como nenhum ruído se fizesse ouvir, puxou o cordão e não ouviu o toque da
campainha. Bateu então com mais força e, afinal, o velho abriu a porta, medindo em
seguida e visitante com desconfiança. Sem chapéu, estava tão diferente que julgou um
instante não ser o mesmo homem; o crânio, pela sua estreiteza, lembrava uma coronha de
fuzil: através alguns raros fios de cabelo branco, via-se brilhar, como uma lâmpada elétrica,
o crânio avermelhado e repulsivo. Não é certo (e nunca se pode averiguar) que tivesse
reconhecido logo o rapaz a quem, no entanto, perseguira durante tantos dias e com tanta
obstinação. Seu semblante era indecifrável. Etzel disse: - "Eu queria conversar com o
senhor" - e o velho o convidou a entrar, sem dizer uma palavra, com um simples resmungo
e um gesto de mão. Logo que entrou, Etzel disse quem era. Maurizius fez um sinal com a
cabeça e não pareceu em nada surpreso - poder-se-ia acreditar que Etzel fosse um íntimo
seu. Indicou-lhe uma cadeira com o seu braço duro, tirou de uma gaveta uma caixa de
fumo e pôs-se a encher o cachimbo. Nada de notável na mobília do aposento, eram os
móveis de um pequeno burguês: mesa, cômoda, armário, espelho preso na parede; a única
coisa que chamava a atenção era um amontoado de jornais empilhados sobre prateleiras
de madeira, duas ou três dúzias de maços amarrados com barbante e que traziam fichas
com os seguintes dizeres em lápis azul: 1905-1906-1907, debates do primeiro dia, debates
do segundo dia etc... ecos da imprensa estrangeira, certificados judiciários, certificados de
psiquiatras etc... Havia também alguns folhetos. Tudo isso era a coleção dos impressos que
diziam respeito ao crime e ao processo do seu filho.
"Fiz mais uma vez um pedido de revisão" - começou nervosamente Maurizius, sentando-
se no sofá coberto por um veludo preto e enfeitado nas extremidades com pregos brancos -
"a fim de que a Corte não durma. Mas é como se estivesse cuspindo para o ar. Será que
alguém mandou você aqui? Ou veio espontaneamente? Com todos os diabos, o que é que
você vem fazer aqui? Nos primeiros anos, vinham inúmeras pessoas; mesmo em 1909, em
certos momentos, era como se fosse casa de médico célebre. Audiência todos os dias.
Escritores, advogados, espíritas, redatores de jornais.Vieram até da América. Tudo se
acabou há doze, treze anos. A calma também volta aos campos de batalha, quando a paz é
assinada, mesmo se essa paz é uma miséria. Afinal, que deseja você, meu jovem? Pelo que
posso julgar, você ainda é muito moço."
Sua voz lembrava o grasnar de uma gralha e, no entanto, não falava alto; por vezes,
lançava palavras isoladas como um cão enrouquecido que latisse, abrindo a boca tão
escancaradamente que os tufos das suas suíças, atrás dos quais apontavam os horríveis
lóbulos nus das orelhas, pareciam brotar diretamente da garganta. Etzel concordou ser
realmente moço, disse sua idade e acrescentou essa observação um pouco audaciosa: não
pudera convencer-se, até então, que o número de anos bastasse para preservar o mundo da
tolice e da vulgaridade. Maurizius lhe lançou um olhar descontente e, depois, teve um riso
interior que degenerou em uma prolongada crise de tosse, só terminada após abundante
expectoração. Etzel sentiu náuseas, mas dissimulou o seu nojo e, tentando dar à conversa
um tom mais cordial, pediu a Maurizius que fosse indulgente para com sua mocidade. Sem
que o percebesse, nascera nele o desejo de saber a verdade sobre o processo Maurizius ou,
pelo menos, conhecer os fatos, mesmo que não pudesse prometer intervir. algum dia, com
utilidade. Aliás, quem acreditaria na sua promessa, mesmo ela vindo a se realizar, mais
tarde? Em todo caso, depois de hesitar longamente, viera com a esperança de não estar
dando um passo inútil. Com uma indefinível mistura de falta de jeito, e gentileza
ingenuamente insinuante, disse ao que viera. Cruzou as pernas envolvendo os joelhos com
as mãos e, se sua avó o tivesse visto assim, naturalmente explodiria num riso sarcástico,
chamando-o como frequentemente fazia: "garoto iluminado."
O velho, porém, se abismou no silêncio. E seu cachimbo se apagou.

VI
 
 

Fora simples a vida que levara até ali. É verdade que se tornara cada vez mais sombrio no
decorrer daqueles anos durante os quais a luta que mantivera para provar a inocência do
filho se tornara sua paixão dominante. Do casamento com a filha de um pastor do vale do
Reno, tivera quatro filhos, três meninos e uma menina. Possuía terras perto de Gelnhausen,
de onde tirava a maior parte da sua renda, explorando a vinha. Levava, junto com a família,
vida despreocupada. No verão de 1900, no espaço de duas semanas, uma epidemia de tifo
lhe roubou a mulher, a menina e dois dos seus filhos. O mais moço, Leonardo, tinha então
vinte anos e estudava na Universidade de Bonn. Já era, sem dúvida, o preferido do pai, que
via nesse caçula uma criatura extraordinária. Mas, depois da catástrofe, quando Leonardo
ficou sendo seu único filho, essa simples preferência se transformou em idolatria.
Preencheu, ao mesmo tempo, o lugar de pai e de mãe. Inquietava-se quando passava um
dia sem saber notícias suas. Os pedidos de dinheiro do rapaz - pedidos que por certo não
eram moderados - ele os satisfazia sem objeção, embora nos últimos anos houvesse
diminuído consideravelmente a renda de suas terras, e a instalação de uma grande prensa
tivesse redundado em especulação infeliz - o que o obrigou, para fazer face aos
compromissos assumidos, a contrair pesadas hipotecas. Leonardo pouco se importava.
Certo de que faria uma brilhante carreira, adulado por camaradas e professores, bem
acolhido na melhor sociedade, sua atitude natural se tornara a de um vencedor cujo
sucesso desarma a todos. O pai não ousava desfazer-lhe a ilusão, em que estava, de dispor,
como filho único de um proprietário, de recursos ilimitados; ao contrário, tremia à ideia de
ter de lhe confessar um dia sua verdadeira situação. Todas as distinções que Leonardo
obtinha, todos os exames em que se saía bem, todas as relações aristocráticas que fazia e
que vaidosamente lhe anunciava, eram para ele objetos de satisfação como se tivesse
produzido um ser de gênio surpreendente. Os sonhos que tinha para o filho eram bastante
altos, e a própria ambição de Leonardo não ia tão longe. Talvez aspirasse apenas a uma
vida agradável e fácil, a entregar-se sem constrangimento aos seus gostos requintados e a
salientar-se em uma sociedade que tinha na mais alta conta. Logo depois de Leonardo ter
sido encarregado de um curso na Universidade, seu pai compreendeu haver chegado o
momento da temida explicação. Tratava-se de uma dívida de jogo de três mil e quinhentos
marcos que devia pagar dentro de vinte e quatro horas. Não tendo o dinheiro, o velho
Maurizius não o pode arranjar senão com grande dificuldade. Emprestou-o um banco
suspeito, a juros de usurário. Leonardo ficou estupefacto. O pai e o filho tiveram, então,
longa conversa. Durante toda a noite permaneceram sentados, bebendo uma garrafa de
"Liebfrauenmilch", sob o caramanchão atrás da casa. Maurizius acabou suplicando ao filho
que o perdoasse por não poder por-lhe aos pés as riquezas que tinha direito de exigir.
Realmente, a seus olhos, não era um sucesso sem precedentes ver aquele filho, com
apenas vinte e dois anos, chamado a uma cátedra da Universidade e considerada como um
luminar em sua especialidade? Dois meses depois, Leonardo ficava noivo e, no fim de seis
semanas, casava-se com Eli Hensolt, viúva de um rico fabricante de papel, que conhecera
durante uma estada em Kreuznach. O pai soube desses dois acontecimentos, noivado e
casamento, unicamente por intermédio de umas poucas linhas lacônicas. O espanto de
Maurizius foi tão grande, que chegando os recém-casados, depois da viagem de lua-de-mel,
para passar alguns dias em sua casa, parecia ainda não ter readquirido o uso da palavra. A
tal ponto mesmo que, quando se foram, não se despediu de Leonardo. Aproveitando a
ocasião para se proclamar ofendido, Leonardo se afastou, fingindo não observar a decepção
e a mágoa do pai. Na realidade, aquela afetuosa tirania há muito tempo lhe pesava. Depois,
sentia vergonha do pai, das suas maneiras, da sua rudeza, da sua falta de educação. Por
esnobismo burguês, e de boa vontade, lançava discreto véu sobre sua origem. É que não
necessitava mais do velho: sua mulher trouxera um dote de oitenta mil marcos - fortuna
que herdara do marido, não lhe tendo dado nenhum filho.
Eli Hensolt, já agora Eli Maurizius, chamava-se Jahn, quando solteira. No fim do século
passado, entre as famílias notáveis da Renania, ainda existiam os Jahn. O velho Jahn,
tabelião, ocupara nos últimos anos de sua vida o cargo de burgomestre em Remagen e era
considerado como um dos chefes do partido do Centro, ao qual prestara assinalados
serviços durante o "Kulturkampf". Não tivera, porém, a prudência de salvaguardar seus
bens: o progresso vertiginoso do país não o arrastara consigo - talvez fosse muito honesto
ou insuficientemente sagaz para, quando na abundância, economizar alguma coisa. Após
sua morte, ainda que não ficando inteiramente pobre, a família se viu com rendas
modestas, e caiu lentamente na obscuridade. Além de Eli, existiam dois outros filhos, um
rapaz - um tenente que morreu nas guerras da África - e uma segunda moça, Ana, que
tinha dezoito anos quando Eli se casara.
Diferentes circunstâncias provocaram a hostilidade de Pedro Paulo Maurizius para com
aquele casamento e alimentaram seu ódio em relação à mulher de seu filho. Em primeiro
lugar o fato de que os Jahn eram católicos. Embora ele próprio não fosse absolutamente
devoto (nem mesmo freqüentava o templo com regularidade), fazia questão de manter as
tradições habituais de sua família com esse puritanismo em que intervêm igualmente o
orgulho camponês, a obediência filial e a consciência de pertencer a um partido avançado.
No entanto, passaria por cima dessa renegação. Mas, o que era mais grave, era a mulher
não ser atraente, nem bonita, nem elegante, não possuindo nenhuma das qualidades que
impressionam; também não podia gabar-se de pertencer à boa sociedade, de ser nobre, de
ter relações brilhantes ou fortuna. Oitenta mil marcos! Que miséria, comparados com o
valor de Leonardo, dado seu futuro e o que ele prometia! Quinze anos de diferença: uma
mulher de trinta e oito anos e um homem de vinte e três, e esse homem era Leonardo!
Impossível passar por cima daquilo! Leonardo se perdeu, caiu nas malhas de uma
intrigante; apagaram nele toda a chama, compraram-no para rebocar uma embarcação
que soçobrava e, em breve, de sua esplêndida mocidade, só restarão ruínas. Era assim que
o velho julgava aquela união e, como acreditava firmemente que Eli houvesse raptado seu
filho, roubando-lhe sua afeição e condenando-o a uma solidão ignominiosa, cedo não
alimentou outro desejo, na sua alma exasperada, senão o da vingança. Se ainda queria
viver, era unicamente para esperar a hora do arrependimento e da volta do filho bem-
amado que havia perdido. Era com aquilo que contava, espreitando a aproximação de um
destino formidável e vingador, e esperando-o na sua sombria desolação.
Esse destino veio, sem dúvida, mas foi outro do que o esperado, e também o aniquilou, a
ele, Maurizius...
VII

A vida em comum do casal, nos dois primeiros anos, pareceu decorrer sem nuvens. A
propósito dessa união, os amigos de Leonardo sempre afastaram qualquer ideia de cálculo
vil. Protestaram com indignação contra todas as acusações dessa espécie e jamais
quiseram ver outro motivo, senão uma inclinação amigável, afeição e reconhecimento.
Diziam que aquela mulher, Eli, salvara aquele eterno indeciso, tão fácil de se extraviar, dos
perigos que o seu próprio caráter lhe preparava. Ela o controlava, diziam, e a ela
unicamente cabia o mérito de ter atenuado sua irritabilidade, sua necessidade doentia de
sociedade, sua constante agitação. Seria amor? Quem poderia penetrar aquele mistério?
Quem saberia distinguir, em uma tão surpreendente união, a parte do amor verdadeiro e a
da estima, do conhecimento recíproco e da prática das qualidades necessárias a uma
existência harmoniosa? Em primeiro lugar, que era o verdadeiro amor? Um fantasma
imaginado pelos leitores de romances, a quem o tempo tirava os véus cintilantes e
enganadores. Em todo caso, sua mulher lhe devotava abnegação total, fé profunda,
constante solicitude. Talvez fosse aquilo o verdadeiro amor e se seu amor de marido não
era tão verdadeiro, não tinha grande importância. O certo é que Leonardo, durante esse
período, publicou muitos dos seus mais apreciados trabalhos. falava-se de uma missão
oficial da qual seria em breve encarregado: uma viagem de estudos na Espanha.
No entanto, a partir de um determinado momento, a opinião da sociedade sobre o casal
Maurizius se modificou, circulando ruídos de discórdia. Diziam que Eli soubera das relações
de Leonardo com uma dançarina. Essas relações, é verdade, tinham precedido de um ano o
casamento, mas uma criança havia nascido, uma menina, e um dia a mãe da criança, na
miséria, lembrara a Leonardo o cumprimento de seus deveres paternos. Leonardo nada
falou à mulher, que ignorava tudo, mas iniciou a cunhada no segredo do seu passado. Ana
Jahn se encarregou da pequena criatura, então com dois anos de idade, e, com a aprovação
de Leonardo, levou-a para a Inglaterra, deixando-a em casa de uma amiga e parenta
afastada, diretora de um centro de governantas, onde Hildegarda Koerner - nome que a
criança recebera no batismo - ficou residindo e foi educada. Coisa curiosa, Leonardo
gostava daquele pequeno ser sem mãe (porque a dançarina, tuberculosa, morrera em
Arosa), gostava com uma ternura exaltada e romântica, ainda que não a conhecesse
absolutamente. Foi um sentimento que aumentou sempre nele e jamais se extinguiu. Ana
Jahn o compreendeu e alimentou, enquanto Eli, depois de ter sido informada por uma carta
anônima, e depois pela confissão tardia do marido, fez ouvir protestos ciumentos e não
tolerou que, em sua frente, se pronunciasse o nome da criança. Desde este instante, Ana
Jahn parece indissoluvelmente ligada à vida de Leonardo. Após a morte da mãe, Ana
deixara Colonia, onde tinham vivido juntas, e passando alguns meses em diferentes
cidades, fora para Bonn, onde freqüentara assiduamente a casa da irmã e do cunhado. A
influência nefasta que exerceu sobre Leonardo, sobre sua vida conjugal, fez-se sentir desde
os primeiros dias ou mais tarde?
Dividiram-se as opiniões sobre esse assunto. Não seria preciso ser profeta para prever que
tudo aquilo acabaria mal. Há conjecturas que são banais (embora estivesse em jogo uma
personalidade que, a princípio, se manteve apagada e que levantou o curso dos
acontecimentos acima da banalidade ordinária). A extraordinária beleza da cunhada não
podia deixar indiferente um homem como Leonardo. Ana Jahn, então, estava em pleno
desabrochar, deslumbrava. Os estudantes organizavam serenatas e enviavam-lhe versos, os
oficiais da guarnição faziam-se apresentar às famílias que ela freqüentava. Quando
aparecia na rua as pessoas estacavam, boquiabertas. Foi o motivo das conversas durante
um certo tempo, tal como uma grande cantora ou uma grande atriz. As moças diziam: -
"Eu vi Ana Jahn", como se estivessem falando de um encontro sensacional. Eli, abrindo sua
casa à irmã. devia ter pensado em tudo isso, mas fora ela própria quem aconselhara a Ana
que fixasse residência na cidade, porque não queria que a moça permanecesse sozinha e
abandonada no mundo. De início, Leonardo -,:. conservou na defensiva. Achava que Ana era
antipática, que o irritava. Às vezes, Ana o tratava com uma ironia tão sutil, que não a
ousava tomar como ironia; e tão insultuosa, que sucumbiria de vergonha caso confessasse
a si mesmo tê-la compreendido. Exprimia-se mais claramente com outras pessoas quando,
por exemplo, rindo-se, lastimava-o por não ser senão um pequeno colegial que vivia sob a
vigilância de uma aia severa. Cedo, aliás, o abismo entre os dois esposos se tornou visível.
Fora a natureza que o criara e o ampliava. Os estranhos perguntavam, incidentemente, se a
criatura que tinham visto de braço com Leonardo era a mãe do professor Maurizius. —
"Não, respondiam com um sorriso, é a sua mulher." - "Ah!", diziam então os que
interrogavam. E ficavam perplexos, em silêncio. Aquele malévolo termo de "colegial" não
era totalmente injustificado. Eli controlava todos os passos do marido, vigiava tudo:
encontros, horas de trabalho, leituras, correspondência, conversas, despesas. Não era
avarenta, dava-lhe mesmo presentes caros, mas nunca o deixava dispor de somas
importantes; era muito inteligente para não ver o erro que cometia agindo assim, mas um
instinto mais forte que tudo a forçava a mantê-lo subjugado durante o máximo de tempo
possível. Não se dominava mais - saindo, Leonardo devia dizer exatamente a hora em que
ia voltar. Com o chegar da hora marcada, seus olhos não largavam mais o mostrador do
relógio e, passando os minutos, sentia-se presa de um tremor febril. Durante essas esperas,
percebia que estava envelhecendo. Sim, sentava-se em frente do espelho e via que estava
envelhecendo. Procurava confirmação nos olhos dos outros e, quando a encontrava, repelia-
a, horrorizada. No entanto, já se falava muito a respeito de Ana Jahn e de Leonardo. Tinham
sido vistos juntos em um museu, numa excursão, em casa de uma amiga. Falava-se deles.
Eli compreendeu o que ia desabar sobre ela. Aparentou não perceber nada enquanto lhe
restou uma centelha de domínio sobre si mesma. Reconheceu que o marido lhe escapava
dia a dia, e agarrou-se a ele com a energia do desespero. E tudo isso era somente o
começo.

VIII

Durante esse período, como uma aranha do centro da sua teia, o velho Maurizius
esperava pacientemente. Pagou um detetive, por algum tempo, para que lhe trouxesse
notícias do filho e o informasse do que se passava em sua casa. Foi assim que soube da
história da pequena Hildegarda; mandou seguir suas pegadas, tentando apoderar-se da
criança a custa de sacrifícios inimagináveis, pois, baseado na sua astúcia de camponês,
julgava que assim teria um trunfo nas mãos. Fracassou, contudo. Ouviu falar de Ana Jahn, e
fez com que a vigiassem. Ouviu falar de uma desinteligência entre Leonardo e sua mulher,
de desarmonia crescente, de cenas íntimas, do escândalo que se anunciava formando
nuvens ameaçadoras. Estava satisfeito. Tudo ia bem. Mas, quando em uma noite de
outubro, Leonardo apareceu em sua casa, imprevistamente - viera no automóvel de um
amigo dizer-lhe adeus, segundo dizia, antes de partir para longa viagem - o velho se
espantou com a consternação que viu estampada no rosto do filho. Teve imediatamente a
impressão de que aquela visita de despedida, em hora tão importuna, era simplesmente
um pretexto. Por que tanta deferência após três anos e meio de esquecimento total? Nada
do que falara tinha sentido. Abordara assuntos atrapalhados e confusos para, afinal, acabar
dizendo que precisava de dinheiro. Não ousava exigir nada, aludia somente a algumas
pesadas dívidas contraídas. Mas, quando notou a impassibilidade do velho, renunciou a
qualquer nova tentativa, a qualquer dissimulação, e pensou apenas em sair o mais
depressa possível. O velho não o reteve. Mesmo que Leonardo se houvesse prostrado a seus
pés, não lhe teria dado um só vintém, enquanto não o ouvisse dizer com a própria boca: -
"Separei-me daquela mulher." Representou admiravelmente sua hipócrita comédia,
acompanhando friamente o filho até a porta, sem lhe estender a mão. No entanto, era esse
mesmo homem que, após a condenação do filho e enquanto cumpria a pena, juntava para
ele toda uma fortuna. Não esperava ver solto o filho que idolatrava, nem sabê-lo de posse
daquele capital acumulado com tanta perseverança; contudo, organizou a vida e tomou
medidas como se pudesse contar sobre aquilo com toda segurança. Conseguira vender
suas terras em condições favoráveis: depois do pagamento das hipotecas, ficara ainda com
trinta e cinco mil marcos. Tinha, por uma previsão quase incompreensível, depositado
aquela quantia em um banco (dizem que os possessos se revelam extra-lúcidos na
perseguição do fim único que os obceca) e, com a própria manutenção, só despendia uma
porção ínfima da renda. Levava uma vida de indigente, seu quarto não era mais do que
uma toca. Usava, durante anos, a mesma roupa. Suas refeições consistiam em um pedaço
de queijo, salsichas e pão. Assim, ao fim de dezoito anos, os trinta e cinco mil marcos se
haviam tornado sessenta mil francos suíços. Estava com setenta e quatro anos e nem
mesmo lhe ocorria a ideia que pudesse morrer antes que Leonardo deixasse a prisão. A
morte, para ele, não só nada possuía de terrificante, como era desprovida de qualquer
realidade.

IX
 
 
 
Foi somente mais tarde que o painel desse passado se compôs para Etzel e, assim
mesmo, com a ajuda de numerosos detalhes que conseguiu pouco a pouco. Depois, teve
muitas conversas com Pedro Paulo Maurizius em lugar previamente combinado, perto da
casa do barão Andergast. Em sua ingênua senilidade, e porque todos os seus planos e
tentativas houvessem até então fracassado lamentavelmente, o velho via no rapaz uma
espécie de mensageiro divino; esquecia a ridícula desproporção de idade que existia entre
eles e era mais loquaz com Etzel do que fora com qualquer outra pessoa naqueles últimos
vinte anos. Isso, porém, não o impedia de se conservar prudente. Mas o rapaz o tinha, como
se diz, enfeitiçado. Maurizius não julgava impossível vir a ser auxiliado por ele, mas, ao
mesmo tempo que se julgava bastante esperto para o lisonjear, deixava-se sondar por
Etzel, a quem comunicava importantes fragmentos da documentação que cuidadosamente
revira. Embora Etzel adquirisse, assim, um conhecimento bastante preciso dos
acontecimentos, das situações respectivas, e envolvesse com seu olhar virgem como a
água da fonte o jogo dúbio dos interesses, compreendeu, numa grande intuição, como era
sinistro e demoníaco o mundo que condicionava esses interesses e que, no seu conjunto,
lhe parecia ainda mais indecifrável que as ações e os gestos das criaturas. Era um mundo
muito vil, totalmente diferente de tudo o que até então lhe parecera ser o mundo, e
precisamente por isso era que permanecia tão indecifrável. Por esta única razão, Etzel
evitava qualquer dedução prematura e se comportava como aluno dócil que fizesse um
estágio como polícia.
Quando o velho emergiu da prostração letárgica em que caía, como um ébrio em sua
bebedeira, todos as dias e todas as noites, para decifrar o passado e para dar-lhe, à força de
meditação, uma fórmula compreensiva, seu primeiro cuidado foi esvaziar o cachimbo e
enchê-lo depois, enquanto tremiam suas mãos ossudas e amareladas. Pôs-se então a falar.
As pessoas que passaram parte da vida a refletir sobre um único assunto, excluindo todos
os outros incidentes e relacionando tudo com aquilo, supõem em cada ouvinte um
conhecimento disse assunto tão completo quanto o seu e zangam-se quando percebem
que estão enganados. No começo, não compreendendo a conversa disparatada do velho
Maurizius, Etzel o interrompia sem medo, perguntando: - `"Como, faça o favor? Quem, por
favor?" O velho, então, agitava o braço direito num gesto de defesa, levantava-se, ia
lentamente até a prateleira dos jornais, tirava um pacote e atirava as folhas amareladas em
cima da mesa. Depois, com as mãos nos bolsos da calça, andava de um lado para outro do
quarto. A noite veio. A toca que lhe servia de morada não possuía luz elétrica mas, sobre a
cômoda, havia um candeeiro. Acendeu-o. Apagou-o ao vê-lo fumegante, cortou a mecha,
acendeu-o novamente, servindo-se do braço duro apenas como reforço; resmungava a
propósito do tubo rachado e, durante todos esses preparativos, Etzel o olhou e ouviu com
atenção intensa. Suas palavras se tornaram mais nítidas, a tosse e as expectorações
diminuíram. Quando afinal o candeeiro iluminou o quarto, não dando mais luz do que uma
lanterna de estrebaria, mostrou os jornais empoeirados e disse que ali se podia ler toda a
história do começo ao fim, a partir do tiro de revólver até a prisão, de 24 a 29 de outubro
daquele ano memorável...
- "Você poderá tirar uma conclusão, rapaz. Se quiser, também poderá acreditar em tudo o
que está impresso No momento, todos acreditaram, a comissão, o juiz, os repórteres, os
leitores. Repetiram ou copiaram, um após outro. Ninguém se perguntou: como poderia ele
ter atirado nela, se ainda estava perto da porta do jardim? Isso foi confirmado por
testemunhas. Peço que não esqueça isso, meu rapaz: perto da porta do jardim. A dezoito
passos de distância. À noite, às sete horas menos um quarto, no dia 24 de outubro -
portanto, já estando escuro. Peço que não esqueça isso. Você poderá, já noite, a dezoito
passos de distância, atingir um homem em pleno coração com um tiro de revólver? Não;
quando ela foi atingida, correu para casa. Eis aí o que Waremme afirmou sob juramento.
Um tiro nas costas, nas costas e em pleno coração. Ao lado disso, o depoimento da criada,
Frida Weisz: Eli foi, imediatamente, da porta da casa até junto dele, Leonardo. Coisa muito
natural. Preste atenção nisso: ele chega de uma viagem, tem sua mala de couro na mão
esquerda. O homem volta de uma viagem, note bem. Sua mulher o espera. Que vai fazer
sua mulher? Vai ao seu encontro. Não? Você acha que não? Você não acha que a mulher vai
para junto dele? Bem. Apesar disso; ele atirou nas costas. É uma inverosimilhança que salta
aos olhos, não é verdade? Os autos, porém, silenciaram. "Todos se pronunciaram.
Pronunciam-se contra ele. Tudo fala contra ele. Tinha o revólver na mão, dizem, e quem foi
que viu? Waremme. Viu e jurou que viu. Waremme jurou mesmo que o viu erguer o revólver
e apontá-lo. E onde estava Waremme? Onde? Pergunto eu a você, meu rapaz. Segundo
suas palavras, debaixo da acácia, precisamente a três metros de Eli. O telegrafista
Kleimnichel, que entrou no jardim imediatamente após a detonação, o que foi que afirmou?
Que Waremme estava no ângulo da casa. Estava em frente dele e não atrás - peço que você
observe isso. Logo, ele lá estava desde antes. Mas a Corte pensou que Kleinmichel se
houvesse enganado. Era preciso que Kleinmichel se enganasse, sem o que a história não
daria certo e o laço não poderia ser apertado. Ou então, Waremme teria jurado em falso... E
que fora Waremme fazer no jardim? As seis horas e trinta e cinco, ainda fora visto no clube.
Inúmeras pessoas, completamente insuspeitas, concordaram nesse depoimento. Do clube à
porta do jardim existem, exatamente, mil duzentos e quarenta e três metros. Você convirá,
meu rapaz, seria preciso correr muito para fazer mil duzentos e quarenta e três metros em
dez minutos. E como Waremme explicou isso"? Explicou do seguinte modo: Ana Jahn lhe
telefonara para que viesse imediatamente, pois estava inquieta e sentia medo: vultos
suspeitos rondavam a casa. Vultos suspeitos, um quarto de hora antes de um assassinato,
não é formidável? Pura alucinação, não? Mas, eis Waremme que desabala, na carreira,
como se o diabo o perseguisse, e como se não achasse meio de encontrar um veículo em
toda a cidade, hein? É verdade que ninguém o viu correr numa avenida muito freqüentada,
fazendo um lindo tempo. A pequena cerração que caía naquele dia não impediria ninguém
de ver semelhante colosso correndo como um veado. Você já viu semelhante reunião de
contradições? E depois, o juiz, eis um que nunca se deixou atormentar por dúvidas. Ah!
Certamente, não! Foi diretamente ao ponto de chegada, sem desvios. Esse ponto, ele o
conhecia antecipadamente, só lhe restava achar o caminho. Tudo andou
maravilhosamente; os motivos de acusação eram tão numerosos quanto grãos de areia no
mar; a trama não tinha a menor falha. É um detalhe insignificante, o fato de o pseudo-
assassino negar o crime. Não existe nenhuma razão para que pessoas que estão tão
seguras das suas convicções se perturbem por tão pouco. Mas, talvez... quero dizer... afinal,
não se conserva aquela serenidade angélica do primeiro ao último momento, oh!, público!
oh!, tribunal supremo! Não se repete com aquela angélica obstinação duas mil vezes
seguidas: - "Não fui eu quem fez isto." Dizer e redizer incessantemente ao juiz, ao
advogado, ao pai, aos amigos, aos jurados, e finalmente na própria prisão: - "Não fui eu
quem fez isto." ele não devia ter fugido, concordo. Tolice enorme! Fugir como um escolar!
Esconder-se dois dias em casa de uma mulher da vida, ir a Cassel, depois a Hamburgo,
raspar o bigode - é verdade que, antes, já raspara uma vez o bigode - alojar-se nos hotéis
com um nome falso! Perdeu a cabeça, não distinguia mais o branco do preto. Quando o
prenderam, sob acusação de assassinato, sentiu-se como que fulminado. Exclamou: -
"Como, senhores, eu!" Preste bem atenção nisso, meu rapaz: eu, gritou ele, eu! - como
alguém que despertasse. Ignora completamente o mandado de prisão e o que dizem os
jornais, e foi justamente por isso que ainda o acusaram de ter representado uma comédia,
como um descarado. Quando alguém tem a consciência pura, vem entregar-se
espontaneamente e não fica vagabundeando durante uma semana pelo mundo, não é
verdade"? Tudo isso é sabido, é claro como o dia. Todas essas pessoas são pequenos
deuses. Percebem a relva crescer".
Maurizius se deteve, ofegante. Uma terrível crise de tosse impediu que continuasse. Etzel
se ergueu e, quando a horrível tosse rouca se acalmou, olhando a ponta dos dedos, disse: -
"Necessariamente havia dois revólveres."
Maurizius o fitou, boquiaberto. "Como?" - gaguejou. Surpreso com seu espanto, Etzel
declarou: - "A mulher foi atingida nas costas; ela se encaminhava para ele, ele para ela - foi
assim que disseram. Ele tinha um revólver na mão. Quem, pois, tinha o outro revólver?"
O velho tornou a fechar lentamente a boca como um quebra-nozes, pondo-se a morder os
lábios. Depois de algum tempo, com o ar de sombria satisfação, murmurou: - "muito justo,
mas nunca se cogitou disso, nunca o admitiram oficialmente. Acham que primeiro ela se
encaminhou para ele e que, depois, fugiu. É uma teoria. Quando alguém se agarra a uma
teoria, nada o fará abandoná-la. A realidade? Pouco importa. Veja o que dizia a teoria:
quando ela o viu com o revólver na mão, voltou-se horrorizada e correu para casa. É
perfeitamente plausível. Dois revólveres, não. Melhor ainda, diz a história que não foi
encontrado nenhum. Waremme afirma que lhe tirou a arma da mão, logo depois da tiro,
jogando-a longe, jogando-a numa moita. Dois guardas a procuraram durante dois dias,
revistaram o jardim e os arredores. Nada. Não encontraram o revólver, o revólver nunca
apareceu. Que diz você? É inexplicável, não é verdade? É maravilhoso como tudo isso é
inexplicável". E o velho Maurizius sorriu de leve, ingenuamente. Etzel olhava para a frente,
sonhando. Subitamente, levantando a cabeça, perguntou: - "Quem poderia... na sua
opinião, quem foi? ... “
"Pst" - interrompeu o velho. Em seguida, chegando para junto do rapaz, envesgou os
olhos como um diabo e disse com o tom rabugento e severo de um mestre-escola de
aldeia: - "Não seja tão curioso. Nem uma só palavra! Onde iríamos parar?! Ele, você
compreende, ele, o meu Leonardo, nunca respondeu a esta pergunta, nunca, nem uma só
palavra, a menor palavra. Recusou-se a falar, você compreenda; assim, de que serviria nós
dois perguntarmos? Para que nos serviria saber? O juramento de Waremme a isso se opõe.
O juramento de Waremme libera os outros de qualquer responsabilidade. Semelhante
juramento é uma fortaleza. Veja um pouco: lá estava Ana Jahn, a bela, a nobre, a
infortunada Ana Jahn. Bem, por que você arregala os olhos? (realmente, tomado de
surpresa, Etzel levantara os olhos, o velho tendo largado esses três qualificativos com
raivosa ironia.) Nessa época, em toda parte, lia-se isso: a bela, a nobre, a infortunada Ana
Jahn. Logo depois dessa noite, ela adoeceu gravemente. Esteve à morte durante seis
semanas, disseram todos. Deviam poupá-la. Nenhuma emoção, pelo amor de Deus!
Transportaram-na, após essas seis semanas, para o Sul da Europa. Em Nice, ou em outra
parte, só o diabo sabe em que lugar, tomaram seu depoimento. Somente na última
audiência foi que reapareceu. E a Corte se desmanchava em comovida simpatia. Era um
raro gozo ver com que cuidados o presidente fazia o interrogatório. Punha-lhe
amavelmente na boca as respostas as mais deliciosas. E o substituto, Andergast, era todo
ele açúcar e mel. Por mais um pouco ela seria, também, a vítima daquele monstro, a
virgem pura, imolada por aquele infame sedutor. Subitamente, todo mundo se esquecera
dos mexericos de outrora. Foi mesmo um milagre que os professores, os funcionários, os
oficiais, os estudantes não fizessem sob sua janela uma passeata noturna. Bruscamente,
tornara-se a donzela meiga e cândida, e ele, meu Deus, o pior dos termos ainda seria pouco
para qualificá-lo. Não falo do público. O público tinha outra opinião. Depois do julgamento,
acreditou-se mesmo que as coisas fossem terminar mal. Basta! Deixemos tudo isso de lado.
Mas, que era que eu queria dizer?... Que era mesmo que eu queria dizer?... Ah! sim,
Waremme... sem Waremme, sem o testemunho de Waremme, você compreende... a coisa
teria terminado de outro modo. Foi esse homem que nos entregou, nos perdeu. Esse
homem, garanto a você, uma maldição pesa sobre ele, ou então não existe Deus no céu
(caía subitamente na ênfase bíblica; Etzel abaixou a cabeça). Esse homem... eu espero que
ainda não tenha soado sua última hora. Espero-o, para o nosso maior bem, e também para
o seu - sem o que, por certo, gostaria de estar no seu lugar quando sua hora soasse. Quanto
à outra... Não quero falar de Ana Jahn. Aliás, creio que ela já teve a sua recompensa.
Contaram coisas incríveis... Mas o homem... o juiz daqui debaixo ainda o espera. Sim, é
coisa mais do que certa!"
Etzel olhou o relógio de parede. - "Preciso voltar para casa", disse, assustado. O velho
sacudiu a cabeça. Etzel perguntou se podia levar alguns jornais para lê-los. O velho
respondeu afirmativamente com a cabeça e o ajudou a tirar alguns. Quando já estava no
corredor, o velho correu, deu-lhe alguns folhetos pedindo que tomasse cuidado com eles e
não os perdesse. - "Terei todo o cuidado" - prometeu Etzel, e pôs-se a correr rapidamente
para apanhar o trem.
CAPÍTULO 4
I

ESSA NOITE, a tarde e a noite do dia seguinte, Etzel passou lendo os artigos daqueles
jornais velhos. Dizia a si mesmo: "Estou estudando a situação" - e permanecia frio como
um espectador mediocremente interessado. Por se tratar de literatura jornalística, estava
de sobreaviso. Tudo aquilo tinha sabor de romance. Em geral, não gostava de romances.
Discípulo dócil de Melchior Ghisels, estabelecia uma rigorosa distinção entre o que é poema
e visão poética, de uma parte, e realidade violentada por um partido tomado, de outra
parte. Nesse terreno, conservava um sangue-frio que tocava a insensibilidade. Por isso,
aqueles acontecimentos concatenados ao modo de uma novela policial causavam-lhe
horror. Vistos dezoito anos depois, dir-se-ia um cadáver pintado, dançando. No entanto, um
grande número de detalhes isolados permaneciam invariáveis - pois correspondiam à
verdade natural contra a qual o artifício de nada vale.
Empregou os dias seguintes - ainda tinha oito dias de férias - numa atividade de todos
ignorada, que visava arranjar novas informações e novos pontos de apoio que sustentassem
as narrações feitas pelo velho Maurizius, cuja parcialidade era indiscutível; procurava
também confirmação para as reportagens dos jornais sempre que supunha terem
exagerado ou deformado os fatos em um ou outro sentido. Mas, onde achar esses pontos de
apoio, essas confirmações? E, se os encontrasse, acreditaria mais neles do que no que
soubera até então? Não confiava na memória dos homens. Seu instinto lhe lembrava que se
esquece qualquer verdade para deixar subsistir uma agradável ilusão. Era daí que vinha
sua profunda aversão pela história em geral. Não podia deixar de sorrir ouvindo as pessoas
idosas contarem suas recordações. Era divertido, e tão visível o modo como "embelezavam"
tudo! E como saboreavam aqueles fragmentos por eles romanceados com mais prazer do
que o conjunto verdadeiro dos fatos, de que, sem dúvida alguma, não mais queriam saber!
A única pessoa que poderia facilitar suas pesquisas, ajudá-lo a vencer as dúvidas do
começo, era seu pai. Era absurda, porém, a simples ideia de se dirigir a ele. Jamais
Trismegisto reconheceria a legitimidade de uma pergunta - de uma só que fosse; seus olhos
violeta se esbugalhariam de espanto diante de uma audácia tão insólita. Só lhe restava
fazer uma coisa: coligir a documentação, selecioná-la e comparar. Uma ou duas vezes por
semana, Rie recebia uma visita; era um conselheiro da administração chamado
Distelmayer que servira no Tribunal por muito tempo e se aposentara depois da guerra;
seus negócios iam mal porque, como todos os funcionários reduzidos apenas às suas
pensões, mal podia garantir o pão quotidiano. Rie, quando anunciava a sua visita, sempre
lhe guardava almoço. Então, sempre tinha lugar a mesma cena: ele recusava o convite
categoricamente, dizendo ter acabado copiosa refeição, mas cedia depois, como que
cansado de tanta insistência. E, finalmente, absorvia a sopa, a carne, os legumes, a torta
até a última migalha, com uma satisfação que causava pena. As vezes, o barão Andergast
entrava no vestíbulo no momento em que ele chegava ou saía. Então, o conselheiro se
inclinava com uma obsequiosidade que desagradava a Etzel, enquanto o barão Andergast
se mostrava afável, batia com dois dedos no ombro do conselheiro e perguntava com
intimidade: "Então, como vai você, meu caro Distelmayer?" Embora Etzel tivesse pouca
esperança de ouvir daquele homenzinho tagarela alguma coisa de útil, tentou a
experiência. Envolveu-o como em um casulo, com suas ingenuidades cujo efeito já
experimentara sobre os adultos; desceu ao seu nível, mas sua condescendência era de
outra natureza do que a do barão Andergast, pois um espírito jovem e altivo é obrigado a se
abaixar quando entra em contato com indivíduos tão usados e esmagados quanto o
conselheiro; entabulou conversa num tom folgazão, permitindo ao velho graças e pequenas
alusões vulgares, como pessoas de certa idade gostam de dirigir aos moços e, depois, sem
a menor dificuldade, deu à conversa tom sério e deixou cair como por acaso o nome de
Maurizius. A atenção do conselheiro despertou imediatamente, e Etzel disse que alguém
lhe falara muito daquele caso, que por ele se interessava, e o discutira inúmeras vezes com
um amigo. O amigo em questão era um parente afastado da família Jahn, ou outro nome
qualquer que esquecera e de que o conselheiro talvez se lembrasse, pois tratava-se da
família da mulher de Maurizius. Não tinha absolutamente esquecido o nome, queria
somente sondar o conselheiro. Realmente, ele logo disse o nome, mostrando-se informado
além de qualquer expectativa porque, na época, se interessara vivamente pelo processo.
Etzel queria apenas ouvir falar de Ana Jahn, saber o que lhe sucedera depois do drama e,
enquanto perguntava, não perdia de vista seu objetivo fundamental. Distelmayer podia
satisfazer sua curiosidade, gostando muito de se ocupar com a vida particular das pessoas
que, um dia, tinham constituído um "caso". Inúmeros funcionários da magistratura têm
essa tendência onde se misturam inclinação para a "espionagem" e atração que exercem
os enigmas não resolvidos. Distelmayer utilizara mesmo o tema daquele processo como
material literário; agora, estava surpreso e lisonjeado com o interesse que o jovem barão
por ele demonstrava (sempre salientava o seu título, chamando-o "senhor barão", o que
Etzel achava de mau gosto, sem ousar protestar, com receio de o descontentar). Rie não se
sentia menos lisonjeada do que ele; assistia à conversa e não tinha olhos nem ouvidos
bastantes para admirar a vivacidade de espírito, o talento do seu Etzel e o conhecimento
que possuía do mundo. Em casos semelhantes, ela o reivindicava com um orgulho todo
particular como seu, como sua propriedade, como fruto da sua sabedoria atilada, e, às
escondidas, trocava olhares com o conselheiro, animando-o a admirá-lo, ele também. Etzel
via tudo e sentia o ridículo da situação, mas pouco se importava, porque seus esforços
estavam sendo coroados de sucesso. Verificou, mais uma vez, que nada se podia extrair das
pessoas, mesmo das mais ingênuas, por via direta, que sempre era preciso "lograr" e
desviar a atenção do objetivo proposto, que sempre era necessário armar ciladas .. .
Voltando agora a Ana Jahn: havia muito tempo não se chamava mais assim. Casara-se,
em 1913, com o diretor de uma grande fábrica de tijolos, que estava em ótima situação.
Permanecera, anteriormente, alguns anos no estrangeiro. Não se ouvira falar mais em seu
nome, não dera sinal de vida a nenhum dos seus velhos amigos, todos ignoravam onde
residia e, pouco a pouco, tinham-na completamente esquecido. A morte de sua irmã Eli
tornara-a herdeira única de toda a fortuna, mas sabe Deus como a administrara porque, ao
voltar do estrangeiro, não possuía mais nada. O conselheiro soubera isso de um adjunto
cuja tia fora, outrora, amiga íntima de Ana Jahn - sobre toda a terra habitada estende-se
uma rede de relações dessa natureza, de modo que ninguém pode fugir, e somente a
confusão inextricável dos fios que ligam os homens uns aos outros deixa aparecer essa lei
do encadeamento como sendo o simples jogo do acaso. Ana Jahn, havia mais de doze anos,
chegara em casa dessa mulher numa noite de inverno, o corpo e a alma despedaçados,
num estado de indizível lassidão, com uma pequena valise, tal como uma criada
desempregada, solitária, muda, pobre. Não disse de onde vinha, nada contou da sua vida
anterior. Sentia um terror louco à simples ideia de encontrar os conhecidos de
antigamente. Logo se verificou que estava seriamente atingida; um dia, como uma
convidada de sua amiga falasse, sem refletir, em Leonardo Maurizius e no seu caso - em
sua opinião, ainda não esclarecido - tornou-se lívida, pôs-se a tremer e caiu no chão com
convulsões que duraram horas. Depois, mergulhou num estado de depressão doentia.
Internaram-na em um sanatório, onde se refez lentamente, voltando-lhe mesmo alguma
coisa da sua beleza e da sua graça sedutora. Nesse estabelecimento, conheceu um loreno,
de nome Duvernon, sobre quem causara profunda impressão, e com quem só três anos
mais tarde se decidiu a casar. Parece que não teve motivos para se arrepender de sua
decisão. Nada se sabia dela, apenas um muito pequeno número de pessoas a conhecia,
mas o que se falava a seu respeito não era em seu detrimento. Não fora desprotegida pela
sorte. Residia com o marido em uma localidade nos arredores de Treves e diziam que tinha
dois filhos, a sua maior felicidade sendo a de viver isolada; nunca deixava a casa, não
mantinha relações, não visitava ninguém a não ser as pessoas que faziam parte do restrito
círculo da família. Suas crises se tornaram cada vez mais raras, e chegou-se a admitir que
houvesse totalmente esquecido o passado tão sinistro e tão tragicamente movimentado.
Etzel ouvia, silencioso e atento. Com sua habitual lucidez de espírito concluiu da narração,
que, pelo menos daquele lado, não podia abordar o problema e que, aparentemente,
aquela porta lhe estava fechada...

 
 
II

Os homens, excetuando-se os juristas, sentem pouca simpatia pelos promotores públicos,


mesmo quando eles têm como missão castigar o mais condenável dos crimes. Isso provém,
sem dúvida, do fato de que, no crime, não conhecem o homem, não o vêem, e não têm
mesmo o direito de conhecê-lo e vê-lo. Para eles, existe apenas o ato, a gravidade do ato, e
o que importa é que o ato seja castigado. Em verdade, deixam de ser homens eles próprios,
e não é voz de homem a que pede contas ao culpado da sua conduta, nem quer mesmo
que a tomem por uma voz humana. Situados acima dos partidos, em uma esfera fechada a
toda piedade, despojados de personalidade, tornam-se servidores e mandatários da
comunidade. Tal é a ideia que se faz de um promotor e a que ele próprio faz de si mesmo.
Só um caráter de grande envergadura é capaz de crescer sob o peso de tal
responsabilidade ocupando toda a sua simbólica amplidão; já um outro. porém, de menor
tamanho, fará sobressair apenas, com sua insuficiência pessoal, a desesperada
desproporção que existe entre ele e sua tarefa e, em lugar da imponente face do acusador
inflexível, só deixará ver a máscara estereotipada do policial. Nunca a figura de seu pai
aparecera tão estranha a Etzel como durante a leitura daquela crônica judiciária, velha de
dezoito anos e meio. Sentia-se obrigado a dizer, intimamente, sem cessar: "Nessa época,
eu ainda não havia nascido, não podia estar em causa, nem nada podia depender de mim
ou se relacionar comigo. Tudo se passou de modo pouco compreensível, de maneira
sinistra, sem esse Etzel que eu sou, que tão incontestavelmente existe agora, age e pensa,
e atravessa o mundo, do qual tem consciência." Aquele tempo adquiria então a seus olhos
um aspecto fraudulento e hipócrita - o pai e sua participação nos acontecimentos que cada
dia o preocupavam mais, e começavam a dominar todos os seus pensamentos,
representavam, um e outro, a ideia abstrata e a ação pessoal em toda a sua aterradora falta
de medida, a tal ponto que frequentemente, na imaginação de Etzel, o pai se tornava uma
espécie de conde de Saint-Germain, no processo contra João Calas, responsável portanto
pela condenação do inocente, apontado como culpado. Pela primeira vez, o papel oficial
representado pelo barão Andergast no curso de um processo - debates, audiências e
julgamento corporificava-se ante seus olhos, à medida que aquelas relações dramáticas se
desenrolavam (depois de sua última promoção, tendo se tornado presidente do tribunal do
júri, o barão Andergast só comparecia às audiências em circunstâncias excepcionais).
Nascia assim, para Etzel, um personagem em quem não podia se reconhecer, nem se
encontrar. O nome Andergast, que devia achar-se entre as cinzas daquele caso já
esquecido, surgia diante do olhar dos vivos tão frio e distante como um penhasco
inanimado; irradiava uma sombria hostilidade, contra a qual nada podiam, dor, súplica,
grito, prova, argumento, aflição, rosto humano, nada, nada; o acusado entrava, o acusado
saía, a pergunta que lhe era dirigida tinha sempre a rigidez do metal. Não se indagava: -
"Você é culpado ou não?" Mas sim: - "Você se entrega, sim ou não?" O tempo decorrido,
dezoito anos e meio, em nada desmerecera o nome de Andergast. Mantinha o mesmo furor
contra sua vítima, a mesma invencível pretensão de conhecer os fatos, e era isso que fazia
Etzel se lembrar do presente, como uma voz que o chamasse do quarto vizinho. E, como se
essa voz realmente ecoasse aos seus ouvidos, chamando-o, Etzel se levantou, fechou a
porta a chave e pôs-se a andar no quarto de um lado para outro, tapando os ouvidos.
Esforçava-se enormemente para estar à vontade na mesa e durante as conversas noturnas,
e também para responder docilmente, ouvir de boa vontade, mostrar ao pai uma fisionomia
reconhecida, ao invés de se levantar, caminhar até junto dele e perguntar com a insistência
que o dominava como uma corrente elétrica de alta tensão: - "Você estava convencido da
culpabilidade de Leonardo Maurizius? Você, então, acreditava sinceramente no seu crime?"
Seus olhos interrogadores estavam positivamente pregados no grande rosto severo e
fechado, naquela fronte impenetrável como uma couraça. Em vão, está claro. Relações
humanas existem que se desfariam imediatamente, se houvesse no instante decisivo a
mútua e absoluta penetração das almas. Mantêm-se, unicamente porque esta penetração
não se realiza.
Apesar de tudo, não faltou a Etzel a oportunidade de entrever, sob outro aspecto, a parte
que seu pai desempenhara no processo Maurizius. E foi assim que soube da opinião de
alguns espíritos da elite intelectual da época. Quem o informou foi o professor Foerster-
Loering, sociólogo e economista, homem muito apreciado por Etzel e de quem Camilo Raff
sempre falava com veneração. Era um homem extraordinariamente feio, disforme, de nariz
quebrado e torcido. Seus dois filhos, gêmeos, eram colegas de classe de Etzel, que
freqüentemente os visitava. O barão Andergast recomendava aquela companhia e eis que,
ainda uma vez, eles a tinham convidado para visitá-los. Ellmers e Schlehlein também lá
estavam. O professor a eles se reuniu no momento em que se servia o chá. Logo iniciaram
uma conversa apaixonante: partindo de um assunto qualquer, cedo se estava abordando
um problema que começava a agitar a época, o da justiça moderna. Os rapazes sentiam
que as forças vivas da nação estavam em jogo. Etzel, tendo uma única preocupação, e
como um sino mal dependurado cuja voz metálica ressoa ao mais ligeiro sopro, lançou
como por acaso o nome de Maurizius. Hesitara ao falar, como tentando saber se o professor
conhecia o caso e estava disposto a dizer o que pensava sobre ele. O professor o fitou com
surpresa: - "É curioso que você cite este caso," - disse ele - "Fiz referência a isso,
ultimamente, em uma obra. ("ah! ah! ele também", pensou Etzel). O caso me apareceu
desde o começo como sintomático. Sim, era fora do comum sob muitos aspectos. Você se
tem preocupado com ele? Soube a este respeito detalhes particulares?" Etzel moveu as
pálpebras, agitou-se na cadeira com embaraço e, enquanto seus colegas o olhavam,
intrigados, deu uma resposta qualquer. - "Realmente, não tenho com que me surpreender,"
- continuou o professor com amabilidade - "é uma associação de ideias bastante natural,
porquanto foi seu pai quem dirigiu o processo. Pode-se dizer mesmo que ele foi o
verdadeiro "spiritus rector". Teve que empregar sua energia, sua coragem, sua
superioridade, para vencer as dificuldades que se ergueram. Eu muito o admirei nessa
batalha porque, para nós, alemães, era bem um "hic Rhodus, hic salta". A Alemanha estava
então, sob o ponto de vista moral, em presença de um dilema; era um desses momentos
históricos onde se torna necessário escolher entre o levantar-se e o abaixar-se. De uma
parte, frivolidade, sede de prazer, superficialidade, irresponsabilidade; de outra parte,
consciência, disciplina, dever. O bem ainda uma vez saiu vencedor. Lembro-me do exórdio
pronunciado por seu pai. Foi alguma coisa de extraordinário que se devia ter afixado em
todos os muros e paredes. Sei bem que havia numerosas correntes subterrâneas em favor
do acusado. Ainda hoje a agitação não está completamente acalmada, do mesmo modo
como existem alguns iluminados que tomam o pobre Gaspar Hauser por um mártir. Mas,
que é que isso prova? Nós, os velhos, que vivemos aquele tempo e conservamos os olhos
abertos, não duvidamos nunca da culpabilidade daquele infeliz. Sim, por certo que era um
infeliz, menos criminoso do que fraco, sem espinha dorsal e corrompido até o fundo do ser."
Etzel permanecia com a cabeça baixa. Um leve sorriso, obstinado e orgulhoso, fremia em
seus lábios. "ele podia ter evitado a comparação com Gaspar Hauser", - pensava - "não será
isso que o ajudará em sua tese. Nós, moços, conhecemos muito bem esse caso,
(interessara-se pela história de Gaspar Hauser, sobre quem lera grande quantidade de
livros) mas é assombroso o que disse do meu pai." Ergueu lentamente as pálpebras, e seus
olhos míopes fizeram a volta das fisionomias. Existiam algumas belas, outras feias; a mais
feia - e também a mais expressiva - era, como sempre, a do professor. Por mais incômoda
que sua miopia fosse, no campo de esportes ou na aula, algumas vezes, principalmente nas
suas relações com os outros, prestava-lhe um grande serviço: mostrava cada fisionomia, e
mesmo o todo de cada um banhado numa penumbra que o embelezava.
III

A pergunta que devia fazer ao velho Maurizius era essa: - "Onde está Waremme?"
Encontraram-se em frente a um pequeno café, perto da praça Guiolett e, sob a chuva que
caía já havia algumas horas, atravessaram inúmeras ruas até chegar à Igreja do Sagrado
Coração. Refugiaram-se debaixo do portal. Depois que se falavam, era a segunda vez que se
encontravam na cidade mas, da primeira vez, Etzel não achara meio de fazer aquela
pergunta. O velho Maurizius o mantivera em suspenso com uma das suas narrações e,
depois, ele esquecera tudo mais. Afastara-se furtivamente, tropeçando, perturbado ao
ponto de enganar-se de casa no caminho de Kettenhof e, quando verificara o engano e
quisera recuar, caíra nos degraus de pedra da escada de entrada, é verdade que sem se
machucar. A narração descrevia o modo como Pedro Paulo Maurizius e quatro dos seus
companheiros, todos homens idosos, tinham passado as horas anteriores à leitura da
sentença de morte. Que força o impelia a escavar aquele episódio do fundo do passado?
Somente Deus o sabe. Narrava-o como se datasse da semana anterior e houvesse faltado
tempo para contá-lo. O olhar voltado para dentro, o cachimbo no canto da boca, com
freqüentes jatos de saliva. e com voz de gralha, contou sua história.
Ei-la: o substituto havia terminado a atuação, o advogado da defesa replicara apenas com
algumas palavras. Era um pobre homem sem valor, sem entusiasmo, que causava dó ouvir,
depois que se escutava o requisitório viril de Andergast o sanguinário. O presidente
abreviou os debates, os jurados se retiraram. Na sala de audiência, o público, constituído
por pessoas de todas as classes e de todas as posições, comprimidas umas contra as outras,
estava febrilmente impaciente. Pedro Paulo Maurizius, ladeado por dois amigos que tinham
vindo com ele do lugar onde habitava, abandonou aquela multidão dominada pelo veneno
das sensações violentas. A deliberação e o voto das jurados certamente iriam durar horas.
Os dois companheiros insistiram com Pedro Paulo Maurizius para que fosse para o hotel e lá
esperasse pelo veredicto. Um deles era cobrador em Lorch, o outro, um moleiro em São
Goarshausen. Encarregaram um jovem oficial subalterno, sobrinho do cobrador, de lhes
transmitir a sentença sem tardar, o mais depressa possível - o hotel estando apenas a cinco
minutos de distância. No momento, era preciso poupar o velho Maurizius e ajudá-lo a
passar as horas de espera. O oficial estando de acordo, Pedro Paulo Maurizius também se
submeteu a tudo. Não se opôs a coisa alguma e não formulou o menor desejo. Em frente ao
Fôro - já era noite, uma fria noite de agosto - dois outros velhos se aproximaram dos três
primeiros. Eram pessoas do lugar que os conheciam e que a eles se reuniram num impulso
de silenciosa compaixão; um oculista, igualmente de São Goarshausen e um inspetor de
seguros, de Langenschwalbach. Todos quatro seguiram Pedro Paulo Maurizius até seu
quarto, no hotel, que era bastante espaçoso e tinha no centro uma enorme mesa redonda.
Em vota dessa mesa, sentaram-se todos os cinco. Pedro Paulo Maurizius era o mais moço, o
oculista o seguia imediatamente com sessenta anos e o mais idoso tinha setenta e oito
anos. Pediram cerveja; puseram um copo em frente de cada um, mas ninguém tocou neles.
Esses cinco homens permaneceram assim, num silêncio ininterrupto, durante cinco horas.
Quando findou a quarta hora, o moleiro se levantou vagarosamente - abriu a porta do
corredor. Todos compreenderam. Era para que o mensageiro encontrasse mais depressa o
quarto onde estavam e eles o pudessem ouvir logo que subisse. Veio enfim a última hora.
"Nunca, desde que o mundo é mundo, transcorreu uma hora igual, meu rapaz." Era um
modesto hotelzinho cuja escada de madeira, sem tapete, começava perto da entrada.
Afinal, doze minutos antes de meia-noite, ouviu-se barulho embaixo. Um segundo depois, a
porta rangeu. Ainda um instante e ouviram-se pesadas botas subindo a escada. Os cinco
homens, interpretando sem possibilidade de erro a lentidão do andar, tiveram certeza do
que se tratava. Era como se a própria morte subisse a escada. Depois, branco como linho, o
jovem soldado apareceu no limiar do quarto; os cinco velhos se ergueram e um único
suspiro escapou ao mesmo tempo daqueles cinco peitos: pena de morte...

 
 
IV

- "Onde está Waremme?" Maurizius refletiu, e desceu o gorro usado sobre a testa. Parecia
não se poder decidir a responder. - "Não mais se ouviu falar dele" - resmungou. - " fácil
compreender que a terra lhe queimava os pés e que tinha pressa de desaparecer. Ninguém
falou mais dele e nada mais se soube a seu respeito, até agora. Exatamente como Ana
Jahn, que deixou o país. Para ir aonde? Eis aí! Em 1908, ao que dizem, foram vistos ambos
em Deauville. Deauville, o nome é esse mesmo, não é verdade? Estação balneária, não? Na
França, não é verdade?" O velho tirou - cachimbo da boca, manteve-o no ar, fixou em Etzel
um olhar desagradavelmente vesgo. O rapaz se espantou: - "Que história é essa? Temos
novidade! Um rumor que correu? Apenas um rumor? Ela e ele? Quem os viu? Quem
garante?" Maurizius sacudiu os ombros. - "Waremme, nessa época, usava barba", -
acrescentou ele, sarcástico - "sim, usava e mandou raspar, ao contrário do outro, que a
deixou crescer. Assim caminha o mundo, meu jovem Andergast." Maurizius teve um riso de
escárnio e escarrou na calçada. Um velho que passava, usando chapéu de feltro, parou
diante deles e sacudiu o guarda-chuva irritado com o mau tempo. Quando se afastou, Etzel
perguntou: - "Afinal, que espécie de homem era esse Waremme?" - "Era?" - perguntou
Maurizius num sobressalto - "Era? Eu espero em Nosso Senhor, que está no céu, que nada
lhe tenha acontecido! O que ele "era"? Estaríamos então em maus lençóis: O que ele "era"!
A cólera inflamava seus olhos injetados de sangue. - "Eu me exprimi deste modo porque
tudo isso data de muito tempo" - disse Etzel, desculpando-se polidamente. - "É difícil falar
de Waremme", - murmurou o velho em um tom agastado, movendo o queixo como um
cavalo que tivesse os lábios castigados pelo bridão. - "Só o diabo sabe o que é preciso fazer
para poder retratá-lo. É incrível quando se pensa no que ele foi e no que é hoje"... Deteve-
se. Aparentemente, dissera mais do que quisera e procurava, cheio de atrapalhação e
piscando os olhos, a caixa de fósforos que trazia no bolso. Etzel o fitava com curiosidade.
Estava na pista de uma descoberta. Tinha a fisionomia inquieta, implorando: "depois,
depois!" - e, involuntariamente, agarrou o velho pela manga do paletó. Maurizius,
finalmente, achara a caixa de fósforos mas, sem utilizá-la, colocou-a novamente no bolso.
Com certa dificuldade, começou o retrato do Waremme "daquele tempo". Etzel percebeu
imediatamente o que nele havia de incompleto. Por certo, o personagem ultrapassava o
campo visual do velho, que conhecia um mundo de fatos, mas não possuía a menor ideia
da sua significação. Mesmo quando, naquela insossa narração, se projetavam interessantes
estados de espírito, faltava qualquer ligação entre eles e os acontecimentos se tornavam
inverossímeis. - "Waremme apareceu na cidade dois anos antes da desgraça (a "desgraça"
era o eixo, o ponto central dos acontecimentos) e, imediatamente, pôs toda a Universidade
no bolso. Quem era ele? Pouco importa fosse ele um filósofo ou alguma coisa semelhante,
um escritor, um erudito... Não aceitou nenhum posto; talvez não tivessem oferecido, mas,
em todo caso, prevaleceu-se da sua independência. Frequentemente pronunciava
conferências. Vinham pessoas de muito longe para ouvi-lo. Os professores estavam
entusiasmados, referindo-se a ele como a um fenômeno. Homens e mulheres o cercavam
quando aparecia em uma reunião, completamente enfeitiçados pelas suas opiniões:
"Waremme disse isso, Waremme disse aquilo", e nunca a menor contradição... Alguns
conselheiros privados e alguns magnatas da indústria do Reno seguiam-no cegamente: era
que, ao lado dos seus trabalhos científicos (Maurizius ignorava em que ramo se
especializara), cuidava principalmente de política. Se não me engano, tomava partido
violentamente por duas coisas: a guerra com a França e a Igreja Católica. Os jesuítas,
naturalmente, estavam por detrás dos bastidores. Nunca se soube ao certo de onde ele
veio. Dizia-se silesiano, filho do proprietário de um morgado e de mãe nobre, mas o
morgado, sem dúvida, estava na lua; mais tarde, quando pesquisei, não encontrei ninguém
que tivesse ouvido falar nas terras de Waremme. Nunca teve fortuna, o que confessava aliás
de boa vontade, fazendo mesmo ostentação de sua pobreza. No entanto, quase todos os
dias, era visto no cassino e nas mesas de jogo. Admitiam-no, embora não se aceitasse
ninguém como ele, sem título de nobreza. Inúmeras vezes perdeu somas importantes, sem
que se lembrassem de perguntar de onde vinha tanto dinheiro. Se, um dia, tinha
quinhentos marcos no bolso, organizava uma festa para o dia seguinte que custava mil,
convidando metade da cidade. Compareciam todos. Compareciam, embora, com o tempo,
estranhas histórias começassem a correr sobre ele. Por exemplo: aquele duvidoso caso de
empréstimo em que se envolvera... depois, o suicídio de Lili Quaestor, sua noiva, a filha do
"Quaestor" do carvão. - Um belo dia a moça se matou sem que ninguém soubesse por que.
O caso foi abafado, porque nós nos tornamos mestres na arte de abafar casos. Enquanto os
conselheiros privados e os senhores do carvão o conservaram sob sua proteção, Waremme
esteve garantido. Mas isso teve um fim; aquela súcia possuía faro e, silenciosamente, foram
se afastando antes mesmo do escândalo. Mesmo que não tivesse mais nada contra si,
senão o fato de ser amigo do assassino Maurizius, isso era suficiente, isso bastava para que
o liquidassem ... “
"Onde ele está — interrogou Etzel com firmeza. Maurizius fez como se não tivesse ouvido.
Dir-se-ia que, chegando àquele ponto, hesitasse em por as cartas na mesa. Mediu o rapaz
com um olhar de medo e murmurou depois: - "É o meu segredo, e se eu disser a você ficará
sendo o nosso segredo. Me dê sua mão!" Apenas Deus sabia o que Etzel esperava daquele
segredo, mas estendeu a mão para selar sua promessa. Maurizius, sempre hesitante,
continuou: soubera havia um ano e nove meses que Waremme estava em Berlim sob um
nome falso. Com grandes dificuldades, o seu homem de confiança, um tipo hábil e astuto,
que lhe custava muito dinheiro, havia conseguido descobri-lo. Só o pudera fazer tomando
as maiores precauções e acompanhando secretamente seu rasto até Chicago, onde ficara
onze anos, de 1910 a 1921. Depois de longas pesquisas e por intermédio de uma agência
particular, conseguiu encontrar algumas pessoas que sabiam da sua mudança de nome e
que o tinham conhecido sob o nome antigo em New-York, Pittsburg e Kansas-City. De tudo
isso, porém, não se podia tirar muita coisa de útil. Naturalmente, era preciso não mais o
perder de vista, não se podendo saber o que ia acontecer - isso no caso de acontecer
alguma coisa... Sim, seria bom que, num caso desses, se pudesse imediatamente deitar a
mão sobre ele. Mas, mesmo assim, dado o atual estado de coisas, tinha pouca esperança de
poder deitar a mão sobre Waremme. Nada se podia fazer contra aquele homem; estava
garantido por todos os lados, nada tinha a recear, pelo menos de Pedro Paulo Maurizius, e
de Leonardo ainda menos!... Não, nada a esperar daquele lado! Ter os olhos abertos, sim,
isso era necessário para poder intervir a qualquer momento. Para esse fim, mantinha um
homem sempre vigilante, o qual, por seu lado, tinha seus agentes próprios. Quanto ao
resto, nada mais podia fazer senão esperar. O velho fixava o olhar triste e sonhador na
chuva que caía. Etzel se enganou ou ouviu realmente um soluço abafado que se diria ser o
suspiro de um instrumento de madeira e que não se parecia com nada do que até ali
ouvira? - "E o senhor foi vê-lo?" - perguntou, obedecendo a uma extraordinária inspiração.
A pergunta se impusera a ele únicamente porque, desde o início da conversa, o velho se
esforçava por impedir que a formulasse. Com efeito, tendo um sobressalto de espanto e o
seu rosto se tornando lívido, Maurizius se obstinou em ficar calado. - "E o que se passou?" -
prosseguiu Etzel com ar inocente, olhando-o com amabilidade. Maurizius não respondeu
até que Etzel pôs docemente a mão sobre o seu peito. - "Foi uma tolice ridícula de minha
parte" - disse enfim com voz áspera - "mas, o que esperava eu?... O que queria?.. . Não
descansei enquanto não o vi cara a cara. Fui a ele. Ele se diz professor particular. E é com
esse rótulo que figura no anuário: Jorge Warschauer, professor particular, rua Usedom,
esquina da rua Jasmund. Existe no primeiro andar um restaurante onde se lê, numa placa:
"Madame Bobike. Aceitam-se hóspedes". É aí que ele faz as refeições. Nada paga porque
ensina aos dois filhos de Madame Bobike. Mora no terceiro andar. Os alunos, e também
outras pessoas, vão ao seu quarto. Ensina inglês, francês, espanhol, italiano, português,
redige artigos necrológicos, reportagens, reclames para lojas etc... Eu fui e, então, vi-o! Lá
estava eu sobre as minhas duas pernas quando pensei: "Ah, senhor Jesus!" e, vendo que
ele me olhava, disse: - "Eu acho que me enganei". Dei meia-volta e retirei-me. Tomei o trem
imediatamente: quatorze horas de enfiada. Impossível dizer alguma coisa. Absolutamente
impossível. E o que dizer? Como entrar no assunto? Por onde começar? E se ele me atirasse
pela escada? Não havia nenhum meio de o intimidar. E se eu dissesse uma palavra
imprudente, uma só, comprometeria tudo e ele se evaporaria mais uma vez. Não disse nem
mesmo o meu nome. Impossível também declarar: - "Vamos, homem, diga ... " ou outra
qualquer coisa que nos consome a alma há muitos anos... somente mais tarde, percebi.
Senhor Jesus!" Maurizius se pôs novamente, com movimentos nervosos, a procurar a caixa
de fósforos. Etzel, distraidamente, olhava em frente como se fizesse observações
meteorológicas.- "É preciso que eu me vá; boa noite" - disse Etzel súbitamente. Deixou o
velho atordoado e saiu correndo sob a chuva. Na primeira esquina, diminuiu a marcha e
meteu as mãos nos bolsos da calça, tomando o jeito de alguém que está andando ao acaso.
Caía a noite, as luzes das vitrinas se acendiam. Etzel foi parando em quase todas as lojas,
examinando os objetos e cantarolando como um garoto de rua. De onde viria aquele bom-
humor? Parecia tomado de um indomável delírio de aventuras, acompanhado de pequenas
explosões de alegria passageira. Quando chegou em Kettenhof, encontrou na entrada as
duas filhas do doutor Malapert, o oculista do primeiro andar. Conhecia bastante as môças -
uma de quatorze - outra de dezessete anos - cumprimentou-as com intimidade e, subindo a
escada juntos, numa conversa animada, perguntou se tinham ido ao Instituto Staedel ver a
nova exposição de antigüidades gregas, se costumavam ir às corridas de automóveis, se
iriam à conferência do professor Coué e fê-las rir muito quando ficou equilibrado numa só
perna, como uma cegonha, para reatar os cordões do sapato que se tinham desamarrado.
Em cima, Rie lhe abriu a porta. Saltou sobre ela dizendo que estava com uma fome atroz e,
dançando à sua volta numa enorme tagarelice, tinha os olhos brilhantes como se estivesse
alegre por ter feito alguma coisa de muito engraçado. Pelo movimento das pálpebras, Rie o
fez compreender que o barão Andergast já havia chegado e trabalhava. Mostrou-lhe a porta
coberta com um reposteiro e pôs a mão sobre sua boca. "Ficarei calado, Rie, mas ande um
pouco ao meu lado para passar o tempo." Etzel lhe segurou o braço e a levou para o fundo
do vestíbulo. - "Por que é preciso passar o tempo?" - perguntou ela, surpresa. Etzel
replicou: "Porque é intolerável esperar que se tenha mais um mês de idade." - "Louco",
disse Rie - "Para vocês outros, o tempo já começou a recuar" - disse Etzel, zombando - "a
minha idade e a de vocês acabarão por se encontrar em alguma parte e então trocarão
injúrias. Nenhuma das duas quererá inclinar-se, deixar a outra passar, como duas mulas
teimosas numa vereda." Enquanto falavam, andavam de um lado para outro
vagarosamente. "Escute uma coisa, Etzel" - disse Rie sem transição - olhando
prudentemente em volta - "já que você hoje está assim tão amável, eu vou dizer uma
coisa." - Rie não proferia as palavras: exalava-as - "Acho que sua mãe não está mais agora
onde estava; ela escreveu de Paris e parece que melhorou de saúde. Tenho o
pressentimento de que, em breve, aparecerá por aqui. Mas, o que eles, desde algum
tempo, se vêm escrevendo" - um pouco medrosa, ela mostrava com o polegar o gabinete
de trabalho do barão Andergast - "eu o ignoro. Pelo amor de Deus, não me vá trair!" Etzel
estacou, soltou o braço de Rie, fitou-a gravemente e soltou um assovio agudo: "Ah!" - disse
ele. Sem acrescentar mais nada, mergulhou em seus pensamentos. "Tudo isso não mudará
nada", pensou ele, os punhos comprimidos contra o peito. Fosse o barulho do assovio ou o
alarido da conversa que o incomodara, ou tivesse concluído o trabalho, o certo é que o
barão Andergast surgiu na porta e, olhando ao longo do corredor, teve uma expressão de
surpresa glacial ao ver os dois personagens um em face do outro. Rie se voltou
prontamente e entrou na cozinha. Arrependia-se de ter-se mostrado tão comunicativa.
Quisera somente ver o que diria Etzel, mas a sua expressão e seu silêncio, agora, a
inquietavam. Sentia ciúme daquela mulher desconhecida, "esquecedora dos seus deveres",
que tinha o direito de se dizer mãe sem o ser, senão de nome. Quisera alimentar o próprio
ciúme e estava descontente porque o conseguira. - "Boa noite, papai!" - disse Etzel
timidamente. O barão Andergast o observou durante alguns segundos antes de responder
lentamente com sua voz profunda: - "Boa noite, você está muito bem disposto, meu
filho."Mas, aquilo já não era verdade...
V

No quarto, arrancando uma folha do seu bloco, Etzel escreveu: "Bobike, esquina das ruas
Usedom e Jasmund" - e a escondeu na caixa do seu relógio. Etzel já sabia o que devia achar
das possibilidades de execução de seu projeto, e foi só mais tarde que, desejando certificar-
se se as suas intenções eram moral e teoricamente justas, procurou obter a opinião do
doutor Raff. Camilo Raff esperava que Etzel desse os primeiros passos. Assim, julgou
oportuno, quando o rapaz perguntou uma manhã, pelo telefone, se podia aparecer às onze
horas, transferir o encontro para mais tarde, a fim de não se mostrar muito solicito. Não o
convidou para que fosse à sua casa, pois sua mulher, estando adoentada, não o poderia
receber cômodamente. Propôs um encontro na rua Miguel, em determinado lugar, perto do
Palmarium. somente quando viu Etzel se aproximar, cheio de pressa - eram precisamente
três horas e meia, como haviam combinado - foi que sentiu toda a afeição que tinha por
ele. Que poder de interrogação naqueles olhos faiscantes! "Quando alguém me interroga
dessa maneira" - pensava ele - "seria preciso que eu fosse um idiota para me supor capaz
de lhe responder, e que ele fosse um hipócrita para dar a impressão de que a minha
resposta lhe pode ser de alguma utilidade." Camilo Raff conhecia bem aqueles rapazes
confiados à sua direção. Infelizmente, esse papel de guia não o satisfazia inteiramente, pois
o realizava apenas pela metade por causa das complicações e prescrições vindas da
direção do liceu e também por causa da reserva que inspirava a muitos. O dogmatismo
pedagógico, até ali, ainda não o dominara, nem acreditava na infalibilidade dos magos.
Tinha imaginação e um imaginativo participa sempre das lições que dá. Também, ao
contrário de alguns dos seus colegas mais idosos que julgavam caminhar com o seu tempo
quando na verdade o seguiam, - hostis e estafados - ele não tinha de temer a acusação de
servilismo. Todos estavam convencidos de que pertencia ao seu tempo. Tinha a coragem de
se conservar à parte de tudo o que era equívoco e falso. Faltava-lhe uma coisa: a resistência
física. Possuía nervos delicados, não era capaz de nenhum esforço e, durante os meses de
inverno sem sol, arrastava-se como uma sombra, sem gosto nem vontade de trabalhar.
Etzel Andergast, havia muito tempo, fazia parte do pequeno número de privilegiados
com os quais mantinha relações pessoais. Certas naturezas possuem o brilho de uma
lâmina flamejante que acabasse de sair da forja de Deus. Agradam pela sua novidade e,
além disso, por uma espécie de utilidade superior, como se as sentíssemos predestinadas a
uma ação determinada. Essa "novidade" em Etzel, só havia pouco tempo ele a percebera.
Aproximadamente um mês antes, tivera com o rapaz uma explicação sobre um incidente
penoso. Carlos Zehnter, filho de um negociante falido, durante a lição de ginástica, tirara
uma nota de cinco marcos do paletó de Etzel, pendurado, como inúmeros outros, no
vestiário. A verdade imediatamente surgiu; o gordo Nicolas Nohl vira o ladrão e logo se
achou o dinheiro no seu bolso. Foi preciso denunciar o culpado e ele foi expulso da escola.
Etzel, durante longos dias, torturou-se com escrúpulos. Gostava muito de Zehnter, não o
julgava mau ("pelo menos, não é pior do que o maior número de nós" - dissera a Roberto
Thielemann em um tom bastante categórico) e, além disso, seus pais estavam, como se
soube depois, numa situação desesperada. Julgou que não devia ter-se queixado logo, que
poderiam ter solucionado o caso entre eles e infligido ao culpado um castigo escolhido por
um conselho de colegas. Perguntou então diretamente a Camilo Raff se agira bem. Raff
respondeu que não via como teria podido comportar-se de outro modo; o tribunal de alunos
a que aludia acabaria levando a abusos intoleráveis. E deixou escapar a seguinte
ponderação: - "Preste atenção, Andergast: certos acontecimentos da vida perdem o seu
relevo, quando o sentimento ocupa um lugar grande demais. O sentimento é um rolo
compressor, alarga e amolece tudo." Etzel teve um movimento de surpresa. Aquelas
palavras lembravam os princípios do Trismegisto e, vindo daquele homem, eram de
espantar. Sentiu que o desconheciam por completo. Não era aquilo o que tinha a recear
para si mesmo, acreditava mesmo ser o contrário que o ameaçava. Sacudiu a cabeça e não
falou mais do caso. O homem inteligente que era Camilo Raff sentia-se mal, recordando
aquela conversa; temia haver perdido terreno na confiança daquele rapaz que podia ser
rancoroso como o são os caracteres vis e também, algumas vezes, os caracteres bastante
elevados; não compreendeu imediatamente a inépcia que cometera e também não fez o
esforço extremo de procurá-la; era difícil oferecer o ouvido a mil vozes diferentes e
satisfazer às mil exigências da vida; sem contar que se fazia necessário, além disso, vencer
as dificuldades da existência e não se deixar invadir pela amargura de uma ambição
paralisada, de uma situação pecuniária medíocre. As vezes, o rosto do rapaz passava diante
dos seus olhos, sempre levantado e de perfil, em atitude de provocação, sem frouxidão
vulgar nos contornos, e pouco a pouco se compenetrava de que, naquele dia, se enganara
no seu julgamento. Essa certeza se confirmou ao fim de cinco minutos. O rapaz havia
mudado de um modo evidente, sua atitude era inteiramente diferente da que Camilo Raff
constatou durante sua conversa com Thielemann. Talvez houvesse mesmo, em Etzel,
alguma coisa de atrevidamente superior que zombava dos "senhores professores" quando
lhe davam uma nota má…
Mas, que se passara com ele? Não era coisa cômoda sondá-lo. Era astucioso e reservado.
Camilo Raff não o quer assustar e avança tateando como sobre uma superfície
escorregadia. Quando, afinal, graças às afirmações socráticas do mestre, o rapaz se decide
a fazer algumas afirmações, evita desaprová-lo ou refreá-lo, por exemplo: - "É indispensável
que o espírito esclareça as coisas" - diz Etzel - "é preciso tomar posição, deliberar, pesar. Ao
agir, é pela inteligência que devemos compreender as coisas. É indispensável que o espírito
proceda lenta e metodicamente." - "Sim, sem dúvida" - diz Camilo Raff escondendo um
movimento de ironia - "certamente." Nesse momento, tergiversa, ainda quase sem
esperança. - "Impossível atingir-se um fim determinado, se não se é capaz de excluir a
paixão" - diz Etzel com a expressão de um analista fortalecido pelos tormentos do
pensamento. "É verdade" - concede o doutor Raff um pouco ansioso e pondo a mão no
ombro de Etzel como para o impedir de dar um salto perigoso - "é verdade. Desse modo se
poupam complicações importunas e principalmente as surpresas do imprevisto. É também
um meio excelente de não alimentarmos quimeras. Pouco a pouco, é a forma dialogada, o
processo dialético que se impõe ao pensamento e depois... como dizer?... tem-se o
sentimento de não mais estar sozinho. Mas esse sentimento acarreta ao mesmo tempo a
abolição da consciência moral - entenda-se: se nos colocamos em um ponto de vista
elevado - pelo fato de que se acumulam as responsabilidades e os autores do ato
desaparecem na multidão. Isso, porém, não seria grave. O anonimato é, sob vários
aspectos, uma coisa muito bela. Mas, Andergast, a consciência também está associada à
ciência, (uma espécie particular de saber), ao julgamento e à lei. Há no termo que a
exprime tanta profundeza e tanta sabedoria... e quem jamais saberá a soma de consciência
necessária para a ação!... Questões como essas são insondáveis poços de minas!..." Calou-
se, atemorizado com o olhar ávido e brilhante do rapaz. Aquele "salto perigoso" era
evidentemente um salto na água gelada. "Nem todos os organismos suportam a água
gelada e, principalmente, a transição brusca" - pensava Camilo Raff, intrigado com a
atitude de Etzel. - "Todos eles vivem pelo cérebro ou assim proclamam, pelo menos. É a
bandeira que ostentam. E, sem dúvida, foi por isso que Etzel ultimamente se melindrou
tanto comigo ao ver que eu censurava nele um excesso de sentimento. Eis a chave do
enigma. Bem! bem! bem! Em todo caso, isso ainda é melhor de que viver sem contar com o
cérebro, esbanjando sentimentos, pura atitude literária com a qual os da minha geração
pensavam concorrer para o avanço do mundo. É verdade: não fomos muito longe com essa
política do coração. Isso a que se chama coração tornou-se o eterno devedor. Essa
mocidade com o seu método, suas análises intelectuais, seu hábito de tomar posição -
termo abominável! - superou-nos, como eles dizem, e devemos considerar-nos felizes com
o ato de aceitarem ainda de nós um pedaço de pão. E não sei se nos ficam agradecidos ... "
Suspirou e Etzel sorriu como se o doutor Raff tivesse expresso, em voz alta, as suas
ideias. Talvez houvesse sorrido apenas porque o outro suspirara ou talvez porque
pressentisse tudo, e tudo compreendesse - sim, porque ele é de uma maravilhosa
inteligência... Fareja e domina todo esse vasto mundo, conhece tudo, tudo sabe, e eis por
que sorri. Depois, novamente, cheio de confiança, fita com benevolência aquele mestre de
rosto ainda jovem. Por um momento, andam lado a lado, em silêncio. Levado por aquele
novo afluxo de confiança, Etzel faz prudentemente algumas alusões que clareiam um
pouco o seu estado de alma e revelam a agudeza da crise que atravessa. Fala de um dilema
que o impele a uma resolução, a uma resolução inspirada unicamente por um princípio. -
"Não se trata", diz ele com grande eloqüência de palavras e gestos ("não teria ele, Deus
sabe de onde, sangue israelita nas veias?" - pensa algumas vezes Camilo Raff, observando
seus movimentos apaixonados, a brusca mobilidade do seu rosto moreno) - "não se trata de
oposição, não nos podemos opor ao ar que respiramos. Poderíamos apenas nos evadir, o
que seria arriscar muito, porque não sabemos se respiraríamos mais facilmente na outra
atmosfera onde fôssemos cair. Não é, pois, uma questão de oposição e ainda menos de
contradição. Não podemos protestar quando nada nos foi dito, o senhor compreende bem o
que quero dizer. Estou em uma horrível situação... É indispensável que encontre um meio
de sair dela."
Deteve-se, o punho comprimido contra o peito, o dedo indicador da outra mão sobre o
nariz, num embaraço cômico. - "Bem, diga o que você tem no coração," - sugere Camilo
Raff, acoroçoando-o- "até aqui, meu caro, você falou por enigmas." Etzel toma um impulso,
volta-se para Camilo Raff e pergunta: - "Diga-me, em certas ocasiões existe
verdadeiramente conflito de deveres?" Camilo Raff sacudiu a cabeça. - "Isso pertence a
velhos problemas da ética, muito discutidos", respondeu ele, sorrindo. - "O senhor está
fugindo do assunto", continuou Etzel insistentemente, quase suplicando, "mas é isso o que
eu quero saber: há conflito de deveres ou existe um só e único dever?" - "É preciso que
você se explique mais claramente" disse Camilo Raff acuado e surpreendido pelo tom
categórico do rapaz. - "Bem", - disse Etzel abanando a cabeça - "bem. Mas talvez o senhor
não admita a explicação. Por certo o senhor me dirá que tenho dezesseis anos apenas. Sim,
agora já tenho dezesseis anos e quatro meses. O senhor é duas vezes mais velho, não é
verdade? Trinta e quatro, trinta e cinco anos? Bem! já é muita idade, trinta e cinco anos!
Meu Deus, há dezesseis anos que vivo no mesmo lugar, na mesma casa, no mesmo quarto!
Eu não sou um imbecil, já tenho alguma experiência dos homens - e se não fosse essa
complicação da minha miopia... Vai ser preciso que eu use óculos, não obstante o que diz o
doutor Malapert. Pois bem, eis o que eu acho: que pode importar que eu tenha dezesseis,
dezenove ou vinte e cinco anos? Não se pode esperar sem fazer nada. O que é que se
ganha, envelhecendo? Há casos em que o acontecimento ordena: agora ou nunca." Aí,
Etzel se embaraçou no seu discurso. Camilo Raff o olhou, cada vez mais surpreso. - "Onde
você quer chegar?" - indagou a meia-voz, com a impressão de que ia precisar segurar pelas
mãos o ardente rapaz e gritar-lhe: - "Calma, menino, façamos as coisas uma depois da
outra; nada de precipitação."
- "Responda à seguinte pergunta" - prosseguiu Etzel e, no seu ardor, agarrou, como
recentemente fizera com o velho Maurizius, Camilo Raff pela manga do paletó. - "Só me
responda a isso: um homem está preso há muitos anos, é possível que seja um inocente, é
possível mesmo que se possa provar sua inocência. "Temos o direito de nos deixar desviar
desse fim por um motivo qualquer? Temos o direito de tardar ou de refletir? Existirá um
outro dever a ser levado em consideração? Diga-me, sim ou não?” Sim ou não: novamente
o absoluto, a exigência apaixonada, a ditadura moral, sendo preciso ainda uma vez
responder sem tergiversar, como tivera de fazer o pobre Roberto Thielemann ("a mesa voa!
... o pássaro voa! ... ") . Como era possível responder? Como, um Camilo Raff podia atirar
fora o conhecimento que tinha da vida e do mundo e fortalecer um rapaz, ainda menor, em
Deus sabe que perigosa loucura?! No entanto, alguma coisa havia ali que abalava até o
fundo da alma aquele conhecedor do mundo e da vida. A sua volta, tudo começava a
oscilar como em um terremoto. Prudência, reserva, medo das conseqüências, consciência
da inutilidade do esforço, tudo desmoronava - e só permanecia de pé aquele rapazinho
ardente com o seu "sim ou não". Assim, Camilo Raff, quase contra a vontade, com o
sentimento de estar vencido e num sobressalto de revolta contra sua própria razão, disse: -
"Tem-se o direito, Andergast... não sei se se tem o direito ou o dever... você, talvez, você
tem o direito, talvez... e talvez o dever..."
Deteve-se bruscamente. Etzel o olhou com um sorriso feliz, radiante de reconhecimento.
Em silêncio. percorreram juntos um trecho da rua. Em silêncio se separaram, com um
aperto de mão.
"Em que dará tudo isso?" - pensou Camilo Raff, já voltando a si e sentindo que os
escrúpulos se sucediam aos escrúpulos. - "Que plano esse rapaz estará escondendo? Como
professor consciencioso, não estou na obrigação de advertir o pai? Mas, seria perder para
sempre a amizade do rapaz e ser por ele considerado como um mentiroso e um simples
fazedor de discursos. Mas, qual será o plano? O salto na água gelada?" Camilo Raff receia
que o contacto com a água gelada faça arrebentar aquele frágil vaso. Impossível descobrir
o que tão manifestamente levou o rapaz a passar dos atos ingênuos e espontâneos para o
ato consciente e refletido. "É preciso" - pensa ele - "que um espírito de dezesseis anos
descreva livremente a sua curva, que se mova com a ilusão do ilimitado. Quando, deixando
seus livres sonhos e seus livres jogos, é obrigado a entrar na atividade utilitária, começa
inevitavelmente a sofrer porque adivinha e logo sente ser necessário renunciar ao caos, à
infinita abundância, que o tornavam tão perfeitamente feliz e de que a vida nunca lhe dará
a compensação."
CAPÍTULO 5
 
 
 
I
 
 
TRÊS DIAS DEPOIS da visita à avó, Etzel deixou a casa paterna e a cidade. Era uma terça-
feira, penúltimo dia das férias da Páscoa. Dissera a Rie, na noite de segunda-feira, que
havia combinado com Thielemann e os irmãos Foerster-Loering uma excursão a Hohen
Kanzel. Partiriam às seis horas da manhã e voltariam pela tarde da quarta-feira. Pedira a Rie
que preparasse provisões para a viagem. Como desde o meio-dia estivesse chovendo, Rie
observara que provavelmente também choveria no dia seguinte. Respondera que haviam
decidido partir sem se importar com o tempo. - "Se isso dependesse unicamente de você,
Rie" - disse ele, lançando-lhe um olhar malicioso - "eu sempre ficaria em casa, quietinho. O
que você quer é prender-me ao pé da sua cadeira." Na verdade, não gostava daquelas
"aventuras" e tinha horror de qualquer mudança do curso regular dos dias, consagrado
pela repetição. O barão Andergast, porém, já dera seu consentimento, e teve de se inclinar.
No entanto, uma coisa a preocupara: Etzel, depois de preparar seu saco de turista, ainda
ficara, à noite, no quarto, abrindo e fechando gavetas, remexendo em papéis e conservando
ao mesmo tempo um silêncio incomum. Impressionara-se também com o volume do saco,
no dia seguinte de manhã, quando Etzel saíra do quarto. Era um fardo que carregava com
dificuldade, de tal modo era grande e pesado. Espantada, perguntara por que levava tanta
coisa para um só dia; ele respondera, corando, que eram livros emprestados pelos Foerster-
Loering e que ia devolver, porquanto devia passar por casa deles; além disso, levava um
capote que Roberto lhe emprestara recentemente. Percebia-se a mentira no seu rosto. Rie
sabia que ele mentia, mas não supôs nada de mais e ficou mesmo comovida quando o viu
censurar-lhe por haver se levantado tão cedo. Não haviam combinado na véspera que
almoçaria na estação? Ela, porém, quisera mostrar de que sacrifícios era capaz, quando se
tratava dele; e o fato de que a sua solicitude não passara despercebida atenuou o mal-estar
que aquela hora matinal, sombria e chuvosa, lhe causava. Além de outras provisões,
pusera-lhe no bolso três fatias de pão com geléia. Etzel agradecera e, retornando ainda
uma vez ao vestíbulo, dera-lhe um beijo sonoro na face, partindo logo em seguida. Nessa
mesma manhã, o barão Andergast, indo a negócios a Limbourg, preveniu que só voltaria na
quinta-feira para o almoço. A noite de quarta-feira já ia avançada e Etzel ainda não
regressara; Rie, então, começou a se inquietar. Às onze horas, como os Thielemann não
tinham telefone, resolveu tocar para os Foerster-Loering. Passou um certo tempo antes que
alguém respondesse. E seu pasmo não foi pequeno quando soube que os dois rapazes
estavam em casa, deitados havia muito tempo e que, naquele dia e na véspera, não haviam
saído para nenhuma excursão. Nem se cogitara disso. No seu assombro, deixou cair o fone,
correu ao quarto da criada e despertou a cozinheira com quem deliberou. Afinal, acalmou-
se, mas não pode ir se deitar. Ficou andando até uma hora e meia, olhando pela janela de
dez em dez minutos, a vista e os ouvidos alertas, tomada de uma série de alucinações em
que se sucediam catástrofes, crimes, acidentes, raptos de toda espécie. Deitou-se quando
não pode mais se manter sobre as pernas e, apesar do peso que tinha no coração — a
verdade nos obriga a contar — entregou-se a um bom sono que só a abandonou depois da
hora de costume. A volta do dia e das suas exigências cotidianas restituiu-lhe a coragem;
soltava um suspiro de alívio a cada toque de campainha no vestíbulo e, embora sempre se
decepcionasse, continuava a esperar com confiança a volta do rapaz. Somente quando
mandou a criada em casa dos Thielemann, e ela chegou trazendo resposta igual à dos
Foerster-Loering, foi que as imagens terrificantes a assaltaram novamente e, para escapar-
lhes, vestiu-se e foi à cidade fazer compras. Era uma hora quando voltou. A sua primeira
pergunta à criada foi: " Já chegou?" - "Não" - foi o que lhe responderam. E ainda não tivera
tempo de ocultar sua desorientação, quando a porta do vestíbulo se abriu: o barão
Andergast estava em sua frente. Voltou-se para ele com as mãos juntas: - "Barão, Etzel
ainda não voltou." O barão entregou à criada sua pequena valise, o capote, o chapéu e, um
pouco surpreso, disse: - "Ah, é estranho!" Lançando um olhar inquiridor sobre o rosto pálido
e inchado de Rie, encaminhou-se para seu quarto. Lá, sobre a secretária, entre outras
cartas que tinham chegado durante sua ausência, havia uma de Etzel.
 
 
 
 
 
 
II
 
 

O barão Andergast leu a carta. A expressão de sua fisionomia não mudou. Apoiou-se no
encosto da poltrona e ficou olhando para o ar. Uma mosca, indo e vindo no teto, pareceu
interessá-lo vivamente. No fim de um momento, apanhando o envelope, examinou-o. Trazia
o carimbo da cidade, da manhã de terça-feira. Um instante depois, tomou do telefone:
chamou a delegacia central e anunciou sua visita ao delegado para três horas e um quarto.
Durante o almoço, guardou silêncio absoluto. Rie empreendeu inutilmente inúmeras
tentativas para obrigá-lo a falar sobre o assunto que a torturava; o barão parecia insensível,
exatamente como nos outros dias, absorvido únicamente pelos seus pensamentos. Mas,
quando se levantou da mesa, chamando-a ao seu gabinete, pediu secamente que contasse
o que observara no instante da partida de Etzel. A narração de Rie perdeu muito da sua
clareza devido à desaprovação que se lia nos olhos violetas do barão. Era como se este se
sentisse fundamente importunado com sua tagarelice. Dir-se-ia, quando se referiu à
enormidade do saco de turista, que havia descoberto o detalhe naquele instante mesmo;
narrou-o com uns: "ah! sim, foi bem isso... Quem é que poderia pensar nisso?" O barão
Andergast disse gravemente: - "Decerto, quem poderia pensar em tudo? É coisa que não se
pode exigir de ninguém!" Rie o olhou, perplexa. Sua boca se contraiu para chorar. O barão
Andergast exprimiu o desejo que se fizesse a lista do que Etzel levara, em matéria de
roupas e livros, e que essa lista lhe fosse entregue ainda naquela tarde. Isso equivalia a
dizer a Rie que a audiência estava terminada.
O tom da conversa que teve com o delegado, o senhor Altschul, foi o usual entre colegas.
Primeiramente, fez a declaração oficial do desaparecimento de Etzel e deu todos os seus
sinais. No decorrer da conversa, depois que o delegado exprimiu sua simpatia e uma certa
surpresa, o barão Andergast deixou transparecer o desejo de que se usasse da maior
discrição nas medidas a tomar para a perseguição e a detenção do fugitivo, e
principalmente no que se referia aos comunicados à imprensa. O delegado compreendeu e
disse que daria ordens nesse sentido; perguntou se havia alguma razão conhecida que
pudesse ter motivado a fuga do rapaz. O barão respondeu negativamente. (Não tenho
necessidade de insistir sobre esse fato porque já se pode concluir que ele, não se referindo
à carta de Etzel na sua conversa com Rie, estava resolvido a não falar mais nisso e a agir
como se nunca a houvesse recebido). - "O rapaz fez preparativos?" - indagou o delegado,
continuando o seu interrogatório que, dirigido a um homem de tal posição, tomava o
caráter de simples solicitude que somente por amizade se tornava curiosa. - "Apenas os
mais indispensáveis", respondeu o barão Andergast. - "Não teria falado a alguém de casa, a
um camarada?" O barão sacudiu os ombros: - "Que eu saiba, não", disse ele. Mas,
procuraria saber; devido ao pouco tempo decorrido, ainda não pudera informar-se direito. -
"Mas, esse rapaz de dezesseis anos tinha o dinheiro necessário para uma ausência que
certamente sabia dever durar bastante tempo?" O barão Andergast respondeu dizendo
que, àquele respeito, também não podia dar nenhuma informação e que no fundo se
tratava de uma travessura de menino, mas que, de qualquer modo, era um pouco
inquietante. - "Alguém tinha ideia do lugar para onde ele se dirigira, possuía relações
secretas, uma correspondência clandestina, pertencia a um grupo político qualquer?" -
"Não se pode admitir nada de semelhante" - replicou friamente o barão. - "Nenhum
parente exercia, secretamente, influência sobre "ele?" (o delegado conhecia, naturalmente,
a situação de família do barão - foi hesitando que fez a pergunta, como se pedisse perdão
pela indiscrição). O barão Andergast abaixou as pálpebras e respondeu em tom categórico,
não muito razoável: - "Não, também não. É impossível". Apanhou o chapéu, levantou-se e
disse: - "Ainda há uma coisa que devo acrescentar: meu filho é muito míope, a ponto de
não distinguir as fisionomias a dez passos de distância. Como essa miopia não se acentuou
nesses últimos anos,- médico desaconselhou até aqui o uso de óculos. Mesmo assim, penso
que esse defeito facilitará a tarefa de encontrá-lo." - "É também a minha opinião" -
concordou o delegado. Quando o procurador-geral o deixou, permaneceu pensativo. Os
homens desse ofício têm uma perspicácia extraordinária para reconhecer se os
depoimentos estão completos ou apresentam lacunas, adivinham a mais ligeira reticência,
a mais imperceptível reserva. Assim, o delegado não pode deixar de pensar que o barão
não dissera tudo - julgara necessário silenciar detalhes importantes. Achou, porém, que
nada tinha a ver com aquilo. No entanto, se acreditava ser coisa fácil agarrar o fugitivo e
trazê-lo de volta a seu pai, enganava-se redondamente. O aparelho administrativo agiu
com a precisão habitual: os postos das estações foram avisados, todas as delegacias foram
alertadas. Mas não houve publicidade em torno do caso - aliás, esse processo não teria
produzido o menor resultado. Dir-se-ia que o rapaz desaparecera da superfície da terra.

  
 
III

A carta de Etzel não era de natureza a tranqüilizar o barão Andergast. Como pai, estava
profundamente ferido, atingido na sua autoridade e se sentia como homem, como pessoa
humana, como amigo confiante, vergonhosamente enganado (porque se iludira a ponto de
considerar-se amigo do filho. ) Julgava-se ardilosamente lesado na confiança que tão
generosamente concedera a Etzel. Já a primeira frase se prestava ao riso: "Não posso
permanecer por mais tempo em sua casa; se a deixo, não o faço em virtude de uma decisão
leviana, mas depois de uma luta de consciência." Ah, ele lutou! a casa... uma decisão... o
que é que deu a você o direito, o poder de tomar decisões, espécie de fedelho? Quem
ensinou você a julgar? Onde você aprendeu que a consciência proíbe ou ordena, quem
perguntou pelas suas razões? Depois, esse trecho: "Não posso dizer o que nos separa,
porque tudo nos separa. Sinto-me sem defesa contra o desprezo com que você olha a
minha mocidade, mas talvez possa alcançar o fim que procuro, - então forçá-lo-ei a
respeitar a minha personalidade, apesar da minha juventude." Que insolência! Quando se
esteve muitas vezes em contato com as misérias da vida, não se arrisca cair nas banais
lamentações dos pais que se lastimam da ingratidão dos filhos, nem se teme passar por
"antiquado" quando se constata que eles não encontram rivais no exagero com que
superestimam seus atos e intenções. Mas, uma frase como esta: "não posso dizer o que nos
separa, porque tudo nos separa", acaba por despertar uma dúvida no barão Andergast: não
faltaram a Etzel sanções eficazes, por menor que pudesse ser o valor educativo das
mesmas? E depois, o máximo: "não tenho mais repouso desde que conheci o destino e o
processo de Leonardo Maurizius e o papel que você desempenhou na sua condenação. É
preciso que a verdade apareça, quero descobrir a verdade." Frase que, apesar de toda sua
louca presunção, merecia apenas um piedoso encolher de ombros .. .
Eis a carta na íntegra:

Caro papai, 
não posso permanecer por mais tempo em sua casa; se a
deixo, não o faço em virtude de uma decisão leviana, mas
depois de uma luta de consciência. Peço de todo o coração que
não veja nisso uma falta de respeito. Tenho consciência do que
devo a você, mas, não existe caminho que nos aproxime um
do outro, e não posso esperar encontrar nenhum. Não posso
dizer o que nos separa, porque tudo nos separa. Sinto-me sem
defesa contra o desprezo com que você olha a minha
mocidade, mas talvez possa alcançar o fim que procuro, e
então forçá-lo-ei a respeitar a minha personalidade, apesar da
minha juventude. Dizem que as ideias engendram as ideias,
mas a verdade permanece fora desse ciclo, e é preciso criá-la,
como qualquer obra, creio eu, através dum laborioso esforço. É
impossível erguer uma carga sem alavanca. Foi um nome que
se tornou para mim alavanca; não tenho mais repouso, desde
que conheci o destino e o processo de Leonardo Maurizius e o
papel que você desempenhou na sua condenação. É preciso
que a verdade apareça, quero descobrir a verdade. Ainda
tenho um grande pedido a fazer, que mal ouso formular aqui,
na esperança de, talvez, ser atendido: não me procure, não
mande me procurar, deixe-me livre, não posso dizer por
quanto tempo, e não seja meu adversário nessa questão. Seu
filho,
ETZEL.
"É encantador, - concluiu irônicamente o barão Andergast - ele queria, ainda por cima, se
oferecer o luxo da minha aprovação tácita; mas, por mais desagradável e penosa que seja
toda essa história, passemos à ordem do dia. Não ter previsto isso e deixar-me lograr! Fui
um duplo louco por ter-me deixado enganar por um louco - eis o meu erro. É preciso que
me habitue com a ideia de ter sido enganado por um fedelho.
"Precisava esquecer aquela carta. Lembrando-a, tinha a sensação de andar com uma
pedra pontuda no sapato que não podia tirar por questão de boa educação. Esquecer,
porém, não era tão simples assim. Repugnava ao barão Andergast, por causa de uma
travessura de menino, ter de recorrer aos meios oficiais. Não podia decidir-se a ver naquela
fuga outra coisa do que uma tolice, de que queria ignorar os pretensos motivos. Para ele,
refletir sobre esses motivos era consentir numa indignidade. Possuía o dom de desviar o
pensamento de um assunto com o qual não se queria preocupar. Era uma questão de
domínio sobre si mesmo. Mas, à medida que os dias passavam e as providências tomadas,
não obstante sua comprovada eficácia, permaneciam sem resultado, a travessura adquiriu
um novo aspecto, forçando pelo menos uma atenção que não merecia; súbitamente se
formou um mal-estar semelhante ao que se sente quando, olhando-se um relógio onde já
se viram as horas inúmeras vezes, percebe-se de repente a ausência dos ponteiros no
mostrador. Ajuntava-se a isso a deplorável atitude de Rie que exprimia tacitamente, mas de
modo importuno (de tão tímido) e enervante (de tão repetido), lamentações, suspeitas,
censuras, espanto. Depois, veio a necessidade de prevenir diversas pessoas pelo telefone: o
diretor do liceu, o professor principal, o doutor Raff (a quem pedira nessa ocasião - alertado
pelo seu tom embaraçado e reticente - que viesse visitá-lo no domingo seguinte), e de
responder a diversas pessoas conhecidas que tinham ouvido falar do desaparecimento
misterioso do rapaz e que, fosse por simpatia ou curiosidade, não podiam deixar de fazer
perguntas. Tudo isso irritava e perturbava a tal ponto o barão Andergast que encarou a
possibilidade de pedir uma licença e sair da cidade por algumas semanas. O projeto,
porém, ficou sem execução.
IV
 

Tendo telefonado à tarde, a generala soube de tudo por intermédio de Rie. O barão
Andergast já esperava por isso quando ela o chamou ao telefone, à noite. Suspeitava-a de
ter adiantado o dinheiro a Etzel. Como não se podia admitir que o pequeno tivesse fugido
sem dinheiro, e como se sabia ser a avó a pessoa mais próxima a quem se podia dirigir, — a
fraqueza da velha tornando o sucesso da empresa quase certo — imediatamente a suspeita
tomou foros de meia-verdade. A velha, com a voz trêmula, disse ao filho que estava doente,
que não podia sair de casa, que havia tocado inutilmente para o seu gabinete e que o
esperava naquela noite. O barão pediu um táxi e partiu. Depois de conversar cinco minutos,
e sem demonstrar trazer segundas-intenções, obteve a confissão de que havia dado
trezentos marcos a Etzel. Conduzira a coisa de tal modo e com tal segurança, que ela
permanecia estupefata, olhando-o boquiaberta, sem defesa. Estava deitada na cama, uma
coberta de cetim envolvendo seu frágil corpo, a cabeça apoiada, numa atitude elegíaca,
sobre os travesseiros bordados. Por sua vez, o barão Andergast mantinha a mais delicada
das atitudes. Apanhara sobre a mesinha de cabeceira uma faca de cortar papel, de marfim,
que segurava entre os dois dedos indicadores, o rosto não revelando a menor emoção. Sua
tática consistia, sem dúvida alguma, em exprimir pelo silêncio tudo o que desdenhava
dizer em palavras, que talvez fosse possível refutar ou, pelo menos, contestar. Conhecia o
efeito e o valor desse silêncio e sabia avaliar seu alcance, como um oficial de artilharia
avalia a trajetória de uma granada. O que esperava produziu-se: a generala perdeu o
controle, a cólera ensombrou seus olhos, revoltou-se contra a tortura que aquele mutismo
ambíguo e cortês provocava nela, e gritou que fora ele quem estragara tudo, no que dizia
respeito a Etzel, que era o culpado de tudo, ele e o seu sistema de caserna, que o rapaz
fugira para... bem! talvez para ir encontrar a mãe e... o que mais? Meu Deus! Sim... para ser
um pouco mimado. Talvez fosse isso o que lhe tivesse faltado: ser um pouco mimado. O
barão Andergast ergueu sobre ela um olhar de interesse. - "Mamãe," - disse com espanto e
frieza - "é a primeira vez que ouço dizer semelhante coisa. Quem teria pensado nisso?
Nunca essa ideia me teria vindo à mente, como se explica que você ache isso?  É uma
simples suposição de sua parte ou você se baseia em alguma coisa precisa? Como teria ele
sabido... é estranho; então, estaríamos diante de uma traição odiosa... você talvez... quero
dizer, você conhece... o lugar onde ela está?"
Seu olhar repousava, com uma placidez metálica, no rosto da velha, cujos olhos de
criança amedrontada, como dois pintainhos que sentem o abutre pairar sobre suas
cabeças, tentavam escapar. A generala fez um movimento de protesto. - "Oh! não", -
assegurou com uma expressão de pesar por demais sincero para o barão poder duvidar da
sua veracidade - "como saberia eu? Você foi bem sucedido no seu sistema de vendar os
olhos e amordaçar as pessoas que o cercam. Quem, mesmo sabendo alguma coisa, ousaria
falar? Eu sempre me pergunto, Wolf, se você é um ser vivo com um coração no peito, como
as outras criaturas. Você infunde medo. Sente-se medo assim que você entra em qualquer
lugar." O barão Andergast se levantou, sorrindo: - "Eu espero que sua indisposição seja
passageira, mamãe", - disse em tom onde se misturavam solicitude, aborrecimento e
lassidão - "em todo caso, pedirei a Nanny para me avisar, amanhã, como você passou e
dizer o que ordenou o médico." Ele quis beijar a mão para se despedir, mas ela, ferida com
o seu modo altivo de se esquivar, superexcitada até a indignação com a sua calma
imperturbável, disse imperiosamente: - "Fique, não vá tão depressa assim, ainda não
acabamos com o assunto. Onde está Etzel, onde está o seu filho? Você não sabe, eu é que
vou saber? Você me suspeita de estar de conivência com ele... foi aliás o que eu disse a ele
... conheço bem o mundo em que vivo ... Bem, que irá acontecer? Você, naturalmente, vai
soltar os seus cães da polícia no rastro dele, acuá-lo ainda mais. Pelo menos, tem alguma
ideia do que se passa com esse rapaz? Não, você não sabe nada, nada, nada, nada, você
não sabe nada a respeito de Etzel, a respeito de ninguém. Você não caçou Sofia como um
cão, não forçou o seu amante a fazer um juramento falso, de modo que só lhe restou meter
uma bala na cabeça? E, ainda que tudo isso se tenha passado segundo a lei e as exigências
da honra, corretamente como numa parada... Está bem... não digo nada... não digo nada,
mas, por momentos, isso me corrói a alma quando estou deitada e penso ... " Deteve-se
então, aterrorizada ao observar a palidez do filho. Deixara-se levar, sua natureza emotiva
arrastando-a dessa vez sob a pressão da tristeza que sentia por causa de Etzel e sob o
impulso de coisas que recalcara durante anos. Inadvertidamente, afastara o véu que
ocultava as infelicidades passadas e tocara com o dedo o ponto único que, separado dos
outros fatos, surgia, é verdade, como uma falta indelével; mas, no fundo da cena, jazia uma
vida, jaziam destinos. Arrependeu-se imediatamente do que dissera, levou as mãos aos
olhos e soluçou docemente. Realmente, o rosto do barão Andergast se tornou branco como
gesso. Ergueu lentamente a mão esquerda e enrolou com os dedos a sua pera grisalha,
depois umedeceu os lábios com a ponta da língua, abaixou as pálpebras avermelhadas e,
muito baixo, disse: - "Está certo, mamãe, não tenciono ajustar as suas visões romanescas.
No futuro, se você quiser manter as nossas relações, espero que tenha a bondade de evitar
qualquer alusão à minha pessoa e ao meu passado." Disse isso com o mesmo tom que
adotava nos seus interrogatórios. A velha se arrependeu. Arrependeu-se, mas, para quê? As
pessoas que uma grande precipitação força a pecar pela língua vêem-se numa situação
muito pior do que a daqueles cujos atos elas incriminam.
Na manhã do dia seguinte, o barão Andergast interrogou Rie ainda uma vez. As palavras
de sua mãe sobre Etzel - "fugira talvez para ir encontrar a mãe" - não lhe saíam do espírito.
A velha tendo afirmado, de um modo impressionante, não ter feito a menor revelação, Rie
era a única pessoa que poderia ser suspeitada; mas, quem a teria informado? Era claro
como o dia que, não podendo transpor a fronteira francesa, o rapaz jamais poderia
encontrar a mãe e, além disso, por mais insensata e romântica que fosse a empresa, não
era admissível que a razão confessada da sua partida não fosse a verdadeira. O caso tinha
um caráter diferente, e as considerações puramente sentimentais não eram o forte do
rapaz. No entanto, o barão não queria largar o fio agarrado por acaso: os homens, pensava
ele, mesmo os mais irrepreensíveis, os mais inatacáveis, têm na alma um recanto que
guarda o germe do crime. E é por isso que nunca são conhecidos a fundo. E, quanto à sua
mulher — coisa inquietante, ela mudara de residência e sentia prazer, de tempos para cá,
em importuná-lo com reclamações sobre o filho —, era impossível imaginar todos os meios
contrários ao acordo feito, aos quais recorria alegando a saudade que sentia de Etzel.
Mandou chamar Rie.
Por demais esmagada pela impiedosa insistência do barão Andergast, Rie não pode negar
que soubesse da mudança de residência de Sofia pelo selo da sua última carta e confessou
ter falado a Etzel, ainda que sem má-intenção. O barão disse: - "Eu considero o seu
procedimento como um abuso de confiança; se fecho os olhos, é tão-sòmente porque você
está em minha casa há muito tempo." Dessa conversa, guardou amarga recordação:
parecia-lhe que o seu sistema voltava as suas pontas contra ele próprio, que os espiões a
seu soldo espreitavam-no, que as suas criaturas se haviam tornado traidoras. Um
intermezzo irritante, eis como tudo aquilo lhe aparecera logo de início: um rapaz, o cérebro
possuído por uma ideia exaltada, foge da casa paterna, é agarrado, e, durante um
momento, é tratado friamente. O que mais? Todavia, o que acontecera fora outra coisa,
talvez um pouco diferente, mas como,de que modo? Que era aquela outra coisa
contrariante, deplorável? Resolvera chamar o delegado ao telefone para perguntar se
haviam descoberto algum vestígio do rapaz. Absteve-se, porém. Cada vez que queria tirar o
gancho do telefone, contraía os lábios como tomado de nojo e permanecia algum tempo
sentado na sua secretária, absorvido em sinistras meditações.
V
 

Deliberadamente, o barão Andergast manteve para com Camilo Raff um tom de


cordialidade. Apertou-lhe a mão como se, havia muito tempo, desejasse uma entrevista
íntima com ele e supusesse no professor as mesmas disposições. Em verdade, apesar do
seu renome, não via nele nada mais do que um simples professor; inúmeras pessoas
prezavam muito o espírito e a cultura de Camilo Raff, mas isso não acontecia ao barão.
Tinha em medíocre estima - coisa que inutilmente dissimulava - os educadores em geral,
de qualquer categoria que fossem. Talvez fosse necessário procurar a causa desse
sentimento em uma sobrevivência feudal, ou no fato da intolerante desconfiança que as
personalidades poderosas em geral sentem pelos conhecimentos acessíveis a todos e pelo
saber necessariamente dissolvido e empobrecido que constitui a ciência vulgarizada. De
qualquer modo, Camilo Raff se surpreendeu com aquela acolhida. Conhecia o barão
Andergast apenas pelas suas visitas oficiais ao liceu. Tinha o hábito de se informar duas ou
três vezes por semestre, do progresso do filho junto ao professor principal. Camilo Raff se
considerava feliz toda vez que essa conversa, sempre fria e convencional, terminava
naturalmente. Eis que agora, porém, tinha pela frente um homem amável que conversava
de uma maneira encantadora. Apesar da sua filosofia e da sua altivez democrática, as
pessoas de condição modesta sempre se deixam cativar pela afabilidade e pela atenção
daqueles que pertencem a uma posição social mais elevada. O doutor Raff era por demais
inteligente para não saber disso e mantinha-se de sobreaviso. Apesar do que, foi vencido
pela delicadeza daquele homem que, por certo, lhe era infinitamente superior por sua
habilidade e conhecimento dos outros homens e não viu a armadilha que lhe armava.
Realmente, o barão Andergast tinha razões para supor (também aqui suspeitas, sempre
suspeitas... por toda parte a rede se partia e os subalternos eram desleais) não ter sido
sempre educativa a influência que Camilo Raff exercera sobre Etzel e que uma nefasta
indulgência, talvez mesmo culpada em face de certas tendências condenáveis, tivera um
papel importante naquela fuga. Irradiava-se igualmente de Camilo Raff uma atração que
realmente intrigava. Com efeito, tinha conhecimento bastante preciso e representação
ainda mais perfeita da pessoa e do caráter de Etzel, e dizia a si próprio: "Este pai não tem,
provavelmente, uma ideia exata sobre o filho. Se alguém existe em condições de retificá-lo,
sou eu. E o farei de tal modo que disso ele tão cedo não se esquecerá." Dois intuitos o
moviam: primeiro, um sentimento que tocava a vaidade e de que, em casos semelhantes,
aquele que ensina não está isento, mesmo sendo perfeitamente sincero; depois, a
necessidade de se libertar, graças à exteriorização, do constrangimento que o barão exercia
sobre ele, apesar de toda a amabilidade. Assim, defendendo do melhor modo possível seus
interesses, agiam ambos em perfeita harmonia aparente. Raff contou ter conhecido Etzel
dezoito meses antes, no campo de férias da Odenwald, simpatizando tanto com ele que,
chamado a ensinar no mesmo outono no liceu da cidade, alegrara-se com o feliz acaso que
fazia dele seu aluno. Cuidara muito do rapaz, principalmente no último semestre, quando
passara para o primeiro ano, de que ele, Camilo Raff, era professor. O barão Andergast se
inclinou um pouco para a frente, as mãos juntas sobre os joelhos cruzados. Sua atitude e
fisionomia exprimiam uma curiosidade polida que lisonjeou Camilo Raff e levou-o a fazer
uma profunda análise de caráter, cheio de simpatia e do secreto desejo de informar ao pai
coisas novas e imprevistas sobre o filho. E ei-lo a falar da transparência límpida da natureza
de Etzel: não se refere a "transparência" no sentido ordinário da palavra, nem a isso a que
se chama, comumente, de caráter franco. Etzel não era absolutamente um caráter franco;
nem franco, nem dissimulado, mas, antes, encerrado em um estojo de numerosos
invólucros. O que Raff entende por "transparência" diz respeito ao moral, à claridade que
dele se irradia, a uma qualidade de alma bastante especial. Não decepciona nunca. Das
relações que se mantém com ele, resulta o adorável sentimento de que as coisas não
podem ser de outro modo do que são. Só pode ser assim, é assim que se faz, é assim que
se diz tal e tal coisa, é assim que se responde ao favor de um amigo, a uma ofensa, é assim
que se procede nas dificuldades, na cólera, e é assim e não de outro modo, porque se é
assim e não de outro modo, porque se tem o dom de ser o que se é, porque não se deve
parecer ser o que apenas se deseja ser. Em verdade, para se ser assim, é indispensável uma
forma de coragem especial. Mas a coragem, nesse caso, é apenas uma questão de ritmo.
Na vida, muitas das coisas que consideramos como conseqüências de uma inclinação
moral, são apenas uma questão de ritmo. Algumas vezes Camilo Raff comparara a rapidez
das reações nos rapazes e achara que as almas lentas (que podem viver perfeitamente em
corpos delgados e ágeis) se inclinam mais para o mal que as almas ardentes e arrebatadas.
O que é, por exemplo, o amor da eqüidade e a sua expressão senão o fulgurante incêndio
do cérebro, o ardente entrechoque das imagens na imaginação? Observara Etzel em brigas
com seus camaradas, em brinquedos, em circunstâncias onde se tratava, antes de mais
nada, de decência, de discrição, de cavalheirismo. Surpreendera-se em todas as ocasiões
com a energia, com a justeza com que o menino, em todos os conflitos, tomava atitude.
Uma vez, os alunos tinham pregado uma peça no professor de matemáticas. O professor
gostava muito de balas e sempre tinha, no bolso do capote, um pacote de confeitos. Os
meninos sabiam disse, e, um dia, por instigação de Thielemann, puseram entre os confeitos
algumas pastilhas purgativas. No dia imediato, chegando à aula furioso, o professor
declarou não querer perder tempo em descobrir o culpado, já que todos o eram; escolheria
um único como responsável e castigá-lo-ia — que esse se libertasse denunciando o
verdadeiro culpado. Escolheu um ao acaso, esperou a denúncia que, naturalmente, não
veio e infligiu-lhe um castigo muito severo. Esse procedimento provocou a cólera de Etzel;
não podendo tolerar fosse um inocente castigado — o acusado, por acaso, era o que menos
participara da brincadeira — levantou-se e disse: - "Fui eu quem fez tudo, sou eu que devo
ser castigado". Aquilo causou uma enorme impressão na classe, os meninos não
concordaram, protestaram, e seguiu-se uma verdadeira pequena revolta. O professor,
felizmente, teve bastante sangue-frio para não levar as coisas ao extremo. Tendo conduzido
com moleza o interrogatório feito a Etzel, deixou a sala para deliberar com o prefeito de
estudos. Camilo Raff tentou acalmá-lo, evitando conseqüências desagradáveis para o caso
e poupando ao professor um ridículo ainda maior. Teve mais tarde uma longa discussão
com Etzel. Contando isso ao barão Andergast, sobre o seu delicado rosto melancólico
errava um sorriso misterioso, um sorriso quase leviano. - "Tive dificuldade em impedir que
ele saltasse sobre mim com a sua cômica indignação, com a sua fria audácia, exigindo das
pessoas o que deveriam fazer por si mesmas em bem da justiça e da razão e para que a
desordem e a miséria não irrompam incessantemente no mundo." - Disse Camilo Raff - "Era
mais ou menos esse o sentido; reproduzo-o talvez de um modo um pouco complicado, mas
era esse mesmo; as pessoas devem ser conseqüentes nos seus atos, quem tem um negócio
deve conhecer o seu negócio, um juiz só deve julgar quando não existe mais sombra de
dúvida sobre um crime... Eu me senti na obrigação de replicar: "Meu caro, todas estas
coisas são muito naturais, mas foi para assegurá-las que os heróis e os santos derramaram
freqüentemente seu sangue."
 
 
VI
 
 

O barão Andergast abaixara as pálpebras sobre seus olhos violeta. Era como se a cortina
do teatro houvesse descido para a mudança de cenário. Quase não se mexeu. Fez ouvir tão-
somente um "hum" meio obsequiador, meio cético. Camilo Raff não compreendia
absolutamente a verdadeira natureza daquele homem, sua soberbia glacial, a
suscetibilidade de seu espírito, a rigidez de suas opiniões, e por isso julgou dever
prosseguir ainda mais detalhadamente na explicação do caráter do menino. Queria
convencer o barão Andergast (cúmulo da ingenuidade!); mas, de quê? Ele próprio acabou
por não o saber ao certo. Sentia apenas a contradição muda e resistente como uma
muralha de pedra e armou-se contra ela. Contou o que se passara com Carlos Zehnter, a
história da nota de cinco marcos roubada e a confissão que Etzel lhe fizera dos seus
escrúpulos de consciência por ter, devido à sua precipitação, lançado um colega na
desgraça. O barão não conhece o incidente, ouve atentamente, mas sua fisionomia não
revela senão a mesma curiosidade polida de sempre. Camilo Raff diz: - "É comovente ao
mais alto grau um tão delicado senso da medida. Eu, pelo menos, não conheço nada que
me comova mais. Entendo por "medida" a carga que alguém pode suportar e que é
permitido lhe impor." - "O senhor estudou verdadeiramente esse rapaz desde o "a" até o
"z" - interrompe secamente o barão Andergast. - "Certamente, barão; eu considerava isso
como um dos meus deveres." - "Aliás, o senhor parece querer tecer em volta da cabeça de
Etzel uma auréola de virtude. E me perdoará se acho isso um pouco exagerado. O pequeno
tem boas qualidades; sob muitos pontos de vista, não é desprovido de aptidões e, além
disso, é de bastante boa raça, mais ou menos vivo, algumas vezes um pouco audacioso e,
não o escondamos, sempre que quer atingir o fim que se propôs, mostra-se possuidor de
uma boa dose de esperteza. Ou o senhor acha que sou injusto julgando-a assim?" Camilo
Raff acha, antes, que é a si próprio que o barão prejudica falando naquele tom folgazão.
Replica que não concorda com sua opinião, que nunca observara esperteza em Etzel mas,
talvez, surpreendente perspicácia, extraordinário faro, isso que se chama o instinto do
selvagem quando se trata de esclarecer coisas ou circunstâncias encobertas. Um incidente
no campo de Odenwald fez com que se chamasse a esse rapaz, então com quatorze anos,
Sherlock Holmes em edição de bolso. Lá se encontrava um rapaz de dezessete anos,
Rosenau, companheiro de quarto de Etzel. Não era particularmente estimado,
primeiramente por ser judeu, depois por causa do seu aspecto rabugento e desconfiado e,
enfim, porque fazia insípidos versos, copiadas de modelos célebres e, além disso,
levemente eróticos. A zombaria com que os rapazes o perseguiam não era, pois,
completamente infundada, mas, naturalmente, só fazia azedá-lo ainda mais. No resto, era
um bom rapaz, sem maldade. Detestavam-no, porém, irremissivelmente. E a maioria queria
livrar-se dele ou, pelo menos, tornar-lhe a estada insuportável. Um dia, um dos professores
quis um livro da biblioteca do estabelecimento. Procuraram-no um momento e, depois,
alguém disse: - "É Rosenau quem o tem; é verdade que não pediu emprestado, mas ele
sempre rouba os livros dos outros." Rosenau não estando presente, resolveram abrir o seu
armário, a chave estando presa a um prego. O professor revistou os compartimentos, abriu
uma gaveta e se deteve súbitamente, sacudindo a cabeça, a fisionomia consternada. Havia
na gaveta uma meia dúzia de fotografias das mais obscenas, dessas que se mostram
comumente - e com toda a sorte de precauções - nos bordéis. Excluindo Rosenau, todo o
acampamento estava no aposento. Era pouco antes da refeição, e todas foram testemunhas
da abominável descoberta; alguns riam e zombavam, mas a cólera e o desprezo se tinham
apossado da maioria. Enquanto o professor mandava chamar o diretor do estabelecimento,
Rosenau chegou. Levaram-no até diante do armário, mostraram-lhe as fotografias. Etzel
estava bem junto a ele e, imediatamente, teve a impressão de que Rosenau ignorava tudo
e lhe haviam pregado uma odiosa peça. Bastava observar o rosto do acusado para
fortalecer-se na sua convicção. Impossível simular tal estupor, tal assombro, semelhante
confusão! Os outros não tinham a menor dúvida, e acolheram com um silêncio impaciente
os protestos de Rosenau. O diretor partira de manhã para Wurzbourg e só regressaria no dia
seguinte. Confiscaram as terríveis fotografias e Rosenau ficou preso, até que decidissem
sua sorte. Todos os rapazes o deixaram ostensivamente de lado. Ficara agachado em um
canto, perdido nos seus pensamentos, o rosto entre as mãos. No entanto, Etzel fizera uma
observação que lhe parecia importante: a primeira das fotografias estava manchada de
sangue. O sangue correra em um filete sobre toda a folha. Ele se perguntou: de onde vem
esse sangue? Sem chamar a atenção, aproximou-se do armário de Rosenau, tirou a gaveta,
e viu que a ponta de um prego saía da parede interior, bem perto da fechadura, e que o
fundo da gaveta estava ensanguentado. Pensou: "A pessoa que pôs as fotografias na gaveta
estava apressada e feriu-se no prego; deve ter perdido muito sangue e a ferida ainda deve
estar visível." Um pouco mais tarde, quando os rapazes saíram para jogar futebol e o
aposento ficou vazio, ele se aproximou de Rosenau e disse: - "Mostre-me suas mãos." O
outro o fitou, e obedeceu. Mostrou as mãos abertas; estavam intactas. Etzel, então, pôs-se a
refletir longamente. Afinal, tomou uma resolução. Pediu licença por duas horas, foi a pé até
Amorbach, que não era longe, e comprou um pacote de avelãs. A noite, quando todos
estavam reunidos, mostrou o pacote e disse que ia distribuir avelãs e que, para se divertir,
iriam quebrá-las, fazendo enorme barulho. Cada um estenderia a mão na sua vez,
recebendo a sua parte. Assim foi feito com grandes gargalhadas. Quando chegou a vez do
nono, Etzel viu a mão ferida: um longo arranhão vermelho na palma - como tinha
imaginado. O rapaz se chamava Eric Fenchel e era o mais velho de todos; tinha quase
dezoito anos e era temido por causa da sua brutalidade e do seu temperamento agressivo;
comportava-se como um verdadeiro tirano para com os garotos; tinha seus favoritos e
existiam alguns que não podia suportar. Etzel ocupava uma posição intermediária; Fenchel
não se aventurava muito junto a ele; todos os outros o adulavam covardemente, mas Etzel,
não. Depois que contara, vangloriando-se, ter violentado uma moça surda e muda, apenas
a sua vizinhança bastava para causar horror a Etzel. Podia apostar que fora Eric Fenchel,
mas quis ter absoluta certeza e nada deixou transparecer. Todos quebravam alegremente
as avelãs e ele os acompanhou. Quando todos os rapazes se deitaram, e foram apagadas as
luzes, permaneceu acordado. Ficou durante horas sem se mexer, esperando. Podia ser uma
hora da manhã quando se levantou sem ruído, pôs-se à escuta e, tendo certeza de que
todos dormiam profundamente, esgueirou-se entre os leitos até o armário de Fenchel, em
cima do qual apanhou a chave. Debaixo do armário, ao entardecer, escondera uma
pequena lanterna, comprada na cidade ao mesmo tempo que as avelãs. Agarrou-a e, não
fazendo mais barulho do que um camundongo, pôs-se a revistar o armário. Achou o que
procurava ao fim de pouco tempo; confirmavam-se suas suposições, triunfava a lógica das
suas deduções. Fenchel pusera apenas uma parte das suas fotografias no armário de
Rosenau, as outras estavam em sua gaveta entre livros e cadernos. Etzel fechou o armário,
retornou discretamente ao leito e dormiu até de manhã. Logo depois do almoço foi procurar
o chefe do acampamento a quem expôs todo o caso e os meios que empregara para
deslindá-lo. Rosenau, um quarto de hora depois, estava reabilitado. Fenchel sendo, como
vários outros, um violento inimigo dos judeus, tinha, no momento em que se procurara o
livro, aproveitado a ocasião para disfarçadamente colocar as fotografias na gaveta de
Rosenau. Assim, foi vergonhosamente expulso do acampamento. A partir desse dia,
Rosenau se sentiu tomado por Etzel de uma afeição quase ridícula. Mas, no ano seguinte,
não sabendo o que fazer dele, seus pais o mandaram para a América do Sul. O barão
Andergast olhava para as mãos. Dir-se-ia que alguma coisa na unha do dedo maior o
seduzia especialmente. Ergueu a mão até o queixo e, examinando essa unha com atenção,
perguntou: - "O senhor, naturalmente, sabia do projeto de fuga do meu filho?" Observando
uma expressão de desagradável surpresa no rosto do seu interlocutor, acrescentou
amavelmente: - "Eu compreendo, o senhor era seu confidente, merecia sua confiança. Eu
não possuía em mesmo grau essa vantagem. Sem querer me queixar, não tenho nenhum
talento de confessor e, falando francamente, não faço questão de ter. Não dou grande
importância aos mistérios do coração." - "Mistérios do coração, não deve ser esta a
verdadeira expressão" - ousou objetar Camilo Raff. A conversa passando da epopeia ao
drama, viu súbitamente o laço que queriam lhe passar em volta do pescoço. - "As nossas
relações nunca ultrapassaram os limites que eu mesmo fixei" - disse Raff com calma. - "O
senhor não respondeu à minha pergunta" - prosseguiu docemente o barão Andergast, com
um bater de pálpebras de mulher que se lamenta ter sido tratada com descuido. - "Etzel
me procurou em um momento de aflição moral" - disse Camilo Raff - "Sendo o seu amigo
mais idoso, cumpria-me tentar ajudá-lo. Ele perguntava: eis onde estou, que devo fazer?
Ou melhor: posso agir de outra maneira, a não ser de tal e tal modo? Ignorava o que ele
tinha na cabeça e era impossível adivinhá-lo pelas alusões que fazia. Em outra qualquer
circunstância, teria sacudido os ombros, teria adiado, me teria esquivado a responder. Com
ele, porém, isso não era possível. Naquele momento, não! Então, reconheci-lhe um direito
que não reconhecia a nenhum outro, isto é, de seguir sua inspiração. Eu não o nego — e
falo sempre daquele momento — nunca o desviei da resolução que a ele se impunha
naquela trágica luta interior. Aliás, não o lamento. Que a decisão tivesse tão grande
importância foi o que, confesso, jamais imaginei." - "O senhor não sentiu escrúpulo em
acoroçoá-lo num propósito que lhe parecia tão obscuro?" - perguntou o barão com a
mesma voz doce e um pequeno sorriso manhoso. - "Isso... eu não sei" - respondeu Raff
perplexo - "havia qualquer coisa nele; eu teria vergonha de derramar água naquele vinho...
é tão raro... se o senhor o tivesse visto, barão". - "É verdade. E o senhor não temeu a
responsabilidade?" - continuou a voz doce, interrogativa. - "Não" - disse Camilo Raff - "nem
um só instante". - "Isso me espanta" - continuou o barão Andergast, levantando-se. - "Não
tanto a sua atitude pessoal de amigo com que não tenho nada a ver, como ... a
compreensão indulgente que o senhor mostrou, surpreendente num educador".
Camilo Raff, que também se levantara, empalideceu ligeiramente. - "Quanto à sua
atitude pessoal, só tenho a censurar não me haver prevenido. Era o seu dever". - "Eu não
tinha o direito de traí-lo". - "Um menor? Pode-se falar de traição nesse caso?" - "Sim, barão,
eu creio que sim. Parece-me que a menoridade é um simples conceito jurídico". - "Não
basta esse conceito jurídico quando se trata de impedir uma falta chocante e intolerável?
Existe algum outro mais alto? Gostaria que o senhor me dissesse qual... " - "esse não basta,
barão. Existe um mais alto."
Assim o drama se elevara gradualmente, até a troca de réplicas estritamente entrosadas
umas nas outras e onde se concentrava o “tonus" moral, é verdade que sem amargura nem
apeamento de tom. Pelo contrário, um permanecia perfeitamente delicado, o outro,
modesto, mas firme. Por fim, o barão Andergast, acompanhando o visitante até a porta,
perguntou incidentemente se Camilo Raff sabia onde estava Etzel. Raff respondeu que a
partida do menino o deixara vivamente surpreso e que, naturalmente, desconhecia o lugar
onde se encontrava. O barão sacudiu gravemente a cabeça, apertou-lhe a mão e disse
novamente quanto a sua visita o interessara. Mas, quando Raff fechou a porta, ficou por
muito tempo de pé, o lábio inferior recuado, absorto pelos seus pensamentos. No dia
seguinte, dirigiu à administração do liceu uma carta informando-a sobre a grave falta que o
doutor Camilo Raff cometera em relação ao aluno Andergast e pedindo um inquérito
disciplinar. O inquérito exigido tão categoricamente, e de tão alto, não se fez tardar. Teve
como resultado que Camilo Raff, suspenso das suas funções durante dois meses, foi
mandado logo depois para o ostracismo em um buraco na província de Hesse — o que
constituiu para ele, que já se sentia asfixiado na sua esfera de ação atual, uma catástrofe
física e moral.
VII
 
 

Alguns dias depois da visita de Camilo Raff, cuja humilhante lembrança ainda não lhe
dera uma trégua, o barão Andergast convidou o presidente Sydow para jantar. O presidente
dera a entender que sua família iria à ópera e que não desejava ficar sozinho. A mesa era
farta; mas a conversa morria, insípida. O presidente, simplório, gostava de contar anedotas.
O barão não tinha o mesmo gosto, mas as pessoas que teimam em contar coisas
engraçadas não querem saber se interessam ou não, encarregam-se da representação tão
bem como dos aplausos, e foi assim que o presidente não observou como o barão estava
distraído. O presidente Sydow tinha fama de ser um "bom juiz", mas o que lhe valera essa
fama fora antes uma mistura de indolência epicuriana e de desprezo para com a
humanidade em geral, do que o sentimento do seu nobre encargo. Não gostava de descer
ao fundo das coisas e, menos ainda, de erguer-se até os cumes — só se sentia bem à meia-
altura. Em muitos casos, sua bondade tinha por fundamento a bonacheirice teimosa de um
alcoólatra moderado. Pesado como uma pipa, lamentava a lentidão da máquina jurídica,
considerava o veredicto dos júris como ridículas farsas, sem nunca contudo se levantar
contra eles e, enquanto fora juiz do tribunal correcional, suas mais sedutoras qualidades
apareciam quando se via diante de um delinqüente que confessava. Apertar-lhe-ia a mão
de boa vontade, concedendo-lhe uma pensão. "Pelo menos, não se perde tempo com tipos
dessa espécie" - tinha o costume de dizer, como se o tempo de um juiz fosse reservado
exclusivamente para os devaneios nas tabernas confortáveis. No exercício de sua profissão,
freqüentemente, e com rudeza, chocara-se com o barão Andergast; mas, fora do trabalho,
suas relações eram excelentes. Não havia possibilidade de atrito, sendo enorme a distância
existente entre eles.
O presidente Sydow saiu cedo. (Haviam-se instalado no escritório.) Ficando sozinho, o
barão Andergast abriu a janela para que desaparecesse a fumaça dos cigarros. Era uma
noite de abril, quente e pesada. As árvores gotejavam. A rua sombria se assemelhava a
uma grande ostra aberta ao meio. O barão sondou as trevas com o olhar. Apoiava o queixo
nas mãos juntas e permanecia imóvel como uma estaca. Quando fechou a janela, sentou-se
diante da secretária e, apanhando um processo na pilha que estava em frente, abriu-o.
Seus olhos, porém, deslizavam sem curiosidade sobre as páginas. Tinha um lápis na mão e
rabiscava distraidamente sinais e palavras numa folha em branco. Subitamente,
sobressaltou-se: tinha diante de si o nome de Maurizius que escrevera sem saber como e
sem pensar. Amarfanhou a folha de papel, atirou-a na cesta, jogou o lápis sobre a mesa e
levantou-se, descontente. Durante alguns momentos andou de um lado para outro, depois
ficou imóvel e pareceu refletir em alguma coisa. Em seguida, deixou o escritório e, indeciso,
deteve-se no corredor. Na extremidade da zona de luz que a porta do escritório limitava,
deu novamente alguns passos até chegar à porta do quarto de Etzel. Abriu-a e entrou.
Torceu o comutador, fechou a porta com precaução, olhou em volta, a testa franzida, e
sentou-se diante da secretária, respirando profundamente. Era a primeira vez que entrava
ali, depois da fuga do rapaz.
Voltando as costas para a janela e segundo hábito seu, apoiou-se no encosto da cadeira,
cruzando os braços sobre o peito. Havia alguma coisa de estranho naquela absoluta
ausência de ruídos e seu rosto exprimia tristeza e solidão. A tensão de seus traços
fisionômicos, que nunca se relaxava, talvez nem mesmo no sono, diminuiu. Era como se as
grades do cárcere do presente, que o aprisionava, se fundissem e desaparecessem umas
após outras. Seus olhos absorviam todos os objetos do quarto: a cama com a coberta de
seda amarela já gasta, o velho tapete de talagarça diante da lareira, as duas cadeiras de
palha de um e outro lado da mesa, a estante de livros com lugares vazios fazendo lembrar
mandíbulas desdentadas. O menino levara os livros que faltavam. Uma indescritível tristeza
inundava o quarto e o barão Andergast não pode deixar de senti-la; um quarto abandonado
por aquele que o habita tem qualquer coisa de cadáver. A mesa estava coberta por um
encerado salpicado de manchas de tinta em volta do tinteiro. Em determinado lugar, num
ensaio desajeitado, via-se, esculpido a faca, o perfil de uma cabeça. "Ele nunca foi bem
dotado para o desenho" - pensou o barão. A gaveta da mesa estava entreaberta e
aparentemente vazia. "Os rapazes são sempre pouco cuidadosos" - reflete o barão
Andergast e fecha a gaveta, lembrando-se do incidente das fotografias na colônia de férias.
Sorri levemente e esse sorriso tímido é como uma vitória conseguida sobre o mal-estar que
persiste desde a história contada por Camilo Raff. Como erá que nunca sabia de episódios
semelhantes? Como é possível que uma criança sempre surja no nosso pensamento como é
hoje e nunca como foi no passado? Que se apaguem as palavras de ontem, que desapareça
a silhueta do último ano? Será o espírito humano por demais preguiçoso para conservar a
ordem e a sucessão dos fenômenos? Sustenta-se unicamente do momento presente, e isso
não é, para ele, um eterno logro? Porque, o momento que se está vivendo é um impostor.
Impossível representar o garoto quando tinha dez anos, ou mais cedo ainda, oito, seis anos.
O barão Andergast nunca fez com que o fotografassem, pois sempre julgou ser tolice e
vaidade tirar retratos de crianças. Mas não era aquilo o que importava. O que podia
importar era ter a imagem na memória. Etzel fora uma bela criança, pelo menos o barão
acredita lembrar-se disso. Lembra-se ainda de que se irritava sempre que alguém elogiava
seu lindo rosto, sua fisionomia delicada, suas maneiras graciosas. Enquanto está ali,
procurando um meio de reentrar no passado tal como um ladrão que se introduz numa
casa durante a noite, não pode deixar de pensar na pequena lanterna comprada ao mesmo
tempo que as avelãs, em Amorbach, por aquele garoto de quatorze anos. Um traço de
perfeita capacidade de encadeamento lógico, de que nunca o julgaria capaz. Depois,
subitamente, revê o pequeno aos cinco anos de idade, e dir-se-ia que sua cabeça morena e
anelada surgia entre véus de poeira cinzenta. - "Pai, olha comigo o grande atlas e fala do
mar e da Ásia." Que beleza, aqueles dentes pequenos brilhando na boca fresca! Aquele
enorme olhar claro, sua convicção de que a Ásia e o mar não possuíam segredo para a
absoluta onisciência do pai! Tudo isso, nessa época, era o presente. Mas o presente é
sempre a época em que "não se tem tempo". - "Não, cabecinha anelada, seu pai não tem
tempo, ele precisa trabalhar" ... A cabeça anelada não ousa contradizer, mostra apenas um
triste espanto: pode haver alguma coisa mais importante, nesse instante nostálgico, do que
o atlas, a Ásia e o mar? "Não ter tempo", eis aí palavras incompreensíveis para quem está
cercado de quantidades de tempo incomensuráveis e não sabe o que fazer dessa
abundância de tempo entre o momento de acordar e o de dormir. Todo o enigma da vida
está contido aí nesse fato de "não ter tempo". Afinal, onde poderia estar o rapaz? É noite,
as árvores gotejam. Onde poderia estar àquela hora?
No dia seguinte, os secretários ficaram impressionados com seu laconismo.
Surpreenderam-se também com seu ar ausente quando lhe faziam perguntas
indispensáveis; era isso, principalmente, o que lhes parecia insólito e, muitas vezes,
trocaram olhares de espanto. Um pouco antes do meio-dia, antes de se preparar para sair,
mandou chamar o chefe da seção de arquivos. Quando o homem entrou, dir-se-ia (ou
simulava) que esquecera porque o mandara chamar: - "Ah! sim, meu caro Haacke" - disse
amavelmente - "mande buscar o processo Maurizius, anos 1905 e 1906, no tribunal
regional e remeta-o hoje para a minha casa."
Às três horas o processo, impregnado da poeira dos arquivos - contendo mais de duas mil
e setecentas páginas, em parte amarelecidas, estava na residência do barão Andergast,
sobre sua mesa de trabalho.
VIII
 

Começou a lê-lo na mesma noite. Já que havia decidido de uma vez por todas, faria a
coisa conscienciosamente. Mas, ter-se-ia decidido? Em verdade, fora outra coisa mais do
que uma decisão; não tivera a menor relação com o seu livre arbítrio. Nunca lhe acontecera
nada de semelhante. Uma irresistível pressão, eis precisamente de que se tratava. Existiam
pois aqueles estados de alma em que nunca acreditara verdadeiramente; que, no fundo,
sempre julgara meros disfarces de advogado, imaginados a fim de paralisar o braço da
justiça e fraudulentamente introduzidos no código para adular a meia-ciência dos leigos? O
encantamento começara com palavra Maurizius, surgida imprevistamente no papel, escrita
por ele, não sabia como. Quando dera a ordem ao chefe da seção dos arquivos, mal ousara
olhá-lo face a face. Imaginava que todo mundo leria necessariamente no seu rosto e sofria
por agir dominado por aquela persistente pressão, como se se sentisse atingido por uma
doença do sistema nervoso, ainda desconhecida. Sentia-se envergonhado, como se tivesse
consciência de se estar entregando a alguma secreta devassidão.
Não foi menos estranho o que sentiu durante a leitura. Sua memória guardara apenas o
esquema rudimentar dos fatos e a lembrança da posição que então assumira. Todos os
detalhes se tinham apagado. De início, o antagonismo dos destinos aparecia dificilmente
inteligível; o desenvolvimento, a explosão das paixões tinham tais proporções que julgava
vê-las através de uma lente de aumento; os homens se assemelhavam a cadáveres, seus
motivos, seus atos, suas justificativas, afirmações, acusações, explicações, subterfúgios,
observações, tinham igualmente alguma coisa de estragado, de rançoso, de amorfo, de
vulgar. Sim, tudo aquilo era de uma vulgaridade desesperadora: depoimentos dos criados,
dos acendedores de lampiões, dos vendedores de armas, dos policiais, dos empregados da
estrada de ferro, dos porteiros de hotéis, dos negociantes de flores, dos cabeleireiros, dos
cocheiros, e mesmo de alguns médicos, professores, mulheres de professores, estudantes,
comerciantes, industriais, barões e condes, um exército de testemunhas, uma multidão de
relatórios, boatos, interrogatórios, atestados, buscas, documentos e corpora delicti, tolices e
esforços, sofrimentos, abnegações e fraquezas humanas — tudo aquilo tendo perdido o
calor e a vida, conservado daquele modo naquela montanha de papel. Examiná-lo era
trabalho menos produtivo que o do anatomista que classifica uma coleção de preparações
alcoolizadas. No entanto, o barão Andergast era entendido na matéria. Sabia de antemão
que, penetrar naquelas catacumbas, não seria coisa divertida e iria submeter sua paciência
a dura prova. Seu destino, porém, era o exercício da paciência, e não havia lugar, em sua
vida, para a fruição de um prazer de qualquer espécie. Pôs-se primeiramente a separar o
essencial do acessório, a libertar os caracteres principais da ganga que os envolvia. Sempre
soubera da existência de vozes de protesto contra o veredicto que fora dado, e essas vozes
não vinham únicamente dos revoltados de sempre; porque, não somente os espíritos
perturbadores, os inimigos da ordem, tinham ousado falar de um assassinato jurídico e
levantar dúvidas sobre o desenrolar do processo, sobre a culpabilidade do condenado, mas
também pessoas mais seguras e sensatas se tinham mostrado inquietas, e até nos últimos
anos havia quem pedisse uma revisão do processo. Nada existia, porém, que a pudesse
justificar. Vício algum, de fundo ou de forma. O barão Andergast bem se lembrava ter
recusado atender ao último desses pedidos, seis anos antes. Quanto mais mergulhava na
leitura, mais os contornos do processo se precisavam em sua lembrança, como se se tivesse
varrido a camada de bolor não apenas sobre as capas manchadas dos autos, mas também
sobre seu cérebro. Isso, porém, aconteceu gradualmente e não de um só golpe. Uma noite,
muito tarde, a figura de Leonardo Maurizius, rosto e silhueta, surgiu subitamente no seu
pensamento…
Havia fechado o processo e passeava no aposento fumando um cigarro. Tinha o ar
cansado e em torno dos seus olhos crescia um círculo escuro. Mas o espírito fatigado, por
ter acabado de sacudir o jugo dos fins imediatos, produz freqüentemente sem esforço o
que nunca faria, se permanecesse escravo. O barão revia agora o rapaz no tribunal, frente a
ele, como dezoito anos antes. Um belo rapaz, por certo, bem vestido, elegante: quando
sentado, as pernas cruzadas, viam-se suas meias de seda cinzenta e um calçado impecável.
(Começava, então, para os homens, a moda das meias de seda.) Os cabelos castanhos,
amplamente ondeados, tinham sido cuidadosamente repartidos ao meio por uma linha; os
traços do rosto eram francos, um pouco moles, de uma mobilidade quase feminina; as
mãos estreitas, desagradavelmente pequenas. Um sorriso estereotipado jamais deixava
seus lábios nitidamente desenhados e sensuais. (O barão Andergast se lembrava da
aversão que sempre tivera por aquela boca sorridente e sensual). Por quê? Parecia o
confronto de dois mistérios, o abismo de duas almas impenetráveis uma na outra. Aí
residia, sem dúvida, a causa daquela aversão. Contrastando com aquela boca, os olhos
escuros, cuja expressiva beleza era estragada por um constante pestanejar, tinham um ar
de resoluto desafio e, ao mesmo tempo, uma tristeza nascida de profundezas inacessíveis.
Agora, ele estava ali. Cinco minutos antes, o barão não poderia dizer como ele era, como se
comportava, e agora surgia diante dele até nos menores detalhes. E a minuciosa precisão
da imagem quase o assustava. Desejou livrar-se dela e seus olhos se desviaram como de
um espetáculo inconveniente; mas, ela era teimosa. A vontade sozinha não bastava para
enxotá-la e, para vencê-la, era preciso outra imagem mais verdadeira e ainda mais
impressionante. Essa segunda imagem apareceu : a imagem de Etzel.
Em todas as etapas do trabalho que o barão Andergast empreendeu sobre as peças do
processo Maurizius, a imagem de Etzel se misturou à matéria dúbia e confusa que, pouco a
pouco, se desfazia como um pântano que degela; projetava uma luz crescente e forçava
impiedosamente o espírito a se voltar para ela. É difícil explicar como isso aconteceu em
um homem que nada tinha de visionário, cujo poder de adivinhação era nulo, e em quem
se encontrariam tão poucas disposições metafisicas quanto em uma rotativa que
funcionasse admiravelmente. Não duvidemos: essas repetidas meditações sobre a fuga de
Etzel, sobre sua ausência e os motivos que a tinham provocado, influíram sobre o barão
quando ele, contra a vontade, e mesmo com a impressão de estar perdendo seu tempo,
mandou buscar o processo Maurizius sepultado no esquecimento dos arquivos. O que até
aquele momento lhe dera muito que fazer fora a sua vaidade ferida, que se chamasse —
nas mais altas regiões da consciência — dignidade, autoridade, responsabilidade paterna,
prestígio, ou ainda — nos recôncavos secretos da alma — sentimento humilhante de uma
regressão, esperança destruída, renúncia à sua própria energia. Mas, ainda que evitasse
entregar-se a estas últimas impressões e que as negasse deliberadamente diante do seu
orgulho, sofria, no entanto, por causa delas como de uma indisposição física que não se
ousa tratar com medo de descobrir um mal mais profundo. Enquanto se esforçava em
desviar o pensamento para as circunstâncias exteriores, estas precisamente se tornavam
uma tortura para ele. Um rapaz de dezesseis anos entregue a um mundo que não
conhecia! Que defesa oporia aos perigos cotidianos, às insinuações brutais, a essa
montanha de manchas, aos atentados que fariam contra ele, aos atos que o podiam forçar
a cometer? Era seu futuro, seu nome, sua honra, sua saúde e, finalmente, sua vida que
estavam em jogo. E foi para isso que se cercou uma criança de solicitude, que se lhe
preparou uma existência conforme à sua posição e que, por medidas longamente
refletidas, foi afastada do impudor geral... Súbitamente, eis que ataca a mão que a conduz,
torna-se objeto de pesquisas policiais, é expulsa da sociedade, erra pelo mundo com o
estigma de desertor e de aventureiro. A gravidade do caso ultrapassa toda imaginação. "Eu
fiz o meu dever — diz a si próprio o barão Andergast e, reconhecendo como a sorte foi
injusta, uma ruga de amargo desprezo se forma ao redor dos seus lábios.— "Eu era para ele
um fiel conselheiro; provia a todas as suas necessidades e nunca faltei à consideração e ao
respeito para com sua personalidade. Sempre lhe concedi a liberdade necessária. De que
podia queixar-se? Em qualquer dificuldade séria, podia tranqüilamente dirigir-se a mim.
Devia tê-lo feito, por decoro. E eu, eu censuraria sua falta de maturidade? Oprimiria sua
mocidade? Eu? O que seria verdade, muito antes do que isso, é que desperdicei demasiada
solicitude, demasiada consciência, em benefício de um mau elemento. ele tem uma tara
moral no caráter, herdada de sua mãe. Era de temer. Não consegui destruir o veneno,
apesar de toda a minha vigilância. A natureza foi mais forte."
Nessa alternância de acusação e defesa pessoais, de olhares para trás que escavavam
cruelmente o passado e de sinistras previsões, sua alma se ensombrava cada vez mais.
Tivesse um amigo, (admitindo que um homem do seu feitio pudesse manter uma amizade,
e disso era tão pouco capaz quanto um eunuco de procriar) teria ido a ele, teria ensaiado
contar-lhe tudo e talvez encontrasse algum apaziguamento nisso. Mas não tinha ninguém a
quem recorrer. A criatura de quem necessitava não existia. Está tão só entre o meio milhão
de habitantes da cidade como um bote em pleno oceano. Percebe isso pela primeira vez.
Quando toma um caminho que o liberta de si mesmo por uma hora, que o liberta
insuficientemente porque jamais consegue uma libertação total, esse caminho o conduz - é
verdade que em raras ocasiões, e sempre à noite - em direção totalmente diferente.
CAPÍTULO 6
 
 
I
 
 
TODAS AS NOITES, fica ali até tarde, sentado em face dos autos empoeirados. Examina,
anota, compara, resume, num verdadeiro trabalho de escavações e aterros. Ainda que se
defendendo com uma insuperável repugnância, vê-se cada vez mais preso a ele. O que faz,
não é por ordem de ninguém; recusa-se a admitir que seu trabalho tenha uma finalidade e,
apesar disso, permanece ali, atraído, preso, tornando-se um enigma para si próprio. Precisa
encontrar pretextos para que o inexplicável lhe pareça um pouco plausível, e sugestiona-se
bastante para admirar o trabalho magistral que representa o processo na sua aridez e na
sua sinuosidade. Os detalhes se combinam, com perfeita lógica, para formar um conjunto
que encontrará no veredicto o arremate final. Ali estão verdadeiras pérolas de arte jurídica;
somente agora, a distância no tempo permite que se veja globalmente o edifício
imponente, a solidez dos alicerces, o sutil mecanismo das engrenagens internas; o
profissional sente nisso um prazer estético, e essa obra, que é sua, ele a vê levada por um
impulso que deve reconhecer lealmente ser incapaz de imprimir-lhe hoje. Em verdade, não
nos acontece comumente rememorar nossas obras da mocidade, em que lançamos
prodigamente toda a nossa paixão, todo o nosso engenho, e sentir então uma espécie de
trágica inveja de que nós próprios somos o objeto?
 
 
II
 
 
Um fato, apesar de tudo, era inegável: faltava uma coisa para a absoluta perfeição do
processo: a confissão. Em nenhum momento, nem no inquérito preliminar, nem nos
debates principais, nem mais tarde na penitenciária, Maurizius tinha confessado. Ao
contrário, sempre que lhe tinham perguntado se era culpado, respondera com o mesmo
"não" obstinado e definitivo. E conservara o mesmo silêncio obstinado e definitivo quando
as perguntas tinham visado saber quem ele considerava culpado. Isso, naturalmente, não
podia impedir que fosse condenado, as provas formando em sua volta uma cadeia muito
sólida para que conseguisse escapar. O mais genial defensor não conseguiria abrir-lhe um
elo, quanto mais aquele medíocre advogado Volland (morto há muito tempo) que Maurizius
escolhera para defendê-lo. O barão Andergast lembrava-se muito bem da sua figura:
discutidor, provinciano, com um bigode de foca e óculos de aro negro, sempre tortos no seu
nariz ossudo. Não acreditava absolutamente na inocência do seu cliente; apelou para o
laudo dos psiquiatras, refugiou-se em objeções de forma. O acusado não poderia ter tido
pior assistente. Maurizius não se preocupava muito com ele, tratando suas interrupções e
perguntas com um desprezo impaciente; uma vez mesmo, em plena sessão, ordenou que
se calasse. Poderia ter conseguido um advogado melhor. Por que não o fizera? Entre as
peças do processo, havia uma carta do velho Maurizius, dirigida à Côrte, dizendo que Ana
Jahn insistira para que Leonardo aceitasse Volland, o único advogado em que ela tinha
confiança; Volland já havia auxiliado seu pai de um modo satisfatório �— teria ela dito —
era um homem sério e nele se podia confiar. Naquele momento, não se levara em conta
aquela carta, não se fizera pesquisa alguma; em síntese, não cabia ao tribunal se
preocupar com a qualidade do defensor, mas hoje, na solidão do escritório, aquele ínfimo
detalhe dava o que pensar. Era como um furo minúsculo num enorme recipiente, um furo
por onde corre o líquido cuidadosamente guardado, sem que se tenha de temer que o furo
aumente; no momento, pelo menos, aquilo parecia de uma solidez a toda prova. O barão
Andergast não sentia nem dúvida nem inquietude. Apagou a lâmpada da secretaria e
permaneceu um instante no escuro sem saber se iria ao seu quarto ou ao de Etzel. Não
ousou seguir esta última sugestão. Tinha a impressão de estar voltando por uma vereda
estreita e obscura do teatro do processo até a hora presente. Primeiramente, ele se
perguntou onde estava. Aqueles fatos datavam, pelo menos, de dezoito anos. Pôs-se a
examinar o conteúdo daqueles dezoito anos. Representavam a parte mais rica, mais cheia
de sua vida, uma cadeia de dias que se alongava a perder de vista. Dezoito anos de uma
existência de homem: os cabelos se tornaram grisalhos, mas não se tem nada nas mãos.
Aos olhos do mundo, por certo existe a profissão, a carreira, a situação social, mas o que
fica nas mãos? A ver as coisas exatamente, aqueles dezoito anos representam uma duração
infinita. Uma espécie de aborrecimento se introduz na vida dos homens da classe burguesa
quando eles envelhecem; é um aborrecimento tão devastador quanto O voraz cupim. O
objeto que persegue permanece intacto na superfície mas, no interior, não é mais senão
farinha, poeira. Um impulso, um choque, e a viga, depois o edifício inteiro, desmorona em
um amontoado informe.
Houvessem prestado atenção e, ao longo dessa duração infinita, alguma coisa teria
podido tirar àqueles anos a sua monotonia de deserto. Essa coisa desapareceu;
esqueceram de olhá-la e ela partiu. Crescera bem junto de todos, à sombra daqueles dias
inumeráveis; mas agora, quando se perscruta o passado na ânsia de encontrá-la, dela se
sabe apenas o que podem dizer o porteiro, o escrivão do tribunal ou o carteiro. Era mesmo
o garoto (então, Sofia ainda estava ali - e o barão desvia rapidamente o pensamento para
evitar esbarrar naquele fato... ) que corria no quarto com aquele louco contentamento? A
imagem persiste, impõe-se. O menino não tem mais que três anos e está completamente
despido; é antes do banho da noite e ele, soltando gritos de alegria, corre atrás de sua bola
de borracha azul. Que carne rosada! Que cômico embaraço no movimento dos pezinhos,
que incontrolável brilho nos olhos, como se aquela criança, ainda menos alta do que uma
bota, se sentisse ébria da alegria de existir: - "Papai, vem brincar comigo de esconder. Por
que você não quer? Você já vai? Fica, sim? Você será a locomotiva e eu o maquinista".
Assobia imediatamente e grita: - "Tomem o carro!" - e transforma-se freneticamente em
tudo o que está representando: locomotiva, vagões, passageiros, tudo ao mesmo tempo. O
pai se limita a lançar um olhar distraído sobre aquela miniatura de um mundo e sobre a
radiante criatura que está aos seus pés. Depois, sai do quarto e volta para o domínio das
tarefas austeras.
As cenas e as fisionomias que o novo exame do processo evocava misturavam-se de tal
modo com as imagens da infância de Etzel que o barão se sentia incomodado, exacerbado.
Era como se houvesse tomado uma dessas drogas que adormecem a vontade e mergulham
o espírito em indecorosas evocações. Apesar disso, continuava perfeitamente capaz de se
entregar a reflexões lógicas, a não ser porque sentia incessantemente sua reflexão esbarrar
numa muralha invisível, por detrás da qual se passava alguma coisa de impenetrável. Uma
noite, em que estava no leito e olhava fixamente para o alto, as mãos debaixo da nuca
(quando se trata de homens da espécie do barão Andergast, o fato de estar deitado em um
leito tem qualquer coisa de intrinsecamente absurdo; existem corpos, os das estátuas de
pedra ou de bronze, por exemplo, que só podemos representar de pé; vê-los em posição
horizontal evocaria imediatamente a ideia de alguma desordem ou de alguma destruição),
experimentou uma desagradável sensação: doíam-lhe os dedos dos pés e as costas, estava
como que rodeado por uma dor física. E pensou: "Alguma coisa existe nesse processo que
não está certo, mas o que será? Na engrenagem, há um ponto defeituoso, mas qual é esse
ponto?" Percorreu mentalmente o curso do processo. Começou pelo início: o casamento de
Leonardo e de Eli apareceu diante dele com a mais perfeita nitidez! Até certo ponto, para o
barão Andergast, aquilo constituía um fato novo e perturbador. Sempre defendera a ideia
de que uma representação viva demais perturba o julgamento objetivo. Julgava desprezível
qualquer espécie de participação da imaginação, e quando observava nos outros a mais
ligeira tendência nesse sentido, logo sua desconfiança despertava. Nunca lhe acontecera,
desde que exercia sua profissão, "ver" as coisas e as pessoas. Era esse estado semelhante
ao produzido pelo ópio que o forçava a "ver" a vida passada de seu filho, ao invés de
somente a "conhecer", como sempre fizera? Haveria aqui, e lá atrás da realidade, como que
uma outra realidade mais misteriosa e, ao mesmo tempo, mais verdadeira? Em todo caso,
era bastante interessante acompanhar o curso dos acontecimentos de modo tão diferente
do usual. Enquanto fitava, imóvel, o teto do quarto de dormir, os acontecimentos passavam
diante de seus olhos como em um filme.
 
 
 
 
 
III
 
 
Eli Hensolt não consentira de boa vontade em se tornar esposa de Leonardo Maurizius.
Antes de se decidir, rejeitara três vezes seu pedido. Dizia ela: - "Eu sou uma mulher
madura, amanhã serei uma velha. Você é um rapaz e será moço ainda por uns vinte anos.
Aonde nos levará tudo isso?" Que há nela para o atrair? Será precisamente a sua
maturidade? A tranqüilidade que irradia? Aquela firmeza de caráter tão elogiada e que
aparece em todos os seus atos? Estará ele exausto dos próprios caprichos? Desejará, agora,
ser antes conduzido do que seduzido? Aspirará mais à regularidade do que às paixões
inconstantes? Já sonhará, aos vinte e quatro anos, com o conforto de uma vida burguesa?
Ao lado de tudo isso, a circunstância de que Eli Hensolt é uma viúva rica certamente não
deixa de influir, embora ele superestime consideravelmente sua fortuna — como se saberá
mais tarde — julgando-a possuidora de, pelo menos, duzentos mil marcos. Hensolt, porém,
ao morrer, deixou-lhe apenas a metade dos seus bens; a outra metade legou a uma obra de
beneficência; o total não excedia cento e sessenta mil marcos. Leonardo só sabe disso
alguns dias antes do casamento. Sentira ou externara alguma decepção? Ninguém o sabe,
mas, em todo caso, não pode mais recuar. Aliás, Eli não é uma mulher que se aceite ou se
recuse sem mais nem menos. Possui sua dignidade e, fisicamente, está bem conservada;
quando a vêem na rua, ou em um salão, dão-lhe trinta anos, no máximo. Sabe vestir-se,
tem maneiras distintas e, se não é uma beleza, consegue cativar. Compreende-se
facilmente que um homem como Leonardo Maurizius não lhe fique indiferente.
Ela própria compreende, desde o começo, o que ele espera dela, suas necessidades.
Esgotou seus recursos, sente-se fatigado por ter-se satisfeito depressa e ardentemente
demais. Agarrou-se a todas as mãos que lhe foram estendidas, e cada uma delas apossou-
se de toda a sua pessoa, arrastou-o, sem que tivesse força para resistir. Falta-lhe um ponto
de apoio. Vê o perigo que corre e procura, em torno, algum sustentáculo. Homens como ele,
se uma vigorosa mão não os sustenta no momento decisivo, sucumbem definitivamente.
Está superexcitado pelo excesso de vida social, estragado pelo excesso de aplausos,
paralisado por um número excessivo de esperanças que teme não poder realizar. É —
digamos sem atenuações �— sua salvação que está em jogo. Eli compreende, consulta-se
a si própria, avalia o que tem a ganhar e a perder, e finalmente se decide a tentar o
salvamento. Julga-se capaz. Sabe que aquele trabalho ocupará toda sua vida e a ele se
entrega de corpo e alma. Exige apenas uma condição: a confiança. Não pode arriscar-se à
aventura, se ele não tiver uma confiança total, sem reservas, ilimitada. Quer saber de tudo;
em todos os casos, em todas as circunstâncias, não devem existir segredos ou
dissimulações. E isso, tanto em relação ao passado quanto ao presente. Eli quer obter sua
confiança para, então, também confiar nele de um modo total, sem reservas, ilimitado.
Leonardo acha essa exigência não apenas justa, mas natural - ele próprio imaginara assim
suas relações recíprocas. Com ardor, faz a promessa que é a sua contribuição moral nessa
união. Está convencido de que nunca a transgredirá e ela, por seu lado, acredita, porque
duvida ainda menos do seu coração do que da sua honra. Seu amor repousa, de algum
modo, sobre um ato de criação. Tem o sentimento de o haver criado novamente para uso
próprio.
 
 
 
 
 
IV
 
 
Quando, um ano e meio depois do casamento, e em plena harmonia da vida em comum,
recebe uma carta anônima denunciando as relações de Leonardo com a dançarina
Gertrudes Koerner e a existência da pequena Hildegarda, atribui tudo a uma calúnia. Rasga
a carta, esforçando-se por não mais se preocupar com o assunto. Mas, imediatamente, pela
agitação de Leonardo, compreende que as coisas não andam como deviam andar.
Confessara aos poucos todas as suas aventuras de rapaz, divertindo-a mesmo, algumas
vezes, com o seu humor comunicativo e cheio de mocidade e fanfarronice. Soube, assim,
da história da filha do farmacêutico que se lançara irrefletidamente nos braços de Leonardo
e de quem se saciara em um verão; da mulher de um industrial de Crefeld que fizera cenas
de ciúmes em um jardim público; da pequena pianista de Viena que quase o fizera partir,
em sua companhia, para a América; contou-lhe caprichos menos comprometedores que se
esgotaram em uma noite; havia sempre coisa nova; ainda um coração roubado, ainda uma
pretendente decepcionada, ainda uma feliz irrupção numa paz conjugal, mas nunca a
menor palavra sobre Gertrudes Koerner. No entanto, não se preocupava em dissimular
nada, dizendo muito frequentemente: - "Deus seja louvado, tudo isso passou, acabou-se
esse caos! Desde que você sabe tudo, sinto-me perfeitamente libertado." Então, que alegria
sentira! Como lhe aparecia agora mais sério, mais viril, como se tornava mais legítimo o
seu sentimento e como sentia mais protegida a sua existência junto a ele! Não pode
explicar aquilo. Ali há um nome, e um nome não se inventa. Quem teria imaginado
semelhante coisa, por mais perverso ou invejoso que fosse? Essa ideia não a deixa, precisa
enunciá-la; um dia, na mesa, abaixando os olhos, fala da carta. Leonardo permanece um
momento sem responder para, depois, confessar. E confessa ter sido ele próprio o autor da
carta. Escrevera-a a máquina. Fala como de uma brincadeira, mas os olhos de Eli,
escancarados de espanto, demonstram não entender a brincadeira. Sim, queria que ela já
estivesse preparada quando lhe viessem contar tudo. Por quê? "O mesmo garoto de
sempre! Nova traquinada!" Infelizmente, uma recaída! Escrever uma carta anônima à
própria mulher! Esqueçamos isso, passemos a esponja, continuemos, continuemos.
Confessa depois que tivera relações com a dançarina, que passara umas férias com ela, em
Müren, que a amara, tendo talvez mesmo significado um pouco mais para ele do que suas
outras amantes; tudo isso é possível, não sabe bem — separaram-se como bons amigos; no
inverno seguinte, ela tivera uma criança, e isso ele o confessa de um modo reticente, cheio
de subterfúgios. Eli quer saber por que fora precisamente aquela ligação que escondera ou
tardara a confessar. Leonardo responde, timidamente, que é por causa da criança. Eli não
compreende imediatamente, depois empalidece e cala-se. Ficara estéril, sua constituição
física a isso a condenando irremediavelmente. Num relampejo, entrevê a situação e seus
perigos. Sua condição de mulher e esposa exige em todos os segundos da vida a mais
perspicaz vigilância, a mais lúcida presença de espírito. Numa união entre um homem de
vinte e cinco anos e uma mulher de quarenta, não somente a satisfação dos desejos mais
íntimos incumbe à mulher, mas ela tem ainda a obrigação — de todas, a mais difícil — de
aceitar como coisa agradável e desejável o que repugna à sua natureza. E é assim que,
naquele instante funesto, tem a ideia de adotar a órfã; tê-la-ia exteriorizado, se Leonardo,
com uma palavra infeliz, não a houvesse detido. (Na ata de sessão do interrogatório, artigo
14 do inquérito, assim como em uma carta de Eli à sua amiga e mulher do professor De
Geldern, documento pertencente ao processo, mencionava-se essa conversa; o projeto de
adoção, como se pode calcular, só figurava no segundo documento). Ora, eis o que diz
Leonardo: - "Ana sabe de tudo isso, não encontrei outro meio de libertar-me senão
contando-lhe tudo." Eli o fita, os olhos esbugalhados. E subitamente, em relação à criança,
só nutre sentimentos de defesa e hostilidade. Levanta-se, sem articular palavra, e sai. Como
se explicava que Ana tivesse sabido de tudo antes dela? Que houve entre eles? Que
palavras teriam trocado? Era indispensável tirar a limpo aquilo. Sente que Leonardo tem
pela criança uma ternura que talvez ele próprio ainda não perceba, mas que por isso
mesmo considera muito mais perigosa. Também Ana o sabe? Aprovou-o, animou-o nesse
sentimento? Teria representado o papel de anjo da guarda? Sem a menor dúvida. E a prova
não tarda: Ana levou a criança para a Inglaterra, Ana se encarregou de Hildegarda, Ana
cuida da correspondência, Ana administrou essa propriedade moral, surgida
imprevistamente. Em nome de quem fazia aquilo, em nome de quem representava o papel
de anjo da guarda? Mas, ela própria, Eli, não constituía um recurso naquela aflição? Teriam
receado sua oposição ou pretenderam apenas poupá-la? A figura de Ana adquire, aos olhos
de Eli, uma nova fisionomia. Amava a irmã, admirava sua beleza. Compreende que o
simples fafo de a olhar, já constitui uma felicidade. Deus não cria uma criatura assim,
senão por um raro capricho de artista. Pensa que Ana é pura, altiva, espera muito de seus
dons naturais, de sua perspicácia, graças à qual está no seu lugar em todas as situações,
sem perder em nada o seu ar de mulher da alta sociedade. Eis por que não acredita que
Ana tenha procedido mal. Em uma cidade de província onde toda gente, do vendeiro à
mulher do coronel, se deleita com mexericos, basta sorrir em público a um homem para
que se esteja comprometida, embora não exista vício nem opróbrio que não se desenvolva
à vontade sob a proteção de uma cortina de imagens edificantes. Ana, pois, teria agido com
prudência, caso o cunhado lhe agradasse mais do que devia — pensava Eli. Que Leonardo
lhe agrade, compreende muito bem. Que mulher permaneceria insensível diante dele? A
história da pequena Hildegarda, porém, veio estabelecer entre eles uma ligação bem mais
sólida que um capricho passageiro ou um contato acidental conseguiriam formar — e,
também, mais irrepreensível porquanto podem invocar um dever humano, um serviço de
amizade. Acontecesse o que acontecesse por detrás daquela aparência de inocência,
estavam protegidos contra as suspeitas de Eli.
Eli, porém, não ousa suspeitar. Não ousa, por respeito próprio. Não deve, logo na primeira
ocasião duvidosa, considerar como caduca, como desfeita mesmo, a mais sagrada
promessa que ele fizera. O que há, no fundo, é que ela o ama. Desconheceu o amor até os
trinta e nove anos. A felicidade que lhe traz aquele sentimento exclusivo que transforma
sua vida, até então sem alegria, em um milagre cada dia renovado, nunca a conheceu.
Como não recear o que seus olhos ainda não vêem, o que não permite que se insinue no
seu espírito, mesmo durante seus pesadelos? No entanto, a angústia é a sua conselheira e
é ela que impregna todas as virtudes que demonstrara em seu casamento. Aquele
casamento não é a união com um homem que está começando do mesmo modo como ela
está declinando? Com um protegido da fortuna que foi presenteado com tudo o que os
outros só conseguem a custa de astúcias e lutas; que encontrou benevolência, indulgência,
apoio, ali onde as portas se fechavam cheias de desprezo para outros talvez tão
merecedores quanto ele, entre seus companheiros de idade e colegas; que só tinha o
trabalho de apanhar, ali onde outros mendigavam em vão; que bastava falar para
conseguir aprovações, trabalhar para que o seu mérito fosse reconhecido, exercer suas
seduções para conquistar partidários? Nesse caso, todas as horas da vida põem o indivíduo
à prova e cada instante passado em comum traz consigo uma obrigação determinada.
Naturalmente, Leonardo nada deve perceber de tudo aquilo, é preciso que tudo lhe pareça
fácil e que não note nela a menor fadiga. Se está com enxaquecas ou se seus nervos estão
esgotados, deve dissimular heroicamente. Não lhe sobra tempo para se cuidar e descansar,
quando ele não está presente? Junto dele, mostra-se animada, interessada, alegre; fala-lhe
de seus projetos, dissipa seu mau humor. Leonardo tem crises de desânimo, embora a sorte
o haja favorecido, até então, de todas as maneiras. Acredita-se, como todos os caracteres
inseguros, desconhecido por todos. E ela, com uma persuasão cheia de requintes, com uma
ternura espiritual, procura reconciliá-lo com as coisas e com ele próprio. Suas conversas,
em tais circunstâncias, perduram frequentemente até uma hora avançada da noite. Enfim,
quando consegue fazê-lo sorrir, sabe que venceu. A ela, tudo é permitido, salvo amolá-lo. E,
na verdade, Leonardo se diverte tanto em sua companhia que, nos primeiros dezoito meses
de casado, permanece em casa todas as noites, sozinho com ela. Para grande surpresa de
seus antigos amigos, não era visto nem no café nem nas reuniões habituais. Por seu lado,
Eli não manifesta o menor desejo de ir ao teatro ou visitar alguém; três ou quatro vezes
durante o inverno receberam em casa alguns íntimos, três ou quatro vezes pagaram visitas
dessa natureza. E nada mais. Durante um certo tempo, parece que a imagem de linhas tão
incertas do "genial Maurizius", como os seus admiradores frequentemente o chamavam, do
"romântico sem escrúpulo", como diziam ceticamente os escarnecedores, adquire sob a
influência de Eli contornos mais nítidos.
 
 
 
V
 
 
Os documentos provam abundantemente que a desgraça começara pouco depois da
explicação relativa à pequena Hildegarda. Ana Jahn, nessa época, já vinha quase todos os
dias à casa da irmã. É uma vivenda agradável, arranjada com muito gosto, bem tratada,
situada num subúrbio da cidade. Ana reside numa pensão que vive cheia; queixa-se da má
alimentação e da vulgaridade dos hóspedes. É uma Távola Redonda onde se sentam
estudantes pouco interessantes, velhas solteironas que comentam todas as histórias da
cidade, velhos celibatários que a atormentam com insípidas lisonjas — e tudo isso a deixa
doente dos nervos. Além do mais, ainda não se decidiu quanto à escolha da sua futura
profissão, sua situação financeira é lastimável, e já vem vivendo, nos últimas meses, a
custa do pequeno capital que herdou. Hesita entre o estudo de uma arte aplicada e a
preparação de um exame de francês e inglês. Pede conselho à irmã e ao cunhado, ambos
tentam ajudá-la, mas não consegue fixar sua escolha. Não gosta de fazer nada, sente não
ter sido feita para ganhar a própria subsistência; não é capaz de se subordinar a ninguém,
de servir, de renunciar ao que antigamente se chamava "a vida", quando não se fazia mais
do que passear em torno da existência. Leonardo, que teve a princípio atitude
desaprovadora, compreende sua hesitação e acoroçoa-a a permanecer assim. Vê no seu
desprezo pelo trabalho uma certa forma de espírito aristocrático que sempre achou
simpática. Eli, pelo contrário, previne-a contra o perigo de viver como uma criatura de luxo:
quando faltam os meios necessários, não se pode conseguir uma vida desse gênero senão
ao preço de uma degradação bem mais real do que a das mulheres que trabalham, pois,
então, é a própria pessoa que se degrada. Aliás, Ana não quer entrar para um convento, e é
possível esperar que cedo apareça um marido capaz de lhe oferecer a vida que deseja. Ana
sacode os ombros e seu lindo rosto se ensombra estranhamente. Eli, no diário que então
escrevia, observa isso em tom de surpresa. Mais tarde, Ana dirige a Leonardo palavras
amargas: temerá sua irmã que ela lhe peça dinheiro? Pois bem, pode dizer à mulher que
não tenha medo; antes prefere cortar a mão do que aceitar alguma coisa de Eli. E diga
também que, por mais abominável que julgue um avarento, uma mulher avarenta ainda
lhe parece coisa mais monstruosa. O veneno dessas palavras age. Leonardo não pode
deixar de fazer a Eli uma observação desagradável: sendo a generosidade uma de suas
melhores qualidades, não pode suportar o medo que certas pessoas têm de gastar dinheiro.
Eli refuta pausadamente aquela insinuação, segundo a qual se estaria esforçando para
impedir eventuais pedidos de dinheiro da irmã. - "Não foi você mesmo" — replica ela —
"quem desaprovou ainda mais energicamente do que eu a propensão de Ana a se fazer de
grande senhora? Você não caçoou dela porque seus trajes não condiziam com sua
situação? Não achou suas pretensões excessivas?" É verdade. Leonardo se cala. Realmente,
não falhou uma ocasião de se divertir à custa da "Senhorita sem um vintém" que se
transfigurava em princesa e não achava nenhuma sociedade bastante distinta. De acordo
com a fisionomia tomada pelas coisas mais tarde, é possível supor que Leonardo, então, só
quisesse vingar-se da arrogante atitude ou apenas da indiferença de Ana em relação a ele.
De início, ela estava persuadida que se casara com Eli apenas pelo dinheiro e especulara
desde o começo sobre a fortuna do falecido fabricante de papel. Deveria ter em estima
particular o rapaz, porque se curvara miseravelmente sob o jugo dourado de uma mulher
idosa? Pouco tempo depois de se ter dirigido a Ana a propósito da pequena Hildegarda,
Leonardo teve com ela uma estranha explicação (parece que a resolução de apelar para sua
compaixão feminina e colocá-la a par do seu segredo tinha vindo imprevistamente, sem
preâmbulos, sem que pudesse saber se ela o ouviria, se não o repeliria desde as primeiras
palavras; é também possível que lhe quisesse preparar uma armadilha por causa da
secreta irritação que há muito tempo provocava nele com a sua frieza; assim fazendo, não
tinha absolutamente consciência do que arriscava; como ser impulsivo que era, obedecia
unicamente seus impulsos). Nessa época — segunda ou terceira vez em que se
encontravam para decidir a sorte da criança — também se explicaram sobre seu
casamento. A mesquinha suspeita de Ana, que Leonardo a obrigou a confessar, encheu-o
de uma violenta irritação. Para justificar-se, atingiu um tom de sinceridade ao qual não se
podia ficar surdo. Por que meios um homem esmagado por uma tal censura vai defender-
se? Acentuará a amizade desinteressada oferecida pela mulher e dirá: compreender um
homem — nota bene, um homem que ainda não se achou ele próprio — só uma mulher já
madura de idade é capaz disso, uma mulher que tenha o caráter formado, cujo espírito não
se deixe enganar mais por fáceis miragens. Celebrará a paz interior que aquela união lhe
trouxe, o sentimento de segurança, semelhante ao do capitão de um barco avariado
quando sabe estar o leme em boas mãos. Mas é preciso ultrapassar esses lugares-comuns
que nada dizem da personalidade de Eli, do seu coração sensível, do seu incorruptível
julgamento sobre os homens, de sua abnegação, da riqueza de sua alma. Leonardo se
exalta. Ana ouve, de cabeça baixa. A enumeração de tantas qualidades numa mulher
constitui quase uma humilhação para outra mulher, e isso é particularmente verdadeiro
quando se trata de uma irmã. Leonardo explica o que quis dizer por "barco avariado" (o
que é bem característico da sua parte, é que ele aproveita de boa vontade a ocasião de
falar do perigo que sua personalidade correu, mostrando-se geralmente sob um clima
favorável, querendo passar por uma natureza problemática). Antes de encontrar Eli, era um
joguete nas mãos dos outros, podia-se julgar perdido a cada momento, estava desnorteado
pelas suas ilusões, desanimado ao possível; foi por puro acaso que não se perdeu
completamente, que uma audaciosa confiança em sua estrela o conservou algumas vezes
na superfície; se, até ali, não conheceu ainda o grande amor e se, sob esse ponto de vista,
sua união com Eli representa uma renúncia consciente, adquiriu, em compensação, outra
coisa mais nobre e, em todo caso, mais durável. Ana não pode ocultar um sorriso irônico:
não ter conhecido o amor (o "grande", como se existisse um grande e um pequeno... ), que
quer dizer aquilo? É uma flor de retórica, mas tem também ares do engodo, ainda que um
pouco grande demais. Aprisionam-se desse modo as cabeças loucas que só atendem à
cobiça, essas que desejam apenas beliscar ao invés de colher abertamente, e a quem se
lança a resignação como alimento. De qualquer modo, a veracidade aparente de uma
confissão feita dolorosamente e cujo núcleo é constituído por uma saborosa mentira, é uma
receita que raramente fica sem efeito.
Ana, porém, não cai tão facilmente na armadilha. Sem dúvida, fita o cunhado com olhos
um pouco diferentes, mas não demonstra ter muita confiança nele. Leonardo é tão
eloqüente, tão hábil em sua argumentação, e não descansa enquanto não destrói o
preconceito esvaecente. Ana acredita nele quando o ouve dizer que não se casou com Eli
por interesse; não é bastante tola para se obstinar em uma ideia preconcebida, desde que
tudo se esclareceu. Por que, então, aquelas constantes discussões, aquele esforço para
conquistá-la, todas aquelas numerosas perguntas? Finalmente, atendendo ao desejo do
cunhado, foi à Suíça buscar a criança e, com uma ama, levou-a para a casa de sua amiga
Paulina Caspot. Essa Paulina Caspot é filha de um médico de Dusseldorf e foi casada com
um pequeno negociante inglês que morreu logo depois, deixando-a quase sem recursos.
Instalou ela em seguida, em Hertfort, algumas milhas ao norte de Londres, uma casa para
governantas desempregadas, tirando disso um lucro razoável. Ana se correspondia
regularmente com ela sobre a criança, dava as instruções precisas sobre sua educação (só
no mundo, aquela mulher aceitara com alegria cuidar da criança abandonada), e todos os
meses enviava, da parte de Leonardo, o dinheiro para o pagamento da pensão. Tudo isso,
naturalmente, exige ajustes e certos entendimentos, tanto mais quanto a rispidez com que
Eli se recusara, obrigava-a, de algum modo, a ajudar um homem tão sem jeito para as
questões práticas. Leonardo, porém, não se cansa de falar nisso. Força-a, todas as semanas,
a acompanhá-lo à cidade para comprar um presente, um vestido, um brinquedo para a
criança. Pede-lhe que arranje fotografias, procura convencer um pintor inglês a fazer o
retrato de Hildegarda, roga a Ana para que nunca deixe de se interessar pela criança, diz-
lhe: - "Você, agora, é a verdadeira mãe de Hildegarda" - e assim por diante. É difícil recusar-
lhe alguma coisa. Sua amabilidade é extraordinariamente envolvente; assim, eles se
aproximam, e, coisa muito natural, suas relações se tornam mais fáceis. Eli se comporta
como alguém que, tendo a corda no pescoço, se esforça por fazer boa cara. - "Onde vocês
vão?" - perguntava - "De onde vêm vocês?" - e sorria. Ana se sente vigiada. Nasce nela o
desejo de fazer bravatas. Uma observação irônica, uma fisionomia contrariada bastam para
que Leonardo replique à mulher, irritado: - "Estamos em um jardim de infância? Estamos
proibidos de conversar um com o outro?" Eli sorri, pede desculpas, não encontrando mais
as palavras necessárias. É como se houvessem estendido um véu entre ela e Leonardo. Já
não podem ser espontâneas suas relações. Em todas as conversas, há uma rispidez
encoberta, uma cilada disfarçada; a solidão, a solidão a dois a que se recolheram, torna-se
insuportável Se ela contradiz uma opinião emitida por ele, logo se cala e se fecha em
silêncio durante horas; quando o olha, então, vê em seu rosto o que está pensando e sente
medo, medo... Um dia, ele pede dinheiro emprestado. Está em situação difícil: a viagem de
Ana, a instalação da criança, tudo aquilo absorveu somas consideráveis; necessita de
seiscentos marcos. Eli assina um cheque; ele o olha e olha em seguida para ela: o cheque é
de quatrocentos marcos. - "Eu pedi seiscentos" - observa Leonardo friamente. Eli replica
que a soma dos juros vencidos não ultrapassa quatrocentos marcos. Leonardo ergue os
ombros desdenhosamente. - "Os juros? Quer você me limitar aos juros? Tratar-me como a
um estudante que gastou muito depressa sua mesada?" - "Eu sei o que faço" - replica a
mulher, desviando os olhos - se começarmos a gastar o capital, no fim de dez anos não
teremos mais nada." Ri na sua cara: - "Eu espero, daqui a dez anos, estar bastante bem
para poder dispensar sua generosidade, ou você pretende conservar-me em tutela até o fim
da vida?" Eli tem um sobressalto. Surge-lhe no rosto uma expressão bravia e concentrada
que ele não conhecia e, pondo a mão no seu ombro, diz: - "Foi você mesmo quem quis essa
tutela, como proteção contra você próprio. Sendo preciso, e mesmo contra a sua vontade,
defenderei você, contra você mesmo." Leonardo não diz nada, escancara os olhos. Nunca
Eli falou daquele modo. Dir-se-ia um programa ameaçador. E, subitamente, tem o
pressentimento do que o espera.
Desde então, passa as noites na rua. Eli não profere uma queixa, uma censura. Sua
preocupação é evitar que a desinteligência se declare abertamente; compreende, a cada
passo, estar avançando num terreno minado. Não mais pergunta em casa de quem ele vai,
de onde vem quando volta tarde, mas, ouvindo suas explicações embrulhadas — coisas
evidentemente inventadas, conferências, reuniões, trabalhos profissionais — sofre e se
inquieta. Uma vez, pega-o em flagrante delito de mentira. Não há ninguém na casa onde
diz ter ido: as pessoas tinham partido na véspera e ele não percebeu que era fácil a Eli
certificar-se de tudo. Leonardo não lhe conta, mas ela bem sabe que, quase todas as noites,
vai ao cassino e joga pôquer. Assim, como fazia antes do casamento, volta a beber e fumar
desmedidamente. Não trabalha mais com regularidade; apenas, sob a ativa influência de
Waremme, põe-se a falar (a falar simplesmente, ficando sempre em intenções... ) em
atividade disciplinada, o que não o impede de passar as noites bebendo, fumando e
discutindo em companhia desse homem fatal.
 
 
 
VI
 
 
No diário de que já se falou, Eli se referira muitas vezes a Waremme, ora em notas breves,
ora em longas reflexões, assim como em carta que escrevera a Madame de Geldern.
Naturalmente, ela o via como a maior parte das pessoas. Ninguém o conhecia, e uma coisa
dita a seu respeito poderia ser tão verdade quanto o contrário. Todos se enganavam.
Durante certo tempo, principalmente no começo, no inverno de 1904 a 1905, a cidade
inteira só falou em Waremme — dir-se-ia que um lobo, entrando, pusera a malhada em
polvorosa. Jogador, valentão, don Juan, sim, tipos assim são conhecidos e nada têm de
impressionante; mas Waremme, ao mesmo tempo, é filólogo, filósofo, poeta, político — e
que político! Não é um diletante qualquer, mas um espírito produtivo, alguma coisa como
um aliado do diabo, um gênio universal. Está trabalhando, ao que dizem, numa nova e
grandiosa tradução de Platão, da qual, por vezes, lê trechos a seus amigos. Faz
conferências privadas sobre Hegel e sobre o hegelianismo que precisamente nesse
momento está de novo em moda. Publica uma coletânea de odes alemãs no tom de
Höelderlin e dirige, numa revista de ciências antigas, trabalhos de exegese que tentam
provar que a lenda de Parsifal não é de origem puramente francesa, mas tem sua raiz no
velho mito germânico. Sabe-se que é persona grata junto ao bispo de Breslau que o
recomendou calorosamente ao alto clero renano. Católico convicto, vai à missa, mas vive
separado da mulher. Não tem fortuna, nem recursos regulares, mas recusa aceitar um
cargo de professor ou qualquer outra função remunerada. Será porque deseja conservar
sua independência (quando o afirma, todos acreditam logo) ou o dinheiro aflui às suas
mãos de alguma fonte obscura`? Também é possível. Consagra a maior parte de sua
atividade à filosofia política. Com toda a paixão de que é capaz, proclama a missão mundial
da Alemanha e declara que o país fatalmente morrerá asfixiado entre seus estreitos limites
— perecerá sob a ação dos elementos destruidores que nutre, a não ser que se liberte por
uma guerra. Essa guerra, para ele, é uma questão religiosa — considera-a sagrada e sente
que nasceu para ser o seu Pedro, o Eremita. Apoiando-se sobre a tradição histórica,
interrompida ao fim de uma Idade Média próspera pela irrupção da onda latino-celta, erige
mentalmente um imperium romano-germânico que se estende da Sicília até a Livônia e de
Roterdam ao Bósforo. Faz com que tudo entre nessa construção: a arte, a poesia, o gótico e
o barroco, a renascença e a antigüidade, Cristo e os Padres da Igreja. Das duas coisas, uma;
ou é essa ideia que o transforma num fanático (no caso de o ser), ou é o fanatismo (se o
sentir) que constitui um dos elementos de sua personalidade e faz brotar a ideia dele
próprio, madura e acabada porque chegou sua hora. Não lhe faltam adeptos; admiradores,
mesmo nunca satisfazendo sua vaidade faminta de homenagens, cercam-no docilmente, e
talvez não seja puramente imaginária essa suposição levantada por observadores frios:
Waremme é protegido por pessoas mais poderosas do que simples professores,
imperialistas, generais reformados ou um grupo de estudantes exaltados; os que o
sustentam são indivíduos que sabem perfeitamente o que querem e que renunciariam sem
dificuldade ao esplendor imperial da Idade Média se, prosseguindo nesse sonho inebriante,
não servissem ao mesmo tempo aos seus próprios interesses. Por isso, um colosso de
inteligência, como Waremme, era sem contestação de uma utilidade superior, estivesse ou
não sinceramente convencido do que dizia. E também por isso, julgavam com indulgência
suas histórias com mulheres, seus perpétuos desastres financeiros, a pequena garantia que
sua pessoa oferecia e o mistério de sua origem, sobre a qual — esquecido, como todo
aquele que mente mal porque mente demais — se expande em narrações sempre
contraditórias.
Sabe-se que é amigo de Ana ou, pelo menos, que já se conheciam. Haviam-se encontrado
pela primeira vez no ano precedente, em Colônia. No Carnaval, numa representação de
amadores, ele lhe ensinara tão bem o papel de Pierrot que conseguiu aplausos unânimes.
Isso, é o que se diz. E é difícil saber o que há de verdade. Ana silenciou sempre, a esse
respeito. Ana, geralmente, não fala do que lhe acontece. A única coisa surpreendente é que
não vai mais ao teatro e abomina tudo o que a ele diz respeito. Nada diz também sobre
Waremme, pelo menos com Eli, e não é ela que o apresenta a Leonardo. Parece ter vindo de
Waremme o primeiro movimento, como se houvesse farejado a distância, naquele rapaz, a
presa que lhe estava destinada. Tornam-se logo inseparáveis. Pela manhã, Leonardo vai à
casa de Waremme e, à tarde, saem juntos a cavalo. E não é raro que Ana os acompanhe.
Naturalmente, o grupo faz sensação nas ruas. Por fim, Leonardo introduz Waremme na
própria casa. Um resto de instinto o fez hesitar por muito tempo; o primeiro encontro com
Eli é, realmente, penoso. A aversão de Eli por aquele homem tem alguma coisa de
instintivo. Sente-se sem jeito desde que vê aquela face pálida com a mandíbula inferior de
boxeur negro, os olhos sem cor, o olhar lúbrico, o pescoço gordo, as mãos gordurosas e
cheias de anéis - tudo aquilo lhe inspira um horror indescritível, assim como sua polidez
irônicamente acentuada desde que se dirige a uma mulher, assim como, também, o
soberano desembaraço da sua conversa. É verdade: ao seu lado, Leonardo parece um lacaio
na ante-sala de um príncipe. Isso, porém, não rebaixa Leonardo a seus olhos porque não
são os homens que estabelecem a hierarquia e, sim, Deus. Só precisa inquietar-se com o
que ele faz. Suplica-lhe que rompa com Waremme. Então reage como se exigisse dele um
ato desonesto. - "Você parece não ter a menor ideia de quem é Gregorio Waremme." Oh,
sim! Certamente que tem! Quando aquele homem se encaminhou para ela, sentiu o
coração se apertar com o pressentimento de um destino inevitável, mas, agora, ela se
esforça para não dizer nada. - "E, aliás" - continua Leonardo - "entre as nossas relações, ele
é o único que parece fazer caso verdadeiramente de Ana." O que responder a isso? Eli, de
pé, é tomada de súbita tontura. Estava combinado que, naquela noite, iriam juntos tomar
chá em casa do conselheiro Eichhorn. Leonardo prometeu vir buscá-la; mas não vem. Nove
horas, dez, onze horas, Eli não espera mais. No dia seguinte, de manhã, explica: não fora,
Waremme ficara lendo um tratado que acabara de escrever. A mulher do conselheiro
Eichhorn, duas horas depois, chamava ao telefone: - "Por que você não veio, Eli? Foi uma
reunião encantadora, dançou-se até, e o mais lindo casal era incontestavelmente o
constituído pelo doutor Maurizius e por Ana". Atrapalhada, Eli balbucia qualquer coisa no
telefone; sente o coração encher-se de fel. Já significa tão pouco para ele que nem a julga
digna de uma mentira bem inventada e capaz de iludir por algum tempo. Não tem vontade
de pedir explicações, pois as coisas já estão muito avançadas. É como um incêndio que
zomba do jato da bomba. Amarrada, vê Leonardo submergir sob os seus olhos dilatados
pelo horror. Não pode acreditar que tudo esteja acabado. Ainda espera; espera e pensa que
tudo é apenas uma nuvem passageira. Leonardo não podia ter esquecido a promessa que
lhe fez e sobre a qual edificou sua vida. Mas, enquanto se entrega a semelhantes ilusões, já
as forças demoníacas se acumulam para sustentá-la nessa luta que travará para conservar
Leonardo a todo custo e que os destruirá a ambos.
 
 
 
VII
 
 

Uma tarde, ao anoitecer, voltando da cidade, Eli abre a porta do salão. Ana e Leonardo
separam-se bruscamente e, perturbados, ficam olhando fixamente Eli que está em pé, no
limiar da porta. Ana se encaminha para a janela e, escondendo o rosto ruborizado, concerta
os cabelos que estão em desordem; Leonardo permanece como que enraizado junto ao
divã e volta-se para Eli num gesto de súplica. Silêncio de morte. Quando Ana recobra um
pouco a calma, apanha o capote e o chapéu na poltrona, dirige-se como um furacão para a
porta e lança sobre Leonardo, ao passar rapidamente, um olhar de tão vivo desprezo que
ele, branco como o linho, lhe faz também o mesmo gesto de súplica há pouco destinado à
mulher. Mas, resplandecente de incrível orgulho, seus olhos parecem dizer que é infamante
para ela continuar no mesmo aposento que ele; por isso, apressa-se em sair. - "Deixe-me
passar!" - grita com arrogância à irmã. Eli se afasta em silêncio, e Ana desaparece. Ainda
não se extinguiu o ruído dos seus passos e já Leonardo avança até junto da mulher,
suplicando: - "Por Deus, Eli, ela não é culpada." Como Eli se conserve em silêncio - todo o
aposento roda diante dos seus olhos - Leonardo se prostra, abraça-lhe os joelhos e diz: -
"Acredite-me, Eli, ela não tem culpa, é tão pura como o dia." Eli sente que sua atitude é
teatral mas, apesar disso, há na voz um acento de sinceridade e na fisionomia uma
expressão de franqueza. Nada poderia perturbá-la mais profundamente do que isso.
Dois depoimentos, em resumo, concordavam sobre esse incidente: o de Leonardo e o da
empregada Frieda que tudo ouvira atrás da porta. E, ao que parece, foi esse incidente que
fixou de modo decisivo a posição dos três personagens, uns em relação aos outros:
Leonardo, fraco, louco de sensualidade, fascinado pela sua linda cunhada e só visando
seduzi-la; Ana, em posição de dependência indireta, incerta quanto ao futuro, defende-se
como pode contra suas perseguições apaixonadas; tenta também, por todos as meios,
trazê-lo à razão, ainda que cedendo algumas vezes — na verdade, é uma moça de
dezenove anos apenas, sem experiência — ao encanto que inegavelmente emana daquele
homem; de tal modo que, apesar da sua reserva, é fatal que apareça diante dos olhos da
irmã em situação duvidosa. Não quer enganar Eli. Mesmo que amasse Leonardo, não
poderia desviar o marido de sua irmã; mesmo que ele se divorciasse, não poderia suportar
a ideia de ter despedaçado a existência de Eli. Aliás, terá ele a intenção de deixar Eli?
Absolutamente. Em primeiro lugar, Leonardo, como Ana, e talvez ainda mais do que ela,
depende de Eli; está por demais habituado às comodidades de uma existência luxuosa,
para consentir em voltar à precariedade de sua vida de solteiro e cair novamente sob o jugo
caprichoso do pai. Depois, arrisca perder seu prestígio junto a uma sociedade que tem em
grande consideração. E, também, põe em jogo sua própria carreira científica; no meio onde
tão facilmente se aclimatou, perdoa-se qualquer falta secreta, mas não o escândalo
público. Assim, Leonardo se vê obrigado a bordejar, já que não é capaz de renunciar a uma
ou a outra coisa. Para renunciar, era preciso possuir um conhecimento claro das coisas.
Mas, caracteres amorfos como o seu, raramente têm visão nítida de sua situação e de seus
movimentos íntimos; preferem nadar na incerteza. E é agora que se formam os enigmas
nesse trio, por outros lados tão pouco interessante.
Apesar de sua crescente e incoercível paixão por Ana, que não deixa lugar nele para mais
nada e que, finalmente, não permanece velada para mais ninguém, Leonardo continua a
viver com Eli como esposo. De sua parte, pode-se compreendê-lo. Talvez procure o
esquecimento em seus braços. Mas, quanto a Eli, é difícil acreditar que lhe possa dar
qualquer espécie de esquecimento, pois só existem nela confusão e tormento. Talvez
Leonardo queira iludi-la quanto ao seu estado, mas, nesse caso, seria preciso admitir que
uma mulher como Eli se deixasse enganar a esse respeito. Talvez que não se recuse a ele:
talvez ainda esteja esperando. talvez crendo que a força mágica do seu sangue possa
ajudar a reconquistá-lo. Talvez exista em Eli, realmente, alguma coisa disso tudo e não
apenas a piedade feminina, essa piedade que a arrasta para um abismo cujo horror a fará
um dia tremer de febre e de frio; alguma coisa disso tudo, e não apenas a piedade da
amante maternal que oferece suas supremas reservas, porque são essas supremas reservas
que são perdidas. Que Leonardo as exija e as tome, enquanto tem diante dos olhos a
imagem idolatrada da cunhada (e isso de modo tão visível e sensível que o que constitui
para ele um sonho magnífico é um sonho terrível para Eli), tudo isso pinta Leonardo em
traços quase repugnantes. O voluptuoso caminho pela mais tenebrosa das veredas. Dir-se-
ia, além disso, que Leonardo não se podia libertar de Eli. Ela exerce sobre ele
incompreensível poder que o retém. Em verdade, ele próprio não consegue explicá-lo. É
possível que seja alguma coisa de que se envergonhe. Freqüentemente uma mulher — e
não é preciso, para isso, que seja uma mulher de elite — compreende o homem de tal
modo que a ele se afeiçoa mais que através da sensualidade ou do interesse. Homens
existem cujo impulso vital se paralisa quando seus pensamentos são adivinhados antes de
eles os transformarem em atos: são de tal natureza que é somente encobrindo seu ser
íntimo que chegam a uma verdade exterior. Se essa mesma mulher possui, ao lado dessa
penetração da inteligência, um certo temperamento, ela é para o homem duas vezes, três
vezes, dez vezes mais perigosa, conforme a força desse temperamento. É isso que
determina as mais profundas sujeições conhecidas... Leonardo se entregou a Eli,
prometendo-lhe sua confiança. Como todos os fracos, no que diz respeito à honra, é de uma
suscetibilidade mórbida. Assim, em certos casos, procura salvar a honra mesmo a custa da
mais grosseira ilusão. Negará obstinadamente ter errado, mesmo sendo esmagadoras as
provas colhidas contra ele. É que, na realidade, não quer cair perante o conceito da mulher.
A admiração de Eli, sua compreensão fina e sutil, elevaram-no pouco a pouco até uma zona
em que se está de acordo consigo mesmo — o ar que respira é necessário à sua vida, e é
assim que ainda conserva os gestos, o olhar, e mesmo as palavras com as quais se exprimia
a antiga confiança, quando de há muito não ousa mais lhe fazer confissões. É uma roda de
máquina que gira sem correia de transmissão. Leonardo tem medo. Prefere que tudo
dependa do que Eli saiba por caminhos indiretos, pouco a pouco, e sem qualquer
intervenção sua. Assim, ganha tempo. Nunca se sabe o que pode acontecer entre um dia e
o outro. Receia uma mudança de sentimentos em Eli, receia o que ela sabe, receia a
inevitável decisão e receia, principalmente, o que chama o seu "ciúme". Pensando nisso, só
tem um desejo: fugir. A paixão que a domina ameaça-o nos seus próprios fundamentos, e
fere seus nervos sensíveis com o furor de uma força primitiva desencadeada.
"Ciúme" é uma palavra que, aqui, não diz muita coisa. Trata-se de uma desesperada
doença, de um câncer da alma para o qual não existe nem remédio, nem médico, nem
alívio, nem mesmo a calmaria que resulta do esgotamento. Eli acolhe avidamente todos os
mexericos e os delatores não faltam em sua volta. Ana foi vista, aqui e ali, com Leonardo.
Domingo, estiveram duas horas no Grupo artístico; na noite de anteontem, ele foi buscá-la
na pensão e passearam pelas margens do Reno. Da biblioteca da Universidade, mandou-lhe
um livro, dentro do qual havia uma carta. Quarta-feira, ela foi à sua conferência; sentada na
segunda fila, não deixou de o olhar um só momento. Durante uma noite de neve, das onze
à uma hora e meia, ele andou em frente de sua casa. Ainda outra coisa: enquanto Eli
esteve na cidade, Ana veio ao jardim da vivenda; Leonardo desceu e, juntos, andando,
tiveram uma violenta discussão: ela tinha a cabeça baixa e sua voz não era mais do que um
simples murmúrio, mas "ele gesticulava, superexcitado. Waremme, no dia anterior, veio
apanhá-lo de automóvel, no cassino; Ana se reuniu a eles, atrás da igreja paroquial. Frieda,
a empregada, conta escarnecendo que Ana já telefonou naquela manhã, às oito e meia, e
que ela respondeu que seus patrões ainda não se tinham levantado. Eli não pode mais
tomar pé nas coisas, de modo a se entregar a uma ocupação qualquer. Em casa, as coisas
vão de qualquer modo; não se preocupa com as refeições, os fornecedores esperam
semanas o pagamento das contas. Passa as manhãs na cama, as cortinas das janelas
descidas; afinal, quando se levanta, apresenta-se — ela que antigamente se cuidava tanto
— com o semblante de alguém que não dormiu, despenteada, um velho xale em volta dos
ombros, como se estivesse gelada até os ossos. Fica sentada à janela, ou em frente à
lareira, o olhar fixo no vazio. Em seu rosto, surgiram profundas rugas, sua tez está
escurecida; quando percebe sua imagem em um espelho, tem um movimento de pavor.
Quando Leonardo não regressa à hora da refeição, vai ao telefone, chama conhecidos e
amigos para saber se está em casa deles, ou se podem informar onde está; manda Frieda
em casa dos que não têm telefone, em diversos restaurantes, ao cassino. Leonardo,
naturalmente, vem a saber disso; todos riem à sua custa. Waremme tem uma frase de
espírito: - "Leonardo é o audacioso desertor que uma fita de mulher faz tropeçar." Furioso,
pede explicações à mulher, que se desculpa dizendo ter ficado inquieta, imaginando que
estivesse doente. À noite, com freqüência, não podendo mais suportar a solidão, sai de casa
precipitadamente, envolta num simples capote. Corre à cidade, erra como uma louca pelas
ruas, fita insolitamente pessoas que não conhece, segue um casal de jovens, no qual julga
reconhecer Leonardo e Ana, e isso de tal modo que os transeuntes meneiam a cabeça com
ar inquieto. Depois, retorna às carreiras como se o diabo a perseguisse, e espera, espera,
espera. Afinal, Leonardo chega (é meia-noite e, comumente, muito mais tarde ainda... )
fatigado, lacônico, temeroso. Não ousa retirar-se. Sente-se pusilânime quando ouve o tom
imperioso com que ela exige que se aproxime. Terá ela perdido a razão a ponto de chegar à
humilhação de mendigar um olhar, uma pobre carícia sua? Que ele ponha a mão sobre a
sua, apenas um minuto; nada mais pede do que isso! Que angústia, que desorientação!
Prostrada em frente dele, Eli soluça, a face contra o chão. E, de súbito, se produz
justamente o que Leonardo receava, a crise de loucura furiosa: - "Você me atirou na lama,
na abjeção! Onde estão suas promessas, o que você esconde de mim, que tem você na
cabeça?" E maldiz a irmã, ameaçando matar-se; começará por matar a pérfida, depois a
ele, e finalmente a si própria. - "Não pense que você pode fazer comigo o que faz com as
outras; não sou dessas com quem se pode entrar em acordos: no meu caso, tudo está em
jogo: minha vida, minha salvação eterna, e isso, você bem o sabia ... " Covarde como um
cão, Leonardo consola, apazigua, nega, jura, simula amizade, ternura, emoção, incapaz de
libertar-se, de acabar de uma vez; quer ir-se deitar e dormir, tudo aquilo o extenua e enoja
a tal ponto que se constrange a fazer uma carícia hipócrita. Eli grita: - "Mate-me, terei paz,
pelo menos!" Não parece que essa súplica - "mate-me!" - se implantou nele numa dessas
horas sinistras? E que Eli leu nos seus olhos o desejo que já existia nele antes dessa súplica
desesperada? E que daí vieram os terríveis pressentimentos que, em seguida, a iriam
dominar sempre que seu coração esgotado se recolhesse um instante?
Todas as noites, as mesmas cenas, cada vez mais inúteis, mais ásperas, mais infernais. A
sua própria casa o amedronta - medo da escada, medo da luz. Uma vez, voltando para
casa, joga a chave do portão do jardim no Reno, o que o obriga a escalar o muro. Já sabe
tudo de cor, palavras, gestos, lágrimas, explicações e, no fim, a súplica para que não a
deixe sòzinha no quarto (já agora, dormem em quartos separados); depois, quando
consegue desembaraçar-se dela e toma o calmante, procurando adormecer, ouve suas
incessantes idas e vindas através dos aposentos. Algumas vezes, bate à sua porta como
para certificar-se de que está ali mesmo. Freqüentemente, a luz ficava acesa e ouviam-se
suas vozes às quatro horas da manhã, no salão. Uma noite, Eli soltou um grito tão forte que
o guarda-noturno tocou a campainha para saber se havia acontecido alguma coisa.
VIII

 
Uma tarde, Eli sai, passa em casa da costureira, toma chá em uma confeitaria, bebe dois
copos de conhaque e dirige-se para casa de Ana. Faz quinze dias que Ana mudou de
residência: alugou um pequeno apartamento, muito elegante, em casa da viúva de um
comandante. Onde arranja dinheiro para isso? Eis o que nunca se examinou, nem se
explicou. É verdade que Gregorio Waremme, semanas antes, a empregou como secretária;
trabalha com ele três horas todas as manhãs, mas isso não chega, dado o que gasta, senão
para pagar meias e sapatos. Aliás, esse emprego não dura muito. No fim do mês,
efetivamente, deve-se realizar uma espécie de assembléia política para a qual os
nacionalistas mais notáveis foram convidados. Waremme é a alma da manifestação que
terá o caráter de uma demonstração; os preparativos, a correspondência, o recrutamento
dos fundos necessários, tudo isso lhe rouba um tempo enorme. Faz tudo com um zelo tanto
maior quanto, ultimamente, circulou a seu respeito uma nova história escandalosa: um
caso de pederastia no qual estão comprometidos alguns rapazes nobres, membros de uma
associação de estudantes muito fechada, e que seus protetores se esforçam por abafar (no
entanto, não o conseguiram, pois um jornal socialista publicou, sem citar nomes, um artigo
bastante alarmante e, por medida de precaução, decidiu-se transferir a assembleia para o
outono. Acontecimentos posteriores impediram que ela realizasse). A noite está próxima.
No quarto, onde a luz do dia se apaga, Eli espera a irmã. Anda com nervosismo de um lado
para outro, detém-se algumas vezes, permanece de pé na janela, remexe nos papéis da
secretária, recomeça a andar de um lado para outro. Abre depois uma gaveta da secretária:
a primeira coisa que lhe cai nas mãos é um retrato de Leonardo que ainda não conhece e
no qual lê as seguintes palavras: "18 de maio de 1905, sete horas da noite; desde essa hora
sei que possuo uma alma eterna. - Leonardo." Eli olha fixamente o retrato e cai na
gargalhada. Em uma das suas últimas cartas à amiga já muitas vezes mencionada,
escrevera a esse respeito: "Parece-me ter dois buracos profundos e dolorosos em lugar de
meus seios." Todo o seu corpo estava agitado pelo riso. Foi então que Ana entrou. - "Que faz
você aí, Eli?" Oh, aquela voz detestada, rouca, triste! Eli rasga o retrato em quatro pedaços,
atirando-o aos pés da Ana. - "Até quando você pensa representar essa ignóbil comédia?" —
gritou ela, face a face com a irmã — "Você ou eu, é preciso que uma de nós duas vá
embora, — se tiver de ser eu, você saberá onde vou e isso acabará pelo menos com suas
preocupações. Não restará mais nada senão felicitar a você por ter agido com a consciência
de uma desastrada." Ana se apoia na parede, estende os braços como que querendo
segurar-se, torna-se lívida e cai ao chão. Sem se preocupar com a irmã que permanece
estendida com convulsões de epiléptica, Eli quer-se afastar. Mas, antes de alcançar a porta,
vê aparecer diante dela Leonardo e Waremme, ambos de smoking. Vêm buscar Ana: um
senhor De Busch os convidara para jantar com outros amigos, num hotel. Waremme se
aproxima de Ana, inclina-se sobre ela, vê o retrato rasgado e dirige-se a Leonardo: - "Você
está vendo, meu caro Maurizius, você não devia deixar que as coisas chegassem até este
ponto." Faz-lhe sinal, ao mesmo tempo, para que cuide de Ana. E ele próprio, coisa
estranha, aproxima-se de Eli que, muda e trêmula, permanece de pé em frente do marido,
e lhe oferece o braço. Ela, coisa ainda mais estranha, aceita seu braço — deixa-se levar pelo
corredor onde a viúva do comandante, que naturalmente ouviu tudo, se afasta como um
morcego que passa. O automóvel está à espera. Faz com que Eli o tome, senta-se a seu
lado, acompanha-a até à casa, leva-a ao quarto, fica falando durante quase um quarto de
hora. Eli tem impressão de que se trata de um grande médico, de um sacerdote que
conhece a fundo — coração humano. A sua antipatia se desfaz; não consegue dizer nada,
mas abandona-se, chorando em silêncio, ao sortilégio da sua presença. Ele é tão afável, tão
bondoso, tão sábio, o seu olhar compreende toda a sua aflição: "Como é possível" — pensa
Eli — "que exista um homem assim e que todos se julguem obrigados a odiá-lo?" Concorda
com o que Waremme propõe: Leonardo se afastará durante alguns dias e ficará residindo
em sua própria casa; não verá Ana, e melhor seria que Ana se instalasse em casa da irmã.
Ele, Waremme, insistiria junto a Ana, porque, realmente, isso lhe parece ter grande
importância, pelo menos para fazer calar as más línguas. Afirma-lhe a inocência de Ana,
diz: - "Dentro em pouco, minha senhora, eu lhe trarei a mais incontestável das provas."
Ninguém pode enganar-se sobre suas intenções. Não resistindo à emoção, Eli segura sua
mão e quer beijá-la. — "Pelo amor de Deus!" — grita ele e apoia seus lábios na fronte da
mulher. Nessa noite, Eli dorme treze horas de um sono profundo e sem sonhos. O grande
médico a consolou. Leonardo passa toda a semana em casa de Waremme. Uma manhã, no
começo de outubro, vem até a casa, mas fica no jardim; corta rosas e envia-as a Eli por
intermédio de Frieda. Eli se sente tão transtornada de alegria que salta ao pescoço da
empregada, abraçando-a. "Tudo ainda pode-se arranjar" — escreve à amiga na sua
incompreensível cegueira — "a única desgraça é que, nesses dez meses, envelheci dez
anos. Agora, sou uma velha." Enquanto isso, para Leonardo, as coisas atingem o paroxismo:
em sua própria casa, Ana é mais inacessível do que se estivesse separada dele por dez
horas de estrada de ferro; vigiando todos os seus passos, está Waremme, a quem prometeu
evitar Ana; em novembro, ela deve ir passar um ano na Inglaterra e, até lá, não deve nem
mesmo tentar revê-la. Isso, porém, não é o pior, pois ele deve a Waremme dois mil e
oitocentos marcos, dívida que, aconteça o que acontecer, deve pagar em breve prazo; para
prestar-lhe um favor e confiando na sua palavra de honra, Waremme tirou o dinheiro dos
fundos destinados à assembleia alemã. Trata-se, em todo caso, de um grande favor e, se
Waremme insiste no pagamento, não se pode censurá-lo, porquanto ele próprio arrisca ser
acusado de desfalque. (O dinheiro foi reposto dois dias antes do assassínio. Não por
Leonardo, é bem verdade. Mas, por quem e como? Nunca se procurou saber disso). Talvez
seja exato, como assegurou mais tarde no seu depoimento, ter Waremme lhe oferecido o
dinheiro espontaneamente, sem que pedisse nada. Waremme, em negócios de dinheiro, é
de uma generosidade real e Leonardo, nesse ponto, devia aparecer-lhe como um irmão um
pouco degenerado, criador de problemas inúteis; sabia, além disso, da terrível dificuldade
em que se encontrava o amigo. No alfaiate, sua dívida se elevava a setecentos marcos;
devia mais cem marcos no clube hípico, quatrocentos no agiota; e uma dívida de jogo, que
não podia deixar de pagar logo, ia a mil e duzentos marcos. No tempo de suas constantes
discussões com Eli, tão desastrosas para seu sistema nervoso, não ousava dirigir-se a ela;
agora, muito menos ainda. Talvez um resto de orgulho o retenha, talvez julgue não dever
cair, naquele momento, em relação a ela, em uma dependência material ainda mais
pesada, talvez seja também o velho medo, o medo místico do juiz que ela é para ele.
Certamente, envia-lhe rosas, mas não ousa apelar para a sua alma apaziguada; não quer
que se pense que fez aquilo por interesse, ficaria degradado, desmascarado a seus olhos.
Projeta, então, ir a Francfort; possui ali alguns amigos em boa situação. E só pensa no pai
quando se vê amavelmente repelido por eles. Dirige-se na mesma noite, de automóvel,
para a casa do pai. O filho do joalheiro, a quem recorre inutilmente, põe por fim o
automóvel à sua disposição para abrandar o rigor da recusa paterna. É durante essas
últimas horas que tudo se confunde em sua cabeça. Não pode suportar a vida sem Ana; não
pode mais viver, se não a vir. Telegrafou-lhe de Francfort. Ela não respondeu. Agora, a
caminho de casa, telegrafa a Eli, anunciando sua chegada para a noite do dia seguinte.
Quer retornar à casa; Ana lá está, tudo mais é indiferente, mesmo a catástrofe que o espera
se voltar sem dinheiro. Para enternecer o pai, conta meia dúzia de mentiras e procura
impôr-se com fanfarronadas; diz, por exemplo, que está em vésperas de fazer uma viagem
à Itália a fim de concluir um trabalho que lhe conferirá o título de professor e que, antes,
quis dizer-lhe adeus etc. Mas, apesar de sua pouca perspicácia e grande suficiência, cedo
percebe que nada conseguirá do velho, que súplicas e lágrimas são inúteis, que jamais o
comoverá. Fecham-se os caminhos, uns depois dos outros, diante dele. Que resta fazer?
Nada, senão aquele ato horrível e insensato cuja ideia ele, com sua covardia e sua avidez,
talvez viesse acariciando mentalmente. Encaminha-se para um hotel de Koenigswinter,
manda embora o automóvel e dorme até o meio-dia. Quando se levanta, raspa o bigode,
compra um enorme sobretudo amarelo com uma gola que pode ser levantada e, ainda uma
vez, telegrafa a Eli desmentindo o seu telegrama da véspera. Será possível agir mais
nitidamente e ideia a indecisão e a atrapalhação com uma consciência mais limpa? É
verdade que, mais tarde, afirmou ter querido falar primeiro com Ana; pretendia mandar
chamá-la ao jardim, usando o disfarce para que ela não se recusasse a encontrá-lo;
auxiliado pela hora tardia, lhe teria proposto fugirem naquela noite mesma. Fora obrigado a
comprar aquele sobretudo porque só trouxera um capote leve e o tempo esfriara
bruscamente. Miseráveis explicações! A concatenação dos acontecimentos, cadeia de anéis
bem soldados, surge em plena luz...
IX

 
Tudo isso não impede que, no barão Andergast, a dúvida cresça, se amplie, extravase
como uma maré que desagregue a própria matéria da sua convicção. Aquela construção,
cuja solidez desafiara todos os ataques, apresenta agora, à agudez do olhar, fendas e falhas
por toda parte. Terão a experiência e o tempo avivado aquele olhar voltado para trás? Será
a objetividade que não é mais prejudicada pelo papel de substituto, pela necessidade de
tomar partido? Não será, antes, a intervenção daquela lanternazinha de Amorbach?
Lanterna essa que não é simbólica, mas real, perfeitamente concreta e tangível, por mais
longínqua e invisível que seja a mão que a dirige. Lanterna que faz cair sua luz brutal sobre
as pessoas e os acontecimentos, para persegui-los até em trevas ainda não devassadas. E é
também a ação de dois olhos audaciosos, de um par de olhos de dezesseis anos, ainda
novos e destemidos, re- fletindo uma vontade capaz de se comunicar aos outros e cuja
irresistível força está em razão inversa do afastamento daquele que a possui.
Também esse afastamento concorre para a nitidez da visão; um afastamento no tempo e
no espaço sobre o qual nada mais pode a vontade e que transforma em obsessão todas as
evocações da memória. Ainda uma vez, ei-lo entre aquelas sombras que dançam, o garoto
de cinco anos, de madeixas escuras, trajado à marinheira, de mãos nos bolsos da calça,
lábios em forma de bico, prestes a assobiar; está de pé no alto da escada e medita sobre a
maneira de chegar embaixo sem se utilizar dos degraus. Lê-se no seu rosto desprezo por
esses degraus; anunciou recentemente estar convencido de que pode voar, mas para isso
tem necessidade duma complicada fórmula mágica, que não se pode pronunciar antes de
ter fixado o sol durante cinco minutos sem piscar os olhos. Experimenta todos os dias uma
vez, impacienta-se por não conseguir e fica humilhado quando, ao afirmar tê-lo
conseguido, lhe provam que trapaceou.
O barão Andergast tem agora diante de si uma outra imagem. É um domingo pela
manhã e ele levou Etzel ao museu Liebig. O rapaz parou frente a uma Vênus antiga e olha-a
fixamente com os olhos cheios de curiosidade, espanto e profunda admiração. Uma mulher
ainda jovem se dirige ao encontro do barão para cumprimentá-lo. Etzel volve para ela seus
olhos pensativos, depois contempla a estátua, novamente a mulher e diz enfim — O barão
Andergast crê ouvir ainda cada uma das palavras ditas pelo menino abaixando a voz com
hesitação. — "Papai, todas as mulheres são assim, tão maravilhosamente belas?" Esta
pergunta contém uma angústia secreta que os olhos luminosos não conseguem esconder;
é talvez a angústia dos anjos quando o braço estendido de Deus aponta os crimes
acumulados das criaturas e o caminho tingido de sangue e aflição que conduz, através da
morte, do amor terreno ao amor divino. Mas reconhecer e pressentir essas coisas provém
precisamente de um dom e no caso do barão Andergast essa aptidão data somente de
agora. Outrora os olhos permaneciam fechados para essas e para todas as outras coisas.
Manifestar sua existência é, em si, uma coisa natural; quando alguém existe, está certo:
existe. A infância é um estado imperfeito e a missão dos pais e educadores é torná-la tão
perfeita quanto possível. O pai tem a primazia sobre todos os que cercam a criança: é ele
que arca com as responsabilidades. E o ser engendrado por ele nada mais tem a fazer de
que tomá-lo por modelo e caminhar docilmente nas suas pegadas. Cada dia, tomado
isoladamente, não se distingue em nada dos demais; a hora não merece que ninguém nela
se detenha; é preciso adicionar as horas, e as somas dessas colunas de números
representam uma promoção de classe, a primeira comunhão, um boletim semestral, o
certificado anual, os exames finais; o total último representa o conteúdo e o valor da vida.
Avaliá-la é um simples exercício de cálculo.
O barão se recorda de grave moléstia que Etzel teve aos oito anos. Uma noite, já tarde,
entra no quarto do pequeno e aproxima-se do leito. De há muito, nessa época, a mãe não
está mais em casa. O rosto da criança está purpúreo, seus olhos febris, seus cabelos,
úmidos de suor, colados à fronte; quarenta graus de febre. Quando Etzel percebe o pai, um
pavor imenso se desenha em sua face; volve a cabeça murmurando coisas
incompreensíveis. A enfermeira tenta acalmá-lo, passando-lhe a mão sobre a cabeça e
dizendo docemente: - "Olhe, meu bem, é o seu papai." Mas a criança estremece como se
fossem castigá-la e seus lábios secos balbuciam: - "Eu quero que Rie venha." Vão buscar
Rie; ela se ajoelha próximo à cama, tomando entre as suas as mãozinhas dele; Etzel se
acalma e diz num murmúrio: - "Rie, eu não quero morrer, você está ouvindo, diga a mamãe
que eu não quero morrer." Neste "eu não quero" há uma decisão a tal ponto bravia que Rie,
abandonando seu habitual tom lastimoso, lhe responde gravemente: - "Muito bem, Etzel,
se você não quer, você não morrerá; sem dúvida você sabe que nós temos necessidade de
você." "Maluca!" - pensa o barão Andergast. Apesar de emocionado e seriamente inquieto,
a frase de Rie lhe pareceu, então, tão tola como fora de propósito. Pode-se amar uma
criança, mesmo escondendo cuidadosamente ("alguém" já não levou longe a dissimulação
dessa ternura até quase não ficar mais nada?) Mas, na verdade, não é possível dizer que se
tem necessidade dela. E não se tem mesmo; tem-se necessidade de reis, de generais, de
oficiais, de juízes, de soldados, de operários, de criados; mas quanto às crianças, é preciso
primeiro educá-las para que sejam utilizáveis mais tarde.
Em resumo, jamais experimentara a verdadeira ternura, ou mesmo uma das numerosas
variedades degeneradas desse sentimento. No ponto em que as coisas estão atualmente,
em face do desmoronamento completo daquilo que se chama a vida privada, não há
nenhuma razão para continuar ainda se iludindo.
O barão medita, medita, busca e busca mais ainda...
Doenças como aquela escarlatina freqüentemente são etapas de maturação que
importam no desenvolvimento de uma criança. O barão Andergast se recorda que, pouco
tempo depois, deixou de  acompanhar o menino, quer dizer que, de um lado, a consciência
de exercer um poder soberano e quase divino sobre um ser humano pôs-se a vacilar e que
do outro lado, da parte do menino, o movimento dirigido se fixou pouco a pouco em
movimento independente e modificação ultrajante para o amor próprio do educador. O
menino é de difícil penetração. Percebe-se nele uma rebeldia muito estranha e que nunca
se exprime. Não se poderia destacar em sua conduta a menor infração, a menor
desobediência, mas sua atitude é, em si, rebelião. Lembra-se de uma viagem feita com o
menino, que tinha então dez anos, por ocasião de Pentecostes. Ei-los num compartimento
de primeira classe; Etzel se debruça sobre a portinhola, o barão Andergast ordena que
fique quieto. Em verdade, nenhum motivo justifica essa ordem, mas ele quer ler seu jornal
em paz e não acha conveniente que o garoto se agite e ponha a cabeça pela portinhola.
Etzel então, sentado frente a ele, empertigado como um círio, acentuando sua atitude de
bom comportamento, fixa-o sem desviar o olhar. E nesse exame (ainda que o barão finja
não prestar atenção) há qualquer coisa de provocante, espanto que esquadrinha, uma
secreta curiosidade do que poderá ser aquele homem que é seu pai. E há mesmo uma
cintilação de ironia dissimulada nos olhos claros e piscantes à maneira dos míopes; durante
um segundo, o barão Andergast sente em si a cólera ferver e queimar; está prestes a
levantar o braço para bater no menino. Durante o dia inteiro permanece lacônico e
intratável e, de vez em quando, sente novamente dirigido sobre ele o misterioso olhar claro
do menino, medindo-o.
Quanto mistério, aliás, num menino como aquele! Acontecia sempre como se Etzel se
aborrecesse com os caminhos retos e aproveitasse todas as ocasiões para deles se esquivar,
dobrar a encruzilhada para se dedicar a empresas clandestinas. Quando reaparece, tem o
ar de haver cometido um furto e de querer por rapidamente seu despojo em segurança.
Tudo não é objeto de furto: as experiências que vai colher e não podem ser controladas, as
palavras e ideias que adquire, os panoramas com que povoa sua imaginação insaciável?
Aqui e ali, encontra cúmplices, todas as portas se abrem — toda nova experiência do
mundo é mancha para uma alma inocente. O conhecer exalta ou destroi. O saber é
arrogância ou dúvida audaciosa. Certa vez, o barão teve uma conversação com o pastor e
este lhe disse: - "Na verdade esse menino tem um espírito difícil; só acredita no que pode
ser demonstrado com a clareza da luz do dia. E a única coisa que o diverte é procurar uma
agulha num monte de feno. Deus mesmo terá suas dificuldades com ele."
E, ao mesmo tempo, o pastor sorria, como sorriam todos os que falavam de Etzel ou
apenas o viam. Até o oficial de registro, de alma ressecada como todo burocrata, ensaiava
um sorriso em seus lábios murchos, assim o avistava. Mesmo o rabugento doutor Malapert
sorria cada vez que o encontrava em casa. E era sempre um sorriso amável, animador e
franco, o que as pessoas lhe dirigiam. De onde provinha tudo isto? Dos seus modos, sem
dúvida. É altamente cômico observar anões que gesticulam como gigantes. Etzel tinha,
incontestavelmente, qualquer coisa de um gnomo velhaco que olha candidamente as
pessoas nos olhos e lhes faz uma careta assim que transpõem a porta. Anos antes, uma
velha tia-avó, corcunda, freqüentava a casa; tinha o hábito de abraçá-lo repetidas vezes,
duma maneira pouco agradável, gemendo de ternura; quando terminava, Etzel esfregava
cuidadosamente o rosto, inclinava-se diante dela com gravidade cômica e dizia secamente:
- "Muito obrigado, tia Rosalie." Seria o que havia nele de divertido, sua atitude obsequiosa e
digna dissimulando tantas farsas executadas ou projetadas, que lhe granjeava tantas
simpatias? Sem dúvida alguma, possuía uma graça natural, uma audácia rápida e amável;
herdara esses dois traços da mãe que na juventude era, igualmente, graciosa, impertinente
e muito difícil de se compreender. A sedução consistiria naquilo que o doutor Raff chamara,
no decorrer da sua apreciável análise psicológica, "a medida"? As pessoas sentiriam
claramente que tinha, em relação a elas, a verdadeira medida, não exigindo mais do que
podia esperar delas e tomando-as exatamente pelo que eram?
De qualquer maneira o barão Andergast não tinha percebido grande coisa das
particularidades do filho, que eram avidamente constatadas por todos. Se ocasionalmente
isso se impunha ao seu pensamento, não o admitia, julgando seu dever não dar nenhuma
importância ao fato. Seria inconciliável com seus princípios. Tê-lo-ia feito desviar-se da sua
linha de conduta. Prejudicaria a ordem, contrariaria a regra e equivaleria ao abandono do
leme.
Somente agora, ao refletir, parecia-lhe que, assim procedendo, havia renunciado a outra
coisa ainda; por exemplo, a uma certa complacência, talvez permitida, ao que se poderia
chamar "um firme propósito de amar." Pareceu-lhe desde então que, assim, designava de
maneira bastante exata e completa aquela atitude que se tornara sua e que consistia na
abstenção de qualquer manifestação dos sentimentos, para esterilizar o sentimento ele
próprio. Parecia-lhe ainda... sim... o que mesmo? que... mas, já que era muito tarde...
completamente e de qualquer modo, era muito tarde...
CAPÍTULO 7

NO ÚLTIMO DIA da semana que começara com a compulsação dos autos do caso
Maurizius, o barão Andergast voltou para casa à hora do chá e ouviu, ao atravessar o
corredor, um leve ruído de vozes no quarto de Etzel. A porta estava entreaberta, e, parando,
viu sua mãe sentada próximo da mesa, tendo Rie em frente a ela. — Tinham sob os olhos os
cadernos de redação de Etzel. Rie os recolhera nas gavetas e nas estantes e a avó os
folheava; lia aqui e ali algumas linhas e fazia às vezes uma reflexão a meia-voz. Talvez
esperasse encontrar nos cadernos algum indício que lhe auxiliasse a descobrir o lugar em
que se encontrava o menino, uma folha destacada, uma carta esquecida. Todos os outros
esforços tinham sido vãos. Sobre as duas mulheres sentadas, pairava uma nuvem de
consternação. A avó com sua mantilha de renda à moda antiga, um chapéu igualmente
desusado sobre a cabeça, tinha um ar aflito; ainda não podia conceber a fuga do neto e
compreendia, menos ainda, que ele, que de maneira tão insinuante lhe havia feito crer em
sua afeição, não lhe desse sinal de vida. A inquietação a martirizava; o barão viu seu
pequeno queixo pontudo como o de Etzel e ouviu-a dizer a Rie: - "Não percamos a
coragem, minha boa Rie, minha confiança permanece inabalável. O que aborrece é eu ser
tão velha, mas isso também tem sua vantagem. As pessoas que amamos nos habituam
pouco a pouco, pela sua ausência, à morte. É um treino para os velhos. Há tantas afeições
ausentes, e o mundo é tão grande".
O barão Andergast estava de galochas, por causa da chuva, e assim pode voltar até a
porta do vestíbulo sem ser pressentido tornou a descer a escada sem ter tirado sua capa e
saiu de casa. Não pudera tolerar o pensamento de ser obrigado a falar delicadamente com
sua mãe ou de fixar o rosto enrugado de Rie, sua expressão extenuada e sobrecarregada de
humildes censuras, nem o de ser condenado a permanecer até à tarde, até à noite, sentado
à sua mesa de trabalho atravancada de autos, sem outra companhia além do tinteiro, do
caderno de notas, das cadeiras, do divã, dos abomináveis quadros nas paredes e dos livros
imersos no silêncio. Caminhou rapidamente até chegar a Dammheide. Aí o vento era duas
vezes mais forte, a chuva lhe fustigava o rosto e os fios de água picavam como flechas.
Como não tinha guarda-chuva — por princípio não se utilizava nunca de nenhum — estava
molhado até os ossos. Não se importou. Era um lugar completamente deserto, horizonte
limpo de casas ou cabanas. De cada vez que dava algumas dezenas de passos, parava,
retomava fôlego. segurando seu chapéu pela aba, investigando os arredores com os olhos.
No entanto, o objeto de sua atenção não era nem a paisagem, nem a tempestade, nem as
folhas turbilhonando na estrada, nem as nuvens baixas que passavam se desfazendo.
Estava sempre voltado para dentro. Na sua fronte, via-se o esforço de um intenso trabalho
de pensamento. A cada minuto, suas sobrancelhas se contraíam mais. Pouco a pouco
pareceu não mais sentir as coisas exteriores e esquecer o lugar em que se encontrava e
para onde se dirigia; em certos momentos, dizia em alta voz, para si mesmo, fragmentos
de frases, reflexões sem nexo que não faziam parte dos seus modos habituais; ao mesmo
tempo a expressão de seu rosto se modificava e, qual um solo aberto pelo arado, perdia a
rigidez.
II

Impossível se iludir: uma brecha se produziu no encadeamento lógico. Começa então o


exame dos prós e dos contras. Até certo ponto, está disposto a encontrar uma explicação
para a brecha. Os gravames eram tão esmagadores que, desde o princípio, não se seguiu
senão uma pista; uma velha experiência da justiça criminal reconhece a cada crime um
determinado poder de sugestão. Não se pode tratar de um erro judiciário. Não nesse
processo. Se a trama dos acontecimentos apresentasse qualquer defeito, seria necessário,
naquele momento mesmo, depois de tanto tempo, procurá-lo discretamente. "Sobretudo,
nada de diligências oficiais." Dirigir de novo os olhos do público para aquele processo
caduco, encerrado, seria uma tolice criminosa. "Quando eu digo que, talvez, não se tenha
ainda descoberto toda a verdade, já disse demais... Talvez.. está bem! sim... talvez...
veremos."
Morde os lábios e mergulha o olhar na folhagem molhada de um olmo. Reconhece que,
após o julgamento, era necessário observar também Gregorio Waremme, pelo menos
durante um certo tempo, mas isso competia à polícia e não ao tribunal. Se se tivesse,
então, cuidado um pouco do "depois", se se tivesse o direito de fazê-lo, ter-se-ia sem
dúvida obtido sobre os antecedentes do personagem os esclarecimentos desejáveis. E foi
isso, exatamente, o que esqueceram de fazer. Coisa incompreensível - assim o constata
presentemente o barão Andergast - não se sabia nada sobre o passado daquele homem e
nada foi dito sobre isso. Em suma, por que falar? O tribunal a isso não estava obrigado e,
muito menos, interessado. Para o tribunal, a testemunha principal é coisa preciosa, e
evitará qualquer iniciativa capaz de abalar a confiança que se deposita nesse personagem;
analisando friamente, Waremme era a razão de ser daquela causa. Sem ele, não se teria
chegado, senão com enorme dificuldade ou mesmo de modo algum, a uma conclusão
aceitável, dadas as denegações obstinadas e perfeitamente absurdas do acusado (o que o
barão entendia por "conclusão aceitável" era, naturalmente, culpabilidade reconhecida e
condenação).
"Sem dúvida alguma, eis aí pontos fracos. Examinemos todos eles friamente." O barão
Andergast modera seu passo, que se tornara impetuoso, para agrupar esses pontos fracos.
Seguramente os encontra em maior número do que supunha, porque, ao fim de um
instante, seus lábios se contraem mais ainda. Não há explicação satisfatória para as
relações entre Waremme e Ana. Já em Colonia, deve ter-se passado entre eles alguma coisa
que lançou uma sombra sobre suas relações. A história do papel estudado por ela sob sua
direção, a aversão mórbida que guardava por tudo que dissesse respeito a teatro, e que
durava ainda depois de um ano, ninguém procurara esclarecer uma e explicar a outra.
Nenhuma alusão ao caráter daquela amizade, nenhum esforço para saber se era de
natureza erótica ou assinalava o prelúdio da união entre eles. A observação feita a Eli
Maurizius que, dentro em breve, ele lhe traria a prova evidente de sua inocência, não
provava nada. Que sentido tinha a palavra "inocência" na sua boca? Que podia um homem
daquela espécie entender por inocência? Seria necessário saber em que pé tinham ficado
suas relações após 1906, mas, a partir dessa data, as mais espessas trevas recobrem a
cena. A lei não conhece senão o caso em si, e não tem o direito de tocar no que se segue
quando os interessados recomeçam suas vidas. "O que conheço como indivíduo, como
particular, devo ignorá-lo." Mas o barão Andergast, como particular, não conhece, não
anota os fatos e gestos das testemunhas e dos condenados, comporta-se como uma
substância química que não permite agir sobre ela uma outra substância, senão quando
está combinada com outras. E pensa: se tivesse havido alguma coisa mais do que uma
intimidade amigável entre Waremme e Ana, esse teria intervindo mais energicamente para
defendê-la das importunações que sofria por parte do cunhado. Por outro lado, vai visitá-la
sem cerimônia alguma, vem buscá-la para levá-la a festas e excursões esportivas, é seu
cavalheiro, seu acompanhante preferido. Admitindo-se que usurpe esse direito, não se
pode explicar que, após a última cena penosa com Eli, Ana tenha-se deixado convencer por
ele a se instalar em casa de sua irmã, isto é: na goela do lobo. Dever-se-ia admitir, pura e
simplesmente, ter ela perdido toda a sua vontade, para, do dia para a noite, esquecer o
insulto ignominioso que recebera de Eli. E, quanto à sua situação financeira? Lamentável,
sem a menor dúvida. Ana exerce, junto a Waremme, a função de secretária. Provavelmente,
ele lhe paga alguma coisa. Caso não, caso se trate de um auxílio desinteressado, então
dever-se-á acreditar na existência de relações mais íntimas - o que ela negou, em tempos.
Quem lhe fornece meios de existência, uma vez que vive ociosa como uma senhora? Quem
paga seu luxuoso apartamento? Leonardo? Negou-o, ele. Waremme? Esse ponto não foi
esclarecido. Seja como for, é uma situação que faz pensar. E não está isenta de
ambigüidade. Mas, continuemos. Como ela é o pomo de discórdia entre os dois cônjuges, e
não pode ignorá-lo, ainda mesmo que se sinta inocente e não seja a última a sofrer com a
situação, por que insiste em permanecer? Se detesta o homem que tão obstinadamente a
persegue, por que continua a recebê-lo? Se está farta daquele que comprometeu sua
reputação, por que aparece em público com ele? Se ele, na casa de sua irmã, da própria
esposa, se entrega a tentativas abomináveis, ao ponto de desvairá-la de desprezo e
indignação, por que reata relações com ele? Telefona-lhe, assiste a seus cursos, conserva na
secretária uma fotografia sua com um autógrafo que, forçoso é confessar, é
verdadeiramente inflamado e bastante claro. Não pode defender-se dele, assim o afirma;
teve de aceitar tudo, mais ou menos de boa vontade, para evitar que perdesse a cabeça e,
no seu frenesi, arrastasse todos, ele, ela e Eli à ruína total. É plausível isso? "Naquela época
nos pareceu bastante plausível, Senhor! Uma criança de dezenove anos cuja ignorância da
vida é lamentável... Muitas vezes são elas precisamente que, em virtude da sua profunda
inocência, se metem em situações impossíveis. É possível que a paixão que despertou a
lisonjeie e se esteja aquecendo nesse fogo aceso por ela mesma. Para quem conhece as
mulheres"... O barão sacode a cabeça com mau humor. Parece-lhe um ponto de vista muito
fácil, aquele. Ana deveria ter abandonado a cidade; só pode ser censurada por ter
permanecido, por haver diariamente oferecido alimento àquele desejo criminoso. Teria sido
preferível que fugisse para a noite, para o desconhecido, para a miséria, do que instigar por
mais tempo aquela mortal discórdia entre os cônjuges. Embora involuntariamente. Mas, e
se por acaso tivesse feito duplo jogo? Se os dois homens não tivessem sido senão peões
sobre o tabuleiro de xadrez, ou se... desçamos até o fundo, até à última possibilidade
imaginável: que ela, por exemplo, tenha estado de conivência com Waremme e que tenha,
segundo um plano urdido anteriormente, impelido os acontecimentos até a catástrofe
final? Uma tal hipótese é admissível? Não, não o é, e não o é de modo algum! É uma
hipótese absurda, uma hipótese de melodrama. Os próprios caluniadores audaciosos não
ousaram semelhante asserção, e até mesmo os que mais se empenhavam em inocentar o
infeliz Maurizius recuaram diante dessa ideia. Entretanto, desçamos ao abismo ao longo
desse fio, suponhamos que tenha acontecido exatamente assim. Teria sido necessário que
os dois estivessem certos de que os oitenta mil marcos da fortuna de Eli - na ocasião, não
se podia cogitar de outros - reverteriam às mãos de Ana. Mas, o que estipulava o
testamento? O barão Andergast se promete indagar sobre as cláusulas do testamento, se
existir. De fato, se não houvesse testamento, e se o marido, como assassino da
testamenteira, era, por motivo de indignidade, excluído da herança, a irmã se tornava —
não havendo filhos do casal — a herdeira legal. Mas, não nos podemos aventurar tão longe,
descer tão fundo no abismo. Ser-lhes-ia necessário, então, num cálculo capaz de desafiar
qualquer humana previsão, ter deduzido com certeza absoluta que Leonardo meteria a
cabeça no laço e que bastaria puxá-lo para que o nó corrediço se apertasse. E, finalmente:
delitos, agravantes, testemunhas, tudo deveria estar de acordo e funcionar com a exatidão
de um mecanismo de cronômetro. "É bobagem. Vão para o diabo essas tolices! Coisas
assim não existem. Teríamos logo observado qualquer indício. À força de exagerar,
acabamos pegados pelas nossas próprias sutilezas.
O barão Andergast estacou. Um rubor doentio se espalhou pelo seu rosto, seja devido ao
esforço da marcha sob o choque constante da tempestade, ou à multidão de pensamentos
que o assaltou; suas veias se intumesciam na fronte, parecendo cordões azuis, e, em seus
olhos sinistramente apertados, estampava-se um terror jamais por ele conhecido. A
imagem de Waremme, não mais podendo ser repelida, revive em sua memória. Ele a vê
nitidamente na sua frente. fisionomia ousada, olhar fixo fitando tudo obliquamente,
mandíbula de tubarão, aspecto brutal, a cabeça enorme com cabelos curtos e duros, corpo
um pouco gordo. Para enfrentá-lo, era necessário um tipo de envergadura diferente da
daquele Maurizius, verdadeiro polichinelo e de nervos débeis. Não obstante, seus íntimos
falam de graves acessos de neurastenia, de depressões e crises de lágrimas freqüentes. É
possível. Aquele corpo que, apesar de suas proporções normais, dá uma impressão de
poder, talvez seja minado por forças devastadoras, como acontece entre pessoas que têm,
em relação ao tempo absoluto, uma outra idade do que no tempo em que realmente vivem.
Exibe sua idade: vinte e nove anos, mas tem-se a impressão de se tratar apenas de um
capricho de sua certidão de idade. Quando começa a falar, mesmo para dizer a coisa mais
banal, todos prestam atenção. O que se impõe não é a voz, nem a escolha dos termos, mas
a precisão da expressão, a superioridade da atitude. A impressão do auditório é: - "Eis aí
um que conhece o assunto!", como se, até então, apenas os aprendizes estivessem
trabalhando e, depois, chegasse o mestre. A diferença entre ele e as outras testemunhas do
processo é a mesma que existe entre miseráveis fragmentos e uma obra plástica acabada.
Apresenta-se com um tal ar que o presidente, visivelmente, se concentra e o pobre Volland
oferece o aspecto de uma bola de gás vazia. As tentativas habituais, dirigidas ora sobre as
testemunhas da acusação, ora sobre as da defesa, não surtem efeito, agora. Sabe-se como
é: uma observação irônica, uma questão capciosa enunciada de maneira afável, um ar de
triunfo para sublinhar uma contradição de que a testemunha se desculpa, alegando ter
compreendido mal, ter-se enganado. Com Waremme, porém, desnecessária a advertência,
inúteis os auxílios à memória titubeante, vãos certos interrogatórios, tão cheios de escolhos
que acabam por fazer tremer e tropeçar costureiras, cocheiros. carregadores, e até mesmo
pessoas da mais alta burguesia. Para ele toda essa aparelhagem seria inteiramente inútil.
Porque Waremme é tão indiferente, tão frio, tão sereno como uma estátua. Durante seu
depoimento, o barão Andergast não pode deixar de pensar: "`Agradeçamos a Deus não
esteja no banco dos acusados, pois não estaríamos à sua altura." De pergunta em
pergunta, quem dirige os debates se vai tornando mais delicado, mais respeitoso; na sala, o
silêncio se faz e a tal ponto que se ouve o ruído do ventilador colocado sobre a janela,
chegando mesmo a ser importuno. Cada palavra se torna logo decisiva. Quando o
presidente pergunta sua opinião sobre a atitude do acusado antes da prisão, Waremme
responde: - "Eu creio estar seguro da aprovação da Côrte, se disser que meu papel não é
emitir uma opinião; meu único dever é declarar minhas constatações e testemunhar fatos."
E, coisa estranha, admite-se isso, aceita-se sem réplica essa espécie de chamada à ordem.
Os juízes, o substituto, o advogado de defesa, os jurados, todos se lhe mostram submissos
de qualquer maneira; só pela sua presença, determina a orientação da instância judiciária
e é assim que seu depoimento tem o valor de uma sentença. A emoção que se lê em seus
traços transmite-se a toda a assembléia; percebe-se que está revoltado com a ideia de
entregar ao carrasco o desgraçado que era seu amigo. No entanto, o que sabe, o que viu,
toma por isso mesmo uma força maior, seu juramento maior império: - "Eis o que vi, tais e
tais coisas se passaram assim e assim; vós me fizestes vir aqui, não posso dizer coisa
diferente." E, atrás dele, Leonardo Maurizius, cuja transparente palidez brilha na sombra,
olha-o com os olhos dilatados por um mortal pavor. De um salto, põe-se de pé, estende as
mãos para pedir. Waremme se volta para ele; de súbito vacila, contínuos o sustentam,
perde os sentidos. Ele, não Maurizius. Essa cena causa enorme impressão e age como um
gesto de além-tumúlo que viesse confirmar seu depoimento.
O barão Andergast estacou ainda uma vez, retirou o lenço do bolso interno do casaco e
enxugou o rosto. O lenço ficou logo ensopado. Sua barba parecia uma esponja na água,
suas pálpebras estavam úmidas.
"Seguramente, ter-se-iam obtido resultados interessantes, se se tivesse aprofundado o
caráter de Waremme — pensa o barão, continuando a meditar e a lutar, paralelamente,
contra o furacão. — Nada vimos das camadas subjacentes desse caráter, apenas
vislumbramos a superfície e, assim mesmo, somente o que quis nos revelar. Estava envolto
por uma zona de sombra, sua aparição e desaparecimento foram de uma instantaneidade
teatral. Coisa estranha, nunca mais se ouviu falar dele! Um espírito tão notável, uma tal
vontade, um tal poder de ação, sustentado por tantas esperanças e, após breve papel de
ator secundário, o desaparecimento total! É curioso, é bem mesmo um fenômeno da época.
Dever-se-á tomar em consideração a alegação do velho Maurizius no seu requerimento, de
que descobriu o lugar em que Waremme se encontra no momento?" O barão Andergast se
retarda nesse pensamento, que o conduz a uma decisão que exprime em voz alta: - "Devo
fazer vir à minha presença esse velho o mais cedo possível; é incompreensível que não o
tenha feito até agora, e eis aí uma negligência culpável. É incrível como esse sujeito
consegue formular insinuações pérfidas a respeito de Ana.
Ana Jahn... o personagem aparece; o barão Andergast faz um gesto no ar, como se
quisesse lhe pedir para esperar ainda um pouco e dizer-lhe que sua vez vai chegar. "Um
momento de paciência" - parece dizer-lhe. Waremme, como outrora, convenceu-o quase
completamente. O conjunto do quadro nada mais deixa a desejar, a retocar, mas, se se
aprofunda em seus detalhes, eis que de repente as linhas se confundem e tudo começa a
fugir das mãos. E, antes de mais nada: onde foi parar o revólver? Leonardo Maurizius
possuía um browning? Jamais puderam encontrá-lo. Waremme o viu sacá-lo do bolso do seu
capote. Viu-o lançá-lo longe. Mas não o encontraram nunca, nem no jardim, nem num raio
de cem metros. Teòricamente, poder-se-ia pensar que alguém atirou de fora, eventualidade
essa em que o advogado de defesa insistiu muito. Mas quem teria atirado, quem, oh! santo
Deus?! Depois: que aconteceu quando Maurizius chegou ao jardim? Eli não podia mais
esperá-lo, depois do segundo telegrama desdizendo o primeiro. Por quem soube que ele
vinha? Por Ana, naturalmente. O telegrama a Ana, pedindo-lhe para vir esperá-lo na
estação, não o negou, seja porque já havia perdido a cabeça e o houvesse esquecido ou
porque, em seu íntimo esperasse que ela afinal talvez viesse. Assim, Ana, que
provavelmente compreendeu logo que o segundo telegrama a Eli nada mais era do que um
disfarce para ganhar tempo, informou sua irmã da próxima chegada de Leonardo. Ao
telegrama que lhe envia, Ana não responde, não dá importância; ao contrário, ela se
assegura, antes da volta daquele que receia, o auxílio do seu amigo. Tudo isso é luminoso,
lógico. Mas, por que Ana não parte? Seria o mais simples. Nada mais tem a fazer, senão
deixar a casa e abrigar-se junto a um conhecido qualquer, na cidade. Por que permanece e
permanece ainda e sempre? Se deseja que Leonardo encontre apenas Eli, então que seja
Eli a recebê-lo, já que foi ela que a sua partida sem despedidas deixou inquieta e
certamente impaciente; sim, nada pode fazer de mais sábio do que ir embora - não terá de
modo algum necessidade de chamar Waremme. Replica-se: Ana tem obrigação de vigiar
sua irmã, não a pode deixar naquela exaltação que confina com a loucura. Se isso pelos
menos fosse verdade!... Houve, certamente, entre as duas irmãs uma reconciliação, mas, ao
que parece, de curta duração. Talvez Eli não pudesse suportar a presença de sua rival; com
efeito, na dia do crime, após permanecer deitada a tarde inteira e ter chorado e soluçado
sem cessar, chama Frieda, a empregada, e suplica para que lhe faça companhia, pois está
com um medo horroroso. Durante esse tempo, Ana toca piano, embaixo. O barão
Andergast se recorda de que, já naquela época, esse detalhe o surpreendeu. Ana o explica
de modo mais ou menos plausível pelo desnorteamento em que se encontra: em cima, sua
irmã quase irresponsável; ela, inteiramente só embaixo, estremecendo antes da chegada
daquele homem desesperado que vinha de fracassar lamentavelmente, ao que presumia,
nas suas tentativas de arranjar dinheiro. É nesse momento que toca o Carnaval de
Schumann e ao mesmo tempo tem alucinações, parecendo-lhe ver vultos suspeitos
rondando a casa. Dentro de alguns instantes, chegará Leonardo; Ana não pode mais se
conter, precipita-se ao telefone e suplica a Waremme para vir. Até aí tudo está bem, mas
parece que Waremme aguardava aquele apelo. Tudo combina bem demais. Poder-se-ia
também supor que no último momento Eli se tivesse alarmado; por isso, tinha fundamento
a pergunta do advogado de defesa a Ana: - "Como explica que sua irmã, apesar da sua
indisposição, não obstante as espasmos cardíacos de que padecia desde a manhã, tenha
deixado o aposento e a casa, não somente para correr, mas para voar ao encontro
do marido?" Houve um momento crítico, os jurados aguçaram os ouvidos; a observação do
presidente de que a senhorita Jahn não estava em estado de dar detalhes sobre o assunto,
pois não era a enfermeira de sua irmã, provocou murmúrios na assistência. Mas, então,
chamaram o velho Theofilo-Guilherme Jahn, tio das duas irmãs, para prestar seu
depoimento, e ele causou sobre o júri uma forte impressão, quando, voltado para o banca
dos acusados, exclamou com a mão levantada: - "Este miserável não matou somente a
uma, em seu corpo - sua mulher, a que era na vida a sua única amiga - matou também a
outra, em seu espírito e em sua alma. Que a maldição de toda a humanidade recaia sobre
sua cabeça!" Quando o velho senhor de longa barba branca disse isso, Ana apertou as
mãos e fechou os olhos. Como a vertigem de Wapremme, foi um dos grandes momentos do
processo.
O barão caminha agora mais depressa, a passos largos. Lembra-se da beleza da jovem
que, na época, também o fascinou. Dir-se-ia que tudo se passou ontem. Ele a revê em pé;
trajando um apertado vestido preto de gola branca, com punhos de renda branca sobre as
mãos longas e pálidas. Havia visto, pouco tempo antes, uma reprodução da Marie Stuart de
Clouet, e recorda-se ainda com precisão do seu assombro quando notou a semelhança de
Ana com o retrato. A boca amargurada, os olhos "cujo olhar parecia não mais findar", como
narrou então um jornalista entusiasmado, a elegância dos movimentos, a delicadeza da
estatura, eram coisas que ninguém podia esquecer. Era um crime acreditar que semelhante
ser pudesse saber o que era a mentira; vivia num mundo à parte — trancado e inacessível
— num elemento onde estava resguardada de toda mácula. A Côrte e os jurados viam nela
uma mártir. "Ela se destacava do processo como uma flor branca sobre uma cortina negra"
- escrevia o mesmo jornalista entusiasmado. Além disso, do ponto de vista jurídico, era por
assim dizer o eixo do processo; se o barão Andergast tivesse feito escorregar um pouco esse
eixo, o solo lhe teria faltado sob os pés. Não havia senão uma culpabilidade a considerar.
Uma única, certamente. Nenhum cúmplice, nenhum confidente. Onde descobri-los?
"Decorre portanto inelutavelmente que o caminho nos era, me era traçado como por um
estilete de diamante."
O barão tomou posição para proteger-se contra um golpe, como se fosse o último assalto
de suas dúvidas, e disse, parando: - "Eis porque a sentença é inatacável em todos os seus
pontos." E, alguns passos mais longe, parando novamente: - "Assumo toda a
responsabilidade." E alguns passos mais longe ainda: - "Não, a sentença é inatacável."
Mas esse édito, por mais definitivo que fosse seu tom, não conseguiu abafar nem mesmo
a mais tímida de suas dúvidas. Nos seus olhos o pavor se espalhou como uma mancha de
tinta num mata-borrão. Em sua alma, evitava esse pavor, contornava-o timidamente com o
pensamento. Era uma falta de sinceridade para consigo mesmo que o torturava como se
houvesse rompido o seu equilíbrio vital. Na infância, vira todos os dias, durante semanas - e
com uma aversão crescente - um relógio cujo pêndulo tinha oscilações irregulares e
intermitentes. Para essa recordação, no momento, seu pensamento se voltava
incessantemente. Na rua Roedelheim, chamou um táxi e voltou para a cidade.
Mergulhado numa espécie de semi-sonolência e completamente molhado, ele se apoiava
no ângulo do carro. "Onde poderá estar o garoto?" Essa pergunta atravessou bruscamente
seu cérebro como uma flecha. Seus pensamentos não lhe obedeciam mais. Num segundo,
compreendeu o desejo que muitas crianças têm de ficar doentes para não serem obrigadas
a ir à escola. Mas, de que lhe serviria ficar doente? Existiria para ele outra coisa além da
escola? Sem dúvida, podia refugiar-se no seu inóspito quarto de dormir - como num antro
isolado - de quando em quando, a desagradável Rie viria com seus passinhos miúdos até
junto de seu leito e não poderia sequer chamar a pequena Violeta para junto de si.
III

Violeta Winston era uma jovem californiana com quem travara conhecimento três anos
antes, depois de um jantar só de homens, no hotel da Rússia. Estava sentada no hall do
hotel e esforçava-se em vão por fazer-se entender por um dos garçons. O barão Andergast
lhe serviu de intérprete. Violeta tinha chegado há poucos dias do seu país, queria fazer
seus estudos no conservatório Stern, não conhecia ninguém na cidade, estava só no mundo
e tinha dinheiro apenas para viver durante seis meses. Tornou-se sua amiga e ele lhe
alugou um modesto apartamento na praça Pestalozzi, onde ela o recebia duas ou três vezes
por mês. Suas relações viviam envoltas no mais profundo mistério; graças à enérgica
prudência do barão, toda indiscrição tinha sido evitada até então. 
 É interessante reconstruir, segundo o caráter de um homem que se conhece, a imagem
de sua amante. Em muitos casos, encontrar-se-á aproximadamente a nota exata, sem se
deixar levar com muita facilidade pelo jogo dos contrastes, nem traçar um fácil esquema
comparando simples pontos de contato. Entretanto, se se considerar que, num caso como
este, as sombras acumuladas na alma desse homem não podem ser dissipadas pela magia
do erotismo, nem mesmo transfundidas no espírito de sua companheira, e que, por outro
lado, uma alma que arrefeceu progressivamente não conhece mais da vida senão as
aparências e os pretextos, mas não mais o ardor, a escolha que o barão Andergast fez da
jovem americana não surpreenderá. Violeta não lhe oferecia nada, nada significava para
ele, porque nada tinha para dar, ela própria não sendo nada. E era precisamente desse
nada que necessitava. Espírito, malícia, capricho, cultura, que podia. significar tudo isso
para ele que não procurava nem excitação, nem exaltação, nem também o que se chama
distração, mas uma espécie de ocasião de repousar que lhe permitia, quando sentia
necessidade, de agir como ser viril, o que era mais compatível com a ignorância e a
banalidade do que com qualidades extraordinárias? Havia dez anos vivia privado de
relações conjugais e sabia que não é possível abafar indefinidamente os desejos físicos sem
comprometer o equilíbrio das faculdades intelectuais. A reserva de suas forças estava
intacta; sua barba encanecida, seu crânio calvo eram sinais dos anos e não, de modo
algum, de uma decadência ou debilidades internas. Descendente de uma raça em que,
homens e mulheres, atingiam oitenta ou noventa anos conservando um vigor radiante,
possuía ainda a robustez física daqueles que jamais se entregaram a qualquer excesso e
que sabem possuir em si mesmos inesgotáveis recursos. Após ter-se separado de Sofia,
tinha renunciado a qualquer afeição, a qualquer expectativa quanto às mulheres. Sem mais
nem menos, excluiu da sua vida sensações dessa natureza, não apenas por princípio, mas
porque tinha feito uma experiência que ferira quase mortalmente seu orgulho. A ferida não
estava ainda cicatrizada e jamais cicatrizaria. Era-lhe impossível pensar nisso sem que o
sangue afluísse a seu coração e se pusesse em ebulição. O pensamento de que semelhante
coisa pudesse repetir-se, sob uma forma qualquer, bastava para afastar qualquer tentação.
Para ele, a fé não existia mais (nem nesse sentido, nem no outro). Além disso, o exercício
de sua profissão não lhe havia demonstrado superabundantemente o que as pessoas
entendem por amor, a miragem que os ilude e o que é, na realidade, esse amor? Poderia
compor um volumoso léxico das manifestações anormais, dos miseráveis compromissos e
de todas as misérias, pequenas ou grandes, que constituíam os seus trezentos dias de
trabalho no ano e repetindo-se com fastidiosa monotonia, o conteúdo de todos os outros
dias, de todos os outros anos. Uma inicial, um registro e o indivíduo não existe mais senão
pelo seu passado, pela sua reputação, pela sua responsabilidade. Ainda mesmo que sua
impressão digital não esteja no registro, percebe-se sobre sua fronte e nos seus olhos um
estigma não menos acusador. Quer se trate daqueles que lêem Fausto ou daqueles, em
maior número, que repetem o Pater ou adornam suas paredes com inscrições
moralizadoras, (como os judeus piedosos pregam seus preceitos sagrados nas ombreiras
das portas), nenhum deles resistirá a uma tentação de fraude, de desfalque, de falso
juramento, de roubo ou de estupro, se tiver a mínima esperança de não ser incriminado. A
bem ver as coisas, não existem, nem bons nem maus, nem honestos nem gatunos, nem
cordeiros nem lobos, apenas pessoas cujo nome está intacto e outras cujo nome está
manchado, indivíduos punidos e impunes — eis toda a diferença; e que tenham pertencido
a uma ou outra categoria, não dependeu de uma disposição natural ou de um defeito, mas
de uma circunstância fortuita contra a qual não se preveniram. O barão Andergast não se
informava sobre tal homem ou sobre tal mulher; não havia para ele nem uma Sra. Fulana
de Tal nem um Sr. Sicrano de Tal. Conhecia as posições, as classes, as profissões, os
empregos, as associações, os antecedentes, as ligações e as rupturas sociais, as condições
e as dificuldades das existências, o estado respectivo das energias, as possibilidades de
expressão, a tal ponto que, para ele, era um jogo dominá-los. E podia falar na linguagem de
cada um, tão bem com um serralheiro, com um camponês, com uma prostituta como com
uma condêssa ou um ministro. Da pessoa, da sua invariabilidade e unicidade fundamental,
nada sabia e também nada desejava saber. Por isso mesmo lhe convinha e lhe agradava
que Violeta Winston nada mais fosse do que uma fêmea no meio de tantas outras, como
um peixe branco em um lago é um exemplar da espécie no meio de mil outras, cuja
captura é obra de um acaso ao qual não se deve dar muita importância. Violeta era bonita,
amável, boa moça, complacente e inofensiva. Não havia nela a menor maldade. Tinha pele
branca, rosto branco insignificante, cabelos amarelos como trigo cuja cor morta também
era neutra, mãos gordas e rechonchudas como as de um bebê, pernas finas e bonitas. Seus
olhos azuis, grandes e um pouco ingênuos, não lhe lembravam nada, quando descansavam
sobre ele. Quando seus lábios pintados descobriam os dentes miúdos e brancos, parecia
que também eles queriam contribuir para a expressão de deliciosa nulidade que emanava
de todo o seu ser. Se a desmontassem para ver que espécie de sentimento nutria pelo seu
grande e soturno amigo, provavelmente - fora uma certa afeição animal e moderada,
comum a toda criatura que necessita de proteção - não se encontraria nada além de um
tolo temor. E é por causa desse temor que ela o admirava. Sim, ela o admirava, mais ou
menos como o peixinho branco poderia admirar o enorme tubarão que não o engolisse por
causa, precisamente, de sua insignificância. Quando se sentava sobre os seus joelhos e o
contemplava, lânguida, não podia deixar de se designar ela própria com esses termos:
" Poor girl" ou " poor little Violet"; de cada vez, era uma pequena e estúpida explosão de
surpresa ante a desigualdade das criaturas humanas. A conversa entre eles girava a maior
parte do tempo sobre os objetos que os rodeavam. Violeta tinha pendurado sobre seu leito
uma fotografia de sua cidade natal, Sacramento. Na opinião do barão, a fotografia estava
três polegadas mais abaixo do que devia. E sobre isso discutiram mais de um quarto de
hora. Violeta gostava de flores, mas não sabia arranjá-las e eram discussões sem fim para
saber se se podiam colocar juntos no mesmo vaso lilases malva e cravos vermelhos. Apesar
de bastante elegante no trajar, era um pouco exótica em seus gostos e tinha também
predileção pelos perfumes muito fortes. O barão Andergast a instruía, repreendia-a,
recomeçando sempre, seco, grave, paciente. Consideraria a impaciência, em relação a um
nada daqueles, tão encantador e tão bobo, como um verdadeiro desperdício de energia.
Violeta lhe prestava conta de suas despesas e quando uma delas lhe parecia supérflua, ele
a censurava docemente até que, nos seus ingênuos olhos azuis, surgissem pequenas
lágrimas ingênuas; então, sorria com indulgência. Tinha muitos defeitos, era esquecida,
coquette, gulosa, leviana, mas tudo isso era tão pouca coisa e ela própria, aumentada de
seus defeitos, era tão insignificante e tão pouco irritante por causa mesmo dessa
insignificância! Um peixinho branco. Algumas vezes, sentava-se ao piano e cantava
canções do seu país. Sua vozinha ingênua enchia o apartamento de um canto de cigarra e,
com suas gordinhas mãos ingênuas de bebê, ela própria se acompanhava ao piano. O
ambiente se tornava perfeitamente idílico.  
 
IV 

 
 A caminhada através do campo e sob a tempestade entorpecia ainda os membros do
barão Andergast, quando chegou em casa de Violeta. Tinha jantado em casa e estava
vestido com apuro. Violeta se queixou em tom amuado. Sentia que a abandonava, suas
visitas estavam-se tornando mais raras naqueles últimos tempos. No seu alemão que
estropiava de modo tão engraçado - pois havia insistido para que Violeta aprendesse
alemão — dizia sentir que ele a abandonava " like a single shoe". O barão acalmou sua
zanga tão facilmente como se apaga um fósforo. O dia tinha corrido mal para ela. Perdera o
relógio-pulseira, que era de ouro. Dizia que não saberia mais as horas - "poor little Violet
has lost the time" - que à noite despertaria a todo instante com receio de perder a vinda do
dia e esperaria até que o horrível sino grande da igreja badalasse. O barão Andergast
parecia meditar sobre um problema de xadrez; disse que se encarregaria de comprar-lhe
um outro e que ela deveria apresentar queixa à polícia. Indicou-lhe o caminho, a casa, as
formalidades necessárias. Sentada em face dele durante todo esse tempo, Violeta o olhava
com admiração sem limites. Comprara-lhe seus charutos preferidos; prontamente,
apresentou-lhe a caixa, deu-lhe fogo, acendeu ela própria um cigarro; depois conversaram
tranqüilamente, falando com abundantes detalhes sobre o cheiro e o preço daquele tabaco
um pouco forte. Como o barão passasse freqüentemente a mão sobre a fronte, Violeta
acabou notando sua fisionomia fatigada, e, à sua pergunta cheia de solicitude, respondeu
que estava com uma enxaqueca bastante violenta. Com os olhos arregalados de pavor,
Violeta o olhou como se jamais lhe tivesse passado pela mente a ideia de que um ser tão
formidável pudesse adoecer ou simplesmente estar sofrendo de alguma coisa. Com sua voz
amedrontada de pássaro, propôs diversos remédios; como os afastasse todos com firmeza e
doçura, começou a censurá-lo e ele, então, capitulou. Violeta lhe disse que devia deitar-se e
repousar. Achou justo e obedeceu. Estendeu-se sobre o divã e ela o cobriu com um grande
xale; apagou as luzes com exceção duma lâmpada baixa com abat-jour e disse-lhe que o ia
deixar só; iria para o quarto de dormir e não o incomodaria. No limiar, voltou-se ainda uma
vez, acariciou-lhe as frontes com seus dedos curtos: - " You are a naughty boy" - disse ela,
meneando a cabeça com ar entendido - " you work too much and you think too much."
Insistiu: - "Demais, muito demais." O barão Andergast sorriu amavelmente; aceitava sua
compaixão rabugenta com a seriedade que se afeta para receber de uma criança a ficha
que ela diz ser uma moeda de ouro. 
 Durante muito tempo permaneceu estendido, de olhos abertos, - cérebro estranhamente
vazio, no aposento quase escuro. Quanto tempo tinha decorrido, quando se levantou, não
sabia. Olhou o relógio, mas tão distraidamcnte que não sabia mais a hora quando lhe
apertou de novo a tampa. Abriu sem ruído a porta do quarto vizinho. Violeta dormia no seu
leito. Frente à cama, havia uma pequena lâmpada na ponta de um fio que vinha do teto.
Violeta tinha predileção pelas lâmpadas suspensas e jamais dormia no escuro. Tinha medo
das trevas e era rebelde a qualquer censura a esse respeito. O barão, junto ao leito,
contemplava-a. Como a natureza apaga da fisionomia adormecida qualquer atividade
cerebral, a fisionomia recupera completamente seu estado natural e em relação à pequena
Violeta isso era mais fácil do que em relação a qualquer outra criatura humana. Ali jazia,
puramente vegetativa, banhada pelo reflexo daquela iluminação que salientava ainda mais
suas cores, reveladoras de juventude e saúde. Algumas vezes, uma expressão de medo
corria pelos traços e por alguns segundos a envelhecia de alguns anos. Dir-se-ia pequena
ondulação sobre a superfície da água e via-se que isso não correspondia a uma comoção
das camadas profundas. Um suspiro. O peito se eleva, depois - corpo inteiro volta ao
repouso. Como todos os homens para quem a consciência psicológica é a única
manifestação de energia vital, o barão Andergast não gostava de ver pessoas adormecidas.
Tinha mesmo de superar um leve temor cada vez que deparava com um rosto adormecido.
Aproximou-se da penteadeira, caiu sentado na poltrona e assim permaneceu, na
expectativa, voltado obliquamente para o leito. Havia um espelho colocado de tal modo
que permitia ver Violeta, quando para ele se olhava. Essa maneira" de olhá-la agradava ao
barão. Usar de meios indiretos estava de acordo com sua natureza. Pouco a pouco,
entretanto, pareceu esquecer onde estava, seu queixo caiu lentamente sobre o peito; seus
olhos fixos, carregados de expressão inexplicavelmente sombria e dura, perscrutavam um
abismo invisível e assim permaneceu várias horas. Havia algo de formidável na atitude
daquele homem sentado, imóvel, o olhar fixo, com sua poderosa estatura, seu crânio
enorme, seu rosto de pedra. Quando enfim ergueu a cabeça e o seu olhar incidiu no
espelho, não foi ele próprio, nem Violeta adormecida que viu aí, mas Waremme. Quer dizer,
uma pessoa que admitiu ser Waremme, mas que não tinha senão vaga semelhança com o
Waremme que vira pela última vez há dezoito anos e meio. Essa pessoa - não lhe via mais
do que o busto, um pouco maior que - natural - estendia o braço direito e a mão esquerda
estava apoiada sobre o quadril; em cima da sua mão direita aberta, Etzel estava de pé,
muito pequeno na verdade, mas muito audacioso e até com certa insolência na expressão.
Segurava uma lanterna na mão, cujo clarão caía brutalmente sobre a face de Waremme (ou
daquele que via ali) e tornava-o perfeitamente translúcido, como se a pele e os ossos
fossem gelatina e assim estivesse posto a nu o cérebro sobre o qual a luz estava
principalmente dirigida. Toda a massa cervical com seus canais, seus meandros e suas
bossas, sua infinita sede de fibras e veias, contraía-se ininterruptamente, como sob o bisturi
de um cirurgião, sob a ação do feixe luminoso que penetrava sem que nada pudesse detê-
lo. E como o feixe de luz, guiado pelo pequeno punho nervoso, ia em todas as direções,
parecendo querer descobrir determinado ponto, aos poucos a massa mole, repugnante,
tornava-se perceptível em todas as suas partes e da maneira mais nítida. "O que me está
acontecendo?" - pensou o barão irritado - "Vejo fantasmas, de olhos abertos; vejo
fantasmas!" Com dois dedos, abaixou as pálpebras e, quando olhou de novo no espelho,
nada mais viu do que Violeta adormecida, iluminada pela luz da lâmpada suspensa,
sorrindo de qualquer sonho bonito e, com toda certeza, insignificante. 
 O barão Andergast se levantou sem ruído e voltou para a saleta. Sentou-se frente à
secretária, de pés delgados e vacilantes, apanhou papel e envelope numa pasta, observou
sua pena contra a luz antes de começar a escrever e escreveu em sua escrita larga e
grande, cujas letras eram inclinadas umas sobre as outras e cujos ll, tt, e ff tinham o
aspecto de postes telegráficos abalados pelo vento: "Cara Violeta, esta noite era
infelizmente a última que podia passar com você. As contas em débito serão reguladas. A
pensão mensal de cento e cinquenta marcos será paga até 1.° de julho. Desejo a você
felicidade na vida. - W.A." Após ter colocado a carta no envelope, subscritando-o: "A miss
Violet Winston", encostou-o contra o pedestal da lâmpada, girou o interruptor e, sempre
sem fazer ruído algum, foi para o vestíbulo, pôs o capote, chegou à escada e deixou a porta
se fechar lentamente atrás dele. Somente depois de caminhar um pouco é que percebeu
que cessara de chover e que um céu cintilante se estendia por cima da cidade.   
 

   
 O contínuo anunciou que Pedro Paulo Maurizius, convocado para as onze horas, estava
na sala de espera. O substituto Naemlich guardou seus papéis na pasta e retirou-se. O
barão Andergast permaneceu um momento com a cabeça apoiada na mão, seu caderno de
apontamentos aberto diante de si. Em primeiro lugar, devia estabelecer o que desejava
saber do velho. Necessitaria pesar cada palavra. Era preciso falar-lhe, um momento, dos
seus próprias interesses para surpreendê-lo em seguida, interrogando-o bruscamente sobre
Etzel. Até que ponto aquele homem se deixaria distrair, enganar, levar a uma pista falsa, é
o que iria revelar o curso da entrevista. A súbita conexão daqueles dois assuntos era
aflitiva, torturante. Aflitivo, torturante, aquele jogo: - "Onde está Etzel?", ligado
intimamente àquele insolúvel enigma de um crime já em via de expiação. somente quando
o nome de Maurizius chegou ao ouvido, foi que o barão compreendeu que não o tinha
chamado para o repreender, mas para obter dele, acidentalmente, esclarecimentos sobre
certos detalhes que tinham permanecido obscuros no processo; esse era o menor dos seus
intentos, seu fim principal sendo interrogá-lo sobre Etzel, ouvi-lo falar de Etzel, diminuir
aquela inquietude insensata de que - no ponto em que estavam as coisas - o raciocínio não
mais o libertava e que não conseguia mais iludir. Outra razão ainda o tinha impelido, mais
estranha, mais irritante: um desejo, uma sensação de vazio, uma insatisfação, uma
impaciência, um mal que o roía e arranhava por dentro, como se um órgão interno, cuja
presença jamais fora notada até então, se revelasse subitamente pisado e ferido. 
 O gabinete no qual o procurador recebia era uma sala de esquina com duas janelas,
dando sobre o hospital e a rua Mouton, em cujos botequins aqueles que eram citados para
comparecer ao tribunal e as testemunhas das classes baixas passavam horas bebendo e
fazendo algazarra. Da parede pintada de escuro, atrás da secretária, pendia um retrato de
Bismarck em tamanho natural. A estante continha os comentários da lei; algumas coleções
do Boletim dos Juristas e as decisões do tribunal do Império. O asseio e a ordem meticulosa
acentuavam a nudez, a austeridade opressiva e desesperante do local. Desde o primeiro
golpe de vista, adivinhava-se que havia naquele edifício cem salas da mesma forma
austeras e desoladas, e de vinte a trinta mil em todas as cidades do país, reunidas. Essas
salas imprimem uma marca especial sobre a face dos homens que nelas passam grande
parte de sua vida, impregnando-as de sua austeridade e de sua desolação. 
 O velho Maurizius permaneceu próximo da porta, de pé, após ter-se inclinado
profundamente. Trajava uma espécie de blusa de caçador com botões de chifre de veado.
Com o braço esquerdo, segurava o inevitável gorro de marítimo. O barão Andergast lhe
lançou um olhar enviesado, com as pálpebras semicerradas - olhar de criminalista que
descobre em um segundo o que, muitas vezes, em um longo interrogatório não consegue
saber. Mas aqui a colheita foi pequena. Um rosto de velho, curtido, contraído, obstinado,
imóvel. Entretanto, a insensibilidade resmungona do velho era apenas afetada. Por detrás
da impassibilidade exterior, a expectativa martelava seu peito com punhos de ferro.
Parecia-lhe haver chegado, enfim, o grande momento. Como poderia ser de outra maneira,
para quê aquela convocação, o misterioso encontro com o menino? Mal ousava pensar
nisso. Depois que recebera a folha com o timbre do gabinete do procurador, não tinha mais
comido nem dormido, esquecera-se de encher o cachimbo e, depois, uma vez cheio,
esquecera-se de acendê-lo. Estava pois ali prestes a ouvir, prestes a falar. Mas desconfiava
de sua língua, temia que lhe escapasse a palavra desastrada ou antecipada capaz de
prejudicá-lo. Tinha a impressão de não se achar em pé sobre o solo, mas suspenso no ar e
ameaçado de cair ao primeiro passo. "Recompõe-te" - repetia sem cessar - "esse homem
também é um ser de carne e osso." - "Eu chamei o senhor para por fim às suas
providências e requerimentos. Tome cuidado, isso pode-lhe sair mal, um dia." A voz
chegava fria. Nada continha que se parecesse com uma promessa, que anunciasse uma
disposição nova. "Está bem, estamos apenas no começo. Os senhores juristas, quando
querem ir a Roma, procedem de início como se fossem a Amsterdam." Maurizius se
inclinou. Nada mais. As paredes de seu nariz tocavam - septo nasal, suas narinas se
aprofundavam. O aspecto majestoso do homem sentado à secretária intimidava-o
desmesuradamente. Sentia que dependia tanto dele como um sino da trave que o retém.
De antemão, tremia à ideia de ouvir palavras novas, mas nada revelava de sua angústia;
olhava fixamente em face, como um piloto olha o penhasco próximo. Aquele ser cujo poder
regulava os destinos tinha na mão um lápis que girava sem parar entre dois dedos, de
modo que a ponta ora estava voltada para baixo, ora para cima. Era estranho. Seria
necessário saber por que assim procedia; não era com aquilo que pensava intimidar
alguém. - "Eu queria dirigir-lhe algumas perguntas sobre a questão, mas chamo sua
atenção sobre o fato de que nossa entrevista não tem nenhum caráter oficial e
absolutamente não nos obriga a nada. Sente-se." 
 As coisas estavam melhorando. Impossível recuar, agora. O velho Maurizius não acedeu
ao convite para sentar-se. Podia-se tratar de uma cilada. Respondeu com a sua reverência
estereotipada. Dir-se-ia uma polidez de pinguim. - "O que levou o senhor a pensar que o
advogado Volland tenha sido imposto a seu filho?" Maurizius esfrega os lábios um contra o
outro para umedecê-los: vê diante dos seus olhos uma salamandra grotesca saltar com
velocidade de raio; se, pelo menos, aquele homem terminasse de virar - revirar o lápis! É de
endoidecer. O lápis se alonga sem cessar até tornar-se alto como uma torre. O velho
Maurizius sabe que é o momento de falar, de não dispersar suas ideias. - "Não é uma
suposição, senhor procurador. Leonardo me disse que assim o quiseram." Aquele lápis,
aquele maldito lápis, e ainda por cima aquele diamante que brilha em seu dedo... bem,
bem... basta olhar do lado da janela, ainda que seja melhor não deixar de olhar o perigo em
face - esse perigo no qual não é possível deixar de colocar todas as esperanças. Terei
respondido convenientemente? De um modo compreensível? Parecia ter areia entre os
dentes, o que o impossibilitava de falar distintamente. - "Quiseram? Mas, quem?" -
"Insinuaram." - "Alguém, em particular?" - "Sim, alguém." - "O senhor se engana sobre a
maneira como as coisas se passaram verdadeiramente." - "Não creio, senhor procurador" (e
pensou: "Minha convicção é tão inabalável como a catedral de Colônia"). - "O projeto pode
ter emanado da própria família." - "É possível, certamente, mas desse lado, somente o
velho Jahn, Theofilo Guilherme ... " - "Bem, e então ... " - "É que tudo dá no mesmo." - "Que
quer o senhor dizer com isso?" - "É que esse homem não teve em vista senão a desgraça de
meu filho." - "É um absurdo, meu amigo, seu filho ele próprio tinha cavado a sua desgraça;
o pior dos defensores não podia agravar seu caso, - melhor não podia evitar nada." - "Por
outro lado, Leonardo tinha deixado Ana Jahn de mãos livres para escolher o advogado que
melhor conviesse." - "Pois bem, ela julgou Volland o que melhor convinha." - "Muito bem,
senhor procurador, mas soube-se logo o que ele valia." - "Outros se ofereceram; cabe ao
acusado escolher o seu defensor. Desde a primeira sessão, ele devia ter percebido que
estava mal servido." - "Isso se lhe tornara indiferente, senhor procurador." - "Como
indiferente? Como pode ser indiferente para um indivíduo cuja cabeça já vacila sobre os
ombros?" - "Sim, senhor procurador. Quando alguém é inocente e não vê nenhuma
possibilidade de provar sua inocência, para ele é perfeitamente indiferente o que um
chicaneiro possa inventar em matéria de sutilezas. No caso, seria preciso que Deus em
pessoa advogasse sua causa e quem sabe se teria bastado?" 
 Durante alguns minutos houve silêncio. Silêncio que aspirava todos os pensamentos, um
triste silêncio. O corpo de Maurizius se balança um pouco, como a ponta de um mastro sob
a ação da brisa temperada. Lança um olhar tímido sobre o procurador. "Está se passando
qualquer coisa com esse homem", pensa ele e seu coração cessa um instante de bater. O
barão Andergast passou lentamente a mão direita sobre o rosto, quatro dedos sobre uma
face e o polegar sobre a outra. Experimentava curioso bem-estar físico tocando a pele de
suas faces. "A inocência" - pensava ele - dilatava seus pulmões com um orgulho de criatura
petrificada - "A inocência! Isso é retórica e retórica insolente e revolucionária, pois o direito
e a lei já se pronunciaram. A inocência! Quando o criminoso foi desmascarado, a expiação
está em curso, e a justiça humana e a justiça divina obtiveram reparação! A inocência!"
Estava como se o velho lhe houvesse atirado uma pedra contra o peito. Mas Maurizius via
bem, alguma coisa se passava com ele. Havia para o barão Andergast um meio de tornar
sua convicção mais inexorável ainda do que era. Estava em seu poder conseguir uma prova
irrefutável. Podia certificar-se sobre o modo como Leonardo Maurizius suportava o destino
que lhe haviam imposto. Não era inadmissível que, frente a ele, rompesse o silêncio de
dezoito anos, aliviasse sua alma, se humilhasse e confessasse. Conquistar semelhante
vitória valia qualquer sacrifício. Eis aí o que se passava com o barão e o que o velho
Maurizius, que vivia apenas das suas ilusões e esperanças, pressentia graças a uma
misteriosa telepatia. - "O senhor se lembra ainda do que conversou com seu filho, naquela
noite de outubro em que ele veio vê-lo pela última vez?" Maurizius sacudiu a cabeça, mas
não como um gesto de negação; apenas, admirava que se pudesse acreditar que um só dos
detalhes do caso, mesmo o mais ínfimo, pudesse apagar-se da memória. Ao mesmo tempo,
parecia que seu rosto se cobria com um véu cinzento; sabia fazer pontaria, aquele homem
atrás da secretária, e não errava o alvo. Ei-lo que larga enfim o diabólico lápis, mas em
compensação observa com seus olhos azuis, como se convidasse a vir-se distrair neles. Oh!
Deus salvador! todo o azul que aquele homem possui nos olhos é como se tudo o que se
passou outrora nele se refletisse. Maurizius segura um dos botões da sua blusa e põe-se a
torcê-lo nervosamente. É desnecessário que conte o que o rapaz lhe disse em matéria de
mentiras, de mentiras maiores do que ele; o velho fala nisso com dificuldade, somente por
alusões e de cabeça baixa. Mentira a sua viagem de estudos em missão do governo.
Mentira dizer que deveria receber mil e duzentos marcos pelo seu último trabalho se seu
editor não houvesse falido; mentira afirmar que Von Krupp o havia convocado para afiançar
um holandês suspeito; e, finalmente, mentira pretender que sua intenção fosse vir no dia
seguinte para lhe dizer adeus, e que, alguém lhe tendo dito em Wiesbaden que ele estava
doente, pedira ao conde Hatzfeld o automóvel emprestado. Não estivera em Wiesbaden e,
como o automóvel dum ourives não era bastante reluzente para ele, precisara inventar o de
um conde. Lamentáveis mentiras que se iam desfazendo aos poucos, à medida que as
acumulava. Doente? Não, Pedro Paulo Maurizius tinha muito cuidado em não adoecer
naquela época, quando aguardava que o "seu dia" viesse, exatamente como hoje evita
adoecer pois que, agora, mais do que nunca, deve esperar a aurora do "seu dia". Oh! as
pequenas mentiras tolas e vergonhosas que queriam dizer: "Olhe-me, veja quem eu sou,
observe a consideração com que me rodeiam; você pode-se orgulhar de mim, venci na
vida..." Ao menos, se seu rosto não desmentisse todas aquelas palavras! Aparentava ter
bebido e farreado durante três dias e três noites, como alguém que acaba de ser retirado
de uma casa em fogo e que ainda demonstra todo o terror que sentiu. 
 O barão estava arrancado. Maurizius o segurava em sua mão. Olhou-o, pasmo, e meteu-o
rapidamente no bolso. Sua narrativa tinha sido uma salmodia monótona e dificilmente
inteligível. Nesse momento, avançou dois passos, como se precisasse estar mais próximo do
auditor para dizer o que agora resolvera contar: - "Certamente Leonardo imaginou que eu o
fosse assediar com perguntas e fazer-lhe oferecimentos. Tinha sem dúvida pensado que,
depois de tantos anos, nós... Acontecia o seguinte, senhor procurador: por causa do seu
casamento... perdi completamente a amizade por ele. Estava tudo acabado. Para mim,
podia até se chamar Leonardo Schulze. Ele tinha sem dúvida pensado que, por ter vindo
por sua própria vontade e encontrar-se na minha frente, de noite, a discorrer como alguém
que se encontra nas vésperas de ser preso... sim, pensou que lhe fosse estender a mão. Era
isso, sim senhor. E eu não cedi. Bem vi onde queria chegar. Mas, não cedi. E isso, senhor
procurador, isso me pesará na consciência. Terei de pagar. O homem é um crápula. Quando
o homem não quer e insiste, torna-se um crápula. Exatamente. De que se tratava, pois,
diga (deu mais um passo em frente, pôs a palma da mão sobre a cabeça e os lóbulos de
suas orelhas tornaram-se vermelhos cor de sangue) : dois mil marcos, digamos três mil. Se
os tivesse dado, se no meu orgulho de canalha não me tivesse obstinado em querer, não
somente que ele se arrastasse aos meus pés - o que acabou fazendo - mas que me desse
razão contra a sua Eli, se me tivesse dominado e lhe houvesse dado os dois ou três mil
marcos - teria conseguido arranjá-los, tão certo como estou aqui - então, tudo teria
decorrido de outro modo. Então, ele teria ficado livre de preocupações por algum tempo,
não teria voltado para a sua maldita casa com o desespero no coração, e não se teria
precipitado no laço como um pássaro desarvorado. Então, teria visto o que se passava a seu
redor e se teria precavido. Eis toda a história, senhor procurador. Era sua vida que estava
em jogo, naquela noite, e essa sua vida não me pareceu valer três mil marcos. Reflita,
senhor procurador, sobre o preço de uma existência. Reflita, senhor procurador, sobre o
valor de uma vida. Pode-se avaliá-la em números? Não tem preço, como o céu, e achei-a
muito cara por três mil marcos." Maurizius abaixou a mão que pusera sobre a cabeça e,
curvando-se para frente, abateu-a com violência sobre a mesa, ante os olhos do barão
Andergast, como um testemunho e uma oferenda. Quando o barão levantou o olhar, viu
correrem lágrimas límpidas como a água sobre a face devastada do velho.
O barão Andergast se levantou num só impulso, atravessou a sala e parou em frente à
janela. - "O senhor vê as coisas sob um prisma falso" - disse com voz rachada e sem desviar
a cabeça. - "O senhor solucionou tudo à sua maneira, mas sem nenhuma relação com a
realidade dos fatos." - "Eu não sei o que é a realidade" - replicou o velho com ar triste.
Depois, após um momento de muda meditação, a cabeça caída e os olhos baixos,
exclamou: - "Senhor procurador, ajude-me!" O barão se voltou e caminhou em direção a
ele. - "Que fez o senhor do menino, de meu filho?" - perguntou com voz ríspida. Maurizius
piscou os olhos e pareceu de súbito se abismar em si mesmo. - "O menino veio procurar-me
por vontade própria" - disse após longo silêncio. - "Depois de sua visita, acreditei que tudo
fosse um sonho. Em toda minha vida, nunca tive visões ou coisa que com isso se pareça. Há
dezoito anos sou um homem de alma morta, mas, bem no fundo, ainda existe uma faísca
que brilha. Mas eu queria dizer... é isso o que eu queria dizer. O menino foi para mim como
uma aparição. Impossível explicar esse menino com a linguagem do bom-senso. Portanto,
voltando ao assunto, conversamos duas ou três vezes, creio. Ele se interessava pelo
processo. Leu tudo o que lhe forneci, todos os jornais. Um dia, o maço de papéis me foi
devolvido com um bilhete. No pedaço de papel, estava escrito: "Agora, vou embora, é
necessário que fale com Gregorio Waremme. Quando voltar, saberemos se a resposta é sim
ou não." Era tudo, e eu ri. Ou por outra, não, eu não ri. "Anjinho", pensei, "querido anjinho,
querido tolinho." E, ao mesmo tempo, experimentei um sentimento estranho, mais ou
menos o seguinte: "Está bem, a vingança de Deus acabará vindo." 
 O barão Andergast voltou à janela. Sobre o fundo claro do retângulo, ele se erguia como
uma coluna de sombra. - "O senhor não sabe onde ele está?" - "Não sei, e, o que suspeito,
não gostaria de dizer." - "Por que?" - "É uma superstição, senhor procurador." - "Ele lhe
escreveu?" - "Não, senhor procurador." - "E o senhor sabe... ou melhor, o senhor não ignora
por certo onde mora esse... esse Waremme?" - "É permitido perguntar, senhor procurador,
se é em caráter oficial ou a título privado que o senhor me faz essa pergunta?" - "É... no
momento... a título privado." - Então, senhor procurador, já que tenho essa superstição -
valha ela o que valer - deixarei, se o senhor me permitir, a pergunta provisoriamente sem
resposta." - "Está bem." 
 Era uma despedida. Mas Maurizius não se moveu. O barão Andergast, com aquela
expressão de descontentamento concentrado que não pertencia senão a ele, e sob a qual
se podiam ocultar impressões que se exercitara suficientemente em não deixar
transparecer, proferiu as seguintes palavras: - "Quanto ao outro assunto, eu lhe aconselho a
nada esperar. Veremos." O velho levantou os olhos com uma alegria que o queimava e
amedrontava ao mesmo tempo. - "Certamente, eu... é evidente que... Que poderei esperar
na melhor hipótese?" - gaguejou Maurizius com voz engrolada. - "Na melhor hipótese
possível, poder-se-á enfim transmitir o seu pedido de indulto com informação favorável." O
velho se retirou sem fazer mais ruído do que uma sombra. Talvez temesse que lhe
retirassem aquelas palavras se chamasse a atenção sobre sua pessoa. Quando, um quarto
de hora depois, o barão Andergast desceu a monumental escada de pedra, abotoando o
seu capote, tinha a impressão de caminhar no interior de uma enorme concha cujo rumor
torturava seu ouvido. As escadas e galerias já estavam desertas, mas o ar ainda vibrava
com os passos extintos, com as palavras extintas. Por detrás das paredes, os escrivães
escreviam debruçados sobre as peças dos processos. Com suas penas, interferiam em
destinos humanos, enquanto as fisionomias permaneciam tão indiferentes como se nada
mais fizessem do que transportar uma determinada quantidade de tinta sobre outra
determinada quantidade de papel. Portas batiam, agudas campainhas elétricas tiniam,
vozes fanhosas ditavam diante de máquinas de escrever ou gritavam nos telefones.
Apresentavam-se requerimentos, prestavam-se juramentos, proferiam-se veredictos,
interpretavam-se leis. Todo esse conjunto é um organismo articulado no qual todos agem,
obedientes e conscientes dos seus deveres: auditores, assessores, substitutos, advogados,
conselheiros da Côrte, arquivistas, secretários, tesoureiros e juízes, hierarquia venerável
cujos participantes não podem imaginar sem estremecer o ápice, o coroamento, o augusto
pensamento que a anima de alto a baixo. Mas, será que suspeitam sua presença, será que
sabem que ele está ali, no fundo da concha? É o que resta saber. A concha parece, na
verdade, conter o oceano quando se a encosta ao ouvido, mas o seu eterno concerto de
órgão é uma ilusão; só murmura porque é oca.
SEGUNDA PARTE
ENTRE DOIS MUNDOS
CAPÍTULO 8
 
I

ETZEL NÃO TINHA a temer nenhuma perseguição durante o trajeto. Sabia que seu pai só
voltaria na quinta-feira da viagem oficial. Então, já estaria em Berlim. A única questão que
o preocupava era esta: que fazer então? Onde encontrar refúgio? Onde se esconder? Sem
dúvida, havia pedido ao pai, na carta de despedida, que não mandasse segui-lo, mas não se
iludia, sabia perfeitamente que sua súplica não seria atendida. Era preciso que se sentisse
a salvo de quaisquer investigações e que guardasse, para efeito de qualquer eventualidade,
sua liberdade de movimentos, sem o que toda a empresa fracassaria. Em todos os hotéis,
em todas as pensões, em todos os albergues, seriam obrigados a notificar sua presença à
polícia. Experimentar viver sob um nome falso não adiantaria muito porque, se o
procuravam, deviam possuir suas características e os policiais eram muito espertos em
coisas dessa natureza. Não conhecia ninguém em Berlim, nenhum amigo ao qual se
pudesse dirigir, com exceção talvez (um suspiro ansioso acompanhou esse pensamento) de
Melchior Ghisels. Apenas, era possível pensar que um Melchior Ghisels não se podia
preocupar com assuntos tão insignificantes, mesmo no caso de ele ser levado a se
preocupar com um Etzel Andergast. Aonde ir nesse caso?
E o acaso veio em seu auxílio. Enquanto se mantinha corretamente sentado num canto
do vagão, meditando sobre suas dificuldades que, de hora em hora, lhe pareciam mais
insuperáveis, seu olhar incidiu sobre uma mulher de quarenta e cinco a cinquenta anos
que, sentada na sua frente, o observava desde algum tempo com ar de mofa. Aprofundado
em suas reflexões, tinha dispensado pouca atenção aos seus companheiros de viagem;
havia bastante gente no compartimento, pessoas de condição média: pequenos artífices,
caixeiros-viajantes, mulheres, crianças e moças. Somente a partir de Cassel os bancos se
esvaziaram e até Hanovre quase ninguém subiu no vagão. Mas a mulher permaneceu e
logo entabulou conversa com Etzel. Era ignorante, tagarela; no mais, uma mulher honesta.
Além disso, apresentava um traço que ele havia sempre observado nas mulheres da
pequena burguesia, qualquer coisa de fatigado e abatido na atitude, e uma expressão que
lembrava êsses cavalos que caem nas ruas e permanecem estendidos, tendo nos olhos uma
interrogação ao mesmo tempo teimosa e lamentável. Logo às primeiras palavras, soube seu
nome; também sua situação e condição financeira não lhe permaneceram por muito tempo
desconhecidas. Chamava-se Schneevogt, seu marido era caixa de uma casa comercial; sua
filha, Melita, de dezenove anos de idade, também estava empregada numa loja. Residia na
rua Anklam, na parte Norte de Berlim, numa casa com três quartos e duas mansardas que
alugava a homens; contou que vinha de Mannheim onde tinha ido ao enterro do seu único
irmão que, também, se tinha saído bem nos negócios: era encadernador, e além disso
campeão de xadrez e secretário da sociedade coral. Ao partir para Mannheim, levava a
esperança de herdar pela menos algumas migalhas, mas sua esperança tinha naufragado.
O irmão não possuía nem um alfinete, além de alguns móveis sem valor e de algumas
dívidas. Um caso de difícil solução, dizia ela. Em seu foro íntimo, tinha contado com o
querido defunto; via-se obrigada a trabalhar loucamente e não ficava mais rica por isso; seu
marido vivia adoentado e com seu salário tinha justo o necessário para não morrer de fome.
Ninguém teria predito, quando nascera, que aos cinquenta e sete anos ele deveria viver de
arenques e batatas. Um homem tão inteligente! Infelizmente, muito honesto e por isso
incapaz de vencer na vida. Melita trazia para casa a maior parte do seu ordenado mensal,
mas que fazer com setenta marcos?! Era preciso que a mocidade se divertisse um pouco
etc. etc... Era um fluxo ininterrupto de palavras; ela as proferia com voz estridente e
uniforme, não apenas como se esperasse da parte de Etzel compreensão e simpatia pela
sua má sorte, mas como se ele também fosse um pouco responsável. Para pessoas dessa
espécie, a infelicidade é o resultado de um erro, jamais seu, mas da sociedade que não
soube apreciar e utilizar seus dons e méritos, ou de algumas pessoas em particular, que se
esquivaram no momento oportuno, por maldade, fraqueza ou estupidez. Não se cansava de
lançar sobre o passado olhares cheios de amargor, de fazer comparações não menos
amargas sobre a sorte desse ou daquele seu conhecido, reparos cheios de desprezo sobre a
incapacidade de um senhor Schmitz que, apesar disso, chegou a ser diretor de fábrica,
sobre uma senhora Hennings, filha de um remendão "tão certo como lhe digo, antigamente
ela costurava camisolas de crianças, na rua Marienbourg, no seu trecho mais sórdido, e hoje
reside numa casa de campo em Grunewald e tem seu automóvel." Se, por exemplo, o
defunto tivesse sido inteligente, teria aproveitado a sorte, teria vendido sua loja há três
anos e onde estaria agora, ela, senhora Schneevogt? Isso clama vingança aos céus. E, ao
mesmo tempo, gritava realmente, inclinava-se para Etzel, lançando-lhe olhares carregados
de ameaças e censuras. Etzel dava a sua opinião. Estava perfeitamente de acordo. Achava
que a família Schneevogt era muito mais digna de ter um automóvel e habitar Grunewald
do que a senhora Hennings que havia costurado camisolas de crianças, e achava também
que o falecido encadernador não merecia perdão por ter deixado escapar oportunidade tão
favorável. Com sincera simpatia, olhava a mulher, disposto a fazer todas as concessões que
exigisse dele, e a reconhecer que o senhor Schneevogt era um gênio no mundo comercial,
que Melita - que, apesar de sua voz encantadora, não fora lançada por nenhum agente ou
diretor de teatro - era uma grande cantora, e a senhora Schneevogt o paradigma em
pessoa de todas as virtudes e talentos femininos. A mulher estava encantada com sua
penetração e desde então ficou inteiramente conquistada por ele. Quando retirou de um
embrulho engordurado umas fatias de pão com manteiga, convidou-o imediatamente para
compartilhar de sua comida. Suas mãos, sêcas e deformadas pelo trabalho, tremiam. Essas
mãos interessavam a Etzel que dizia consigo mesmo: "São mãos de avarenta." Por isso,
apreciou mais ainda a oferta que lhe fez de algumas fatias e comeu duas. Etzel observava a
mulher comer. Comia com avidez, com prazer. Seus olhos, muito próximos um do outro,
tinham expressão vacilante. Seguramente, aquele rosto jamais fora bonito e, agora, estava
sulcado pelas preocupações, pela inveja, pelo descontentamento. No meio desses
sentimentos, dormitava estima à própria pessoa elevada a um grau quase incompreensível
Se meus negócios não vão bem, quem poderá esperar que os seus próprios negócios
andem? Etzel aproveitou a trégua da refeição para fazer, não sem tomar suas precauções,
referências às suas dificuldades. Procurava um alojamento, disse ele. O preço não tinha
muita importância, embora não nadasse em ouro; mas era obrigado a permanecer
escondido durante algumas semanas. Divergências domésticas tinham motivado seu
afastamento de casa; devia aguardar que as coisas voltassem novamente à ordem e, para
poder esperar até esse dia, havia aceito um cargo de secretário particular. "Meu nome é
Mohl" - disse ele - "se a senhora permite que eu me apresente, Edgar Mohl."Porque
escolheu precisamente o nome daquele colega de escola tão voraz, ele mesmo não se
explicava; tinha sido prudente não escolhendo como prenome "Nicolao", por exemplo; a
tempo se lembrara que sua roupa branca estava marcada com um E. Tudo isso foi devido a
uma inspiração súbita. A senhora Schneevogt enrugava seus olhos, medindo-o
desdenhosamente com o olhar. Como se tratava de negócios, manteve-se um instante na
defensiva. Com o olhar, estudava: caráter, origem, recursos. O resultado pareceu satisfazê-
la. Um rapaz simpático, de rosto franco, provavelmente de boa família. O negócio prometia.
No momento, disse ela, as duas mansardas estavam livres; tinham estado ocupadas
durante o inverno por dois técnicos das usinas Borsig, pessoas muito distintas. Não alugava
quartos senão com pensão: café pela manhã e uma refeição, à tarde ou à noite. O que ele
entendia por desejo de permanecer escondido era sem dúvida que não queria que sua
presença fosse notificada à polícia. Arriscava sofrer uma pesada multa, ele o sabia bem; os
fiscais estavam sempre espionando, o que era uma vergonha. Mas, quando Etzel se propôs
pagar mais por causa dessa circunstância, ela o interrompeu precipitadamente como se
não quisesse exigir nada de ilícito dele: - "Bem, tornaremos a conversar; em todo caso,
venha comigo ver o lugar. Chegaremos à meia-noite, é verdade, mas o senhor poderá
dormir a manhã inteira". Enquanto fala, Etzel raciocina: - "É um acaso extraordinário; em
casa do caixa Echneevogt, na rua Anklam! Jamais eles me encontrarão, ou então precisarão
dar uma busca em todas as casas, uma por uma". Etzel está contente... O trem corre
fragorosamente em meio da bruma acinzentada, a planície infinita borbulha como o mar. É
a primavera, tudo é desconhecido e, portanto, atraente; mesmo essa ligeira angústia que
se sente no coração, angústia em face do mundo, angústia em face dos homens, excita o
sangue de uma maneira que não é desagradável.
II

O quarto onde Etzel se instalou dava para um pátio sombrio e tinha dez pés de
comprimento por seis de largura; a mobília: uma cama estreita com um enxergão e uma
coberta de lã, um aquecedor de ferro fundido gasto, uma cômoda cambada com três pés,
uma toilette de ferro com uma pequena bacia no centro, uma mesa de madeira e duas
cadeiras de palha. Na parede pintada de cinza resplandecia uma cromolitografia da batalha
de Vionville; ao longo do leito, a parede apresentava respingos de sangue bem suspeitos
que Etzel examinou com ar interrogativo durante alguns segundos, até que compreendeu
que revelavam a existência de uma colônia de percevejos. Nunca vira percevejos. Do teto
descia um bico de gás. A única janela que havia não tinha cortina; podia-se devassar o
apartamento fronteiro que parecia repleto; no dia seguinte, houve um constante desfile de
novas fisionomias por detrás das vidraças. "Como tudo por aqui é feio!" - pensou Etzel,
desarrumando sua bagagem - "mas, para mim, é indiferente, pois não vim para admirar
coisas bonitas." O maior inconveniente era que o aposento não tinha entrada
independente; para lá chegar, precisava atravessar o quarto onde dormia a filha do casal.
Sem dúvida, o leito ficava dissimulado por um tênue cortinado, mas mesmo assim Etzel se
sentia constrangido. "Não tem importância", pensava ele tentando persuadir-se, "não há
meio de mudar nada; e, se fosse possível, seria fácil demais". A senhora Schneevogt
demorou muito tempo antes de marcar um preço; precisava primeiro fazer cálculos,
consultar seu marido e, quanto a pensão, determinar seu lucro, ficando estabelecido que,
se Etzel desistisse de uma refeição, assim mesmo ela lhe seria cobrada - novo sermão
palavroso que terminava por um hino à sua rigorosa lealdade pessoal. Enfim, apresentou o
resultado dos seus cálculos. Casa e comida: sessenta marcos por mês; serviço, iluminação,
lavagem de roupa: sete marcos e cinquenta. Etzel não pensou em regatear: tirou do seu
dinheiro sessenta e sete marcos e cinquenta centimos e entregou-os; essa rapidez o elevou
muito no conceito da senhora Schneevogt que, a partir desse momento, passou a
considerá-lo como uma. pessoa "distinta"; ao mesmo tempo, assaltaram-na impressões
contraditórias: por um lado, dedicou-lhe no seu coração endurecido uma afeição um pouco
rude e lamentou-o por estar assim abandonado no mundo; por outro lado, deplorou não lhe
ter pedido mais, pensando e repensando no que ainda poderia tirar dele; além disso,
farejou naquilo tudo um segredo cuja descoberta poderia não somente lhe proporcionar um
benefício mais palpável, mas também modificar inteiramente sua própria existência. Pode-
se observar com freqüência que é sempre nas naturezas inferiores que a imaginação se
torna desenfreada ao ponto de lhes apresentar a eventualidade de fantásticas
transformações de existência. São essas naturezas que se deliciam em se mover no irreal; a
simpatia e o interesse pessoal se tornam então semelhantes a duas irmãs diferentes que
gostariam de se entender, mas que não sabem o que fazer para isso. Naturalmente, a
senhora Schneevogt remexeu em todas as coisas de Etzel, mas não encontrou a menor
indicação. Etzel tomara suas precauções e tinha cuidadosamente examinado tudo o que
era seu, pedaços de papel e capas de livros. Felizmente, a senhora Schneevogt
demonstrava pouco método na sua espionagem; seu cérebro não guardava senão as
mesquinharias da vida quotidiana; estava brigada com os outros locatários, em desacordo
com o marido e a filha, em luta aberta com a polícia, com o govêrno e até mesmo com
Deus. Quando podia agarrar Etzel, brindava-o com uma torrente de queixas sobre a
crueldade do destino, tão severo para com ela e tão suave para com os outros, e tudo isso
terminava em muitas lágrimas e uma pequena fatura: quarenta pfennigs pelo concerto da
fechadura, oitenta pfennigs por um jarro novo, pois o antigo fora rachado por ele (o que
Etzel ignorava). Etzel nada objetava; abria a carteira e pagava. Um frêmito de volúpia
passava pelo rosto da mulher quando segurava o dinheiro em suas mãos ossudas, fossem
quarenta pfennigs ou, como da primeira vez, seis notas de dez marcos e algunas moedas
de prata. Etzel não se cansava de observar suas mãos, os gestos desconexos dos dedos;
aquilo o seduzia como as reações de feras famintas às quais se atira um pedaço de carne
através das grades; quisera ter bastante dinheiro para saciar a avidez daquelas mãos, a fim
de que pudessem, pelo menos, encontrar um pouco de descanso. Mas, não tinha e
provavelmente jamais ganharia o necessário para isso. E, à noite, quando ficava deitado,
acordado, e pensava em Waremme (despertava repetidas vezes, porque no apartamento
fronteiro havia um curso de dança onde uma terrível pianola não dava folga, todas as
noites, até às duas horas), seus pensamentos também se dirigiam para aquela mulher, e
ele se perguntava se suas mãos permaneciam tranqüilas pelo menos enquanto dormia. Do
curso de dança vinha um raio de luz até a mansarda. Na segunda noite, Etzel estendeu seu
capote diante da janela, mas mesmo assim não pode dormir antes de decorrido muito
tempo porque os percevejos o perseguiam. Sono, semi-sono, sonho, semi-sonho, semivigília
- Etzel passava constantemente de um estado para outro. "Que fazer?" - pensava. - "Qual é
a maneira mais inteligente de agir, qual o caminho mais seguro? Por onde começar?"
Começar, significava acreditar no sucesso. Ele acreditava no sucesso, porque era preciso
que a empresa fosse bem sucedida. Era apenas nos minutos mais sombrios, entre o semi-
sono e o semi-sonho, quando não se podia captar o menor jato de luz, nem do mundo
exterior (mesmo no local do curso de dança) , nem do mundo interior, era apenas nesses
minutos que as dúvidas se agitavam nele: uma vez foi como se recebesse uma pancada
sobre a nuca, no momento em que lhe veio essa ideia: "E se ele morreu, se morreu na
semana passada, ontem? Nesse caso, ficarei com a cara no chão e só terei mais um
recurso: sumir." Mas, refletindo bem, pensou que isso não era possível porque a lei que o
dirigia intimamente desapareceria; por si mesmo. "Então, pensou, o valor de minha vida se
saldaria no conjunto da criação por um deficit; toda coisa possui uma verdade mais
profunda do que aquela que se pode ver e compreender. Como poderia Waremme estar
morto, se Maurizius ainda está na prisão?" Era isso que o aguilhoava, essa coisa que sua
imaginação não chegava a representar inteiramente: aquele homem na prisão, cada dia
passa que passa, passa também para ele; e toda pressa é pouca em por fim àquela
situação, se se deseja que o mundo cesse de ser uma monstruosidade, um abscesso
purulento que faz mal à alma e ao corpo.
No dia seguinte, Etzel foi à rua Usedom, na esquina da rua Jasmund, e subiu ao primeiro
andar. Na escada, havia um letreiro no qual se lia em grandes letras pretas: "Matilde
Bobike, almoço: 4 marcos por semana". Era uma dessas casas nas quais não penetra a
menor corrente de ar fresco durante anos seguidos e onde reina, desde o corredor de
entrada até as mansardas, um bafio velho de carneiro, couves, cueiros, couro e água suja.
Etzel pediu para falar com a senhora Bobike; em pouco, surgiu uma mulher de seis pés
de altura, traços salientes, cabelos esbranquiçados, que o observou do alto sem dizer
palavra. Quando Etzel manifestou o desejo de tomar pensão em sua casa durante um mês,
deu-lhe um recibo sem dizer nada; Etzel pagou dezoito marcos e, sempre muda, ela lhe
entregou uma pequena caderneta que continha quatro folhas, cada uma com sete vales
para refeições.
III

Mesmo em uma criança, uma decisão grave e sagrada faz nascer ideias que equivalem a
inspirações. Mas Etzel era criança apenas na estatura; aliás, dizer de um rapaz de dezesseis
anos que é criança, não é senão um meio cômodo, para aqueles que crêem que se
tornaram homens no dia seguinte dos seus dezesseis anos, de não tomá-lo em
consideração, relegando-o à infância. Pretendem assim acentuar a ausência de experiência
do jovem, mas a experiência deles não é mais do que um penoso mosaico que não compõe
um quadro completo, adição laboriosa de números ínfimos que raramente fornecem um
total. Efetivamente, são bem raros aqueles que são capazes de viver verdadeiras
experiências. É a seiva viva que lhes falta; são semelhantes às árvores que somente
produzem frutos secos e nada conservam em seu coração. É ideia da vida que torna o
homem criador, ideia inata, ideia eterna que ele próprio cria. Nesse caso, a juventude não é
senão uma etapa, e o que lhe falta no que diz respeito à visão retrospectiva e a pontos de
comparação que se ajuntam uns aos outros, ela o substitui pela vida interior, pela
existência vivida no presente com intensidade e paixão. Decidido a tentar o impossível,
Etzel começou por encarar sem temor o meio no qual ingressava, compenetrado de sua
resolução. A pensão da senhora Bobike prosperava sob o rótulo de "Pensão para clientela
burguesa", isto é: todo dia, das doze à uma hora e meia, aí se reuniam, numa sala grande e
nua, e em duas outras menores, de trinta a quarenta pessoas, mais ou menos duvidosas,
transviadas de todas as espécies, criaturas de vida precária, nadadores esgotados do
grande rio da vida, indivíduos de elegância suspeita ou de pobreza mal dissimulada,
desempregadas, virtuoses de passagem, pequenos atores de subúrbio e atrizes sem
contrato, homens de negócios descansando entre um golpe a tentar e um golpe falhado,
barmen e dançarinos de festas de arrabalde, provincianos chegados à capital com suas
últimas esperanças e que lá vinham encalhar como despojos sobre um banco de areia, um
ou dois chefetes políticos, uma mulher casada que abandonara o lar, uma filha de pastor
vinda da Prússia Oriental e que aspirava representar no cinema. Desde o primeiro instante,
Etzel se esforçou para não suscetibilizar ninguém e para ganhar as simpatias de todos pela
complacência, pelo ar confiante e modesto, e pela loquacidade. Travou imediatamente
relações com seus comensais e, entre a sopa de batatas e o bolo de legumes, ele os levava
para conversas que enriqueceram notàvelmente a noção que possuía das diferentes
camadas sociais. Falava-se de uma operação fraudulenta, cometida por um indivíduo que
era citado com um piscar de olhos. enquanto alguém acrescentava que bastava uma
pequena dose de astúcia para passar por entre as malhas da lei. Falou-se dum certo Erico,
ator de music-hall, que tocava piano no café Vitória e que fugira com a mulher do
proprietário, carregando quatro mil marcos. Falava-se disso com um misto de inveja e
admiração, em um tom que até o momento Etzel somente ouvira empregar a propósito de
grandes façanhas ou, pelo menos, de algum recorte esportivo. Na mesa atras dele, tratava-
se de questões financeiras; à direita, discutia-se com animação sobre a "comissão" que
determinado agente de locação havia embolsado; à esquerda, um pintor de fisionomia
tuberculosa explicava que se ganhava muito dinheiro, no momento, com a falsificação de
quadros. Etzel ouvia, dócil, interessado, com o sorriso de um principiante que quer se
instruir; cuidava antes de mais nada de ocultar- se; quisera poder esconder-se até dos seus
próprios olhos, como se o contato com sua pessoa lhe pesasse, como se, em circunstâncias
idênticas, não se devesse nada saber e nada sentir de si próprio. Aliás, sua personalidade
não era dupla: Edgar Mohl e Etzel Andergast? E representava aquele desdobramento para
se permitir uma distração no cumprimento da missão austera à qual se tinha entregado;
divertia-se em instigar um contra o outro, a medir um em relação ao outro, os dois
personagens que habitavam nele; somente, Etzel aos poucos recuava, ele que era o corpo
propriamente dito, enquanto que Edgar, a sombra, aumentava de importância e não
tolerava nenhum obstáculo nos seus perigosos caminhos. 
Em diversas ocasiões, havia observado ao seu redor, escrutando furtivamente as
fisionomias, mas nenhum dos convivas lhe pareceu ser aquele que buscava com tanta e tão
emocionada impaciência. Finalmente, era uma hora menos um quarto e a maior parte dos
pensionistas já havia partido, quando entrou um homem  cujo aspecto não lhe deixou mais
nenhuma dúvida. Era de estatura regular, vestia um comprido paletó cinzento já fora de
moda, calças cinza que caíam como um saco, colete de veludo cheio de flores azuis e um
tanto sovado; seu andar era indolente e pesado. Somente depois de ter dado alguns
passos, é que tirou seu chapéu de feltro com abas largas e descobriu uma cabeça semeada
de cabelos grisalhos e de tal volume que, a partir desse momento, o corpo que a sustentava
pareceu crescer umas cinco polegadas. Os olhos e a expressão estavam completamente
dissimulados por óculos escuros e essas manchas redondas e sombrias ressaltavam a tal
ponto a cor cadavérica de seu rosto enrugado, glabro, pastoso, gordo, gelatinoso, que dava
a impressão de uma máscara artificial pintada de branco para meter medo às pessoas.
Involuntàriamcnte, Etzel baixou o olhar sobre o prato; tinha a impressão de que o
obrigavam a engolir, gota a gota, um corrosivo qualquer. Só ousava observar de soslaio,
mas sentia aquele homem pesar sobre ele como um enorme fardo. A maior parte das
pessoas o conhecia, muitos lhe acenaram com a cabeça quando se dirigia para sua mesa;
comeu só e puseram uma toalha de mesa para ele; alguns disseram: - "Bom dia, senhor
professor." Porque todo o mundo o chamava "o professor", mesmo as pessoas da rua que o
conheciam apenas de vista.
IV

"De hoje a oito dias" - decidiu Etzel - "falarei com ele, salvo se aparecer antes uma
ocasião mais favorável." Mas não tinha esperança que aparecesse, o professor não falando
com ninguém. Mesmo quando todas as mesas estavam ocupadas, e se ouvia com
dificuldade a conversa no meio da algazarra geral, conservava-se em sua mesa reservada,
próxima da janela, sem se envolver em nada e lia um livro que tirava do bolso traseiro do
seu ridículo paletó, e que mantinha aberto ao lado do seu prato. Parecia não ver ninguém e
não ouvir o que diziam. "Falarei com ele" - resolveu Etzel - "pedir-lhe-ei para me dar lições
de inglês." Tentativa essa que não tinha nada de ousado e de surpreendente, pois todos
sabiam que a profissão daquele homem consistia em ensinar. De qualquer maneira, ficou
tranqüilizado com a ideia de que tinha muito tempo em sua frente. O sangue lhe subia
bruscamente à cabeça, seu coração batia como um pequeno motor, quando imaginava o
encontro e a entrevista. Não era covardia, mas tinha consciência do que havia de excessivo
no seu empreendimento. E esse pensamento o fazia estremecer. No entanto, quando
conseguia encarar essa ideia face a face — ideia de que estava possuído até as pontas dos
dedos e até o fundo da alma — sorria como um homem que, de pé sobre uma casa em
chamas, calcularia a altura exata da qual deve cair, se não quiser quebrar o pescoço ou as
pernas. É necessário certamente, para se ter bom êxito, ser um saltador hábil e, sobretudo,
um pouco mágico.
Entretanto, segundo um plano prèviamente estabelecido, utilizou-se do prazo que se
concedeu, para se tornar estimado e conhecido de todos na pensão Bobike, para ser
considerado "bom camarada", prestar pequenos favores, passar por um dos da roda,
demonstrar animação e alegria, contribuir com toda sorte de pilhérias e, assim, se impor
insensivelmente à atenção do professor, de modo a que este fosse obrigado a notá-lo e
formasse sobre ele uma determinada opinião de que mais tarde se iria aproveitar. A
opinião, por exemplo, de um bom rapaz, capaz, digno de confiança, tendo necessidade de
ser guiado, útil em todas as circunstâncias. Percebeu" imediatamente que o professor
(perante si mesmo, chamava-o sempre de Waremme; o nome Warschauer não existia para
ele) vivia completamente solitário, parecendo não possuir nem afeições, nem relações;
mas, Etzel pensou também, e não sem razão, que não há existência humana, por mais
estritamente fechada que seja, à qual não se possa chegar com um pouco de inteligência e
habilidade. Solicitar sua admissão entre os alunos de Waremme não era suficiente; seria
preferível que circunstâncias mais favoráveis preparassem o terreno. Apresentou-se aos
outros como secretário particular, inventou para esse efeito a história de um tio, seu único
parente, que era seu tutor e administrava uma pequena herança sua, mas que havia
fugido; procurava-o há algumas semanas, tendo sabido de fonte segura que estava em
Berlim e habitava aquele bairro. Essa história sentimental foi bem recebida. Enquadrava-se
perfeitamente no ambiente. Etzel sabia acentuar os fatos, retardando-os, possuía o dom de
convencer as pessoas com um olhar, com uma expressão. Fazia todos compreenderem que
tinha sempre em vista o bem de cada um, e por isso concediam-lhe o que discretamente
solicitava para si: benevolência e um pouco de amabilidade. Seus olhos risonhos
acalmavam qualquer indivíduo, por mais rude que fosse. Seu ar amável tinha algo de
familiar. Quando queria, podia provocar gargalhadas só com o gesto acabrunhado com que
enterrava seu boné até os olhos. Vendedores de artigos de borracha e artistas vagabundos
não são pessoas que se imponham reservas de bom-tom; o assistente do dentista sem
trabalho, encontrado cá embaixo, em frente à venda, e que lança o olhar para uma lata de
atum, enquanto pede para o seu jantar dez pfennigs de queijo, fica contente quando se lhe
dirige a palavra. O que em Etzel agradava às pessoas era o seu ar de admitir naturalmente
não importa o quê. Se conversava com um cocainômano, parecia espantar-se de que todas
as pessoas não tomassem cocaína; se andava às voltas com um bebedor, parecia estar-lhe
prestando homenagem pela energia que demonstrava bebendo; e, para dizer isso, tinha
um olhar amável, como se o estado de embriaguez fosse o mais natural do mundo. Um dia,
um jovem de lábios pintados lhe fez determinadas propostas; quando a compreendeu,
prometeu refletir sobre o assunto. Quando se encontrava fortemente emocionado, podia ter
o ar de um polichinelo; quando deparava com um homem em cólera, assumia o aspecto de
velha ama que é obrigada a acalmar uma criança de peito. Nenhuma perversão o
surpreendia, nenhuma vilania o perturbava, não demonstrava horror por nenhum vício e
mesmo a visão de um crime não teria provavelmente modificado um único traço daquele
rosto plácido e sorridente, tão grande era seu controle próprio. Parecia que representava
um papel com o fim de se enganar a si mesmo. Ainda que desconfiasse de todo
romantismo e desprezasse qualquer fantasia, revelava-se pouco inclinado por ambas, pelo
fato mesmo de lhes opor resistência. No íntimo, era sempre o mesmo Etzel que sua avó, a
generala, havia observado aos dois anos, sentado sobre o tapete e se esforçando por comer
com uma colher de sopa o raio de sol que penetrava na sala, formando uma faixa de poeira
luminosa e que, tendo percebido que ela o observava, lançara, furioso e atrapalhado, a
colher no balde de carvão.
Perguntaram-lhe como se chamava o tio fugitivo. "Mohl". - Mohl, exatamente como ele. -
"Ah! Mohl?" - interveio um vendedor de charutos; tinha ouvido falar de um Mohl, na
taberna Matias. Um outro lhe indicou um indivíduo qualquer, cliente inveterado da taberna
de Marbach, e que era uma agência ambulante de informações. Não havia nenhuma pessoa
em Wedding que ele não conhecesse e da qual não pudesse recitar o curriculum vitae na
ponta dos dedos. Um terceiro indivíduo, com cor de marmelo e uma cicatriz sobre o olho
esquerdo, e que dizia ter tido outrora íntimos conhecimentos dentro da Marinha,
recomendou-lhe ir ao Jardim de Inverno, informar-se nos dancings e junto aos diversos
bookmakers; em casos semelhantes tinha-se oitenta probabilidades sobre cem de obter um
resultado favorável entrando em determinado café da praça Alexandre. Além disso,
indicou-lhe nas ruas Oranienbourg e Alsacia-Lorena diversos hotéis onde habitualmente se
hospedavam pessoas que, sob a ameaça de um perigo qualquer, passavam rapidamente de
um desses hotéis para outro, quando desejavam eclipsar-se. - É "preciso" - disse em tom
doutoral em meio do respeitoso silêncio da Távola Redonda - "distinguir entre os refúgios
para pessoas de alta-classe, para arrivistas, para pequenos burgueses e proletários; é
preciso saber o que é um albergue noturno, uma estalagem, uma taberna. Quem está
sendo vigiado pela polícia escolhe naturalmente um refúgio diverso do que quem está
sendo perseguido por crime; não há necessidade de procurar muito em baixo para
descobri-lo; mas, para o outro, é preciso penetrar bem mais profundamente. Quem quer
desaparecer por pouco tempo apenas, não se afasta muito da superfície e, em geral, é fácil
de descobrir, mesmo se navega sob falso pavilhão, o que se deve naturalmente recear de
parte de seu tio Mohl." Algumas vezes, chega-se muito rapidamente ao fim desejado
pedindo informações às mulheres, "não tens senão que interrogar essas nobres mulheres"
(esta citação foi feita com voz tremulante). Foi assim que, após haver longamente
navegado nas mesmas águas que um certo indivíduo, sem poder arpoá-lo, conseguira
agarrá-lo dirigindo-se à Salomé da rua Landsberg em Weissensee. Etzel pagou ao orador
um veemente tributo de reconhecimento, por tê-lo instruído tão abundantemente. Para se
fazer valer mais, desenvolveu altissonante discurso perante o auditório embasbacado, uma
espécie de filosofia popular dos grupos sociais: demonstrou que, dado o estreito contato
dos homens, no interior das diversas camadas sociais, e dada a incessante passagem para
a zona imediatamente inferior ou imediatamente superior, todo o mundo se conhecia. Cada
alfaiate conhece outros vinte, cada negociante outros vinte; há profissões que são irmãs, e
outras que são primas; o serralheiro tem ligações com o negociante de bicicletas, o
vidraceiro com o arquiteto; o chefe de seção fiscaliza dezena de funcionários; o garçom de
café serve todos os dias duzentos clientes dos quais sabe quase sempre, não apenas o
nome, mas também a condição social; a vendedora da loja se interessa pelos fregueses e
aos poucos sabe quem é cada um deles e o que faz; os choferes conhecem as pessoas que
residem próximo dos seus pontos, os condutores de bonde conhecem os passageiros da
manhã, da tarde e da noite; a maior parte das pessoas passa à mesma hora pelas mesmas
ruas. O número de conhecimentos que se tem pouco importa. Que o professor, o deputado,
o fabricante, tenham dois mil, que o estudante pobre, o modesto funcionário do banco, o
antigo condenado depois de cumprida a pena, tenham cinquenta ou mesmo dez, de
qualquer modo cada um deles está rodeado de conhecimentos. Em cada degrau da vida
encontra um conhecido que o conduz ao próximo degrau, a um outro conhecimento; cada
um pertence à corporação a que foi destinado.
Quando as pessoas jovens crêem dizer qualquer coisa notável, falam logo para as
galerias. Etzel era bastante isento desta vaidade. Outra era a razão que o impelia a elevar a
voz e a obrigar as pessoas sentadas ao seu redor a ouvi-lo em silêncio. Desejava
simplesmente ser ouvido pelo professor. E, enquanto falava, vigiava com olhar de lince
todos os movimentos de Waremme-Warschauer. Por causa de sua miopia, não podia
distinguir senão confusamente seu rosto e sua expressão, mas pareceu-lhe que o homem
interrompia sua leitura para ouvi-lo. No final de sua exposição, notou que o professor
desviava um pouco a cabeça, como se quisesse piscar os olhos para o seu lado (estava
voltado de três quartos para o lado de Etzel), e depois movia o maxilar inferior
hipertrofiado, da direita para a esquerda, num curioso movimento de mó que tritura. Era
 exatamente como se quisesse afugentar uma mosca e se sentisse com muita preguiça
para levantar a mão. "Agora, ele conhece minha voz" - pensou Etzel - "sou quase um
conhecido seu."
 V 

Não eram apenas os seus companheiros de mesa que lhe pediam para fazer-lhes alguns
favores; ao regressar, por exemplo, passaria pela taberna Lignes e diria tal e tal coisa a um
senhor que lá se encontrava e que tinha essa ou aquela aparência; ou então, diria a Elsa
Gruenau, na rua Gollnow 27, que Henrique Balle não poderia ir buscá-la naquela noite; ou
ainda, teria de ir fora da cidade, ao palácio de esportes, (punham-lhe imediatamente o
dinheiro da passagem na mão) chamar o corredor Paulo e avisá-lo que, se não mandasse às
quatro horas o objeto que já sabia, teria de se haver com Cristóvão Jansen, etc. etc.; não
eram apenas todos esses, mas também a senhora Bobike o fez várias vezes de menino de
recados. Mandou-o advertir um devedor relapso, acalmar um fornecedor de produtos
alimentícios a quem, por sua vez, devia dinheiro, explicar a uma moça a quem havia
vendido, dois anos antes, um gramofone a ser pago em prestações sucessivas, que, não
tendo ela cumprido as condições estipuladas - faltavam ainda duas prestações - devia
devolver o aparelho. Etzel devia levar um espartilho para consertar, comprar um frasco de
benzina na drogaria, indagar de um endereço, informar-se na Porta de Schoenhaus sobre
um pastor chamado Happrot, e outras coisas desse gênero. Etzel o fazia de boa vontade.
Sua alegria era inalterável. Ia, ia sempre, qualquer que fosse o lugar para onde o
mandassem. Raramente tomava uma condução, em primeiro lugar porque queria
economizar, depois, porque se deslumbrava com o que via em caminho. Passava por
bairros animados onde inumeráveis pessoas se acotovelavam e se chocavam, frias, hostis,
apressadas, e chegava a bairros desertos onde a vizinhança, das usinas de gás, dos
abarracamentos, das prisões, das hospitais, das chaminés, dos cemitérios, dá a impressão
de uma gigantesca câmara da suplício com gigantescos aparelhos de tortura, rodeados de
calabouços e de túmulos. Entrava em aposentos cheios de umidade, em subsolos onde, à
noite, enfiavam-se velas nos gargalos das garrafas e onde havia sempre um infeliz em
estado febril, deitado num sofá, coberto de farrapos. Avistava crianças com fisionomias
enrugadas que talvez não tivessem jamais visto uma árvore ou uma praia. E quando falava
com algumas delas, parecia-lhe estar zombando de si mesmo por não estar tão faminto e
tão desamparado como elas. Uma vez, em frente à sede do Exército da Salvação, teve de
abrir passagem por entre uma multidão de sem-trabalho e sem-abrigo, e atravessou esse
ajuntamento cujo silêncio era, no entanto, muito impressionante, com o mesmo ar de
cândida despreocupação que teria tido ao folgar com seus companheiros num campo de
jogos. A tal Elsa Gruenau o observou com complacência e necessitou de toda a sua astúcia
e de toda a sua ingênua loquacidade para escapar às suas ciladas. Tudo isto não era
tomado em consideração, nem merecia deter ninguém, porque cada hora que passava,
marcava uma a mais para o homem que estava na prisão. Pensamento esse tão inexorável
como o pêndulo de um relógio e cujo efeito foi dentro em pouco o seguinte: as horas se
tornaram equivalentes a duas mós de pedra sob o estridor das quais toda a vida da terra se
exalava e se extinguia em suspiros.
Etzel se levantava diariamente às sete horas, saía às oito e voltava ao anoitecer, entre
seis e sete horas, algumas vezes mais tarde ainda. Era imprescindível que a ficção do seu
cargo de secretário guardasse qualquer verossimilhança. Naturalmente, perguntaram-lhe
em casa de quem ele trabalhava. "Em casa de um escritor de Westend, avenida dos
Castanheiros" - disse ele; mencionou em seguida um nome imaginário. Era uma
imprudência. Melita Schneevogt teve a ideia bastante schneevogtiana de consultar o
anuário e, no dia seguinte, perguntou-lhe com malícia como ia passando o seu patrão. Etzel
compreendeu: - "Por tudo desse mundo, não devo ruborizar-me!" - pensou ele; e não corou,
respondendo audaciosamente, que o nome dado era um pseudônimo. - "Por acaso O senhor
não será um agitador político, um espião?" - inquiriu Melita com ar sombrio. - "Se for, vá se
afastando antes que tenhamos complicações com a polícia." - Não, ele não era um agitador
político. Etzel disse isso com um sorriso desarmante e saiu do campo visual daquela
criatura azeda. Mas, o que fazia durante todo esse tempo, desde a manhã até a hora da
refeição em casa da senhora Bobike, e de uma hora ou de uma hora e meia até à noite, já
que os pequenos serviços de que se encarregava eram rapidamente executados? Pois bem,
caminhava, caminhava. Dos dois pares de sapatos que tinha trazido, um estava com as
solas furadas, o outro com os saltos gastos; ao fim de uma semana, precisou mandar
consertá-los. Seus pés, que caminhavam tão infatigavelmente, estavam em condições
lastimáveis, maltratados e cobertos de bolhas; somente pouco a pouco é que calejaram e
cicatrizaram. Como não se deitava antes da meia-noite, e então precisava sustentar contra
os percevejos uma luta sem esperança, esse gênero de vida - dada sua constituição
delicada - fatalmente teria prejudicado sua saúde, se ele não estivesse tenso como uma
mola. Etzel caminhava e tornava a caminhar, refletia, sopesava, concentrava-se, olhava e
caminhava ainda. Quando se sentia fatigado, sentava-se num banco em frente à Santa
Casa no bosque de Humboldt, ou, se chovia, numa estação. Algumas vezes, tirava do bolso
seus cadernos de latim e de grego e punha-se a estudar; outras vezes, recitava poemas que
sabia de cor, versos de Rilke e de George, algumas vezes lia num dos volumes de Melchior
Ghisels. Mas essa leitura se tornava um tormento pela ideia de que esse pensamento não
era mais um espírito a compreender que nesse verso Catulo se propunha a morrer já que
sem corpo, de que existia por detrás dele um homem accessível que ele, Etzel, poderia, se
a isso se decidisse, ver naquele dia mesmo e a quem talvez pudesse falar... Mas Etzel
pensava na visita à casa de Ghisels como o crente numa peregrinação; decidir-se, era muito
prosaico; tinha de ser como uma coisa involuntária, era preciso que para lá fosse arrastado
como o aluvião pelo rio, e é somente nessas condições que se extinguiria seu receio
apaixonado, semelhante à tentação do abismo. O olhar de um homem como aquele não era
tão radiante quanto o próprio olhar do céu?
Encontrava-se também entre os pensionistas da senhora Bobike um estudante
fracassado, chamado Schirmer. Durante certo tempo fora suplente numa escola livre; em
conseqüência de uma história escandalosa, fora expulso e, presentemente, lutava por pão e
por abrigo. Chegara no mesmo dia que Etzel e sentava-se na mesma mesa que ele; era
louro, troncudo, razoavelmente beberrão, com um ar não muito inteligente, barba mal
cuidada, que lhe dava uma aparência pouco asseada. Tinha grande entusiasmo pelo
"pequeno Mohl", como era chamado por todos, e quando Etzel fazia uma das suas
costumeiras e secas observações, ou se expandia em considerações sobre o espetáculo do
mundo, ou então exibia uma de suas habilidades, imitando, por exemplo, um rabugento
condutor de ônibus, um jornaleiro gago, Schirmer relinchava de alegria, batia
estrondosamente dez vezes sobre a mesa e olhava ao seu redor, triunfante, como para
recolher aplausos. Quando o acesso passava, enxugava suas lágrimas com um enorme
lenço azul. Uma ocasião - fazia justo uma semana que Etzel freqüentava a pensão -
Schirmer, não sem pretensão, fez escorregar, na conversa que estava tendo com o técnico
da Marinha, uma citação latina. Etzel riu e completou-a com o segundo verso do dístico que
era de Horácio, e que, no caso, era bastante picante, mas compreensível somente por ele e
pelo estudante. Schirmer teve a sua habitual explosão de entusiasmo, depois disse: - "Mohl,
me parece que não foi inutilmente que você gastou os fundos das calças nos bancos da
escola; é uma lástima ter tanto talento à toa." - "Lástima por que?" - retrucou Etzel -
"quando se tem talento, não se pode ser prejudicado por ele. Sei ainda muitas outras
coisas" - ajuntou com uma vaidade muito bem representada. - Sei de cor poemas inteiros
de Catulo. Quer que eu lhe cite um?" - "Atenção, senhores" - gritou Schirmer limpando a
boca com seu guardanapo de papel, pois o jantar estava no último prato - "atenção, o
pequeno Mohl vai declamar um poema latino. Comecemos!" Etzel sorriu de modo estranho
e principiou:   
 
Quid est, Catulle? quid moraris emori? 
 sella in curull struma Nonius sedet, 
 per consulatum perierat Vatinius, 
 quid est, Catulle? quid moraris emori?   
 Os ouvintes tinham fisionomias estupefactas; aquilo era chinês para eles. Aliás, que
poderiam pensar, mesmo se tivessem podido era permitido a Vatinius fazer impunemente
um juramento falso? Mas, o rapaz continuava e suas faces se inflamavam como se,
observando o tom do poema, não pudesse despertar do seu estupor: 

  Risi nescio quem modo e corona 


 qui, cum mirifice Vatiniana 
 meus crimina Calvus explicasset 
 admirans ait haec manusque tollens:
 di magni, salaputium desertum...   
Etzel traduziu imediatamente o último verso e depois todos tiveram um sorriso forçado
que era uma homenagem, enquanto o ingênuo Schirmer não terminava mais com suas
exclamações e aplausos fragorosos. "Ah! meu Deus, se pelo menos eu tivesse óculos!" -
pensava Etzel, e esse desejo tinha sua forte razão de ser, pois o professor voltou a cabeça
para seu lado como fizera anteriormente; e, como anteriormente também, seu horrível
maxilar inferior pôs-se a triturar como uma mó. Mas o fugidio interesse que a estranha cena
acaso houvesse despertado nele, pareceu de curta duração; alguns segundos depois estava
novamente mergulhado na leitura de seu livro. Um pouco mais tarde - acabara sua refeição
e estava se levantando da mesa - eis Etzel de pé, diante dele, dirigindo-lhe a palavra: - "Eu
desejava tomar lições de inglês e várias pessoas me recomendaram o senhor, professor;
tenho intenção de ir para o estrangeiro no próximo ano, mas queria antes adquirir
conhecimento profundo da língua. A que preço o senhor, professor, dá suas lições?" -
Waremme-Warschauer dirigiu os vidros negros dos seus óculos sobre a face do jovem com a
mesma lentidão com que procuraria, com o auxílio de um binóculo, um objeto no
horizonte. - "Um marco por hora" - disse com voz pausada, um tanto rouca. - "Quantas
horas por semana quer o senhor tomar? Três, quatro? Bem. Segundas e quartas-feiras, das
quatro às cinco, sábados das quatro às seis. Seu nome? Mohl? M-o-h-l? Bom. Até logo."
"Parece que até esse momento" - pensou Etzel vexado - "ele não se preocupou
absolutamente comigo..." 
VI 

Warschauer ocupava, no terceiro andar da mesma casa, uma única sala, bastante grande,
é verdade, para que a tivessem dividida em duas, com o auxílio de uma porta corrediça. Por
trás dessa porta, em uma alcova sem janela, encontrava-se o leito. Ao longo das paredes,
duas ou três centenas de livros, a maior parte brochuras, achavam-se empilhados em
colunas e, coisa surpreendente, aí figurava um grande número de obras selecionadas sobre
a antigüidade judaica, a lingüística semita, léxicos hebraicos, edições do Talmud, exegeses
da Bíblia, anais de sociedades orientalistas e volumes de Cabala. Não havia estantes. Nada
que fizesse lembrar o conforto de um aposento particular. Era uma balbúrdia de objetos
aparentemente sem nenhuma relação entre si e reunidos ao acaso. No teto e nos cantos
havia teias de aranha. Fazia tanto tempo que os vidros das janelas não tinham sido lavados
que quase não se via através deles. Tudo quanto se refere a ornamento: quadros, bibelôs ou
acessórios cômodos, com exceção de um velho sofá usado, parecia desconhecido ao
habitante do lugar. Era o alojamento mais triste, mais relaxado, mais semelhante a um
estábulo que Etzel vira até então. Depois de haver encontrado, às apalpadelas, seu
caminho num corredor negro, comum a cinco ou seis outros locatários: um mascate, uma
lavadeira, um enfermeiro, um fotógrafo com numerosa família, Etzel batera à porta;
ninguém dera sinal de vida e ele estava ali, no meio da sala deserta como um cogumelo no
meio do campo. Ao fim de alguns instantes, Warschauer apareceu por detrás da porta
móvel e fez ao novo aluno um amável sinal com a cabeça, que deu durante alguns
segundos àquela fisionomia cadavérica uma semelhança qualquer com uma mulher velha
que se esforça por sorrir. 
É tão grande a desolação, a sujeira que o envolve, como é meticuloso o asseio da sua
pessoa. Às vezes, levanta-se, apanha uma escova pendurada na parede e esfrega seu
paletó e seu colete. Todos os quinze ou vinte minutos, desaparece pela porta móvel, lava
demoradamente as mãos e depois, com a sua máscara de mulher velha, volta ao seu lugar,
coloca sobre os joelhos suas mãos gordas e brancas — cujas unhas são cortadas tão curto
que as pontas dos dedos se curvam para cima como pequenos capuzes — com um
ponderado movimento de prelado, e continua a lição. Seu método é simples e prático.
Atribui grande importância à pronúncia e à aquisição do vocabulário usual, fornecendo de
passagem explicações gramaticais. Os objetos, mostra-os, e escreve a giz as palavras
separadamente sobre um quadro-negro posto num cavalete próximo da mesa. Percebe
imediatamente que está tratando com um rapaz que tem seu curso de humanidades; isso
redobra sua amabilidade forçada que permanece superficial. E, como adivinha bases
sólidas no aluno, abrevia as explicações preliminares. Indica as raízes etimológicas e faz
ressaltar as particularidades dos ingleses pelas quais se explica o caráter sintético de sua
linguagem. O aluno compreende rapidamente. As observações do mestre caem como
dinheiro trocado displicentemente atirado fora por um milionário. Mas o que diz não é
sustentado pela expressão dos olhos e, sim, encontra sua única confirmação exterior em
seus óculos pretos. "Eu gostaria de lhe tirar os óculos" - pensa Etzel - "parece que ele quer
mistificar as pessoas." Seu ardor em aprender e sua rapidez de espírito colocam
Warschauer em um espanto manifestamente simulado; dá às vezes a absurda impressão
de querer parodiar as explosões de entusiasmo do ridículo Schirmer. Etzel se sente
constrangido, essas maneiras jesuíticas o irritam. Já na segunda lição pergunta por que o
professor está zombando dele que não tem nenhuma ilusão sobre seus pobres
conhecimentos. Segue-se um gesto amedrontado e persuasivo de Warschauer que deve ser
interpretado assim: "Peto amor de Deus, rapaz, que pensa você de mim? Como poderia eu
ter essa ideia?" Mas tudo isso é pura comédia, como o resto. Quanto mais Etzel se desdobra
em torno dele, mais aumenta sua alegria de tartufo. Observa, naturalmente, que não está
tratando com um jovem comum; a boa-educação do aluno é inegável, mas sua gentileza e
sua complacência traem uma secreta intenção. De onde vem? e a mão num braseiro para
dele retirar uma jóia - que nada O que pretende? Contudo, nada há nisso de inquietante:
quando um cãozinho fareja nossas pernas, deixa-se que ele as fareje; tem-se sempre
ocasião de dar-lhe um pontapé para afastá-lo. Enquanto isso, vai-se-lhe jogando um torrão
de açúcar e un osso de vez em quando; que o fareje ou o roa, pouco importa. Eis o que
exprime a atitude de Waremme-Warschauer. Etzel a compreende perfeitamente. Apesar
disso, consegue insinuar-se, introduzir-se nos hábitos, na vida desse homem; procede como
o parasita que domestica seu hospedeiro. Suas manobras de parasita começam pelo fato
de ele chegar sempre dez ou vinte minutos antes da hora que lhe foi fixada — ainda
quando há outro aluno dando lição — (o professor não tem muitos alunos) e de permanecer
após o término, mesmo quando Warschauer parte para seu trabalho (tanto quanto Etzel
pode adivinhar, trabalha para um diretor de museu e, sob o nome deste, numa bibliografia
de escultura árabe; e isso, por um salário irrisório, pois o diretor, uma celebridade em sua
própria pátria, poderia ele próprio fazer o trabalho, se tivesse um pouco mais de tempo).
Etzel se põe a cuidar dos livros de Warschauer-Waremme, sobre os quais há um milímetro
de poeira; limpa-os, classifica-os, resolve estabelecer um catálogo e nem sequer indaga de
Warschauer se isso lhe convém. Nota que Warschauer, que não bebe, nem fuma, tem
predileção por café puro muito forte que ele mesmo prepara num pequeno fogareiro. Alivia-
o dessa tarefa. O acaso, cuja cumplicidade voluntária reconhece, continua a ajudá-lo.
Warschauer enfia um prego no pé e não pode sair do quarto durante muitos dias. Não tem
ninguém a seu serviço (estranho é que, não obstante as condições miseráveis nas quais
vive, não pareça pobre e muito menos ainda mendigo; pelo contrário, dá freqüentemente a
impressão de ter preparado essa encenação em vista de um fim misterioso qualquer —
impressão inteiramente errônea, aliás... ), ele mesmo faz sua cama e engraxa seus sapatos.
Etzel vai buscar sua refeição do meio-dia em casa da senhora Bobike e a da noite num café
da rua Demmim. Naturalmente, regula o emprego do seu tempo pelas novas
circunstâncias, mas os dias não esperavam senão ser governados de acordo com elas. Vai
providenciar ataduras e lisol na farmácia, lava a ferida, faz-lhe o curativo como um
enfermeiro, mostrando-se tão destro como se houvesse saído de um curso de enfermagem.
As conversas que mantêm — pois está claro que, vivendo quase colados, não se podem
ficar olhando como cães de porcelana — animam-se cada dia mais pelo esforço de Etzel
que é um tagarela infatigável, enquanto Warschauer parece entrincheirar-se, quase que
com dificuldade, em inacessíveis refúgios. Esgota-se em agradecimentos untuosos,
defendendo-se com assombramento, como se uma pessoa da sua espécie não fosse
absolutamente digna de tantos benefícios, de tanto devotamento. Mas há momentos (Etzel
não se pode impedir de estremecer até o íntimo quando se apresentam, ainda que pense
ao mesmo tempo — como alguém que, contraindo os dentes, me pode servir melhor sua
causa), momentos de ternura que não consistem, é verdade, em nada mais do que numa
tentativa de contato, numa cintilação dos olhos por detrás dos óculos negros, numa
grotesca e vã trituração do maxilar inferior hipertrofiado. Parece a Etzel que um Golem
desperta e procura, ofegante, agarrar tudo em torno dele porque sente apetite de carne
humana. Um dia, Etzel fala, num tom ingênuo de maroto, estudado e ao mesmo tempo
pessoal, do que fará quando estiver na América (é sob esse pretexto que toma lições com
Warschauer) : será antes de mais nada cowboy, pensa ganhar bastante dinheiro para mais
tarde poder comprar uma grande fazenda com rios e bosques, gado e caça, e viver em
liberdade. "Viver em liberdade!", Etzel diz isso num tom de firme entusiasmo. Warschauer
levanta a cabeça e articula uma risada surda. Estende o braço, puxa o rapaz para junto de
si, tão próximo que Etzel, com uma mistura de horror, de instintiva revolta e de voluntária
submissão, sente passar sobre sua face a respiração do homem que diz, meneando a
cabeça como um buda: - "Viver em liberdade? Lá? Lá, em liberdade? Ah menino, menino,
menino!" E ri, com riso de ventríloquo, divertido e amargo. Etzel se desprende e levanta os
ombros, descontente. - "Eu sei bem," - grunhe - "eu bem sei... você..." - e se interrompe.
com ar provocante; fica parado, em atitude de bravata e atira seus cabelos para trás. Os
olhos por detrás dos óculos pretos estão dirigidos sobre ele e têm aquela expressão que
qualifica de olhar de "papão", ainda que nada tenha de cruel nem de ruim, mas revele
apenas aquela hibricidade sonolenta do Golem que desperta. São talvez antigas
reminiscências de contos que vagueiam em sua cabeça; dias antes, ainda era uma
criança... Warschauer quer sair naquela noite pela primeira vez; numa cervejaria próxima
da estação de Stettin, haverá uma reunião popular à qual quer assistir. Etzel se propôs a
acompanhá-lo porque o professor ainda não se mantém com firmeza sobre as pernas.
Warschauer tem paixão por todas as aglomerações, quaisquer que elas sejam: cortejos,
exibições públicas, demonstrações de grevistas ou simples motins, as massas o atraem de
uma maneira irresistível. Jamais se sente melhor do que enterrado como uma cunha numa
multidão, em um recinto fechado onde oradores hábeis instigam a multidão para compeli-
la a manifestações fanáticas; explicou a Etzel essa ebriedade do anonimato, essa ventura
que experimenta, então, ao sentir-se se dissolver sua personalidade. Etzel não "pescou"
muito bem, mas pensa, para se consolar, que o outro tornará a falar-lhe naquilo. Sairão às
oito e meia; é preciso ainda que Etzel vá ao café da rua Demmin buscar umas salsichas.
Assobiando, mãos nos bolsos, Etzel parte; ao voltar, não tem mais senão uma das mãos no
bolso; a outra segura o embrulho que é bastante volumoso porque comprou uma libra de
cerejas; mas isso não o impede de assobiar.. . Desde a escada, ouve a voz sonora, indolente
e grave de Warschauer. "Oh, oh!" - pensa ele - "há alguém no quarto do professor." Mas é
apenas o filho de Paalzow. Paalzow é o fotógrafo que mora ao lado. O filho de Paalzow tem
justo a mesma idade que Etzel, mas é um rapaz corrompido que já compareceu várias
vezes diante dos tribunais de menores. Já tinha vindo de manhã. Warschauer falara nisso
com ar descontente; quer dinheiro e isso sob um pretexto que inventou com um descarado
cinismo: Warschauer chama a isso, com indignação, uma tentativa de chantagem.
Aguardava, dias antes, uma remessa de livros do diretor do museu; tendo que sair, quis
antes pedir à senhora Paalzow que recebesse o embrulho em seu lugar, caso o portador
chegasse em sua ausência. Mas, não havia ninguém em casa de Paalzow, o aposento
estando vazio. Eis o que havia de verdadeiro no caso; mas o filho de Paalzow afirma que o
professor, ao sair, deixou a porta do quarto deles aberta e que lhe roubaram um par de
sapatos que o professor deve pagar. Não reclama o valor total, mas somente três marcos, o
que é muito razoável. Exige o seu táler, sem a qual fará barulho e ele bem saberá tirar ao
professor a vontade de recomeçar. Quando Etzel entrou, estava de pé, de braços cruzados,
o chapéu inclinado sobre a orelha, e reclamava insolentemente o dinheiro. Warschauer
estava sentado à sua mesa de trabalho, de caneta na mão, e lançava um olhar atravessado
na direção do patife. Em face de semelhantes ataques, era de uma covardia ridícula. Etzel
passou por trás do rapaz para ir à janela aberta; pousou o embrulho de alimentos sobre a
prateleira, depois de ter tirado um punhado de cerejas; debruçou-se para fora como para
mostrar que o assunto não o interessava e que não queria tomar partido. Embaixo, no pátio,
havia uma pequena caixa vazia justamente sob a janela; Etzel se absorveu por um instante
com o esforço de procurar cuspir os caroços na caixa, mas não conseguiu. Entretanto, o
filho de Paalzow se tornava a cada momento mais atrevido, o silêncio cheio de desprezo de
Warschauer lhe dando coragem para isso. Assim, usando o mais colorido calão berlinense,
declarou que saberia bem como conseguir seu dinheiro, ainda que tivesse de botar fogo
naquela estúpida baiúca de rabiscador de papel. Então, Etzel se voltou, foi ao seu encontro,
deu-lhe um safanão e disse: "Vá-se embora e depressa, ouviu?" "O filho de Paalzow se virou
bruscamente como se tivesse sido mordido e lançou-lhe um olhar venenoso. - "Vamos
explicar-nos lá fora" - continuou Etzel, piscando o olho; poder-se-ia crer que considerava o
professor um idiota, sem o poder dizer, pois se tinha encarregado de resolver seus negócios
corretamente e, em especial, um assunto tão delicado como aquele. Mas quando o valentão
saiu, Etzel lhe disse: - "Escute aqui, Paalzow, é bem suspeita a sua história; é inútil procurar
fazer-me acreditar nela, adivinho que você quer dar mais um de seus golpes habituais;
mas, isso não vale um táler, contente-se com cinqüenta por cento e tome lá um marco e
cinquenta. Explicarei tudo ao professor: e agora, suma." Hesitante, desconfiado, não
sabendo o que pensar de Etzel e, apesar de embora com passo arrastado ao longo do
corredor, a fisionomia sinistra e a cabeça caída sobre os ombros. Quando Etzel voltou,
Warschauer havia aceso o bico de gás e ouvia-se o rangido de sua pena; pela janela aberta,
entravam, por cima dos telhados das casas, o barulho surdo das buzinas e os sinais do
bonde elétrico. Etzel se sentou sobre uma pilha de livros e, as pernas suspensas, pôs-se a
comer cerejas. Warschauer se voltou de repente e disse: - "Você deu dinheiro àquele
velhaco?" Etzel inclinou vivamente a cabeça. - "Por que? É uma tolice e uma ação má, dar
dinheiro a um tal canalha, que ameaça fazer escândalo. Mas, por quê? Você é tão rico
assim?" Etzel lançou, descrevendo uma ampla curva, alguns caroços pela janela e
respondeu: - "Absolutamente; mas, em primeiro lugar, não devemos discutir aqui; em
seguida, que é um velhaco, que é um canalha? Trata-se de um rapaz miserável. Por um
marco e cinqüenta, pode-se virá-lo pelo avesso como uma luva. Eu quis ver até que ponto
ele era miserável. É tudo quanto tem de positivo sobre si, aqueles três marcos com
cinqüenta por cento de abatimento. Fiz mal?" Warschauer se agitou um pouco sobre a
cadeira. - "De positivo? Que quer você dizer com isso?" - perguntou. Etzel continuava a
cuspir os caroços. - "Pois bem! Positivo é aquilo de que se necessita quando não se quer
estourar" - replicou com calma - "porque, tudo quanto tem valor para os outros: um
pequeno ideal, uma fé, um grande homem, uma coisa admirável, essas pessoas não
possuem." E Etzel fez com a mão um gesto vago, dirigido para a porta como para designar
todos os pequenos Paalzow que, lá embaixo, aspiravam a qualquer coisa de positivo...
Warschauer se calou e voltou ao trabalha Mas, quando al- guns minutos escoaram, deixou a
caneta, virou-se ainda uma vez, apoiou o cotovelo direito sobre a mão esquerda, cobriu o
queixo e a boca com a mão direita e fixou um momento Etzel que não parecia
absolutamente perturbado. - "Que o diabo me carregue se eu compreendo você, Mohl" -
disse enfim em voz baixa. - "Afinal de contas, talvez você tenha outro nome; vamos, diga se
sim..." Não havia em sua entonação nem suspeita nem ameaça, mas um tom benevolente,
de uma afabilidade pegajosa, destacando-se sobre o acompanhamento da sua voz de
baixo. Num salto, Etzel desceu da pilha de livros: - "Talvez eu me chame tão pouco Mohl
quando você Warschauer" - respondeu com insolência. - "Talvez, quem sabe?..."
Warschauer se levantou lentamente. Muito lentamente caminhou para o rapaz: - "Olá,
garoto!" E sua voz saía do peito, diferente, nova, uma voz de além-túmulo: - "Olá, garoto!" -
"Eu disse somente "talvez" - insistiu Etzel, num tom mais brando e sustentou a cintilação
negra dos óculos com a persistência que exigia a sua miopia - "talvez eu me chame, como
poderei eu me chamar? Pode ser que eu me chame Maurizius. Há outros que se chamam
assim. Por que não poderia eu me chamar Maurizius?" Warschauer-Waremme tinha a
aparência de alguém que é chamado da rua, por cima dos telhados; seus traços se
convulsionaram - adquiriram a expressão de alguém que medita sombriamente e escuta. -
"Maurizius?" - repetia, rebuscando na memória. Passou lentamente a mão gorda e branca
sobre a fronte e, de repente, aproximou-se ainda mais de Etzel, tirou os óculos e olhou-o
fixamente com uma curiosidade cheia de surpresa. Pela primeira vez, Etzel via seus olhos,
dois olhos incolores como a água, extintos, quase mortos. 
CAPíTULO 9

A GENERALA recebera de Sofia Andergast uma carta que a obrigara a lhe dar
imediatamente a seguinte resposta: 
"Querida Sofia, 
é muito bom mesmo que você venha. Aliás, você não tem
necessidade de pedir minha opinião e também não tenho
conselhos a lhe dar. Considero sua decisão tão legítima que
convido você a se hospedar em minha casa e ficarei contente
se aceitar. Espero que ainda não esteja a caminho e que estas
linhas cheguem às suas mãos. Quem melhor do que eu
compreenderia seu desespero? Não me encontro eu mesma,
desde que o menino partiu, em um estado lastimável?
Conversaremos sobre o que deverá fazer; é verdade que você
não poderá esperar grande auxílio de minha parte, pois sou
uma velha inútil e não é apenas isso que tolhe a liberdade de
meus movimentos. Seu filho é o filho do meu, voilà
tout 2. Mas desta vez, Sofia, estou e estarei com você até o
limite último de minhas forças e de minha coragem.
Naturalmente, tremo ao pensar num encontro entre você e
Wolf. Mas é preciso que se realize. Você tem razão. É preciso
que ele se explique, a isso é obrigado, diante de Deus e dos
homens. Você tem o direito de reclamar seu filho. Ainda que
ele, infelizmente, não possa dizer onde Etzel se encontra,
deverá reconhecer-se responsável de que as coisas se tenham
agravado a ponto de ignorar o lugar em que o filho está. Seus
amigos não informaram mal a você: ninguém sabe onde está o
nosso garoto. Oh! Deus! não durmo mais à noite, quebro a
cabeça de tanto pensar na causa e no lugar desse exílio. Sua
carta destruiu em mim uma suprema e absurda esperança, a
de que se tivesse refugiado junto a você. Nesses últimos
tempos, Etzel sempre falava em você, mas como eu não tinha
o direito de ouvir, que acontecia? Isso: não falou mais em você.
Foi somente então que senti que me tornava inútil, sem
nenhuma serventia no mundo. Oh! não envelhecer, ou se isso
é impossível, pelo menos não ser velho! Depois de tudo isso,
você se espantará mais ainda com esta carta. Mas que você, a
mãe, tenha tido que saber por estranhos — chame, se você
quiser, àqueles estranhos de amigos, apesar de tudo, serão
sempre estranhos — que você tenha sabido por estranhos que
o seu filho havia abandonado o pai, sem ser encontrado, eis a
gota que fez entornar o cálice. Wolf quis ignorar as três cartas
que você lhe enviou nesses últimos meses; isso, a rigor, ainda
eu compreenderia, mas não informar a você ou pelo menos
não mandar o procurador escrever contando o que se passou,
o que diz respeito a você tanto quanto a ele, ou talvez mais
ainda do que a ele, isso positivamente é demais.
Conseqüências... Vocês concluem demais, conclusões ridículas,
vocês todas que são muito jovens; aliás, você também, e há
em você uma porção de coisas que não compreendo; mas, não
quero me estender em conversas, pelo menos no papel. Você
me explicará tudo, talvez. Há nove anos que não a vejo, minha
querida Sofia, ou dez, quem sabe. Será possível? E não sei o
que aconteceu com você; mas, como mulher, está agora mais
próxima de mim do que antigamente; creio que nos
compreenderemos, sem muitas frases e sem grandes frases.
Não dou muita importância às palavras, mas sim às pessoas,
na proporção em que são humanas. Envio mil saudades.
Afetuosamente. - 
Cecília Andergast".
Para não ser acusada de conspirar atrás das costas do filho, a generala julgou necessário
informá-lo dessa correspondência. Ela o fez numa carta que era bastante mais resumida do
que a dirigida à sua antiga nora, e acrescentou que Sofia chegaria no dia seguinte ou no
outro, hospedando-se em sua casa. Isso foi para o barão Andergast um golpe inesperado
que revelou violentamente toda a inutilidade das medidas tomadas durante tantos anos.
Encontrou a carta de sua mãe à tarde sobre sua secretária. Leu-a, dobrou-a, deixou-a em
cima da mesa. Releu-a e tornou a lê-la. Rasgou-a em quatro pedaços e jogou-os no cesto de
papéis; dez minutos após, recolheu os pedaços, atirou-os na lareira, acendeu o fogo e
contemplou-os se queimarem. Em seguida, pôs-se a andar de um lado para outro; depois,
pegou o telefone, pediu ligação para o foro, chamou o diretor Guenzbourg ao aparelho e
encarregou-o de informar imediatamente o administrador da prisão de Kressa que o
procurador iria no dia seguinte, pela manhã, à prisão. Houve uma relação de causa e efeito
entre a carta tão cuidadosamente destruída e essa decisão oficial? É permitido supor que
sim. Mas o barão Andergast não havia absolutamente fixado o dia da entrevista que se
propunha ter com o prisioneiro Maurizius. Se essa colocação em posição de defesa, de que
dava a prova sensível a si próprio mudando de lugar, não era uma fuga diante de Sofia,
podia perfeitamente ser o símbolo de uma outra fuga. Pelo menos, não estar presente
quando ela chegasse! Porque, esquivar-se, sabia bem que não poderia conseguir. Dessa
vez, teria de comparecer. 
 II 

 Kressa se ergue bem alto por entre colinas cobertas de mata, sob o aspecto de um antigo
solar, residência hereditária de uma família real. O fato de os povos deterem, para fazê-la
sofrer uma clausura expiatória, a escória da humanidade no mesmo lugar que foi o berço
de seus príncipes, poderia fornecer motivo para alguma lúgubre e maravilhosa balada
sobre o caráter efêmero dos esplendores terrestres. O automóvel do barão Andergast sabe,
com o motor crepitante e fumegando, a íngreme ladeira até o pavilhão recentemente
construído. O administrador Pauli espera no portão. É um homem pálido, delgado, com
mais ou menos trinta anos, de óculos e com um pequeno bigode louro, antigamente
preceptor em Kressa. Recebe o procurador e o conduz para seu escritório, à esquerda; é
uma sala de um asseio meticuloso, a meio caminho entre o pequeno salão burguês, com
suas capas sobre o sofá, cadeiras e fotografias nas paredes, e a sala da administração com
seus classificadores, secretária, telefone, aparelhos de sinalização. Junto à mesa, está
sentado um secretário, detento privilegiado em quem a presença daquele visitante ilustre
provoca visivelmente uma agitação febril; seus olhos estão como que vidrados, suas mãos
que ordenam os papéis apresentam movimentos descontrolados. O barão Andergast se
senta e, com um simples movimento de mão, convida Pauli para fazer seu relatório. Dirige-
lhe um "Senhor Administrador" em tom seco e polido. Pauli declara que, depois da última
tentativa de evasão que se verificara dez dias antes, a calma reina no estabelecimento, e
que, de qualquer modo, não há motivo para nenhuma queixa especial. O barão Andergast
pede alguns detalhes sobre a evasão que fracassou graças à vigilância do posto noturno da
galeria superior. A fisionomia exangue do administrador cora fracamente à lembrança de
um fato entristecedor e humilhante, à ideia da má impressão causada aos senhores da
administração penitenciária e, finalmente, ao pensamento de que nunca se está seguro de
que aquilo não se repetirá. Não há senão uma coisa pior e cujas conseqüências sejam mais
desastrosas: é a rebelião declarada. Já se passou por isso. Parece inelutável. Após dois ou
três meses de calma, regularmente se acumulam nuvens que se desfazem em catástrofe.
Faz-se pelos homens tudo o que é possível, têm uma nutrição decente, um número de
horas suficiente para dormir, seus ofícios religiosos, suas recreações; é-se delicado com
eles, procura-se abrandar-lhes o tratamento na medida do possível. Nada vêem, não
cessam de conspirar e tramar. Lê-se tudo aquilo na fisionomia do jovem administrador,
enquanto relata a última tentativa de evasão, história incolor e melancólica, cujo único fato
notável é que indivíduos - os do dormitório n.° 12 - tenham conseguido, em duas horas de
trabalho noturno, perfurar sem ruído um muro de setenta e cinco centímetros de
espessura, nele praticando um orifício pelo qual podiam facilmente passar, e descer, os
cinco, de uma altura de vinte e três metros, ao longo de cordas de ráfia que haviam
subtraído aos poucos das salas de trabalho e escondido no dormitório. Como e onde? Isso
permanece incompreensível. - "Tentativa insensata, desesperada" - diz o administrador
com a sua voz grave - triste e de olhos abaixados - "pois, a partir de lá, tinham trinta metros
para descer e as cordas não eram suficientemente compridas; deveriam saltar os últimos
sete metros. Era uma legítima loucura."
 "E fora isso?" - pergunta o barão Andergast com precaução, como para poupar a
suscetibilidade do administrador - "Se minhas informações são exatas, deve haver alguns
cabeças nisso," - "Sim, certamente" - concorda Pauli com resignação - "há antes de tudo,
Hiss, o assassino, do brigadeiro de polícia Jaenisch, o senhor barão se lembra sem dúvida
do caso: agressão noturna na rua. Tem-nos dado muito trabalho, não há meio de domá-lo e
submetê-lo ao regulamento. Há já seis semanas que está aqui e diariamente apresenta
uma queixa sem fundamento; permaneceu três meses em Dietz, onde redigiu
requerimento sobre requerimento: queria partir, não agüentava mais; finalmente foi
transferido para Kressa e agora quer voltar para Dietz. Tem uma doentia aversão ao
trabalho, seu único desejo é escrever: quer narrar sua vida e, assim, fornecer a prova de sua
inocência, isto é: estabelecer que não cometeu homicídio, mas que, por culpa de seu pai,
um bruto e um bêbado inveterado que o engendrou na embriaguez, caíra numa extrema
miséria - que, naquela noite de inverno, mendigou cigarros ao brigadeiro, que então meteu
a mão no bolso para sacar do revólver; então ele, Hiss, com medo de ser morto, atirou. Não
se podia, na verdade chamar a isso assassinato; não era por isso que devia permanecer
prisioneiro toda a sua vida. Encontrava-se em caso de legítima defesa. - "Infelizmente" -
continua Pauli meneando a cabeça - um advogado de Aschaffenbourg se interessou pela
causa desse mentiroso e simulador como por uma causa justa, e desde então solicita sem
cessar entrevistas com seu cliente e inunda a Côrte com pedidos de revisão. O senhor o
verá, senhor barão" - concluiu o administrador. - "Nós lhe concedemos, há três dias, a célula
individual que solicitou para poder escrever; demos papel, pena e tinta, mas, até essa hora,
ainda não escreveu uma única palavra. Eis o homem..." Olhou para o secretário que,
compreendendo imediatamente, tirou um caderno azul de uma gaveta, e entregou-o a
Pauli. Sobre a etiqueta oval lia-se: - "Memórias de minha juventude." - "Ele redigiu isto em
Dietz." - disse o administrador, entregando o caderno ao barão Andergast que o abriu e o
folheou um momento. Pela letra fácil e corredia, reconhecia-se o empregado de comércio; o
estilo apresentava, alternadamente, grandiloqüência insuportável e lamuriante, e
suficiência fanfarrã. A cada três palavras, havia um erro de ortografia ou de gramática, mas
a despeito disso uma precisão extraordinária em uma multidão de detalhes não
desprovidos de interesse. - "Sim, eles tomam suas próprias pessoas muito a sério, e a nós
muito superficialmente — disse o barão, deixando o caderno e se levantando. - "Eu queria,
senhor administrador, fazer uma inspeção no estabelecimento e, esta tarde, às três horas,
ter uma entrevista particular com o detento Maurizius." Pauli se inclinou e chamou o chefe
da guarda. - "Como se comporta esse homem?" - perguntou o barão Andergast num tom
indiferente, a mão direita já sobre a maçaneta da porta. Pauli sorriu levantando as
sobrancelhas. - "Oh!" - respondeu - "se todos fossem como ele, senhor Barão, teríamos uma
vida fácil." O chefe da guarda entrou. Era um velho de aparência florescente, com
fisionomia amável e inteligente. 
 III 

 Uma grade de ferro se abre, chega-se a um pátio triste, limitado por paredes que
parecem subir até o céu. O chefe da guarda marcha na frente, seguem-no o barão
Andergast e o administrador; dois vigias, usando uniforme, encerram o cortejo. O pátio está
bem varrido, em toda parte nota-se uma ordem que, talvez, não seja a de todos os dias. O
barão Andergast sabe naturalmente o que significam essas visitas anunciadas: quando se
as espera, todos os braços e todas as pernas se põem em movimento para que ninguém
mereça censura e, se alguma coisa falha, espera-se obter indulgência, acentuando que é o
resultado de um hábito generalizado ou de falta de créditos; mas, sabe também que os
funcionários são fiéis aos seus deveres e fazem frente às obrigações de sua rude tarefa com
inteligência e resignação. Já não é mais como antigamente, num passado ainda não muito
distante, quando as penitenciárias tinham a reputação de serem infernos de cujo horror
não se ousava falar senão em voz baixa e a medo, os diretores sendo tiranos irresponsáveis
e os guardas auxiliares de carrascos. Estamos agora em uma nação civilizada e a expiação
da pena é regulada segundo princípios humanitários, excessivamente humanitários, talvez.
Além disso, Kressa desfruta, sob este ponto de vista, de um renome particularmente
favorável. 
 Entretanto, o barão Andergast não veio para fazer uma inspeção regulamentar. Serviu-se
de um pretexto oficial para dissimular, tanto quanto possível, sua verdadeira intenção. Não
deseja que se diga que o procurador-geral veio ver Leonardo Maurizius, que se ocupa
abertamente do processo, que há qualquer coisa pairando no ar. Deseja que não se fale
nisso. Não, não há nada no ar, podem estar tranqüilos. É assim que o pretexto se torna
realização conscienciosa de uma outra necessidade. 
 Os cinco homens sobem em silêncio uma escada de madeira íngreme e em caracol, o
chefe da guarda abre uma porta de ferro, percorrem um longo corredor quase circular,
arejado por pequenas janelas gradeadas em forma de seteiras; as chaves do chefe da
guarda tilintam mais uma vez, uma segunda porta de ferro se abre, penetram todos numa
das salas de trabalho. O barão tira involuntàriamente o lenço e leva-o ao nariz. Sente cheiro
de feras enjauladas. Conhece bem esse cheiro. Quando ainda era principiante,
experimentava antecipadamente verdadeiras angústias porque aquele odor quase o fazia
perder os sentidos. Rescende a roupas sordidas, a cola velha requentada, a gordura
rançosa, a paredes mofadas, a suor e hálito fétidos. Nesse dia, o vento sopra com rigor; nas
três salas, as janelas estão fechadas. Aproximadamente cento e cinqüenta homens, de
todas as idades, vão e vêm dentro das salas. Trançam esteiras de palha, torcem cordas,
alguns são sapateiros, outros trabalham em bancos de carpinteiro. Apenas avista o
administrador, um homem todo encarquilhado se aproxima dele com passo arrastado e
ares misteriosos; puxa-o pela manga e segreda-lhe ao ouvido que tudo permanece na
mesma: o verme roedor continua a lhe verrumar o cérebro, seus sofrimentos aumentam de
dia para dia. O administrador finge tomar a sério suas queixas e troca com o chefe da
guarda, que sacode os ombros, um olhar significativo. Não há dúvida, o homem simula; no
entanto cai num estado de superexcitação perigosa, se não lhe dão crédito ou se o
repreendem. Talvez tenha inventado essa ideia do verme roedor exclusivamente para
chamar a atenção e tornar-se interessante a seus próprios olhos. O chefe da guarda chama
um certo Buschfeld que, pela manhã, cometera um ato de indisciplina e pede-lhe
explicações, em voz baixa e delicadamente, apelando para o seu bom-senso. Por ocasião da
revolução de 1918, em Darmstadt, Buschfeld esbofeteou o general Winkler, depois o
matou, únicamente por ele ser general. É, aliás, um homem inofensivo e em nada
detestável; quase como uma criança, à qual se repreende por reincidência; tem,
justificando-se, um sorriso estranho, metade confuso, metade irônico, enquanto seus
dentes, grandes e magníficos, brilham em sua fisionomia bem delineada, de queixo
saliente e longos fios de barba. O barão Andergast se aproxima e ouve. Como todos aqueles
que ali estão, desde que se lhe permite abrir a boca, Buschfeld começa, ao fim de três
frases, a falar de seu crime e da sua condenação, e demonstra sua inocência a força de
argumentos evidentemente meditados com cuidado. A vista do público que o rodeia
inflama-o; descreve a situação, explica o mal-entendido do qual foi vítima. Sorri sem cessar
com seus dentes grandes e magníficos. E o barão Andergast observa seus grandes olhos cor
de avelã. Há nestes olhos uma avidez irrefreável, gulosa e que se torna alucinada, ao mais
leve toque, por essa simples ideia: "fora". Quando diz "fora", entende por essa palavra o
mundo, a vida, a liberdade, a árvore, a praia, a mulher, o céu, o cabaré, coisas deliciosas
cuja evocação complexa o incendeia. Esse senhor estranho que aí está diante dele vem de
"fora"; por conseguinte, traz um nimbo, um perfume embriagante, um não sei que onde
existem todas as possibilidades. Olha-o fixamente e parece interrogar com assombro: -
"Como, você vem de "fora", vai voltar e não está louco de felicidade?" Todos eles têm, cada
um a tem nos olhos, essa ideia de "fora", essa ideia alucinante, devoradora. É coisa
diferente de um desejo, é mais, muito mais, ultrapassa o desejo, é maior, mais sombria,
mais estelar que todas as outras nostalgias da terra. Há olhos nos quais está quase extinta,
muito tempo já se escoou, o espírito deixou fugir as imagens que fazem em torno um
murmúrio de folhas mortas: o homem também está seco. Estamos diante de um ser de
cinqüenta anos com um colar de barba preta como tinta ao redor da sua face lívida, figura
perfeita de carvoeiro. Há nove anos que ali está. Matou o patrão porque este lhe retinha os
dois mil marcos que tinha economizado durante numerosos anos de trabalho e que, em
toda confiança, havia depositado em sua casa. Quando perguntam, narra sua história num
dialeto renano; seu peito se eleva, respira profundamente, revê a intolerável iniqüidade
como num longínquo eco que o faz vibrar e fremir até o mais profundo de si mesmo: tendo
necessidade do dinheiro, reclamou-o uma vez, duas vezes, cinco vezes; o patrão se furtou
sempre a atendê-lo, esquivou-se, iludiu-o com falsas esperanças e o homem acabou por se
convencer que o dinheiro havia desaparecido. - "Que fazer então? Com quem contar? Não
seria com Deus, nem com os juízes. Nada mais resta senão matar, sem o que o coração se
rói a si mesmo." Alma desorientada, alma extraviada, alma triturada. Schergentz trabalha
ao lado dele; tem vinte e cinco anos, é um incendiário; não se soube nunca por que se
tornara criminoso; era bom filho, trabalhador; uma noite, toca fogo na granja do vizinho,
três pessoas morrem queimadas. Por quê? Ninguém sabe. Desde o momento de sua prisão,
jamais pronunciou uma só palavra; pai, mãe, testemunhas, policiais, juízes, defensores,
jurados, todos se esforçaram em vão, sem obter uma só palavra; permaneceu em silêncio.
Dormindo, não fala; quando está só, também não. O administrador tenta ainda agora
convencê-lo; lê-se no rosto do chefe da guarda e dos vigias que consideram vã a tentativa.
O barão Andergast põe pesadamente a mão sobre seu ombro e, penetrando com seus olhos
violeta os olhos do prisioneiro, onde a obstinação aviva a sua chama, diz: - "Homem, o que
quer isso dizer? Não adianta nada a você. É, por causa de quem, então?" Mas, seus lábios
estão trancados. Um agente do serviço de espionagem emitiu meses antes a seguinte
opinião: - "No primeiro minuto da sua libertação, ele falará; mas antes, não". E é assim que
suas mãos realizam a tarefa habitual, enquanto seus olhos, lugubremente fechados e
mudos também, passam diante daqueles homens sem os ver. Impossível maior contraste
do que o existente entre ele e seu vizinho, o jovem envenenador. Com arsênico, livrou-se do
pai de sua noiva que quisera impedir seu casamento e se recusava a dar o dote da filha.
Membros, articulações, músculos, lábios, fronte, tudo freme nele num movimento
convulsivo; sua face se enrubesce e se congestiona quando qualifica de inconcebível
injustiça a sentença que o condenou, e afirma que nada ficou provado, que jamais teve má
intenção, que as testemunhas eram seus inimigos e os juízes estavam de partido tomado
contra ele. Alega os depoimentos dos peritos-químicos, do farmacêutico; tudo aquilo é
falso, é calúnia; silenciaram tal coisa, inventaram tal outra; tudo isso, para comprometê-lo,
para poderem condená-lo. "Por quê? - pergunta secamente o barão Andergast. O jovem
sacode os ombros com violência. Era uma conspiração universal. Suas últimas palavras se
atropelam umas às outras, enquanto trança precipitadamente e bate a esteira com um
martelo chato; a ponta da língua umedece os lábios, os olhos permanecem abaixados; é a
mentira personificada. Mas, como é miserável essa mentira, como é assustada e medrosa,
como é transparente e débil! O corpo não obedece mais à vontade, senão em aparência; é
um mecanismo destruído, uma máquina cujas rodas estão enferrujadas, de tubuluras
quebradas e, se respira, se agarra os objetos, engole e digere, trata-se duma ilusão de
ótica. Na terceira sala existe um velho de sessenta a sessenta e cinco anos - ele mesmo não
sabe ao certo sua idade; passou trinta e três anos no estabelecimento, salvo pequenas
interrupções; tipo clássico do reincidente. Há onze anos que o trouxeram pela última vez.
Tem o aspecto de um vagabundo, simpático, com sua barbicha encanecida, sua
corpulência, sua pequena cabeça redonda, seu pequeno nariz arrebitado, sua pequena
boca, sua pequena fronte convexa. O barão lhe pergunta o que fez de condenável. Sorri
tranqüilamente: - "Oh! um roubinho de nada" - e experimenta o corte da sua plaina com o
dedo. - "Mas Kaesbaocher" - objeta o chefe da guarda em tom de censura - "não teriam
condenado você a onze anos por isso." - "Certamente que não" - concede o velho. - "Havia
ainda uma pequena questão de costumes no meio". - "Ah! ... E você está contente com o
regime?" - pergunta o barão Andergast. - "Oh! quanto a isso, sim! Não há de que se
queixar, agora que é moda ter ideias humanitárias, tem-se tudo que é bom em estabe-
lecimentos como este." Aliás, é uma bela coisa o humanitarismo. Faltava apenas na prisão
um pouco mais de banha. Isso às vezes falta, a banha, ele é obrigado a confessar. Depois,
batendo lânguidamente as pálpebras: "Em 23 de maio farei anos." - "Ah! e que desejará
você então?" E o chefe da guarda diz com a ironia de um homem bem informado: - "Aposto
que é um chouriço que você queria?" - "Justamente, chouriço; sou louco por isso." E o
pensamento do chouriço embeleza seu velho rosto encolhido de delinqüente, como o
crepúsculo embeleza o de uma moça sentimental. Para aquele, o "fora" nem mesmo existe
mais. 
 IV   

 Sobe-se mais um andar para chegar às celas individuais. O barão Andergast não deseja
ver senão espécimes típicos. Na primeira cela que tem a forma de uma guarita, está um
assassino, criminoso por ciúme, um homem de estatura alta, de traços melancólicos,
tuberculoso de primeiro grau. Olham pela fresta: está sentado diante da sua mesa,
profundamente absorto: quando a porta se abre, levanta-se de um salto e empertiga-se
militarmente; chamam àquilo boa conduta e, por isso, é tido em muito boa conta. Um
fantoche que sabe esconder seu desespero interior até à extinção total de sua
personalidade. O chefe da guarda, fechando novamente a porta de ferro, emite essa
informação perfeitamente objetiva: - "Freqüentemente, à noite, ouvem-no suspirar durante
horas seguidas." Passemos ao caso seguinte: um homem, um gigante, acusado de
inúmeras violências e que participara da tentativa de evasão de outubro último. Conseguira
obter uma barra de ferro com a qual queria esmagar o guarda ao se dirigir para o banho;
seria o sinal para os conjurados. Mas aconteceu que, naquele dia, - guarda de serviço era
justamente o que lhe havia, muito tempo antes, passado tabaco de mascar em
contrabando. Por isso, não pode golpeá-lo, a barra de ferro caindo-lhe das mãos. Está de pé
contra o muro da cela e olha por entre as pálpebras. De sua janela, vê ao longe, no campo,
uma macieira em flor, isolada, destacar-se delicada e longínqua; aí permanece, apoiado à
parede, do meio-dia até o cair da noite, sem se mover, contemplando a macieira distante.
Quando o guarda abre a porta, não faz senão um movimento de cabeça, como se estivesse
embriagado de sono, e seus olhos piscam. Enquanto esteve "fora", não conheceu
semelhantes emoções: o que representava para ele então uma macieira em flor? Não
prestava a menor atenção e, atualmente, transformou-se em qualquer coisa de imenso; é o
símbolo de tudo aquilo de que está privado e de tudo que deixou escapar, exatamente
como também o é, para seu vizinho de cela, o cenário que lhe permitiram conservar. Foi
condenado à perpetuidade porque matou, e depois despedaçou, uma menina de oito anos;
mas, ama tanto seu canário que seus olhos se enchem de lágrimas quando o contempla. As
paredes de sua cela são ornamentadas com fotografias de toda espécie, ilustrações de
jornais, uma pequena madona colorida - favores esses que lhe foram concedidos pela sua
boa-conduta. Cada uma dessas coisas fala-lhe ao coração; pode permanecer horas em
contemplação diante de cada uma delas. Saúda os visitantes com um sorriso de criança
que não deixa de ser inquietante; por mais natural e sedutor que pareça esse sorriso,
lembra as divagações dum febricitante. Tem um lenço amarrado na cabeça; - administrador
lhe pergunta o que sente; responde gracejando que, naquela noite, fora à quermesse de
Kressa, e ri. Encosta seus lábios à grade da gaiola e atrai o pássaro; o canário é bem
adestrado, ele o ensinou a lhe dar beijos; aproxima-se, adejando, e passa seu bico entre os
lábios do assassino. Sentimo-nos transportados para uma cena estúpidamente sentimental
de romance-folhetim cuja finalidade é focalizar o lado humano de criminosos os mais
abjetos, o pouco que talvez subsista neles da indelével marca divina. Mas como é horrível,
como tudo isso é intraduzível! Será possível que Deus o compreenda? 
 Chegam aos dormitórios. O administrador mostra ao barão Andergast a janela pela qual
dois detentos se evadiram há dezoito meses, o terceiro permanecendo seguro entre os
barrotes; já havia passado a cabeça, o peito, os braços, mas ficou retido pelos quadris; seus
companheiros de alojamento não conseguiram desprendê-lo e assim, de meia-noite até de
manhã, ficou, com o corpo nu untado de graxa, suspenso sobre o abismo e gemendo em
suas torturas. Os outros dois tinham corrido, nus, através do frio do inverno pela estrada;
penetraram numa casa de campo desabitada, supriram-se de roupas e desapareceram. O
administrador, medindo com a mão o intervalo entre os barrotes, declara que permaneceu
sempre um enigma para saber como um adulto pode comprimir-se tanto a ponto de
conseguir passar por ali, quando um gato só pode fazer o mesmo com grande dificuldade.
O barão Andergast faz essa observação: - "Parece que o instinto de liberdade empresta a
esses indivíduos capacidades sobre-humanas." O administrador e o chefe da guarda
aprovam em silêncio, mas o barão percebe o que suas palavras têm de banal e
insignificante; desde que está naquela casa, tem a dolorosa impressão de não estar à altura
da situação; não se lembra de jamais ter-se sentido tão pouco seguro. Aliás, isso se vê pela
sua palidez, pelo seu passo incerto; caminha pesadamente, como se tivesse chumbo nos
ossos. Quarenta leitos numa sala, sessenta na sala vizinha, e de súbito vê esses leitos, esses
leitos conjugados e superpostos; percebe tudo isso num relance e diz com voz surda, onde
ruge o descontentamento, que essa disposição é intolerável. Os dois vigias riem
furtivamente, os traços do chefe da guarda, marcado por uma gravidade viril, denotam
uma inquietude baseada sobre a experiência, e o administrador murmura: - "É um foco de
infecção." Também essa frase irrita o barão Andergast pela sua banalidade. Seu rosto se
ruboriza como se a cólera subisse nele, lança ainda um olhar sobre os leitos vazios
superpostos, tocado por uma visão de horror que o sentimento de sua dolorosa
insuficiência exaspera a ponto de julgá-la responsável; com a mão, tapa os olhos, e não
quer mais ver esses leitos que lhe apresentam o homem sob o aspecto repugnante de uma
mucosidade nojenta entumescida pela perfídia e pela volúpia, o interior do peito como
porção limitada de trevas com um músculo palpitante no centro, que, por um artifício vão e
frívolo, os poetas e os místicos consideraram sempre como o receptáculo de todas as
virtudes. Exemplum docet, pensa o barão, entrando na cela do temível Hiss; não se tem
necessidade de abri-la, porquanto o capelão do estabelecimento lá está, e um guarda,
ainda moço, de fisionomia brutal, roída de eczemas, monta guarda à porta. O médico de
almas saúda o barão Andergast. Com seu rosto curtido e sua cabeleira branca,
assemelhava-se a um pescador norueguês. Mas, nele, como na maior parte de seus
semelhantes, são enganadoras as aparências de autoridade eclesiástica que colocam ao
redor de sua fronte um nimbo luminoso. Essa autoridade que outrora lhes deu todo o
prestígio, está atualmente quase esgotada, compenetraram-se de que não podem retirar
àquela montanha de desolação senão alguns grãos de areia e que, na galeria que cavam,
cada dia mais se enterram; cansaram, não têm mais fé alguma em sua missão e executam
suas funções como funcionários, porque o Estado os paga para isso. - "Um caso
desesperado" - murmura ele ao barão Andergast, designando o presidiário com um
movimento de ombros. E sobre seu rosto se espalha aquela expressão de desânimo que
sentiria um homem incitado a arrancar pela centésima vez da terra uma árvore com suas
raízes. Hiss aí está, de busto caído, a boca contraída num ríctus de maldade em sua
fisionomia verde-limão; a fronte retraída e coberta de gotículas de suor; seus olhos,
amarelos como os de uma pantera, estão fixos no pastor com uma expressão de
indescritível ódio e, quando o administrador lhe dirige a palavra para lhe perguntar se já
começou a escrever, seu olhar se volta para ele com a mesma expressão de insondável
ódio. - "Eu não pude" - rosna ele rispidamente. - "Como poderia escrever? Há um tipo aí ao
lado que não para de urrar na sua jaula, é de se perder a cabeça..." O olhar de ódio desliza
pelas fisionomias que o rodeiam, as costas se encurvam mais; a pantera brutal e perigosa
pode, de um momento para outro, surgir nesse ser que de humano quase mais nada
possui. O barão involuntariamente recua um passo, sai da cela sem dizer palavra. O
vigilante - já havia aberto a seguinte; o homem que a ocupa é o que "urra na sua jaula";
cumpre no momento uma pena disciplinar. Está encerrado por três dias numa jaula de
forro, acocorado na semi- obscuridade; sacode de quando em quando as grades como um
gorila e urra do um modo plangente como uma vaca que chama seu bezerro, que é
conduzido ao matadouro. O chefe da guarda lhe grita em tom severo: - "Lorschman, se
você não ficar quieto, não terá comida amanhã." A isso responde um barulho semelhante a
um rangido que vem do corpo do encarcerado, como se tivesse entranhas de ferro velho.
Aqui o "homem" é totalmente aniquilado; o "homem", cuja grandeza celebram até no seu
aspecto externo, não é mais do que uma caricatura. O barão Andergast está em pé, na
porta da cela, como se ele próprio fosse prisioneiro. Por que essas coisas são tão novas para
ele, tão horrorosamente incríveis? Haverá em seus olhos uma acuidade nova, ou talvez o
foco de luz da lanterna terá incidido sobre esse infernal cenário, como recentemente sobre
o cérebro do personagem aparecido no espelho do quarto de Violeta? 

 São três horas. O barão Andergast almoçou no restaurante de Kressa, isto é: pagou uma
série de pratos e não tomou senão duas xícaras de café simples. Abrem a cela do detento
357 e aferrolham-na em seguida. Um homem, sentado próximo duma mesa, levanta-se
com a rapidez que exige o estabelecimento e a qual adestra seus habitantes; permanece
de pé e espera em silêncio. Sua cabeça talvez batesse no ombro do barão Andergast; o
uniforme cinzento dos detentos é grande demais para seu corpo mirrado. Sua atitude é
correta, sua cabeça não está curvada. A cor cinza de sua tez quase não se distingue do
cinza do uniforme; sobre uma fronte elevada, assentam-se cabelos compridos e brancos
como neve. A cela possui cinco lados e contém um leito de ferro, uma prateleira com
alguns livros. A janela dá para o pátio; lá embaixo, cinqüenta detentos marcham
silenciosamente em círculo. É o passeio regulamentar. Não há espaço para mais que
cinquenta no pátio. São necessárias cinco horas para que oito equipes façam o passeio
cotidiano. Ouve-se subir o ruído dos passos que se arrastam sobre as lajes: acreditar-se-ia
ouvir o vento que passa sobre velas soltas e as faz esvoaçar.
 - "O senhor, sem dúvida, não se lembra mais de mim" - começa em tom convencional o
barão Andergast. Sua intenção não parece ser a de tornar a ligar o presente ao passado,
nem a de sondar um estado de espírito. Com o mesmo formalismo, declina seu nome e sua
posição. Maurizius, que até então não se moveu, levanta um pouco o queixo como se
acabasse de receber um golpe. Como tem as costas voltadas para a janela, não se pode
distinguir a expressão de seus olhos, que sobressaem como dois círculos negros no rosto
alongado. O barão se senta na cadeira e espera que Maurizius, porque a isso ele convida
com um gesto de mão, tome lugar sobre o leito. este hesita, entretanto. Por que merece
essa distinção? pergunta numa fala pegajosa, da qual, compreende-se logo, não faz uso
com freqüência. O barão Andergast está sentado, inclinado para a frente, as mãos cruzadas
entre os joelhos. Seus olhos violeta recuperaram o ardor e seu brilho. - "Isso não se pode
explicar numa só frase."" Repete o gesto para convidar o outro a sentar-se e junta as mãos
novamente. Silêncio. Então o barão Andergast, os olhos fixos no chão, diz que é preciso
tomar bem nota que a sua visita não tem cunho oficial, que lhe foi ditada por considerações
pessoais. Maurizius se senta enfim no leito, cauteloso, como que disposto a não perder uma
só sílaba. Agora que a luz do dia o ilumina em cheio, sua fisionomia tem um ar espectral.
Poder-se-ia crer que é sangue branco o que corre em suas veias; o nariz é achatado, a boca,
de um corte encantador, quase graciosa, está severamente contraída. Os olhos não são
mais círculos negros, mas escuros, cor de café, e têm uma expressão suave, persistente e
sem alegria.
 - "Considerações pessoais. De que espécie?" O barão Andergast concentra toda sua
atenção sobre a unha do polegar da mão direita. Depois, com um bater de pálpebras que
exprime uma sinceridade infantil (em verdade, por mais impressionado que esteja, é o
mesmo movimento de pálpebras de Etzel) , diz que se trata de medidas eventuais. E
Maurizius, fracamente interessado, fala: - "Medidas de que ordem?" Quase não é possível
equivocar-se; teria Maurizius renunciado a qualquer esperança? Levanta lentamente a mão,
coloca-a sobre a cabeça branca, e nesse gesto, é o velho Maurizius que se apresenta diante
do barão, tal como o viu diante de si, a mão sobre o alto da cabeça. Que mistério, a
hereditariedade! O que a natureza transmitiu em matéria de particularidades exteriores do
pai ao filho é muitas vezes mais convincente e mais legítimo do que as particularidades
morais. Maurizius responde com hesitação, ainda que com energia, que jamais, em
qualquer momento, em qualquer circunstância, havia abandonado a ideia de uma
reabilitação. O barão Andergast faz girar seus dois dedos indicadores um ao redor do outro.
Reabilitação? Não se pode pensar nisso; em todo caso era uma possibilidade bastante
remota. Essa possibilidade, ainda que existisse, não poderia ter provocado aquela
entrevista; era preciso, esclareceu ele, encarar a situação em sua realidade e para isso não
havia senão um caminho. E esse caminho não era praticável, senão mediante uma
determinada condição que a ele estava presa como a linha ao anzol. - "Eu compreendo" -
disse Maurizius. - "Penso que nós nos compreendemos" - disse o barão. Seguiu-se um
silêncio.
 - "Eis aqui, mais uma vez, uma tentativa destinada ao fracasso" - observa Maurizius com
sua voz não exercitada e, com as sobrancelhas contraídas, olha seus joelhos. - "Desde que
estou nesta casa, muitos já experimentaram; empenhavam todos os seus esforços em
atingir esse único fim: diretores - porque o fato de termos um administrador é novidade -
quatro diretores (entre os quais um antigo coronel), depois os senhores da administração
penitenciária, depois houve também alguém do Ministério que velo diversas vezes e,
naturalmente, os sacerdotes. O pastor Porschitzky que temos no momento é o sétimo que
vem ver-me (conta na memória); sim, o sétimo. Houve um, não sei mais se o terceiro ou o
quarto, que se chamava Meinnetshagen e que permaneceu dois dias e duas noites sem sair
da minha cela. No mesmo tempo e com menos esforços, poderia ter convertido toda uma
aldeia de negros. No fim, parecia que me haviam triturado o crânio a marteladas. Então, eu
lhe disse no meu desespero - nessa época, eu ainda era capaz de me desesperar por coisa
desse gênero - "Senhor pastor, quando Moisés fez brotar água do rochedo, praticou um
milagre. O senhor quer também fazer um milagre comigo, mas o que está querendo fazer
sair de mim, por magia, é preciso antes que o senhor faça entrar em mim, por magia. Como
poderá um homem confessar um ato que nunca cometeu?" Então, ele renunciou, mas a
partir desse dia deixei de existir para ele. Não me acreditou. Ninguém me acredita." 
 A fisionomia do barão Andergast exprime um pesar pouco enfático. Não quer deixar
transparecer que também ele não acredita, mas Maurizius sabe muito bem que não crê. É
possível entender-se com ele provisòriamente, concedendo-lhe uma atenção polida. Já é
muito que tenha por si mesmo abordado aquele assunto. Não se deve por preço algum
perturbá-lo em suas efusões. O barão Andergast sabe que o mais leve impulso, dado a
indivíduos condenados há anos à solidão, os faz cair, mesmo quando são acoroçoados a
falar apenas com o olhar, em uma expansão verdadeiramente automática. É um benefício
que os liberta, mesmo quando não se faz mais do que ouvi-los e eles não esperam réplicas
do interlocutor. Mas, dir-se-ia que Maurizius adivinha esse cálculo no seu visitante. - "É
possível que você saiba muitas coisas - parece dizer o frêmito fugidio da sua boca - mas o
que sabe desses longos, longos anos, que sabe do tempo? Que o tempo seja, no presente,
eis o que vocês não sabem; vocês sabem apenas que ele foi. O presente é, para vocês, um
esplêndido clarão entre duas trevas. Para mim, é feito de trevas sem fim, entre uma luz que
desapareceu por detrás do horizonte e uma outra cuja aurora eu aguardo. Uma expectativa
eterna, eterna, eis o meu presente; e enquanto tiver de esperar por ele, indefinidamente,
na incerteza, estarei no presente. Somente conhece o inferno quem, verdadeiramente,
sabe o que é o presente." Tais como as pálpebras de cera de um boneco, as pálpebras de
Maurizius se levantam; dir-se-ia que somente agora compreende quem está em sua frente,
que é o mesmo homem que, outrora, há muito tempo, o empurrou com uma energia
inumana e inexorável nesse abismo. "Como é possível que você ainda viva - parece
perguntar esse olhar que investiga para dentro, enquanto que com os seus dentes brancos,
extraordinàriamente pequenos, morde seu lábio superior - como é possível que você esteja
no meu presente com a sua inatualidade? É mais ou menos como se se tivesse diante de si
Átila ou Ivan, o Terrível, e que aqueles que estão "fora" pudessem participar dessa
imortalidade dos que conhecem o presente". Como o barão Andergast persiste em seu
silêncio convidativo, confiando num sortilégio do qual aprendera a conhecer o poder em
casos análogos (dir-se-ia que, até então, sua convicção pessoal não recebeu o mais leve
abalo e que não sente que ela está irremediàvelmente minada), Maurizius retoma sua
última frase, que lhe vem à boca: - "Não, ninguém acreditou" - diz ele falando consigo
mesmo - "foi bastante uma acusação para que me tornasse culpado. Eu tinha muitos
amigos então, podia chamá-los de amigos - sob o ponto de vista da minha vida naquela
ocasião eram amigos - mas no dia em que pesou sob meus ombros uma acusação, eles se
dispersaram como folhas ao vento. Voltei-me constantemente para eles, sem poder
compreender... tamanho abandono... No entanto, nunca lhes havia feito mal algum, não
traíra nenhum deles e pensava que não podiam deixar de me conhecer; cada um tem, por
assim dizer, o seu padrão moral, havíamos confessado tantas coisas uns aos outros,
nenhum recanto da alma ficara escondido, acreditava-se... e nenhum, nenhum, como se,
de repente, eu tivesse surgido sob um nome estranho... num outro mundo... - "O senhor
esquece alguém" - lembra o barão Andergast - "creio que seu pai jamais deixou de
acreditar." Não é de bom grado que se dedica a fazer uma observação que revela excessiva
familiaridade, mas primeiro ele se diz que está ali para dissimular; em seguida, seu
interlocutor começa a cativá-lo, há nele um misto de precisão e amplitude, de frieza e
ímpeto que se adivinha voluntàriamente represado, que força sua atenção e faz
desaparecer sua indiferença cheia de desconfiança. Maurizius faz um sinal com a cabeça,
apenas perceptível. - "Sim, é verdade" - responde - "meu pai, sim, o... mas, um pai... isso
não entra em consideração. Há uma diferença entre os laços do sangue e os outros laços.
De que um homem seja por nós, ninguém pode concluir que sejamos por ele. Um ser que é
nosso não pode ser culpado. Eli também teria..." Interrompe-se bruscamente, agita a
cabeça. Aquele "também" era por certo estranho, um estranho exemplo que deixa de
explicar. O barão tira sua cigarreira, estende-a aberta a Maurizius que apanha um cigarro
com ávida precipitação. O barão Andergast lhe dá fogo, acende um para si próprio, e
durante um momento os dois se observam, fumando em silêncio. O barão reflete com
esforço. Enfim, como se tivesse começado a ter dúvidas e esperasse ser posto numa pista,
lança a seguinte pergunta: - "Se me for preciso admitir que o senhor não atirou - note bem
que não devo admitir, procuro apenas colocar-me sob seu ponto de vista - quem então, na
sua opinião, poderia ter atirado?" Sobre seus lábios paira um sorriso amável, convidativo;
os olhos violeta têm uma expressão quase boa. Maurizius o fixa. Suas sobrancelhas se
elevam desdenhosamente, cavando sobre sua fronte um sulco profundo. Mais ou menos um
minuto e meio se escoa, durante o qual sua face se obscurece como em um acesso de
mudo furor. Será aquela pergunta, proferida milhares de vezes com o mesmo tom, com o
mesmo ceticismo, com o mesmo ar triunfante de juiz e carrasco, que o transforma daquele
modo? É pouco provável. Aprendeu a ter paciência. Conhece a paciência dos interrogadores
em face da qual seu coração se tornou endurecido e seu ouvido trancado. A pergunta não
atinge mais nada nele, não conseguiria fazer sair de seu refúgio nada do que aí se esconde,
nem dissolver nada do que aí se petrificou. Jamais responder, sob a pressão de não importa
que tortura moral ou física, jamais responder, nem com um olhar, nem com um suspiro,
nem com um gesto, é coisa resolvida há dezoito anos e sete meses. Os outros quebram os
dentes sobre esse granito. Mas não é isso que o transtorna, é a presença daquele homem.
De súbito, compreende: quem está sentado ali é seu adversário. A setenta e cinco
centímetros de ti, eis o homem que te amaldiçoou, que te perdeu, o homem
inumanamente inexorável; não um simples representante desse homem; muitos ali vieram:
não, ele próprio, em pessoa. "Fatalidade e encarnação do destino. Todo o "fora""
condensado em um único indivíduo, o mundo, a humanidade, o tribunal, o julgamento,
tudo o que padeceu, tudo aquilo em que pensou naquela cela, todo o eterno presente,
todas as noites de insônia, humilhações, privações, angústias, desesperos mortais, desejos
mortais, a cobiça da vida, a cobiça da carne, toda a presa da vida, tudo aquilo encarnado
num único homem. Estremece de horror por se sentir tão próximo dele, tão próximo que, às
vezes, vê-se aparecer, nas brumas de um pesadelo, um adversário nato. Ajustar contas com
ele, seria apaziguar um desejo inconscientemente mantido durante dezoito anos e meio.
Mas, é preciso acalmar-se primeiro. É preciso que não ressuscite nele o homem que era
antigamente. Percebe que não há pressa nesse caso, e diz tranqüilamente: - "Um juiz é
obrigado a me demonstrar a minha culpabilidade, mas que eu deva lhe demonstrar minha
inocência, se isso me é impossível, eis o que é contrário ao senso comum. Há nações que
compreenderam isso há muito tempo e por isso se tornaram grandes. A excelência de uma
nação é proporcional à excelência de sua justiça." 
VI

 O barão Andergast se levantou e foi à janela. Esmagando seu cigarro sobre o rebordo,
refletiu na maneira como devia comportar-se de então em diante. Sentia-se perturbado, e
mesmo um pouco atrapalhado. Com uma contrariedade bem representada, disse: - "Desse
modo, nada resolveremos; o senhor é obstinado; naturalmente, era de esperar. Não tenho
intenção de fazer concorrência aos pastores. Seria uma empresa absurda dado o ponto em
que as coisas estão. Conforme já lhe disse, minha visita não é oficial: portanto, não me
permito por em dúvida suas palavras; em caso contrário, poderia responder: uma ficção
com a qual se determinou viver é como um tirano que se recusa a ver e a compreender.
Mas, deixemos isso de lado. Estou considerando a possibilidade de um acordo entre nós."
Calou-se alguns segundos para sentir o efeito de suas palavras; Maurizius não se moveu e
não respondeu nada. Então o barão continuou e compreendia-se pelo som de sua voz que
estava bastante irritado: - "No concernente ao nosso processo, o senhor incide em erro,
como a maior parte dos leigos. A lei prescreve expressamente aos juízes fornecerem a
prova da culpabilidade. Cada um é considerado inocente enquanto sua culpabilidade não
ficar incontestàvelmente estabelecida. É um dos nossos princípios jurídicos fundamentais,
não há tribunal que não o observe." 
 Maurizius levantou ligeiramente a cabeça. Sua atitude e sua expressão estavam
impregnadas de uma ironia muda. Sorriu, talvez da forma juridicamente dúbia da
explicação, do pedante emprego de expressões como essas: no concernente... ao nosso
processo... ou talvez do tom doutoral com o qual seu interlocutor defendia uma instituição
que não possuía mais senão um simulacro de existência. Saída das pandectas
empoeiradas, efetivamente só sobrevivia na cabeça de alguns homens que tiraram de
fórmulas artificiais os conceitos com os quais contraíram uma simbiose de fantasmas.
Levantando os ombros, disse: - "esse princípio existe no papel, não se pode negar. Muitas
coisas estão escritas, mas o senhor ousará afirmar que são postas em prática? Onde?
Quando? Por quem? Contra quem? Espero que o senhor não acredite que estou tirando
conclusões do meu caso pessoal, do meu próprio destino. Absolutamente não estou em
jogo. Minha inocência, uma ficção? Tem graça! O senhor considera verdadeiramente essa
ficção como um sistema que consiste em tapar os olhos e os ouvidos? Deveria ser para o
senhor uma consolação pensar que essa pretensa ficção me impediu durante dezoito anos
e meio de tomar conhecimento do que se passou e se passa ainda em torno de mim. Neste
mundo, num mundo como este!" Tinha falado sem nenhuma paixão, antes com a frieza do
esgotamento do que com violência; entretanto, levantara-se e avançou um passo. Num
mundo como este! - o grito parecia brotar das profundezas da terra, das próprias trevas;
brotava, no entanto, sem esperança de ser ouvido - sem sequer um esforço para isso -
sabendo bem que milhões de vezes já havia ficado sem eco. Enquanto trançava suas duas
mãos uma na outra como elos de uma corrente, num movimento que parecia habitual e
nascido das suas divagações solitárias, seus olhos cor de café fixavam sem interrupção o
queixo do barão Andergast, sem subir mais, o que causava ao barão um visível mal-estar,
mais ou menos como se houvesse acabado de ser vítima de falsa medição de sua estatura.
- "Conforme já lhe disse, não estou considerando o meu caso pessoal" - recomeçou
Maurizius. - "Aos meus próprios olhos, bem entendido, meu destino tem a mesma
importância que o sistema solar, mas, como experiência, nada mais é do que um caso
isolado. Mas é que não possuo apenas a minha própria experiência; tenho outras mil; ouvi
falar de milhares de juízes, vi milhares frente a mim, pude examinar o trabalho de milhares
deles, e todos se resumem em um único e mesmo tipo. À primeira vista, é o inimigo. Ao
ato, ele o tem por realizado; ao homem, não concede senão um valor mínimo. O acusador é
o seu deus; o acusado, sua vítima; o castigo, seu fim. Se alguém tem a infelicidade de
comparecer perante o juiz, está perdido. Por quê? Porque o juiz se antecipa à pena pela
colocação fora da lei, pela desconfiança, pelo sarcasmo, pelo desprezo, pela mancha. Se
sua vítima não se resigna, ele a esmaga tão violentamente que fica marcada a ferro em
brasa. O julgamento então não é mais do que o pingar do ponto sobre os iis. É uma
transação, é um gesto de exibição. É inequívoco que a lei exige dele que mantenha a
balança em equilíbrio, mas ele atira sem hesitar todos os seus pesos em um dos pratos,
naquele em que está o ato cometido. Quem lhe conferiu o direito de não dissociar o ato do
malfeitor, quem é que o autoriza a não somente condenar o culpado - está certo que o
condene, é talvez sua função... talvez seja essa a sua função - mas a vingar-se dele? Juiz!
Essa palavra outrora tinha uma nobre significação. Era a mais alta dignidade na sociedade
humana. Conheci pessoas que me relataram terem ficado a cada interrogatório, transidas
até nos seus órgãos mais íntimos pelo mesmo pavor que experimentariam se se
encontrassem de repente na beira de um profundo abismo. Todo interrogatório se baseia
sobre a exploração de vantagens tácitas conseguidas na maior parte dos casos por meios
tão desleais como os subterfúgios aos quais recorre a vítima acuada. Mas, ao mesmo
tempo, o juiz e o ministério público pretendem a onisciência; discutir sua onisciência é
desencadear sua vindita sem mercê, de modo que somente o hipócrita, o cínico e aquele
que não tem a menor reação encontram indulgência por parte deles. Onde está a
compensação, onde está a proteção que a lei exige dos juízes? A lei não serve senão de
pretexto para as cruéis instituições que são criadas em seu nome; e como inclinar-se diante
dum juiz que rebaixa um culpado à posição de animal maltratado"? O animal urra,
enfurece-se e morde; os que estão fora estremecem de pavor e dizem: - "Deus seja
louvado! Estamos livres dele." É horrível essa maneira pela qual ficam livres dele; alguns
compreendem, mas sustentam que nada podem fazer, e se o afirmam é porque aqueles
que vivem no céu não fazem a menor ideia do inferno, mesmo dele ouvindo falar por dias e
dias. A imaginação se torna impotente. Somente aquele que está lá dentro pode
compreendê-lo". 
 - "Parece-me que o senhor se exalta" - diz o barão Andergast em tom ligeiramente
entediado. - "As conseqüências que o crime desencadeia na alma de um criminoso não
podem surgir como motivos de reprovação em relação à sociedade. A eqüidade de uma
punição não se mede nem pelo que tem de tolerável, por quem a sofre, nem pela atitude
dos que a ditam. Em suma, essa instituição humana é pelos seus representantes trazida da
esfera da teoria para a da prática imperfeita: nossa função é procurar a maior aproximação
possível. O sofrimento que existe entre as duas, mesmo sendo o mais doloroso possível,
justifica talvez a indignação, mas não pode abalar o edifício. Como o senhor não pode
esperar que tome o seu partido, perde seu tempo nessas acusações violentas, ou antes,
perde o meu, o que é mais lamentável." Maurizius contraiu irônicamente os lábios. Sua
aparência dizia: "Eu sei que as palavras são vãs; para que tudo isso?" Entretanto, a
presença daquele homem diante da janela o superexcitava. Não podia evitar de olhar
continuamente naquela direção; não ousava olhar para outra parte. A voz que vinha dali
parecia-lhe transmitida por um megafone; não era, certamente, senão uma ilusão dos seus
sentidos exacerbados, doentiamente educados em ouvir com atenção, porque o barão
falava com a voz abafada por causa do espaço restrito em que se encontrava, mas com
uma frieza que, pelo esforço que fazia para parecer benevolente, era ainda mais sensível. -
"E que deseja o senhor então?" perguntou Maurizius rispidamente, deixando cair sua
cabeça sobre o peito como fazem quase todos os detidos que aguardam a sentença dos
seus superiores. O barão Andergast replicou vivamente como se essa pergunta o viesse
libertar realmente: - "Eu vou dizer ao senhor: o fraco interesse que dispenso às suas
discussões teóricas está em proporção inversa ao que dispenso à sua pessoa. Para falar
francamente, nessas últimas semanas preocupei-me muito com o seu processo.
Naturalmente, tinha do senhor uma ideia muito precisa. Tive outrora ocasião de observá-lo
e de fixar minhas constatações. esse novo estudo dos autos não trouxe a essa imagem
nenhuma modificação importante. Ora, venho aqui e encontro um homem que não tem
mais a menor semelhança com o Maurizius de 1905 e de 1906. Não vamos procurar a
causa disso. Não poderia considerar o tempo escoado como fator dessa transformação, a
não ser que soubesse o que se modificou em mim próprio durante esse mesmo período.
Admitamos pois que eu também não tenha mais grande semelhança com o substituto
Andergast, de então. Gostaria somente de saber se o senhor conservou, em sua memória, a
sua própria imagem de então e como ela está em relação à realidade. Gostaria também de
saber como o Leonardo Maurizius de quinze ou de dezesseis anos atrás se reflete no de
hoje, e, entre esses dois, o que o de vinte e cinco anos sente pelo de quinze. Sim, eis o que
gostaria de saber. Na minha opinião, disso poder-se-iam tirar informações úteis; lançaria
alguma luz sobre o problema da evolução moral." 
 Maurizius aguçou o ouvido. - "Por que diz ele informações úteis (tal é a ideia que lhe
passa logo pela cabeça)? Com que reserva, com que hermetismo se exprime!" Aquele
homem diante da janela inquietava-o cada vez mais. De repente, seu olhar penetrou no
interior dele. Aí percebeu um misto de suficiência e de incerteza, de autocratismo e de
fraqueza, de uma inexpugnabilidade contradita por um élan inconsciente que o levava,
com certa repulsa, a enfrentar seu interlocutor. Esse misto o encheu de estupor. Pessoas
como ele possuem uma sensibilidade bem mais aguda do que aqueles em que ela se gasta
por contínuos atritos. Maurizius refletiu um momento e disse: - "Havia na época um famoso
romance francês: Peints par eux-mêmes. Waremme o havia trazido; nós lemos... nós, quer
dizer: eu e... mas isso não vem ao caso. Recordo-me que era ótima a maneira pela qual os
personagens se revelavam em suas cartas. A bem dizer, sem que o queiramos, todas as
coisas que acontecem se engrenam umas nas outras como rodas denteadas, de um vício
emana uma virtude e assim por diante. É quase sempre assim. O melhor dos espelhos é
aquele que nos reflete no momento em que queremos atrair alguém numa cilada. Desculpe
minha tagarelice, não posso deixar de pensar numa quantidade de coisas ao mesmo
tempo. Quando começo a falar, meus pensamentos se dispersam pelos quatro ventos,
como pombos assustados. O que o senhor me pede é verdadeiramente surpreendente para
mim. Para conhecer minha pessoa, o senhor não tinha necessidade de tais subterfúgios.
Outrora, pelo menos, o senhor foi buscar em minha vida, em fatos positivos, tudo o que
valia a pena ser conhecido sobre mim; o resto foi obra de um maravilhoso talento de
combinação. Assim procedendo, o senhor podia facilmente abstrair de mim, e até mesmo
minha presença lhe teria perturbado em seu trabalho." O tom sarcástico e mordaz dessas
palavras fez com que o barão Andergast levantasse altivamente a cabeça. Mas, como
Maurizius conservasse o rosto abaixado, essa advertência passou despercebida. Prosseguiu:
- "Existe um retrato meu aos vinte e seis anos que posso reproduzir exatamente e que o
senhor reconhecerá logo, porque foi o senhor mesmo quem o traçou. Foi em 21 de agosto
de 1906, na sala da pretoria que ele foi ... direi desenhado, ou exposto? É verdade que não
era feito senão de palavras. Quer o senhor que o repita? Escute: um homem de grande
inteligência, de espírito vigoroso e ágil, de cultura perfeita, oferecendo um mínimo de
resistência às tentações de uma época corrompida e ameaçada de aniquilamento moral
muito próximo. Tomemos cuidado com os sintomas, senhores jurados, e que o caso
individual não vos iluda sobre o sintoma, nem o crime singular sobre a corrente bastante
mais perigosa que o traz consigo e contra a qual tendes o dever de elevar um dique de
solidez a toda prova. Raramente a ocasião foi tão favorável para se castigarem, na pessoa
de um legítimo representante, as forças ocultas que fazem a desgraça de uma época, a
morbidez de uma nação, e mesmo de um continente, e para prevenir, por meio de uma
enérgica intervenção, a expansão do mal, se for verdade que não se possa curá-lo... Estou
sendo exato? Creio que sim. Por assim dizer, não falta nem uma vírgula. Mas isso é apenas
a moldura. A fisionomia que enquadrava era mais terrível ainda. O senhor está-se
espantando, naturalmente, de a minha memória funcionar tão perfeitamente e pensa,
provavelmente, que bem poucos seriam capazes, após tanto tempo, de repetir palavra por
palavra uma condenação verbal. Após tanto tempo, sim. Se alguém me afirmasse que
decorreram dezoito séculos em vez de dezoito anos, não discutiria sobre a diferença. Os
meses, os anos, são ideias vazias de sentido; nada disso tem a menor importância. Ora, no
começo, quando me recusavam todos os meus livros, e quando, principalmente nas noites
de inverno, tudo ficando às escuras desde seis horas da tarde, eu permanecia deitado até
duas, três, quatro horas da madrugada, rebuscando no passado como nos escombros duma
casa demolida, então, dediquei-me a não esquecer aquele requisitório. Com efeito, poderia
transcrever palavra por palavra, quando foi pronunciado; podia fiar-me na minha memória
mais do que em tudo. Quando tinha recitado tudo quanto sabia de cor de Shakespeare ou
de Goethe, então chegava a vez do requisitório. Mas, continuemos: precisamos ver com
clareza. Nosso objetivo exige o mais enérgico esforço. Não deve subsistir, em nós, a menor
dúvida psicológica sobre a personalidade do acusado e, sem pretensão, sustentado
exclusivamente pelo sentimento do meu inelutável dever, afirmo que posso dissipar nos
senhores qualquer dúvida dessa espécie, porque a chave que me abre o segredo dessa
personalidade, que provavelmente ainda não está perfeitamente clara para os senhores, foi
o temperamento, foram as próprias condições da evolução moral do culpado que ma
forneceram. Inconstância e irresponsabilidade, eis as alavancas de seus atos; a primeira o
precipita no labirinto dos seus desejos voluptuosos - que não teria deixado de se
transformar para ele em um jardim de suplícios, a crer na dignidade da natureza humana -
e a segunda o liberta de qualquer obrigação para com a sociedade, a família, a ordem
estabelecida. O gozo, eis a fanfarra que o enfeitiça e atordoa. Paga-o com todo o fruto de
seu trabalho, com tudo quanto adquiriu, com tudo o que se tornou, com seu coração, com
sua razão, com o coração dos seres amados, com seu ideal, com seu futuro, e finalmente,
quando chega à insolvabilidade, torna-se assassino. Não quero ofuscar nem desacoroçoar
aqueles que, neste país, travam honestamente o sadio combate dos intelectuais; só
aventureiros podem esbanjar por tão baixo preço e com tanta sofreguidão os altos valores
do espírito - aventureiros que, fraudulentamente, penetraram no seu domínio e que não
oferecem senão suas vaidades em troca do autêntico tesouro a eles abandonado por
guardas sem desconfiança. Toda nobre aspiração o eleva de um grau na escala da sua
ambição; suas mãos sacrílegas, frívolas, vendem as relíquias as mais sagradas e se serve
desse dinheiro para comprar falsos galões; a ciência é para ele apenas um carnaval em
cujos folguedos se diverte sob máscara que inspira confiança; nada é importante para ele,
nada possui um sentido profundo e, quando se casa com uma mulher que lhe é,
moralmente, infinitamente superior, quebra-se como uma pedra porosa contra o puro aço
do seu caráter. Constrange-o, essa vergonha que experimenta em sua presença; sente-se
perturbado pela reprovação tácita que ela é para ele; seu amor-próprio se mortifica com a
visão dos sofrimentos de sua mulher, obrigada a reconhecer a inutilidade dos esforços que
fez para salvá-lo. A derrota que põe fim à luta conduzida por ela pela sua alma envenena
seu sangue; os homens fracos e malvados que surgem na arena do mundo revestidos de
um brilhante verniz, não querem ser dissecados e, sim, tomados por aqueles comediantes
misteriosos e sedutores que são aos seus próprios olhos apaixonados por eles próprios; e foi
assim que os fatos chegaram ao ponto em que era preciso que chegassem. Essa infeliz
mulher estava destinada a ser aniquilada por ele, em sua carne, em sua dignidade social;
estava escrito no livro do destino e ele se teria livrado dela, mesmo que sua situação
material desesperada não o tivesse impelido a esse último caminho horrendo, ainda
mesmo que a paixão insensata, sem esperança, que tinha pela cunhada, não tivesse
destruído nele, o íntimo vestígio do bom-senso e da honra." Maurizius retomou fôlego. O
suor gotejava de sua fronte. - "Estou citando com exatidão, não é? - perguntou com uma
espécie de polidez adocicada, o rosto inclinado e voltado de lado. - "Era audacioso, era um
golpe de mestre, descobrir os motivos no lugar onde, para o comum dos homens, são mais
inacessíveis. Que o senhor lhes tenha apresentado um ponto de vista tão elevado, isso os
lisonjeou e tornou dóceis. Até eles haviam acreditado que aquela... aquela paixão tinha sido
o único motivo. Percebiam agora uma coisa mais diabólica: um homicida eleito pelo
destino; eis o que percebiam. O caso ficava resolvido com antecipação, não havia
necessidade de refletir mais. O senhor chegou a falar, em seguida, de Deus, não é verdade?
O senhor teve necessidade de reunir ainda uma vez os diferentes elementos do monstro, de
demonstrar filosoficamente a desagregação da alma. Aonde iremos ter com semelhante
equipagem a bordo? exclamou o senhor, e, fazendo alusão a determinada superstição dos
homens do mar, profetizou ao navio os rigores da cólera divina, se não se amputasse o
membro gangrenado. Deus o renegou, disse o senhor, por que então nós o pouparemos?
Era muito ousado afirmar tal coisa, pois não podia saber com segurança se Deus, de fato,
me havia rejeitado. Mas, sob a impressão de sua magnífica eloqüência todos se
comportaram como colegiais, quando um deles é punido: tomam um ar quieto e obediente,
como se fossem anjos imaculados. O castigo do culpado é para eles todos uma redenção.
 Maurizius se deixou cair sobre o leito de ferro, apoiou os cotovelos sobre os joelhos e a
cabeça entre as mãos, de tal modo que sua fronte e seus olhos desapareceram.
Permaneceu assim curvado, dobrado sobre si mesmo. O barão Andergast, apoiado à janela,
de braços cruzados, observava-o com fria curiosidade, atrás da qual se escondia um
sentimento vizinho do temor. Aquela repetição quase textual de um requisitório
pronunciado por ele uma meia geração antes inspirava-lhe espanto, mas o que havia de
mais estranho no caso, é que nada naquele requisitório lhe parecia, a ele, seu autor,
familiar ou conhecido, ainda que pudesse dizer com certeza que Maurizius não o havia nem
modificado, nem desfigurado, e que o requisitório o impressionava como alguma coisa de
estranho, de antipático, de repulsivo mesmo, de exagerado, cheio de uma fraseologia de
retórico, um verdadeiro malabarismo de antíteses. Enquanto olhava o presidiário curvado
sobre si mesmo, a aversão que sentiu contra sua própria eloqüência, que acabava de ouvir
saindo de uma outra boca, aumentou a ponto de ter de reprimir uma náusea e contrair os
dentes convulsivamente. Parecia que as palavras subiam ao longo dos muros, semelhantes
a larvas viscosas, incolores, horrendas como fantasmas. Se tudo o que se fazia era tão
efêmero e tão contestável, assim o tempo o marcava, como agir? Se uma verdade pela qual
outrora se testemunhara perante Deus e perante os homens podia transformar-se, ao fim
de um certo tempo, numa caricatura, o que era então, de fato, a verdade em geral? Ou
seria somente nele próprio que havia alguma coisa de carcomido, o mecanismo do seu eu
teria falhas? Quão inquietantes então, quão equívocas sua presença ali e toda aquela
conversa! Era o mesmo que tentar traiçoeiramente ferir-se pelas costas. Tirou o relógio, fez
saltar a tampa: quatro horas e cinco minutos; mas o pensamento de apanhar o chapéu,
retirar-se com uma dignidade protocolar e voltar para casa, sem cumprir sua tarefa,
pareceu-lhe perfeitamente insensato. De braços cruzados, ficou ali, esperando... 
 VII   

- "O senhor tem toda razão" - disse enfim Maurizius, a cabeça sempre abaixada. Suas
mangas de tecido grosseiro haviam escorregado ao longo dos braços, apoiados pelo
cotovelo sobre a mesa. - "O senhor teve uma esplêndida ideia, a de me fazer lembrar que
houve um tempo em que, também eu, tinha dezesseis anos. Há muito tempo que não
pensava mais nisso. O senhor deve também ter razão em dizer que somos o produto de
nossa geração; só o compreendo imaginando Leonardo Maurizius aos dezesseis anos. Não
creio ver maior diferença entre mim e ele da que entre duas folhas de árvore. Cada geração
forma uma raça à parte e pertence a uma árvore diferente. Eu me pergunto o que são, hoje,
os jovens de dezesseis anos. O senhor os conhece? Ora! sem dúvida o senhor não gostaria
de me falar sobre eles. É a grande curva da vida. O futuro inteiro depende freqüentemente
de uma simples experiência feita nessa idade. Os anos passam. Já a esquecemos; de
repente, porém, ela surge e percebemos que foi ela que nos impulsionou no caminho
seguido. Na época em que estava no segundo ano do liceu, meus camaradas me
arrastaram um dia para uma casa suspeita. Até então, eu permanecera puro. Mal sabia o
que era uma mulher, enquanto os outros já tinham tido aventuras; mais de um falava de
amor e de mulheres em tom de deboche. Lá fui porque tinha vergonha de confessar minha
inocência; mostrei-me mesmo particularmente ousado e afoito. Nessa casa, uma moça me
levou para seu quarto: segui-a como uma vítima. Quando ficamos sós, caí aos seus pés
suplicando-lhe que não me fizesse mal algum. Depois de ter-se torcido de rir, pareceu ter
piedade de mim, fêz-me sentar sobre seus joelhos, mostrou-se muito meiga e em seguida
começou a chorar. Isso me cortou o coração. Perguntei-lhe como havia ido parar naquela
casa; ela me narrou sua história, um desses romances comoventes que todas as prostitutas
contam aos principiantes e, se a ocasião se apresenta, aos clientes crédulos, e que repetem
sem dúvida incansavelmente, porque raramente eles falham o efeito. Naturalmente,
acreditei no seu, do começo ao fim; fiquei vibrante de piedade e de indignação, e ela
mesma se capacitou tão bem da sua própria farsa que se acabou comovendo até às
lágrimas. Dei-lhe não somente todo o dinheiro que trazia comigo, mas também jurei
arrancá-la daquela miséria e proporcionar-lhe uma existência digna. Consegui obter de
meu pai uma importante quantia, cento e quarenta ou cento e cinquenta marcos, se não
me engano: comprei sua liberdade, aluguei um quarto num subúrbio e instalei-a: ia vê-la
todos os dias, dedicava-lhe todas as minhas horas de folga; punha todo o meu dinheiro
miúdo à sua disposição, trazia-lhe livros que julgava próprios e onde havia em geral muita
"literatura"; lia-os em voz alta, conversava com ela sobre o que ela própria havia lido;
imaginava, loucamente, que podia fazer sua reeducação, reerguê-la, devolvê-la purificada à
sociedade. Era aliás uma pequena graciosa, bastante bonita, muito jovem ainda e
certamente não corrompida. Não havia entre nós relação sexual alguma; eu era tão
rigoroso, sob esse particular, que evitava tocar em sua mão. Não que ela me fosse
indiferente; estava certo que a amava e queria convencê-la de que se tratava de um "amor
puro". Falava-lhe sempre sobre o "amor puro"; ela me ouvia pacientemente e eu acreditava
que aquilo era para ela uma revelação. Durante esse tempo, é inútil dizer, ela zombava do
idiota que eu era e se aborrecia até não poder mais. Ainda vejo aquele quarto sombrio,
abaixo do nível da rua; diante das janelas avistavam-se as pernas dos que passavam. Havia
ao lado uma oficina de marcenaria e ouvia-se o rangido da plaina; sentada no sofá, ela
fixava em mim um olhar espantado, ausente, cujo sentido me escapava, ou então tinha um
sorriso astuto que eu também não sabia compreender. Nada me interessava, a não ser o
meu sonho exaltado. Em resumo, soube um dia que ela continuava desavergonhadamente
na sua antiga profissão; enquanto eu prosseguia na minha obra de redenção, ela recebia
homens todas as noites. Precisei de muito tempo para me restabelecer desse golpe; no
fundo, talvez nunca se fica restabelecido. Enfim, eis aí o jovem de dezesseis anos,
Maurizius, o romântico. Ainda não era o satã que o senhor pintou dez anos mais tarde, mas
um romântico pur sang 3, sem um defeito; grave e doloroso. Somente, veja: minha
juventude decorreu em um cenário de teatro. Aqueles que nasceram por volta de 1880
encontraram-se, em sua juventude, em uma situação penosa. Na família, na escola, davam-
nos tudo quanto era necessário para as exigências do corpo e do espírito, segundo a
expressão consagrada: princípios, ideal a alcançar, mesada — sem mesada, não se existia
para ninguém — instrução. Mas tudo isso estava carcomido, gasto; somente a mesada era
alguma coisa de sólido. O resto não era mais que falsificação, imitação barata, desde os
objetos concretos: presentes de Natal ou brindes de casamento, até os sentimentos:
admiração pela antigüidade e pela Renascença, desde o código de honra dos estudantes e
as festas patrióticas, até o grito de "Um Deus, um Rei". Eu não sentia até esse ponto; não
tinha uma natureza de revoltado; amava demais a vida para isso; não a analisava; mas isso
de qualquer modo se sente, de uma ou de outra maneira; quer se queira ou não, faz-se
parte de um todo. Somente, naqueles anos, cada um vivia egoisticamente para si e aquele
que não rompia resolutamente com seu círculo e com as tradições, - havia alguns assim -
era lentamente submerso, enterrado, devia arranjar jeito para triunfar de suas horas
negras. Naturalmente, nessa época, a existência era terrivelmente deflorada; um sombrio
constrangimento dominava a todos. Ao que parecia, tinha-se deixado emparedar a própria
alma e não se recebera, em troco, nada senão uma pobre situação muito miserável e
alguns amigos aos quais muitos se agarravam com todas as forças do coração. Uma
semente de idealismo tinha por acaso caído em nós, sem ligação com o resto; era-se
"romântico", quer dizer: de uma espécie à parte. Era quase uma religião; podia- se, aliás,
ser romântico e, ao mesmo tempo, não ter escrúpulos. Lembro-me de ter regressado uma
vez, aos dezenove anos, de uma representação de Tristan, possuído da embriaguez de me
sentir um homem novo e de ter, em casa, roubado vinte marcos na secretária de meu pai.
As duas coisas se conciliam muito bem. Sempre se conciliaram. Pode-se jurar por todos os
deuses a uma jovem que se a desposará e, pouco depois, abandoná-la covardemente e, em
uma hora de sublime entusiasmo, fazer suas as palavras e a vida de Buda; pode-se furtar a
um pobre alfaiate o seu salário e permanecer em êxtase diante de uma madona de Rafael.
Pode-se, no teatro, ficar transtornado pelos Tisserands de Hauptman e ler no jornal, com
secreta satisfação, que atiraram sobre os grevistas no Ruhr. Oh! as duas coisas se conciliam
perfeitamente. Romantismo. Romantismo que não se baseia em nada e que não tem
finalidade. Eis um outro retrato do artista pintado por ele mesmo. O senhor o julga mais
lisonjeiro do que o seu? Pelo menos oferece o encanto de apresentar duas faces possíveis. O
seu não apresenta senão uma: é de uma cruel imutabilidade."
 Diante daquela necessidade de rebuscar apaixonadamente no seu íntimo, de relatar suas
histórias, que se fazia expandir em ondas toda uma vida, como águas que, com a ruptura
de um dique, submergem tudo, um sentimento de temor covarde invadiu repentinamente
o barão Andergast, o temor de uma verdade que buscava - queria persuadir-se disso - e
que, em segredo, esperava não encontrar. Semelhante disposição de espírito não é rara. É
uma reprodução em miniatura das épocas onde "as duas coisas se conciliam", segundo a
expressão do detento Maurizius. Mas, sem dúvida, se equivocava ao reivindicar esse traço
como característica da sua geração. Ou não fazia senão exalar o fundo de amarga ironia
que o barão já havia discernido nele? É pouco provável. Um homem jazia ali, encurvado,
um ser torturado, queimado pela necessidade de se expandir, consumido pelo desejo de
encontrar um ouvido atento, um homem disposto a descarregar seu coração, a expor o seu
eu, a fornecer o seu testemunho, a falar, e, para retomar forma, a sair da dissolvente
solidão que tirava todo o contorno da sua personalidade. O barão Andergast, esquivando-
se, disse ao acaso, em meio de novo silêncio: - "É muito justo. Efetivamente, eu não tinha
outra alternativa." Maurizius levantou a cabeça e olhou-o fixamente com ar desvairado: - "E
se a sua hipótese fosse falsa?" - interrogou, o olhar em espreita subindo ao longo do barão
Andergast. - "É inadmissível" - respondeu este num tom decisivo. - "Inadmissível? Tem
graça. Estou supondo apenas: se fosse falsa? O senhor também não pode admitir essa
hipótese? No entanto, e se sua hipótese fosse falsa?" - "Isso lhe parece admissível?" -
"Talvez." - "Então, por que o senhor ficou em silêncio? Durante o inquérito, durante os
debates, na prisão, no decorrer desses dezoito anos?" - "Quer o senhor que eu lhe diga por
quê? (teve novamente o olhar de espreita, aquele seu olhar sombrio, que subia ao longo do
barão Andergast). - "Por favor!" - "Porque eu não queria cometer um assassinato" - "Como?
Que significa... porque... não compreendo." - "Deus me livre que o senhor compreenda!" 
 Atrapalhado, o barão tirou maquinalmente seu relógio, maquinalmente fez saltar a
tampa: cinco horas menos dois minutos. 
 VIII 

 De súbito, Maurizius se levantou num salto. - "Vamos" - disse ele entre os dentes - "que
disparates ando eu dizendo? Esqueça estas bobagens. Queria ver o que o senhor ia dizer. É
uma ideia com que costumo às vezes brincar. É preciso que não pense alto. Espero que o
senhor não me tenha levado a sério." Permanecia de pé, as espáduas reentrantes. O barão
Andergast lembrou tranqüilamente, como se quisesse acalmar a agitação do detento, que
não se tratava de instaurar um processo oral; sabia fazer a distinção entre uma confusão, a
sombra de uma confissão mesmo, e o hábito que os acusados possuem de enganar. É uma
injúria voluntária da sua parte. Quer irritar aquele que visa e incitá-lo a se defender. Mas
Maurizius suspira de alívio. - "Guardar silêncio" - murmura ele; seus punhos se cerram nas
extremidades dos braços caídos - "podemos nós fazer mais do que guardar silêncio? Todo o
andamento do processo tem outra finalidade senão a de esmagar nossa dignidade? O
silêncio é o nosso único recurso. Queremos lutar e endurecemo-nos, ficamos asfixiados.
Mas, ficamos mudos e é a única maneira de salvaguardar um pouco a nossa pobre
dignidade humana." Seu olhar se torna fixo e mergulha num passado longínquo: dir-se-ia
que, em seu espírito, o presente era sempre constituído de peças e de fragmentos, de
acontecimentos muito distantes um dos outros que, sem transição, colocam num mesmo
plano a imagem, a palavra, o sonho de ontem, e a imagem, a palavra, o sonho de há vinte
anos. O barão Andergast, de novo bastante calmo, objeta que ainda não viu ninguém se
obstinar indefinidamente em seu mutismo quando sua cabeça está em jogo, quando se
trata de sua vida e de sua salvação. A finalidade do processo pelo qual Maurizius tem tanto
desprezo é justamente despojar o acusado da sua vaidade para colocá-lo, de certo modo,
nu em face do seu ato e em face do seu juiz. Maurizius faz um malicioso trejeito com o
nariz: - "É admirável!" - exclama com voz estrangulada - "O senhor acomoda as coisas com
bastante sutileza; nu em face do guarda civil, nu em face do comissário, do carcereiro da
prisão preventiva, de qualquer escrivão. Não é nada disso, estar nu; o senhor está longe de
compreender, não é absolutamente nada disso". Maurizius se coloca em um ângulo da
parede e gesticula nervosamente. Somente o seu nervosismo ainda lembra, por vezes, o
tempo que precedeu sua detenção. Abre e crispa as mãos, alternativamente, como se
quisesse esmagar tudo quanto precisou sofrer de humilhações, desde o momento de sua
detenção até o do veredito. O tom arrogante dos funcionários subalternos ou, pior ainda,
seu piscar de olhos cheio de familiaridade. Cair sob a sua dependência é perder logo todo
direito ao respeito. A distinção de maneiras provoca, de parte deles, zombarias insultantes;
a superioridade intelectual, ódios. Os trabalhos, os méritos não são mais tomados em
consideração; o que se foi até a véspera, fica aniquilado. Finalmente, é-lhes possível
atormentar um daqueles que, de ordinário, têm o privilégio de atormentá- los, e eles o
fazem com alegria cheia de maldade. Nega sua culpa? Artifício sutil da sua parte. Suspeita
é suspeita. Equivale a uma prova. Nesse particular, excedem seus próprios chefes. Por que
não? Já que nos degraus inferiores da escala as responsabilidades são menores, o
ressentimento de classe se acrescenta neles ao resto; estão convencidos de que, apesar da
igualdade perante a lei, que é proclamada bem alto, os ricos e os cultos tramam
secretamente contra os pobres e os ignorantes; por isso, querem, protegidos por essa
mesma lei, desabafar sua cólera. Quando foi detido num hotel de Hamburgo, o comissário
de polícia lhe ordenou que saísse do leito; não lhe permitiu vestir-se e teve de esperar, de
camisa, que todas suas roupas fossem revistadas, todos os papéis e correspondência
fossem examinados. Durante muitos anos, a fisionomia de buldogue desse homem
permaneceu uma das visões de pesadelo que torturavam sua imaginação, como o ar de
desprezo com que havia revolvido sua roupa-branca, seu balancear de cabeça de inveja
recalcada e de vingança satisfeita; esse menear de cabeça de pequeno burguês revelava
muita coisa sobre todo um mundo, enquanto passava os olhos pelos objetos de toilette e
pela cigarreira de ouro. Depois, a primeira noite na prisão em companhia de um velho
alcoviteiro e de um ladrão sifilítico, a alimentação, o prato de papa de nabos que trazem
com arrogância, o mau cheiro, a imundície, aquela degradação brutal que rebaixa ao nível
da escória da sociedade, o carro de presos, a viagem por estrada de ferro entre dois
guardas, ensaiando já, só por divertimento, perguntas capciosas, a prevenção, o juiz já
informado sobre o crime, sobre todos os pormenores, e que nenhuma objeção surpreende,
ouvindo com ar afetado (de quem sabe o que deve pensar) a explicação de uma
testemunha enfadonha, ordenando interrogatório sobre interrogatório, pela manhã, à
tarde, à noite, levando tão longe essa tortura que o cérebro se transforma em massa
incandescente e dolorosa, preparando ciladas, experimentando atemorizar pela severidade,
paralisar a resistência graças a uma doçura exagerada, ora prometendo e ora ameaçando,
utilizando-se de delatores, apelando para toda a aparelhagem de uma justiça tenebrosa,
intimidando as testemunhas, trabalhando infatigavelmente num tecido cujo desenho já
estava traçado e que ele devia executar, porque assim o exigem seu cargo e sua missão.
Apela-se, então, para todos os santos a fim de que chegue o fim desse suplício; o coração
esgotado suspira até mesmo pelo martírio do júri; não se vê, não se ouve, não se sente
mais nada; não se quer mais lutar. Abdicou-se; fica-se calado. Tudo se torna indiferente. Por
isso a prisão na qual se mergulha, em seguida, oferece, pelo menos nas primeiras semanas,
o consolador repouso de um túmulo. Não mais interrogatórios, não mais testemunhas cuja
hostilidade não se compreende, não mais exortações por parte dos advogados, não mais
angústias, juramentos, assinaturas apostas a confissões extorquidas pela tortura - uma paz
ambrosíaca. - "Essa máquina da justiça é talvez o monumento mais surpreendente que se
possa imaginar das energias humanas conscientes de seu fim" - murmurou Maurizius
docemente, tristemente quase. - "Concedo-lhe. Sim, concedo-lhe. É extremamente
engenhoso. Quando se atinge o ápice dessa pirâmide, o acusado; lá embaixo, está
esmagado. Não quero negar que se encontrem, nesse exército de caçadores, pessoas
benevolentes, capazes de piedade e sentimento; seria uma ingratidão da minha parte fazê-
lo; nesta casa, em particular, encontrei homens cuja bondade, cuja benevolência, me
deram coragem. Houve, por exemplo, um tal Mathisson. Foi demitido há seis anos, por
haver entregue a um detento moribundo uma carta de sua noiva. Consolava-me sempre,
dizendo: "Paciência, senhor professor", - chamava-me sempre senhor professor -
"sobretudo não perca a confiança, o dia de justiça chegará para o senhor." Mathisson
verdadeiramente me fez bem, ainda que não tenha podido compartilhar da sua
segurança... não tinha nenhuma razão para compartilhá-la. Ah! e depois um outro... mas,
não falarei dele, não posso falar dele. E como eles são raros, como devem tremer, esconder
com cuidado suas veleidades de bondade (testemunhar simpatia, ou simplesmente
piedade, é transgredir a disciplina), e como essas coisas são rapidamente sabidas, toma-se
toda a precaução. Se pensamos que todas essas pessoas - e não somente elas, pois isso vai
muito alto; é melhor não dizer a que grau da hierarquia o mal atinge - se pensamos que
essas pessoas se vingam sobre nós daquilo que lhes azeda o coração, de todas as suas
ambições fracassadas, de suas desgraças domésticas, da insuficiência do seu salário, às
vezes do fracasso de toda uma existência, quando refletimos que esses funcionários
subalternos são quase todos pessoas para quem é um gozo atormentar e fazer sofrer —
nada podem contra isso, a autoridade que possuem e que os embriaga, consola-os, pois
suas vidas são tão sombrias como os cubículos que eles guardam ou como os destinos aos
quais presidem — quando pensamos nisso, não podemos deixar de perguntar se os homens
foram feitos para condenar, para punir outros homens. No atual estado de coisas, que
significa punir? Quem tem direito, quem tem qualidades para isso? Alguém o diz, passa a
senha, a máquina nos apanha, a roda passa sobre o nosso corpo: punidos! É uma hipocrisia
inominável. Uma hipocrisia pestilencial." - Um suspiro eleva o peito de Maurizius como o de
uma criança que acaba de soluçar. — "Mas, eu o estou importunando." — Prosseguiu com
ar descontente, como se censurasse a própria loquacidade — "Acontece tão raramente que
nos possamos dirigir a um chefe altamente colocado! Um chefe altamente colocado está
nas nuvens, ignora o que se passa cá embaixo." No olhar que atinge o barão Andergast,
cintilou um pálido clarão onde se lêem um sentimento hostil, uma fanfarronice bravia e, ao
mesmo tempo, a necessidade de se agarrar a alguém. Coisa curiosa, o magistrado aceita
sem o menor movimento de reprovação que o encarcerado se dirija constantemente a ele,
como a um igual, sem mencionar o seu título. Importa-lhe pouco, sem dúvida, exigir
aqueles sinais de respeito. Dir-se-ia até que esquecera sua posição, a distância existente
entre ele e o outro. Contrafeito e zangado por isso, ouve avidamente as palavras do
interlocutor. Mais de uma vez, parece-lhe que se ele está ali, em face de Maurizius, em
quem sente um adversário, como Maurizius sente nele, é para por fim a uma situação tensa
que se agrava desde muito tempo e ameaça terminar por um conflito. Então, põe-se a
duvidar de si próprio, como se lhe fosse possível não resistir. Maurizius contra Andergast;
um ajuste de contas, então? Muito bem, veremos.
 Caminha a passos largos na cela. Vai à porta, volta, quase roçando por Maurizius. — "São
abusos" — diz ele — "mas o senhor generaliza demais. Admito que haja muitas
imperfeições; são inerentes a esse mundo. O mundo, tal como se apresenta, é falho de
flexibilidade, é muito imperfeito. Não quero atenuar nada. Mas, chegaremos ao centro da
questão. O senhor não me acredita bastante ingênuo para crer nas razões que o senhor me
dá sobre o seu obstinado silêncio de dezoito anos. Ou então, está querendo fugir do
assunto. Mas o senhor se traiu. Foi porque o senhor não queria cometer um homicídio. Eis a
razão. Estranho argumento, na boca de um condenado por homicídio. Está bem, deixemos
isso de lado. A quem se referia aquela observação? O enigma me parece fácil de solucionar.
Tratava-se pois de poupar Ana Jahn? Sob que ponto de vista e por quê? Não retire o que o
senhor disse, não o faça, foi talvez Deus ele próprio quem falou pelo senhor. Sim, Deus ele
próprio. Nada tema: diga tudo o que o senhor quer dizer..." O barão não pode evitar um
certo constrangimento em meio da sua enfática adjuração. Maurizius acompanhou o vai-
vem do magistrado com o lento movimento de cabeça de um cão que não quer perder o
seu dono de vista nem por um segundo. Escuta, entreabre os lábios, deixa ver seus dentes
pequenos, escuta o eco das palavras, abaixa as pálpebras: — "O senhor pensa, agora, que
me apanhou em flagrante". — Murmura num tom rancoroso e acrescenta imediatamente
em voz baixa e humilde: — "O senhor me permite que lhe peça um outro cigarro?" O barão
Andergast imediatamente lhe estende a cigarreira aberta: oferece-lhe fogo. Maurizius
aspira profundamente a fumaça e expele-a pelas narinas. O barão se senta próximo à mesa,
cruzando as pernas. Exatamente como no decorrer das suas inevitáveis conversas noturnas
com Etzel, tem a aparência de um amigo benevolente, pronto a discutir questões
interessantes. Somente, em seu olhar vacila um imperceptível vislumbre de inquietação,
seu rosto se congestiona. Os dois homens se olham de novo sem falar. "Será que Sofia já
chegou?" - pensa o barão Andergast durante esse silêncio. É um tormento imaginar a
atitude que tomará ao vir reclamar dele o seu filho. Estaria disposto a fazer qualquer
sacrifício para se furtar àquela cena. Felizmente, sua tarefa aqui já é suficientemente difícil.
  
 IX

 — "O senhor nunca escreveu suas memórias?" — pergunta o barão Andergast. A calma e
a paciência às quais se constrange exercem pouco a pouco sobre Maurizius o efeito de um
emoliente. — "Jamais tive vontade" — responde. — "Para que e para quem? Quando, em
fins de 1911, me autorizaram a escrever, preferi dedicar-me aos trabalhos de minha
profissão, mas os materiais me faltavam e fui obrigado a me limitar a tratar de
generalidades. Permanecera muito tempo com o olhar concentrado sobre mim mesmo.
Tornara-me cego. Gostaria de fazer um dia compreender isso a alguém... mas não é
possível. Não é possível. O corpo fica como um prego que se enterra em qualquer coisa de
horrível. Voltemos ao que eu queria dizer... Sim, durante meses trabalhei numa história do
culto à Virgem, baseado na iconografia. Isso me levou a conclusões extravagantes, mesmo
no que se refere à minha vida. Ao mesmo tempo que escrevia, traduzia imediatamente
para o espanhol e para o italiano, línguas que sempre me agradaram muito. Houve um
momento em que tive mesmo a ideia de publicar o meu trabalho. Julgava que isso fosse
possível, que me seria útil. Mas o projeto não durou muito tempo. No fundo, de há muito, já
acabara com esse gênero de distração. Um belo dia, apareceu um novo diretor, o coronel
Bonenfant, nomem non est omen. Proibiu-me de escrever, confiscou meus livros; foi preciso
também entregar-lhe meu manuscrito. Esse coronel não me olhava com bons olhos; não
podia suportar-me. Jamais pude compreender por quê. Não implorei, nem discuti; destruí o
meu trabalho. Depois, perdi toda vontade de recomeçar." — "Jamais fui posto ao corrente
deste fato" — disse o barão Andergast franzindo as sobrancelhas. — "É possível; sabe-se lá
o que se passa? O senhor mesmo ficaria horrorizado, se soubesse de tudo aquilo que não se
sabe. Pouco faltou para que o coronel conseguisse com suas vilanias me dar o  tiro de
misericórdia; quem o impediria de fazê-lo, se não houvesse sido atingido por um ataque de
apoplexia? Nada mais no mundo podia atingi-lo. Somente, não estava escrito no livro das
estrelas que eu seria sua vítima. Voltei então a fabricar caixas, cordas, esteiras, e durante
todo o ano de 1916 preguei botões em capotes de soldados." — "Gostaria muito que o
senhor se decidisse a redigir uma espécie de autobiografia. Seria de utilidade para mim. Eu
poderia talvez me servir dela para o fim de que lhe falei no começo de nossa entrevista.
Assim, darei ordens ao diretor nesse sentido; o senhor pode ficar certo que terá todas as
facilidades." Maurizius parece procurar por detrás dessa oferta a cilada que lhe armam.
Sacode a cabeça e prossegue: — "Minha vida é uma árvore morta; o que adianta calcular os
nós sobre o tronco ressecado ou se entregar a reflexões melancólicas sobre a altura que
conseguiu alcançar a copa em flores? Não." — "Não se iluda sobre o sentido das minhas
palavras; não quero de modo algum coagi-lo" — assegura o barão com gravidade que
revela uma mudança de ponto de vista da qual ele próprio deve, antes, tomar
conhecimento. — "Não são mais confissões que eu desejo, dada a maneira pela qual encaro
os fatos atualmente ... " - "Mas? ... " O barão Andergast, com a cabeça caída sobre os
ombros, faz um gesto com os braços em que parece confessar, sem medir as
conseqüências dessa confissão, a incerteza em que ficou. Nada pode causar em Maurizius
uma impressão mais duradoura do que essa muda renúncia. Se não tivesse sido,
realmente, uma espécie de capitulação imprevista que lhe fora arrancada repentinamente
pela sensação de estar dando voltas sem esperança de chegar ao fim proposto, essa
renúncia teria sido um golpe de mestre por parte do barão Andergast. 
 A fisionomia de Maurizius se torna ainda mais pálida que de comum. Dá a impressão de
que alguma coisa o tortura, que está querendo falar e agir sem o poder e que é incapaz de
tomar uma decisão. Depois de muitos anos, eis ali a primeira visita, vinda "de fora", que
recebe na sua cela; depois de tantos anos, eis ali o primeiro homem que se dirige a ele em
sua linguagem. No espaço de alguns segundos, milhões de impressões o assaltam,
atropelam-se em sua alma. Impossível reter uma única. Cada sentimento é arrastado por
outro mais potente, mais sombrio, mais angustiante, mais feroz. Sente-se como o exilado
que sobre uma ilhota deserta chama com todas as forças de sua alma e desde um tempo
infinito uma face humana, é consumido pelo desejo de se comunicar, e esquece que aquele
que finalmente vem a ele, sob o aspecto de seu semelhante, é o homem que o condenou e
fez deportar. A necessidade de uma presença material, de uma voz, de uma palavra de
simpatia faz com que trema e escalde de febre. Exprimir o que sente, ouvir alguém lhe
dizer o seu pensamento, isso se torna quase idêntico. Talvez com essa troca consiga
libertar-se da horrível moléstia moral em que se transformou o seu hábito de não se
encontrar jamais senão em face de si mesmo. Ouve uma voz lhe dizer: — "Sente-se", e logo
se senta docilmente, prontamente, como que atirado em cima da cadeira. Seus olhos
cheios de uma tristeza alucinada têm um brilho fosforescente, indício de deliqüescência
mental. Três ou quatro meses ainda, e a última centelha se extinguirá; esgotada estará
então a energia sem precedentes com a qual lutou até o presente momento. O homem que
lhe está falando como homem restituiu-lhe a noção do que significa ser homem, devolve-
lhe ainda uma vez um lugar no mundo; só tem mais que agüentar um ano; precisa agarrar-
se a ele, induzi-lo a franquear-lhe o acesso de sua alma e a pobre astúcia de que se utiliza
vela mal o seu louco desejo. De repente, o nome de Ana Jahn é pronunciado. Por certo, sabe
que ela está casada? Está respondendo? Já respondeu e, no entanto, parece ainda refletir.
Soube, há oito anos. Põe-se a rir, quando lhe perguntam se a notícia o surpreendeu, se
modificou os seus sentimentos. Ou então não foi uma gagalhada, teria simplesmente
tentado fazer crer, sem o conseguir, que havia esquecido? Em todo caso, jamais aquele
nome ressoou entre aqueles muros. A cela se torna duas vezes maior, a mesa duas vezes
mais alta, sua cabeça incha, é de crer que lhe insuflam um gás que tem a propriedade de
dilatar os corpos. Que se sabe, afinal, desses sentimentos? É verdade que é preciso admitir
alguma perspicácia em quem nos interroga. — Perspicácia"? Ora! Nenhuma perspicácia
pode penetrar tão longe. São palavras, e nada mais! Coisas ditas a contragosto, só para
falar. —Entre o barão Andergast e Maurizius, perguntas e respostas se sucedem. Foi seu pai
quem lhe deu a notícia numa carta. A censura riscou outra coisa na mesma carta. Sem
dúvida, uma coisa que se referia igualmente a Ana Jahn. Tendo de início julgado a notícia
falsa, não teve o menor desejo de saber o que faltava na carta. Não foi senão pouco a pouco
que aceitou a ideia desse casamento e admitiu sua possibilidade em face de si mesmo. Por
que  não se casaria ela? Que obrigação tinha de permanecer celibatária? Deveria entrar
para um convento? Tudo bem pensado, talvez o convento tivesse sido a verdadeira
solução. No seu ódio feroz, seu pai, certamente, acolhia todas as calúnias que corriam a seu
respeito. Há muito tempo, quatorze ou quinze anos talvez, insinuou um dia, no decorrer de
uma visita, uma coisa indigna, infame, que entre ela e Waremme... mas Maurizius não a
quer repetir. O velho evitou voltar ao assunto; aliás, pouco depois, suas entrevistas
passaram a ser rigorosamente vigiadas e, a partir desse momento, não soube mais o que
dizer quando vinha, uma vez por semestre, fazer sua visita. Permanecia ali, tristonho,
olhando fixamente o filho com um aspecto infeliz e atrapalhado. Não tinha mais coragem
para tocar na questão que o obcecava. — "Segundo se diz, o casal Duvernon é muito feliz"
— interrompe secamente o barão Andergast. — "Duvernon? Ah! ele se chama Duvernon! É
possível." — "Parece também que eles têm filhos. Duas meninas." Um estremecimento
agita a mão de Maurizius, encostada ao queixo. — "Filhos? Verdadeiramente eles têm
filhos? Veja! ela disse um dia que jamais queria ter." — "Ela não era mais do que uma
criança, então." — "Nesse sentido, não tinha idade; não dizia nunca nada que não estivesse
de acordo com sua natureza." — "E entretanto foi ela quem mais escrupulosamente cuidou
de sua filha natural..." Maurizius aperta seus dedos indicadores contra os olhos. Seus lábios
se tornam completamente brancos. — "Hildegarda ... sim ... " - diz com um suspiro. — "Elas
mantêm ainda relações? Quero dizer, Ana e sua filha?" — "Nada sei." — "Como?... O senhor
nada sabe?... Não lhe..." — "Não" — grita Maurizius — "nada. Não me disseram nada. Não
tenho nenhuma notícia da minha filha." O barão não manifesta nem indignação nem
surpresa diante desse acesso de desespero que passa rapidamente; pede detalhes com
interesse e vem a saber que Maurizius teve de prometer a Ana Jahn, por intermédio do
advogado Volland, que jamais tornaria a se ocupar de Hildegarda. Era preciso que estivesse
morto para a filha; sob essa condição, Ana continuaria velando por ela com solicitude. O
barão Andergast louva tal desinteresse que assegura a tranqüilidade da criança e crê
sinceramente que Ana Duvernon com certeza se considera tão presa como Ana Jahn pela
promessa feita. Maurizius torce o pescoço, como alguém que está se asfixiando. Sim, sim, é
possível Mas ele não sabe de nada. Era preciso saber. Ter um indício. Sabe, pelo menos, se a
criança está viva? Tantas pessoas morreram, desapareceram, entre as que estão "de fora",
naquele intervalo! O barão fica espantado com a afeição apaixonada que aquele condenado
à prisão perpétua dedica a uma filha que não tornou a ver desde que estava ainda nos
cueiros, se é que a viu alguma vez. Parece um desses casos em que o homem adora o ser
criado pela sua imaginação — uma âncora atirada na eternidade. Em tom natural, em tom
em que se conversa com um amigo ao tomar uma xícara de café, observa negligentemente
que Ana Jahn deve ter tido em sua juventude — pouco se conhece da sua vida ulterior —
um caráter de mulher bastante difícil de se compreender; ele mesmo, por exemplo, jamais
pode explicar o motivo que a levou a consagrar seus cuidados a uma filha de seu cunhado
com uma estrangeira. Maurizius quer responder, morde os lábios, conserva-se em silêncio e
dirige a seu interlocutor um olhar tímido; em seguida, diz: — "Não é assim tão inexplicável
quanto o senhor acredita, se se pensa no que a vida já lhe havia concedido, e no que se
passou quando chegou em nossa casa. Mas, disso, ninguém tem a menor ideia." — "Com
efeito" — admite o barão Andergast - "o que apuramos é tão superficial como a narração de
um acidente num jornal. É preciso ir mais longe, sem dúvida, para encontrar as
realidades." 
 Durante longo tempo Maurizius mantém os olhos fixos no assoalho e permanece calado.
Atira nervosamente a cabeça para trás como se quisesse afastar uma proximidade
desagradável. Mas são apenas sombras. Não tem contato senão com sombras; são sombras
que interroga, é contra sombras que se debate. Finalmente levanta os olhos, fixa o olhar
inquiridor sobre o magistrado e diz, com a boca ressequida: — "Vou-me esforçar por contar
tudo. Creio que será bom dizer tudo. Até um certo ponto, posso tentar. Quando mais não
fosse, para ouvi-lo com os meus próprios ouvidos, para ver que ainda subsiste. Mas hoje,
não. Os acontecimentos deste dia me esgotaram. Não me sinto mais dono de mim mesmo.
Amanhã. Cedo, de preferência". 
 O barão aquiesce e levanta-se. À porta, faz o sinal convencionado e o carcereiro entra.
Quando chega ao hotel de Kressa, e pede um quarto para a noite, são sete horas e meia.
"Sofia terá de esperar", pensa com um misto de receio e de triunfo, enquanto que, sentado
na sala do hotel, contempla as altas muralhas cinzentas do presídio. Pensamento fugaz,
sem importância. Desde que se afastou do círculo ocupado pelo detento Maurizius, todos os
seus pensamentos são fugazes e sem importância.
CAPÍTULO 10
I

NATURALMENTE, ETZEL COMPREENDEU LOGO que se havia colocado em situação


perigosa: - "É bom que eu veja enfim seus olhos" - pensou, batendo prudentemente em
retirada para um canto afastado da sala - "esses olhos não são muito agradáveis de se ver,
tem razão para escondê-los; mas o que lembram eles? Um sapo, ou outra coisa igualmente
repelente, puxa!" Estava pálido de emoção, perguntando-se que rumo as coisas iriam
tomar. Evidentemente, não levava vantagem. Havia descoberto suas baterias, o outro não.
Não se cogitava de ir naquela noite à reunião em Stettin; tinham ambos, no momento,
outra coisa a fazer. Warschauer recolocou lentamente os óculos: - "É curioso" - murmurou
arrastando as palavras, e seus olhos pareciam perfurar um túnel em direção a um passado
enterrado sob os anos e os acontecimentos. Simultaneamente, seu olhar não cessava de
examinar o menino: - "Eu trouxe sardinhas e salsichas". — Disse Etzel, tentando sem
sucesso tomar um ar desembaraçado e indicando o pequeno embrulho que ainda estava
sobre o bordo da janela. — "Há pão na gaveta da mesa e penso que manteiga também; o
senhor não quer comer?" Warschauer tossiu ligeiramente: — "Fecha a janela, Mohl" — disse
com um tom pedante, martelando as palavras com a voz — "está começando a esfriar."
Etzel obedeceu, uma mariposa esvoaçou sobre seu rosto enquanto fechava a janela; clarões
fugidios como os de um projetor atravessavam a bruma avermelhada, acima dos tetos.
Sentia-se refeito; apanhou o embrulho, abriu-o, aproximou-se da mesa, tirou da gaveta dois
guardanapos e um pedaço de pão, estendeu com ar diligente uma toalha com quadrados
brancos e azuis, bastante suja, arrumou facas e garfos e preparou o fogareiro a álcool para
fazer café. Warschauer o acompanhou com os olhos, por um momento, em silêncio, depois
passou para a alcova, deixando a porta corrediça aberta e lavou as mãos longa,
minuciosamente, como era seu hábito. Eis o que se passou quando voltou.
Sentou-se e, absorto, começou a comer automaticamente. Etzel, que afetava cada vez
mais animação, como se tivesse de há muito esquecido a dolorosa altercação, acendeu o
fogareiro e pôs algumas colheres de café moído num recipiente, contando em voz alta:
uma, duas, três. E, enquanto o fazia, sentia o coração apertar-se com o pensamento de que,
até então, não tinha a menor prova de que aquele "professor Warschauer" e Gregorio
Waremme fossem uma única e mesma pessoa. Tinha-se fiado exclusivamente nas
indicações do velho Maurizius, mas aquilo era bastante? Assim avistara Warschauer, seu
instinto, é verdade, lhe revelara que se encontrava em boa pista, mas não tinha nenhuma
certeza disso. O silêncio tenaz do professor lhe inspirava vaga inquietação que devia
dissimular. Sentia perfeitamente que tudo dependia da primeira pergunta e da primeira
resposta e, olhando para a chama do fogareiro, traçava o plano de campanha. Não ousava
quebrar o silêncio, evitava demonstrar pela fisionomia, curiosidade ou inquietação e
limitava-se a vigiar, ora a chama, ora o conteúdo da panela. Essa conduta lhe era ditada
pelo respeito, pelo misterioso temor que lhe inspirava a pessoa do professor. A pessoa,
quero dizer, a imagem coerente, o ser ordenado como um poema que um espírito moço
constrói ao lado de uma realidade fortuita e imprevista — ser que ele concebe em toda a
sua profundidade e em toda a sua extensão. Warschauer pousou enfim seu talher e passou
várias vezes o dedo indicador na boca, o que Etzel achou muito desagradável, dizendo em
tom autoritário, quase imperioso: — "E então"? E depois? Quanto tempo ainda precisarei
esperar pelas suas explicações, my dear mister Mohl ou mister Nobody ou mister não sei o
quê? Que significa tudo isso? Quem o mandou? O que existe por detrás disso tudo que você
andou dizendo? Está bem, eis-me aqui, George Warschauer, aliás Gregorio Waremme. Que
quer você, rapaz?"
Assim, não tinha mais dúvida alguma, graças a Deus. Mas, ouvindo aquele nome, Etzel
estremeceu como ao ruído de uma explosão e precisou de alguns segundos para se
restabelecer: — "Imediatamente, senhor professor" — replicou solícito, com um sorriso
ligeiro e cândido. — "Um pouco de paciência e estarei às suas ordens; a água já está
fervendo." Durante esse tempo, podia refletir. Warschauer, com seus dedos de unhas
curtas, tamborilava sobre a mesa. Etzel, muito tranqüilamente, fazia o café. Quando ficou
pronto, verteu a bebida fumegante numa xícara que levou a Warschauer. Em seguida,
sentou-se com os cotovelos apoiados sobre a mesa, piscou os olhos, hesitou um momento,
e pôs-se a falar do velho Maurizius. — "É um velho bem desgraçado, senhor professor. Sabe
o senhor que idade ele tem? Setenta e quatro anos! Não se compreende que ainda esteja
neste mundo. Presume que não morrerá antes que seu filho Leonardo seja posto em
liberdade. Todavia, não há a menor esperança que isso aconteça. Está condenado à prisão
perpétua; por que haveriam de soltá-lo? Mas ele meteu essa ideia na cabeça e não quer
desistir." Etzel se estendeu sobre esse tema, explicou de um modo muito plausível e com
bastantes detalhes característicos que Maurizius, muito intratável de comum, fazia-lhe
freqüentes visitas, não falando durante horas senão de Leonardo e do seu triste destino.
Tinha-se sentido pouco a pouco tomado de afeição por ele, Etzel, e contara-lhe tudo, suas
esperanças, suas diligências junto ao tribunal, seus dissabores, toda a história do processo
e dos debates. — "Aliás, o senhor deve conhecê-lo, senhor professor" — disse Etzel em tom
insinuante, interrompendo sua própria narrativa. —"Ele me disse que veio vê-lo uma vez."
Warschauer levantou os olhos espantado. — "Sim, ele tinha conseguido com muito trabalho
e grandes despesas descobrir seu nome e domicílio atuais. Um belo dia, tomou o trem para
lhe vir falar. Mas, creio que nem abriu a boca; não teve coragem, pobre velhinho, e
regressou precipitadamente. O senhor não se lembra?" Uma lembrança pareceu despertar
em Warschauer. Recordou-se que um tipo de velho camponês ou de provinciano
desajeitado tinha vindo, um dia, procurá-lo; ficara parado na porta, arregalando uns olhos
de boi; perguntara se havia um quarto para alugar, e fora embora depois. Disso podia fazer
um ano. — "Então, era ele... hum!... o velho Maurizius? Como é engraçado. Mas...
(pigarreou) que queria ele? A que vinha?" —"Por causa de umas certas cartas," —
murmurou Etzel, retomando seu tom insinuante e avançando cada vez mais o busto sobre
a mesa. Warschauer, que sorvia ruidosamente os últimos goles do café, conservou a xícara
na mão e perguntou, espantado: — "Cartas? Que cartas?" — "ele me disse que o senhor
devia possuir cartas que Leonardo lhe escreveu outrora, antes do infortúnio. E outras cartas
também que havia dirigido a Ana Jahn. Jura que o senhor as possui. Daria metade da sua
fortuna para tê-las. Então, como não teve coragem, quando veio, e como está muito velho e
doente para voltar... em resumo, comecei a me sentir mal por vê-lo consumir-se de dor; não
podia, de modo algum, permanecer lá; há muito tempo que queria vir a Berlim, e disse-lhe
que tentaria, que talvez o senhor me entregasse as cartas." Warschauer sacudiu a cabeça:
— "Ignoro de que cartas você quer falar", — disse em tom categórico. — "Pura imaginação!
Você se incomodou à toa, meu pequeno Mohl." Sua entonação, apesar de maliciosa, era de
uma sinceridade perfeita. Etzel, aliás, não esperava outra coisa, mas tomou um ar
decepcionado e perguntou timidamente: — "Procure bem, senhor professor. Para me
agradar. O senhor não pode imaginar a adoração do velho pelo filho! Ninguém dirá que se
trata de um criminoso; oh! não, absolutamente! Dir-se-á quase que é um santo. Ele o
idolatra, literalmente. Guarda avaramente as mais ridículas lembranças de outrora.
Conservou seus brinquedos. É incrível! Procure mais uma vez nos seus papéis." Um clarão
se acendeu por detrás dos óculos pretos. O olhar desceu, deslizou pelo assoalho, subiu ao
longo do rapaz até seu rosto e aí se chocou com uma outra fulguração, clara, viva como o
brilho do bronze. — "Eu não tenho carta alguma" — articulou com raiva, remexendo o
maxilar — "nenhuma carta dirigida a mim... nem a essa Ana Jahn. Não falemos mais nisso."
Etzel se levantou, um tanto perturbado; apoiou a mão sobre a boca, gesto de menino do
qual não podia libertar-se. Face a Warschauer, poderoso, maciço, arriado sobre sua cadeira
dentro do casaco cinza, ele se erguia, esbelto e delgado, semelhante a um ponto de
exclamação. — "O senhor não era amigo dele, professor?" — perguntou com cândida
curiosidade. — Eu pensava que o senhor o fosse." Warschauer franziu desdenhosamente o
supercílio e furtou-se à pergunta: — "Amigo dele." — disse, apático e como que se
arrependendo — "pode ser... é possível... ele tinha muitos... naquela época... é possível."
Etzel se aproximou mais um pouco. — "Mas, diga-me cá uma coisa, senhor professor," —
perguntou ainda com vivacidade e quase estouvadamente — "crê o senhor, no íntimo, que
tenha cometido o assassinato? Quero dizer" — continuou rapidamente, assustado pela
enormidade de semelhante pergunta feita a Warschauer, a testemunha principal — "crê o
senhor que ele seja culpado, ainda mesmo que tenha disparado o revólver?" Como única
resposta, Warschauer dirigiu sobre ele um olhar frio, vazio de qualquer expressão. Parecia
que não havia ouvido a pergunta ou que a tinha imediatamente esquecido. Etzel não pode
evitar ligeiro tremor.
II

É provável que Warschauer-Waremme houvesse descoberto suas astúcias e seus disfarces


muito mais cedo do que Etzel imaginava. Não fazia senão uma ideia muito vaga do espírito
penetrante daquele homem e de sua experiência verdadeiramente fabulosa. Pressentia,
dissimulada sob aquela calma aparente, a ebulição daquela alma, da qual se podia temer
uma erupção devastadora; adivinhava o indefinível horror daquela alma lacerada,
semelhante a uma região devastada por um ciclone, a insociabilidade, o caráter insidioso e
suspeito daquele homem que era como um animal das cavernas, acuado e doente, e
entretanto ainda temível. Mas, não o penetrava no seu íntimo. Por isso, no momento, não
suspeitou que Warschauer não acreditava em nem uma única palavra do que lhe dizia
quando afirmava ter vindo unicamente para entrar na posse das cartas. Mas, também não
suspeitava a indiferença que, felizmente para ele, se aliava a esse ceticismo, indiferença
tão grande que Warschauer não se dignaria a fazer um inquérito, certamente penoso para
Etzel, com o fim de conhecer suas intenções. Warschauer via claramente que os meios
usados não estavam de acordo com o fim perseguido; mimá-lo durante semanas, usar toda
espécie de ardis em casa da senhora Bobike, tomar lições, prestar-lhe inúmeros pequenos
favores, para chegar a isso! Sinceramente, não. Era cômico, era ridículo. De cada vez que
lhe acontecia conceder um pensamento a esses temas, esses epítetos lhe voltavam ao
espírito: cômico, ridículo. E ele zombava. Depois, o garoto ele próprio, seu modo de se
vestir, sua maneira de se exprimir, os modos dedicados dos quais não conseguia desfazer-
se — ainda que se dedicasse de vez em quando a ser grosseiro, vulgar — aquilo e tudo o
que nele revelava um meio abastado: a qualidade das meias, da roupa branca, o talho das
roupas, tudo isso era, na verdade, muito esquisito, muito impudente, pensava Warschauer,
não se importando mais com aquilo do que com um ruído de camundongo. Alguns dias
mais tarde, atraiu o menino para junto de si, manteve-o entre os seus joelhos e examinou
sua fisionomia com um olhar atento e penetrante; depois, tomou as mãos de Etzel, uma
depois da outra, e observou os dedos, as unhas, as palmas. — "Você tem a pele delicada,
garoto", — disse finalmente, — "desde o berço que cuidaram de você com todas as regras
de higiene, hem? Um jovem distinto, de boa família; com sinais de aristocracia e de espírito
vivo. Gosto muito de você, Mohl, gosto de você loucamente." E, com um riso repugnante,
largou Etzel que o observava, o olhar cheio de uma consternação indizível. Sentia-se de
repente muito pequeno, não maior que seu dedo mínimo. — "És um demônio!" — pensou
desviando a cabeça, acabrunhado. Warschauer lhe propôs irem a uma confeitaria tomar
uma xícara de chocolate. 
 Sabia agora que importância dar aos movimentos de aproximação de Etzel e não ligava
evidentemente nenhuma importância àquela descoberta; talvez, mesmo, sentisse prazer
em observar os aperfeiçoamentos que o garoto iria apresentar ainda e até onde seria
levado. Sustentava que os homens revelam por si mesmos suas intenções com o correr do
tempo; desenrolam-se exatamente como um carretel. Sentia-se perfeitamente em
segurança, tão inacessível que podia permitir-se um cinismo que os outros interpretavam
como modéstia e humildade. Quando se sentaram, um em face do outro, em um lugar
pouco sombrio da confeitaria da rua Rheinsberg, Warschauer disse com uma benevolência
adocicada que dava a Etzel a impressão de unhas beliscando suas orelhas: — "Você me
pode perguntar o que quiser, Mohl, e eu lhe responderei com o maior prazer. Você assim
aprenderá coisas mais úteis do que brincando de Pele Vermelha e seguindo o rastro dos
meus calcanhares. Isto não lhe fica nada bem. Vamos, você aprenderá alguma coisa
comigo." Etzel ficou corado até a raiz dos cabelos. — "O resto não me interessa, note bem"
— prosseguiu Warschauer lambendo a sobra do chocolate que tinha ficado nos seus lábios
— "Não me interessa e não me atinge. Fazer rodeios, vigiar, espreitar, tudo isso produz em
mim o efeito de simples picadas de pulgas; não ligo, mas se me resolvo a ligar, meu filho,
então: cuidado! uma pressão de unhas e a pulga fica esmigalhada." 
 — "Eu gosto muito de você, pequeno Mohl." Que se imagine um archote iluminado nos
confins de um deserto, numa noite espessa e imóvel, e ter-se-á — admito que a imagem
seja extraordinária — mais ou menos o sentido dessas palavras. O estado de espírito de
Warschauer é tão misterioso como o de um homem chegado, em seus contatos com o
mundo, à última fase de desagregação. — "Isso não me interessa, não me atinge." Toda sua
atitude se limita a essas duas frases. Exclui-se voluntariamente da sociedade dos seres
humanos. Dir-se-ia um homem que circulasse entre paredes e compartimentos de vidro e
que, por asco, por desprezo, se recusasse a levantar os olhos para olhar através. Poderia ver
tudo, à direita, à esquerda, em frente, atrás; tem um olhar que transpõe portas e muralhas,
mas isso não o diverte. Despojou-se de toda e qualquer ilusão, a tal ponto que não
levantaria o dedo mínimo para melhorar sua situação, bastante precária, ao que parece. As
palavras que os homens trocam — sob não importa que motivo — têm, aos seus olhos,
menor importância do que o zumbido de um inseto. Servem para tornar plausíveis atos que
jamais se realizam e para velar outros que se negam assim são confrontados com o que se
disse. Considera essas grandes palavras retumbantes, essas panacéias tais como a religião,
a pátria, a humanidade, a moral, o amor ao próximo etc., como meros cartazes afixados à
porta de um charlatão, e com a exceção da estupidez e da cupidez, não vê nenhuma força
moral ativa que mereça ser estudada. Tudo quanto se atribui a outros defeitos não é mais
do que a manifestação desse binômio todo-poderoso. Não tem oportunidade para
manifestar suas ideias, mas se se apresentasse, fugiria dela como da peste. Por que iria
dizer o que pensa? Seria mais fácil pedir-lhe para ficar de cabeça para baixo em plena
praça pública. Não encontra ao seu redor nenhum ouvinte eventual, para o caso em que
sentisse necessidade de falar, pois está de tal modo isolado que o condenado 357 de
Kressa, comparado com ele, leva uma vida mundana; este pode, apesar de tudo, conversar
com os guardas, relacionar-se com os companheiros; mas, sua solidão, ele a deseja, ele a
quer. Existe, contudo, entre seus destinos uma analogia que poderia levar um homem de
menor envergadura a quebrar a cabeça pensando sobre a possibilidade de relações ocultas
entre eles. Ele nem pensa nisso. Há muitos anos que não experimenta a tentação de olhar
em torno de si ou de voltar-se sobre o caminho já percorrido. Não que o passado tenha
desertado de sua memória. Como seria possível? Não o traz consigo? Mias é justamente por
isso que é inútil preocupar-se com ele. Esse passado não é para ele, como para a maior
parte das pessoas, um epitáfio sobre um túmulo que as intempéries consomem. É, nas suas
veias, o fluxo de sangue que se despeja tumultuoso no estuário da morte. 
 Não se detém indagando porque "gosta muito" do menino. Não é unicamente pela sua
juventude; não o interessa e não a procura, nem aprecia; considera-a como um período de
lutas pouco agradáveis e de sonhos presunçosos. Porque conseguiu, sem dúvida alguma,
sufocar nele próprio a lembrança de sua juventude. Chega a se odiar, quando se revê nessa
época. Por certo, o pequeno Mohl ainda é muito jovem, mas com seus dezesseis ou
dezessete anos possui uma espontaneidade que encanta; não há nele nem o êxtase
histérico, nem os vapores turvos da puberdade, nem o romantismo pegajoso do caracol em
sua concha. Será isso o espírito novo? Agora, eles são assim? Rapazes cheios de animação,
ativos, ponderados, que vêem imediatamente quando um prego cai da parede ou falta uma
lata de conservas no guarda-comidas? Mas isso não é possível. Esse exemplar revela, no
máximo, uma espécie já extinta, mas um encanto existe nele, um certo encanto que age à
maneira de um veneno sutil e embriaga como um perfume capitoso. Simpatia? Não, aquilo
nada tem a ver com a simpatia. É, antes, o desejo de possuí-lo. Possuí-lo? Possuir o que?
Possuí-lo como? Sente às vezes um estremecer voluptuoso à flor da pele, semelhante ao
contato de um arminho com o próprio corpo, um prurido, um bafejo de calor. O "cômico", o
"ridículo", contribuem para lhe dar esse atrativo. Mas, isso ainda não é tudo. Se se
aprofunda a análise, descobrem-se: ternura, ódio, ciúme sem razão de ser, desejo de lançar
uma ponte sobre um abismo, no fundo do qual jaz um mundo fracassado. Uma vez que lhe
prometeu ensinar alguma coisa, tentará sair desse mundo abismal não para substituí-lo por
uma cidade lendária, que seria uma imagem de sonho, mas por um mundo completamente
diverso. O rapaz é quase como um filho que tivesse esquecido de engendrar, nascido de
um milagre protoplásmico, para surgir, resplandecente, num deserto hediondo. É preciso
apoderar-se dele, ver-se-á mais tarde de que maneira. Talvez essa febre de conhecer que
domina o menino forneça os meios a Warschauer, se ele a dirigir para um objetivo cuja
natureza prefere não aprofundar. Faz essa descoberta: dois olhos que nos olham de frente
têm um poder de encantamento. Que ideia extravagante, essa do filho não engendrado! Na
verdade, uma ideia de louco ou de demônio, quando se pensa que a simples presença física
do menino produz nele a mesma impressão equívoca que o palpar de um pêssego
aquecido pelo sol.
 III 

 A febre de conhecer... o termo é bem fraco. Não é preciso saber ler nas almas para
compreender que é coisa completamente diferente de um interesse vindo de fora, de uma
afeição por uma pessoa em particular: - "Vamos, é preciso ver quais são suas intenções." -
decidiu e, para começar, permaneceu na expectativa. Em outra noite, tinha-se contentado
em mandar Etzel embora, o qual, em seguida, se mostrara bastante intimidado ou fingira
estar. Muitos dias passaram sem que se arriscasse a nova alusão. Nesse intervalo, redobrou
de solicitude, passou as tardes e as primeiras horas da noite no quarto de Warschauer,
encolhido num canto enquanto os outros alunos davam suas lições. Começou a fazer um
catálogo dos livros, arrumou a roupa branca nas gavetas, pregou botões nas roupas do
professor, levou as folhas de seu manuscrito ao diretor do museu e repassou o vocabulário
e as regras de gramática, tornan- do-se o mais humilde possível. Um dia, lá pelo fim da
tarde, chegou com um ramo de flores que havia comprado no caminho e estendeu-o a
Warschauer com um sorriso provocante. Warschauer exagerou sua alegria e procedeu como
um legítimo tartufo. - "É formidável, pequeno Mohl, formidável", - exclamou juntando as
mãos e com uma voz cantarolante de derviche - "flores! Que atenção delicada! Que
esplendor na minha humilde choupana! Vê-se bem por isso sua esmerada educação, suas
tendências estéticas! Não seria o filho de Paalzow a ter semelhante ideia. É admirável!
Infelizmente, não temos um vaso digno de flores tão lindas; é preciso que nos contentemos
com um copo. Mas o doador enobrece o recipiente..." Continuou por muito tempo nesse
tom; Etzel, irritado, teve vontade de dar-lhe no rosto. De repente, Warschauer notou que
suas roupas estavam escorrendo água. Havia saído sem guarda-chuva. Sua capa e seu boné
estavam encharcados, as meias coladas às pernas. A vista disto, irrompeu em
demonstrações ruidosas; pôs-se a lamentar-se como se estivesse diante de alguém
gravemente ferido. Instou para que Etzel tirasse sapatos e meias e pendurou capote e
paletó para secar; foi buscar na alcova uma coberta de lã e agasalhou-o, obrigando-o a
deitar-se no canapé - ao que Etzel só se resignou depois de haver recusado, muitas vezes,
com mau-humor - e achou-se imediatamente na obrigação de fazer um chá para esquentá-
lo. Estava consternado, afligia-se, esforçava-se em servir a Etzel, repetia seus "tz, tz, tz,"
esfregando as mãos. Mas, percebia-se tão claramente que tudo aquilo não era senão pura
comédia que, no fim de algum tempo, Etzel não se conteve mais e gritou, pálido: - "Pare,
por favor: tudo isso é para me humilhar e porque o senhor não quer que falemos de coisas
sérias. Mas eu estou farto disso e vou-me embora." E levantou-se do canapé. Nesse
momento justamente, Warschauer estendia o braço para apanhar a lata de chá. Voltou-se
lentamente. - "Que coisas sérias, meu caro amiguinho?" - perguntou com voz melíflua,
simulando surpresa. - "Ora, eu já lhe perguntei" - articulou Etzel com impaciência - "Você
não me respondeu." - "O que? De que se trata?" - perguntou Warschauer, fingindo sempre
não saber a que se referia. - "Perguntei se você acredita que ele seja culpado.... ele,
Maurizius." 
 Warschauer simulou espanto. A lata de chá numa das mãos, a tampa na outra,
aproximou-se do canapé em passo de automato. - "Uma vez que você está tão bem a par
dos fatos, pequeno Mohl, você devia saber que eu o afirmei sob juramento." Sua voz não
era mais untuosa, porém decisiva. - "Sim, é verdade," - repetiu Etzel pousando sobre os
óculos pretos um olhar devorador - "mas, todos podem enganar-se. Não há nenhuma,
absolutamente nenhuma possibilidade de você ter-se enganado?" - "Com mil demônios!" -
praguejou Warschauer entre os dentes. O "absolutamente nenhuma possibilidade" havia
lhe arrancado essa praga - "Um erro dessa espécie só poderia repousar sobre um fato,
pequeno Mohl" - disse colocando sem ruído a lata de chá sobre a mesa. - "Certamente," -
admitiu Etzel - "ele podia, por exemplo, ter atirado mas não ter atingido." Warschauer teve
um movimento de zombaria. - "Veja só, ter atirado, mas não... Que engraçado! Que teoria
interessante!" Os olhos de Etzel chisparam de cólera. - "Olhe aqui, seus sarcasmos não me
atingem. Você procede como alguém que foge ao combate leal e, quando se põe a salvo,
puxa a língua para fora. Você não tem vergonha disso?" - " I understand," - disse
tranqüilamente Warschauer pousando sobre o menino enfurecido um olhar atento. - Vou
lhe falar francamente, Mohl; mesmo que eu me tivesse enganado, era necessário que não
fosse um erro." - "Que quer dizer com isso? Explique-me, por favor..." Warschauer percorreu
duas vezes o quarto, com as mãos atrás das costas. - "Para explicar isso, Mohl... era
simplesmente uma figura de retórica. Não se trata de erro." Aproximara-se novamente do
canapé. - "Como você se sente? Está com muito calor? Contanto que não fique gripado..." -
"Para explicar isso" - repetiu Etzel com a insistência de uma criança à qual se recusa a
continuação de uma história começada. - "Que impaciência! refreie seus instintos fogosos,
meu amiguinho" - replicou ironicamente Warschauer com voz cavernosa e recomeçando a
andar. Arqueava-se todo, o que o fazia parecer-se com um galo emproado, e batia no ar
com as abas do seu casaco. - "Você pretende estar falando francamente e, depois, o que diz
não é senão uma figura de retórica." - bradou Etzel em cólera - "Entenda-se!" Warschauer
soltou um suspiro. - "Meu bom, meu caro Mohl, tudo isso está lá tão longe... toda essa
trágica farsa está tão longe... já desapareceu completamente do horizonte... não são mais
do que sombras, fantasmas... o melhor é sepultar tudo isso no silêncio." Deu uma volta em
torno da mesa, apanhou a lata de chá e tampou-a dando com a palma da mão uma
pancada seca que punha categoricamente fim à conversa.
 "O miserável estava disposto" - pensava Etzel com desespero - "O que fazer agora?"
Aparentemente, estava calmo e percebia que não devia insistir naquele dia; mas, todo o
seu ser se revoltava contra aquelas reticências, aquelas confissões que não avançavam
senão passo a passo, com muitos tropeços; era como se se encontrasse atolado num
pântano e o outro, sobre a margem, fosse se afastando cada vez mais e pretendesse estar
vindo em seu auxílio. Via também que nada conseguiria com o método usado até então e
que era preciso encontrar um outro. "Comparado com esse, Trismegisto irradia bonomia e
cordialidade," pensa ele, resumindo assim toda a sua irritação. E, repentinamente, reviu
seu pai sentado de lado, as pernas cruzadas, impassível. Foi uma tímida recordação que
tomou forma e logo em seguida se esvaiu. Não tinha tempo para pensar em outras coisas,
não havia lugar no seu espírito para outros pensamentos! Que fazer agora? Enquanto
refletia, torturando o pensamento, seu instinto já lhe havia indicado o bom caminho.
Instinto ou curiosidade? À medida que a pessoa de Warschauer se tornava mais
enigmática, mais impenetrável, preocupava-o mais, não podia deixar de observá-lo, de
estudá-lo, de espreitá-lo sem cessar e sentia um desejo louco de penetrar em sua vida
secreta, ali onde Georges Warschauer cedia lugar a Gregório Waremme, pois, na verdade,
nada sabia de Waremme, Waremme estava envolto em bruma. Waremme era o mestre que
se dissimulava, Warschauer - comparsa insignificante que recebia ordens. Eram dois
personagens nitidamente distintos, muito mais distintos um do outro que E. Andergast e E.
Mohl, por exemplo. Daqueles dois, Mohl era o mais importante, apesar de ter chegado por
último. Jamais E. Andergast poderia ter encontrado Warschauer; fora a tarefa de E. Mohl, -
era esse mesmo Mohl quem devia agora forçar Waremme no seu entrincheiramento. "Pobre
Mohl, pensava Etzel com ironia, pobre Mohl, sozinho contra os dois, contra Warschauer e
Waremme." Era com argúcias que às vezes bania suas crises de desespero. Quanto a
Warschauer, aceitava amavelmente, com uma dissimulação acompanhada de ingênua
impaciência, o interesse que lhe testemunhavam e não esperava senão uma oportunidade
para corresponder-lhe; já disse, se não me engano, que a tudo ele se prestava contanto que
Waremme não fosse envolvido no debate. Aconteceu que, dois dias após essa conversa,
Etzel, remexendo numa pilha de velhas brochuras, encontrou uma que trazia, escrito com
letra forte e inequivocamente jovem, o nome de Georges Warschauer com o mês - ano:
abril de 1896. Warschauer, que por acaso o observava, percebeu seu ar estupefato.
Aproximou-se, lançou os olhos sobre o nome e disse: - "É exato, é o meu nome, é assim que
me chamo na verdade. Esse é o meu nome de família." Etzel arregalava os olhos. "É
esquisito," pensava, sob a impressão de haver sido enganado; "assim, é pura ilusão
acreditar que Warschauer é uma continuação de Waremme; antes de Waremme, já houvera
um Warschauer. Waremme não é mais do que um intermédio." Prontmciou o nome em voz
baixa. Warschauer concordou com a cabeça. - "Sim." - confirmou - "Georges Warschauer,
nascido de pais judeus em Thorn, se você faz questão de saber. Oh! haverá muito - que
contar sobre isso..." No momento, não parecia com vontade de falar, ou porque o lugar não
lhe agradasse ou porque a tarde ainda não estivesse bastante adiantada; mas Etzel teve a
impressão de que estava prestes a falar e para isso era bastante deixar sua alma se espraiar
um pouco. - "Vamos dar uma volta, pequeno Mohl," - disse ele - "o tempo está bonito,
vamos ver o que se passa lá fora." - "Eu gostaria," - respondeu Mohl - "mas você vai ver
como nós não ficaremos só no passeio e vamos acabar numa confeitaria." Warschauer teve
um risinho tremulante. - "O que é que tem? Conheço uma menos aborrecida do que aquela
da rua Rheinsberg; não é longe, próxima ao círculo de Zehdenick; às cinco horas... hoje é
sábado, não?... há jazz." Etzel cedeu, ainda que não estivesse com o espírito disposto a
ouvir jazz, mas, conhecendo o fraco de Warschauer por esse gênero de música e não
querendo contrariá-lo, acompanhou-o. Passaram uma hora e meia naquela balbúrdia, ao
lado de pequenos burgueses, de modestos empregados, de caixeiros, de dançarinos
profissionais de uma elegância suspeita. Warschauer estava radiante. O movimento dos
pares que giravam, deslizavam, ondulavam, roçavam uns pelos outros, com os rostos
afogueados no meio de uma nuvem de fumaça, mas principalmente os estrondos, os
guinchos, os berros dos instrumentos provocavam nele os maiores transportes de alegria.
Em dado momento, segurou o punho de Etzel e disse baixinho: - "Puxa! Um saxofone como
este não tem preço! Vale uma história da civilização em três volumes. Observe - homem da
bateria, Mohl, observe-o! Não tem o aspecto de um legítimo Torquemada, cruel, sombrio,
fanático? Que tipo admirável! Em sua infância, na certa que arrancou as patas dos
besouros e pôs fogo no rabo dos gatos." - "É possível, mas não vejo nada nisso que possa
entusiasmar tanto" - respondeu Etzel friamente. Warschauer lhe deu uns tapinhas na mão.
- "Sob o ponto de vista biológico, como objeto dum estudo." - afirmou levantando os
supercílios - "Você conhece aquela moça ali?" - acrescentou, mudando de assunto; depois,
designou com o queixo uma pequena magra - vulgar que se havia levantado numa mesa
vizinha e olhava para Etzel com grande insistência. Era Melita Schneevogt. Ela levantou -
dedo num gesto de advertência que parecia querer dizer: - "Ah! Ah! apanhei-te, pequeno
sonso!" Etzel lhe fez um sinal de camaradagem; notou que ela havia cortado os cabelos.
Ainda tinha tranças na última vez em que a vira. "Há qualquer coisa trabalhando a cabeça
dessa menina; é preciso tomar cuidado com ela" - pensou um instante e depois não cuidou
mais nisso. O céu empalidecia quando saíram; do lado da praça Sennefeld ouvia-se o rumor
de um incêndio e avistaram chamas cor de cobre que irrompiam entre as fileiras das casas.
Pessoas corriam, a polícia montada passou a galope. Uma fábrica de móveis estava
queimando. Andaram um pouco pelas ruas vizinhas, ouvindo no meio das sirenas dos
bombeiros as detonações e o crepitar do incêndio; próximo à rua Schroeder, alcançaram
uma pequena praça quase deserta. Sentaram-se num banco; feixes de fagulhas brilhavam
através das copas das tílias; um cachorro passou, esquivo, voltou-se, parou diante deles,
farejou, buscando alguma coisa, e desapareceu. - "Pois bem," - disse Warschauer - "vou
explicar o que há sobre aquele nome ... "   
 IV  

 - "Ah! sim, é verdade," - exclamou Etzel, como se, durante todo aquele tempo, não
tivesse mais pensado nisso. Sentou-se de lado, próximo de Warschauer, para ouvir melhor e
também, como estava escuro, para ver melhor. - "O nome não tem grande importância," -
começou Warschauer - "não é mais do que uma chave, uma chave que abre, é verdade,
portas bastante especiais. Você alguma vez conviveu com judeus, Mohl?" - "Certamente!
Vivemos no meio deles." - "Você teve companheiros judeus?" - "Sim." - "Você se dava bem
com eles?" - "Muito bem." - "Então, você não tem contra eles nenhuma hostilidade
sistemática?" Etzel sacudiu a cabeça. Conhecia essa hostilidade, mas jamais a
compartilhara. — "Seus pais nunca advertiram você, proibindo-o de freqüentá-los?" -
"N...ão." — "Você está hesitando. Sim, não é verdade?" — "Às vezes. Eu não ligava muito.
Quando eram rapazes corretos, não dava importância." — "Bem, é isso que eu queria
saber." Conservou alguns instantes de silêncio, fazendo com a ponta da bengala buracos na
areia. "Você pode imaginar que alguém procure enganar-se a si próprio sobre o seu
nascimento? É uma coisa muito complexa. Não querer ser o que se é, renegar o tronco de
onde se saiu, isso é o mesmo que trazer a própria pele como uma roupa emprestada. Meus
pais eram judeus; pertenciam à segunda geração que gozou de direitos civis. Meu pai não
tinha ainda compreendido que esse estado de aparente igualdade não era no fundo senão
uma questão de tolerância. Pessoas como meu pai, aliás um excelente homem, não tinham,
sob o ponto de vista religioso e social, ligações em parte alguma. Haviam perdido suas
antigas crenças e recusavam-se, por boas ou más razões, a adotar novas, quero dizer: a fé
cristã. Um judeu quer ser judeu. Que é que significa isso, um judeu? Ninguém pode
oferecer a esse respeito explicação satisfatória. Meu pai se orgulhava da emancipação,
creia você: uma invenção que tira ao oprimido qualquer pretexto de se queixar. A sociedade
o repele, o Estado o repele; o gheto material se transforma num gheto moral e intelectual.
Ele se enfatua e fala de sua emancipação. Você alguma vez já refletiu, meu pequeno Mohl,
ou antes, você por acaso encontrou alguém que tenha tido motivo para refletir sobre
certas... digamos, dissonâncias? Não? Você tinha mais que fazer, compreendo; mas talvez,
de qualquer modo, você tenha ouvido falar do que se passa atualmente neste país. Não
faço alusão ao desejo que têm de retomar esses miseráveis direitos civis que nos deram
como se jogassem um osso a um cão. Por que não o fazem? Isso seria pelo menos agir
honestamente, valeria mais que... permita-me um exemplo, que quebrar os monumentos
funerários dos cemitérios israelitas. Você não acha? Que diz você, meu querido Mohl?
Quebrar as campas! Hein? profanar os cemitérios. Eis o que é novo na história, não? Dernier
cri. Considero, depois disso, os envenenamentos das nascentes e os assassínios rituais
como atos certamente criminosos e insensatos; mas, se os julgarmos de um ponto de vista
mais elevado, eles se desculpavam pela paixão e pelo erro. Que acha você? Você fica
calado, meu pequeno Mohl, e respeito seu silêncio. Essa profanação de túmulos é
simbólica; infernal, única na história. Você já reparou alguma vez as últimas fagulhas que
se extinguem sobre uma folha de papel queimado antes de ele ficar completamente negro?
O mesmo acontece aqui. As últimas fagulhas de dignidade, de respeito próprio, de
escrúpulo, de humanidade e outras belas coisas com que nos enchem a cabeça,
extinguem-se e tudo se torna negro. Mas estou me perdendo. É verdade que estabeleci, por
princípio, que se afastar de um assunto é esgotá-lo. Não me deterei mais em recordações
de família. Paciência, voltemos ao assunto. Contudo, ainda um axioma, meu querido Mohl,
um axioma que vale para todos: em cada existência, chega um momento em que se pode
escolher entre duas tendências diametralmente opostas, um momento em que
Shakespeare poderia muito bem ter-se tornado um salteador genial como Robin Hood em
vez de um autor dramático; ou Lenine, o chefe da polícia secreta do tzar, em vez do
destruidor do regime. Eu teria podido, sob um impulso que, por insondáveis razões, não se
produziu, ser chefe dos judeus, um Lutero do judaísmo. Enquanto que... hein!" sim, é
justamente disso que falo. Nossos atos são funções de uma dualidade profunda, inata em
nós como a distinção instintiva que fazemos entre a direita e a esquerda. Não admita
nunca, Mohl, que um homem em dadas circunstâncias não tenha podido agir de modo
diverso do que fez: é falso. A questão é saber até onde seria preciso voltar para encontrar o
momento em que seu livre-arbítrio permanecia intacto. Se você quiser, posso citar
experiências pessoais... Não lhe aborreço? Sinceramente? Bem. O que na minha infância já
me fazia sofrer horrivelmente era a covardia moral dos meus correligionários. Aceitavam
suas existências de párias e consolavam-se com o sentimento místico e requintado de ser
um povo eleito. Ou então, representavam o papel de senhores absolutos no mísero lugar
onde haviam permitido que se ajuntassem ou, melhor, macaqueavam as maneiras dos
todo-poderosos, seus senhores. Eu odiava a todos, quaisquer que eles fossem. Odiava sua
língua, sua maneira de pensar, seu mercantilismo, sua melancolia atávica, sua presunção,
sua mania de se por em ridículo. À noite, mordia meu travesseiro com raiva à recordação
de um insulto, de uma humilhação, que a vítima tivesse sido eu, meu pai, ou um outro
judeu qualquer. Na escola, tremia de vergonha e todo meu ser se revoltava quando
pronunciavam a palavra judeu, mesmo de passagem, simplesmente para assinalar um fato.
Você compreende isso? Na maneira de dizê-lo, já se percebiam todos os preconceitos, o
ódio inveterado ao qual o decorrer dos séculos nada conseguiu tirar do seu fel e do seu
rancor. Eu sabia o que pensar (bateu energicamente no chão com a ponta da bengala).
Desde a idade de nove anos, sabia o que pensar; aos quinze, já tinha estudado a questão
profundamente e era capaz de sustentar qualquer discussão. Mas não é com discussões
que se mudam os fatos, mesmo os mais condenáveis, pelo menos no nosso mundo. E, entre
todos os fatos, havia um que me era absolutamente intolerável: o pensamento de que seria
excluído de um setor qualquer da vida e da atividade humana. Então, eu, com a minha
capacidade, a minha inteligência, o entusiasmo que sentia, não poderia jamais, quaisquer
que fossem as circunstâncias, digamos, ocupar uma pasta ministerial? Ou me tornar
presidente de uma academia científica? E isso era, meu caro, possuir altos desígnios (teve
um riso sardônico); eram pretensões loucas, minha ambição, não podendo nem mesmo
ambicionar uma cadeira na Faculdade. Quaisquer que fossem as circunstâncias, jamais
poderia conseguir a situação à qual um espírito mediano pode naturalmente aspirar, dado
que não seja marcado pelo estigma de Caim. Esse pensamento me punha fora de mim.
Podia-me dedicar a estudos, ensinar como entendesse, produzir trabalhos, ninguém me
impediria; enfim, não me recusariam sua aprovação, até mesmo sua admiração, se meus
trabalhos o merecessem, mas... no fundo da alma, não teriam confiança em mim, rejeitar-
me-iam, a mim e à minha obra, não me concederiam senão a contragosto as honras das
quais são tão pródigos entre si. (Tirou o chapéu, mas logo se cobriu). Tudo isso eram
raciocínios. O que é impossível contar é o essencial, a consciência de que me negavam
tudo aquilo. E o que me negavam? Simplesmente, o direito de ter meu lugar ao lado dos
outros, o direito de existir. Porque a existência não era possível para mim, pelo menos
então, sem a posse total do mundo, o mundo em toda sua plenitude, sem nada tirar ou
limitar, e a vida intelectual e todo o império que ilumina. Assim cai por si mesmo a objeção
que, sem dúvida, lhe veio ao espírito; que um só desses argumentos bastaria para me
tornar solidário com meus correligionários e para encontrar nova força na necessidade de
usar essas resistências. Já lhe disse, não gostava deles e, não gostando, sentia-me liberto
de toda e qualquer solidariedade. Eles não podiam suprir tudo quanto me faltava.
Deixando-os, eu não era um renegado; obedecia a uma necessidade interior. Dizer que não
gostava deles, é dizer apenas a metade da verdade; a verdade integral é que meu coração
estava do lado dos outros. O fato não é raro; aquele que é repelido, dá sua alma aos que o
rejeitam. É a característica do judeu: faz consistir sua terra prometida naquilo que lhe
recusam; seu bem mais precioso, naquilo que não possui. É sempre a história do Paraíso
perdido. Isso também é muito judaico: é a história do pecado original. Eu odiava de um
lado e amava do outro. Amava a língua deles.. . a língua! a língua que era tão minha como
meus olhos; amava a história deles, seus heróis, seus cantos, suas províncias, suas cidades.
Amava-os com um amor mais profundo que o deles e compreendia-os melhor que eles
próprios. Não é fanfarronada, rapaz, é a fatalidade. Aliás, eu o provei! Mas, voltemos atrás.
Para começar, forjei uma lenda. Quando da morte de minha mãe, uma mulher boa e fiel às
tradições judaicas, fiz dela uma cristã, filha de um militar aposentado. Convenci-me tanto
disso que passou a ser para mim uma realidade, acompanhada, como num romance russo,
por detalhes os mais convincentes. Mas isso fazia de mim apenas um mestiço, e eu queria
ser cristão puro-sangue. Imaginando um adultério com um rico proprietário da Silésia,
afastava deliberadamente de meu nascimento meu pai israelita que, nesse ínterim, tinha
por sua vez deixado este mundo sórdido. Nada de audacioso nisso. A natureza me
favorecera. Eu era louro, do mais puro louro germânico (teve novamente o seu riso
desagradável); a conformação do meu rosto que, inegavelmente, nada tem de oriental,
lembrava desde minha infância o tipo de camponeses que tínhamos em casa. E depois, a
vontade modela os traços. No último ano do liceu, já me assinava Waremme. Por adoção;
meu pai adotivo era um escritor católico que se dedicava à propaganda e redigia pequenos
tratados religiosos; era louco por mim e tinha-me em conta de gênio. Talvez não se
equivocasse de todo, talvez eu tivesse sido um gênio naquela época. Em todo caso, sabia
fazer com que os outros cressem nisso. Não vá você pensar que era habilidade da minha
parte; eu tinha o mundo na mão e o modelava ao meu capricho, como cera mole. Nunca
pedi favores a ninguém mas, até um determinado momento da minha vida, fiz o que quis
dos indivíduos que se puseram no meu caminho; aprendi a subjugar os homens, volúpia
sem igual, arte que exige prática. A mudança do nome em questão efetuou-se sob os
auspícios dum cônego e com o auxílio de um rábula. Não é preciso dizer que foi
acompanhado por um batismo e uma conversão ao cristianismo. A estrada estava livre em
minha frente. Você está dizendo alguma coisa, Mohl? Pensei que tivesse dito. Sim, estava
livre. Mãos invisíveis a aplainaram. Meus anos de estudo nas Universidades de Breslau,
Iena, Friburgo, sempre de leste para oeste, foram uma série de triunfos. Sim, de leste para
oeste, cada vez mais longe, da sarjeta para a culminância, depois novamente para o fundo,
até o mais profundo; de leste para oeste, como o sol. Mas, estou-me afastando de novo do
assunto. Vivia isento de preocupações; meu pai, é verdade, nada me deixara por assim
dizer, mas os subsídios afluíam de todas as partes, brilhantes recomendações me abriam
todas as portas, era admitido em círculos muito fechados, falava com personagens de
posição elevada como com parentes próximos e, ao mesmo tempo, não ficava ocioso, Mohl.
Absolutamente! Uma atividade devoradora não é a característica da minha raça? Não sabia
como empregar as forças que sentia em mim, forças vindas de camadas subterrâneas, do
tesouro inesgotável acumulado por várias gerações. Sentia-me chamado para grandes
coisas. 
 Minha vida não me desagradava em absoluto. O poeta Waremme se inflamava ao
contato do filósofo Waremme, o pesquisador de tesouros espirituais ao do poeta, o
mediador entre os homens abrasava por sua vez Waremme, o condutor de homens, e este
ao político. Então, aparecia a finalidade: a política revolucionária e criadora à qual me
sentia destinado.
A ideia de uma Europa transformada, de uma unidade continental sob a hegemonia da
Alemanha, uma hegemonia germano-romana, entusiasmava-me. Oh! que sonhos! Sonhos
loucos! Eu, naturalmente, não me queria prender a nenhum emprego, repelia as ofertas as
mais tentadoras. Tudo me parecia desprezível; temia que minha estrela se apagasse, se me
servisse dela como de uma lamparina. Depois, em pleno meio do vôo, sobreveio a queda;
para uma elevação de Prometeu, uma queda pavorosa. Mas a catástrofe possuía uma lógica
estranha, uma lógica perturbadora; recusara-me a preveni-la, acreditara que podia afrontá-
la, eu... mas, que diabo, Mohl, você me deixou tagarelar, olhando-me como um faminto
olha um pedaço de pão... Creio que já é muito tarde... Vamos embora, vamos!" 
 V        

Não era muito tarde ainda: dez horas, apenas. Caminharam em silêncio. Quando
chegaram à rua Usedom, Warschauer quis despedir o rapaz, mas Etzel pediu para deixá-lo
subir; não se achava fatigado, dizia. Tão pouco fatigado mesmo, que tinha medo do leito.
Warschauer se pôs a rir e seu riso parecia um cacarejar. - "Mal calculado, meu querido
Mohl!" - resmungou ele - "não haverá mais histórias hoje; Warschauer e companhia fecham
as portas". Colocou a chave na fechadura. Etzel tinha a impressão de que não devia ceder,
que sem isso tudo estaria perdido, que no dia seguinte Warschauer estaria novamente
glacial, hermético. Pensava com pavor no seu pequeno pecúlio que, não obstante
escrupulosa economia, diminuía, evaporava-se cada dia. Que fazer, quando estivesse
esgotado? Não se podia instalar no alojamento de Warschauer que também nada possuía. E
isso seria entregar-se de mãos e pés atados. O tempo urge; o velho de Hanau mostra a
fisionomia extenuada daqueles que a morte já marcou; para o outro, lá na prisão, as
semanas passam; Trismegisto, sentado, de pernas cruzadas, pouco se importa com a
verdadeira justiça; alhures, sua mãe o procura. Como continuar suportando tudo isso? É
impossível. Tem grande dificuldade em conservar sua calma e importa nada deixar
transparecer; convém que permaneça de sangue frio, que conserve suas ideias claras.
Agora vê para onde o arrasta aquele homem, aquele Warschauer-Waremme. Sente-se
aspirado por um mundo onde os valores são falsificados, pelas trevas ilimitadas de uma
alma poderosa. Havia feito uma ideia, completamente diferente de sua missão: concebera-
a mais simples; complicada, sem dúvida, mas à maneira de um problema de aritmética a
resolver, de um nó a ser desfeito com paciência e habilidade; não esperava ver inundar seu
próprio coração toda aquela existência carregada de problemas, nem encontrar aquele
temperamento misterioso, sombrio, incompreensível, do qual precisa descobrir logo tudo,
recomeçando todos os dias com sua experiência quase nula e com uma renúncia completa
de si próprio (porque em Warschauer nada lhe inspira confiança, nada lhe é simpático,
nada o comove ou atrai; queria vê-lo acorrentado diante de si e obrigá-lo, com um ferro em
brasa na mão, a confessar: sim ou não; apenas isso: sim ou não). Pobre dele! Ser obrigado a
arrancar tudo, pedaço por pedaço, e a reconstituir um todo, trecho por trecho, sem saber se
se conseguirá chegar a algum resultado, ao sim ou ao não esperado. De cinco em cinco
minutos, passa do arrepio ao ardor da febre; tirita e arde intercaladamente; pensa que se
for embora, não passará de um canalha ou de um imbecil. É preciso manter a posição
conquistada. 
 Subiu. Warschauer lhe concedera meia hora. Não contara com a tenacidade, com a
manhosa sutileza de seu companheiro e, menos ainda, com sua própria vontade de contar
histórias que, uma vez despertada, cede ao automatismo da palavra; em resumo, digamos
antecipadamente que eram três horas da manhã quando Etzel deixou a casa. Quando se
encontrou na rua, do lado do campo de manobras, estava amanhecendo; de início, foi
incapaz de dar um passo e estendeu-se sobre a soleira de pedra de um bar que acabava de
fechar; apoiou as palmas das mãos contra o peito e, cerrando as pálpebras, respirou
profundamente. Estava agitado por um tremor contínuo. Tudo isso o dizemos por
antecipação. Quando chegaram ao fim da escada, ouviram barulho no estreito corredor.
Escutaram, no quarto dos Paalzow, vozes desagradáveis de pessoas que brigavam; o filho
de Paalzow, em tom insolente, exigia dinheiro da mãe; um bebê choramingava
lamentavelmente. O aposento de Warschauer cheirava a banha rançosa. O professor não
encontrou de pronto os fósforos e pôs-se a praguejar entre os dentes. Finalmente, o gás foi
aceso. Então, avistaram enorme regimento de grandes e repugnantes baratas que saíam de
baixo da porta da alcova e enxameavam na prateleira de alimentos. - "Oh, que beleza!" -
disse Etzel e permaneceu um instante pensativo. Depois, embebeu um pedaço de pano em
álcool e atirou-o sobre as baratas no ponto mais denso do ajuntamento; e quando centenas
delas ficaram aturdidas, varreu-as calmamente para fora. - "Café?" - perguntou.
Warschauer fez que sim com a cabeça e o pequeno fogareiro novamente entrou em função
naquele dia. Warschauer passeava com seu passo de tambor-mor, o corpo arqueado, as
mãos sob as abas do casaco e a fisionomia particularmente sombria. No terceiro andar, um
gramofone fanhoso tocava uma canção popular. Etzel começou a cantarolar sua letra: 
 Noite chinesa, 
 Noite de amor... 
 E de carícias,   
 - "Eu lhe peço, Mohl, deixe esse horror" - disse Warschauer num tom doutoral, parando e
lançando-lhe um olhar colérico. - "Está bem" - respondeu Etzel - "deixarei de cantá-la mil
vezes, mas um favor vale outro... diga-me então, senhor professor... não, eu não me
calarei... Para mim é indiferente que faça olhares furiosos; é preciso, paciência! Não devia
ter começado; tudo o que quiser, mas continue agora. Ah! então você serviu o molho e não
vai haver assado? Escute, tenho muito interesse nisso, trata-se de.. . meu Deus, acredite ou
não, mas não me faça esperar tanto... é lamentável da sua parte, ouviu? é lamentável..." De
punhos cerrados, olhos brilhantes, colocara-se frente a Warschauer como se quisesse
amedrontá-lo. "Tz, tz, tz" - fez Warschauer com irônia - "veja que bela desordem esse
Leonardo Maurizius, esse zero, estabeleceu em sua cabeça, de comum tão equilibrada.
Vamos, o que você quer saber? Em que lhe posso ser útil? Não me peça demais. Se você me
provocar, sou capaz de lhe fornecer alguma coisa que lhe tire a vontade de rir. I had a good
time with you, my boy, you will have a bad time with me. Valente menino, pobre inocente
que mergulha imprudentemente na água tépida e faz cócegas no ventre do tubarão. Venha
aqui, Mohl, imediatamente, quero acariciar-lhe ... venha." O Golem ... é a sua voz de Golem
.. . lúbrica e sonolenta. — "Não" — murmurou Etzel se escondendo atrás de uma pilha de
livros. — "Poltrão" — escarneceu Warschauer brincalhão — "você não compreende que está
defronte de um homem formado de liga complicada? Tome cuidado, se a liga for um pouco
mais grosseira... eu lhe previno, você não avalia a proporção de metal fino que ainda resta;
e isso, graças a Deus, porque se você fosse capaz de avaliá-la, então você já estaria
corrompido. Eu lhe previno contra os que levantam piedosamente os olhos para o céu,
contra esses falsos devotos gregos, esses sacerdotes do novo rito, esses discípulos de uma
doutrina esotérica, esses iluminados que, durante suas missas negras, adoram o deus
hermafrodita. Essas pessoas não deixarão de persegui-lo. Esse culto conquistou milhares de
adeptos, pela simples razão que querem juntar Marte com Eros e reanimá-lo com uma
aliança secreta depois de sua dolorosa derrota... Instintos pervertidos adquirem livre curso.
Você não me compreende? Tanto melhor. Em todo caso, nada tem a temer de mim. Nesse
sentido, a ponte lançada entre nós não tem mais resistência que um arco-íris. Você
continua a não compreender? Ah! Ah! ei-lo que começa a perceber, aleluia." Aproximou-se
com vivacidade de Etzel, tomou a sua cabeça entre as mãos, mergulhou o olhar em seus
olhos e beijou-o na testa. Etzel não se moveu. O instinto de papão de Warschauer parecia
temperado por uma espécie de dignidade intelectual. Um estremecimrnto lhe passou
entretanto pela espinha. - "Então?..." - murmurou, obstinado. Warschauer teve um
movimento de zombaria: - "Eis o que eu chamo aproveitar-se da situação" — disse
brincando — "você não tem mais senão uma ideia na cabeça..." — "Então?" — insistiu
Etzel, como uma criança, e com energia. — "Está bem! sim — respondeu tranquilamente
Warschauer"— "era preciso que do nosso encontro saíssemos aniquilados, ele e eu." 
 Pôs-se a caminhar rapidamente pelo quarto, pensativo, a mão esquerda sobre a nuca e
oscilando o braço direito como um soldado. O copo de água tremia na mesa. — "No fundo,
ele é realmente esquisito, ao mesmo tempo gordo e sombrio" — pensava Etzel, com todos
os sentidos exacerbados pelo desejo de nada perder. De início foram apenas observações
sem nexo; mais de uma beirava o lugar comum, quando, por exemplo, disse que, em
Maurizius, havia encontrado a alma diametralmente oposta à sua; mas, os detalhes que
forneceu lançaram em seguida uma viva luz sobre suas relações. No começo, tinha havido
realmente choque, mas a força de propulsão emanava de um deles principalmente; o outro
fora, apenas, arrancado à sua passividade, nada mais podendo fazer do que participar do
movimento: - "Eu não tinha outra alternativa, era preciso que o dirigisse, o dominasse, o
reduzisse à impotência." — "Por quê?" — interpelou Etzel — "Você não acaba de dizer que
ele era um zero?" Warschauer, sem se interromper na sua marcha, levantou o braço direito:
— "Sem dúvida, mas um zero representativo, um zero colocado no lugar próprio para
formar um número enorme. Toda a vida pública é formada de semelhantes zeros. De
qualquer maneira, era um zero cujos partidários não eram desprezíveis, um zero brilhante,
extraordinariamente dotado, que um dia ou outro iria certamente se erguer como um balão
cheio de hidrogênio; mas não foi isso o que decidiu, o que fez pender o prato da balança...
Preste atenção. Era Waremme quem lá estava, Gregorio Waremme: metamorfose. Etapa
por etapa, venci todas as resistências. Havia conquistado meu lugar no mundo, afinado
meus sentimentos pelo seu diapasão; havia, sobre os homens dos quais necessitava,
realizado um trabalho (entre parênteses, era apenas para fazê-los crer em mim, para
convencê-los do meu valor), um trabalho, digo, do qual ainda sentia os efeitos em todos os
meus membros dez anos mais tarde. Ouvi dizer que o célebre ator Salvini — talvez você
tenha ouvido falar dele? — sofria um colapso cada vez que representava um grande papel;
um dos meus amigos, diretor de teatro, viu-o uma vez cair desfalecido nos bastidores após
o quinto ato do Otelo e, durante hora e meia, um médico tivera de lhe ministrar todos os
recursos, antes de reanimá-lo. Evidentemente há atores e atores. Alguns representam em
cena uma morte dilacerante, mas, uma vez caído o pano, rompem em exclamações
obcenas. Você está novamente me olhando com espanto, pequeno Mohl, parece que essa
comparação com um ator o desconcerta? Mas, eu era realmente um ator. Era obrigado a
representar e se não representasse com perfeita arte, entregando-me completamente ao
meu papel, nada me restaria a fazer senão ir embora. Espero que você não fique chocado
com essa palavra: ator; não a tome em sentido vulgar, não se esqueça que há cem anos
que Goethe escreveu Wilhelm Meister e a Morte de Miedin; e mais de um século e meio que
apareceram as Cartas de Lichtenberg sobre Garrick. Desde então o ator ficou rebaixado ao
nível de empregado de comércio e sua pessoa se tornou um ideal comum e secundário de
pequenos burgueses - diga-se de passagem. Lembro-me de ter passado uma noite inteira
discutindo sobre isso com Maurizius. Ele não me compreendia; sobre essa questão, era de
uma estupidez exasperante. Certamente que eu era um ator, certamente que era. Mas ele
não era, oh! não. Ser, foi a minha perdição; não ser, a dele... — "Como assim?" —
perguntou Etzel, ofegante de curiosidade — "Mas, antes, me explique: em que você era
ator." Insensivelmente pôs-se a andar atrás de Warschauer, sempre arqueado, e isso era tão
engraçado de ver como certas caricaturas muito conhecidas: Eisele e Beisele. - "Tudo o que
se realiza de grande, seja pela alma, seja pelo espírito, deriva da arte de se transformar,
elevada ao sublime" — enunciou Warschauer em tom doutoral. — "Não se esqueça que eu
precisava possuir um mundo de conhecimentos, disciplinas as mais variadas, filosofia,
teologia, economia política, línguas, direito, história e cada uma delas profundamente e
unicamente por si mesma:, porque, desde o princípio, estava resolvido a não me utilizar de
nenhuma delas como de uma vaca leiteira, de uma máquina produtora de títulos e
empregos, por motivos longamente refletidos, como já lhe dei a entender, pois minha
ambição me impelia para bem mais alto; tinha portanto de tentear, não somente para
garantir sempre à minha própria pessoa o lugar em que estivesse melhor, como também
para instruir, distribuir e estimular meus admiradores, meus partidários, meus
mensageiros, meus propagandistas, avaliando exatamente sua força e seus talentos; ao
mesmo tempo encontrava-me constantemente envolvido por uma rede de interesses
complexos, como um geral de ordem religiosa. Porque, de acordo com minhas ideias dessa
época, estava em jogo uma questão de importância capital: um poderoso partido confiava
em mim, a atenção do imperador havia-se voltado sobre minha pessoa, o Vaticano me
enviava emissários secretos. Imagine que, " last not least", eu precisava, além disso, agir de
maneira a apagar minhas pegadas anteriores, a esconder minha origem, e tinha de me
desembaraçar de um vago vestígio metafísico de remorso que me fazia suspeitar da minha
liberdade de espírito como homem e a ver nela o resultado de um esforço, até mesmo de
uma tortura. Some você tudo isso e tenha a coragem de afirmar, depois, que não era uma
dança sobre a corda bamba. O outro, pelo contrário... nenhuma preocupação; vivia bem. O
que era, nada lhe havia custado. O legítimo lírio dos campos. Leonardo, aquele a quem
tudo vem ter sem esforço. Tinha necessidade de representar papéis? Haveria mesmo algum
papel para ele? Que sabia da peça onde representava um personagem, uma vez que nada
encarnava e apenas deixava a vida correr? Deixar a vida correr. Leonardo, aquele a quem
tudo vem ter sem o menor esforço da sua parte... deixava a vida correr. Seu lugar estava
sempre à espera, na mesa do hotel; sua entrada, na bilheteria. A ciência? Um bazar onde
se apanha o que se necessita, objetos valiosos, naturalmente, e que não traem a fabricação
em série; os conhecedores são raros e é preciso ter azar para não conseguir iludi-los. A
arte? Uma nobre preocupação. O trabalho? Enobrece o homem, como é do conhecimento
geral. Os deuses quiseram que antes do prazer houvesse o suor e, antes do amor, o risco de
um coração que... nada tem para arriscar. Um zero ao lado de outro zero." Warschauer
prorrompeu numa gargalhada que despertou um eco estranho. — "Eu não posso contudo
compreender" — aventurou Etzel, apoiado na porta corrediça — "e é justamente por julgá-
lo assim que não posso meter na cabeça tenha podido haver antagonismo entre ele e você.
Como era possível? Sem esforço... sim. Mas, por que ele e não um outro? Poderiam ser
muitos outros; pelo menos é a impressão que tenho. É preciso que... vou dizer uma coisa,
mas não se vá zangar..." - "Bem, e então?..." - "É preciso, me parece... posso dizer?" - "Não
tenha receio, pequeno Mohl. O que é que é preciso?" - "É preciso que tenha sido por culpa
de Ana Jahn. Por culpa ... isso parece bobo ... que ela tenha sido a causa, quero dizer..."
Warschauer soltou uma risada sibilina. - "Oh! is thats o? - disse ele adulterando a corrente
expressão americana. I wonder. Clever boy. Never in my life I saw such a clever boy." 
Recomeçou a andar, com o corpo arqueado. 
CAPÍTULO 11
 
I

UM LONGO SILÊNCIO. Warschauer parecia refletir. Segundo as aparências, a audácia do


rapaz o desconcertava. O que escondia? A candura extraordinária com que Etzel havia, já
por duas vezes, pronunciado aquele nome, não podia escapar ao seu olhar experimentado.
No fundo, Mohl nada sabia, apesar do seu pretenso conhecimento dos fatos e do seu tom
positivo. Falara daquilo como se fala de um personagem interessante de um peça de teatro
que se supõe célebre, ou como um detetive que, de mil maneiras, procura desviar a
atenção da sua vítima para, em seguida, lançar-ihe ao rosto, com calculada frieza, acusação
esmagadora. Engraçado e ridículo. Como se ele, Warschauer, tivesse alguma coisa a temer.
Não tinha absolutamente nada a temer. Se havia fixado residência em Berlim para levar
uma vida apagada, quase a de uma sombra, era com toda a liberdade de ação; não era
objeto de nenhuma perseguição, não tinha razão alguma para temer qualquer
investigação, não havia contra ele nenhuma queixa. Tinha conquistado "lá" o direito de
retomar seu primeiro nome; as razões que o haviam determinado relacionavam-se
estreitamente com a catástrofe que denominava sua "falência na Europa" (mas que não
fora senão o prelúdio de uma outra falência muito mais grave). Podia, sob esse ponto de
vista, explicava com veemência, dividir sua vida em quatro períodos muito distintos:
período judeu, período germano-cristão, período internacional de além-mar e período atual,
para o qual ainda não havia encontrado denominação apropriada. Talvez o seu amigo Mohl
lhe sugerisse alguma: período de volta, por exemplo. Volta às origens. Era sumamente
interessante, dizia ele. Recomendava-se a diversos autores modernos como tipo de Proteu.
Estava em condições de lhes fornecer, sobre o atual estado do mundo, informações que
lhes permitiriam fazer fortuna. Por si, renunciara a qualquer ambição. Para quê? Não tinha
ânimo nem para escrever uma daquelas autobiografias como apareciam tantas. Vinte e
cinco mil obras eram publicadas todos os anos na Alemanha. Seria grotesco acrescentar a
de número vinte e cinco mil e um. Além disso, seria anatematizado como visionário,
culpado de exagerar ainda os horrores do Apocalipse. 
 Assim divagou ainda por algum tempo, enquanto Etzel, impaciente, pulava de um pé
para outro. Apanhou uma escova e pôs-se a escovar a roupa com um cuidado minucioso,
calculado. E ao mesmo tempo, lançava sobre o rapaz, por baixo de seus óculos pretos,
maliciosos olhares oblíquos. De repente, mudou de atitude e entregou-se a mil gracejos a
propósito da alusão a Ana Jahn. Era o mesmo que atirar pelas costas: - "Felizmente o
revólver não estava carregado, não é, meu caro?" - gracejou ele. - "Que falta de tato, que
indiscrição! Era decente atacar assim as pessoas, sem preveni-las?" - "Palavra de honra" -
interrompeu corajosamente Etzel - "penso que, no ocorrido, não foi você quem sofreu
prejuízo. Em resumo, nesse processo, você triunfou em tudo." Warschauer, de pé, dorso
arqueado, tinha o aspecto de um boi que rumina gravemente, imperturbavelmente. - "Que
leva você a achar isso?" - perguntou. - "Diversas coisas." - "Por exemplo?" - "Por exemplo
que, passados dois anos, ou não sei quanto tempo depois, Ana Jahn em sua casa... ou
antes, com você." Warschauer franziu a testa como se calculasse. - "Dois anos? Não, você
está enganado. Não havia decorrido nem um ano. Espere... do princípio de 1917 ao mês de
novembro." O tom amável desse reajustamento obrigava Etzel a se colocar na defensiva,
mas ele não se importava mais com nenhum perigo. Uma espécie de embriaguez o
arrastava de ousadia em ousadia. "Agora, paciência" - pensou e respondeu com
atrevimento: - "Sim, mas pelo que sei, somente muito mais tarde é que ela regressou do
lugar em que se encontrava com você e não lhe restava mais nada do dinheiro que havia
herdado da irmã. Não tinha mais nem um vintém. O acaso fez com que eu o soubesse com
toda certeza" - disse ele, mentindo descaradamente - "porque conheço a senhora que a
recolheu em situação miserável. Portanto, tenho razão quando afirmo que, no ocorrido,
você triunfou completamente sobre Leonardo Maurizius. Ele nada conseguiu e você fugiu
com os despojos." 
 Esse ataque atrevido exerceu sobre Warschauer efeito estranho. No primeiro instante,
pareceu que se ia encolerizar; sua face cor de terra rafou-se de azul-cinza, uma mancha
avermelhada surgiu no meio da testa e, coisa extraordinária, as pontas das orelhas
começaram a tremer (suas orelhas, efetivamente, não eram curvas na parte superior, mas
ligeiramente pontiagudas, como as dos antigos faunos). Pela segunda vez, desde que Etzel
o conhecia, retirou os óculos; pela segunda vez, Etzel viu seus olhos apagados, incolores;
seu peito se elevou em uma aspiração profunda. (Etzel, intrigado, pensava: "Que irá este
velho fazer?" Para ele, Warschauer, com seus quarenta e sete ou quarenta e oito anos, era
um velho, mas jamais lhe parecera tão idoso como nesses terríveis dez ou doze segundos.)
Com a boca aberta, passeou o olhar incolor ao redor, como se procurasse um objeto com o
qual pudesse dar golpes, depois, inesperadamente, seus traços se relaxaram, deu alguns
passos para Etzel, parou, aparentemente desconcertado, sacudiu a cabeça, deixou-se cair
sobre a cadeira e absorveu-se em profundas reflexões. Decorreram mais ou menos cinco
minutos: - "Vem cá um instante, Mohl" - disse de súbito em voz baixa. Etzel obedeceu
silenciosamente. Warschauer repôs os óculos, segurou as mãos do menino e conservou-as
fechadas entre as suas. - "Quando eu ainda era estudante" - começou com um sorriso
lúgubre - "tive de preparar para fazer exames um jovem conde Rochow. Um dia, pedi-lhe
que me dissesse o que sabia sobre Helena. Ele me respondeu, e eu ainda me lembro
palavra por palavra porque era uma miscelânea de diversas coisas que havia lido: Helena,
filha de Nêmesis e de Júpiter, teve primeiro uma aventura amorosa com um cisne;
desposou Menelau, foi raptada por Páris e, depois da guerra de Tróia, acompanhou-o ao
Egito onde se descobriu que não era a verdadeira Helena; esta havia ficado com Aquiles; foi
atacada por Orestes e Pilades, mas salva por Apolo. Que acha você dessa aristocrática
salada do conde Rochow? Eu raramente ri com tanto prazer. Eis o que acontece com os
conhecimentos ad-hoc, meu jovem amigo; surge sempre, misericórdia divina! uma Helena,
filha ao mesmo tempo de Nêmesis e Leda. É assim que se escreve a história, rapaz. Confiar
nela é o mesmo que tentar apanhar peixes numa cratera em chamas. Quem o tentar
seriamente, poderá no máximo se instruir a respeito da natureza do fogo e da lava; quanto
a apanhar peixes, jamais. Para começar, aprenda isto: os fatos são sempre diferentes de
como se apresentam. Permanecem misteriosos para aqueles com quem se verificam;
portanto, como é que uma pessoa que apenas ouviu contar, poderá ousar dizer: eis como
aconteceu. Mas não quero julgá-lo com muita severidade, meu filho, você me causa pena!"
Soltou as mãos de Etzel e levantou-se sem prestar atenção à fisionomia um pouco
desconcertada do rapaz. 
 II 

 Foi à janela, abriu-a e murmurou: - "O céu ainda está vermelho, lá embaixo." Fechou-a e
prosseguiu: - "Mas enfim, pequeno Mohl, que ideia você tem na cabeça quando fala em Ana
Jahn? A completa ignorância não o faz ficar sem jeito? Isso me dá a mesma impressão de
uma criança de peito que se metesse a dissertar sobre a nebulosa de Andrômeda. Perdoe-
me, mas há dimensões e relações que escapam ao seu julgamento. E, a esse respeito, nada
lhe poderei dizer de útil, embora gostasse de fazê-lo. Por que não fornecer a um rapaz tão
bem dotado indicações sobre os labirintos psicológicos, indicações que algum dia lhe
poderiam ser úteis? Mas apesar de toda a sua maturidade de espírito, Mohl, é
surpreendente ver com que ingenuidade você se ocupa de determinados problemas. Não
se zangue. Estou vendo que está aborrecido comigo: estou falando com toda a seriedade e
sua candura me enternece; gostaria de poder reconciliar com a realidade certas ideias
muito... digamos, muito candidas que você tem sobre ela; antes de tudo, no que me diz
respeito, pois sinto que faço figura de velhaco, um verdadeiro Wurm da Intriga e Amor de
Schiller; apenas, não sei, não sei. Seria preciso ser um Tolstoi para poder, com palavras...
Talvez você tenha interesse em saber que eu já havia encontrado Ana Jahn antes de ela
conhecer o futuro cunhado... Você já sabia? Bravo! Ela foi a primeira mulher que... vejamos,
como devo dizer? Era uma pessoa que chamava a atenção. Lembro-me ainda muito bem da
tarde em que a vi pela primeira vez; foi numa pequena reunião em casa de uma certa
senhora Hardenberg. Ana estava de pé, ao lado de um vaso da China de um metro e meio
de altura, com a cabeça ligeiramente apoiada sobre o braço; tinha dezessete anos, mas a
natureza nada mais tinha que aperfeiçoar nela. Toda a sua pessoa era estranhamente bem
acabada. Tive a impressão que era altiva, altiva ao ponto de sacrificar sua vida, seu orgulho,
se circunstâncias assim o exigissem. Mas nela, o que significava a altivez? Pronuncia-se
essa palavra sem refletir e tem mil acepções que vão do mais vulgar ao mais profundo. Até
hoje, não encontrei senão uma pessoa cuja altivez houvesse determinado o destino; foi ela.
De qualquer modo, estava seduzido por ela ao mais alto grau, e as coisas não ficaram nisso.
A doutrina dos Sikhs da India ensina que quando um homem está separado de sua alma e
daquilo que sua alma deseja, não perde tempo brincando pelo caminho, mas aperta o
passo. Suponho que você esteja compreendendo. Estava escrito! Com os homens parece
que, ao contrário do que se verifica na química, os corpos simples reagem mais ativamente
do que os compostos. Nela se encarnava o mundo no qual eu não havia conseguido
penetrar senão transformando uma a uma todas as fibras do meia ser. Foi sua existência
que me revelou o sentido da minha. Eis a verdade. Nós nos entendíamos muito bem, ou
antes, ela me ouvia muito bem. Em toda minha vida, incluindo você também, Mohl, nunca
vi voltar-se para mim rosto tão atento, tão ofegante de atenção. Em minha juventude, pude
arrastar meus ouvintes pelo verbo, galvanizá-los, pude... oh! o que não pude eu fazer? Pude
devolvê-los a si mesmos completamente renovados. Tanto os homens como as mulheres.
Nenhuma resistência mais; viam o que eu via, sentiam o que eu os fazia sentir. Seus
corações se tornavam valentes e altivos; punham-se a compreender as metáforas, porque
somente a alegoria é capaz de conduzir às regiões elevadas. Exprimir-me era para mim
uma segunda natureza, uma verdadeira natureza, exatamente como as pulsações das
minhas arterias. Assim que me podia exprimir, identificava-me imediatamente com meus
ouvintes; era em mim a mais sublime forma de amor em relação aos homens e às
mulheres; infatigàvelmente, procurava conquistá-los a fim de que se pudessem evadir de si
mesmos, de seus refúgios e limites; para mim, não possuía nem refúgios nem limites; aliás,
depois do que acabo de dizer, você deve ter compreendido que não. No que se refere às
mulheres, não podia privar-me delas. Comigo, a tarefa era fácil. Era inflamável como
estopa. Não refletia nunca no perigo a que me expunha. Não poupava minha pessoa; posso
dizer mesmo que me prodigalizava, como se tivesse cinqüenta vidas para desperdiçar.
Alguns amigos caçoavam e diziam que toda mulher era para mim uma Helena. É absurdo.
É preciso ter adorado frente a muitos altares para saber o quanto são inacessíveis os deuses
e as deusas, principalmente quando foram em vão os sacrifícios ofertados. Quando a
verdadeira Helena surgiu, aconteceu, oh! profético Rochow, que era verdadeiramente filha
de Nêmesis." 
 Warschauer caminhou durante alguns instantes pelo quarto, em silêncio; Etzel tinha os
olhos fixos em três baratas, escuras e repugnantes, que andavam em fila pelo assoalho.
Não as via, pois era todo ouvidos. - "O que se passou entre nós não tem muita importância,
pelo menos para o que nos preocupa. Os fatos materiais são sem interesse. Servem apenas
para fazer perder de vista o problema principal e rebaixam os acontecimentos da nossa
vida ao nível de um romance ("Péssima saída, pensou Etzel, ei-lo que deixa o essencial em
silêncio". De fato, Waremme, perturbado, pôs-se a gaguejar durante alguns minutos). O
que foi decisivo é que eu a queria conquistar, enquanto ela... o que queria ela conquistar?...
Vejamos, o que, em resumo?... um fantasma dela própria. Ainda se pretendesse conquistar-
se a si própria, bem... mas, sua reputação, o que se deve à própria honra, o dever de se
conservar... é sacrílego, sacrílego... é a moral dos meios bem-pensantes, uma moral de
fósseis, é sacrílego. Uma mulher não compreende o que significa o tempo de um homem.
Devora tudo o que se lhe dá; absorve-o como a uma limonada enquanto que ela, quando
tem de experimentar um chapéu, não tem mais tempo para perder conosco. Ana Jahn era
bem dotada, poderia ter-se tornado alguém. Mas, não venerava nada, não acreditava em
nada, apesar de ir ao confessionário todos os domingos. Não tinha nenhuma compreensão,
nenhum respeito pela missão de cada um. Seria preciso dissecá-la para ver nela... era tão
hermeticamente fechada como uma noz em sua casca ... Eu? ... Que quer você, não era um
cavalheiro Toggenbourg, um apaixonado tímido... Que fazer? (Caminhando sempre, deu um
ressonante golpe com a palma da mão sobre o peito). Que fazer? Quebrar a casca não me
entregava a sua alma, sabia bem, mas existe o desejo de vingança. Dei-lhe um xeque-mate
e fui vencido. Talvez estivesse louco. Cometi asneiras incríveis. Contei-lhe que era filho de
um príncipe reinante. Ao mesmo tempo, multiplicava minhas forças e trabalhava como um
escravo. Mas, uma paixão como a minha inspirava-lhe temor. Afinal, ela era uma jovem
alemã, você compreende o que eu quero dizer. Aquilo ultrapassava sua compreensão, pois
estava aprisionada pelas convenções como num espartilho de ferro. Não se sentia em
segurança comigo. Pressentia sangue estrangeiro... tinha medo; fascinação e medo.
Quanto mais eu a inundava de luz, mais sua alma se ensombrava. Vá se compreender isso!
Não se querer deixar arrastar, oh! por nada deste mundo; acabar-se vergando, tolerando,
sim... ela ignorava que me podia acorrentar se se entregasse, que em mim brotariam raízes
se me preparasse o terreno; mas não o imaginava, essa Helena alemã; isso ultrapassava
seu horizonte. Rompemos. Ela andou de uma cidade para outra, até que sua irmã lhe
ofereceu hospitalidade. E o que aconteceu? Uma tarefa em conformidade com sua
natureza lá a aguardava. Encontrou uma criança privada de mãe e que tinha necessidade
de cuidados, um homem sentimental e sem energia que precisava ser amparado; não sabia
o que fazer de uma alma que se entregava, já que a sua sempre fora escancarada como a
porta de um moinho. O que lhe faltava era a auréola de mártir, um pouco de
acoroçoamento protetor, um pouco de admiração; podia representar de governanta, de
inacessível, de mediatriz; era feita sob medida para esse papel; era adorada e não corria
nenhum risco. Na verdade, poderiam ter encontrado, juntos, uma felicidade tranquila,
aceitável; teriam formado um desses casais onde o marido é um lacaio e a mulher, Deus
sabe como é possível, permanece virgem aos quarenta anos, mesmo depois de haver dado
à luz meia dúzia de filhos. Isso certamente teria acontecido, se Maurizius tivesse sido livre.
Como não era, sucedeu a queda irremediável na tragédia burguesa com sua sufocante
atmosfera onde os constrangimentos, as complicações se multiplicam como pústulas sobre
a pele durante uma erupção cutânea. É a luta entre o amor e o dever, o respeito aos laços
sagrados, o receio das bisbilhotices e da calúnia, a rivalidade entre irmãs, as imprudências
perigosas e covardes, a correspondência clandestina, as faltas e o remorso. O drama
atravessou todas as fases conhecidas, clássicas; com ou sem minha intervenção, o
lamentável desenlace viria como o golpe de uma clava já erguida. Talvez eu não devesse
ter intervindo. Eram tão desgraçados, os três! Em seu desvario e cegueira, esvoaçavam
como passarinhos em torno do ninho destruído; essa comédia pungente exigia
rigorosamente um deus ex machina. Sem meu auxílio, não podiam encontrar solução; não
tinham vontade, apenas obedeciam ao instinto. Minha Galatéa, minha Helena, raptada por
um imbecil. Se, pelo menos, fosse um Páris! Mas, absolutamente não, por nada dêste
mundo. Encontrei-a maculada, chafurdada no lodo; todo o seu ser implorava socorro. Sem
mim que era ela? Mas não o queria confessar e, quando eu a retirei do pântano, não era
mais do que um cadáver. Quero dizer que não possuía mais alma. Certamente seu corpo
estava pousado sobre a terra, bebia e comia segundo as necessidades, comprava vestidos,
lia livros, visitava museus e... não era mais do que um cadáver. Eu não sou Cristo,
ressuscitar a filha de Jairo não estava em meu poder. Pelo contrário, era um homem
acabado nessa época, posto de lado como em obediência a uma senha; não prestava mais
nem para ser lançado aos cães. Meus mais entusiasrnados partidários não me conheciam
mais: para me receber, nunca estavam em casa; tinham perdido a memória das ideias
trocadas, dos projetos elaborados em comum. Cartas me eram devolvidas sem terem sido
abertas; minhas fontes de renda se esgotaram, nada me restava a fazer senão levantar
acampamento e abandonar o país levando comigo essa metade inanimada de mim mesmo,
como Joana a Louca com o cadáver do esposo. Para o oeste, sempre para o oeste." 
 Aproximou-se da janela e pôs-se a tamborilar sobre o vidro, tão forte e por tanto tempo
que Etzel, cujos nervos tensos não suportavam semelhante tortura, instintivamente tapou
os ouvidos. Ao fim de um instante, ousou puxar Warschauer pelo casaco. - "Meu Deus! pare
com isso" - pediu em voz baixa. Warschauer, sem se voltar, deixou cair o braço. - "E o que
entende você por deus ex machina?" - murmurou. - "De tudo, é o mais interessante..."
Warschauer teve um gesto de desdém. - "Pode ser. Por mim, no momento... isso não me
interessa". - respondeu com rispidez. - "Olhe aquela mulher, naquela janela; é verdade,
você não pode vê-la, dada sua altura, pobre toupeira que você é. Uma mulher nua. Está
lavando os pés. O espetáculo é bonito, tranquilo e bonito. Talvez seja bela e jovem, não o
posso distinguir assim na sombra; mas, se o for, tenhamos para ela um pensamento
reconhecido pelo seu descuido. Há sempre na vida uma coisinha para cada um. Mas talvez
esteja-me iludindo, receio mesmo que aquela mulher seja uma velha prostituta." - "Meu
Deus! que coisas terríveis você diz às vezes!" - exclamou Etzel. - "Que nos importa essa
mulher que nem conhecemos?" - "Com efeito, que nos importa essa mulher?" - repetiu
Warschauer em tom melancólico. Etzel, surpreso, levantou os olhos, abaixando-os depois,
envergonhado. Warschauer rompeu num riso que lhe pareceu tão falso como uma voz
desafinada: - "Uma vez" - recomeçou ele - "eu estava assim encostado a uma vidraça, a
testa apoiada no vidro; era de noite, num pequeno albergue vazio de uma aldeia da França,
no fim do outono; olhava pela janela e, na janela fronteira, vi uma menina que tocava
violino. Não se ouvia nada, percebia-se apenas que estava compenetrada daquilo que
tocava; por detrás das cortinas brancas, delineava-se sua delgada silhueta. Atrás de mim,
exatamente como você nesse momento, pequeno Mohl, estava... Ana. As malas estavam
feitas, devíamos partir no dia seguinte; ela para Paris, eu para Cherburgo. Tudo estava
acabado entre nós." 
Após um silêncio, Warschauer se referiu aos últimos dez mil francos que havia perdido no
bacará. Restavam-lhe apenas quatro mil, resto de toda a fortuna de Ana; dividiram o
dinheiro e a sombra de mulher que, até aquela catástrofe o tinha acompanhado, pela
simples razão de ele não ter nenhum lugar onde se fixar, separou-se dele com a mesma
indiferença com que o seguira. Para Paris! Bem, vamos para Paris. E depois? Nada sabia.
Folha seca entregue ao capricho do vento. Quanto a ele, durante um ano, trazendo sempre
o nome de Gregorio Waremme e iluminado algumas vezes pelos últimos reflexos de uma
glória desaparecida, deixara de ter vida intelectual. Não quisera confessar sua cruel
desilusão, continuara a representar o seu papel, ator sem público, diante de poltronas
vazias. Tinha brincado com o mundo, brincou agora com a sorte; era apenas questão de
mudar de máscara. Sustentava que o jogador é o filho bastardo da imaginação, que
somente aquele para quem possuir nada significa é capaz de arriscar grandes paradas. No
fundo do coração, ainda não se tinha compenetrado do tremendo fracasso do seu sistema;
sonhava com riquezas, considerava seu exílio como transitório, seu banimento como
passageiro. Seu fito era, com os cem mil francos da herança de Ana, ganhar seiscentos ou
setecentos mil, operação fácil aos seus olhos; e, com essa soma, construir uma estrada
pavimentada de ouro para o regresso. Desde então, todos os esforços tenderam para
compelir a fortuna, dia após dia, noite após noite, com obstinação, com encarniçamento.
Quando dilapidou tudo, voltou a si. - "Eu compreendi, como aquele que vem de sair de uma
casa de ópio e se encontra em pleno ar fresco da manhã, que não havia mais lugar para
mim na Europa. A ideia de atravessar o oceano, de início, não foi senão um sonho vago. Lá
também, logo no princípio, não sonhava senão em desfrutar uma felicidade devida ao
acaso. Minha cegueira era tão completa que imaginava, no futuro, minha pátria pedindo
perdão do mal que me havia feito e me recebendo de braços abertos. Mas, na noite de que
lhe falei, minha vida me apareceu com a nitidez de uma visão; ela fixava os olhos em mim
como uma larva saída das infernos. Enfim, eu sabia: para mim, não haveria regresso. Devia,
ou meter uma bala na cabeça, ou então... lançar-me de olhos fechados, não mais olhar para
trás, perder-me, desconhecido, no desconhecido. Foi o que fiz; mas, meu caro Mohl, desses
anos creio ser superior às minhas forças poder dar-lhe uma ideia..." Recuou até a outra
parede e sentou-se sobre uma pilha de livros, o rosto pendido para a frente. Os cabelos
brancos e duros da sua cabeça brilhavam como gelo. Etzel se encolhia e não dizia nada.
Gostaria de se meter num buraco de camundongo para escutar apenas e não mais ser visto
por Warschauer. 
 III 

Não se tratava de um acontecimento preciso; não era uma história de peripécias


atraentes. A narrativa não tinha nem mesmo um começo certo; nada a pontuava, e
aumentava seu interesse. Apenas, de vez em quando, imagens brilhavam fazendo lembrar
reflexos fosforescentes de cristas de ondas sombrias e uniformes. (Etzel as vira em praias
do mar do Norte, onde, três anos antes, havia passado com seu pai algumas semanas de
férias, em casa dos Sydow). A maneira de falar de Warschauer lhe recordava, na verdade, a
ondulação triste e monótona das vagas; o arrebatamento, a paixão até então espalhada por
todas as palavras de Warschauer, havia desaparecido; o que dizia agora tinha um acento
mais sincero. A diferença era visível como a que existe entre um narrador cujos gritos,
mímica e trejeitos impedem de prestar toda a atenção às suas palavras, e outro que, ao
contrário, não se move, limitando-se apenas a falar, falar. O que ouvia, dava a Etzel a
impressão de uma força atraindo-o para o solo, aspirando-o (sentia até mesmo a sensação
física); uma lógica implacável que paralisava o coração, impregnava a narrativa.
Aparentemente não havia nenhuma relação entre essa descrição e o que o interessava,
mas não se afligia por isso; saberia restabelecer a ligação; tinha a impressão de que se
tratava apenas de uma outra face de uma só e mesma coisa, da "coisa" que, de um
momento para outro, encontraria fatalmente sua solução. 
 Waremme havia, pois, deixado a Europa tendo plena consciência de que seria para
sempre. Emigrava no sentido mais estrito do termo, não mais tendo pátria em parte
alguma. Tinha-se conformado. Era preciso que esquecesse, começasse pelo príncipio. No
começo, no entanto, não se compenetrara da principal dificuldade da situação. Voltar as
costas à Europa não quer dizer que se possa viver sem ela. Começara a compreender o que
a Europa era, na realidade, para um homem como ele. Não representava somente seu
passado pessoal, mas o de trezentos milhões de homens, com tudo o que ele sabia e trazia
no sangue. Não somente a região que o havia produzido, mas também a imagem e a
configuração de todas as regiões situadas entre o mar do Norte e o Mediterrâneo, sua
atmosfera, sua história, sua evolução; não apenas essa ou aquela cidade onde havia vivido,
mas centenas de cidades e, nessas cidades, as igrejas, os palácios, os castelos, as obras de
arte, as bibliotecas, as marcas deixadas pelos grandes homens. Haveria um único
acontecimento de sua vida ao qual as recordações de várias gerações não estivessem
associadas, recordações nascidas ao mesmo tempo que ele? A Europa não era unicamente
a soma dos fenômenos da sua existência individual, amizade e amor, ódio e desgraça,
sucesso e decepção; era a ideia inconcebível e que impunha respeito - a existência de um
todo que datava de dois milênios, Péricles e Nostradamus, Teodorico e Voltaire, Ovidio e
Erasmo, Arquimedes e Gauss, Calderón e Durer, Fidias e Mozart, Petrarca e Napoleão,
Galileu e Nietzsche, uma multidão inumerável de gênios assombrosos, uma outra não
menor de demônios, toda a luz encontrando seu equivalente em trevas semelhantes, mas
aí resplandecendo, fazendo nascer um vaso de ouro de negras escorias, tudo isso: as
catástrofes, as inspirações sublimes, as revoluções, os períodos de obscurecimento, os
costumes e a moda, o bem comum a todos, com suas flutuações, seus encadeamentos, sua
evolução paulatina: o espírito, eis o que era a Europa, a sua Europa. Como poderia recusar-
se a essa Europa? Estava nele. Trazia-a consigo. Pelo simples fato de ele respirar, atuava
nele. Então, uma missão se lhe impunha, pensava: como um milionário que vai pregar
entre os pagãos o verdadeiro Deus, iria "lá" anunciar o espírito da Europa. 
— "Deixo a seu encargo, Mohl, calcular o quanto aquela vida me elevava a meus próprios
olhos. Cristóvão Colombo II, um São Paulo da civilização e da cultura intelectual, não é
verdade? Com tão maravilhosos projetos, podia perfeitamente instalar-me, não lhe parece?
O que os livros podiam ensinar sobre o país e o povo, eu sabia: considerava os
conhecimentos teóricos como um lastro útil. Além disso, conhecia tão bem o inglês como
minha própria língua materna: inúmeras vezes, inglêses categorizados demonstraram
espanto por isso. Você sabe, sempre fui uma espécie de Mezzofante. Mas, não tinha
relações; não conhecia ninguém; não levava cartas de recomendação; não tinha nem
mesmo títulos. Quis penetrar nos círculos universitários, mas era-me impossível, por
determinadas razões, invocar meus antigos trabalhos: poderiam tomar informações. Não
possuía nenhum título universitário; o antigo desprezo que votava às distinções que se
conferem a qualquer um voltava-se contra mim. Minhas tentativas fracassaram. Foi uma
felicidade para mim, pois, dadas as circunstâncias, faria figura feia em uma de suas
cátedras, ficaria com a aparência de um mestre-escola de aldeia indígena. Ao fim de
algumas semanas, encontrava-me sem recursos. Não me afligi com isso. Lá, ninguém pode
morrer de fome. O país inteiro é uma espécie de companhia de seguros contra esse gênero
de morte. A assistência pública atinge um tal desenvolvimento que os mendigos são quase
tão raros como os reis. E você sabe que eles vivem sob o regime democrático. Agora, entre
viver e não morrer de fome, existe uma enorme diferença. Imagine um vasto e confortável
hospital, cheio de doentes incuráveis e que nunca morrem, e você terá uma ideia dessa
diferença. Falecimentos poderiam prejudicar o bom nome do estabelecimento. Presumo
que você já tenha podido certificar-se de que não tenho necessidades materiais. Na época
em que freqüentava a melhor sociedade, não gastava mais com a minha pessoa do que um
estudante pobre, salvo quando visava determinado fim e me esforçava por alcançá-lo. Eis
uma qualidade que, às vezes, impressiona mais que a inteligência. O gozador, o debochado
não crêem senão naquele que vive em abstinência. Consegui facilmente ganhar a vida
dando lições de línguas; mas ficava limitado ao círculo das pessoas de condição humilde.
Havia para isso razões de ordem material. Não tinha recursos para me vestir
convenientemente, menos ainda com elegância; isso também me servia de proteção. Você
compreenderá daqui a pouco por que eu sentia necessidade dessa proteção. As razões de
ordem moral eram as mais importantes: eu era apenas tolerado pelas pessoas humildes.
Essas pessoas não exigem que se seja um perfeito mundano; vêem nos outros o que é
incerto, oscilante, porque também eles oscilam, oscilam sobre o abismo. Um farrapo da
Europa permaneceu agarrado a esses humildes, uma migalha transviada da Europa, uma
pálida recordação. Apenas começavam a melhorar de vida, mal principiavam a participar
da segurança geral, despertavam suas suspeitas a meu respeito. Eu dizia coisas que eles
não diziam, fazia alusões a coisas das quais jamais tinham ouvido falar; minhas frases se
compunham de orações principais e subordinadas. Nunca a palavra dólar me vinha aos
lábios. Em compensação, gostava de me utilizar de metáforas. Isso era a Europa, era o
"espírito", coisa extremamente suspeita e desconcertante à medida que as pessoas se
elevam na escala social. Naturalmente, tornava-me cada vez mais circunspecto e modesto.
Mas era, ainda, uma manifestação do "espírito" o fato de me empenhar sistematicamente
em evitar todo o espírito, em afastá-lo cuidadosamente da minha rota. Para isso, que
remédio? Oh! eu ainda nada havia compreendido daquele país. Só via uma coisa: todos
fugiam, como do fogo, daquele que revelava a menor centelha de espírito e que não
conseguiria fazer esquecer sua inépcia senão salvando, por exemplo, uma criança das
águas do rio Mississipi. Não, eles não amam o espírito. O que estimam são as realidades
palpáveis, os valores concretos, os negócios, a propaganda, a ação. O que é espírito inspira-
lhes extrema aversão. Têm, para substituí-lo, o sorriso; eu tinha de aprender a sorrir. Havia
em S. Francisco um salão de barbeiro cujo proprietário teve, após o terrível tremor de terra,
a genial ideia de pregar à porta o seguinte cartaz: "Faz-se a barba grátis a toda pessoa que
entrar sorrindo". Quando me contaram esse fato, a luz se fez lentamente em meu espírito.
Um país de crianças. Aprendi, pois, a sorrir. Você vê por aí, meu caro Mohl, que um novo
problema de adaptação se impunha a mim, mestre na arte do mimetismo, e um problema
muito mais difícil do que os de antigamente. Antes, era em espírito e pelo espírito que
alcançava meus fins; agora, se quisesse manter-me, era preciso extirpar de mim até o
último vestígio de espírito, purgar-me dele todos os dias, por assim dizer. Mas isso são
apenas resumos, frutos de experiência que não lhe podem fornecer a menor ideia da
realidade, como se lhe dissesse que a sopa de ontem estava por demais salgada. Não
permaneci muito tempo em Nova York. Sentem-se lá, ainda, os confins da Europa; a
tentação era muito grande. Então começou a minha vida errante. Não tenho muita coisa
para contar. Embarquei para Kansas-City com a família de um pregador; daí, para o sul,
depois para o Middewest. Quando não se sabe subir, é preciso resignar-se a mudar sempre
de lugar. Permanecer no mesmo local, é naufragar. Jack manda você a John, John a Bill e
quando Bill acha que você não vale mais nada, larga você na sarjeta, com toda a
amabilidade possível, bem entendido. Keep smilling. Chegando a Chicago, onde em
seguida passei dez anos e meio, adoeci e permaneci oito meses no hospital. Durante minha
convalescença, relacionei-me com um negro, ainda moço, Joshua Cooper, um hércules com
alma de criança. Quando ele olhava, rindo, tinha-se a impressão que era uma festa de
Natal. Estava empregado num banco de negros; apresentou-me a outros negros; dava-lhes
lições, a eles e a seus filhos. Foi o bastante para que os brancos me repelissem. Meu
caminho se tornou mais sombrio; deixei-me arrastar pela correnteza; perdi todo contato
com a superfície e fui parar no fundo. Encontrei muitos chineses; simples encontros,
porque é impossível misturar-se com eles. Impossível lá, onde estão desarraigados. Vivem
por lá como carrapatos no mato. A maior parte leva a vida mais misteriosa que é possível
levar entre os homens. É muito raro um chinês ser o que parece; o cozinheiro, um
cozinheiro; o carregador, um carregador. Muitos estão a serviço de uma organização tão
poderosa e tão rigorosa que, comparada com ela, a ordem dos Jesuítas tem a benignidade
de um colégio para meninas. Avistava-me freqüentemente com um negociante de chá
chamado Sun Chwong Chu. Tendo um dia um recado para ele, fui procurá-lo; o boy chinês
me conduziu ao porão onde quatro amigos velavam seu cadáver em silêncio. Uma hora
antes havia caído na rua sem dizer uma única. palavra; seu rosto estava entumescido como
uma esponja. Assassinato sem assassino, ordenado a duas mil léguas de distância. Você
pensa sem dúvida: que história do arco da velha! Hem! meu caro Mohl? Mas é preciso ter
visto a cena. Lá os horrores ainda não estão disfarçados pela civilização; mostram-se tais
como são. Essa cidade... quando me acontece abrir um atlas e a vejo indicada
geograficamente, em tal grau de longitude e tal de latitude, sobre a margem meridional de
um lago imenso - imenso como tudo naquele país - de ondas esbranquiçadas como leite
misturado com água, quando a vejo aí, figurada por um simples ponto, um estremecimento
de pavor e de espanto me percorre o corpo. Assim, penso eu, ela existe verdadeiramente;
quando eu lá vivia, sua realidade não me parecia tão incontestável. Se a receptibilidade da
alma humana igualasse em rapidez a do olhar ou a da inteligência, ninguém, nem mesmo
o ser mais insensível, e Deus sabe como o sou, teria forças para viver um ano vendo tais
horrores. Todas as espécies de coisas me atravessam o espírito; quando quero retê-las,
desfazem-se como os sonhos de um febricitante. Vi no entanto coisas que preciso contar a
você... Vejamos, que diz Shakespeare? A face do céu se ruboriza. Sim, diante de
semelhante obra, o universo se aflige e assume aspecto lúgubre, como na véspera do
julgamento final. Aflige-se? É o que me pergunto. Isso transforma as pessoas, vira-as pelo
avesso como uma luva. É extremamente interessante. É um livro de imagens tão
extraordinário quanto adequado para desarranjar o sistema nervoso. Um espetáculo bonito,
para começar. Prelúdio. Eu passava uma manhã pelas vielas das docas, atordoado pelo
barulho: máquinas e pessoas se agitam, gritam, berram. De repente, sons estranhos me
chegam aos ouvidos. Pássaros que cantam? perguntei-me espantado; pássaros que cantam
nesse inferno de sujeira e de aço? De onde vêm eles? Como posso ouvi-los? Entro em uma
espécie de barraca, interrogo um negro que me faz um gesto indicando que devo seguir
em frente. Encontro-me diante de uma muralha feita de gaiolas; trinta mil canários que
acabavam de ser descarregados cantavam pelas suas trinta mil minúsculas gargantas; é
uma orquestra, um concerto-monstro cuja musica extravagante e absurda abafa o ranger
dos guindastes, o barulho dos automóveis, das locomotivas, os gritos das pessoas. Fico ali,
não sabendo se devo rir ou chorar; é tão perturbador, tão belo, tão irreal! Well! Viremos a
página. É uma tarde de verão; o calor resseca os pulmões. Estamos nas galerias dos
matadouros. O céu apresenta estranha coloração amarelo-avermelhada, o ar está espesso a
ponto de se poder cortar com uma faca. Galerias com quilômetros de comprimento, túneis
de madeira, uma confusão de túneis: pontes que conduzem à morte os animais destinados
aos matadouros. Bramidos surdos, intermináveis filas de bois e de bezerros, um bater de
patas calmo, fatídico. Em um determinado lugar, o machado se abate sobre eles com todo
o peso. Cada minuto vê morrer e desaparecer na fossa centenas deles. Espetáculo
estarreceste: ver de tão próximo a criatura morrer em número incalculável! Vejo-os avançar,
empurrados e empurrando eles próprios, o focinho de um apoiado sobre a anca do que está
na frente, de manhã à noite, dia após dia, ano após ano, com os grandes olhos escuros
cheios de apreensão; seu mugir plangente corta o ar; talvez com isso as estrelas invisíveis
sintam um frêmito; as colunas tremem sob o peso desses corpos maciços; um vapor de
sangue, adocicado, eleva-se das salas imensas e dos armazens; um bafo de sangue paira
sempre sobre a cidade inteira; as roupas, os leitos, as igrejas, os dormitórios têm um odor
de sangue; os alimentos, os vinhos, os beijos têm um gosto de sangue. Tudo é calculado em
enormes quantidades. Tudo é multiplicado ao infinito de maneira esmagadora. O indivíduo,
por assim dizer, não tem mais nome, a unidade nada que a distinga. As ruas são
designadas por números; por que os homens não o serão também, por exemplo, pelo
número de dólares que ganham traficando com o sangue do gado ou com a alma do
mundo? Viremos a página. É uma noite de outono; a chuva e a tormenta reinam. Eis uma
rua, a rua de Halstead, na vizinhança da qual morava. Sete léguas de extensão, de um
comprimento desesperador, interminável como a miséria e o sofrimento que nela residem.
Dizem todos que é a rua mais longa do mundo, e é mesmo; é a nova estrada do Gólgota.
Vêem-se casas que mais se parecem com montes de lixo; é preciso queimar o lixo na porta
para não se ficar asfixiado. Aí se encontram becos escuros e sórdidos com pardieiros em
ruínas, nos quais oito dúzias de famílias se aninham em uma dúzia de buracos, a tal ponto
que a vida assim amontoada transborda pelas janelas e que, durante as noites de verão,
homens, mulheres, crianças se deitam umas por cima das outras nos balcões de ferro como
sardinhas em lata. Aí se encontram bazares onde se vende toda espécie de bugigangas de
que essa horda embaralhada e confusa imagina ter necessidade para o pesadelo que é a
sua existência; por aí se arrastam crianças de faces pálidas e olhar rude de criminosos; e a
fuligem, a poeira, a fumaça, os amontoados de papéis velhos, tabuletas redigidas em todas
as línguas do globo, um cheiro de curral, de suor e uma bruma de sangue. Vamos aos fatos.
Nessa noite, pois, saí. Novos locatários se haviam instalado ao meu lado: uma família
irlandesa de cinco pessoas; na estação, tinham roubado todas as suas economias; seu
desespero punha a casa inteira em rebuliço; seus soluços, suas intermináveis lamentações
me irritavam os nervos. Tinha um encontro marcado para a meia-noite com Joshua Cooper
que ia partir para a Louisiania; combinara comigo encontrar em um bar da vigésima
segunda rua, também este um belo quarteirão. De longe, ouvi gritos alucinantes; depois
me pareceu que era a chuva fustigando os telhados de folha de zinco; finalmente, vi correr
em disparada um bando de valentões, e, a vinte passos na frente, um negro gigantesco.
Nenhuma dúvida, é Joshua. Está quase nu; arrancaram-lhe as vestes e ele corre muito. Uma
angústia mortal, como até então jamais vira estampada em face humana alguma,
convulsiona sua face negra cheia de bondade; vai como o vento, os braços estendidos para
a frente e, justamente no meio da testa, uma pequena ferida aberta deixa escorrer um
filete de sangue sobre o nariz, a boca e o queixo. No momento em que passa por mim como
um furacão, compenetrei-me da sorte que o aguarda. Já seus inimigos se aproximam; são
doze ou quinze; soltam gritos selvagens, bramidos de fera; estão alucinados de raiva. Fico
como que pregado na terra. O vento leva meu guarda-chuva, não presto atenção; meu
chapéu (eu estava justamente na esquina da casa) , também não presto atenção. Já lhe
disse que não tenho o coração sensível, mas nessa noite!... "corre, meu amigo, corre,
Joshua" — murmurei; aqueles doze ou quinze sujeitos... nada mais tinham de humano.
Eram feras... Uma fera tem uma alma de quaker, comparada a deles. Eram indivíduos cuja
profissão consiste em roubar e assassinar, que liquidam um homem com um soco e não
dão a isso mais importância do que outros a um quebrar de vidros, tipos sinistros fugidos
dos infernos, animais necrofagos dos subúrbios. Aqui, não temos nada de parecido; aqui, o
indivíduo mais abjeto se lembra sempre que uma mãe o pôs no mundo; lá, a infame
hipocrisia deles trama crimes que atribuem aos negros. Isso emana, naturalmente, de um
poder central, como antigamente na Rússia quando massacravam os judeus, e chamam a
isso de lei de Lynch! Não, mesmo que eu ficasse velho como Matusalém, não deixaria de ver
sempre o meu Joshua fugindo desatinado daquela mantilha uivante, os braços estendidos
para a frente, o filete de sangue correndo pela face cheia de bondade. Jamais tornei a vê-lo
ou ouvi falar dele. Só Deus sabe onde apodreceu seu cadáver. 
 IV 

 Warschauer se levantou com dificuldade, dirigiu-se a Etzel que estava sentado na


extremidade do canapé com a cabeça curvada; e, com o dedo, bateu-lhe na testa uma vez,
duas vezes, até Etzel levantar os olhos. A imagem do pobre negro, com a face atravessada
por um filete de sangue, fugindo na noite tempestuosa, era-lhe insuportável; sentia frio até
nas entranhas. Instintivamente, teve um gesto de protesto — "Então! meu filho" - disse
Warschauer sentando-se ao seu lado e colocando a mão em seu ombro - "você está
satisfeito?" Etzel sacudiu a cabeça. - "Não o ficarei enquanto..." Hesitou, de testa franzida. -
"Enquanto?..." - "Enquanto você não tiver contado tudo sobre você, tudo." Warschauer
balançou a cabeça com um ar de inquietação irônica. - "Tudo, é muito; tudo, eis a sua
impudência... Mas você está com sorte, estou decidido a falar. Se você me deixar um pouco
a sua mão, essa mãozinha de aristocrata para eu a segurar entre as minhas enormes patas,
serei gentil e continuarei a contar minha história." Warschauer quase se atirou sobre a mão
que Etzel a contragosto lhe abandonou para essa carícia que lhe repugnava, mas que
tolerava porque era exigida como salário. O bico de gás chiava, uma enorme mosca
varejeira zumbia entre os papéis da secretária. 
 A narrativa retomou seu tom monótono semelhante a uma salmodia. Etzel conseguiu
tirar sua mão da pressão mole e flácida, mas evitou fazer qualquer outro movimento. -
"Você se enganará, Mohl, se pensar que eu fui, lá, uma espécie de Isaias anunciando o fim
do mundo. Em primeiro lugar, porque lá ninguém se preocupa com o fim do mundo, ideia
que alguns filósofos inventaram para sacudir o torpor moral da Europa; em seguida, o olhar
que vê claro ordena os movimentos do coração que sofre. Estando a maior parte das
pessoas atingida de cegueira, essas pessoas sofrem mais. Aquele que vê claro, torna-se
indiferente. É uma verdade cruel, mas se não fosse assim, como poderíamos nós, você e eu,
levantar-nos todas as manhãs, vestir a camisa, calçar os sapatos, ler o jornal e voltar para a
casa da senhora Bobike? Seria possível? Por mim, sofro apenas com aquilo que me diz
respeito; sofrer pelo que diz respeito aos outros é loucura! Quando se sofre bastante por si,
não se deve temer tornar-se insensível. Sabemos mais uns sobre os outros... do que
pensamos. Eu tinha um fardo para carregar, um passado horrível. Você o está conhecendo
agora, pelo menos em parte. Precisava tratar de impossibilitar Waremme de fazer mal,
compreende? Essa questão aos poucos passou para o primeiro plano. Calcular, calcular. O
judeu é feito para isso. É o destino que Deus lhe deu. Warschauer contra Waremme,
compreende você? Lá, como aqui, dois antagonistas. A Europa e o passado, a América e o
futuro; isso se tornou cada vez mais o leit-motiv da minha existência. Não vá você imaginar
que vou dizer qualquer coisa sobre aquele maldito caso Maurizius. Está acabado, eu lhe
previno; faça tudo que quiser, não pensarei mais nele." Durante algum tempo conservou
um silêncio especialmente ameaçador; como Etzel se calasse, recomeçou: - "Eis pois a
história do meu amigo Joshua. Na minha opinião, foi um mártir. No presente, os mártires
não chamam mais a atenção. Há demais. É verdade que não me interesso muito por eles;
servem de obstáculo, retardam. É preciso modelar o destino. Sucumbir, sacrificar-se:
qualquer imbecil pode fazer a mesma coisa. Foi o Oriente que nos legou isso: a fé nos
mártires, o culto dos mártires. Veja você, por exemplo, a alma russa que, sobre milhões de
quilômetros quadrados, se entrega a verdadeiras orgias de martírio. Isso é ruim, meu caro
Mohl. O que falta é o pequeno esforço, apenas, o pequeno esforço modesto que forma bola
de neve. Durante muito tempo, durante anos e anos, andei próximo disso sem o saber, não
via bastante claro, até o dia em que um homem me abriu os olhos. Vou falar agora desse
homem, porque foi graças a ele que cheguei ao ponto em que estou. De certo modo, foi o
primeiro elo de uma longa corrente. Chamava-se La Due. Era um negociante bastante rico,
de quarenta a quarenta e dois anos. Nascera no Oeste, na costa do Pacífico, onde vivem
homens ativos, cheios de ânimo e coragem, cândidos como crianças. Sua instrução era
mais ou menos a de um suboficial daqui, mas tinha um encanto que não possuímos. No
entanto, não era nem bonito, nem elegante; palavra como não! Era antes gordo, pesado, e
tinha a cabeça metida entre os ombros. E gaguejava. Mas, a sua pessoa irradiava simpatia,
bondade, confiança, como uma lareira irradia calor. Conhecia uma multidão de pessoas na
cidade, mas penso que ninguém sabia exatamente sua ocupação fora dos seus negócios.
Imagino de boa vontade que fugia de si mesmo e despendia em outra parte sua atividade
com a alegria de uma criança que se esconde para se entregar a um brinquedo proibido. Eu
o conheci num dia em que tinha ido à casa de correção saber notícias de uma mulher que
havia sido internada, há muito tempo, por embriaguez. En- contrava-me ao pé da escada
quando o auto verde da polícia parou defronte à porta, e dele desceu apenas um garoto, de
uns doze anos, com aspecto sombrio, teimoso, que subiu as escadas de quatro em quatro
degraus, como um freqüentador do lugar. Ia desaparecendo sob o pórtico, a custo seguido
pelos guardas, quando La Due saiu, segurou o pequeno pela gola e se informou sobre o que
lhe havia acontecido. Que lhe sucedera? Roubara uma caneta e uma borracha na escola.
Era um criminoso. Um reincidente, ainda por cima. Imaginem, uma caneta e uma borracha!
La Due entrou imediatamente no gabinete com ele e voltou em seguida, trazendo o menino
pela mão. Tinha-se responsabilizado por ele. Contou-me tudo isso rindo. Jamais encontrei
alguém com quem fosse tão fácil entabular conversa. - "Venha comigo" - propôs - "tenho
um caso na prisão." Deixou o pequeno numa loja qual- quer e arrastou-me para a rua
Maxwell. No caminho, obrigou-me a aceitar um pacote de chocolate; para ele, sem dúvida,
era muito desagradável não fazer um presente a alguém que com ele estivesse. Seus
bolsos estavam sempre cheios; estava sempre distribuindo cigarros, caixas de figos,
livrinhos de poesias, tubos de lacre, leques de papel, qualquer coisa enfim que tivesse
consigo. Ao mesmo tempo, ria, rodeava curiosamente a pessoa com seu olhar de gambá e
exclamava: - "Hello, Frank!" de uma calçada para a outra e, ao passar, batia
amigavelmente nas costas de algum "Henry". Um judeu, recentemente chegado de Kiev,
estava na prisão da rua Maxwell por ter falsificado documentos; afirmava-se inocente. La
Due lhe tinha providenciado um advogado que devia encontrar na prisão. Quando
chegamos, ainda não estava. Esperamos algum tempo na sala de audiências, lugar sombrio
onde reinava um cheiro pestilencial. La Due ia e voltava dando passadas pequenas e
cantarolando; parecia que era dia de seus anos. Um ruído pavoroso nos obrigou a descer;
acabavam de trazer, não sei por que razão, uma meia dúzia de negros, figuras do inferno
de Dante, entre as quais se encontravam duas prostitutas e um velho leproso que, de raiva,
dançava sobre um pé só. La Due tomou parte nas discussões; ao fim de cinco minutos,
havia acalmado a horda uivante. Uma das megeras, verdadeira feiticeira escrofulosa,
ultrajantemente pintada, até mesmo brincava com ele, fazendo macaquices com a
sombrinha japonesa que ainda conservava aberta sobre a cabeça; essa cena me causava
arrepios. Saí um momento para a rua; a balbúrdia das pessoas, dos autos, das carroças, as
imundícies que o vento levantava em turbilhão, as horríveis construções de tijolos, as cores
berrantes dos cartazes, o céu de chumbo, tudo isso contribuía para formar um desses
momentos em que não se compreende mais a própria vida. Eu me dizia: talvez esteja na
Lua; é uma cidade lunar com seus habitantes lunares; é uma vida de fantasmas e de larvas
que se desenrola entre crateras e desertos de lava. De súbito, vi La Due em minha frente,
com a sua face radiante de dia de festa; havia partido em doas metades uma laranja da
Califórnia, enorme, e me estendia uma delas. Comprara um cesto cheio; a horda de negros
se lançara em cima, enquanto os guardas assistiam impassíveis, sacudindo os ombros. O
advogado chegou finalmente e conduziram-nos ao judeu que haviam encarcerado; estava
agachado em uma das jaulas que compunham essa prisão para animais ferozes. Assim que
nos avistou, desatou a soluçar. La Due sentou-se ao lado dele sobre o enxergão, acariciou-
lhe afetuosamente a cabeça, perguntando-lhe como tudo se havia passado. O homem ficou
como que metamorfoseado; descreveu sua desgraça em uma gíria difícil de se entender;
parecia, de fato, ser vítima de odiosa maquinação. La Due soube tranqüilizá-lo sobre o
prosseguimento do processo. O que era estranho, é que tivesse ouvido falar desse e de
centenas de outros pelos quais não cessava de se empenhar. Isso permaneceu um enigma
para mim. Fui posto pouco a pouco ao corrente de seu gênero de vida, pois tomava lições
de alemão comigo; ainda ignoro se era um modo de me auxiliar ou verdadeiro desejo de se
instruir. Empreendia inteiramente só suas expedições nos slums sem ninguém para auxiliá-
lo ou dirigi-lo. Suas boas ações formavam bolas de neve. Mal havia acabado de socorrer o
judeu da rua Maxwell e já seis imigrantes israelitas se dirigiram a ele. Os judeus e os negros
o interessavam particularmente. O que fazia, fazia espontaneamente, depois de ter-se
certificado, ele mesmo, de indivíduo para indivíduo. Nem ao seu redor, nem por detrás
dele, havia qualquer representante da Assistência Pública. Não nadava com a grande
corrente da filantropia. Não se preocupava, em absoluto, em saber de onde provinham os
milhões de dólares gastos com as obras de caridade ou em que eram empregados. É
provável que não refletisse, que sua maneira de socorrer os homens fosse de natureza
totalmente diversa. Jamais se permitia julgar os outros; para isso, tinha consideração
demais para com eles e medíocre opinião sobre o seu próprio valor. Eu lhe disse uma vez
que todas as obras de assistência social não eram mais que um dedal de leite num
hectolitro de tinta. Ele me olhou consternado. — "Verdadeiramente, você acha?" —
perguntou-me meneando a cabeça com ar aflito. Estou absolutamente certo que não tinha
em grande estima os fazedores de beneficência, mas havia uma mulher, a enfermeira
visitante de Hullhouse, fundadora do auxílio à juventude, que venerava de joelhos. Bastava
pronunciar seu nome para que seus olhos se enchessem de lágrimas. Um dia, chegou em
minha casa num extraordinário estado de agitação e contou-me uma coisa que havia
ocorrido na véspera, à noite. Um rapaz de quatorze anos, visivelmente tomado de angústia
e de pavor, viera a Hullhouse pedir para falar à Miss e, quando lhe responderam que já se
havia recolhido, jogara-se por terra, debatendo-se numa crise de desespero: — "Eu quero a
Miss! Eu quero a Miss!" Vão então procurar a Miss; ela conhece o rapaz, é um dos seus
protegidos. Uma vez a sós, ele cai de joelhos, suplicando-lhe para salvá-lo, para escondê-lo;
a polícia anda atrás dele; matou seu próprio pai. A razão? Durante longos meses, o pai,
noite após noite, com a inconsciência de uma máquina, veio infligindo odiosos maus tratos
à sua mãe. Incapaz de suportar por mais tempo esses horrores, o rapaz lhe cravou uma faca
de cozinha nas costas. O que se passou depois, eu quisera estar lá para ver; parece que não
se pode fazer uma ideia. La Due tinha chegado à meia-noite em Hullhouse onde se
hospedava sempre e onde lhe forneciam determinadas informações; soube do fato pela
própria boca da Miss e foi ele quem, em seguida, levou o menino que se havia tornado
perfeitamente calmo e dócil, ao distrito policial. Descreveu-me a cena com sua vivacidade
de meridional. A Miss havia ouvido O jovem, depois, com suavidade mas com firmeza,
induzira-o a se constituir prisioneiro e a confessar seu crime. Ele se recusava a isso
obstinadamente, dizendo que não tinha feito nada de mal, que, simplesmente, havia
eliminado um animal, que era melhor viver num mundo do qual esse animal não fazia
parte; que seu ato merecia uma recompensa e não um castigo; nada de prisão, não, mil
vezes não! Seus olhos chamejavam, todo seu ser queimava. Tinha direito de viver, direito
de riscar aquele monstro do número dos humanos, fosse seu pai ou não, não se importava;
e quem se importasse, não tinha coração, nem senso comum, ignorando por certo como
aquele maldito cão havia martirizado sua mãe, e assim por diante. A Miss conhecia o
caráter obstinado do menino; era um dos seus protegidos que possuía melhores dotes, mas
era arrebatado e indomável ao extremo. Apelando para toda a sua energia moral, leva-o aos
poucos a reconhecer que não tinha o direito de suprimir uma vida (não faço senão repetir o
que me contaram, não sou absolutamente dessa opinião; por que não amputar da
humanidade um membro gangrenado? Mas, o que eu penso tem pouca importância).
Demonstra-lhe que deve, em consideração a si próprio, à sua honra, ao seu orgulho, aceitar
a expiação de sua falta; seu ato não pode permanecer oculto. Que vergonha para ele, se,
em lugar de agir como um homem honesto e corajoso, permitir à polícia descobri-lo,
convencê-lo de seu crime, fazendo o papel de covarde e mentiroso! Poderia ela ainda ter
confiança nele? Toda sua argumentação se concentra sobre esse ponto: não poderia mais
ter confiança nele. Foi isso o que maior impressão causou ao menino. Conseguiu finalmente
vencê-lo. Abraça-a. Sua resistência está quebrada. Mas, durante horas e horas, argumentos
e refutações, exemplos e confissões, hesitações, rogos, exortações, apelos aos sentimentos
se sucederam de parte a parte. Isso somente para explicar a você como essa raça é forte,
indomável, como se unem, como suas vidas são estreitamente ligadas. O que La Due fez
em seguida pelo menino foi menos decisivo, apesar de importante também. Se a pena foi
relativamente leve, foi a seus infatigáveis esforços que o culpado o deveu; havia
interessado a imprensa no caso e pagou do seu próprio bolso o mais hábil advogado. A
medida que o conhecia melhor, sua personalidade se destacava do seu exterior modesto e
via um homem que, apesar do seu aspecto apagado, era o tipo simbólico de uma raça;
representava, de certo modo, o cristal que se forma no seio da matéria bruta. Seus
semelhantes eram talvez inumeráveis e, ao conhecer mais profundamente esses sistemas
poderosos, minha convicção cresceu no sentido de que, com efeito, era apenas uma
amostra em uma multidão, uma amostra que o acaso colocara em meu caminho. Isso
abalou meu orgulho de europeu, como teria talvez abalado um grego do Império de
Alexandre se porventura tivesse encontrado na Gália um suave Nazareno. Ah! Ah! um
Nazarenol.. . La Due não era portador da palavra divina, do Evangelho, possuía apenas uma
bondade simples e cândida; nada de princípios morais, nada de puritanismo, nada do "o
que não está comigo é contra mim". É provável que não se detivesse muito tempo em
refletir. Aceitava as coisas, terríveis ou agradáveis, tal como se apresentavam. Jamais
murmurava, jamais se encolerizava; nele, nunca havia despeito ou mau humor. Quando se
encontrava extenuado de fadiga e uma pessoa lhe pedia qualquer informação, não era raro
acompanhá-la até o ponto do seu destino, entretendo-a durante o caminho com agradável
tagarelice. Quando Ethel Green, a estrela de cinema, foi assassinada a tiros por um
apaixonado ciumento, não se conteve de dor, exatamente como qualquer empregadinha de
loja, e foi visitar seu ataúde do mesmo modo como centenas de milhares de pessoas. É isso
mesmo; ele era como todo o mundo e, apesar disso, no meio da multidão, era o homem
mágico como o foco de uma lente. Imagine você, perdido nesse estado monstro, de
cidades, montanhas e rios monstruosos, nesse estado de uma riqueza monstruosa, de
miséria monstruosa, de atividades monstruosas, de crimes monstruosos, que tem um pavor
monstruoso da revolução e da anarquia, o pequeno La Due, suave e pacífico ... como diria...
tipo de uma humanidade nova. Fantástico. Incrivelmente espantoso. Foi ele quem me fez
compreender que este mundo não é senão uma massa que ainda não fermentou. — "Oh!
somos tão jovens" — sempre repetia ele com o seu ingênuo entusiasmo — "somos de uma
juventude inaudita." E é isso, exatamente isso. Uma época de preparação. Um forno de
onde devem sair os povos. Tudo, por enquanto, ainda está no confuso e no vir-a-ser. Nada
esfriou ainda. Um impulso do norte e do sul, de leste e do oeste, para o centro. A população
branca e a população negra em conflito; o negro, tornando-se credor de uma dívida
acumulada pelo correr dos anos, avança irresistivelmente, conquista quarteirões inteiros
das cidades, inunda províncias; por detrás, a sombra ameaçadora da Ásia, e depois, o
verdadeiro adversário, do qual depende o futuro, a Rússia se preparando para o duelo
mundial, a Rússia do outro lado do planeta... Que tinha eu ido fazer ali no meio daquilo
tudo com as minhas ideias de missão espiritual? A que chegaria eu, pobre europeu
marcado pela fé no espírito? Ao meu redor era a matéria, a matéria e sempre a matéria.
Não era possível se cogitar do espírito antes de um século. Em face dessa cratera em
ebulição, a Europa nada mais era do que uma loja de antigüidades. Eu havia caminhado
muito para o leste, sob todos os pontos de vista, para poder, com a consciência tranqüila,
voltar sobre meus passos. Sem que minha vida exterior ou íntima tivesse contribuído para
isso, sentia-me impelido de volta para as minhas origens. A regeneração de Georges
Warschauer se realizava inexoravelmente. Tinha-me familiarizado cada vez mais com a vida
de milhões de imigrantes judeus; já há muitos anos Hamilton La Due se sentia em casa, no
gheto. Seus melhores amigos eram judeus russos. - "Que pessoas admiráveis!" - exclamava
cada vez que podia elogiá-los. - " Wonderful people!" - e narrava intermináveis histórias
sobre sua altivez, seu desinteresse, sua gratidão. Um processo histórico-psicológico se
verifica entre esses judeus, uma fusão de elementos que, pela diversidade do sangue,
engendra, de certo modo, uma nova qualidade da alma. Interessei-me por essa existência
trágica. Quebrada, varrida pelas catástrofes européias, possui, oculta sob uma aparente
letargia oriental um ritmo vertiginoso. Freqüentei sábios judeus, aprofundei-me no estudo
dos nossos velhos livros; descobri o que me faltava. Impossível porém recuperá-lo. A partir
de um certo dia, senti-me repentinamente velho. Não havia feito reservas, nada tinha a dar
à época que via surgindo. Convinha, pois, me por em segurança, descobrir um pequeno
lugar em que pudesse ficar mais ou menos entre os dois focos, o da esquerda e o da direita,
onde lavrava o incêndio. Não podia ser um Tusculum, quando muito um observatório
escondido para onde conduziria a última tocha do grande fogo dos tempos passados. Que
tempestade o extinguirá, esse mísero tição, a do oriente ou a do ocidente? Que diz você,
Mohl? Porque, no decorrer desses dez anos, durante os quais me evadi de mim mesmo para
partir à procura do mundo, o mujik adormecido se agitou e em todo o território limitado
pelo Vístula e pelo lago Baikal, o proletariado se levantou; podemos aguardar grandes
acontecimentos; as pessoas honestas daqui, que ainda estão mergulhadas até as orelhas
nas suas tímidas tentativas, não desconfiam do que as aguarda; sonham em herdar o knout
e, nesse intervalo, ouvem no gramofone de voz fanhosa o canto plangente de uma época
que não existe mais: ei uchnemj... você sabe o que é isso, Mohl? É o canto dos barqueiros
do Volga... um grito de alarma único no seu gênero; tomam-no por uma espécie de canto
religioso. Você nunca o ouviu?" Warschauer se levantou, estendeu os braços em cruz,
começou a andar com seu passa de tambor-mór e a cantar com voz estentórea: Ei
uchnemj... ei uchnemj... ei uchnemj... 
 V 

 Etzel também se levantara e permanecia imóvel, aniquilado. O lado da face que


mantinha apoiada sobre a mão estava em fogo, o outro completamente branco. Pusera as
articulações dos dedos na boca e mordia-as até sangrarem. O medo e a maior das
perplexidades se estampavam no seu olhar. "Meu Deus" — pensava ele com o coração
batendo — "a impressão que se tem é a de ser ainda uma criança em cueiros. Tenho
vontade de tapar os ouvidos para não ouvir mais nada, de desviar os olhos para nada mais
ver. Esse homem gordo e maciço me calca aos pés; me mata; tudo nele ultrapassa a
medida humana, é um Polifemo brincando com blocos de pedra. Por onde agarrá-lo, como
trazê-lo de volta à única questão que interessa, que faz aceitar tudo isso, todas essas coisas
de que, na nossa insignificância, jamais havíamos suspeitado?" Etzel tem impressão de
estar correndo com um carrinho atrás de um expresso. Suas esperanças desapareceram.
Como suas palavras se imporiam a essa catarata oratória? Que podem sua ignorância e
seus dezesseis anos contra esse cérebro que abrange o mundo inteiro? Que importância
pode ter a seus olhos o detido na sua prisão e os seis mil e não sei quantos dias e as seis
mil e não sei quantas noites de reclusão injustamente sofrida? Ainda um dia e uma noite,
mais uma noite que lhe importa? Já viu outras coisas, conhece horrores ainda piores, tudo
passou sobre ele como água sobre as costas de um marreco; pouco lhe importa a desgraça
de um, o erro de outro; edificou para si um sistema de justiça onde o indivíduo nada mais
representa, ad usum delphini provavelmente. Estavam chegando ao fim, mais uma
pergunta talvez e o mistério estaria esclarecido. — "Um momento, por favor" — era preciso
ter gritado rapidamente — "que queria você dízer com os deus ex machina?" Em lugar
disso, ele divagou longamente sobre o maldito problema Waremme-Warschauer, faz-se o
papel de palhaço e fica-se a morder os dedos até o sangue". Etzel apelou para toda a sua
coragem e, quando Warschauer cessou de cantar, colocou-se diante dele e disse: — "Tudo
isso nos afastou bastante de Maurizius." — "Certamente, sapo imundo" — respondeu
Warschauer colérico — "poupe-me suas porcarias viscosas." — "Oh! eu não duvido nada
que você não queira mais ouvir falar nisso" — prosseguiu Etzel exasperado — "mas
ninguém impedirá o sapo de coaxar, mesmo sob o risco de ser devorado pelo abutre."
Warschauer se inclinou com ironia: — "Bem respondido, pequeno sapo!" Etzel tinha o rosto
em fogo; um sorriso de desafio brotou nos seus lábios. — "Mas a você também, isso
persegue incessantemente" — Disse Etzel. — "O juramento, pense no juramento... pode ser
que você o tenha esquecido, mas eu não creio; existe aí dentro de você qualquer coisa que
não esquece." Apontava com o dedo para o peito de Warschauer. Este recuou um passo,
sem dizer nada. — "Sim" — insistiu Etzel arrebatado por um acesso de ousadia — "a isso,
não se engana nunca; foi isso que o impeliu pelo mundo a fora; é isso que você tem de
expiar, você e o outro lá na prisão, e o velho, e eu; sim, sim, por uma falta do tamanho de
um grão de milho, um mundo de sofrimento, sim, sim!" Etzel não se continha mais. 
Warschauer mordeu os lábios, caminhou para a porta em silêncio e abriu-a de par em
par: — "Mohl" — disse friamente - "eu lhe ponho para fora. Saia. Vamos, depressa!" Etzel
empalideceu, hesitante. Warschauer lançou um olhar para o corredor escuro: Ei uchnemj,
voltou ele a cantar, como se já estivesse só; interrompeu-se imediatamente e disse em tom
imperioso: — "É para hoje ou para amanhã?" ... — "Eu não tenho chave, não posso sair" —
respondeu Etzel com obstinação. Warschauer tirou a chave do bolso e entregou-a. Etzel a
apanhou e saiu lentamente. Warschauer bateu a porta por detrás dele. Ao descer as
escadas tateando, Etzel ouviu através da porta, como um estribilho irônico: Ei uchnemj.
Lágrimas de cólera e de desânimo velaram seus olhos! A porta, embaixo, estava aberta. O
jovem Paalzow se entretinha em voz baixa com um indivíduo de feição patibular. Avistando
Etzel, girou sobre si mesmo e, com as mãos nos bolsos das calças, fixou o rapaz com um
olhar venenoso. Etzel passou sem lhe dar atenção. — "Eu queria, garoto, encontrar você
uma noite dessas, num canto escuro" — gritou-lhe o filho de Paalzow em tom ameaçador.
— "De fato? Não é preciso procurar um canto escuro!" — retrucou Etzel. Mas antes de
alcançar sua morada, as forças lhe faltaram repentinamente e ele se deitou na porta do bar.
Talvez uma espécie de terror de almas do outro mundo não tivesse sido estranha ao
sentimento que experimentou então, aliás pela primeira vez na vida; em cada esquina,
acreditava ver o negro gigantesco vir até ele de galope, os braços estendidos para a frente,
um filete de sangue escorrendo da testa para o queixo. Estendeu-se sobre a soleira, mas
não se sentiu melhor assim. Seus nervos estavam tensos a ponto de se romperem; via
pontes de madeira onde desfilavam intermináveis manadas de bois e parecia-lhe ouvir
milhares de canários vociferarem dolorosamente o Ei uchnemj. Via o judeu soluçar na sua
jaula de ferro e o parricida de quatorze anos cravar uma faca de cozinha nas costas do pai.
Via Hamilton La Due beijar a chaga de um leproso e, no porão, o cadáver do chinês rodeado
por seus amigos. E sempre, no meio das outras imagens, se apresentava a do negro, o rosto
marcado por um filete de sangue, fugindo, num terror mortal, e sempre a horda de animais
correndo ao seu encalço. — "Oh! mamãe, mamãe!" — suspirou como uma criancinha,
enquanto se levantava e se dirigia titubeando para a rua Anklam. Não é preciso dizer que
estava extremamente cansado. Quando colocou seu relógio sobre a mesa, ao lado do leito,
eram quatro horas da manhã e a aurora iluminava as vidraças. Evitou assim ter de acender
a luz. Habituado, antes da se deitar, a pulverizar com inseticida os travesseiros de algodão
vermelho e as cobertas de tecido ordinário manchadas com seu sangue, mais uma vez
realizou essa operação. Imediatamente, mergulhou em um profundo sono de ebriedade.
Uma roda da fogo dentada como uma serra e girando em louca velocidade cortava-lhe o
peito; era um pesadelo da sua primeira infância que reaparecia às vezes; sabia, apesar de
adormecido, que estava com febre. Percevejos, grandes como as baratas do quarto de
Waremme, passeavam pelo seu rosto e pelo seu pescoço. A senhora Schneevogt lhe trouxe
o café da manhã e deixou-o sobre a mesa; ele o percebeu ainda que dormindo; com a alma
incapaz de encontrar o sono, continuava a dormir. Pouco depois, pareceu-lhe, ela voltou
com o almoço; levou de volta, resmungando, os pratos intocados; viu-a e ouviu-a em pleno
sono lúcido. A roda de fogo recomeçou a zumbir: "Se ela me cortar pelo meio" — pensou
ele — "Deus cometerá uma injustiça. Preciso antes falar com mamãe... e o outro assunto...
mais um dia passado..." Finalmente reabriu os olhos e voltou a si. Sua camisa inundada de
suor colava ao corpo; suas pernas estavam tão pesadas que não podia movê-las. "Doente"
— pensou ele — "não faltava acontecer mais nada! Há seis semanas que quebro a cabeça
com esse demônio e estou tão adiantado quanto antes; nada, nada; que acontecerá se eu
cair doente? Não, impossível adoecer, perderia muito tempo com isso. Por que teria Ana
Jahn ido com ele para a França? Deve haver qualquer coisa por detrás disso. Ele
escamoteou essa questão, a mais misteriosa de toda a estória. Que fazer agora? O melhor é
esperar que ele venha; não se mover. Terá remorsos, virá e, então, conversaremos..."
Depois, Etzel teve uma visão; seu cérebro em ebulição lhe concedeu uma segunda vista
premonitoria daquilo que mais tarde deveria acontecer e viu Waremme com seu passo de
tambor-mor, andando pelo quarto, justamente aquele onde se encontrava; depois... pôs-se
ele a falar do "assunto"? Sua clarividênvia não atingiu até aí. Seu desejo não ousou mais
revestir o aspecto de realidade. Por que Etzel treme tanto assim?... É uma sorte já estarmos
no mês de junho; é possível passar sem aquecimento. 
 A voz áspera e decisiva de Melita se fez ouvir no quarto vizinho. Etzel prestou atenção:
"É preciso que elas não percebam que estou doente" — Pensou ele. — "Quem sabe? talvez
elas me mandem para o hospital. Lá eles exigem papéis; eu ficaria atrapalhado. Que
poderá ser isto? Uma dor de garganta, sinto dificuldade em engolir. Amanhã, tudo terá
passado." Para não despertar atenção nem suspeitas no caso de uma das Schneevogt
entrar, apanhou um dos volumes de Ghisels sobre a prateleira. na parede próxima ao seu
leito e abriu-o. Ouviu então a voz áspera e decisiva dizer ao lado com desespero: — "Que
injustiça, é revoltante! É de se cuspir sobre a humanidade inteira. Seria melhor apanhar
uma corda e se enforcar." O tabique era tão delgado e a porta fechava tão mal, que Etzel
distinguia cada palavra e também os tímidos esforços da mãe tentando acalmar Melita. A
campainha do apartamento tocou; as duas mulheres abandonaram o quarto, não se ouviu
mais nada. "É bem certo o que ela disse" — pensou Etzel, levantando os olhos para o teto
com o sentimento arrazador de não ter honrado suas obrigações — "como suportar tudo
isso? E o mundo inteiro continua vivendo; os que pretendem não o poder mais, tão bem
como os outros, e eu como eles. Que fizeram da justiça? Existe mesmo? Não será apenas
fruto da imaginação como o é o paraíso das pessoas piedosas? Talvez nossa razão seja
incapaz de reconhecê-la, talvez exista em regiões que nosso espírito não alcança. Mas
então, nossos atos teriam apenas um valor provisório e nosso progresso seria destituído de
sentido; no entanto, é preciso, é preciso que haja compensações. Dezoito anos e nove
meses atualmente. Oh! Deus! é preciso, é preciso..." O que, o que, Etzel? Sua alma de
dezesseis anos que se rebela formula uma lei de bronze, mas, que poder sobre a terra ou
no céu a sancionará? Etzel fechou as pálpebras e Joshua Cooper, com um filete de sangue
correndo pela face, da fronte ao queixo, ergueu-se diante dele, verdadeira imagem do
desespero! Um estremecimento lhe percorreu o corpo, segurou o livro que ainda estava
aberto em suas mãos e, na página que tinha sobre os olhos, leu as linhas seguintes: "Na
superfície do copo mais cheio pode ainda flutuar uma pétala de rosa e sobre essa pétala de
flor mil anjos podem encontrar lugar." 
 Que pensamento! Foi um raio de luz para ele. Conhecia-o, mas, antes, jamais havia
penetrado seu sentido; agora, depois de tudo quanto havia passado, brilhava diante dele
como uma estrela nos céus. É preciso que vá procurar o homem que escreveu essas linhas,
que vá imediatamente, naquele instante mesmo. Não deve hesitar, nem refletir. Se existe
sobre a terra algum homem capaz de responder à grande pergunta, é o que escreveu
aquilo. Está com febre? Ora! não se pode deixar deter por esse detalhe. São quatro horas
da tarde, é necessária uma hora para ir até West End. O momento não é mal escolhido para
se encontrar alguém em casa. Talvez tenha a sorte de Ghisels não estar em viagem e de
poder recebê-lo. Apesar das suas pernas bambas e das dores na garganta, abandona o
leito, lava o rosto e o busto, veste-se e sai. 
 VI 

 Etzel tomou o elevador para subir ao quarto andar de um edifício isolado e tocou a
campainha de uma de duas portas. Após prolongada espera, apareceu um rapaz que tinha
fisionomia inteligente e agradável, e usava óculos. Havia deixado muitas portas abertas
atrás de si e ouvia-se o ruído de vozes que se mantinham em animada conversa. Havia
cinco ou seis chapéus e cinco ou seis bengalas no porta-chapéus da ante-sala, assim como
uma capa de mulher. — "Ai, ai!" — pensava Etzel, com o coração desfalecendo — "estás
com azar, meu amigo." O moço se informou do que desejava. — "Eu gostaria de falar com o
senhor Ghisels" — respondeu Etzel, vencendo a timidez com grande dificuldade; ("Senhor"
Ghisels; sua boca se recusava a pronunciar essa palavra, pois esse "Senhor" lhe parecia
afetado e estúpido). O rapaz tinha um sorriso que dizia: "Você não é o único" — e
perguntou-lhe o nome. Etzel respondeu que se chamava Andergast, Etzel Andergast, havia
escrito ao senhor Melchior Ghisels seis meses antes, recebera uma resposta e talvez o
senhor Ghisels se recordasse de tudo isso. Pela primeira vez depois de muito tempo,
declinava seu verdadeiro nome; está claro que não havia nem um instante sequer sonhado
em se apresentar naquele santuário com uma máscara no rosto. Não era menos estranho,
contudo, encontrar-se repentinamente igual a si mesmo; tinha a impressão, não de
encontrar o que lhe era familiar, mas antes de envergar um traje novo em folha, no qual
não se sentia inteiramente à vontade. O moço quis saber se tinha vindo tratar de assunto
particular. Etzel sacudiu a cabeça. — "Não é precisamente isso" — respondeu. — "Gostaria
de ver o senhor Ghisels, de poder passar meia hora com ele, de respirar o mesmo ar que
ele; isso seria o bastante." ("Mentes, isso não te bastaria" — retrucou-lhe uma voz interior.)
O rapaz sorriu de novo e observou o visitante com interesse. — "Queira entrar para aqui e
esperar" — disse — "eu vou perguntar ao senhor Ghisels." Etzel penetrou na ante-sala
enquanto o moço desaparecia. Suas pernas tremiam, sua cabeça girava e se sentou numa
cadeira; tudo a seu redor era silêncio e respeitosa espera. Tinha receio de não ser atendido
e temia o momento decisivo. Se um escritor, refiro-me a um desses animadores, desses
pioneiros do pensamento, como Ghisels, pudesse adivinhar os sentimentos que assaltam o
espírito do adolescente que, após um rude combate interior, encontrou coragem para se
apresentar diante dele, então esse escritor faria apelo a todos os recursos do seu gênio, ao
seu coração inteiro também, para estar pronto para semelhante encontro. Mas são raros,
extremamente raros, os que sabem não se renegar nesse momento; talvez não esteja nas
possibilidades da natureza humana permanecer sempre o que se é na hora em que se cria.
Da percepção confusa dessa verdade vinha, sem dúvida, parte da angústia que Etzel
experimentava — angústia intelectual, é inegável. "Até que ponto" — perguntava-se —
"sua verdadeira pessoa corresponderá à imagem que dele fiz? Em que estado de espírito
deixarei esta casa, depois de vê-lo, ouvir sua voz, ter recebido sua mensagem? Que dirá
ele? Que fará? Como será seu olhar, sua maneira de falar? Que deverá acontecer para
conservar o lugar que ocupa na minha vida?" De momento em momento crescia a vontade
de não aguardar a volta do rapaz e fugir sem dar satisfações; então, nada poderia
acontecer e conservaria o seu ídolo. Estava achando a espera mortalmente longa. Prestou
atenção. Percebeu o zum-zum de uma voz monótona; tinha o ouvido de tal maneira
aguçado pela febre e pela excitação que podia apreender através de duas portas palavras
isoladas. Alguém lia em voz alta. O moço, evidentemente, não podia anunciar a visita
importuna senão depois da leitura terminada. A campainha da porta de entrada retiniu.
Pareceu que ninguém a ouvira no interior. Tocou novamente. Etzel se perguntou se devia ir
abrir a porta e concluiu que, a isso, nada o autorizava. Nesse instante, uma mulher de trinta
e oito a quarenta anos entrou por uma porta oposta àquela por onde o moço havia saído.
Sua atitude, sua expressão, revelaram a Etzel que era a dona da casa; sua fisionomia
conservava traços de uma grande beleza, mas estava murcha, fatigada. Jamais Etzel
imginara que uma mulher pudesse viver ali; isso o surpreendeu e aumentou a perturbação.
A mulher se sobressaltou ao vê-lo: — "Não tocaram?" — perguntou ela. — "Sim senhora,
duas vezes." — respondeu Etzel e teve vontade de se desculpar por permanecer ali
tolamente à espera. Ela abriu a porta. Deparou com uma outra mulher, muito jovem ainda,
resplandecente de juventude, linda, de olhos brilhantes, boca fresca e impertinente.
Verificou-se então qualquer coisa de estranho. As duas mulheres se mediram em silêncio
com olhares hostis. A visitante parecia desagradavelmente surpresa por ver a outra em sua
frente. Tinha-se a impressão que contara não a encontrar. A dona da casa se empertigou
ligeiramente, sacudiu os ombros, soltou uma pequena risada arrulhante, despreziva, e
bateu a porta. A brutalidade desse gesto tinha qualquer coisa de chocante naquela mulher
de aparência tímida e melancólica. Ficou imóvel, com a cabeça baixa. O xale de seda azul
que trazia sobre os ombros caíra sem que o percebesse. Pareceu esquecer-se durante
alguns segundos de tudo quanto a cercava. Uma dor profunda se estampava em seus
traços fisionômicos. Dir-se-ia uma estátua de pedra, uma imagem do desespero.
Repentinamente, teve um sobressalto e voltou com passo pesado para o interior do
apartamento. Não teve sequer um olhar para Etzel. Este, fazia-se pequeno na sua cadeira,
constrangido como se houvesse furtado um objeto alheio e mais ainda atormentado por
outro pensamento: o destino não respeitava mais aquele lar do que os outros, as ondas
turvas da vida aí também se vinham quebrar e a alma nobre que escrevera: "na superfície
do copo mais cheio pode ainda flutuar uma pétala de rosa e sobre essa pétala de flor mil
anjos podem encontrar lugar" não estava ao abrigo dos desatinos do século. As paixões
andavam à solta, as angústias projetavam suas sombras em torno dele. Uma vez que o véu
se havia entreaberto diante dos olhos de Etzel, aquele santuário de um sumo-sacerdote era
para o futuro a morada de um homem igual aos outros e, da mesma maneira como se
atravessa com menos segurança uma ponte da qual se sabe que um pilar está abalado,
apesar de pesados veículos passarem por ela, sentia-se doravante com o coração apertado;
o solo cedia sob seus passos. Entrementes, o rapaz reapareceu e pediu-lhe amavelmente
para entrar. 
 VII

A casa de Melchior Ghisels era o refúgio de todos aqueles que estavam atormentados,
lutavam, aspiravam a um ideal, tinham necessidade de conselhos, enfim, o refúgio dos
náufragos da vida e dos transviados. Iam a ele como a um médico célebre; freqüentemente
seu escritório permanecia cheio de meio-dia à meia-noite. Lá se encontravam pessoas de
todas as idades, homens e mulheres, literatos, artistas, atores, estudantes, emigrados,
políticos. Tanto assim que, muitas vezes, sua mulher e os amigos íntimos eram obrigados a
deter a afluência de visitantes. Há muitos anos vivia bastante adoentado e não podia mais
suportar as fadigas. Todos permaneciam suspensos em seus lábios, desdobravam perante
seus olhos as questões mais delicadas de suas existências, expunham-lhe seus casos de
consciência, suas dificuldades profissionais; pediam opinião sobre seus trabalhos,
arrastavam-no para intermináveis discussões sobre problemas referentes à arte, à religião,
à filosofia e era muito raro que, no final, seu interlocutor não se inclinasse diante de uma
palavra de autoridade saída de sua boca. Havia, entre o número de visitantes, pessoas que
não conhecia particularmente, por quem mesmo não nutria simpatia e cuja angústia moral,
cujas dificuldades materiais o ocupavam durante semanas, meses até. Essas pessoas
desapareciam sem deixar vestígios; geralmente não ouvia mais falar delas. Não sofria
nenhuma decepção com isso; também não se sentia enganado ou traído, se alguém que
houvesse auxiliado se esquivasse em seguida à sua influência ou mesmo pagasse com
ingratidão. Isso também o enriquecia. Não que adquirisse assim mais experiência. Mas, sua
extraordinária intuição da vida ficava ainda mais aumentada, mais profunda; isso o levava
à indulgência, à clemência de certo modo e dava-lhe sobretudo tamanha compreensão dos
homens e dos fatos que, às vezes, tornava-se incompreensível à força de se contradizer a si
próprio, para se colocar no lugar dos outros. Neles, não tomava nada superficialmente, nem
mesmo a nulidade pretenciosa do diletante; mesmo em sua ironia era por assim dizer
consciencioso. Em compensação, tudo quanto exprimia pessoalmente tinha o desembaraço
que só o perfeito domínio de todos os recursos pode dar. Conversar com ele era uma
felicidade justamente por causa dessa facilidade. Parecia unicamente querer livrar-se da
imensa riqueza que se difundia nas suas palavras e, assim, dispensava os devedores de
qualquer gratidão. Nada mais faziam do que receber e davam a impressão de ser tão
diligentes, tão compreensivos, tão espirituais, tão criadores e tão experimentados quanto
ele. Sua personalidade moral era um organismo perfeitamente bem ordenado, comandado
por um único princípio interior. Sua inteligência e seu espírito não eram separados por esse
abismo escancarado e intransponível que não permite o aparecimento de um único grande
homem entre legiões de talentos prodigiosos. Isso lhe permitia atribuir um sentido a
qualquer acontecimento, a tudo o que acontecia a cada um, a toda obra, a todo destino,
sentido este nascido do seu pensamento, que sua vida assimilava e ele tornava fecundo,
ultrapassando assim o conhecimento estéril. 
O fato de Etzel, sem experiência, sem maturidade espiritual, quase uma criança, ter-se
sentido magneticamente atraído, desde o despertar da sua consciência moral, por um
homem cujo caráter e personalidade tinham-se-lhe revelado apenas pelo intermédio
mistificador dos livros, leva a crer que nele também existia um magnetizador; não importa
que se o chame de instinto ou de sensibilidade profunda. É verdade que esse mesmo
instinto havia aumentado sua timidez e inquietação a cada passo que se aproximava
daquele homem venerado: a cena entre as duas mulheres não tinha senão exteriorizado a
dúvida que o dilacerava. Mas, afinal, existiria um único homem na superfície da terra, sem
exceção do coração mais nobre, do espírito mais vasto, que lhe pudesse ensinar o que era
necessário que aprendesse, aquilo de que devia ter certeza para encontrar interesse na
vida? Etzel penetrou em uma grande sala com belos móveis antigos e encontrou-se em
face de Melchior Ghisels. Era um homem de cinqüenta anos, estatura acima do comum,
bem proporcionado e de gestos elegantes e naturais. Tinha a barba feita, olhos muito
cavados e com expressão tranqüila, penetrante, meditativa e boa, uma boca delicada e
extremamente expressiva, cujos lábios permaneciam estreita e quase dolorosamente
cerrados quando ficava em silêncio; quando falava, parecia que a natureza que, nessas
criaturas, hipertrofia os órgãos essenciais, havia modelado seus lábios para formar palavras,
termos cheios de sentido, raros, próprios para aquela boca. As orelhas polpudas, afastadas
da cabeça, causavam nessa nobre fisionomia uma impressão bizarra, quase desagradável.
Mas, assim como a boca era feita para falar, as orelhas, largas conchas vermelhas,
pareciam feitas para ouvir, para ouvir bem, justo e muito. Convidado para sentar-se, Etzel o
fez discretamente e sem ruído, ficando um pouco afastado dos outros visitantes. As
fisionomias que olhava sem prevenção lhe agradaram quase todas; nenhuma delas parecia
vulgar ou inexpressiva. Havia quatro jovens, um homem de cabelos brancos e uma moça
que, fato estranho, também tinha os cabelos completamente brancos. Ghisels, como único
cerimonial, contentara-se em dar o nome do recém-chegado. De vez em quando, passava
por sobre ele um olhar perscrutador, levemente surpreso, levantando um pouco as
sobrancelhas espessas que limitavam sua fronte com dois semicírculos negros. A conversa
iniciada prosseguia. Etzel só ouvia a voz de Melchior Ghisels; tinha a vaga impressão de um
verbo castigado, de uma elocução fácil, de uma forma agradável; não ouvia senão sua voz e
escutava-o com tanto fervor, com tanta avidez que estremecia imperceptivelmente cada
vez que se calava e esperava impacientemente o momento em que, sonora e dominando as
outras vozes como uma asa de sombra, novamente se fazia ouvir. Era então um gozo
estranho, estranha libertação. Durante longas semanas de colóquios sem nexo com
Warschauer-Waremme, Etzel havia inconscientemente se habituado a seu modo de falar
como as pessoas podem se habituar com uma tortura cotidiana; acabara por não poder
mais ouvir senão aquela voz; mal falara com outras pessoas, havia esquecido o timbre, o
acento das palavras sinceras, a vibração tranquila das palavras que vêm do coração. Essa
diferença era tão sensível como a que existe entre uma moeda de ouro e um pedaço de
chumbo que se deixa cair sobre uma pedra. — "Você está-se sentindo mal?" — perguntou-
lhe de súbito Ghisels — "Você está muito pálido. Quer tomar alguma coisa, um
estimulante?" Etzel sacudiu a cabeça e agradeceu; suas palavras tropeçavam umas nas
outras. Sorriu e seu sorriso pareceu agradar a Ghisels que, por um momento, colocou a mão
sobre seu ombro, querendo significar: "Tenha um pouco de paciência, você não sairá antes
de ser ouvido." Com efeito, os visitantes se despediram logo depois; a moça de cabelos
brancos e o rapaz de óculos ainda permaneceram um pouco: Ghisels conversava com eles
em tom animado. Quando, finalmente, partiram, a dona da casa entrou e convenceu
docemente Ghisels a se estender sobre o divã: realmente tinha o aspecto muito fatigado. A
mulher esperou que se estendesse; cobriu suas pernas com uma coberta de pele de camelo
e perguntou-lhe se devia abrir a janela. Tinha um modo esquisito de falar, mal entreabrindo
os lábios e os dentes; suas palavras, sua atitude, seu olhar revelavam esforço e de certo
modo o hábito do sofrimento. Novamente Etzel teve a impressão de estar envolvido por
uma nuvem de tristeza e de se locomover sobre terreno pouco seguro. — "Eu espero não o
estar incomodando" — balbuciou. — "Esteja tranqüilo" — disse Ghisels, e dirigindo-se à sua
mulher: — "Sim, querida, abra a janela, a tarde está tão linda!" Ela abriu a janela e saiu em
silêncio. — "Olhe" — disse Ghisels apontando para o poente. Etzel voltou os olhos para
aquele lado. Sob as janelas e até o horizonte descortinava-se uma mancha verde formada
pelas copas dos pinheiros; a casa parecia ser a última ou a primeira da cidade. Por cima,
estendia-se um céu vermelho-escuro no qual, com intervalos regulares, corriam bandos de
nuvens cor de púrpura e douradas, semelhantes a tochas acesas. Enquanto Etzel
reagrupava suas ideias e punha-se a expô-las com hesitação, Ghisels não retirava os olhos
daquele espetáculo sinistro e grandioso. Em algumas palavras Etzel alude às suas relações
com a obra de Ghisels. Para não parecer presunçoso, apenas deixa perceber que esses
trabalhos tiveram influência decisiva sobre sua concepção dos grandes problemas da vida.
Entretanto, não se restringiu à reflexão especulativa, foi mais longe; pois, esses livros lhe
tinham feito compreender justamente que era necessário ir mais longe. (Melchior Ghisels
redobra de atenção). Eis como as coisas são. Seu pai pertence à alta magistratura. Ora,
entre seu pai e ele nasceu um surdo antagonismo que, depois de um ano mais ou menos,
chegou a seu ponto máximo. Foi cada vez mais difícil adaptar-se aos pontos de vista
paternos, à sua maneira de conceber a vida, à ideia petrificada que se faz do mundo. Trata-
se, aliás, de homem de valor e de grande talento, direito, íntegro, de espírito cultivado.
Desde a infância, muitos ecos da vida pública do magistrado chegaram naturalmente aos
ouvidos de Etzel, fatos graves, muito graves às vezes e que, aos poucos, fizeram surgir nele
um mal-estar intolerável. Em torno de si, a vida doméstica, o regime, tudo enfim lhe
pareceu um desafio à natureza e à razão. Não vê outro termo além de ressecamento para
designar a maneira pela qual seu pai concebe o direito e a justiça. É uma tradição morta,
uma lei sem alma (sua elocução se torna repentinamente fácil e acalorada). Houve
explicações entre eles dois; as explicações acarretaram uma rotura. Ele se refugiara em
casa de parentes. Não pudera continuar a viver senão sacudindo o fardo de ligações
destituídas de toda sinceridade; enquanto estivesse comendo o pão de seu pai, parecia-lhe
estar sob a dependência paterna. No momento, necessita apenas tranqüilizar o espírito,
concentrar-se, encontrar meios de se orientar um pouco. Lêem-se, ouvem-se, vêem-se
tantas coisas perturbadoras, torturantes; quando pensa no direito e na justiça, tem a
impressão de uma peste moral, de um obscurecimento total. Ora, se não se pode, em
relação à própria pessoa e ao mundo, saber o que pensar definitivamente sobre essa
questão, é impossível a um jovem assentar em bases firmes sua vida, e foi por isso que se
decidiu pedir a opinião e os conselhos de Melchior Ghisels. Que rapaz estranho! Mesmo
aqui, até certo ponto diante do mestre, silenciava os fatos que o tinham arrastado
irresistivelmente a agir, como os havia calado diante de Camilo Raff e de Roberto
Thielemann. E da mesma maneira como, na conversa com este último, havia-se
entrincheirado por detrás da situação de sua mãe, agora se servia, como pretexto, de suas
relações com o pai. Seria por pudor do gesto? — esse gesto que as naturezas nobres evitam
— por temor dos obstáculos suscitáveis, por falta de confiança em si próprio dada a
aparência romanesca que sua empresa poderia assumir aos olhos de uma pessoa "com
experiência"? (Se bem que de há muito não se preocupasse mais, de todo, com a
experiência das pessoas que a possuem, e que estivesse convencido que jamais Melchior
Ghisels disso se constituiria defensor, ele a quem havia qualificado de monumento erguido
sobre um túmulo). Seria enfim por uma espécie de superstição como se, de sua discrição,
dependesse o sucesso, ou ainda por causa da visão obcecante do encarcerado em sua
prisão? Fosse pelo que fosse, por uma dessas razões ou por todas reúnidas, um obstáculo
mais forte que sua vontade e que sua resolução, mais forte que a ilimitada confiança que
depositara em Ghisels, tapava-lhe a boca. Este o havia escutado com crescente interesse.
— "Você é muito jovem?" — perguntou indiretamente, pois Etzel lhe parecia ainda mais
jovem do que realmente era. — "Breve farei dezessete anos" — respondeu Etzel. Ghisels
fez sinal com a cabeça. — "Muitos jovens da sua idade põem em jogo desde já seu futuro"
— disse ele juntando as mãos atrás da nuca — "Serei o último a reprová-los por isso. A hora
presente não oferece muitas perspectivas, mas antecipar-se é perigoso. Isso me faz sempre
pensar um pouco nos casamentos de crianças na Índia; aos vinte anos essas crianças não
são mais do que ruínas." Calou-se um instante, depois prosseguiu ao acaso: — "Você me dá
a impressão de estar sendo impulsionado por um acontecimento de importância capital."
Etzel se ruborizou até às orelhas. "Puxa!" — pensou entre surpreso e receoso. — "Ou ele é
penetrante ou então eu não sei mais nada." Mas Ghisels, com um gesto de mão, parecia
pedir ao rapaz que não visse na sua observação curiosidade indiscreta ou tentativa de
pressão. — "Deixe, isso não tem importância. O que traz você aqui não é, infelizmente,
novidade para mim. É uma crise que não se contenta mais em perturbar superficialmente a
água de um lago. Alguns anos atrás, ainda podíamos consolar-nos e pensar: aqui, é um
caso isolado; lá, outro; conformávamo-nos, coisa que é possível quando se trata apenas de
casos isolados, mas hoje a comoção ameaça o edifício inteiro que levamos dois mil anos
para construir. Um profundo e mórbido desejo de destruição se manifesta nas fileiras
daqueles que vibram diante dos grandes problemas. Se não se puder remediá-lo (e tenho
receio que já seja muito tarde), é forçoso esperar daqui a cinqüenta anos um cataclismo
pavoroso que ultrapassará em horror todas as guerras e todas as revoluções que vimos até
hoje. É estranho que a destruição emane freqüentemente desses mesmos que se crêem os
guardiões dos valores considerados os mais sagrados. É claro que o mesmo se verifica no
seu caso, no desacordo com seu pai. Eu, muitas vezes, conversei sobre essas coisas com
meus amigos. A maior parte considera responsável a política, esse cancro roedor que
destrói tudo o que une os homens. Oh! muitas vezes observei isso. Posso também lançar
mão de outra comparação. É um braseiro onde o coração da nossa juventude se consome e
se petrifica". Etzel, com as palmas das mãos unidas entre os joelhos, inclinou-se para a
frente e aparteou vivamente: — "Eu compreendo, o senhor fala da política como disciplina
social..." Ghisels sorriu. — "Sim, de uma disciplina social mal compreendida ou de uma
disciplina que nos falta. Tudo o que tende a estabelecer uma ordem repousando sobre a
violência..." — "Certamente. Sempre senti isso e é por isso que jamais me pude submeter.
Perguntam-nos sempre quais são as nossas opiniões. Contanto que tenhamos as opiniões
desejadas, nós podemos agir como canalhas! Não sei se devo dizer "nós". Preferia não o
fazer. Assisti uma vez a um drama moderno onde, durante toda a representação, um
ginasiano dizia: nós... nós... nós... reclamamos isto... nós pensamos isto... nós seguimos
essa ou aquela direção. Era perfeitamente ridículo." — "Com efeito" — interrompeu Ghisels
com amável ironia — "conservou-se esse hábito como se o mérito supremo consistisse em
se ter vinte anos; é um julgamento anormal que nós, homens de quarenta ou cinqüenta
anos, contribuímos aliás em difundir. E, no entanto, um mesmo estado de espírito se
encontra em todos eles, porque todos têm no coração o mesmo desespero. Mas você queria
dizer mais alguma coisa..." - "Não; era isso exatamente que o senhor acabou de dizer" -
replicou Etzel que começava a ser invadido por verdadeira embriaguez; seus traços se
animavam, seu rosto se coloria; não sentia mais febre ou dor alguma. — "Queria somente
dizer que nos é impossível deixar de desesperar quando vemos a justiça ultrajada. Não é
sobre ela que tudo repousa? Lê-se nos livros antigos que os soldados choravam quando o
pavilhão do regimento era desonrado. E nós, que faremos então, se a única bandeira para a
qual elevamos nossos olhares é diariamente emporcalhada pelos seus próprios porta-
estandartes? A justiça, na minha opinião, é o coração palpitante da humanidade. Diga, é
verdade ou não? Sim ou não?" — "É, verdade, meu caro amigo" — confirmou Ghisels. — "A
justiça e o amor eram primitivamente unidos por laços fraternais. Na nossa civilização, não
são nem mais parentes afastados. Podem-se dar desse estado de coisas muitas explicações,
sem nada explicar. Não temos ainda o povo, um povo que constitua o corpo da nação e, por
conseqüência, o que chamamos democracia se reduz a uma coletividade amorfa que não
se pode organizar nem se elevar e que asfixia todo e qualquer idealismo. Talvez fosse
necessário um César. Mas, de onde viria ele? É preciso temer o caos que, só ele, o fará
surgir. Então, o que os melhores poderão fazer de melhor será comentar o terremoto. O
resto não é mais que... isso! — Ghisels soprou sobre o dorso da sua mão como se
afugentasse uma penugem. — "Eu gostaria de lhe dizer uma coisa ainda" — prosseguiu ele
— "reflita um pouco nela, talvez isso lhe auxilie a progredir. Pense que não podemos
avançar senão lentamente, vagarosamente, passo a passo, e que entre um passo e o
seguinte estão todas as fraquezas, todas as imperfeições, todos os erros, às vezes até erros
nobres, de que somos culpados. Não é nem uma doutrina salvadora nem uma poderosa
verdade que lhe estou dando, conforme já lhe disse; é uma indicação, um pequeno auxílio.
O que quero dizer, é que o bem e o mal não se originam das relações entre os homens, mas
únicamente das relações do homem consigo mesmo. Você compreende?" — "Sim,
compreendo" — disse Etzel baixando os olhos — "mas... não me vá tomar por tolo... sou
obrigado a lhe dizer... é um simples exemplo... Se o meu amuo ou o pai do meu amigo... ou
alguém que me interesse profundamente ou, se o senhor quiser, que não me interesse, se
esse alguém se encontra injustamente na prisão e... o que é que eu devo fazer?... De que
utilidade me serão, nesse caso, as minhas relações comigo mesmo? Não posso então exigir
senão uma coisa: o direito, a justiça. Devo deixá-lo apodrecer na prisão? Devo esquecê-lo?
Devo dizer: o que tenho a ver com isso? Que fazer? O que é a justiça, se não conseguir fazê-
la triunfar, eu, eu, Etzel Andergast." Tinha-se levantado involuntariamente e cravava seus
olhos nos olhos de Ghisels como se exigisse dele, e imediatamente, o direito e a justiça.
Ghisels, sempre deitado, ergueu o busto. Durante um momento sustentou o olhar do rapaz,
depois levantou es olhos para o céu escuro e, em voz baixa, disse abrindo os braços: —
"Não tenho nada mais a responder senão o seguinte: perdoe-me, sou apenas um homem,
um frágil caniço." Durante alguns instantes sua face teve a expressão torturada do Cristo
crucificado de Mathias Grunewald. Então, Etzel baixou a cabeça como atingido por rude
golpe. Compreendeu de súbito a grandeza da resposta e também a infinita renúncia que
continha. Com o coração pesado, compreendeu também uma coisa: os dez mil anjos sobre
a pétala de rosa não eram senão uma metáfora, uma imagem poética, um belo símbolo
misterioso, nada mais, oh! nada mais..." A porta do quarto vizinho se abriu e no retângulo
de luz surgiu a silhueta sombria da dona de casa. — "O jantar está na mesa, Ghisels" —
disse com sua voz rachada. Melchior Ghisels se levantou com dificuldade, como fazem os
que sofrem; estendeu a mão a Etzel e apertou-a com emoção quase dolorosa. Pouco faltou
para que Etzel a beijasse. Embaixo, na rua, um táxi passava; fez um sinal e, quando o auto
parou, deixou-se cair quase desfalecido sobre o assento.
CAPÍTULO 12
I

QUANDO, após uma noite de insônia talvez devida ao execrável leito do hotel — o espírito
espartano do procurador-geral não estava habituado, entretanto, a levar em consideração
tais contingências — o barão Andergast penetrou às sete horas na cela, Maurizius se
encontrava em sua mesa, lendo. O detento pousou o livro, levantou-se e permaneceu
imobilizado por estranha rigidez, enquanto olhava o carcereiro fechar a porta. A fisionomia
do guarda, inchada pelo álcool, demonstrava espanto cheio de curiosidade. — "Bom-dia" —
disse o barão, afetando um tom bonacheirão que não enganou o prisioneiro. — "Bom-dia"
— respondeu com um tom de soldado falando a seu superior. — "O senhor passou bem a
noite?" — Maurizius se inclinou. — "Pode-se perguntar o que está lendo?" O barão
Andergast apanhou o livro; era a crônica da cidade de Rothenburg, por Sebastião Dehner.
— "Ah! isso lhe interessa? Pergunta inútil, pois estou vendo que sim." — "Esse livro
descreve claramente a maneira pela qual o povo vivia antigamente, ou antes, a maneira
pela qual o impediam de viver." — "Hum! não estou muito certo disso. A vida do povo era
mais intensa naquela época do que hoje." — "Mais paciente em todo caso. Quando
pilhavam suas casas e massacravam seus rebanhos, apresentavam queixa ao imperador e,
quando o imperador não vinha em seu auxílio, organizavam procissões de suplicantes. Os
homens sempre foram pacientes, e o são ainda. É da paciência dos povos que se
prevalecem todos os governos: é o que lhes permite se manterem." O barão franziu as
sobrancelhas. — "O senhor está amargo" — disse ele, visivelmente disposto a permanecer
indulgente — "mas não vamos perder nosso tempo em polêmicas inúteis. O senhor tinha o
propósito... espero que não tenha mudado de ideia. Como está vendo, aceitei sua proposta
e estou a seu dispor o dia todo." Novamente apareceu a estranha rigidez. Maurizius
declarou, com o olhar fixo: — "O que prometi, manterei." Estava apoiado à parede. O barão
Andergast arrastou a cadeira para junto da janela e sentou-se. Fez a Maurizius um gesto
cordial com a mão que, como no começo da entrevista, o convidava a sentar-se também.
Maurizius parecia não o ver. Permaneceu de pé, junto à parede. As pálpebras se
entrefecharam, os pequenos dentes morderam o lábio superior delicadamente arqueado;
por diversas vezes, passou nervosamente a mão sobre a testa e começou a falar em voz
baixa, tão baixa que às vezes se tornava difícil ouvi-la. 
II 

 Pode indicar com precisão o dia em que viu Ana pela primeira vez. Foi em 19 de
setembro de 1904, uma segunda-feira. — "Eu regressava da Faculdade" — disse ele —
"havia na ante-sala uma capa de mulher forrada de pele, da qual se exalava um perfume,
um suave perfume de verbena... às vezes me acontece ainda senti-lo em sonhos." Para,
como se fosse aspirá-lo. (O princípio de sua narrativa será, aliás, sempre intercalado de
hesitações, de silêncios. O pensamento retrocede, remexe no passado, como alguém que
mergulha a mão na água para retirar com dificuldade e com uma espécie de receio objetos
submersos. Isso é, naturalmente, impossível de reconstituir, mesmo aproximadamente.
Entrando na sala vê as duas irmãs sentadas uma em face da outra; sua mulher diz sorrindo:
— "Esta é Ana". Não pode dissimular a surpresa. Tinha ouvido falar muito sobre a beleza de
Ana e, nesse particular, esperava ficar maravilhado (de fato, estava preparado para a sua
chegada). No entanto, surpreende-se ao vê-la. É mais bela ainda do que esperava e, em
todo caso, diferente. Sua presença provoca um mal-estar; sobretudo, o pensamento de tê-la
por companheira em casa é-lhe desagradável. Abstração feita da alteração que um
hóspede introduz em toda intimidade tranqüila, essa moça de dezoito a vinte anos tem, na
sua pessoa, qualquer coisa que força e retém a atenção. Não se pode dizer exatamente o
que é. Sente-se, apenas. Nos dias subseqüentes, acha Ana pouco amável e não pode deixar
de o dizer à sua mulher; cita diversas ocasiões em que o modo altivo de Ana o irritou; dir-
se-ia mesmo que procurava essas ocasiões para se mostrar altiva. — "Ela me trata como se
eu tivesse cometido um roubo" — diz ele a Eli. Esta tenta desculpar a irmã. Sente-se como
sua protetora; mas, adivinha logo que as duas irmãs não se compreendem. Eli admira em
Ana a beleza que todos admiram. Esforça-se em auxiliá-la de todas as maneiras possíveis;
Ana tem necessidades materiais e sua situação difícil impõe a Eli o dever de protegê-la.
Mas, é impossível esquecer os vinte anos que as separam; uma irmã não pode esperar da
outra que ela se ponha sob a sua dependência. Aliás, Ana não demonstra a menor
disposição para isso. Quanto a ele, observa e mantém-se afastado. Diverte-se em criticar a
cunhada. O hábito que tem de se confessar todos os domingos irrita-o especialmente. Um
dia, permite-se fazer uma observação irônica sobre esse assunto. — "Um ímpio não tem o
direito de falar de um sacramento" — retruca ela. Nessa mesma noite, lê para as duas um
ensaio que acaba de terminar sobre as paisagens de Dürer. O trabalho parece impressionar
Ana; discutem-no. — "Você é capaz de dizer que quem escreveu isso é um ímpio?" —
pergunta ele — "E então, que é ser um ímpio?" Ana silencia e parece refletir. Tem sempre
sobre os lábios um sorriso indefinível que, para aqueles que vivem sempre a seu lado, se
transforma num sorriso convencional, desagradável. Vale como pronta resposta para uma
multidão de coisas: cumprimentos, conselhos, favores prestados, contradição, convite para
falar. Equivale a uma atitude vagamente intermediária entre a falta de jeito e o escárnio.
Maurizius se entrega à análise desse sorriso. Para ele, é, integralmente, um sorriso de
moça, cheia de pudor e irreverente. — "esse sorriso é" — explica ele — "uma arrogância
que não se encontra e não se tolera senão em moças de dezoito anos. Se se pudesse tirar
esse sorriso dos seus lábios como se arranca uma etiqueta de uma caixa, estou certo que se
descobriria um defeito, uma falha no esmalte" — exemplifica com ar pensativo. — "Mas não
nos detenhamos mais nisso." (É evidente que Maurizius se esforça por evocar nitidamente
a personalidade de Ana em quem o barão Andergast não pode, até então, encontrar nada
de atraente, e ele se lembra imediatamente dum detalhe característico). — "Certa manhã,
Eli lhe diz: — "Imagine você que Ana não quer mais ficar conosco." — "Ah! sem dúvida, não
somos bastante elegantes para ela. Eh! o velho Jahn também não habitava nenhum palácio
em Colonia!" — "Não é nada disso" — respondeu Eli com embaraço — "ela não gosta de ter
seu quarto de dormir ao lado do nosso; aliás, eu, a seu pedido, já coloquei o guarda-roupa
contra a porta e enchi o intervalo com um colchão; mas isso não basta, é desagradável para
ela." Maurizius acha odioso semelhante excesso de recato. Eli é obrigada a acalmar sua
indignação. Ana foi educada num convento, é preciso perdoar seus exageros. — "Sim, é o
seu espírito católico" — reconhece ele em tom reprovador, e, fortalecido pela sua
experiência de gozador, repete esse lugar-comum que diz que olhos pudicamente
abaixados escondem sempre uma imaginação desavergonhada. Mas os olhos de Ana estão
longe de estar pudicamente abaixados. Seu olhar, muito ao contrário, envolve pessoas e
coisas com uma franqueza sem indulgência, como se as situações mais secretas não lhe
fossem estranhas. Aliás, não se sabe nunca o que se deve esperar dela. Em parte alguma
está em seu lugar, nem no meio da burguesia, nem na alta-roda; na boemia também não,
nos círculos suspeitos menos ainda. Não é divertida, não sabe manter uma conversa, tem
poucas leituras. Em sociedade, não representa senão um papel apagado. Só possui, então,
sua beleza? Cansa-se dessa beleza. Com o tempo, aborrece. E contudo, contudo... é um
lago profundo, um abismo onde se afoga. Não pode suportar a menor palavra equívoca, o
menor subentendido na conversa, e esse traço de caráter a torna pouco sociável. Esse
horror que confessa sem subterfúgios provoca, certa vez, uma desavença com Eli e uma
discussão com ele, Leonardo. Eli tinha alguns convidados para jantar, um senhor Buchenau
entre outros, mais tarde íntimo amigo de Waremme, rico esportista e colecionador, já não
muito jovem, muito espirituoso, cínico, conhecido e apreciado narrador de anedotas
picantes. Não deixa de contá-las, nessa noite. Suas histórias se tornam cada vez mais
escabrosas; enquanto está contando em termos semivelados uma anedota indecente
(habituado a encontrar auditórios propícios, não recua diante de termos os mais rudes),
Ana se levanta com ar de quem está acabando apenas de perceber o que a conversa tem
de inconveniente, fixa em Buchenau, confundido, um olhar que paralisa a palavra em seus
lábios e abandona a sala para não mais voltar. No dia seguinte, Eli lhe pede explicações,
declarando-lhe que não é hábito de pessoas já crescidas se divertir contando histórias de
convento e que não permitirá grosserias com seus convidados, e assim por diante. Para
terminar, apela para o julgamento de Leonardo. Ana fixa no vago seus olhos claros de
expressão enigmática. Poderá parecer que procura o rosto de Maurizius, mas é em direção
a seu joelho que olha e, ao mesmo tempo, sorri com um sorriso estranho e preguiçoso.
 Leonardo se abstém de dizer o qualquer coisa. A cena lhe é penosa; pela primeira vez, não
pode recusar razão à cunhada. Eli se dirige a Ana com desdém: — "Eu creio, sinceramente,
que você é tão convencida que nem percebe quando ofende os outros." Então, Ana não se
contém: — "E você, que acha?" — "Eu me lembro" — disse então Maurizius ao barão
Andergast — "que essas palavras me fizeram estremecer. Jurar-se-ia, e eu ainda conservo
sua entonação no ouvido, um cego estupefato por se ver chamar de vesgo. Talvez o senhor
esteja surpreso por eu poder relatar tudo tão minuciosamente? Pois bem, asseguro-lhe que
nem uma única palavra é modificada ou inventada, tenho cada sílaba gravada na memória,
poderia reconstituir cada expressão de sua fisionomia: acontece apenas, de quando em
quando, um detalhe não estar mais no seu justo lugar. Fora isso, tudo está tão vivo como se
as coisas datassem de ontem." Maurizius se afastou alguns passos da parede. Mas, voltou
imediatamente, como se aí se encontrasse uma guarita que o protegesse de perigos
apenas por ele conhecidos. O barão, com as mãos juntas sobre as pernas cruzadas, a
cabeça voltada para a janela, e ligeiramente inclinada, sentia-se incomodado por
marteladas surdas que subiam do pátio da prisão e o obrigavam a redobrar de atenção para
não perder nem uma palavra do que dizia a voz incolor junto à parede. Os fatos eram, até
certo ponto, de seu conhecimento, ou, pelo menos, despertavam-lhe lembranças de fatos
conhecidos. Mas, por outro lado, eram completamente novos para ele. Estava tendo,
aproximadamente, a impressão que se tem ao ler um livro cujo conteúdo é conhecido
apenas através de uma análise detalhada de artigos de jornal ou de um comentário
qualquer. Fica-se abismado de ver que a análise, por mais fiel, não tem por assim dizer
nenhuma semelhança com a vida do livro, com os acontecimentos vividos e seus efeitos
imediatos. Fato estranho, verificava que essa constatação o contrariava e acrescia à
angústia em que a incerteza do julgamento e das ideias o vinha mergulhando naqueles
últimos dias. 
 III 

 Maurizius, com o mesmo olhar apagado e fixo, conservado até então, começa a
falar de sua primeira conversa íntima com a cunhada. Parece perceber que o assunto da
conversa não tem grande importância. O importante é aquilo a que o colóquio levou. O
menor incidente se torna aqui um elo da corrente. É escusado dizer que Ana ouvira falar de
seu passado de sedutor e aventureiro. Não se preocupa com isso nem um pouco! Segundo
suas ideias de então, uma reputação como a sua devia contribuir mais para torná-lo um
homem interessante do que para desacreditá-lo. No fundo, não acredita que se tenha
emendado depois do casamento e tem-no sempre em conta de um homem suspeito. Tanto
pior, ninguém a encarregou de julgá-lo, sua moral não é a mesma que a dele, e ele
providenciará os meios de dispensar sua aprovação e simpatia. Quem é ela, afinal? Uma
moça pretensiosa que vive do crédito que lhe proporciona sua bela fisionomia. Apesar de
tudo, o desprezo que descobre nela atormenta-o. Não se pode conformar; esse desdém lhe
tira o sono, envenena os momentos de folga; vê incessantemente suas sobrancelhas
franzidas acima dos olhos, escuros e duros. Ele, já o dissemos, passa rapidamente sobre
tudo isso. Os fatos não diferiram em nada dos de milhares de casos idênticos. Constata,
aliás, que, até determinado momento, sua vida e sua pessoa jamais se afastaram da
banalidade corrente. Depois, subitamente, esse momento determinado chega; o destino o
agarrou. Caiu sobre ele como enorme bloco de pedra. Pouco tempo antes, ninguém nem
sequer suspeitava a existência desse monstro, a fatalidade. ("Não acha o senhor" —
interroga ele no vazio — "que o que se denomina de fatalidade nasce, na maior parte das
vezes, fora de nós, de uma maneira insidiosa e cruel e, em certo sentido, nos ultrapassa
também? Estupidamente continuamos a nos divertir com insignificâncias e depois, no dia
em que, nos sentimos perdidos, ficamos horrorizados de reconhecer: ah! é a fatalidade! Foi
o que me aconteceu."A frase que Ana lhe dirige no decorrer dessa entrevista: — "Você se
vendeu!" — atinge-o em pleno rosto como uma bofetada. De início, fica sufocado frente a
ela; sente-se mal julgado, ultrajado. Ela, porém, parece arrepender-se desse insulto — é
com emoção que o ouve repelir a afronta lançando mão de toda a eloqüência. Quando se
separam, ela lhe estende a mão e seu silêncio contém, simultâneamente, súplica e
promessa. Tê-la-ia convencido? É duvidoso e conserva da cena uma impressão de mal-estar.
Tremor de desespero o agita: de súbito, reconhece que ela tem razão. É um despertar
repleto de conseqüências. De então em diante, vê-se abrigado a encobrir cada mentira com
uma outra, a acumular mentiras sobre mentiras, até ficar asfixiado. A história da carta
anônima, escrita por ele mesmo, marca o ponto de partida da corrida para o abismo. Aqui,
Maurizius se perdeu novamente em reflexões sombrias e estendeu-se sobre a distinção
entre a mentira por palavras e a mentira por atos, estabelecendo entre elas a mesma
diferença que entre um bacilo, inofensivo em determinadas condições, e um organismo
infeccionado. Uma maldição pesa sobre o homem que se casa com uma mulher sem amá-
la. É uma falta que não pode reparar e que o conduz irremediàvelmente à ruína, sobretudo
se, como no seu caso, ocasionar também a desgraça da sua mulher. Quanto mais nobres
são os motivos que se atribui, mais desastrosas são as conseqüências. Pensou agir
sabiamente desposando Eli e não possuía o mais superficial conhecimento de sua natureza.
Se era um hábil cálculo de sua parte, era inequivocamente uma infâmia, quaisquer que
fossem suas intenções, nobres ou pretensamente nobres. E, se era leviandade de espírito
ou fatalismo despreocupado, então tinha ainda menos direito de se espantar com os
sofrimentos que o atingiram depois. Não, nada havia ali que fosse de natureza a causar
surpresa. Quando um homem se dá e, por restrição mental, exclui sua alma desse dom,
ainda que aceitando a alma de outrem, como se se tratasse de uma troca leal, comete um
crime, talvez o pior que se possa cometer. É escusado dizer, para se desculpar. — "Eu não
sabia". A falta não fica em nada diminuída. Era preciso saber. Aqui cabe plenamente o
adágio: "A ninguém é permitido ignorar a lei." A ignorância da lei, de que lei? Aquela que
trazemos conosco. Essa, somos obrigados a conhecê-la. Maurizius se abateu
completamente, mas apenas por meio minuto. Enquanto o barão Andergast, com um resto
de desconfiança, pensava no condenado (que sentido profundo adquiria de súbito essa
palavra!) que se dilacerava a alma, este mesmo condenado já reiniciava sua narrativa.
Alguns dias após sua discussão com Ana, recebe do seu procurador na Suíça uma carta lhe
anunciando o nascimento de sua filha Hildegarda e informando-o das exigências de sua
antiga amante. Sabe que está agonizando e se encontra na maior miséria. Ele se vê em
inextricáveis dificuldades. Seu primeiro pensamento é: Ana. Confessa que, abstração feita
do terrível embaraço em que estava, sentira desejo irresistível, mórbido mesmo, de
envolver Ana naquela questão. Suas relações são, no momento, bastante cordiais: ela lhe
contou muitos fatos de sua vida, mas nada de importante, é verdade; nada que lhe permita
ver o fundo de sua alma. Ana permanece um enigma. Discutiu com ele projetos de futuro;
começa a manifestar interesse pelos seus trabalhos e espanta-o às vezes pela precisão
implacável de suas observações; isso o acoroçoa a tentar uma proposta cuja extensão não
examina, que arrisca simplesmente, como se arrisca na roleta. Ana o escuta e nada diz; vai
embora. Ei-lo preso de inquietação ainda maior. Teria novamente perdido sua estima, sua
simpatia? Duas horas mais tarde, telefona-lhe, marcando encontro na rua; declara-se
disposta a embarcar para a Suíça para buscar a criança e levá-la até Londres para a casa de
sua amiga, a senhora Caspot. Não lhe dá tempo para fazer perguntas ou pedir detalhes.
Decidiu assim e assim se fará. Resta-lhe apenas providenciar o dinheiro para pagar a
viagem e o ordenado da criada que levará consigo. Seus braços caem de espanto; não a
acreditaria capaz de tanta celeridade e com isso sua admiração por ela aumenta. Por sua
frigidez, sob aquele noli me tangere altivo e desconfiado, dormem instintos maternais,
sentimentos de compaixão. Talvez, também, Ana acolhesse com prazer a oportunidade de
fazê-lo esquecer a injustiça com que o julgara. Quimeras! Desejava partir, simplesmente.
Suas viagens à Suíça e à Inglaterra, diga-se logo, são meras tentativas de evasão. Nada
mais do que tentativas, é verdade, mas, de qualquer modo, meios de ganhar tempo e de
aguardar a intervenção providencial do acaso. Em seguida, interessou-se certamente pela
pequena Hildegarda com paixão incompreensível. Nas horas mais sombrias do período que
se seguiu, não deixou nunca de se interessar, como se nela encontrasse uma tábua de
salvação, supremo refúgio contra a febre e os tormentos. Mas, na época em que tomou essa
decisão, só o medo a determinou. Essa modificação não passa despercebida a Leonardo.
Está desvairada; ri sem motivo. Em meio de seus preparativos de viagem, uma meia hora
antes de o trem partir, lembra-se que esquecera seu relógio-pulseira na biblioteca da
Faculdade e quase tem uma crise de lágrimas. Não poupa esforços para acalmá-la. Insiste
em saber as razões da sua perturbação; assustada, ela se esquiva e acaba dizendo, como
uma dolorosa confissão, que suas crises são a verdadeira causa. De há um ano, diz ela, não
as tem, mas sente que voltam. O peso que sente constantemente no cérebro é o sinal
prenunciador. É verdade, e não é, ao mesmo tempo. Ele conhecerá essas crises, mas Ana
não as teme tanto quanto afirma. Outra coisa a oprime, outra coisa de que não fala, pois as
palavras não podem transpor seus lábios. Muito tempo, muito tempo se passará antes de
ele vir a saber o que é. E, quando o souber, nesse dia será muito tarde, já estará em plena
fornalha. — "Nessa época, talvez eu pudesse ainda lutar se alguém me tivesse dito: se você
tem amor à vida, fuja com ela, esconda-se junto com ela, não apareça mais em sua terra,
em sua cidade, nem mesmo em sua casa, desapareça, morra para o mundo que até aqui foi
o seu. Talvez eu o tivesse feito porque nessa época ela já era para mim... meu Deus, ela já
era... não, não há palavras para dizer isso. Talvez eu pudesse decidi-la, quem sabe? Mas
nada disso aconteceu, porque essas coisas não acontecem nunca. Quem nos insinuasse
semelhante conselho evitar-nos-ia as torturas da vida e da morte; mas certas coisas estão
inevitàvelmente inscritas no livro do nosso destino, eis a verdade..." Maurizius se
interrompeu, aproximou-se da mesa, apanhou a moringa e encheu o copo que bebeu de
um só trago. Permaneceu longo tempo em silêncio, com os dois braços apoiados na mesa, o
rosto inclinado para a frente. — "Então Waremme"... — disse o barão Andergast
tranqüilamente. — "Ah! sim, Waremme." 

 
IV 

 Temendo que Maurizius, por uma causa qualquer, por uma emoção muito forte
ou porque suas lembranças se tivessem apagado, perdesse a vontade de prosseguir na
narrativa, e querendo, por meio de perguntas rápidas, nas quais punha o maior interesse
possível, auxiliá-lo a vencer essa nefasta hesitação, o barão perguntou: — "Se compreendi
bem, foi de imprevisto que ele chegou?" — "Exatamente." — "E Ana Jahn já sabia de sua
chegada, quando o senhor lhe confessou a história da criança?" — "Sim, já sabia que ele
havia descoberto seu rastro." — "Como... descoberto seu rastro? Então ele a perseguia, de
algum modo?" — "Se não a perseguia de fato, tentava pelo menos encontrá-la. Não lhe foi
difícil saber que estava hospedada em nossa casa." — "Certamente, mas que motivos tinha
ela para se esconder, e mesmo para temê-lo?" Maurizius se calou. — "Bem, admito" —
tornou o barão Andergast — "que ela tivesse uma razão, a melhor das razões, se bem que
não possa imaginar absolutamente qual: por que então não aproveitou a ocasião que o
senhor lhe oferecia? Por que regressou? Era-lhe fácil encontrar um pretexto plausível para
permanecer no estrangeiro. Bastava lhe escrever, por exemplo, que a criança estava
doente, ou então que a senhora Caspot se encontrava ausente ou não oferecia as garantias
desejáveis. O senhor provavelmente não teria levantado nenhuma objeção a que adiasse
sua volta por tempo indeterminado. Isso a teria feito ganhar tempo, sem despertar a menor
suspeita." — "Está bem raciocinado; mas ela não podia." — "Por quê?" — Porque... porque
ele a havia enfeitiçado." O barão Andergast tomou um ar incrédulo. — "Enfeitiçado, ele!
Oh! que está o senhor dizendo? Isto não acontece senão em dramas de teatros de revista.
Um deles fez furor em determinada época; talvez o senhor se lembre, chamava-se Trilby.
Não valia nada. Havia na peça um certo Svengali, uma espécie de feiticeiro, também. Tudo
isso são histórias de salteadores. Eu, por mim, nunca poderia acreditar que essas coisas
acontecessem na vida real. Enfeitiçada?... Queira explicar-se mais claramente." Maurizius
sacudiu a cabeça sem levantar os olhos. — "Isso não se explica. Histórias de bandidos, diz o
senhor. É possível: sim, eu também assisti Trilby, uma vez. Essas futilidades às vezes
contêm ideias que correspondem às realidades do momento." — "Como travou o senhor
conhecimento com Waremme? Não foi por intermédio de Ana Jahn, segundo os autos." —
"Não, não foi por ela. Alguns dias antes do seu regresso, encontrei na rua o senhor
Buchenau, que me disse: "Maurizius, é preciso que você venha tomar chá em nossa casa,
hoje; lá se encontrará com um homem como jamais viu, um poliglota, um novo
Winckelmann, um poeta, um favorito dos deuses." Foram suas próprias palavras. Como
tivesse Buchenau em conta de um cético que ninguém viu jamais entusiasmado por coisa
alguma, suas palavras excitaram minha curiosidade e eu fui. Era verdade, jamais vira nada
semelhante." — "Nesse momento o senhor ainda ignorava suas relações com Ana Jahn?" —
"Sim. No domingo seguinte, dia 27 de novembro, avistei-o com Ana. Ele me saudou com
muita solicitude, os dois pararam e eu os acompanhei." — "Foi a partir desse dia que se
estabeleceram suas relações de amizade a três?" — "Sim." — "É preciso então que aquelas
primeiras apreensões de Ana Jahn, para empregar o termo mais anódino, se tenham
acalmado pouco a pouco. Era, antes, imaginação, histeria?" — "Deus do céu!" — murmurou
Maurizius. O barão o olhou intrigado. Maurizius passou a mão no pescoço, como se se
asfixiasse. — "Ou tem o senhor a impressão de que qualquer coisa de... decisivo se havia
passado entre eles?" — "Oh! sim," — replicou Maurizius com a voz quase extinta — "oh!
sim, qualquer coisa de horrivelmente decisivo." Apoiou-se na beira da mesa. O barão
Andergast esperava. Sentia seu coração bater violentamente. — "Qualquer coisa..." —
continuou Maurizius; de repente sua voz endureceu. — "Ele a tinha violado." O barão
Andergast saltou: — "Isso, por exemplo!" — exclamou, perdendo pela primeira vez o
controle — "É loucura... o senhor sonhou." — "Ele a tinha violado aos dezessete anos," —
recomeçou Maurizius com voz surda. Agarrava-se tão convulsivamente aos bordos da mesa
que as articulações de seus dedos se tinham tornado completamente brancas. Uma ordem
ecoou no pátio. As marteladas que haviam cessado havia meia hora, recomeçaram. Um
bando de andorinhas cortou o céu azul da manhã. O barão tornou a se sentar. Procurava
palavras. — "Trata-se aqui, sem dúvida," — aventurou ele — "de uma dessas declarações
falsas, tão comuns. Nossa experiência demonstra que as violações são extremamente raras.
A vítima geralmente permanece num estado de espírito que a ilude sobre o que se passa e
a incita a formular uma declaração destituída de fundamento." Essa digressão jurídica não
arrancou de Maurizius senão pálido sorriso: — "O senhor se engana," — respondeu — "o
delito foi consumado." Depois, após profundo suspiro: — "É fantástico que..." — "Por que
fantástico? Que quer o senhor dizer?" — "Isso: que, apesar de os autos do processo serem
sem dúvida mais volumosos que um tratado de história em vários tomos, o homem que, em
certo sentido, foi seu autor responsável, não possa senão confessar sua ignorância, desde
que se trate de um fato que não salte aos olhos. É a verdade, o senhor não pode negar.
Perdoe-me, não queria ofendê-lo, mas talvez o senhor mesmo verifique, assim, o que são na
realidade a justiça e os processos. A balança de Têmis, meu Deus... não é um instrumento
delicado. É uma alavanca maciça que não se move senão quando os pesos de uma arroba
são atirados em seus pratos. Perdoe-me, foi simplesmente uma ideia que me atravessou o
espírito." O barão Andergast tomou a resolução de ignorar o ataque. — "O que eu não
compreendo é que o senhor tenha podido saber disso." — disse ele. — "Ana Jahn não
pode... não, não é necessário conhecer seu caráter complicado para achar que isso é
inadmissível... Talvez outras pessoas conhecessem esse segredo. Talvez quisessem mais
tarde, depois do processo, fazer o senhor acreditar nessa monstruosidade para... para que o
senhor não se deixasse mais reter por certas considerações. Diga? Reflita um pouco."
Maurizius sacudiu a cabeça, o pálido sorriso reapareceu. — "Eu soube pelo próprio
Waremme" — disse ele. O barão teve um sobressalto: — "O quê? Pelo próprio Waremme!
Então o senhor se refere aos últimos tempos e a confissão significa: você não perde grande
coisa perdendo-a, há muito tempo que essa bela estátua foi arrastada pela lama..." — "O
senhor não adivinhou. Não foi uma confissão." — "Como, então?" — "Não foi nos últimos
tempos que soube, mas no segundo mês das nossas relações, em janeiro." — "Então eu não
compreendo mais nada" — deixou escapar o barão Andergast. Maurizius o observou com
um olhar singularmente mau: — "Creio bem" — disse ele. E apanhando novamente a
moringa, encheu um copo e esvaziou-o de um só trago. — "É difícil compreender qualquer
coisa a esse respeito, sem observar a influência que então Waremme exercia sobre mim" —
prosseguiu. E, aproximando-se do leito de ferro, deixou- se cair sobre ele, aparentemente
esgotado: — "Eu lhe pertencia completamente, via pelos seus olhos, empregava as
mesmas palavras, julgava as coisas como ele, conduzia-me como ele. Minha cultura,
comparada à sua, não era mais do que um amontoado de bagatelas. Não fiz senão provar
um pouco de tudo, belisquei à direita e à esquerda, pois devia estudar para ganhar meu
pão. A seu lado, não era senão um pobre diabo. O mesmo se passava com os outros. Todos
estavam a seus pés. Desde que alguém se encontrava no mesmo lugar que ele, ficava
completamente ofuscado, de pés e mãos atados. Atribui-se involuntariamente a um espírito
desse valor o direito de jurisdição sobre a conduta de outrem. Ignoro por que, mas é um
fato. Para as pessoas cuja existência é absorvida pela cultura intelectual e pela ciência, a
moral nada mais é que uma excrescência supérflua sobre a esfera irradiante do espírito, se
assim posso exprimir-me. Nesses anos, isso era particularmente impressionante. E era o
que criava em torno de nós, rapazes, aquele... aquele vácuo, verdadeiro simulacro do
infinito. Não foi senão muito mais tarde, nesta casa, que me compenetrei disso. Em
Waremme, via ou acreditava ver a imagem daquilo que se alcançaria quando... oh! sim, eu
deveria dizer: quando se é alguém. Mas ele não nos dava a impressão de que éramos tão
pouca coisa, um pobre ser ínfimo, ambicioso, inchado de vaidade, um fracassado. Não
humilhava, apesar de todo o seu entusiasmo e arrebatamento; era muito bom camarada
para isso. Trazia consigo a mesma paixão que eletrizava, seja que fizesse servir champanha
e caviar, seja que regalasse a todos com poemas e ideias — uma paixão inesgotável. Podia-
se passar noites e mais noites em sua companhia, sem sentir a menor fadiga, sem pensar
em dormir. Esse homem era um enigma; estou convencido de que não se encontra um
homem semelhante todos os cem anos, como não se encontra um Kepler ou um Schiller, e,
ao mesmo tempo, estou certo que era o diabo, sim, o diabo em pessoa. Ninguém terá
melhores razões para afirmar isso do que eu. O mal, veja o senhor, o mal absoluto é
extremamente raro sobre a terra, mais raro ainda do que Kepler e Schiller. Mas, não quero
aborrecê-lo. O senhor dirá que são divagações místicas e que o diabo tem sido durante
muito tempo a suprema desculpa de todos os condenados. Na época de que falo, o
conselheiro Bringsmann, o professor de literatura que todos veneramos, ainda vivia; todas
as sextas-feiras, reunia-se em casa dele a melhor sociedade e lá passávamos horas
infinitamente agradáveis e instrutivas. O conselheiro era um dos mais fervorosos
admiradores de Waremme. Os que o rodeavam, mimavam-no, tinham com ele cuidados
especiais. Na primeira sexta-feira do ano, era dia de Reis, a reunião foi particularmente
numerosa; Waremme tinha prometido ao conselheiro ler o Gorgias, cuja tradução vinha de
terminar. Quase todos os profesores, acompanhados por suas senhoras, haviam
comparecido; era um auditório seleto. Quando entrei com Eli e Ana no salão, que não era
muito grande, a leitura já estava começada e encontramos todas as cadeiras ocupadas.
Sobre a leitura propriamente dita não há nada de interessante a mencionar. Mas, fiquei
surpreso, ao entrar, ver Waremme se interromper por alguns segundos e lançar-nos um
olhar furioso, provavelmente por termos chegado atrasados. Em coisas dessa natureza, era
de uma suscetibilidade incrível; nessa época, atribuía essa atitude a seu pedantismo e a
este caráter despótico, mas era antes causada pela sua vaidade mórbida e ele guardava
eterno rancor a quem ferisse essa vaidade. Não me lembro mais se foi Ana ou minha
mulher a causadora do atraso; em todo o caso, Ana se encontrava em um tal estado de
nervosismo que, ao subir a escada, pisou sobre a orla da sua saia, o que nos retardou mais
ainda, pois foi preciso prender a bainha rasgada com alfinetes. Enquanto isso se fazia,
estava pálida como um lençol e suas mãos tremiam de agitação. Waremme foi cumulado
de aplausos e louvores, todos se desmanchavam em mesuras ao seu redor; ele parecia
estar muito animado, mais expansivo ainda do que habitualmente. Notei entretanto que
fingia ostensivamente não nos ver, a Ana e a mim; com Eli, nunca se dera bem. Pensei: — É
em verdade levar a vingança um pouco longe demais por falta tão insignificante." Entre os
convidados, encontrava-se também um jovem professor de Heidelberg que tinha
recentemente publicado um estudo sobre os temas legendários de Shakespeare. Waremme
conhecia o trabalho em questão e, ao lê-lo, tinha ficado irritado com muitos dos seus
julgamentos absurdos; tínhamos conversado sobre eles alguns dias antes; certas críticas
sobre Medida por Medida tinham-no particularmente exasperado, porque gostava muito
dessa peça. Não deixou escapar a ocasião de discutir com o autor e acabou levando-o
tantas vezes à parede que o infeliz não sabia mais o que dizer e de nada gostaria mais do
que pedir sua absolvição. A discussão havia atraído a atenção geral; todas as outras
conversas se interromperam. Embriagado pelo sucesso, pelos olhares de admiração do
auditório e impelido por uma intenção secreta que só penetrei mais tarde, subjugou seus
ouvintes por uma das suas famosas proezas oratórias. Após uma alocução breve e
encantadora, recitou de memória a última cena do segundo ato completa — o magnífico
diálogo entre Ângelo e Isabel — no qual Ângelo promete a Isabel a vida de seu irmão, se ela
se entregar a ele. Em toda minha vida, jamais esquecerei a expressão, a pujança com a
qual declamou esse trecho, graduando a emoção qual um ator consumado e, ao mesmo
tempo, não como ator, mas como alguém que vivesse a cena, que a vivesse naquele
instante mesmo. — "Creia-me, Senhor, eu preferiria mil vezes entregar meu corpo do que
minha alma", e a resposta de Ângelo: — "Não falo da sua alma; os pecados aos quais
somos coagidos servem antes para fazer número do que para nos acusar." E a passagem
onde Isabel diz: — "As mulheres são como os espelhos em que elas se contemplam e que
se quebram tão facilmente como refletem imagens." Depois, sua feroz indignação: — "Oh!
tão pequena honra para tamanha crença e tão detestável desígnio. Hipocrisia! Hipocrisia!
Eu te denunciarei, Ângelo!" E sua resposta: — "Quem acreditará em você, Isabel? Meu
nome sem mancha, a austeridade da minha vida, meu testemunho oposto ao seu, minha
posição no governo, triunfarão de tal modo sobre sua acusação que você será estrangulada
pela sua própria denúncia e tresandará a calúnia..." E quando ele chega à passagem...
vejamos, como é mesmo?... há vinte anos, desde esse dia, não mais ouvi nem li essas
palavras, mas jamais os anos poderão apagá-las da minha memória... quando com um
ardor, um ar de feroz desafio que fez estremecer a todos nós, ele chegou à seguinte
passagem: — "Principiei, e agora abandono as rédeas ao galopar da minha sensualidade;
resolva consentir no meu violento desejo, ponha de lado todas essas pieguices e todos
esses rubores que imploram delongas e repelem o que ambicionam, ceda seu corpo ao
meu desejo..." Todas as senhoras no fundo da sala soltaram um grito: ouviu-se um barulho
de pratarias e porcelanas, houve um momento de pânico. Abri caminho através da
confusão geral e avistei Ana caída sobre o tapete; na queda, tinha derrubado uma pequena
mesa e jazia no meio de pratos quebrados, de chá entornado e biscoitos espalhados, com
os membros agitados por uma convulsão nervosa, os olhos revoltos. Foi a sua primeira crise
que testemunhei; a segunda se produziu seis ou sete meses mais tarde, em casa dela, após
uma cena com Eli. Levâmo-la para o dormitório da senhora Bringsmann. Waremme
também lhe prestou socorros; não foi senão depois de várias horas que voltou ao estado de
poder ser reconduzida para nossa casa. À noite, Waremme me levou a um café e não me fiz
de rogado: parecia-me que qualquer coisa devia ser esclarecida e que somente ele poderia
fazê-lo, pois sentia uma ligação misteriosa entre a declamação e o que sucedera a Ana.
Pediu uma garrafa de champanha que bebeu sozinho, e logo uma segunda, ao mesmo
tempo que fumava cigarro atrás de cigarro, sem interrupção. Não prestava nenhuma
atenção ao meu rosto transtornado e tampouco às suposições que, de quando em quando,
eu arriscava com voz insegura. Já era mais de meia-noite, não havia outros fregueses além
de nós dois. De repente, disse, esmurrando-se: — "Animal que sou, imbecil por não ter
pensado que isso lhe devia causar o efeito de um ataque traiçoeiro, pelas costas; onde
estava com a cabeça para me acontecer semelhante coisa!" Arregalei os olhos; começava a
perceber a verdade. Sabia que Ana votava uma antipatia mórbida pelo teatro e por
qualquer representação cênica, mas não era possível que, declamando em um salão uma
cena magnífica, Waremme tivesse determinado nela uma tal crise de nervos. Faço mais ou
menos essa observação a Waremme; segura-me o punho por sobre a mesa, empalidece e
murmura: — "Por Deus, não. Mas existe uma analogia terrível; a vida brincou com ela de
maneira infernal e colocou sobre seu caminho um Ângelo que não se contentou com um
pedido impudente, mas que, imediatamente, transformou seu desejo em ato, você
compreende?..." Se eu compreendia! Compreendia tão bem que, a partir desse instante, só
compreendi isso, não tive outra ideia na cabeça, por mais inconcebível que seja. Tinha o
sentimento... mas o que adianta falar em sentimento; o mundo nada mais era que um
lodaçal. Waremme tinha o ar de um espectro. Pediu-me para acompanhá-lo até sua casa
porque não podia falar ali nem ficar só. Aquela questão o havia abalado, despertara o
passado; tinha necessidade de se expandir com um amigo, durante muito tempo
conservara tudo guardado consigo e isso o asfixiava... e outras frases desse gênero. Então,
acompanhei-o à sua casa. Serviu bebidas, bebeu um quarto de garrafa de conhaque e, sem
deixar de caminhar a longos passos pela sala, entrou em detalhes, falando sempre de
Ângelo e de Isabel Eu tinha ouvido falar da representação de amadores em Colonia onde
Ana brilhara, mas ignorava que Waremme tivesse sido o diretor-artístico da festa; ele o
disse de passagem, como se se tratasse de uma coisa sem importância. Tinham preparado
uma pastoral francesa com acompanhamento de música antiga. Ana representava o papel
de uma jovem nobre disfarçada em Pierrot. Pois bem, terminado o espetáculo, aquele
homem... o misterioso Ângelo, apresentou-se no seu camarim, desejando falar-lhe de um
assunto urgente, segundo dizia. Ana o recebeu. Já era tarde. Como de costume, tinha gasto
muito tempo em se vestir. Os maquinistas já se tinham retirado, assim como os outros
amadores. A criada que devia acompanhá-la até a casa, esperava-a na porta de saída.
Encontrava-se pois só nesse teatro deserto, entre um pátio e um corredor desertos, com
esse Ângelo que, é verdade, não lhe era completamente estranho, conforme pude
compreender. Fiquei impressionado com a arte, direi mesmo com a elegância literária com
que, apesar de sua agitação, ele descreveu o lugar, a situação... Por que o visitante
escolhera esse momento, de preferência a um outro, para lhe anunciar uma novidade
fulminante, ignoro-o; tudo nessa descrição era tão esquisito, tão equívoco. Em resumo,
vinha lhe comunicar que o seu irmão Érico havia sido morto no desenrolar de um combate
no Sudoeste africano; o telegrama chegara naquele dia mesmo. Esse irmão era o ser que
ela mais amava no mundo, talvez o único que jamais tivesse amado. Era uma afeição
profunda e um pouco dúbia. Pode-se imaginar facilmente o efeito que uma notícia assim
inesperada causou em Ana. Estava esse Ângelo expressamente encarregado de transmiti-
la, e por que razão? Waremme nada disse sobre isso, mas somente que se esforçou por
consolá-la e por acalmá-la. Não se limita a isso, tira a máscara por assim dizer, torna-se
insistente: uma ocasião tão tentadora não se reproduzirá tão cedo. A recusa da jovem não o
detém. Sua resistência o excita, impele-o ao extremo e ela se torna sua vítima. Enquanto
Waremme fala, parece-me que devo partir imediatamente, revolver céus e terras para
descobrir o miserável e liquidá-lo. Quanto a ele, uma tal dor se apodera à medida que
avança na sua descrição que, mal pronúncia a última palavra, atira-se sobre uma poltrona e
desata em soluços e gritos lancinantes. Após ter-se restabelecido, abandona a sala e ouço
seus passos indo e vindo no banheiro; toma uma ducha e, no fim de meia hora, reaparece
vestido com um elegante pijama. Fico estupefato assim como de ouvi-lo dizer, com maior
calma e com ar superior, que a menor palavra que me escape sobre esse assunto em
presença de Ana poderá provocar graves conseqüências para sua saúde. Sou o único a
compartilhar do segredo com ele; isso nos liga, nos prende reciprocamente. Ana confiou
nele em um momento de desespero negro em que havia resolvido por fim à vida.
Conseguiu devolver-lhe a coragem, vencer nela certos preconceitos morais e certas
veleidades. Nesse intervalo, o culpado tinha fugido e era muito provável que jamais
voltasse. Encarando o fato objetivamente, o que acontecera a Ana não diferia em nada do
que acontece ao transeunte que um cavalo em disparada atropela e que levantam todo
coberto de sangue. Mas, quando se está pessoalmente em jogo, — aqui, a lembrança
pareceu novamente acabrunhá-lo, sua voz pôs-se a tremer — quando se pensa naquela que
está em jogo, quer dizer, nesse ser de uma imaginação, de uma sensibilidade deliciosa, não
é fácil conformar-se assim tão facilmente; a alma dele permanecia, em todo caso, como
que esmagada por esse fardo trágico e, se não podia separar-se dela, era unicamente
porque se sentia verdadeiramente seu amigo e sabia que a amizade era o único terreno
onde a raiz ferida pode sugar uma nova seiva. Percebia-se por detrás de suas palavras uma
reserva, uma segunda intenção, uma advertência. Para terminar, Waremme me abraçou
afetuosamente, dizendo-me que não cometeria a insensatez de me pedir segredo; tinha
consideração elevada demais do meu bom-senso e do meu tato para isso. Para ele a palavra
de honra e outras formalidades desse gênero nada significavam. A situação constituía a
seus olhos a garantia da minha discrição. Era tão delicada que qualquer interferência inábil
seria criminosa. A fragilidade daquela moça tão sensível exigia maior reserva e,
unicamente em consideração a ela, devíamos considerar-nos como aliados, aliados para
protegê-la. Estendia-lhe a mão, incapaz de falar. Não me lembro mais nem de como sai,
sem de como voltei para casa. Minha cabeça estava inteiramente vazia." 
  V 

 Com seu passo arrastado Maurizius andou duas vezes de uma extremidade para
a outra da cela antes de tornar a se sentar e continuar: — "Quando hoje, ao fim de mais de
vinte anos, hoje que tenho tempo, tempo de sobra para examinar o fato em todos seus
aspectos, de esquadrinhar todos os subterrâneos e todas ramificações, pergunto-me qual
foi a verdadeira razão que impeliu Waremme a me fazer essas confidências, não encontro
resposta satisfatória. Pode ser que tivesse querido preparar-me o espírito, antecipando-se a
uma insinuação ou a um boato que pudesse chegar aos meus ouvidos. Mas, teria ele razão
para receá-lo? Da parte de Ana, nada tinha a temer: quanto ao misterioso Ângelo, inútil
dizer que era um fantasma. Ninguém mais conhecia o segredo. Ninguém no mundo podia
saber de nada, nem ter a menor suspeita. Para que me prevenir? Que podia temer do meu
lado? A preocupação com a honra e a saúde da minha cunhada era suficiente para me
desarmar. Talvez, pudesse matá-lo sob a ação da cólera, mas não seria essa hábil
especulação que o teria preservado. Era preciso em todo caso que se julgasse bem seguro
para jogar comigo um jogo assim tão perigoso. Não, não era nada disso; queria antes,
talvez, me fazer refletir. Tinha observado há muito tempo que minhas relações com Ana
eram cada vez mais afetuosas, mais familiares, e queria cortá-las, dando a entender: —
"Não sonhe em tocar nela; não é feita para você e você encontrará obstáculos que eu
mesmo não consegui vencer e você conseguirá muito menos ainda. Repare como me
contento em ser seu amigo e em ajudá-la; é tudo quanto se pode pretender; é preciso ser
um canalha sem escrúpulos para esperar alguma coisa mais." Quebrar por meios indiretos
o ímpeto de um rival que, no fundo, não levava a sério era bem de acordo com seu caráter.
É minha experiência posterior que me faz dizer: naquela época, eu estava cego, se bem
que assaltado por suspeitas. Não podia eliminar a impressão dolorosa que me causara sua
eloqüência persuasiva. Parecia-me que não tinha querido senão aparecer diante de meus
olhos como um homem generoso, e cada vez que sua emoção, sua explosão de dor, me
voltava ao espírito, encontrava nela a mesma arte perfeita da declamação da cena de
Shakespeare. É provável que, das duas vezes, sua atitude fosse função de um único
sentimento; era ocioso procurar nisso uma intenção, um plano, uma finalidade. Talvez fosse
o irresistível desejo de exaltar suas qualidades, de fruir seu próprio talento; introduzir uma
certa ênfase na vida era necessidade premente de sua segunda natureza e, para satisfazê-
la, não hesitava em se lançar eventualmente em mil perigos. Talvez tudo isso fosse apenas
um produto de sua imaginação, uma mistificação, uma fabulação à moda de Waremme;
tudo isso era possível. É verdade que, aceitando essas hipóteses, seguia um caminho
errado. Acreditara até então que tinha afeição por mim, que me preferia em todo caso a
muitas outras pessoas. Tinha muitas razões para assim pensar; de súbito, pareceu-me que
me odiava, que me odiava com ódio secreto, insondável, que o tornava capaz de tudo, para
o mal como para o bem. É preciso lhe fazer justiça, para o bem também. Mas, por que esse
ódio, por quê? Ignoro-o ainda hoje; o ciúme não basta para explicá-lo. Era de caráter
despótico demais para ser ciumento, compenetrado demais de seu valor e de sua
superioridade. Não encontrava em parte alguma um ponto de apoio, não tomava pé em
lugar algum. Durante dias inteiros, andei como um inconsciente; quisera esconder-me.
Receava rever Ana: precisava evitar que percebesse nos meus olhos a imagem que me
tornava louco. Comportava-me como alguém cujo bem mais precioso, uma tela de Rubens
ou de Leonardo da Vinci, fosse maculada por mãos sacrílegas, exatamente como se Ana
fosse minha propriedade, como se tivesse direitos estabelecidos sobre sua virgindade e
como se semelhante coisa não lhe devesse suceder porque eu existia. Sentia-me
desamparado, literalmente dilacerado. O trabalho me causava horror, em parte alguma
encontrava repouso. Não podia trocar com pessoa alguma cinco palavras seguidas e a vida
ao lado de Eli tornou-se para mim um suplício, por mais razoável e boa que ela se
mostrasse então. Isso mudou, algumas semanas mais tarde. Não podia continuar vivendo
assim, era preciso que falasse a Ana, mesmo que disso resultasse a maior desgraça. Nunca
fui capaz de dissimular, um recém-chegado podia ler na minha fisionomia o que se passava
comigo. Tinha dificuldade em guardar um segredo; expunha-me sempre, por esse motivo, a
graves aborrecimentos, mas o segredo me martirizava. Tornava-me indiscreto por puro
egoísmo e iludia a confiança que haviam depositado em mim. Por isso, tinha, e não sem
razão, a reputação de um homem no qual não se podia confiar. No ocorrido, tinha guardado
silêncio acima de minhas forças. "Iludo-me" - pensava — "supondo-me obrigado a me calar
diante de Ana; tenho o dever, tanto em seu benefício como no meu, de me libertar do
entrave que me paralisa." Pedi-lhe, certa vez, um encontro e ela me fez ir à sua casa. Havia
muito tempo, desconfiava do que se passava comigo. Muitas ocasiões julguei sentir seu
espírito trabalhando, lutando como se tivesse qualquer coisa para me confessar. Mas,
naturezas como a sua jamais confessam, sobretudo espontâneamente. Preferem antes se
deixar esfolar. Quando sua imagem, sua atitude, se apresentavam aos meus olhos com a
intensidade de uma visão, jamais duvidava que qualquer acontecimento funesto tivesse
cruzado sua estrada e a tivesse marcado para sempre. E, quando me sentia tão próximo
dela que pensava bastar estender a mão para segurá-la e observá-la no íntimo, encolhia-se
como uma flor que se fecha, e tornava-se fria, convencional. Revelou-me várias semanas
mais tarde não se ter jamais aberto, mesmo em confissão, sobre o crime de que fora vítima.
Digo "o crime", mas ela própria não falava dele senão em termos velados, não o nomeando
nunca. No dia em que nos encontramos sós no seu quarto, depois de me haver certificado
que ninguém nos poderia perturbar nem nos escutar, tomei toda a coragem e perguntei-
lhe abruptamente — os covardes vão diretamente ao fito — se tal e tal coisa havia
realmente acontecido. Não a designava, naturalmente, senão de uma maneira vaga, ainda
que muito clara. Ana estremeceu ligeiramente e teve um olhar vago; suas feições se
contraíram, seus traços se endureceram. Voltou um momento os olhos para a porta,
perguntando-se aparentemente se não seria melhor abandonar o aposento. Tentei segurar-
lhe a mão; cruzou os braços e mordeu os lábios. — "Ouça- me" — disse-lhe — "entre nós
isso não tem importância." Ana permaneceu em silêncio. — "Esteja certa" — continuei —
"que nada fiz para saber, mas, agora que sei, talvez possa auxiliar você a esquecer."
Conservou-se em silêncio. Não me lembro mais de tudo quanto pude alegar, creio ter ido
até o ponto de lhe falar em tomar satisfações ao culpado. Ana se conservou
obstinadamente em silêncio. Parecia que me dirigia a um surdo. — "Ana," — prossegui —
"se lhe interesso tanto quanto aquela almofada de alfinetes lá sobre a mesa, diga-me o que
poderei fazer por você, ou pelo menos o que quer, se me permite falar nisso; diga qualquer
coisa, não importa o que, mas não fique aí muda como uma esfinge, deixando-me fazer o
papel de Édipo." Sempre o mesmo silêncio. Então, apanhei meu chapéu para sair. Nesse
momento, fez um pequeno gesto com o braço que, por imperceptível que fosse, era de
súplica, de imploração. — "Ana" — perguntei-lhe, juntando as mãos — "é verdade?
Responda, apenas, sim ou não." - "Sim" — disse ela com voz apagada. — "Está bem, tudo
está bem agora", — recomecei — "já que você demonstrou achar-me digno de uma
resposta. Diga-me ainda uma coisa: você se sente abatida, humilhada, isto é: sua vida ficou
arruinada?" Ana fez que sim com a cabeça. Esse meneio de cabeça me descontrolou. —
"Então," — continuei — "você tem a sensação de não se poder conformar?" Nova
confirmação. Ajoelhei-me diante dela e segurei uma das mãos que, dessa vez, abandonou
sem resistência. — "É ele," — perguntei ainda — "é por ser ele que a ruína lhe parece
irremediável?" Novo sim com a cabeça. — "Está em meu poder fazer qualquer coisa para
livrá-la, para livrá-la dele, dessa ameaça ou simplesmente dessa tortura terrível que ele lhe
causa?" Com os lábios tremendo, Ana murmurou, pensativa: — "Talvez." — "Então, diga-me
quem é?" — perguntei — "Diga-me o seu nome". Ana se ergueu e recuou um passo: —
"Ah!" — murmurou, detendo-se nessa palavra e, com um riso singularmente altivo e cheio
de desprezo, continuou — "Você não sabe? Não sabe... Então, que espera de mim?" Seu
olhar se tornou severo e irônico. Foi minha vez de ficar em silêncio. Que significava aquilo?
O senhor poderá ver até que ponto recuava ante a evidência, até que ponto Waremme me
dominava para que não achasse em mim coragem para acusá-lo, apesar das minhas
suspeitas que, é verdade, somente despertavam quando passava muitos dias sem vê-lo. Era
evidente que, se por um lado Ana ficara atormentada e transtornada com a ideia de
Waremme me ter tomado por confidente e de a ter traído sem escrúpulo, por outro lado se
sentia aliviada em relação a mim. Apenas, jamais lhe teria vindo à mente a ideia de que ele
havia revestido suas revelações, tão exaltadas em aparência, de uma rede de mentiras e
palavras melífluas, pois que, por mais que conheçamos uma pessoa, jamais suspeitamos de
que subterfúgios e falsidades é capaz. Sabemos somente que deles se serve, às vezes. No
momento em que, de modo tão ofensivo, se afastava bruscamente de mim, dizendo apenas
a meia-voz entre os dentes: — "Vá-se embora, vá imediatamente, é horrível para mim vê-lo
ainda aqui", nesse momento a súbita revelação da verdade me fez quase gritar: — "Então
foi ele!" Ana não disse nada. Aproximou-se da janela e novamente fez ouvir baixinho seu
riso, simultâneamente altivo e desesperado. — "Está bem", — disse eu e senti-me
empalidecer até o fundo da garganta — "não há necessidade de refletir; o que devo fazer é
bastante claro. Agora, posso agir, você nada mais terá a recear dele." Ditas essas palavras,
saí. De um café da vizinhança, telefonei para a casa de Waremme para saber se estava.
Responderam-me que havia partido para Bingen e só voltaria no dia seguinte. Como
descrever minha raiva e minha impaciência!? Na mesma noite, Ana me enviou um recado:
"Não faça nada, tudo é inútil, é você quem vai sofrer as conseqüências." — "Não, não,"" —
pensei — "desta vez não me renderei, desta vez não deixarei minha razão se atrapalhar
com seus discursos, desta vez, de uma maneira ou de outra, chegaremos a uma solução."
Não sei mais o que significava para mim esse "de uma maneira ou de outra". Mais uma vez
ainda, não contava com Waremme. Ouça agora como as coisas se passaram e veja como o
resultado foi vergonhoso e lamentável para mim, quando Waremme entrou em cena. Para
começar, o regresso de Waremme foi retardado de dois dias. Nessa época, eu não pertencia
ao número daqueles que a expectativa torna ainda mais fortes. Entrementes, Paulina
Caspot nos escreveu dizendo que Hildegarda estava com escarlatina. Devorado de
inquietação, supliquei a Ana para ir a Hertford. Respondeu-me que não podia, que não
tinha forças para isso. Além disso, estava em entendimentos com um pianista de Francfort
que devia submetê-la a uma espécie de exame. Eli se empenhava com animosidade e
obstinação para que arranjasse uma ocupação regular. Ora queria que estudasse pintura,
ora que desse lições de piano, ora que estudasse línguas estrangeiras, ora que se
estabelecesse como modista. Era um inferno ouvir aquelas contínuas disputas. Foi numa
terça-feira que conversei com Ana. Waremme regressou numa sexta-feira. Passando em
frente ao clube, cerca de onze horas, avistei-o na porta conversando com vários senhores.
Correu para mim de braços abertos, como se não me visse havia muitos anos e lhe fizesse
tanta falta quanto um irmão. — "Eu preciso falar com você, Waremme," — disse —lhe, tão
emocionado que sentia vertigens. Lançou-me um olhar penetrante, curvou o corpo para
trás e respondeu: — "Compreendo, você abusou da minha confiança, você não conteve sua
língua. Está bem, venha à minha casa." Chamou um fiacre e dirigimo-nos para sua
residência. "Quais são suas ordens?" — perguntou-me, irônico e frio, quando nos
encontramos no quarto. — "Eu devia matá-lo como a um cão, Waremme," — disse — "mas
você não vale nem a bala que eu gastaria. Gostaria de evitar qualquer escândalo, e confio
em sua habilidade para encontrar outra solução, uma reparação para a honra de Ana."
Essas frases pomposas demonstram que minha resolução já estava vencida. Waremme
respondeu com um levantar de ombros e disse-me com dignidade: — "Não compreendo
uma única palavra, fale como um homem sensato." — "Até onde quer você levar esta
comédia?" — gritei-lhe fora de mim — "Quererá você ainda me fazer acreditar que Ângelo
e Waremme são dois personagens distintos como Ariman e Ormuz? Seja franco e
regulemos este assunto como convém entre homens, a menos que você prefira o chicote!"
Waremme empalideceu, levou a mão à nuca e olhou-me com espanto cheio de
comiseração que me exasperou: — "Entre homens? Não." — disse ele — "Proceda em
primeiro lugar como homem e não como criança." E como eu quisesse me atirar sobre ele:
— "Devagar, devagar", — disse, afastando-me com as mãos — "estas maneiras são de
carroceiro, mas se você se quiser guiar pelo código da honra esta discussão é
desnecessária. Ouça-me calmamente e em seguida você poderá enviar-me suas
testemunhas, se quiser; estarei às suas ordens." Foi então que se verificou esse fato
inaudito, inconcebível: Waremme realizou uma façanha oratória tal como nunca tinha
ouvido e que o seu requisitório, comparado a ele, nada mais era do que balbuciação
infantil. Ousava acusá-lo? E no que apoiava minha acusação? Numa denúncia de Ana?
Não? Numa simples insinuação? Numa insinuação verbal? Não? Numa confissão tácita?
somente nisso? E eu achava isso suficiente para interpretá-lo como a um lacaio, a ele, a ele,
Waremme? Longe dele a ideia de querer diminuir Ana, cuja vontade de ser sincera era tão
indiscutível quanto sua pureza. Mas, estaria cego a ponto de não compreender seu estado?
Pois bem! então, bastava me informar. Qualquer psiquiatra amador poderia explicar-me os
sintomas que ela apresentava: — "Ou será que você nunca ouviu falar, senhor professor
Maurizius" — perguntou-me, atirando a cabeça para trás — "das perturbações
psicomotoras, fenômenos patológicos que podem até determinar a catalepsia catatônica?
Você não sabe que uma forte comoção do indivíduo sujeito a essas perturbações pode
quebrar de uma vez a resistência oposta ao mal durante meses e determinar uma crise
fatal aos que o cercam? Você nunca ouviu falar da alteração da memória e das
perturbações da imaginação que fazem com que possamos, iludidos pela total analogia das
situações, atribuir, com toda boa-fé, uma ação a uma pessoa completamente alheia a ela?
Procure informar-se, siga um curso de psiquiatria." Êsses sintomas em Ana não eram,
infelizmente, nenhuma novidade para ele, prosseguiu Waremme com dolorosa emoção.
Desde muitos anos vinha se empenhando em combatê-los e, graças a um tratamento
mental usado com precaução, conseguira atenuá-los, às vezes mesmo fazê-los desaparecer
totalmente. Não havia contado com a intervenção brutal de um terceiro. Contudo, não me
recomendara insistentemente, religiosamente, para que tivesse a maior cautela? Oh! por
que não soubera ficar calado? Por que, naquela maldita noite, não se embriagara até à
inconsciência? Mas também, podia imaginar que eu, seu amigo, um espírito culto, um
homem sensível, fosse esmagar aquela flor delicada com meus dedos grosseiros? — "Essa
criatura sublime," — exclamou, soluçando — "tão nobre, tão frágil, de beleza física igual à
moral, e cuja sensibilidade ficou para sempre ferida e dolorida, um Maurizius não era
bastante poeta, bastante artista, para compreender o que suas palavras escondiam, para
perceber o que dissimula sob as aparências?" — "Pelo amor de Deus," — gritei, — "perdoe-
me, Waremme, esqueça, aconselhe-me". Não me lembro mais com nitidez o que se seguiu,
se se reconciliou comigo naquela noite mesmo ou somente no dia seguinte. De qualquer
modo, havia feito tudo o que lhe era possível para me persuadir de sua inocência, ou antes,
para me impor essa convicção pela violência do seu temperamento e pela veemência de
seu verbo prodigioso; pois, violentar as almas era a tendência suprema do seu ser. Seis
semanas mais tarde, por ocasião da nossa segunda grande explicação, na qual não julgou
mais necessário me apresentar a imagem terrível de uma moléstia mental inteiramente
inventada ou, o que é pior ainda, inventada pela metade, já eu não era mais do que uma
cera mole entre seus dedos. Waremme havia, tal um vampiro, sugado toda minha vontade,
toda a minha fôrça de decisão, e aceitei como uma fatalidade o futuro que me preparara.
Mas, ainda não cheguei nesse ponto. Tudo aquilo se tinha passado numa sexta-feira, 10 de
fevereiro, penso eu. Todas essas datas estão enterradas na minha memória como marcos.
No domingo, Ana veio jantar conosco. Depois da refeição, Eli teve com ela uma discussão
cujo motivo esqueci: lembro-me, apenas, que Eli não tinha razão e que Ana se defendeu
com uma calma incomum, usando argumentos convincentes. Tinha a placidez de um lago
de montanha no momento de sua congelação. Sua voz, todo o seu ser, essa transparência
misteriosa, como direi, — somos sempre obrigados a empregar as mesmas expressões, —
essa transparência que, entretanto, nada deixava ver, tudo isso me torturava. Fui ao jardim
e pus-me a caminhar. Avistando-a na varanda, fiz-lhe sinal; hesitou um instante, sorriu e
veio ao meu encontro. Ao descer a escada, escorregou. Corri e cheguei a tempo de ampará-
la em meus braços. Não evoco este fato senão porque foi uma das três vezes em que a tive
nos meus braços; se não fosse por isso, não falaria dele. Passeamos durante alguns
momentos. Eu falava, ao acaso, de mil e uma coisas. Ela, como de costume, calava-se, mas
eu sentia ao mesmo tempo que aguardava de mim uma palavra decisiva. Essa impressão
finalmente se tornou tão nítida como se ela me tivesse interrogado diretamente. Disse-lhe
então, com a necessidade de parecer valente e sincero que tinha em mim — pois, embora
mentir não fosse estranho aos meus hábitos, tinha necessidade imperiosa de não a iludir. —
"Falei com Waremme. A suspeita que você fez nascer em mim é destituída de fundamento,
segui uma pista falsa. Darei o resto da minha vida para saber de você quem foi, pois não
pode ter sido ele. É impossível, não é verdade? Diga, Ana!" Ela se tornou branca como um
lençol; a serenidade encantadora que impregnava seus traços um minuto antes cedeu
lugar a uma crispação de ódio. Estacou, murmurando baixinho: — "Oh! vocês todos me
causam nojo, você, ele, sua mulher, todos." Estremeci até o fundo da alma. Na minha
estupidez, não compreendia sob que ângulo me tinha mostrado e, veja o senhor, foi a partir
desse dia que começou o horrível drama ao lado do qual tudo o que tinha precedido nada
mais era do que brincadeira de criança. E que jamais se poderá esquecer quando se o viveu
de princípio a fim." 
 VI 

 Maurizius se levantou, aproximou-se do fogareiro e pousou as mãos sobre ele,


como se sentisse frio e o fogareiro estivesse aceso. O barão Andergast tirou a cigarreira,
abriu-a, e verificando que estava vazia, chamou o guarda e ordenou-lhe que fosse comprar
cigarros. Um quarto de hora se escoou antes de seu regresso. Nesse intervalo, o barão ficou
na janela olhando para o pátio onde a sexta turma de prisioneiros terminava seu triste
passeio em círculo. — "Eu pedirei o automóvel para as duas horas; — pensou o barão
Andergast — é preciso pedir a Pauli que telefone para meu escritório prevenindo onde me
encontro. Se Sofia tiver chegado, marcarei um encontro à noite, cedo, Talvez tenha
recebido notícias de Etzel: é pouco provável, mas, enfim, não é impossível. Com isso nossa
palestra se tornaria menos espinhosa e, talvez mesmo, inútil." Mas, essas preocupações
domésticas e profissionais com as quais queria, mais ou menos conscientemente, ocultar
um mundo de pensamentos inteiramente diferentes, pareciam-se com o embaciado que
seu hálito fazia na vidraça. Quando o guarda chegou com os cigarros e se afastou, batendo
os calcanhares, o barão Andergast ofereceu um ao prisioneiro, mas Maurizius, só então
tirando as mãos de cima do fogareiro, inclinou-se com rigidez, dizendo: — "Mais tarde, se o
senhor permitir." O barão, também ele, não sentia vontade de fumar. — "O período ao qual
suas últimas palavras se referiam, estende-se pois de meados de fevereiro ao... ao mês de
outubro," — disse, para levar o detento a reiniciar sua narrativa, reatando-a ele próprio com
uma voz seca que, ele mesmo, achou desagradável. Esforçando-se para tomar uma atitude
natural, apesar de essa tática não ser mais necessária, passava a mão pela sua pera
embranquecida, subindo do pescoço ao queixo, enquanto o olhar vagava pela sala,
detendo-se furtivamente em cada objeto, mas jamais sobre o homem que a habitava.
Maurizius levantou a tampa interna do fogareiro, mergulhou os olhos no buraco negro e
tampou-o novamente: — "Sim," — recomeçou — "foi uma operação capaz de triturar
corações; cada um era ao mesmo tempo torturado e instrumento de tortura. Dois ou três
agiam sempre de comum acordo para esmagar o terceiro ou o quarto. Um mecanismo
admirável, palavra de honra! Ana entre mim e Waremme, eu entre Ana e Waremme, Eli
entre mim e Ana, Ana entre mim e Eli, e Eli entre os três outros. Isso durou dias e mais dias,
semanas e mais semanas, até o pavoroso desenlace... Se o senhor quisesse dar-me agora
um cigarro, ficar-lhe-ia bastante grato". Fumou em silêncio durante alguns momentos. De
vez em quando um clarão incerto brilhava em seu olhar. Parecia refletir, perguntar se
existia uma maneira de fazer compreender o que se preparava para revelar. Sem dúvida,
tudo se apresentava ainda ao seu espírito como uma baralhada inextricável. — "De início",
— prosseguiu — "não compreendi mais nada na conduta de Ana. Durante boa parte do mês
de março, apareceu em nossa casa umas duas ou três vezes apenas, escolhendo de
preferência as horas em que eu não estava. Soube, por Eli, que se mostrava alegre, que
mandara fazer muitos vestidos, comparecia a bailes, chás, em companhia, ao que dizia, de
amigos, mas, na realidade, encontrando-se por toda parte com Waremme. Quanto mais me
evitava, a mim e ao nosso lar, mais Waremme me procurava, como se desse o maior valor à
minha companhia. Em fins de março, publiquei meu estudo sobre a influência da religião
nas artes plásticas, dos Nazarenos a Uhde. Waremme publicou uma crítica na Gazeta de
Francfort, comparando-me a Justi e mesmo, o que era grande exagero, a Rohde e a
Burckhardt. Isso, naturalmente, me honrou e me envaideceu, ainda que tivesse plena
consciência, como aliás o confessava, da parte que lhe cabia nas ideias expostas. Um belo
dia, começou-se a falar em termos velados de um plágio que eu teria feito. E, quando
cheguei à fonte desse boato, soube que o próprio Waremme o difundia. Forcei-o a se
explicar. Zombou da mim e disse: — "Menino, não se preocupe com estas tolices. Plágio?
isso não existe, creia, entre espíritos superiores." Na mesma noite, no momento em que
deixávamos a sala de jogo, no clube, levou-me para um canto e disse-me com ar jocoso: —
"Sabe você quem fez correr o boato do plágio? Você não adivinhará. Sua cunhada Ana. Ela
encontrou nas minhas primeiras obras diversas frases que correspondem exatamente ao
seu julgamento, aliás magistral, sobre Feuerbach; naquela época já havia constatado o
ecletismo desse pintor de segunda categoria". Tudo isso me pareceu muito estranho e, no
dia seguinte, perguntei a Ana se era verdade. Ela ignorava absolutamente tudo. Não tinha
nenhum interesse pelo assunto e contou-me, apenas, com seu ar glacial, que Waremme
ficara noivo oito dias antes de Lili Quaestor e que a moça se envenenara na noite anterior.
Havia três dias, ouvira falar desse noivado, se bem que ainda não fosse oficial, mas como
Waremme nada me dissera, não ousei acreditar. — "Quem lhe vir, Ana, dirá que você é
responsável por essa morte!" — exclamei, espavorido. Ela mergulhou seu olhar em mim. —
"E é verdade", — respondeu — "você acertou." — "Ana, pense no que você diz!" Confessou-
me então que havia dirigido à jovem uma carta na qual revelava seus direitos, mais
antigos, incontestáveis. "Você sonhou esta história" — disse eu a Ana e recusei-me
energicamente a acreditá-la capaz de semelhante ação, mas ela me confessou, ainda, que
fora Waremme quem a obrigara a escrever a carta. Apressara-se demais em firmar o
noivado, achava a moça aborrecida, as vantagens calculadas tinham, ao ser examinadas de
mais perto, se revelado ilusórias. Não se soube nunca se ele a havia seduzido ou não. Em
resumo, Waremme quis tirar o corpo fora e Ana lhe pareceu a pessoa indicada para isso.
Talvez fosse um meio de agir também sobre ela. Conhecia os peões de que se utilizava no
seu tabuleiro de xadrez, mas Lili Quaestor era uma criatura que não consentia que
zombassem dela. Cálculo, constrangimento, eram palavras vazias de sentido para uma
pessoa como ele. Tudo o que aconteceu em seguida até o assassinato, era, sem dúvida,
cálculo. Sim e não, porque um vento carregado de tempestades também foi um dos
elementos de destruição, uma dessas forças primitivas que escapam a qualquer
especulação humana e que frustram os cálculos do próprio diabo, por mais interessado que
esteja na solução final. Então, comecei a sentir o vento carregado de tempestades.
Primeiro, impeliu Ana para mim, mais perto do que nunca. Cada um de seus olhares, cada
sílaba em seus lábios, era um "livre-me do mal!" Ana atravessava instantes de tal angústia
que gostaria de se meter no meu bolso para aí ficar abrigada, segundo me confessou uma
vez. Mas, não suportava minha presença senão quando eu permanecia calmo e tranqüilo; o
menor gesto de insistência de minha parte lançava-a num terror louco e, quando eu falava
em fugir, ela tinha uma maneira estranha de me apresentar sua mão direita aberta, de
dedos para o ar, como se a imagem de Eli estivesse ali gravada. O adultério era para ela o
pecado dos pecados. É certo que, do fim de março até 18 de maio, pude ler profundamente
nela. Até 18 de maio somente, porque, nesse dia tudo mudou. Esqueci de dizer, —
provavelmente por ter uma razão plausível para não arrancar do esquecimento esse fato
que marca o extremo da minha fraqueza e da minha covarde submissão — esqueci de dizer
que Waremme me havia dado a entender nitidamente que a história do misterioso Ângelo,
de Colônia, era uma invenção da qual se vira na necessidade de lançar mão para não
comprometer nossa amizade. Ele me fez essa confissão durante uma excursão a Biebrich,
quando, perdidos na floresta durante a noite, sentamo-nos sobre um tronco de árvore para
aguardar a saída da lua. Falei da minha covardia e da minha fraqueza diante dele, mas,
nessa noite, foi tão sincero e verdadeiro quanto lhe permitia sua natureza demoníaca de
fundo falso. Efetivamente, era extremamente impressionável; o lugar, a paisagem, a
floresta tenebrosa, podiam agir profundamente sobre ele. Vi-o uma vez, por ocasião de
violenta tempestade, em um estado que me causou lástima. Aliás, ele havia comunicado a
Ana esse pavor de tempestades, essa emoção que me explicou, então, longamente.
Quando as forças da natureza se desencadeavam, parecia um pássaro esvoaçando,
espantado pela tormenta. Assim, pois, durante o tempo que permanecemos sentados sobre
o tronco de árvore, cada um impossibilitado de ver a face do outro, Waremme me declarou
à queima-roupa que não tinha tido outra alternativa e não pudera senão me enganar,
quando inventara a variante da história do pretenso Ângelo. Pois, não poderia suportar
minha hostilidade e meu ódio. Mas, agora que tantos acontecimentos me tinham feito
penetrar mais profundamente no seu íntimo, não precisava temer tal abandono da minha
parte. Devia saber tão bem quanto ele que estávamos acorrentados um ao outro, não
somente pela singular criatura que era o que ambos tínhamos de mais precioso no mundo,
mas também pelo mais poderoso interêsse intelectual capaz de, num momento decisivo,
levar dois homens a fazer causa comum. Por mais que eu me dissesse: — "Devagar,
devagar, nada de grandiloqüências", ouvia-o ofegante. Quem podia resistir ao
encantamento de sua palavra? Na verdade, estava cansado, além de qualquer expressão,
de ser assim empurrado, jogado da direita para a esquerda, de alto para baixo. Nada mais
me surpreendia. E, assim, Waremme foi levado a me falar do seu amor por Ana. Isso me
arrancou um pouco da minha apatia. Disse coisas que me fizeram estremecer. Não poderia
repetir suas palavras, esqueci-as. O que sei é que caíam em meu coração como gotas de
resina derretida; não sei mais nem de que imagens, nem de que comparações se serviu.
Sei somente que, ouvindo-o, me perguntei várias vezes com o coração oprimido: — "Ao
lado disso, que importância tem você?" Confessou que, no vestíbulo do teatro, possuíra-a à
força. — "Mas," — acrescentou — "se não o tivesse feito, teria me enforcado uma hora mais
tarde." Acreditei sob palavra. — "Ainda que Ana se tenha defendido como um anjo
enfurecido," — continuou — "no fundo de sua alma, era minha, como é minha ainda hoje: e
ela o sabia então e o sabe ainda hoje." Ele não era um bandido, um debochado como
Karamazof; era uma blasfêmia chamar de crime a um ato que afirmava apenas a estreita
dependência de duas existências que, sendo negada, as destruiria. Quando finalmente a
lua se mostrou sobre a copa das árvores, fizemos em silêncio todo o caminho até a estação.
Uma única vez, pouco antes de chegarmos, ele parou, pôs a mão sobre meu ombro e disse:
— "Você me causa pena, Maurizius; você está marcado pelo destino. Se não renunciar a ela,
isso será a sua desgraça." Ainda sinto o coração me subir à garganta, enquanto lhe
respondia: — "Palavras, Waremme, palavras; sei que me encontro em uma encosta
escorregadia, mas se Deus me concedesse a graça de inutilizar seus planos, sentir-me-ia
mais tranqüilo." Waremme sacudiu os ombros. — "Deus não concede a ninguém a graça de
modificar o destino que lhe traçou, eu sou apenas o instrumento." O senhor concordará
comigo que essa conversa nada tinha de banal; era de natureza a descontrolar as pessoas
qual um cataclismo. Essa foi, aliás, a última cujos termos exatos permaneceram gravados
em minha memória. As outras se dissolveram na bruma. E, sem dúvida, porque o eixo da
nossa existência se deslocara e as palavras de cada um dos interlocutores não tiveram mais
grande importância." 
 VII 

Maurizius se interrompeu e, com o corpo estranhamente recurvado, voltou


seguindo a parede para o canto da cela; quando retomou a palavra, parecia que se dirigia a
si próprio e esquecera a presença do procurador. Às vezes, as frases saíam surdamente e
com esforço; outras, permaneciam incompletas. Às vezes se interrompia e gesticulava sem
falar, colocando a mão sobre a testa ou sacudindo longamente a cabeça. Observando-o,
ficava-se transtornado de espanto e compaixão ao mesmo tempo. Parecia ter dificuldade
em não confundir os acontecimentos. Principalmente aqueles que se situavam na época
em que Eli teve sobre eles uma influência decisiva e funesta, faltava a nitidez que tinham
geralmente suas lembranças. Ainda fez várias alusões àquele dia 18 de maio do qual já
havia falado e que parecia marcar uma data capital em suas relações com Ana. (O barão
Andergast se recorda que a dedicatória bastante significativa da fotografia que Eli
encontrara na secretária da sua irmã, trazia essa data). Evita com cuidado cheio de ciúme
tudo quanto possa lançar luz desfavorável sobre Ana, quando fala dos encontros e
conversas que tiveram. O barão não pode deixar de ficar surpreendido com essa discrição;
dá-lhe a impressão das precauções que se costuma tomar para proteger uma impressão
geológica conservada como relíquia. Tem a impressão que nesse dia 18 de maio Ana deu a
Maurizius, pela primeira e única vez, uma prova incontestável de amor do qual comumente
não lhe podia arrancar senão testemunhos muito raros e vagos, Talvez, uma carícia fugaz,
um beijo que mendigou num momento de inconsciência. Na exaltação mórbida dos seus
sentimentos, Maurizius dedica a essa esmola mais importância do que tem na realidade e
sobre ela tira conclusões que lisonjeiam um momento sua ilusão e o enlevam até que se
desfaça. As alusões confusas permitem todavia julgar que, nessa circunstância, Ana saiu da
sua reserva mais do que anteriormente, em particular no que dizia respeito às relações com
Waremme. A afirmação de Ana de que, depois da infame agressão de Colônia, não houve
mais entre eles qualquer aproximação íntima, a menor convivência secreta que pudesse
levá-lo a crer que ela lhe pertencesse, explicou a Maurizius muita coisa da conduta de
Waremme. Esse homem vaidoso, ciumento, sensual, obstinado e diabólico ao mais alto
grau, efetivamente, não podia deixar de perder o controle ante tal reserva. Apesar disso,
Ana não nega que lhe seja impossível separar-se dele. Reconhece, desesperada, que, de
pés e mãos atados, sem nenhuma vontade, volta-se sempre para ele. Mostra a Leonardo as
cartas que, no decurso de dezoito meses, Waremme lhe escreveu. Mais de quatrocentas, de
doze, vinte e vinte e cinco páginas cada uma, repletas de protestos de amor, de súplicas,
de sonhos, de versos cuja simples lembrança é suficiente para gelá-la e empalidecê-la. Eis
aí o que foi o famoso dia 18 de maio. Alguns dias mais tarde, Ana, tomada da maior
perplexidade, revelou-lhe que Waremme lhe tinha oferecido casamento.  Por mais
fantástico que pareça, aquele homem, divorciado, pai de dois filhos, e errante ele próprio
pelo mundo, aquele homem sem meios seguros de existência, aquele contentor da
legitmidade burguesa, aquele jogador, aventureiro, utopista político — porque, cada vez
mais, ele se revelava tal — queria acorrentar à sua vida agitada, precária, devastada, sem
nenhma base firme, aquela criatura que já havia semidestruído para arruiná-la
completamente. Todo o ser de Maurizius se revolta, mas não tem o direito de dizer nada.
Vem a saber que uma velha senhora católica e piedosa, a baronesa de Loeven, concederia
grande dote a Ana, com a condição de fazer antes um retiro de seis meses num convento
de Ursulinas. As coisas se tornavam cada vez mais incompreensíveis, cada vez mais
incoerentes. Não, ele, Maurizius, não tinha o direito de se mexer. Os mexericos já estavam
correndo e destilando seu veneno Não tinha o direito de levantar nem o dedo mínimo para
salvá-la. Sabia, ao menos, se queria ser salva por ele? Nem sabia se o amava, se apenas o
tolerava ou o odiava, assim como também não sabia se ela amava Waremme, temia-o,
detestava-o ou odiava-o. Não se sabia o que ela pensava. Ninguém o conhecia. Seria
necessário abrir o peito, dissecar seu coração, para saber. Essa espécie de mulheres, pensa
ele hoje, após longos anos em que a frieza da crítica inexorável transformou o fluxo vibrante
da vida em gelo transparente, essas mulheres não possuem um princípio interior. Seus
horizontes se limitam tragicamente — tragicamente, dado seu egoísmo e isolamento — às
suas próprias pessoas, aos seus próprios destinos. (Maurizius vai e vem, gesticulando). —
"São um vaso que recebe de nós seu conteúdo e talvez também sua alma, a quem damos,
em todo caso, destino e impulso. Se sucumbem, vítimas do nosso desejo, é sem dúvida
únicamente porque, como Narciso, se deixam ficar eternamente perdidas na contemplação
da própria pessoa. Que é na realidade o narcisismo, senão o amor de uma coisa incorpórea?
E é porque queremos abraçar a imagem, na falta do corpo que não existe, que elas nos
punem e nos tornam responsáveis até a consumação dos séculos. Eis como se é vítima de
si próprio e iludido por uma vã miragem." Estas palavras foram ditas com a entonação de
uma sentença terrível e irrevogável. — "Mais ou menos a mesma coisa se passava com Eli"
— prosseguiu Maurizius, mantendo os olhos fechados como se falasse em sonho. —
"Descobri repentinamente o que significa duas pessoas serem irmãs e que a natureza
revela, nesses laços, profundos segredos escondidos em seu seio. É justamente porque
eram tão diferentes, como se tivessem nascido nos antípodas uma da outra, que se
encontravam nelas tantos traços de semelhança, traços de uma natureza idêntica.
Idêntica?... à maneira do carvão e do diamante, pelo menos no meu entender. Pode-se dizer
que no caso de Eli, também, era possível falar de egoísmo desprovido da preocupação do
seu "eu", ou, como exprimir o fenômeno? Longe de mim a intenção de me desculpar; estou
irremediàvelmente perdido, coloco minha pessoa fora de toda cogitação. Mas,
repentinamente, não foi mais um ser humano que encontrei em minha frente. Uma loba
sanguinária e feroz surgiu nela, quando se levantou contra a irmã. E, quando se voltou
contra mim, foi então uma credora implacável reclamando com juros usurários o reembôlso
do seu empréstimo. Todos os andaimes se deslocaram. É curioso, se se aprofunda, o sentido
dessa expressão: a conduta, a conduta exterior e moral de alguém... os andaimes... nada
mais havia para sustentá-los, não podiam resistir. O frenesi em seu paroxismo. Uma mulher
de sensibilidade a mais apurada, de espírito o mais culto, uma mulher boa, distinta,
generosa. E depois... isso! Reprovaram-me... alegaram contra mim um certo fato: vivi
maritalmente com ela até as horas mais terríveis do conflito... ah! sim, um homem desce
tão baixo quanto uma mulher o deixa cair! Repito que é preciso não ver nisso uma tentativa
de justificação pessoal. Toda a minha desgraça está nisso: pode-se, para servir à volúpia,
vender indecentemente a própria alma, trocar de uma maneira abjeta o sonho e o ideal por
essa mesma volúpia. Todas as vezes que sobre isso refleti, pensei que novecentos e noventa
e nove homens em mil estão neste caso e que o mundo inteiro se avilta na devassidão.
Certamente, eu não era o milésimo, oh! não. Eli arriscou tudo no dia em que arrebatou à
minha vista o meu sonho. Não sabia que os sonhos roubados aos outros envenenam, em
seguida, a própria vida do ladrão. Mas, afinal, que estou dizendo? Em síntese, somente a
carne e o sangue estavam em jogo quando, na aflição dos nossos corações, nós nos
abraçávamos. Mas, o que dizer sobre o despertar! Que sede de vingança, que furor! Em
mim, a consciência de me sentir sempre o mesmo; nela, a de estar sendo enganada. Os
anos que tinha mais do que eu transformaram-se em fúrias. Abraçados estreitamente,
descemos juntos até o último degrau da nossa maldade e da nossa abjeção. Improvisando-
se espiã, interrogava habilmente as pessoas. Regateava o miserável dinheiro que me dava
e proclamava tanto sua desgraça que já se tinha tornado a fábula de todos. Durante noites
e noites, errava pela casa como uma alma penada e não compreendia, oh! não queria
compreender que eu, exatamente como ela, era um pobre desgraçado, um miserável a
quem Deus dizia: — "Vamos, eis o teu destino, engole-o!" veio enfim o dia em que pensei:
"Seria melhor, mulher, que você não existisse, que desaparecesse deste miserável lugar."
Afirmo-lhe, senhor procurador, que, riscá-la do número dos mortais, me pareceu então uma
boa ação, porque tal existência é um suplício para quem a vive, pensei, e um fardo, um
suplício para aqueles que têm de viver em sua companhia. Então, não haverá saída
possível, não se terá o direito de reconquistar a paz? É evidente que, tendo tido esse desejo
criminoso, não estou isento de culpa. Não. Não o creia... não estou isento de culpa e, muito
menos, inocente, o que não é absolutamente a mesma coisa. Chega um momento em que
o assassínio já está consumado em espírito. O que acontece em seguida é como a expulsão
do feto durante o trabalho de parto. Mas isso é fazer um julgamento sacrílego, eu sei, eu
sei. No auge da minha aflição, disse a Ana: — "Se as coisas chegarem ao útimo extremo,
matarei você e em seguida, me suicidarei; então, todos nós teremos paz." Isso foi naquele
dia de setembro em que estourou o escândalo de Waremme com os estudantes. Foi o tiro
de misericórdia. Ana quase fica aniquilada. Nessa época, eu já devia a Waremme grande
quantia. Minha mulher não me auxiliava; vivia em adoração do seu capital, do qual tirava
todos os juros possíveis; perdia a cabeça. Mas, seria ela ainda uma criatura viva, trazendo
em si a noção viva do que é um ser humano, ou seria somente um triste cadáver, animado
como a rã de Galvani por um simulacro de vida? Nada sei. Isso não me importa mais.
Repito-lhe, quanto a mim, tinha virado a página; só Ana me causava piedade. E ela não
queria morrer. Sempre quebrei a cabeça para adivinhar o que lhe inspirava o pavor louco da
morte; talvez um resto de devoção, a ideia do pecado mortal. Ouvi dizer uma vez que as
pessoas dotadas de grande beleza se libertam mais dificilmente do que as outras do temor
da morte, como se a beleza lhes impusesse um dever que ignoramos. Daí provinha,
certamente, o receio que Ana tinha do meu regresso. Depois que falara em matá-la e em
me suicidar, tremia em minha presença: foi assim provavelmente que assustou Eli e a fez
fugir de casa. Alucinada, teria gritado: — "Aí vem seu marido, ele quer me matar!" Transida
de pavor, teria fugido através da casa como um cabrito montês perseguido pelos
caçadores... Sim, deve ter sido assim." Maurizius pôs o polegar e o indicador da mão direita
sobre as têmporas. O barão Andergast se levantou lenta, pesadamente. — "Sim... —
murmurou ele — "sim, eu percebo." Depois, após silêncio durante o qual as respirações,
quase imperceptíveis, pareceram se interromper, acrescentou, lembrando-se
automàticamente dos fatos de que soubera pelo processo, e afetando tom seco e positivo:
— "E se, antes, ela tocou piano, foi porque, desvairada de pavor, não sabia mais o que
estava fazendo: é isso qne o senhor quer dizer?" — "É possível" — retorquia Maurizius com
ar decidido. — "E então?" — interrogou o barão, fazendo esforço sobrehumano para
conservar a calma e parecer não dar à pergunta senão um interesse superficial. (Chegou
mesmo a retirar o relógio do colete, mas, sem abrir a tampa, recolocou-o lentamente no
bolso). — "Então", — disse Maurizius como um eco, dirigindo um olhar severo e irônico
sobre seu interlocutor e levantando os ombros — "então.. o senhor nada mais tem a fazer
do que consultar os autos do processo: eles lhe informarão melhor do que eu." Mas após
sombrio silêncio durante o qual seus dentes, pequenos como os de uma menina, mordiam
de leve o lábio inferior, essas palavras lhe escaparam: — "Tudo conspirava contra ela... não
havia a menor saída por onde escapulir... Os carrascos a acossavam de perto... a medida
estava cheia... ninguém a compreendia, ninguém a lamentava... que necessidade teve de
mandar chamar Waremme?... Bastava-lhe encostar de leve o dedo no gatilho... E eu, meu
Deus, cheguei tarde... muito tarde..." Interrompeu-se, pálido de espanto, vacilou, apoiou-se
à parede. O barão Andergast, com a mesma lentidão pesada de sempre, marchou em
direção a ele e encontrou seu olhar. Durante vinte longos segundos, permaneceram assim,
olhos nos olhos. Maurizius levantou a mão num gesto de tímida defesa. O barão observou
que tinha as unhas roídas. Conseqüência inequívoca de sua reclusão e de suas longas
meditações solitárias. — "Quem deu o revólver a ela?" — murmurou com a voz rouca.
Maurizius estremeceu: — "Mas o senhor acredita então que eu vi alguma coisa?" — disse
ele com vivo sobressalto. — "Não vi nada, nada, absolutamente nada..." O barão Andergast
baixou a cabeça com ar resignado. "Está aí justamente o meu mal... nada, nada" — repetiu
Maurizius com gesto de desconsôlo. — "E o senhor, o senhor possuía um revólver?" —
prosseguiu o barão inexoràvelmente, com a boca seca. Pequeno riso se espalhou pelos
lábios de Maurizius. — "Os tempos estão mudados", — respondeu, enigmático — "não
tenho mais vinte e seis anos, tenho quarenta e cinco." Ao dizê-lo, teve o mesmo baixar de
pálpebras, no tribunal, dezenove anos antes. Novamente os olhares dos dois homens se
penetraram. — "Bem, eu tomo nota" — disse o barão Andergast, com a esquisita sensação
de que qualquer coisa estalava em sua coluna vertebral. Cheio de indiferença, Maurizius o
viu apanhar o chapéu, fazer à porta o sinal convencionado com o guarda e deixar a cela.
Um segundo guarda apareceu com um prato de metal. Trazia a refeição do detento 357:
sopa grossa de repolho na qual boiavam fibras de carne semelhantes a raízes negras num
charco amarelado.
CAPÍTULO 13
 
I

É RARO QUE UM encontro entre duas pessoas que têm importantíssimo assunto a
resolver decorra como o haviam imaginado ou preparado, principalmente quando resulta
numa espécie de ajuste de contas. É evidente que Sofia Andergast esperava de sua
entrevista com o antigo marido resultado muito preciso e, se a conversa entre eles foi um
pouco diferente do que, na sua imaginação exaltada, se havia figurado, foi devido
únicamente ao fato de que o homem em presença do qual se encontrou não era mais o
homem que conhecera. Sua impaciência por ocasião da chegada à casa da avó de Etzel
impelia-a de tal modo a agir que olhou a velha com um ar completamente desconcertado
quando ela lhe disse que o procurador-geral estava em viagem e que não sabia a data de
seu regresso. Somente no dia seguinte, por volta do meio-dia, é que souberam, através de
um telefonema seu, que voltaria ao anoitecer. Sofia tinha passado uma noite em claro; às
quatro horas da madrugada, levantara-se e descera ao jardim. Quando, às oito horas, a
generala mandou chamá-la para o café, procuraram-na por toda a casa e acabaram por
descobri-la adormecida num banco do caramanchão, os braços apoiados sobre o encosto
de pedra e o rosto metido entre os cotovelos. Tiveram muita dificuldade em convencê-la a
tomar uma xícara de chá. Apenas respondeu com um sorriso amável e insignificante às
censuras da generala que, na ocorrência, mostrou uma volubilidade algo nervosa. A velha
não encontrou nela, aliás, a confiança, o impulso afetuoso que tinha o direito de esperar; no
começo, foi obrigada a repetir constantemente: - "Ela não é somente uma mulher infeliz, é
a mãe do meu Etzel; não a convidei para vir aqui passar dias agradáveis, mas sim porque já
é tempo de se fazer qualquer coisa; o momento não é para diversões." Mas ao lado de sua
habitual afabilidade, havia também seu pequeno egoísmo, e desejava, ainda que muito
discretamente e apesar da sua participação nas preocupações dos outros, que lhe fizessem
um pouco a corte. Mas, Sofia não ultrapassou a amabilidade da qual nunca se afastava; isso
feria a suscetibilidade da generala que esforçava em notar tudo o que lhe desagradava na
recém-chegada. Certa reserva que a tornava avara das suas palavras, o ar decidido, a
confiança com a qual se apresentava e sobretudo, talvez, o cuidado meticuloso que
dedicava ao trajar; desde cedo, pela manhã, estava pronta para o dia todo. A generala fazia
o seguinte raciocínio: "Ela cuida muito da sua pessoa, isso não condiz com sua dor e suas
preocupações"; como se um sofrimento sincero não se pudesse afirmar senão por uma
aparência descuidada. Mas, era mais por ingênuidade do que por mesquinharia que
criticava essas coisas; esperara, sem dúvida, ver Sofia desempenhar o papel comovente de
mãe pródiga, de uma Niobe, devorada pela dor. E deparava com uma mulher cujo caráter
era difícil de se penetrar, com uma criatura especialmente resoluta, sóbria de palavras,
ágil, fria, cujos traços conservavam um ar surpreendente de mocidade. Parecia ter trinta e
dois anos no máximo, quando a generala calculava que devia ter seus trinta e oito anos
bem contados. Essas críticas eram apenas superficiais e ocultavam sentimento mais
profundo, o ciúme. A constatação de que Sofia se tinha conservado espantosamente jovem,
que possuía maneiras cativantes, dentes impecáveis, um porte ainda tão esbelto e, além
disso, que devia esperar que Etzel se lançasse ao seu encontro, exultante de alegria,
atormentava seu coração e fazia-lhe pressentir horas bem amargas. Na verdade, havia
decidido falar o menos possível sobre Etzel, pelo menos no princípio. Essa resolução
também tinha origem no movimento de ciúme de que acabamos de falar, não obstante
tentar persuadir-se de que desejava apenas poupar Sofia e não a atormentar inutilmente.
Todavia, quando, após o almoço, acompanhou a visitante à sala, a vontade de falar foi mais
forte do que ela: de um lado, parecia-lhe pouco indicado esconder de Sofia o que sabia; de
outro lado, sentia-se orgulhosa do que sabia e impaciente de exibi-lo, patenteando sua
habilidade e prudência. Efetivamente, tomara a iniciativa de procurar o professor Camilo
Raff, pouco tempo antes de ele partir para seu novo posto; conversara longamente com ele
sobre Etzel. Esse encontro lhe fornecera mais de uma informação preciosa que,
confrontada com a conduta do rapaz em relação a ela (principalmente com sua visita e
com seu pedido urgente de dinheiro), lançava já alguma luz sobre o caminho que poderia
ter tomado, ainda que esse caminho não parecesse, por isso, menos inquietante e
extraordinário. Por que não dera sinal de vida?! Ninguém iria traí-lo, teriam certamente
respeitado seu segredo, oh! sem dúvida, se a isso dava tanta importância! Mas, partir
assim... sem prevenir, deixando todos se consumindo de inquietude e aflição! A avó dizia
"todos" por polidez, mas não pensava senão em si própria. Sofia tinha escutado em
silêncio, mas com o mais vivo interesse. Continuou calada, quando a generala terminou.
Somente o brilho de seus grandes olhos escuros traíra sua emoção. A avó permaneceu um
momento atônita: era o mesmo brilho, a mesma fulguração de bronze existente "nele";
herdara dela. E, de repente, seu tolo ciúme desapareceu, cedendo lugar a uma profunda
simpatia por aquela mulher. Sofia, aliviada, pensou: "É o gênio dele." Jamais fora o que se
chama mãe apaixonada, quer dizer: jamais fizera ostentação do seu amor maternal e, na
época em que vivia com Etzel, sempre dera a maior importância ao fato de manter com ele
o mesmo tom leve e familiar de todos. Sempre pronta para rir e brincar, tinha
cuidadosamente evitado importuná-lo com a ternura egoísta que o teria introduzido cedo
demais no mundo perturbador dos sentimentos. Talvez o barão Andergast tivesse
procurado, à sua maneira (mas, que maneira fria, racional, sem ímpeto!), completar o que
sua pródiga e ardente natureza havia começado. Talvez sofresse justamente, sob este
ponto de vista, uma influência misteriosa, mas certamente jamais consentiria em
reconhecê-lo diante de qualquer pessoa e nem mesmo no seu íntimo. De resto, nada
conseguira. Quando o coração não fala, as experiências pedagógicas permanecem inúteis,
e as suas tinham fracassado lamentavelmente. Quando foi obrigada a se separar do filho,
ninguém ouvia dela uma queixa e, muito menos, explosão de desespero. Chegaram mesmo
a dizer abertamente e a sustentar que era incapaz de qualquer sentimento profundo. Ora,
possuía essa particularidade de poder viver com uma imagem que trazia em sua alma,
como um ser de carne e osso. Em todo caso, tivera durante todos aqueles anos e até aquele
dia o sentimento de se encontrar realmente unida ao filho e de fazer dele, de longe, seu
aliado. Nisso, forças estranhas estavam em jogo e nada tinham a ver com a resolução
tomada em vista de uma finalidade definida. Eis porque se sentia aliviada pensando: "É o
gênio dele!" Eis porque, em seus olhos, luzia o brilho dos olhos de Etzel.
II

Ao anoitecer, tomou uma condução e dirigiu-se para a cidade. Percorrendo lentamente as


ruas, sentia a alma dolorosamente hesitante entre a sensação de se encontrar em casa e a
impressão de se achar num meio hostil, entre recordações claras e harmoniosas e outras
sombrias e torturantes. Nos arrabaldes, as velhas casas pintadas de novo lhe pareciam ter
uma fisionomia mentirosa, mas chegando frente ao Roemer, a velha prefeitura, parou e
levantou os olhos para a fachada como se olha para um rosto venerável. Com os olhos
sempre fixos no solo, como se seguisse um rastro, chegou ao caminho de Kettenhof e à
casa do barão Andergast. Seus olhos percorreram a fila de janelas do segundo andar; todas
estavam apagadas. Essa falta de luz significava a ausência dos dois seres que seu
pensamento afastava um do outro como o horror da felicidade e que, no entanto, não podia
deixar de aproximar, porque não se pode separar a ideia de um filho da de um pai. Poderia
subir agora e apresentar-se diante do homem a quem tinha vindo pedir satisfação da sua
conduta? Que diria? Como acusá-lo? Agora que sua hora tinha chegado, agora, naquele
minuto que "atendia às suas preces" e no qual revia toda sua vida destruída por ele, agora,
que atitude tomaria ele quando lhe lançasse ao rosto: — "Onde está meu filho? Devolva-me
meu filho!" Mas, esse minuto pungente não existe ainda senão em sua imaginação; a
realidade o fará desaparecer. Em face dela se erguerá um outro ser, o ser mais banal que se
possa imaginar, o ser o mais inesperado, o mais perturbador, o mais adequado para
paralisar as pessoas, assim tenha surgido em cena. Mas, esse minuto que "atende às suas
preces" resume para ela toda a vida naqueles últimos dez anos como uma gota de água
resume em si o mar. E ela se revê vagando de hotel em hotel, de cidade em cidade. Não
tinha ninguém para auxiliá-la; nem lar, nem asilo. Muda e insensível, aceitara as condições
ditadas pelo homem que habitava lá em cima. Foram assinadas convenções; foi ele quem
decidiu sobre seu futuro; não possuía mais nenhum direito, além da liberdade, e, na
medida do que ele permitia, da fortuna, do que restava ainda da herança paterna. Estivera
doente, sempre doente, e jamais consultara ou chamara um médico. Durante a guerra,
vivera numa Suíça completamente desorganizada, rodeada de chamas, em pensões
modestas e no meio de desconhecidos. E tinha conseguido passar despercebida, sem
despertar uma curiosidade simpática, capaz de importuná-la. Dedicara-se ao estudo da
botânica e da mineralogia, estragara a vista em bordados; fizera longas caminhadas, indo
muitas vezes além das forças; tivera dificuldade para se habituar com a solidão, se bem
que não pudesse suportar a vida em sociedade. Interessava-se bastante por várias
manifestações da vida intelectual e conservava um amor inalterável pela existência. Não
obstante, seu coração permanecia vazio até um certo ponto. A existência que levava era
completamente isenta de alegria; podia rir e divertir-se, mas apenas com indiferentes;
desde que alguém, homem ou mulher, se tornava mais familiar, a atitude mudava e
cortava, insensivelmente, toda e qualquer ligação. Não podia mais acreditar sinceramente
em nada; sua posição frente ao mundo exterior estava abalada sob todos os pontos de
vista. Naqueles últimos anos, não mantivera relações amistosas senão com duas pessoas;
um pintor suíço que vivia enfurnado num chalé no Valais e um velho sábio, André Levy,
professor da Sorbonne, notável bacteriologista que encontrara em Genebra e cuja casa
freqüentara assiduamente, em Paris. Falei do seu amor inalterável pela vida. Entretanto,
sentia sempre um alívio, à noite, por ver o dia findo, e pela manhã, por saber a noite
passada. Mas, são justamente as pessoas desgraçadas que se sentem obrigadas a viver ao
Deus dará — obrigação essa de que se libertam mais dificilmente do que da obrigação de
viver por viver. 
Vinte e quatro horas após "o minuto que atendia às suas preces", penetrou na casa dos
Andergast. A generala tinha combinado, pelo telefone, o encontro com Wolf de Andergast.
Regressar aos lugares onde se sofreu uma dor jamais mitigada, é menos uma prova para a
memória do coração do que para a dos olhos. A experiência demonstra que a maior parte
das pessoas, mesmo quando seus sentimentos diminuem e arrefecem, conservam-nos em
um recanto especial da sua alma, de onde podem tirá-los quando o desejam; mas, são
apenas fantasmas que não lembram o ser vivo senão como a roupa vazia lembra o corpo
que a vestia, enquanto que os lugares e as coisas desaparecem completamente da
memória e, por ocasião de uma volta, causam-lhes surpresa que só ela lhes torna sensível o
elo entre a personalidade atual e a de outrora. Tudo se passa, então, como se houvessem,
durante um instante apenas, escondido com a mão uma imagem horrenda, para atenuar o
seu efeito terrificante. Mas, isso certamente não se verifica com Sofia; sua alma, já o
dissemos, tinha, durante os últimos dez anos, conservado intacto o ardor, e portanto o
mundo concreto, aquele que salta aos nossos olhos, no qual se encontrava repentinamente
de novo, ressuscitava o passado com força que a esmagava e sobretudo obscurecia toda a
noção do tempo, que reduzia a ideia de ter envelhecido, de ter-se tornado mais idosa, a
incompreensível engano por parte da natureza. As coisas não estavam, com efeito,
exatamente como sempre haviam estado? Entre dez anos e uma semana, a diferença é
puramente fictícia. Eis o degrau, o terceiro a partir do patamar, que já rangia dez anos
antes; eis, à esquerda, sobre a janela da escada, a mancha pálida, amarelada, sobre o
estuque escuro; vacilante, apoiou-se nessa maçaneta de cobre no dia em que soube que o
homem que amava havia dado um tiro na cabeça e em que não sabia mais se ainda teria
forças para ir até à casa em que o cadáver jazia; quantas vezes leu as letras cheias de
ornamentos pretensiosos na placa de porcelana do primeiro andar: "Dr. Malapert"; quantas
vezes, desesperada, apoiada no botão da campainha do segundo andar, esperou, com o
coração enojado, que lhe abrissem a porta de sua própria casa. Ei-la novamente ali;
novamente aperta o botão; introduzem-na; o espelho ainda está no mesmo lugar refletindo
sua imagem, como se não houvesse cessado de fazê-lo um só dia; o chapéu-coco está no
cabide, símbolo da banalidade cerimoniosa e desagradável; debaixo dele estão pendurados
os capotes impregnados do velho cheiro insuportável de tabaco; na parede, em frente, está
o retrato do velho imperador com seu aspecto benevolente e sua barba dividida ao meio;
eis a porta que, sem uma lágrima (jamais foi dada a lágrimas), transpôs, na última noite,
após o último adeus ao filho que caía de sono, e finalmente, a outra porta, disfarçada sob
uma tapeçaria, que jamais abrira sem dizer consigo mesmo: — "Se pelo menos eu
estivesse livre deste suplício, se pelo menos já tivesse partido..."
III 

 
Às sete horas, o barão Andergast disse a Rie: — "Uma senhora virá às sete e meia, não é
preciso anunciá-la." Rie fez que sim com a cabeça. Sabia de quem se tratava. Nanny, a
criada da generala, não deixara de lhe contar quem abrigavam sob o seu teto. E Rie se
sentia ameaçada por surdas maquinações. Na sua agitação, deu ordens atrapalhadas na
cozinha e deixou cair um pote de doce no ladrilho: "Tudo na vida é passageiro" — pensou,
olhando o pote com melancolia. — "Você se lembra — disse ela — "que a mesma coisa me
aconteceu no último outono? O menino pôs-se de joelhos no chão e quis lamber o doce." A
cozinheira sustentou lembrar-se que ela própria havia ficado surpreendida, porque o
menino nunca fora guloso. — "Se pelo menos ele o fosse — suspirou Rie — "nós o teríamos
ainda conosco; quando se é guloso, gosta-se de casa." Nesse momento, tocaram a
campainha. A criada abriu a porta de entrada. Rie saiu silenciosamente para o corredor e
viu uma mulher de estatura média, que não era precisamente esbelta, dirigindo-se com
passo firme para o escritório e teve o seguinte pensamento hostil "Ela tem ar de quem
conhece muito bem isto por aqui". — como se fosse uma prova de maldade. Nunca desejou
tanto escutar atrás de uma porta e apenas o sentimento natural das conveniências a
deteve. Ficou ainda por um momento imóvel no mesmo lugar, procurando escutar, e, como
tudo permanecesse em silêncio, voltou triste para seu quarto.
O barão Andergast havia regressado às cinco e meia. Pedira chá, mas não tocara sequer
na xícara e não cessara de passear pelo aposento agitadamente. Não conseguia banir do
ouvido a voz do detento Maurizius. Qualquer coisa que fizesse ou pensasse, essa voz o
perseguia como o arrulho ininterrupto de um pombo invisível. Por momentos, um trecho de
frase se destacava do arrulho monótono. Então, estremecia, suspendia a marcha, inclinava
a cabeça de lado, franzia a testa e mastigava algumas palavras. Acendera mais de uma
dúzia de cigarros, um em seguida ao outro, e os atirava no cinzeiro após duas ou três
baforadas. Acontecia-lhe apoiar a mão sobre a fronte, como vira Maurízius fazer, e o rosto
se imobilizava em expressão meditativa. Muitas perguntas o assaltavam, flocos
turbilhonantes em que não podia fixar o pensamento. De vez em quando, tirava o relógio,
certificava-se se os ponteiros estavam andando, como se fosse urgente chegar a uma
solução antes do minuto que iria por fim à sua solidão. Mas, enquanto os ponteiros
giravam, não conseguia acalmar o turbilhão febril. Aquele arrulho, sempre aquele arrulho.
Uma pergunta se destacou finalmente, tangível, do caos: Por que não falara antes? Por que,
durante aqueles dezenove anos, guardara silêncio, quando o que confessara agora trazia a
marca evidente da verdade? Uma vez que se decidia a falar agora, poderia também tê-lo
feito há três, cinco, doze, quinze anos. Que poderia tê-lo impedido? A vergonha, o desafio, o
desejo de poupar alguém? Nada disso resistiria a uma prova onde cada ano pesa como uma
eternidade, onde a própría ideia de sacrifício — nascida de paixão sem exemplo que,
certamente, representou um papel — desapareceria no meio da desagregação completa da
personalidade moral. (Ao pensar nisso: a desagregação completa da personalidade moral, o
barão Andergast sentiu passar sobre o coração um hálito ao mesmo tempo gelado e
ardente. Assim, o estado de espírito daquele homem-fantasma o havia contaminado.
Compreendia, agora, o sentido daquela obra suicida prosseguida durante dezenove anos;
talvez ele mesmo tivesse sido atingido por ela e de uma maneira mais durável do que
jamais pudesse supor). Que poderia tê-lo impedido de falar? A pergunta o perseguia sem
descanso e uma vaga intuição começava a nascer: "Talvez seja necessário procurar a razão
mais profundamente" — pensava ele — "talvez Maurizius, naquela época, tivesse
consciência de que a verdade não era verdade senão para ele; para ele, não para mim, não
para nós. Não amadureceu para mim, para nós, senão na hora em que se achou pronto a
revelá-la quase contra vontade. Mas, e se esta verdade não era senão o resultado do
tempo" — indagou súbitamente com um arrepio — "se, o espírito, influenciado,
desnorteado pelo presente, eu não estava em condições há três, cinco, doze, quinze anos
de aceitar esta verdade que hoje me parece tão simples, tão evidente? É porque, talvez, a
verdade tem necessidade de um período de gestação..." Esse pensamento tinha qualquer
coisa de tão desconcertante e lançava luz tão lívida sobre tudo quanto até então chamara
julgamento e sentença, que sentiu durante alguns segundos a impressão de que o núcleo
sólido de sua personalidade se havia dissolvido, dispersado. Na sua aflição, e para escapar a
essa decomposição do ser, voltou a pensar nos detalhes do processo que, durante toda a
viagem de regresso de Kressa, já o tinham preocupado como um puzzle. Até que ponto, por
exemplo, as declarações de Maurizius concordavam com as datas consignadas nos autos?
Essa preocupação já havia vindo antes ao seu pensamento; que dela se desviara. Mal
acabava de fixá-la novamente, ouviu a batida leve na porta e Sofia entrou. 
 O barão Andergast permaneceu de pé atrás da secretária, como protegido por uma
muralha. Em uma situação como essa um cumprimento, mesmo banal, teria sido absurdo.
Havia quase dez anos que não via aquela mulher e durante esses dez anos não tinha uma
única vez pensado em indagar de seus sentimentos para com ela. Uma vez resolvida uma
questão, não lhe reconhecia mais direito de interferir no aproveitamento metódico de seu
tempo. Sabia por fim de uma vez por todas aos fatos de sua vida privada, tão bem como
aos de sua profissão. Em ambos os casos, concedia um prazo para a liquidação dos saldos.
Decorrido esse prazo, o processo era arquivado. Sofia fechara a porta; cinco passos a
separavam dele, mas não a via ou, antes, não a queria ver, não tinha vontade de vê-la. Suas
pálpebras, um pouco inflamadas, estavam descidas, seu corpo oscilava ligeiramente. O
barão esperava. — "Estou suficientemente preparado; em que posso servi-la?" — dizia sua
fisionomia glacial e distante. Mas, ao redor do nariz, a palidez se espalhava. Sofia se
aproximou da poltrona colocada na penumbra diante da biblioteca e sentou-se. Observava-
o com olhos sombrios. Vibração amarga e ameaçadora agitava os cantos de seus lábios;
parecia querer obrigá-lo a falar em primeiro lugar. Conhecia sua obstinação. Como outrora,
não sentia senão desprezo por aquela atitude que traduzia, como não o ignorava, a rígida
observância de uma "linha de conduta". Logo reconheceu o erro e seu instinto sútil a
advertiu de que uma mudança se fizera naquele homem, como se, de sua impassibilidade
de bronze, de sua arrogância e perfeito domínio de si mesmo, nada mais restasse além da
expressão do rosto, do olhar, verdadeira casca intacta de um fruto já roído em seu interior.
Essa constatação não a predispôs à indulgência. Nada a podia induzir ao perdão. Mas,
também, não experimentou com isso nenhuma satisfação íntima. Essas coisas não a
interessavam. Para ela, ele não era uma pessoa em quem valesse a pena pensar. O lugar
que, antigamente, havia ocupado em sua vida (ocupado quase que unicamente para fazer
obra de destruição), não existia mais. Seu antigo advogado, com o qual às vezes trocava
cartas de negócio, prevenira-a da fuga de Etzel, e a energia acumulada nela durante muito
tempo impelira-a bruscamente a empreender aquela viagem. Foi de acordo com esse
advogado que, nos meses de março e abril, dirigiu ao barão Andergast duas cartas em que
exigia a anulação das medidas tomadas outrora, sustentando sua invalidez e ilegalidade
porque a renúncia, dada como livremente consentida de sua parte, fora-lhe arrancada à
força. As duas cartas não foram julgadas dignas de resposta. Ao levar isso ao conhecimento
do seu advogado, acrescentara: — "É falta imperdoável apelar para um tribunal surdo à
linguagem dos sentimentos humanos." A notícia de que o menino partira, e não fora ainda
encontrado, tinha feito com que passasse por cima de todos os obstáculos, indiferente às
conseqüências de um ato que, encarado de perto, prometia poucos resultados práticos.
Queria agir, certificar-se pelo menos de que o medo que a aterrorizava outrora não existia
mais. Agora, estava ali, muda, com a voz estrangulada na garganta, exatamente como no
dia em que, após lhe haver extorquido a confissão da sua falta, ele a tinha obrigado, depois
do suicídio de George Hofer, a assinar aquele documento insensato, explorando sem
escrúpulo seu erro, saciando sua sede de vingança sob a máscara da justiça. 
 Seguiu-se o diálogo que, arrastado pela seu próprio peso, afastou as banalidades
inevitáveis e se perdeu nas profundidades onde as almas, no seu antagonismo consagrado
pela lei, defrontavam-se, por assim dizer, à margem do mundo, e que é quase impossível
reproduzir com seus subentendidos, seus fingimentos, seus silêncios, suas reticências
ferinas. Freqüentemente, um dos interlocutores respondia ao outro apenas pelo silêncio,
por um silêncio mais eloqüente do que todos os argumentos. Trocavam-se ideias sem nexo,
um sacudir de ombros valia por toda uma estória, a atmosfera da sala estava carregada de
eletricidade que se comunicava diretamente aos nervos. O barão começou por manifestar
seu pesar de ignorar o fim daquela visita, não obstante pudesse adivinhar seu motivo. Era
uma frase convencional que pronunciou com o mesmo tom que empregava para com seus
constituintes. Depois de ter maduramente examinado se semelhante entrevista era
admissível ou não, optara pela afirmativa; portanto... teve então um movimento de ombros
parecendo não saber mais o que dizer. Sofia se levantou incontinente. "Sempre com seu ar
pomposo, arrogante e enfático" — pensou revoltada. Depois, sorriu e sentou-se novamente.
O motivo em questão, prosseguiu ele, mais cortês, acreditando ter, com sua entrada na
matéria, esclarecido suficientemente seu modo de pensar, o motivo em questão não podia
obrigá-lo nem a uma explicação, nem a uma discussão. Não admitia, agora, mais do que
anteriormente, reivindicações naquele sentido. — "Ah! na verdade?!" — disse, como um
piar de pássaro, uma voz na poltrona. Desagradavelmente surpreso, o barão Andergast
olhou para aquela direção. — "Perfeitamente" — confirmou em tom seco. Sofia atirou o
corpo para trás e cruzou os braços sobre o peito. — "Vã esperança" — disse ela
tranquilamente — "não farei exigências, você não terá portanto oportunidade de combatê-
las." O barão levantou as sobrancelhas com ar interrogativo. "Então, não vejo necessidade
dessa entrevista" — dizia sua expressão de enfado reprimido. O modo íntimo de falar, por
parte da mulher, produziu-lhe um choque, se bem que estivesse preparado à ideia de que
não o poderia evitar. Apanhou o sinete ao lado do tinteiro, sopesou-o na palma da mão,
observou-o com atenção. Seus pensamentos se agitavam como em dois círculos
concêntricos. Um, numa parte de seu cérebro excitado, continha tudo quanto se referia ao
detento Maurizius. Tinha a impressão que abandonara cedo demais a cela e assim deixara
escapar as revelações mais interessantes. "Preciso voltar lá" — pensava — "é necessário
esclarecer certas coisas." Reconstituía, em pensamento, a teatro do crime, refletia no
desaparecimento do revólver; calculava o tempo que seria necessário a Waremme para ir
do clube até o portão do jardim e encontrava, detalhe impressionante, uma diferença de
um minuto e meio a dois minutos; pensava na obscuridade completa daquela noite
brumosa de outubro e criticava o processo por ter concedido tanto crédito a testemunhas
ocasionais (sempre a mesma falha, admitia resignado) ; media mentalmente a distância do
gradil à porta de entrada onde estava Ana: trinta e cinco metros. E pensava que Waremme
deveria ter passado correndo perto de Maurizius, se era verdade que esse último não tinha
atirado. E que depois, provavelmente, teria voltado para enfrentar Maurizius, tendo na mão
a arma apanhada no chão. Tudo isso o levava à conclusão de que era preciso rever o
prisioneiro, revê-lo quanto antes, para induzi-lo a fornecer os últimos esclarecimentos. O
barão Andergast não se queria confessar que era a própria pessoa de Maurizius que o atraía
e o conservava perplexo como jamais ninguém o havia feito até então. E evitava, temeroso,
tirar de sua narrativa a única dedução lógica, isto é: que Waremme devia ter levantado
falso testemunho. Aceitar essa dedução e suas conseqüências ultrapassava suas forças. Por
isso, tinha necessidade de apelar para toda sua vontade a fim de impedir que o
pensamento se formulasse com precisão. Assim, sua alma torturada passava
alternadamente do ciclo de visões alucinantes, cujo centro era Maurizius,  para o outro, no
meio do qual estava Sofia, realidade bem visível, ao lado da qual não podia, por mais que
procurasse, deixar de imaginar a invisível presença do menino. Não obstante seu ar de
quem não a tinha ainda olhado verdadeiramente, seu olhar inquiridor havia desde o
começo tomado conhecimento de sua pessoa. A constatação de que os anos haviam
passado sem alterar sensivelmente sua beleza enchia-o de espanto rancoroso. Os cabelos
castanhos tinham conservado o reflexo dourado, o encantador oval das faces estava apenas
alterado, os supercílios desenhavam sempre aquele arco característico que dava ao rosto
expressão de constante curiosidade peculiar aos míopes e que tantas vezes o havia
impacientado; o pescoço quase não tinha rugas; sua atitude não revelava em nada os
golpes de um destino cruel, nem da doença, nem que tivessem dolorosamente seguido o
caminho da expiação. Não se notava nenhum traço de arrependimento, de humildade, de
sofrimento, nem de abandono ou de abatimento, nada daquilo que esperava encontrar e
que gostaria de encontrar nela. Sua pessoa, pelo contrário, irradiava liberdade de espírito,
equilíbrio, sangue-frio. Como era possível? Ali, alguma coisa não estava certa. De que servia
então o castigo? Aquela fisionomia plácida, aquele silêncio desdenhoso, aquele sorriso
cheio de suficiência! (Parecia-lhe assim, mas, realmente, era um sorriso doloroso: toda a
vida secreta daquela mulher estava representada por alguns traços expressivos em torno
de sua boca.) Mais atemorizadora ainda era sua semelhança com Etzel, já visível em sua
maneira de sentar, e também no olhar tenso, desconfiado, revelando uma alma sempre em
defensiva, na mistura de puerilidade e irritante maturidade de seus traços, de febre de
saber e de... pois bem! sim, de esperteza. Era extraordinário, quase sobrenatural. O barão
Andergast não havia contado com aquilo; por isso, talvez se visse na obrigação de
modificar sua tática, de agir com mais prudência e de tomar medidas para se precaver
contra uma possível aliança de dois caracteres evidente e perigosamente semelhantes. E
Sofia? 
 IV   

Para ela, as coisas eram muito simples. Prevenida de longe, tinha naturalmente pensado
num funesto desacordo entre pai e filho provocado, de um lado, pela vontade despótica do
barão, sua frieza, seu hábito de dirigir arbitrariamente as pessoas dele dependentes e de
obrigá-las a uma obediência passiva. De outro lado, pelo espírito de rebeldia de um ser
jovem, ávido de independência, impaciente de ser seu próprio senhor, que havia
aproveitado o primeiro pretexto para sacudir um jugo intolerável. Imaginara cenas
tempestuosas, uma rotura estrondosa. A fuga fora uma cabeçada, um ato de desespero
que, quando Etzel tivesse corrido mundo durante algum tempo, o levaria ou ao regresso ao
lar, acompanhado de um castigo, ou à sua desgraça. As confidências da generala lhe
haviam, porém, apresentado os acontecimentos sob outro aspecto, fortificando nela uma
confiança tranqüila nascida dos elos misteriosos que unem as almas e que as terríveis
imagens flutuantes sobre a superfície do seu pensamento haviam apenas velado. Restavam
dúvidas, no entanto, que a entrevista com aquele homem dissipava. Tinha em relação aos
sentimentos secretos das pessoas a sensibilidade de um sismógrafo. Sentiu em sua
agitação, em seu olhar onde uma fulguração brilhava repentinamente para desaparecer em
seguida, em sua vigilância inquieta, aliada a uma desatenção que quase revelava um
espírito preocupado com outras coisas, os sintomas de uma catástrofe. A fuga de Etzel era
algo de mais sério do que a escapada comum do meninote que se insurge contra a vontade
paterna. Mesmo que tivesse fugido por causa dela (podia-se admitir que a injustiça
cometida contra sua mãe não ficara ignorada dele e que talvez houvesse deixado o pai com
a secreta esperança de ir ao seu encontro), mesmo assim, não teria experimentado a
satisfação que agora saboreava. Aquele "algo de mais sério" era de natureza mais nobre. A
desforra era mais estrondosa. Quem jamais ousaria esperar, prever aquilo? Teve um sorriso,
não de triunfo, mas de espanto, como se não pudesse ainda acreditar em um milagre. —
"As exigências que eu poderia formular" — disse com ousadia — "não têm motivo
atualmente; apenas, você não sabe disso." — "Como assim?" — perguntou o barão
Andergast com vago esforço para parecer interessado e repondo o sinete em seu lugar. —
"Ou antes, você sabe perfeitamente, mas você quer fingir ignorá-lo" — continuou Sofia. —
"Como é que alguém como você pode não se sentir atingido no mais íntimo do seu ser e
ignorar que o próprio princípio da sua vida faliu?" — "Posso permitir-me observar que estas
palavras são absolutamente enigmáticas?" — "Oh! se você quer, não pretendo estar sendo
perfeitamente clara, mas não vejo nenhuma obscuridade no que digo." — "Eu sou todo
ouvidos." — "Você não pensa, evidentemente, que se trate apenas de um desacordo
passageiro entre seu filho e você. O menino voltará quando tiver feito o que se propôs
fazer, ou então, quando se convencer da sua impossibilidade. Voltará, sem dúvida alguma,
mas, jamais para sua casa; não voltará nunca para junto de você." O barão teve um
pequeno riso seco e constrangido. — "Pode-se prevenir e tomar certas medidas, penso eu"
— replicou. — "Prevenir pela coação e tomar medidas rigorosas, sim, mas não é assim que
se reconquista uma alma." — "Eu não dou nenhuma importância à alma." — "Eu sei, e por
isso você tentará exorcisar a alma. Esse método já lhe deu belos resultados!" — "Farei o que
o meu dever me ditar." — "Certamente! O dever é um senhor poderoso. E o que ordenará
ele? A prisão?" — "Recuso-me a continuar a discutir neste tom." — "Este tom, meu Deus"
— replicou Sofia com ar de piedade — "não posso falar com você como os autômatos do
seu gabinete, quando se trata de um assunto tão grave." — "Qual é este assunto?..." —
"Não vim aqui para reivindicar meus direitos, mas para impedir que uma determinada
coisa aconteça." — "Que coisa?" — "Se você não a tivesse adivinhado, suas perguntas não
seriam tão ineptas." — "Você parece temer não me encontrar tão impotente em face dos
acontecimentos quanto você me tentou fazer crer, logo no começo." — "Quem duvidaria da
sua perspicácia? É o seu forte. Impotente? Não, eu não creio que você o seja. Infelizmente,
você não o será nunca. É por isso que tenho pena de você. Freqüentemente, é na
impotência que se descobre a verdadeira força. Você usou a sua para uma obra estéril. Não
se obstine até o absurdo. Faça você o que fizer, o menino estará perdido para você." 
 Por um momento, pareceu que o barão Andergast fosse tirar a couraça que o tornava
invulnerável; os olhos violeta dardejaram brilho sinistro, a palidez à volta do nariz ganhou
as faces. Mas, conservou-se em silêncio. "Esta mulher se excede, esta mulher procede
insolentemente para comigo" — pensou encolerizado. Mas, ficou calado. Dirigiu-se ao
fogareiro de porcelana escura e nele se apoiou, na atitude de alguém que ignora
desdenhosamente as sutilezas psicológicas de que sua pessoa é objeto. A voz de Sofia não
se elevou além do tom que vinha até então mantendo na conversa, quando prosseguiu: —
"Seus olhos deviam fatalmente um dia se abrir, devia fatalmente compreender quem seu
pai é. Não é meu filho? Não se pode negar que seja meu filho, não? É verdade que não o
imaginava exatamente como ele é. Confissão estranha por parte de uma mãe, não é
verdade? Pelo menos, não foi em vão que esperei durante todos esses anos, que nada mais
fiz senão esperar. Você se enganou em seus cálculos. Mesmo que a alma não lhe interesse,
como acabou de dizer, essa alma, todavia, provou-lhe que não pode ser violentada. Ele é o
antagonista do seu espírito. É, admirável ver com que lógica sua educação o preparou para
isso. Sua mãe me contou... Aproximando-se os fatos, pode-se fazer uma ideia de conjunto
muito precisa. Você, sem dúvida, já esqueceu que nunca pude acreditar na culpabilidade
de Maurizius. Por certo, não se dignou deter-se no que pensava uma jovem de dezoito
anos... Mon Dieu, cela ne tire pas à conséquence. Nós nos conhecemos no dia mesmo em
que o julgamento se tornou definitivamente executório e você estava radiante quando me
informou do ocorrido. Um arrepio me percorreu da cabeça aos pés. Ainda ouço você insistir
na palavra "definitivamente", como se se tratasse de uma mensagem celeste. Quando
comuniquei nosso noivado a meu pai — ele fazia uma estação em Nauheim, três semanas
antes de sua morte — ele me escreveu uma carta na qual falava da inocência de Maurizius
e de você, que fizera toda a acusação. Como magistrado, ficara bastante afetado. Era de
uma outra época; não considerava o direito como uma tábua da lei sagrada e nosso
noivado o preocupava muito. É estranho. Nada se perde neste mundo. A semente lançada
ao vento caiu no coração de meu filho; transformou-se numa árvore na qual ele colheu o
fruto do conhecimento. A seus olhos, o direito e a lei são instituições contra as quais a
crítica humana não prevalece. Sonhei uma noite que imensa multidão se jogava a seus pés,
suplicando para você voltar atrás em um julgamento; e você permanecia imóvel, como uma
pirâmide de pedra. Imaginar-se infalível, um juiz infalível, que terrível aberração! Não ter a
direito de se ter enganado, que maldição! Você me tomou meu filho, sim, meu filho; não há
nada sobre a terra como uma mãe para possuir verdadeiramente uma coisa. Mas, não me
lamento, não acuso, eu... como é que vocês dizem no foro? Resumo a questão: você o
raptou, deixe-me terminar, a palavra corresponde exatamente ao fato, você o raptou numa
idade em que esperava modelá-lo a seu jeito, à sua imagem; era uma cera mole em sua
mão vigorosa. Assim agindo, você se apoiou sobre o direito e a lei como sobre dois acólitos
dignos de confiança e, com efeito, eles lhe serviram admiràvelmente. Depois, o ser que a lei
permitiu que você confiscasse em seu proveito cresceu. E o que acontece então? ele destrói
a base que você colocou e rouba a sua ilusão; o direito e a lei abandonam você. Não há
dialética que possa sustentar o contrário. Basta-me olhar para você para ver que assim é.
Há uma hora, ainda não tinha a menor ideia disso, ainda não sabia que..." Sofia se levantou
num impulso, deu um passo em direção ao barão Andergast e, com a mão direita fechada
segura pela esquerda, perguntou com voz serena que não traía a menor emoção: — "Você
quer que eu diga o que ainda aconteceu?" O barão levantou o braço, com o indicador
voltado para ela num gesto imperioso; esse gesto do procurador-geral, naquele instante,
parecia um gesto de fantasma: — "Não faço questão" — disse vivamente. — "Não temos
necessidade de discutir este assunto; não admitirei nem mais uma palavra." —
"Compreendo" — disse Sofia com ironia — "você me retira a palavra. Mas é a você mesmo
que a retira." Deu ainda um passo em sua direção e teve um sorriso cheio de ardor, quase
de em- briaguez, murmurando, o rosto voltado para o céu: — "Mas, onde está ele, onde se
encontra? Não pode deixar de vir logo, eu queria vê-lo..." O barão Andergast baixou a
cabeça. Durante muito tempo permaneceu imóvel no lugar, até o momento em que a
expressão "testemunho falso", chegando ao seu ouvido, fez com que estremecesse. 

 

Sofia se tinha afastado. Ia e vinha no estreito espaço entre a biblioteca e a secretária e,


como acontece às vezes quando o espírito está tenso, observava com aparente interesse
diversos objetos: o barômetro próximo à janela, uma estatueta de bronze existente num
canto, a lombada de um livro. Ao mesmo tempo, voltou a falar como antes, em leve tom de
conversa, com expressões de fisionomia muito móveis, e cada vez que parava ou se virava,
levantava o nariz como se farejasse o ar. Suas palavras davam a impressão de que, ao
desnudar o passado, queria mostrar que estava não menos impreterivelmente resolvida a
dispor do futuro de acordo com sua própria vontade. A ousadia pouco comum de uma
mulher capaz de refletir, que aprendeu a refletir e não recua diante das conseqüências de
suas reflexões, manifestava-se mais claramente do que antes. Se a lareira atrás dele se
transformasse em um ser vivo, juntando-se à conversa, não surpreenderia nem
desconcertaria mais o barão Andergast do que já o estava, dada aquela atitude. O "tarde
demais" que, depois da fuga de Etzel, havia transformado suas noites em noites
intermináveis, esgotantes, erguia-se novamente ante ele. Via-o, fantasma macabro, sobre
todas as paredes, em casa, no escritório, na rua, por todos os lugares, tarde demais, tarde
demais... 
 Não temeu falar de sua falta e de falar sem subterfúgios. — "Quando eu arranjei um
amante..." — disse ela. Para Sofia, seu ato era a tentativa frustrada de evasão de um
prisioneiro detido num cárcere sinistro. — "Até os vinte anos, fui um ser livre" — disse —
"Meu casamento me condenou a viver enclausurada." Não pode evitar um arrepio ao
acrescentar: — "A maternidade vem sem ser esperada. Em conformidade com o direito e
com a lei." Em seguida: — "Que existência eu levava? Que constitui a vida conjugal? O
marido, composto híbrido de um sexo e de uma profissão, ser sensual à noite, magistrado
de dia, mistura cada vez mais dúbia à medida que o hábito o tornava mais seguro de si
próprio, não tinha um coração bastante humano para procurar saber por que a pobre
criatura que vivia a seu lado murchava, conservava-se sempre, sempre calada, dizia no
máximo sim ou não, era doce e dócil, vestia-se bem e, no resto, tinha precedência apenas
sobre os cachorros. Era o senhor, o esposo, o pai, o sustentáculo; e o era escrupulosamente,
conscienciosamente, em conformidade com o direito e a lei. Coração, que queres mais?
Sim, mas o coração, mesmo quando tem o direito de amar, recusa-se a amar. Contra o
direito e contra a lei. Em sua fome, em sua angústia, sente que é preciso amar, não importa
a quem, de qualquer modo, quando mais não seja para experimentar de que é capaz, para
saber que está no mundo com alguma finalidade diversa da de habitar um ser que cuida da
cozinha, da adega, ocupa o quarto de dormir e vela sobre os filhos. Então, entrega-se a
qualquer um, desde que seja uma pessoa aceitável. Ainda aqui: contra o direito e contra a
lei. O amor... bem, seja o amor. Mais de uma paixão nasceu unicamente do horror ao vazio.
São as mais violentas. George Hofer não era um homem extraordinário; como muitos
outros: inteligente, honesto, generoso. Se estivesse acima dos outros, teria desprezado os
preconceitos e não teria prestado o juramento que me devia salvar a vida e que o impeliu à
morte. Um falso juramento! Foi esse pesadelo a causa da sua morte. Não, não se tratava de
uma caráter forte. Estava compenetrado do sentimento de honra peculiar à sua casta e
reconhecia como válidos o seu direito e a lei que sempre produziram sobre mim o mesmo
efeito dos dois ossos cruzados que se vêem sobre os frascos de veneno. Quando você o
forçou a jurar, você já tinha minha confissão e sabia que o destruiria em conformidade com
o direito e com a lei. Você me arrancou a confissão com a promessa enganosa de que, se eu
confessasse, você se esqueceria do juramento dele. Um juramento falso... útil instrumento
em qualquer ocasião. Ora servimo-nos dele, fingindo ignorá-lo; ora condenamo-lo e
perseguimo-lo; o fim justifica os meios. Seu mundo não é, aliás, o do perjúrio? Mas o meio
de que você se serviu para vencer-nos é uma mancha indelével em sua vida; você viveu
inutilmente uma vida de penitente, jamais poderá apagá-la ou dissimulá-la. Várias vezes
me perguntei como se pode suportar isso... sem dúvida afastando o olhar, pois você sabe
perfeitamente empregar sua energia e perseverança para afastar o olhar dos fatos ... " 
  — "Sim. Um juramento falso"" — disse o barão Andergast com voz inexpressiva,
enquanto, sobre o busto curvado, seu rosto sério brilhava na obscuridade — "sim, sem
dúvida, ele proferiu um juramento falso". — Sofia lhe dirigiu um olhar de espanto.
Naturalmente não suspeitava até que ponto aquela palavra tinha transtornado seu espírito.
Estacou, cravando nele um olhar perscrutador. — "Não é nada bom" — retrucou ele com
frases entrecortadas — "evocam estórias velhas. Não é bom, Sofia, neste momento
principalmente, por certas razões. Você é uma mulher; compreende, talvez, é verdade,
coisas que outros não compreenderiam, mas isso... não. Vocês, mulheres, de certo tempo
para cá, apelam para sentimentos a que nós não estamos preparados a responder. Há
certas nuanças que vocês aprendem porque têm tempo, bastante tempo, e porque o
imperioso "Eu devo, e preciso", não existe para vocês. Entretanto..." (interrompe e respirou
profundamente) "lembre-se que, atualmente, quase todos os homens que beiram os
cinqüenta anos estão arruinados pela falência do princípio diretor de suas vidas. Eu,
infelizmente, não faço exceção à regra." Sofia mantinha suas longas pestanas abaixadas. —
"Renuncia ao menino" — respondeu ela. — "Não vejo com que direito..." — retrucou ele,
recuperando toda sua rigidez. Sofia lhe cortou a palavra com um gesto violento. — "Com
que direito, com que direito! ... Eu paguei! Também eu não tive nada de graça." Como Sofia
se calasse, observou-a e compreendeu, subitamente, o preço que ela havia pago. Há
mulheres que, após uma vida de continência voluntária (voluntária porque ditada pela
procura de um fim diante do qual tudo desaparece), adquirem segunda virgindade. Ele a
olhou; Sofia sorriu e seu pálido sorriso trazia consigo uma força secreta. Bruscamente, fez-
lhe sinal com a cabeça, distante e altivo, e dirigiu-se para a porta, calçando a luva da mão
esquerda. O barão se sentou novamente em sua secretária; apoiou os cotovelos na borda
da mesa e cobriu o rosto com as mãos. Permaneceu assim duas longas horas sem ouvir, na
porta, as pancadas repetidas e cada vez mais tímidas de Rie que, lá pelas onze horas, se
decidiu enfim a abrir devagar a porta e a murmurar que o jantar estava na mesa. Aliás, já
quase "aceitara" a visita de Sofia, pois esta, ao deixar a sala, vendo-a no corredor, fora ao
seu encontro e apertara-lhe a mão silenciosamente. 
VI   

 As sete horas da manhã, o barão Andergast estava novamente a caminho de Kressa. Que
ia fazer? Que o atraía lá, para que a impaciência fosse tão grande a ponto de achar que o
automóvel não tinha mais velocidade do que uma diligência e para lançar olhares
rancorosos a todos os obstáculos encontrados no caminho? Novo interrogatório, novas
perguntas, mas para que, agora? Os detalhes do processo que, ainda na véspera, lhe
pareciam importantes, tinham perdido o valor. Nada podiam acrescentar ou retirar da
questão. Então, que o impelia? Evitava esclarecer este ponto. Receava as divagações a que
o levaria a análise dessa agitação que o fazia agir... era ridículo... à maneira daqueles que,
antes de suceder o inevitável, sentem necessidade de rever ainda uma vez um amigo. Um
amigo... o condenado, um amigo? Era, sem dúvida, seu pobre cérebro doente que concebia
semelhante desvio de sentimento. Estava extenuado. Era a conseqüência, a repercussão
dos aborrecimentos que tivera com aquela mulher e com o filho. Esforçando-se para não
pensar neles, não sofrer, rejeitar toda e qualquer responsabilidade, pensava que talvez, por
compensação, estivesse atribuindo ao incidente Maurizius uma importância que não
possuía... (Sutil análise que fazia honra à sua perspicácia). Não importa, o sentimento que o
impelia ao encontro do prisioneiro era análogo ao que fazia com que sentisse falta do filho.
Nele não se encontrava a mágoa, o amor-próprio ferido que sentiria, se houvessem julgado
mal o que havia de melhor no seu "eu", mas vinha de camadas mais profundas, como se
fosse preciso curvar o destino e os obstáculos fossem poderosos demais para serem
vencidos. (Os homens de sua têmpera e de sua geração, que ignoram completamente a
alegria e conhecem a amizade apenas através de reminiscências apagadas da juventude,
não percebem o isolamento absoluto senão numa idade avançada, e acontece que, tal
como muitas mulheres na idade crítica, procuram obter o que lhes falta por meio de atos
completamente em desacordo com sua natureza). O barão tinha a vaga ideia de que
precisava explicar-se, sobretudo fazer-se compreender (vã esperança, sabia-o
perfeitamente) e a sensação de constrangimento era enorme. Levantava os ombros para si
mesmo, imaginava pretextos para justificar aquela nova visita, mas não podia deixar de
ouvir sempre a voz arrulhante, de ver os gestos bruscos, os olhares inquietos do prisioneiro,
sua boca arqueada lembrando a de Napoleão, os pequenos dentes de menina, os cabelos
brancos como a neve; e de experimentar, ao mesmo tempo, a sensação que despertara
nele desde a primeira visita: encontrava-se em face de um homem a quem fora confiada a
missão de revelar ao mundo segredos até então insuspeitados. 
 A pouca distância de Kressa a marcha do automóvel fora diminuída em consequência da
chuva e o chofer precisou fechar a capota. O barão Andergast foi obrigado a esperar um
quarto de hora no arquivo, enquanto iam prevenir o diretor que estava ocupado com os
relatórios. Ao chegar: Pauli lhe comunicou que o detento 357 adoecera durante a noite,
mas, a pedido seu, não fora transferido para a enfermaria e encontrava-se em sua cela.
Aliás, segundo o médico, tratava-se apenas de ligeira indisposição, uma indigestão ou
qualquer coisa semelhante. Após haver tomado bicarbonato, encontrava-se melhor. Não
havia nenhum inconveniente em que o barão o visse. O secretário, de olhar agitado, se
levantou e expediu a ordem com rapidez. Dez minutos mais tarde, exatamente quando o
relógio da prisão batia nove horas, o carcereiro abriu a porta da cela. 
 Maurizius estava deitado no leito de ferro. Um cobertor de lã cinzenta cobria-o até o
peito. Em sua fisionomia descorada, os olhos pareciam dois pedaços de carvão boiando no
círculo escuro das órbitas. Ao avistar o magistrado, ergueu-se bruscamente e sua expressão
dizia: — "Outra vez! Já não bastou?" Vestia, sobre a camisa de fazenda grosseira, uma
blusa de algodão cuja gola estava entreaberta. O barão Andergast se aproximou. Com o
rosto sombrio, lançou do alto de sua estatura imponente um olhar sobre ele e,
repentinamente, estendeu-lhe as duas mãos. Enquanto esperava a resposta ao seu gesto
(não houve), seus dentes enormes luziam entre os lábios que pareciam inchados,
empolados. Ter-se-ia jurado que a fisionomia pálida do prisioneiro não se poderia tornar
mais branca. Entretanto, tornou-se. "Que quer dizer isso? Para quê? Que esconde isso?" —
perguntava seu olhar fixo, assustado e maldoso, com a desconfiança característica de quem
já sofreu detenção prolongada. O barão deixou cair os braços. Durante um momento,
permaneceu absorto em seus pensamentos. Em seguida, dirigiu-se para a janela, observou
a chuva que caía em longos filetes de água semelhantes a uma cortina de seda fosca;
depois, apanhou a cadeira de pau, colocou-a vizinha ao leito e sentou-se pesadamente.
Começou com lentidão: — "Desta vez, evitarei toda pergunta, todo interrogatório que lhe
pareça desagradável. Não se preocupe, pois. Lamento que sua saúde se tenha ressentido
da fadiga de ontem." Maurizius que, até então, mantivera a cabeça erguida num esforço de
atenção torturante, descansou-a sobre o travesseiro. — "Oh! minha saúde" — respondeu
com indiferença. — "Não é nada!" O barão Andergast se inclinou para a frente: — "Uma
pergunta" — prosseguiu num tom completamente novo que adotara com o prisioneiro, um
tom que dizia nitidamente: falo de homem para homem, de igual para igual, e que fazia
Maurizius apurar o ouvido como se se esforçasse para distinguir uma voz no meio duma
algazarra distante — "somente uma pergunta. Se julgar conveniente não responder,
compreenderei seu silêncio. De resto, não poderá, então, ser interpretado senão de uma
única maneira." Maurizius olhou para o ar. — "Diga-me; o senhor concordaria em ser
perdoado e em renunciar a qualquer novo recurso? Sua palavra me bastaria." 
 Um choque elétrico percorre o corpo estendido de Maurizius. Seus lábios ressequidos se
contraem. É-lhe impossível falar. Imagens confusas rodopiam alucinantemente em seu
cérebro. Quereria gritar, mas não pode; cobrir o rosto com as mãos, mas não tem forças.
Seu torso lhe dá a impressão de um bloco de chumbo. E o coração, a de um motor que está
falhando e vai parar. O barão compreende. Com extraordinária humildade, pousa a mão
sobre o braço de Maurizius e diz: — "Eu lhe ofereço o que é possível oferecer! O senhor
ainda tem um futuro diante de si! Não tem o direito de recusá-lo por uma sombra." A
fisionomia de Maurizius se crispa: "Uma sombra! Uma sombra! diz o senhor? Um futuro
sem... esta sombra? Um futuro com isto aqui (com o dedo, aponta seus olhos) ... um
futuro?" O barão Andergast lhe fala como a uma criança teimosa: — "É preciso se
conformar. A vida é uma força poderosa. É uma torrente que elimina o veneno e a lama.
Pense na liberdade..." ("Como isto é vulgar, desesperadamente banal!" — pensa, irritado
contra a pobreza dessas palavras tantas vezes repetidas). O mesmo arrepio agita
novamente o pobre corpo extenuado do presidiário. Murmura: — "A liberdade... oh! meu
Deus!... a liberdade!..." Seus olhos se umedecem. — "Então, está vendo o senhor! ... " —
disse o barão Andergast comovido. (Subitamente, sente-se um benfeitor, um verdadeiro
amigo. Está comovido. Esquece que a esmola não tem nem mesmo o valor de um presente,
não percebe o que tem de irônico, de desdenhoso.) Maurizius continua calado. Cinco
minutos se escoam e não se move. Finalmente, seus lábios começam a tremer e o
monólogo começa. 
 VII  

  — "Vocês, nenhum de vocês o sabe. Ninguém na terra pode fazer a mais vaga ideia.
Sobre este aspecto, a imaginação humana se mostra irredutivelmente incapaz. Tudo
quanto se diz, tudo quanto se sabe "fora", não se aproxima sequer da realidade. Alguns
presumem saber porque estão habituados a certos quadros que impressionam a
imaginação. Na verdade, não aprenderam a menor migalha. Outros vão repetindo que não
é tão terrível assim, que o homem se habitua com tudo, que é uma questão de hábito, que
as condições melhoram de ano para ano, que a legislação se adapta ao espírito moderno, e
outras coisas deste gênero. Não sabem o que dizem. Todos os males, todos os sofrimentos
da terra provêm da impossibilidade de transmitir nossas experiências aos outros. No
máximo, podemos comunicá-las. Entre o quinhão de provas destinadas a cada um e o fardo
aniquilador, estende-se a estrada da experiência que cada um deve seguir só, por sua
própria conta, da mesma maneira como cada um deve morrer só a sua própria morte e
como ninguém sabe o que é morrer. Não é tão terrível assim!... Não! Durante muito tempo,
pensa-se: não é tão terrível assim. Se não fosse o fato de não se existir mais moralmente
nem intelectualmente, nem como homem, nem como pai, nem como filho, nem como
cidadão ou membro da sociedade, efetivamente o resto não seria tão terrível assim. O
descanso, já lhe disse, não é verdade? Tem-se descanso e paz. Não existem mais ambições,
preocupações financeiras, aborrecimentos, desavenças, jornais. Ordem, paz, repouso!
Através dessas muralhas, não se está mais exposto a nada. Fica-se farto da liberdade; afinal
de contas, não foi ela quem nos trouxe até aqui? Pensa-se: eu não tenho necessidade da
liberdade, não serve senão para fazer de mim um revoltado, da mesma maneira que a
gente se torna um bêbedo quando possui uma adega bem guarnecida. Isso dura muito
tempo assim. O senhor certamente já ouviu falar do suplício da gota d'água. Coloca-se o
condenado debaixo de uma torneira que, com intervalos regulares, pinga gotas sobre uma
parte qualquer de seu corpo. No começo é apenas irritante, depois se torna doloroso, em
seguida é uma tortura atroz e finalmente cada gota se transforma num martelo que se
abate sobre o crâneo. E a pele, a carne, os ossos não são mais do que uma massa dolorida.
Ao chegar aqui, também pensei: "Não é tão terrível assim." Os dias, as semanas, os meses,
iam passando e eu sempre me dizia: "Não é tão terrível assim." Havia mesmo instantes,
horas, em que essa situação, de duração imprevisível, produzia-me uma impressão de
segurança, como se nada mais pudesse atingir-me. É preciso lembrar ao senhor os dias que
atravessei. O espírito deve primeiro sair do seu torpor. Enfim! Bem! A névoa se desfaz. Um
dia o diretor me disse: — "Já faz quinze meses que o senhor está aqui." Eu lhe direi, entre
parênteses, que jamais me trataram por "você", como faziam aos outros. Nessa época
todos eram tratados assim, menos eu; era um intelectual e tinha o título de doutor. Quinze
meses! Essa ideia me atravessou o espírito como um relâmpago. "Quinze meses" — pensei
— "que foi feito deles e como foram vividos? O que vi, o que fiz durante esses quinze
meses?" Comumente, marcam na vida uma etapa que percebemos quer seja boa quer seja
má. "Fora", o corpo inteiro até as pontas dos dedos estava possuído pela noção do tempo.
Perguntei: — "Senhor diretor, faz verdadeiramente quinze meses?" Ele desatou a rir e
respondeu: — "Feliz mortal, que não percebe a fuga das horas!" Esse foi pois o começo,
quero dizer: o medo de não ter mais consciência da realidade do tempo. Esse medo se
tornou tão horroroso que, à noite, esforço-me para não dormir, para reter o tempo, para
senti-lo, como, nas corridas, as pessoas fixam o olhar nos jóqueis e nas suas cores para não
perder o segundo exato em que o vencedor atinge a meta final. Mas, essa é uma
comparação defeituosa. Prefiro não fazer comparações, tudo é inexato, tudo é falseado pela
simples razão de pertencer ao mundo dos senhores, dos senhores que estão "fora". O pavor
de que o tempo escapasse introduziu-se na minha medula como se tivesse qualquer coisa a
perder. Oh! Deus meu! O que é que eu tinha para perder, para abandonar... a perpetuidade!
(Penetre nesta palavra: perpetuidade!) Que se perde então? Mas o cérebro humano é um
instrumento esquisito. Essa primeira tortura arrastou imediatamente uma segunda. Ao
receio de que o tempo me escapasse, ajuntou-se a tortura que provocava em mim o
sincronismo dos acontecimentos. Talvez ainda fosse mais horrível. Acho-me, por exemplo,
na oficina: minhas mãos executam automaticamente o mesmo gesto sempre idêntico;
então, um pensamento se apodera de mim: nesse mesmo instante, o carteiro
Lindenschmitt desce a avenida e bate à porta da vila Kosegarten, ou ainda, nesse mesmo
minuto, o professor Stein e o professor Wandand se encontram na esquina da Faculdade e
começam a cochichar porque, como de costume, estão tramando contra o professor
Straszmeyer. Eu os vejo. Vejo Lindenschmitt, o carteiro, com a sua carranca de beberrão,
tirar as cartas da bolsa. E vejo a criada dos Kosegarten por a cara na janela e sacudir seu
pano de limpar antes de abrir a porta. Eu o vejo, porque já o vi milhares de vezes e é
provável que nada se tenha modificado. Isso varia a cada hora. Em todas as cidades por
onde andei, nas estações, nos hotéis, nos museus, vejo o que se passa nessa mesma hora,
as pessoas que costumava ver, os objetos que eram sempre encontrados por lá e devem
continuar sendo, ainda. Vejo, pela manhã, os primeiros veículos atravessarem as ruas ainda
adormecidas e, à noite, os lampiões se acenderem. Vejo uma estatueta de bronze do
museu de Cassel da qual sempre gostei e penso: "É engraçado, ela está lá, sei que está,
poderia tocá-la com a mão, mas poderia igualmente tocar a estrêla Sirius", as coisas
existem e não existem, estão e não estão, acontece assim com o resto: árvores que
conheço, crianças que conheço e crescem como em um sonho, objetos que me
pertenceram e que estão não sei mais onde, nesse minuto, porque devem estar em alguma
parte... Esse pensamento não me dava mais descanso e, tal como o medo de ver o tempo
fugir, retardava cada vez mais sua marcha, tornando os dias cada vez mais tangíveis para
mim — tratava-se do dia presente, o senhor compreende? Parecia-me que, quando os dias,
tomados um por um, se acumulavam e depois se escoavam, eles eram engolidos por um
monstruoso animal feroz: assim como essa tortura era causada pelo medo de ver o tempo
me fugir, a representação terrificante do sincronismo dos acontecimentos engendrou a
impressão de que todos os fatos simultâneos que evocava desenvolviam-se diante dos
 meus olhos num espaço sem limites. Não podia acreditar que havia muros na minha frente
e, aproximando-me, esperava vê-los se afastarem como uma cortina de teatro. O espaço, o
espaço! A ideia de que me encontrava encarcerado parecia-me absurda. Mas, essas coisas
são bagatelas comparadas ao que se seguiu." 
 Maurizius volve várias vezes a cabeça da direita para a esquerda, depois coloca as mãos
sobre a cabeça e continua: — "Dessa primeira tortura originaram-se todas as outras,
principalmente aquela... como explicar isso? A de pensar: se isso ou aquilo tivesse
acontecido, se pelo menos eu tivesse... Se, em tal ou tal circunstância, tivesse dito essa ou
aquela coisa. Se, durante tal ou tal discussão, tivesse dado tal ou tal resposta, tudo teria
sido diferente. Se, em tal ou tal dia, em vez de segurar a mão de Waremme, eu lhe tivesse
dito: — "Não, basta!..." Se no célebre dia 24 de outubro, tivesse tomado o trem-misto em
vez do rápido, tudo teria sucedido diferentemente, muito diferentemente. E depois,
imaginar os fatos como, então, se teriam verificado. Reconstituía, compunha o passado
como se faz durante os acessos de febre. Via as tolices, as loucuras, os gestos
inconsiderados e reconhecia que, na vida, é impossível retroceder para modificar os
acontecimentos. Seria tão natural, tão simples, alterá-los. Essa ideia me dilacerava o
coração, punha-me maluco. Lamentar, arrepender-se, perceber tarde demais que se
depositou confiança excessiva em alguém, que se acreditou demais no que dizia um outro,
que se desconfiou erroneamente, que se devia um dia ter dito abertamente o seu
pensamento! E tudo quanto se crê haver esquecido de fazer!... Esquecido de escrever a Eli
a carta decisiva que teria evitado o terrível mal-entendido, esquecido de dizer a Ana o que
talvez nos teria salvo, a ela, a minha mulher e a mim, ísto é: que eu tinha tomado a firme
resolução de partir só, se tudo fracassasse, e conservar apenas Hildegarda para mim. Vinte
vezes por dia parece que se pode tornar a alcançar tudo isso e consertar ainda tudo.
Depois, quando se reconhece que é impossível, irremediavelmente impossível, uma raiva
sobrevém contra essa impossibilidade. É a isso que é o mais difícil de se habituar: ver a sua
vontade acorrentada. Não, estou-lhe dizendo isso estupidamente. Não mais poder querer,
sentir-se atrofiar o órgão que quer! Por exemplo: os dentes são feitos para morder, não é
verdade? Pois bem! mal se morde um pedaço de pão e logo o dente cai, e não se desiste
senão quando caem todos os dentes. Sim! é isso exatamente. A conseqüência é que a
própria existência e a consciência que se tem de si próprio encontram-se particularmente
diminuídas. Não se tem confiança em si próprio, até mesmo para as menores
manifestações da vida. Quando se anda, a cabeça gira; sente-se frio na espinha ante a ideia
de descer uma escada; a obrigação de saltar da cama parece ocultar um perigo enorme;
cada janela é um abismo do qual não se ousa aproximar; beber e comer são atos estranhos
e anacrônicos; fala-se com os outros da mesma maneira como se fala a si mesmo; não se
pode rir nem chorar; o riso e a lágrima ficaram "fora". Quer-se ainda, quer-se a toda força
querer, mas, o quê? Fica-se louco. O mais terrível é que, com a possibilidade de querer, as
palavras utilizadas para querer também se desmancham em poeira. Tudo é tão estreito, na
verdade, o ritmo da vida tão mesquinho, o terreno em que nos movemos tão vazio.
Nenhum desejo, nenhuma aspiração. Somente as necessidades materiais ousam
manifestar-se. Enquanto isso, o cérebro trabalha, ferve, trabalha até o desespero (parece
que se marcha numa floresta e que se vêem os caminhos desaparecendo na retaguarda),
as palavras nos abandonam, perdem seu valor; sua frescura murcha, as ideias elevadas se
dissolvem em ideias vulgares e indecentes; às vezes, surgem lembranças, espectros de
chama; a respiração se interrompe: é que nos pareceu estar com um amigo ou receber
uma flor de mão querida. Mas, essas imagens estão longe, muito longe. É espantoso, os
soluços sobem à garganta com o simples pensamento de que isso se passou. Duas ou três
vezes, durante o ano, acordei sobressaltado gritando: "Eu, eu?" Com um ponto de
interrogação. Eu, nada mais. Mas essas palavras: "eu", "me" têm qualquer coisa de muito
particular. Ouça o senhor as pessoas que passaram aqui muitos anos: observará que se
detêm de cada vez antes de pronunciar estas palavras, como se tivessem os olhos
vendados e temessem tropeçar. Isso sempre me comoveu. Aliás, essas pessoas, como o
senhor sabe, não são absolutamente como as demais. Como explicar-lhe, como fazê-lo
compreender? Não acabaria nunca mais. Tudo dança ante meus olhos quando tento fazê-lo.
Não tenho o talento de um Virgílio e creio que o próprio Dante não viu tanto. Também, não
gostaria de aborrecê-lo. Espero que isso não o enfade. Não? Tanto melhor. Em primeiro
lugar, quero ainda falar-lhe das esperanças, dos desejos que se tem, uma vez que já lhe
falei das lembranças que aos poucos vão ficando tremelicantes, microscópicas, com
exceção de uma ou duas que resplandecem como archotes apesar de nada possuírem de
particular. Mantêm-nos sob seu domínio, não se sabe bem por que... mas o que se espera, o
que preocupa a curiosidade é tão vulgar, tão mesquinho, que até causa vergonha.
Perguntamo-nos qual a cara do carcereiro ao abrir a porta, se o capelão anatematizará
ainda no sermão, como da última vez, se virá naquele dia um novo hóspede, se
conseguiremos cigarros, se veremos no corredor o camundongo que, na véspera, subira
pelas calças do chefe da guarda. Oh! sim, que gente! Nos primeiros anos, trabalhar na
oficina com os outros era um alívio para mim. Durante dezessete meses dormi também no
dormitório, com a minha turma. Mas, naquela época, ainda vivia absorto em mim mesmo,
não via as suas fisionomias, não distinguia umas das outras: sombras amareladas se
moviam em torno de mim. Enquanto vigorou a proibição de falar, não notei que estavam
prevenidos contra mim. Quando tivemos autorização, não ouvia o que diziam e também
não tomei conhecimento da hostilidade geral. Achavam-me orgulhoso, distante: — "ele
pensa que é diferente de nós" — diziam ironicamente. Chamavam-me de mestre-escola, o
professor etc. Mas, quando de uma tentativa de evasão e uma outra vez em que se
embriagaram como porcos, com aguardente, fingi ignorar tudo e não traí ninguém, apesar
de o diretor e vice-diretor pensarem que conseguiriam facilmente obter informações de
mim. Subi no conceito deles e aceitaram-me, a seu modo. Isso se tornou uma tradição. Em
um estabelecimento como este, a tradição em relação a um prisioneiro prevalece sobre
tudo. Apenas, nessa época, não conhecia nenhum particularmente. Nenhum me
interessava. Não receava nada nem nnguém. Na verdade, apenas conhecia os seus pés e, à
noite, coisa curiosa, apenas me deitava, mergulhava num sono de ferro. Todos aqueles que,
de uma vida intelectual, passaram para o regime do cárcere, lhe dirão: dorme-se como uma
pedra. A natureza, sem dúvida, vela sobre nós e não quer que tudo seja destruído de uma
só vez. Frente ao ódio dos homens, tranca a última porta restante. Mas, uma noite, eis que
me acordo e sinto qualquer coisa me fazendo cócegas, apalpando meu corpo. Experimento
ao mesmo tempo uma sensação esquisita. Sinto uma barba, braços peludos, mãos úmidas.
Levanto-me e quero repelir o indivíduo; ele me lança seu hálito fétido na face e estertora:
— "Cala a boca, canalha!" Lutamos; ao meu lado, e mais adiante, ouço cochichar e caçoar.
Meu leito era um dos primeiros. O sujeito me aperta a garganta com uma mão e desce a
outra pelo meu corpo. Enfio-lhe os joelhos nas costelas e as unhas nos olhos; ele blasfema
como um danado; ao redor, continuam escarnecendo. Consigo finalmente dominá-lo e
atirá-lo fora do leito com um estardalhaço infernal. O guarda surge: silêncio mortal. No dia
seguinte, solicitei transferência para a cela individual sem dizer palavra sobre o sucedido. O
diretor que tínhamos então, o mesmo que me fizera aquela reflexão sobre os quinze meses,
demonstrava-me benevolência. Quando lhe disse que seria minha morte, se não me
transferissem, cravou em mim um olhar penetrante como se lhe estivesse ocultando
alguma coisa e respondeu: — "Está bem, vamos providenciar." Ainda esperei três semanas;
a prisão estava superlotada. Durante esse intervalo, tive que frustrar muitas tentativas
perigosas do indivíduo que me atacara. Isso passou, como o resto. Depois, arranjaram-me
uma cela. Foi uma verdadeira modificação que abriu, de certo modo, novo período para
mim." 

 
VIII   

 Maurizius se cala. Um arrepio percorre, à flor da pele, sua face branco-azulada como o
leite quando vai ferver. A maçã de seu pescoço sobe e desce enquanto engole a saliva. O
barão Andergast, na cadeira, tem o aspecto de uma estátua de pedra. Parece dormir. Está
longe disso, porém, e o silêncio do prisioneiro lhe parece não ter mais fim. 
  — "A modificação" — recomeçou logo Maurizius — "manifestou-se, no começo, pela
falta do sono. Eu definhava, perdia todas as forças. Se não podia fechar os olhos, era
porque, sem cessar, investigava o passado; mas, dessa vez, sem os "se ao menos" e os "se
eu tivesse". Nada fazia senão discutir com as pessoas; pedia-lhes explicação da conduta
que tinham tido. Eram explicações, ajustes de contas. Durante noites e dias inteiros,
ruminava sobre a origem de certas palavras, de certos atos e de certos fatos, sobre o
verdadeiro caráter de determinadas pessoas, as ilusões que tivera a respeito de outras, as
faltas que cometera nessa ou naquela circunstância, o prejuízo que esse ou aquele me
tinha causado e o prejuízo que eu próprio lhes causara. Brigava, lembrava fatos esquecidos,
apresentava os argumentos mais sutis e tudo girava, rodopiava como uma roda lançada
numa ladeira com velocidade vertiginosa. Ora discutia com um impressor que me havia
lesado quatro anos antes, ora desafiava um desconhecido, um rapaz que me havia
caluniado. De outra vez, sustentava violento debate com um colega da Faculdade a quem
censurava o estúpido classicismo. De outra vez ainda, entrava em conflito com a mulher de
um conselheiro que não respondera ao meu cumprimento e a quem lançava em rosto, a
propósito do seu esnobismo e do seu orgulho de casta, verdades como jamais teria ousado
dizer face a face. Ou então, era a traição do meu melhor amigo de infância, sucedida seis
anos antes, que me dilacerava o coração. Falava-lhe, mostrava-lhe a injustiça cometida; ele
reconhecia sua covardia e pedia perdão. Em compensação, lembrava-me de ter sido eu
mesmo infiel e traidor. Havia sobretudo uma moça que não me saía da cabeça; eu lhe havia
feito, certa vez, uma canalhice e desenvolvia toda minha eloqüência e energia para obter
seu perdão. No princípio, tratava-se apenas de pessoas que não conhecia ou que havia
perdido de vista. Como minha intenção era a de me poupar, ocupava-me delas tão mais
ativamente quanto sentia poder assim afastar  de mim as que me tocavam de mais perto.
Mas não pude, com o correr do tempo, evitar que essas últimas se aproximassem. Ainda
procurava ganhar tempo com os interrogatórios a que me tinham submetido; muitas vezes
podia repeti-los frase por frase. Nisso, gastei várias horas, dias inteiros. Acabava
emprestando aos fatos uma aparência favorável à minha causa, pois eu desconcertava de
tal modo o magistrado com minhas declarações e objeções que ele reconhecia que os
motivos da acusação se desfaziam por si próprios. Regozijava-me com isso como se fosse
uma vitória e não me continha de alegria. Mas, no meio dessa satisfação, pensava, por
exemplo, na minha conduta para com meu pai, na minha ingratidão, no sofrimento que lhe
devia ter causado. Fazia- lhe toda espécie de confissões e resolvia escrever-lhe. Arquitetava
longa carta para fazê-lo compreender que não pudera agir diferentemente... Como sempre,
me desculpava, me incensava; não me havia modificado... Mas, repentinamente, Eli
intervinha e mostrava-me o que eu ainda não ousara ver, o meu temperamento
essencialmente enganador. Tentava obter um pouco de indulgência, mas era em vão.
Arrependimento, contrição, tudo era inútil, pelo menos no começo. Em seguida, serenava e
eu podia contar-lhe tudo e me justificar das acusações mais graves; de uma vez mesmo,
chorou; de outra, houve entre nós um verdadeiro drama: após uma cena pavorosa, cortara
as veias no banho; corri para ela; jazia imóvel no banheiro cheio de água completamente
avermelhada e, sentada nos seus joelhos, a minha pequena Hildegarda segurava um
espelho redondo, olhando-me com os olhos desmesuradamente arregalados, como se
acabasse de compreender que espécie de homem eu era. Não são sonhos que lhe estou
contando, senhor, não são sonhos. O que era, então, o senhor me perguntará... O que era,
quando me encontrava, por exemplo, diante de Gregorio Waremme e o exasperava tanto
com as minhas provas e súplicas que ele desmoronava e eu me dizia : "Desta vez, é o tiro
de misericórdia, Satanás!" Que era, então? Um pandemônio de tudo que não fora dito,
feito, de tudo quanto fora dito ou feito tarde demais, do que fora desejado, temido e que,
em seguida, sufoca e dilacera, a realidade confundida com a aparência da realidade, uma
casuística apaixonada eliminando do curso dos acontecimentos a lei que os regera e
mostrando-me seu avesso como uma escrita refletida por um espelho. Apesar disso ter
durado do mês de maio ao mês de setembro, o personagem principal ainda não fizera sua
aparição. Digo "aparição" porque, naturalmente, meu pensamento muitas vezes tocara
nele e seu nome muitas vezes atravessara meu espírito. Não era ele a viga-mestra que
sustenta o edifício? Após a vida de erro, a vida de expiação. Mas, eu tinha conseguido
mantê-lo na sombra. Com requintes de astúcia, conseguira evitar essa imagem: temia de
tal modo vê-la e retê-la que mergulhava com frenesi na lembrança das coisas as mais
indiferentes e ampliava-as até que o meu pobre cérebro não fosse mais do que uma
girândola em chamas... Trabalho perdido. Quando as noites aumentaram e o inverno
chegou, um dia ... A coisa me assaltou de surpresa. Não quero ser detido pelo pudor.
Prometi-me a mim mesmo dizer tudo. Isso ultrapassa o que o pudor proíbe dizer e nada
tem a ver com ele. Quem sabe se jamais tornará a se encontrar alguém que, sem nenhuma
preocupação das conseqüências que suas palavras poderão ter para ele ou da maneira
como serão julgadas, tenha por único desejo que a verdade saia das masmorras e venha à
luz? Quem sabe se, para mim mesmo, a hora tornará a apresentar-se? Não é certo; tenho a
impressão de que, brevemente, tudo se apagará e eu mesmo não saberei mais exatamente.
É preciso estar inspirado para contar-se a si próprio sem reticências. É preciso estar num
estado de espírito no qual não é permitido nem se amar, nem se odiar. Eis, pois, o que
sucedeu quando Ana apareceu. A princípio mostrou-se sob o aspecto daquela Ana, da
moça, da mulher que eu conhecera, que me havia... oh! para que dizer, suponho que o
senhor me compreenda. Surgiu para mim com um vestido guarnecido de babados ou
rendas, com seu lindo penteado e seu xale azul ou cinza; eu conhecia tão bem tudo isso!
Era tão bonito, tão seu! Seus olhos, sua boca, a cor de seus cabelos, seus lábios, o gesto
anguloso que às vezes fazia ao curvar a mão, sua maneira de dar cinco passos rápidos,
depois, de repente, outros dois mais lentos, de franzir levemente a pálpebra esquerda
quando sorria, de erguer o queixo quando fazia uma pergunta, de apoiar a face à palma da
mão para refletir... Tudo isso, que lhe era peculiar, só dela, que era Ana e ninguém mais
senão ela ... Nunca mais, eu o sabia. Jamais tornaria a vê-la. Nunca mais. Ela vivia, andava
de um lado para outro num quarto, conversava com outras pessoas, apoiava a face na
palma da mão, erguia o queixo com ar interrogativo, usava o vestido de rendas. Jamais
tornarei a vê-la. O senhor, provavelmente, conhece a poesia de Edgard Poe, "O Corvo"?
Cada estrofe termina com o estribilho: "Nunca mais. O corvo grasnou: nunca mais." Eu o
repetia todos os dias: "O corvo grasnou: nunca mais!" Pois bem, arrastava comigo uma
esperança indelével, a de que um dia tudo se saberia e me apresentaria sem mácula à face
da mundo. Mas, assim que a imagem de Ana surgia, minhas esperanças se desvaneciam
como fumaça ao vento e eu sabia com implacável certeza: nunca mais. Como todo o fluxo
da minha existência continuava a correr no seu sentido, sua imagem não podia mentir. Era,
pois, a minha esperança que mentia. Conformei-me com isso enquanto conservava essa
nostalgia lancinante... Ah! esta, palavras nada significam. Não há palavras capazes de
descrever isso. É o suplício dos suplícios, uma morte a todos os instantes, mas de que não
se morre. Pensa-se não poder suportar mais um dia, mais um quarto de hora; as portas vão
se abrir, ali, agora, naquele momento mesmo; o tempo que escoa não tem realidade,
minha. cabeça estourará, se amanhã não puder ir ao seu encontro; as muralhas e os
ferrolhos não existem; entretanto, oh! Deus meu, eles ali estão. Existe uma cidade, uma
casa onde ela vive, onde respira, pensa, dorme; e aqui: nunca mais! Não se pode fazer uma
ideia do que é isso, senhor procurador. O senhor objetará, naturalmente, que havia uma
culpa a expiar. Por certo, a minha era imensa. É a culpa que separa os homens dos outros
homens, que separa o homem da mulher. A justiça nos puniu por uma falta que não era a
nossa, sem dúvida, mas ficamos amaldiçoados pela que cometemos. Talvez tenha sido mais
grave do que pensamos. Se não a compreendemos, paciência, suportemos sem
compreender. Mas, tudo isso se aceita durante certo tempo. A exaltação, a alegria do
sacrifício duram apenas enquanto se pode reter a imagem adorada. De repente, a carne se
revolta. Esperar, esperar, não se pode mais esperar. A carne assume a preponderância e
não se é mais responsável pelo que acontece. A imagem adorada se desfaz; Ana deixa de
ser Ana. A ideia de amor se extingue. A sentença separa o homem da mulher; o mecanismo
judicial desencadeia a besta no homem. O desespero engendra o vício oculto. A máquina
judicial diz: que fazer? Sou impotente. Pense o senhor no que se passa com aqueles que
não têm para perder uma imagem adorada que espiritualize por algum tempo seus
desejos. Não têm senão as recordações conservadas pelos sentidos, a imagem das
prostitutas que os dilacera. Todos, sem exceção, são sádicos. Assisti a excessos cometidos
por invertidos... Oh! eu mesmo acabei não mais podendo refrear a carne. A imagem
adorada voou em estilhaços como sob o golpe de um machado. As lembranças, as ideias
cederam lugar às sombras, as sombras aos corpos. Mulheres, mulheres e ainda mulheres
que não possuíam rostos, apenas seios, ventre, coxas, pele suave, odor inebriante de
animal felino que é cáustico como chuva de fogo que abrasa e acalma o sangue das veias,
transformando o céu da boca num pedaço de couro, os cabelos num capacete de suor. Nem
trégua nem repouso. Durante o dia, fica-se perseguido na cela e, à noite, se se deita um
instante, vê-se... ao lado do que se vê, empalidecem os desenhos mais obscenos com que
os viciados se deliciam. Comparando, as célebres tentações de Santo Antônio se
assemelham a ilustrações de bíblias familiares. O santo teria podido esquivar-se ao seu
destino; sua renúncia era voluntária. Quem, pode pretender enunciar para sempre? Tem-se
sempre alguma coisa em reserva, pode-se... em suma, pode-se abrir a porta. Mas aqui?
Pense o senhor que eu não tinha ainda trinta anos! Por que não mataram o sexo em mim?
Não ter trinta anos e ser enterrado vivo! Não se vê em torno de si senão o ato sexual que
desencadeia um frenesi, duas nuvens que se aproximam uma da outra no céu, as traves
que o carpinteiro ajunta na oficina, a chave que o carcereiro introduz na fechadura, a haste
de capim que brota entre duas lages, a própria língua quando se molha os lábios, o H
maiúsculo do título de um livro, a rolha de uma garrafa. Acrescente a isso que, num
estabelecimento como este, tem-se a terrível impressão que tudo se repete centenas de
vezes, que o martírio de um é o martírio dos demais. Os miasmas que exalam esses
quinhentos desejos furiosos exercem sobre o espírito influência mais nefasta que a mais
abjeta corrupção! Como o espírito se entorpece, chafurda na lama! O coração se petrifica,
não é mais do que um órgão imundo. Haverá alguém "fora" capaz de ter a menor ideia do
que é isso? Impossível. Sim, porque, então, nenhum dos vossos filhos poderia mais brincar
alegremente, nenhuma recém-casada poderia ir para o leito nupcial sem ficar gelada de
horror e de nojo. Esse estado, naturalmente, tem seu paroxismo e seu declínio. Em mim,
durou mais ou menos... vejamos, deixe-me calcular... mais ou menos dezoito meses. Não sei
se o senhor imagina bem o que significam dezoito meses, primeiro de um modo geral,
depois no espaço de dez metros quadrados como este aqui. Na realidade, desde que se
fixam limites ao tempo, abole-se a sua noção. O que acontece em seguida é uma espécie
de aparvalhamento dissolvente. Fica-se esmagado, embrutecido, com a impressão de que
se poderia ser desmontado, peça por peça, como um mecanismo, a cabeça de um lado, as
pernas a uma légua de distância. Também isso dura vários meses. Recomeça-se então a
dormir, com um sono que não se conhecia antes. Digo "se"... Naturalmente, falo sempre de
mim. Essa forma impessoal se origina do fato de que não se é mais do que um número.
Muitas vezes me pergunto se não existe, entre mim e minha forma exterior, algo de terrível,
de morto. É idiota, não acha? O sono de que falo tem justamente isso de particular:
dissolve a forma. Parece que não se tem mais contornos nítidos, que a pessoa se coagula,
encarquilhada sob o aspecto de uma massa inconsistente, em putrefação. Sente-se, em si
próprio, um cheiro de podridão, compreende o senhor? Essa sensação nos penetra até
durante o sono. Agora que isso passou para mim, não é extravagante pensar como tudo
acaba passando? P-a-s-s-a-r, sinceramente, não é horroroso? Quando isso passou, imaginei
lentamente que estava há muitos anos só na minha cela. Como, perguntava eu, só? Onde
estão os outros? Onde estão os homens? Onde está o mundo inteiro? Tinha a impressão
exata de que despertava da morte. Onde estão os homens? O vazio me causou medo. Tive
medo do meu isolamento e da minha solidão em face de mim mesmo. Comecei a falar alto.
Surpreendi-me repetindo durante meia hora a mesma frase. As ocupações automáticas que
me concederam em nada me auxiliaram. Da mesma maneira, podia meter todos os dedos
na boca, um após o outro. Foi nesse momento que solicitei livros. Deram-me. Obtive
autorização para escrever. Isso me auxiliou durante oito meses. Durante esse tempo,
dediquei-me a um trabalho intelectual. Fiz uma experiência curiosa. Aparentemente, meu
trabalho era exatamente idêntico ao de antes, o mesmo que na vida comum. Utilizava-me
das mesmas palavras, possuía o mesmo estilo, perseguia os mesmos pensamentos e tirava
as mesmas conclusões. Mas, tudo isso não era senão aparência. Na realidade, tudo estava
mumificado; parecia que um autômato se aplicava conscienciosamente em copiar o
verdadeiro Leonardo Maurizius. Ao que fazia, faltava amplitude, faltava vida. Quando o lia e
relia, nada encontrava para corrigir. O plano era bom, as ideias lógicas e, às vezes mesmo,
originais; minha memória funcionava impecavelmente e permaneci muito tempo sem
descobrir a causa dessa contrariedade, até o dia em que verifiquei que toda minha atitude
era uma contrafação. Maurizius representava o papel de Maurizius. Nada se pode imaginar
de mais angustiante. Representava, servindo-se dos conhecimentos, dos resultados
adquiridos em uma outra existência na qual fingia ainda acreditar, da qual aceitava como
verdadeiras e vivas expressões, as construções de frases, as ideias diretrizes e os princípios
científicos. No entanto, não eram senão cadáveres, só palpitando vida artificial quando lhes
consagrava energia, um trabalho que não servia, sabia-o perfeitamente, senão para iludir-
se sobre si mesmo. Na realidade, nada mais havia. Era tão desolador que precisava reunir
toda minha coragem para chegar ao fim da tarefa quotidiana. Apesar de tudo, consegui
ainda realizar qualquer coisa, embora fosse uma produção mumificada. O senhor conhece
o nojo invencível que se experimenta, as censuras que se faz a si próprio em face de uma
obra que é o resultado da própria atividade, apenas, e à qual a necessidade de criar
permaneceu alheia? Tem-se a impressão de haver mentido até a Deus. Um dia, senti-me
incapaz de continuar. Lembro-me que foi na sexta-feira santa de 1913. Levantei-me e atirei
minha pena na lata de lixo. "Acabou-se, acabou-se" - pensei e senti-me tão enojado que
vomitei. Durante muitos dias, andei pela minha cela como se procurasse alguma coisa.
Depois, recomecei a falar só. Em seguida, pus-me a ouvir à parede. Aplicava golpes contra
a pedra e colava o ouvido. Outras pancadas me respondiam, mas não as compreendia.
Comecei a cantar; o guarda veio e proibiu-o. A noite, esmurrava o leito. Às vezes, andava de
um lado para outro na obscuridade e gritava certos nomes, sempre os mesmos: Cristovão,
João, Max e imaginava pessoas, pessoas quaisquer que assim se chamavam. A cela crescia,
tomava proporções de uma sala, depois se estreitava até parecer com uma lata de
conservas; o teto me roçava a cabeça, o assoalho ficava a vários metros de distância dos
meus pés de modo que me balançava no ar como um enforcado. Veja o senhor, todas as
oportunidades se oferecem para a loucura, o bom-senso só possui uma à sua disposição.
Tentava calcular o número de raios que um círculo pode ter, o número de estrêlas do céu.
Perguntava-me se seria possível copiar todas as obras de Homero na face interna da porta.
E contava e calculava, indefinidamente. Experimentava contar os fios do cobertor de lá, os
vestígios das moscas sobre as vidraças, os grãos de arroz na minha sopa. Recitava o Pater
começando pelo fim e ensaiava fazer o mesmo com o Canto do Sino de Schiller, durante
dias inteiros, até que o medo de perder a razão me fez uivar como um cão. Ouvia sempre
ruídos de correntes, de passos. Quando o inverno chegou, lá pelos fins de novembro — não
se espante de me ouvir sempre indicar datas, preciso seguir a ordem cronológica se não
quiser perder de vista a seqüência dos acontecimentos — no fim do ano, pois, caí doente,
gravemente doente. Fiquei na enfermaria com seis outros detentos. Três faziam parte da
minha turma e eu os via diariamente no passeio. Todos seis eram bandidos perigosos. Um
dos que não conhecia tinha uma ferida aberta na fronte e podia-se ver o seu cérebro,
levantando o curativo. Estava proibido de falar. Não obstante, às vezes conseguimos trocar
algumas palavras. Na enfermaria, não usavam máscaras. Nessa ocasião, ainda as usávamos
na oficina, na capela e no passeio. Dois estavam condenados à perpetuidade, mas um já
havia cumprido vinte anos e esperava ser libertado dentro de cinco anos. Falava nisso
constantemente, como se cinco anos não fossem mais que cinco dias. Um outro havia
chegado recentemente de uma prisão do grão-ducado de Bade. Da janela da sua cela,
assistira, num dos últimos dias, a uma execução capital. A impressão fora tão atroz que
ainda lhe causava freqüentes crises de nervos. Eu examinava esses indivíduos, observava-
os como um explorador que aporta a uma ilha deserta e aí encontra uma raça
desconhecida. Um pensamento me impressionava: havia sete anos que eu estava na prisão
e, entre os detentos, não existia nenhum que conhecesse, por pouco que fosse. No entanto,
eram homens, eram a minha "gente". Acontecia-me ouvir um doente delirar num quarto
vizinho; havia um outro que soluçava dia e noite. O médico dizia que era um simulador,
mas foi preciso logo depois transportá-lo para um asilo de alienados. Meu vizinho de leito,
um tipo pequeno e ruivo, contou-me uma porção de coisas, sempre em voz baixa, sobre ele
e seus companheiros. Isso me abriu os olhos. Percebi que se continuasse a levar aquela vida
por um ano ainda, seria preciso, no final, me trancafiarem também numa solitária. Eu
tremia. Por que cuidar tanto do futuro? Por que querer tanto viver? Mistério. De repente, o
senhor me acreditará se quiser, a vida readquiriu um sentido. Quando cessei de trabalhar
para me destruir, uma aparência de personalidade brotou em mim, timidamente, como
uma débil ervazinha. 
 IX  

  — "Quanto tempo o senhor permaneceu na enfermaria?" — perguntou o barão


Andergast. Preocupa-se menos em obter uma resposta do que ouvir a própria voz. Quer-se
certificar de que ainda pode falar. — "Nove semanas" — responde Maurizius. — "Quando
fiquei bom e voltei para a cela, pedi uma audiência ao diretor e exprimi-lhe o desejo de ser
empregado dois ou três dias por semana na cozinha ou na limpeza dos corredores.
Recusou. É um princípio que se tem, o de recusar todos os pedidos. Mas, um mês mais
tarde, após a rebelião e a visita do ministro, concederam". — "Eu me lembro" —
acrescentou o barão Andergast cobrindo os olhos com a mão esquerda, na qual brilhava um
diamante — "eu me lembro dessa rebelião. Uma triste aventura." — "Sim, se quiser, uma
triste aventura!" — "O senhor, naturalmente, não tomou parte?" — "Não." — "Seis homens
foram mortos a tiros, se a minha memória não me engana" — "sim, é perfeitamente exato.
Seis foram mortos, vinte e três feridos." — "Como aconteceu?" Maurizius teve um pálido
sorriso. — "Talvez o pão estivesse bichado" — replicou, irônico. Tem o ar de quem se diz em
aparte: — "Isso que estou dizendo ou nada é a mesma coisa." Realmente, o barão, ainda
dessa vez, perguntou apenas por perguntar, para ocultar o fundo de seu pensamento. Na
verdade, o procurador-geral havia chegado ao ponto de não mais observar as formas usuais
(no que se refere a atitude, posição, distâncias, perguntas), senão por uma crispação de
espírito, como se se agarrasse com todas as forças às últimas amarras que o sustentam
antes de mergulhar no caos. É quase impossível definir o estado em que se encontra. Quer,
quer a todo preço que Maurizius continue a falar e, ao mesmo tempo, receia o que vai vir a
ponto de ser tentado a tapar os ouvidos. Encara a possibilidade de desviar a conversa para
um terreno neutro (comparado ao assunto atual, a discussão do processo, do crime e de
tudo quanto com ele se relaciona, parece-lhe um terreno neutro), mas sente quanto seria
covarde e fraco se o fizesse. Gostaria de partir e, no mesmo instante em que toma essa
resolução, vê quanto é absurda, irrealizável. Inexplicável desejo o retém na cadeira,
incompreensível abatimento o torna incapaz de agir metodicamente. Observa o rosto sobre
o travesseiro e não se pode afastar. Quer olhar a hora e não chega nem mesmo a levar a
mão ao colete. — "Infligiram aos culpados os mais cruéis castigos" — murmura Maurizius.
— "Esse acontecimento provavelmente aumentou seu interesse pelos seus companheiros?"
— pergunta o barão sem entusiasmo. Maurizius desliza sobre ele um olhar extinto, como
que paralisado. — "Sim, esse acontecimento, os pães bichados e a carne infecta" —
completa em tom sarcástico. O barão Andergast se zanga: — "Isso nunca aconteceu; tem-
se todo o cuidado." Maurizius levanta os ombros: — "Bem, o senhor aceite isso em sentido
figurado" — retrucou bruscamente — "mas, quanto aos bichos no pão, existem." 
 Fica pensativo por longo tempo, depois torna a gaguejar como nas primeiras entrevistas.
Volta a se ocupar com os castigos desumanos, as duchas geladas, o açoite, a camisa de
força, o encarceramento nas trevas. Suas pupilas se dilatam, tornam-se duras e negras
como o azeviche. Sacode a cabeça para a direita e a esquerda, torturado, levanta-a, para
em seguida deixá-la cair sobre o travesseiro de palha. Pronuncia um nome, o de Klakusch, o
do guarda Klakusch. Parece ligá-lo a um acontecimento decisivo. Mas, qualquer coisa ainda
se passara antes (não é fácil situar-se em meio das lembranças que evoca, indo para frente
e depois para trás; percebe-se que tem dificuldade em não confundir os diferentes
períodos, principalmente depois que terminara sua reclusão celular e que o vazio que
sentira se povoara de figuras). Como circula livremente pela prisão dois dias na semana,
encontra outros detentos. É curioso constatar quanto se preocupa com eles, sobretudo,
coisa extraordinária, com a ralé, com os chamados incorrigíveis. É uma fascinação sinistra
que, como uma sede abrasadora, o atrai. Pode-se ficar deslumbrado pelas trevas? Talvez
experimente volúpia intelectual em observar que, nesses abismos empestados, tudo
quanto aquece e ilumina o mundo, ao qual pertenceu outrora, está carbonizado. As
conquistas do espírito, as pesquisas morais, a arte, a filosofia, não são mais do que restos
carbonizados, desfigurados. Um traço nítido separa a humanidade em duas partes: a
superior e a inferior. Na inferior, a abjeção reina, absoluta. Encontrara duas ou três centenas
de homens terríveis pela semelhança na depravação, indivíduos que, à margem da
sociedade, postam-se à espreita, como tigres na selva. O mal não é tramado, nem é
voluntário. Está ali, simplesmente. As faces devastadas por todos os vícios imagináveis. Não
há rostos; há queixos cortados por golpes de espadas. Todos são tipos dignos de observação
para a patologia criminal. Pode-se duvidar que possuam aquilo que se denomina alma.
Destinados ao mal desde o nascer, medem o valor da vida pelos desejos e apreciam as
coisas deste mundo pelo perigo que correm para adquiri-las ou destruí-las. A lei? Um
farrapo de papel. Os deveres para com o Estado e a sociedade? Não tomam conhecimento.
A religião? Idem. Os meios de vida? Uma garantia contra a polícia. A prisão? Coisa
perfeitamente natural. O amor? Não faltam prostitutas. O sofrimento? Embriaga-te,
imbecil! Pais, mulher, filhos? Ninharias! Merecem um pontapé bem aplicado. Dissolução!
Trevas! O fim de tudo. 
 Podiam crer nele. Maurizius expõe tudo isso de tal modo que se adivinha uma
contracorrente oposta, como um defensor que, pela antítese, prepara a tese. Conhece
tantas coisas que tiveram de passar pelo seu coração antes que as compreendesse, que os
sinais de sua profunda comoção se assemelham a ataques de epilepsia. Mas foi talvez essa
comoção que o salvou. Era isso sem dúvida que queria dizer, ao falar da personalidade que
brotou timidamente nele, como débil ervazinha. Foi na segunda metade do ano de 1915 - a
guerra começava então a impelir a turba para as prisões — que o guarda Klakusch surgiu
em sua vida. Vinha de Cassel; conseguira sua transferência. Tinha uma barba patriarcal
alourada que lhe cobria toda a cara e descia até a cintura, um nariz chato, olhinhos
vermelhos e lacrimosos. Usava sempre o boné enterrado na testa, aspecto carrancudo. Às
vezes ria sozinho durante alguns instantes, automaticamente ou com maliciosa alegria,
sem que se soubesse por quê. Estava encarregado do serviço na galeria onde se situava a
cela de Maurizius. — "De início, achei-o apático" — confessa Maurizius — "permanecia às
vezes cinco minutos na porta a me olhar com seus olhos redondos, depois estalava a língua
e ia embora. Era sobretudo esse estalo de língua que me irritava. Um dia, entrou: — "Ouvi
dizer que o senhor era um homem instruído, uma espécie de sábio. Então, o senhor poderá
explicar-me que vem a ser um criminoso?" Olhei-o embaraçado. "Como, que quer o senhor
dizer?" — "Ora" — respondeu — "o senhor compreende, vem cada ideia na cabeça da
gente!" — "Que ideias?" — perguntei. — "Ora, ideias!" — replicou, enxugando os olhos
lacrimosos. — "Por exemplo,  o 316. Um jovem incapaz de fazer mal a uma mosca.
Verdadeiramente comovente. Assassinou a amante que o tratava de modo incrível. Quando
sair, ao fim dos oito anos que lhe arrumaram nas costas, será um sujeito acabado. A
anemia ou a tuberculose, o senhor sabe bem, são as doenças daqui. Fora isso, que é que
poderá aprender aqui? O senhor já o viu? É esquisito que esse rapaz seja um criminoso. É
realmente esquisito." Estalou a língua e foi embora sem esperar minha resposta. "Que
diabo de sujeito será este?" — perguntei-me. Não cessava de quebrar a cabeça a seu
respeito. É possível que alguma coisa em mim lhe tenha agradado. No começo, suspeitei
que quisesse lançar verdes para colher maduros; talvez a língua lhe fizesse cócegas. Mas
minhas dúvidas e suspeitas não duraram muito. Era um homem esquisito. Tinha a
aparência de um ingênuo e parecia bastante insignificante. Mas, depois, quando se
conversava um pouco com ele, tinha-se a impressão de que nada neste mundo lhe era
desconhecido. Bastava interrogá-lo sobre qualquer assunto. Mas, somente a prisão o
interessava e os presidiários eram seu tema predileto. Tinha sessenta e quatro anos, dos
quais trinta e cinco de serviço em prisões. Vira passar legiões de criminosos e estava
melhor informado sobre métodos judiciários e processos de aplicação de pena do que
muitos magistrados altamente colocados. Entretanto, não se vangloriava disso, nem
também de sua maneira de cumprir o dever, da dificuldade do seu serviço ou da sua
experiência. Não se envaidecia com coisa alguma. Quanto à insondável compreensão de
uma multidão de fatos, parecia nem mesmo suspeitar de sua existência. Podia-se escrever
um livro sobre ele sem conseguir dar uma ideia da espécie de homem que era. — "Gostaria
de saber" — disse-me um dia — "por que o senhor vive sempre tão triste; sempre digo a
eles: vocês têm uma boa cama, telhado em cima da cabeça, comida à vontade; que mais
lhes falta? Vocês não têm preocupações, amolações, não precisam esfalfar-se; que querem
mais?" Respondi-lhe: — "Pobre homem, então você não sabe que estas consolações... você
não acredita nelas." Ele se endireitou e disse: — "Não, é verdade, o senhor tem razão." —
"Muito bem, mas então, para quê?" — perguntei. — "Sim, para quê?" — repetiu ele — "Se
pelo menos se soubesse. Mas, veja o senhor, os juízes não podem agir de outra forma; é
esse o mal: quando um juiz condena, condena como homem a outro homem, — isso não
devia ser." — "Sinceramente" — perguntei espantado — "você acha que não devia ser?" —
"Não, isso não devia ser;" — repetiu num tom que jamais esquecerei. — "Um homem não
tem o direito de julgar outro homem." — "E o que pensa sobre o castigo?" — objetei — "É
preciso haver castigo, isso vem desde que o mundo é mundo." Ele se inclinou e disse-me ao
ouvido: — "Então é preciso destruir o mundo e criar pessoas que pensem diferentemente.
Desde a infância, metem-nos à força essas coisas na cabeça, mas elas não têm nenhuma
relação com o homem que Deus criou. É uma mentira. Aquele que pune, mente a si próprio
e, deste modo, acredita-se livre de pecado. Esta é a verdade. Mas, não vá repeti-la, o diretor
me poria na rua." Achei aquilo muito extraordinário. Passei a aguardar com impaciência a
hora de sua vinda. Relatava-me tudo quanto se passava no estabelecimento. Vi-o, uma vez,
numa agitação fora do comum que se manifestava por numerosos estalos de língua. —
"Acabam de trazer dois rapazotes" — contou-me. — "Arrumaram-lhes quatro e cinco anos
de prisão por furto a mão armada. Dois vagabundos. Há dois dias que não comiam;
caminhavam sob a chuva; próximo a uma aldeia, depararam com um bêbado numa valeta
e tomaram o seu dinheiro, três marcos e meio. Nove anos de prisão por três marcos e
meio." Agarrou-me pelo ombro e sacudiu-me como se tivesse sido eu quem houvesse
pronunciado o julgamento. Ou como se eu pudesse fazer alguma coisa. — "Você está
vendo, Klakusch, em que mundo vi- vemos." Ele me olhou, as sobrancelhas franzidas: —
"Eu vou-lhe perguntar uma coisa a respeito dos homens e de seus atos: não há diferença
entre um homem e o seu ato?" — "Não," — respondi — "o ato não é o homem, e é nisso
que está o erro." Ele me largou e afastou-se murmurando: — "É isto mesmo, o ato não é o
homem." De repente, voltou. — "Ontem, conversei com o 291" — recomeçou — "está
sempre sentado ruminando seus pensamentos. O verdadeiro tipo do condenado. Cometeu
um incesto. Sua mulher sempre o traiu com outros homens. Deixou, não ousou protestar;
amava-a demais. No fim, a carne não lhe dava mais tréguas; tinha uma filha bem bonita,
leviana, no gênero da mãe. Parece que ela o provocara; a mulher descobriu tudo e para se
livrar dele, denunciou-o, como se faz sempre, nessa classe de pes- soas. Perguntei-lhe: —
"Você fez isso, na verdade?" Ele não entende. — "Então! vamos, diga" — disse-lhe batendo-
lhe no peito. — "Sim, fui eu" — respondeu timidamente. — "Então você é culpado?" —
disse eu. E ele: — "Sim, mas para essas coisas não há juízes." — "Como?" — perguntei. —
"Eu não reconheço juiz algum" — retrucou o tolo. — "Talvez não seja tão tolo assim,
Klakusch" — protestei. — "É possível" — concordou — "é possível, mas quer que lhe diga
uma coisa? Esse, é porque se tornou malvado que voltou a ser bom; já vi disso muitas
vezes. Com esses tipos, nunca se chega a uma conclusão. Pode-se estudá-los cem anos,
nunca se chega à conclusão. Há os que chegam a dizer, em vez de se arrependerem do
crime: "Eu não tive sorte", como se se tratasse de uma loteria em que todos jogassem,
como se somente existissem sobre a terra ladrões, assassinos, trapaceiros. O que não é
preso, tira a sorte grande. Não têm senso moral, não é verdade? E aliás, diga-me, onde está
o senso moral?" Olhou-me com uma expressão finória, mas não lhe pude responder. De
repente, recomeçou gravemente: — "Pois bem! posso-lhe ensinar alguma coisa; agora, eu
sei o que é um criminoso." — "E o que é?" — perguntei curioso. — "É aquele que trabalha
para destruir a própria vida. Esse é um criminoso." — "É verdade, Klakusch" — disse — "é a
triste verdade." Ele me fez com a cabeça um sinal de amizade e acariciou-me os cabelos.
Alguns dias mais tarde, anunciou-me uma novidade, antes mesmo de fechar a porta. Todo o
estabelecimento já sabia. — "O 422 confessou." Durante três anos e meio, tinha guardado
obstinadamente silêncio. Era impossível arrancar-lhe uma palavra; ia e voltava como um
leão na jaula, rangendo os dentes raivosamente; esfolava os dedos de tanto arranhar as
paredes, maldizia Deus e os homens. Naquela manhã, às cinco horas, tinha subitamente
chamado o pastor e, espumando, lançara-lhe ao rosto todo o seu crime; depois, atirara-se
num canto da cela sem dizer palavra e ainda estava lá. Parecia-me assistir à cena. Quando
Klakusch narrava um fato como esse, eu o imaginava nos detalhes mais ínfimos. E não o via
apenas: ficava gravado em mim como uma obsessão. Contou-me, uma vez, por exemplo,
que numa noite de inverno, muitos anos antes, um ex- condenado viera procurá-lo e
suplicara-lhe de mãos postas que o escondesse em seu quarto ou em qualquer parte da
prisão. Não tinha para onde ir, estava sem dinheiro, e não podia responsabilizar-se pelo que
pudesse fazer. Era desolador vê-lo transtornado, desesperado. Klakusch conversara com ele
a noite toda, reconfortara-o mais ou menos, dera-lhe algum dinheiro e finalmente
despedira-o, recomendando-lhe muito: — "Sobretudo, não faça mal a ninguém." O tom em
que narrou o acontecimento tornou-me incapaz de comer qualquer coisa durante o dia.
Ainda o ouço dizer ao desgraçado: — "Meu pobre rapaz" e "não é preciso se atormentar
tanto" e estas palavras: "Sobretudo, não faça mal a ninguém." Um dia, falávamos do
monstro que estava aqui havia quatro anos, Schneider, o degolador de mulheres. Contou-
me que, na reunião dos guardas, estavam todos muito atrapalhados, por não saberem o
que fazer com ele, dados os seus modos intratáveis. Observei que um ser como aquele não
era mais um homem e que não devia ser tratado como homem. Klakusch respondeu que
assim parecia ser realmente e que, se prometessem ração dobrada a Schneider para
assassinar seu irmão, apostava tudo como não hesitaria um momento. — "Você está vendo"
— respondi. — "É possível" — retrucou ele — "mas uma coisa é certa: quando estava no
ventre da mãe, ainda não era mau." E como me conservasse calado, acrescentou: — "Se
ainda não era mau, no ventre da mãe, é que é um homem como todos nós, como o senhor,
como eu, como o diretor. O que reprovo nele não me confere o direito de julgá-lo." — "Que
quer você dizer com isso, Klakusch, que entende você por justiça?" — perguntei. — "Na
verdade" — replicou — "é uma palavra que não se devia jamais pronunciar." — "Por que,
Klakusch?" — "É uma palavra que parece um peixe; escapa-nos quando a seguramos." E
logo: — "Oh! se se soubesse dizer o que é preciso dizer, quanta coisa se conseguiria fazer!
Mas ninguém o sabe." Alguns dias depois, tive uma altercação no corredor com um detento
que me era muito antipático, um indivíduo retraído, disfarçado, que me repugnava por
causa do seu crime: sendo adjunto numa escola, abusara dos meninos. Contei nossa
disputa a Klakusch, que me ouviu tranqüilamente e depois me disse: — "Eu vou-lhe dar um
bom conselho, não lhe custará quase nada segui-lo: experimente tratá-los delicadamente;
o senhor não imagina o que se obtém. Um pouquinho de delicadeza. O senhor verá, é como
a mandrágora que, segundo dizem, tem a propriedade de abrir as fechaduras mais sólidas.
Experimente." Como um aluno obediente, tentei e verifiquei que tinha razão. Um sorriso
amável bastava para abrandar imediatamente qualquer carranca. Fiz experiências
estranhas. Esses indivíduos não acreditavam mais possível serem tratados como se trata
"fora" qualquer conhecido. Não quero dizer ser amável ou polido; isso não tem importância
e poderia mesmo torná-los desconfiados. O que importa, é demonstrar-lhes alguma
consideração, alguma deferência. Não sabem mais o que é, olham a princípio espantados
sem saber o que dizer; aconteceu-me ver um detento que se voltou e se pôs a chorar como
uma criança. O senhor dirá, naturalmente, que é um excesso de sentimentalismo. Nesse
caso; acharia melhor não continuar a falar. De fato, seria mais prudente. Isso serviu para me
aproximar diariamente de Klakusch. Quando tinha um dia de folga, fazia-me uma falta
horrível; considerava-me infeliz. Também ele, cada vez mais me demonstrava afeição,
apesar de exteriorizá-la raramente. Disse- me, uma vez, que jamais teve um filho e que, se
tivesse tido, gostaria que se parecesse comigo. — "Não tem importância para você" —
perguntei-lhe — "o fato de eu ser um forçado, um condenado à perpetuidade?" — "Não" —
respondeu-me — "tratando-se do senhor, isso não me faz a menor diferença!" Foi então
que tomei a resolução de fazer-lhe outra pergunta; apenas, não sabia como proceder, ou
antes, temia fazê-la. Efetivamente, foi o fim. Há quatro anos, isso, Há quatro anos que
morreu." 

 
X

  — "Eu não compreendo" — disse o barão Andergast hesitante — "a sua morte... tem
qualquer relação com a pergunta?" — "Sim, justamente; já vou contar. Em seguida... terei
terminado. Pensei depois, muitas vezes, nas estranhas relações que se pode ter na vida.
Não importa que algum homem de "fora" denominasse de extravagantes e romanescas
minhas relações com o guarda Klakusch. Talvez mesmo pretendesse que só existiram na
minha imaginação e, realmente, se um cético obstinado me pusesse contra a parede,
talvez não visse nisso tudo senão um sonho. Não é mais ou menos isto que se passa com
tudo quanto nos acontece? Ao fim de certo tempo, transforma-se num sonho. O indivíduo a
quem o fato aconteceu não é mais o mesmo que aquele que se recorda. É possível que
tenha sido várias vezes vítima de alucinação, quando o velho de barba alourada estava
aqui, na minha cela (já era esta), à hora do crepúsculo, e me parecia ter de novo alma de
homem, porque ele tinha uma. Aí está o essencial. Quando só, o homem não tem alma, o
senhor pode acreditar. Donde se segue que também não tem Deus. Quando penso
naquelas noites! Sua voz ainda ressoava aqui, eu podia continuar conversando com ele,
como aliás ainda costumo fazê-lo. Para mim, ninguém morre, e muitas palavras que me
dissera e conservei vieram-me verdadeiramente da noite e da ausência. Um cérebro como o
nosso (bate na testa com o dedo) assemelha-se ao gongo de um templo chinês. Quando
tocado, com a ponta do dedo, ecoa como um sino de catedral no fundo da água. Mas, para
precisar os fatos, se o senhor achar nossas relações romanescas ou duvidar delas, não se
esqueça de que uma prisão é um terreno onde crescem plantas que os senhores ainda não
classificaram e onde se verificam fatos que, é preciso admiti-lo, pertencem a um mundo
fora de todas as normas. Tudo é tão pequeno e tão vasto; tão amplo e tão vazio; aquilo que
se chama destino anda próximo de nós! Precisei definir bem este aspecto. Ignoro se tem
sentido para o senhor. Já durante muitos dias — refiro-me naturalmente às horas em que
podíamos falar-nos — conversara com Klakusch sobre o estabelecimnto de uma maneira
geral. O ano seguinte à revolução trouxe vários melhoramentos, abrandamentos, que
despertavam em mim certas esperanças das quais Klakusch não compartilhava. Achava
que era trabalho perdido juntar passas à massa quando a farinha não prestava. Era preciso
procurar o mal em outra parte. As pessoas não o queriam perceber; era uma questão de
medida. — "Quando alguém, um pobre diabo tão bom como os outros, comete um erro do
tamanho de um dedo" — disse ele — "arrumam-lhe com um castigo do tamanho de um
braço, sem prestar atenção à pessoa que punem! E quem tem o direito de punir, sem
tomar em consideração a pessoa? É um direito divino." No começo, não o compreendi.
Finalmente, vi que não falava da pessoa exterior, pois esta é tomada em bastante
consideração, mas da pessoa moral. O nó da questão é saber até onde vai a
responsabilidade; sob este ponto de vista, não há dois homens iguais. Objetei que há muito
tempo renunciaram à ideia de punir por punir, de usar represálias ou meios de intimidação.
Trata-se apenas de proteger a sociedade e corrigir o culpado. — "Proteger a sociedade é tão
quimérico como querer corrigir o culpado; os que conhecem a questão, só podem sorrir.
Como proteger um louco que arranha a própria cara com as unhas? Esse louco é a
sociedade; arroga-se o direito de proteger o que, na sua demência, ela própria destrói
continuamente?" Também dizia: — "Pára, oh! sociedade, é preciso agir diferentemente."
Foi numa tarde de dezembro que discutimos isso. A neve que caía desde manhã tornava
minha cela mais sombria; antes de partir, Klakusch disse: — "Não tenho mais gosto por
nada, os anos pesam nas minhas costas. Sei coisas demais. Nada mais pode entrar-me na
cabeça ou no coração." Quando, ao anoitecer, voltou para despejar meu balde — segundo o
regulamento, eu mesmo deveria fazê-lo, mas sempre o fazia em meu lugar — assim, que o
avistei, juntei toda minha coragem e perguntei-lhe: — "Diga-me, Klakusch, você acredita
que aqui haja pessoas que tenham sido condenadas injustamente?" Minha pergunta o
apanhou desprevenido e respondeu hesitante: — "Não é impossível." — "Quantos inocentes
condenados injustamente você conheceu durante sua carreira" — perguntei ainda — "falo
daqueles cuja inocência era evidente?" Refletiu um momento, depois contou uos dedos
murmurando os nomes em voz baixa: — "Onze." — "E você acreditou na inocência deles
assim que os conheceu?" — "Oh! não" — replicou — "oh! não; se acreditasse e tivesse que
vê-los definhar assim, se tivesse certeza!..." Insisti: — "Então, se tivesse certeza, Klakusch?"
— "Então, sinceramente, não poderia continuar vivendo." Minha cela já estava às escuras.
Era com dificuldade que conseguia ver seu vulto. Arrisquei, então, a pergunta que me
angustiava e à qual queria chegar: — "E eu, Klakusch, você me acredita culpado ou
inocente?" — "O senhor faz questão da resposta?" — perguntou. — "Queria que você me
respondesse francamente, sinceramente." Refletiu novamente., e disse: — "Está bem,    
amanhã cedo o senhor terá minha resposta." Na manhã seguinte,     tive a resposta.
Klakusch se enforcara nas grades da sua janela."     Maurizius volta a face para a muralha e
permanece imóvel.     Um quarto de hora se escoa em meio do silêncio absoluto que reina  
  na cela. Ninguém sabe quanto tempo este silêncio lúgubre duraria,  se não houvessem
batido na porta blindada. Era o médico do estabelecimento que fazia sua visita. Informado
da presença do alto magistrado, vinha solicitar licença para examinar o doente. Não
permaneceria muito tempo. Um senhor alto entrou, com óculos de ouro sobre o nariz
pequeno e chato; saudou secamente, como um oficial de reserva, tomou o pulso do
prisioneiro, pronunciou algumas palavras de satisfação, cumprimentou novamente e foi
embora. 
 O barão Andergast se levanta. Parece-lhe haver ficado dezenove anos sentado naquela
cadeira e esses dezenove anos o deixaram velho, velho, extenuado, gasto. Seu olhar tímido
cai sobre o detento que, de olhos fechados, jaz imóvel, com as mãos sobre o peito. "Eu
precisava dizer qualquer coisa" — pensa o barão. "Não" — retruca categòricamente outra
voz nele — "abstem-te  de qualquer palavra." Apanha o chapéu e as luvas de couro escuro
que deixou há dezenove anos sobre a mesa. Evita fazer qualquer barulho. Com o chapéu e
as luvas de couro na mão, o barão Andergast, procurador-geral, sai furtivamente, qual um
ladrão, da  cela do detento 357... 
 O automóvel o espera. — "Vamos depressa" — diz ao chofer. E deixa-se cair num canto
do carro. Seus olhos violeta, desmesuradamente abertos, fixam a chuva que cai. Não vê,
não olha; não pensa, não sente. Regressando ao gabinete, às três horas da tarde, envia ao
ministro da Justiça longo telegrama de duzentas palavras pedindo insistentemente indulto
imediato para o detento Maurizius.
TERCEIRA PARTE
A MORTE IRREVOGÁVEL
CAPITULO 14
 
I

AO DESCER DO TÁXI, Etzel sentiu uma vertigem. "Vamos, coragem" — disse consigo
mesmo. A luz dos globos elétricos deslizava pelo seu rosto como cera derretida. Quatro
andares com vinte e três degraus cada um fazem, ao todo, noventa e dois degraus. É
extremamente alto. Latas de lixo, garrafas vazias, latas de cal para rebocar as paredes. No
último pavimento reinava uma penumbra arroxeada. A porta do apartamento estava
aberta. Melita estava na entrada. Tinha sobre os ombros um xale verde, ridículo e tão
apertado que lhe dava o aspecto de um caniço. — "Veio alguém?" — perguntou Etzel
inquieto. — "Quem você queria que viesse?" — respondeu brutalmente. — "Alguém vem-
lhe visitar? Já veio alguém?" — "É verdade" — replicou Etzel — "nunca veio ninguém, mas
pode ser que ainda venha alguém." — "Com certeza alguém muito importante!" —
respondeu a menina — "Você parece ter belíssimas relações!" 
 No quarto, Etzel se deixou cair sobre uma cadeira, meteu as mãos nos bolsos e apoiou a
nuca no espaldar. Gostaria que houvesse luz, mas estava cansado demais para acender o
gás. Seu desejo, porém, foi atendido mais depressa do que esperava. A senhora Schneevogt
apareceu e manifestou espanto por encontrá-lo no escuro. Declarou calmamente que
gostava das trevas. Ela confessou achá-lo um rapaz original, acendeu o gás, e perguntou-
lhe se devia trazer comida. Como não houvesse tocado no almoço, iria requentá-lo. Ao dizer
isso, sua fisionomia irradiava a mais rigorosa honestidade. Etzel agradeceu; não sentia
fome. A senhora Schneevogt observou com ar apreensivo que sua aparência não lhe
agradava. — "Uma gripezinha sem importância" — respondeu displicente, cruzando as
pernas como um homem. Ela o aconselhou a se deitar e prometeu-lhe trazer água
açucarada bem quente, um remédio infalível. "Se pelo menos você sumisse, mulher
detestável!" Mas ela sentia necessidade de conversar ou, pelo menos, de se apoiar em
alguém em meio de suas contrariedades. Indagou se ouvira sua briga com Melita.
Recomeçara mais tarde com a intervenção do próprio Schneevogt que ficara em estado
lastimável. Etzel declarou que, de fato, ouvira a algazarra e acreditara numa discussão de
família. — "Se fosse só isso!" — suspirou a senhora Schneevogt. Como manifestasse desejo
de pô-lo a par da desavença, renunciou a qualquer resistência. As mãos secas, agitadas,
pareciam gesticular próximo de seus olhos.
 "Pois bem!" Na grande loja de modas onde Melita trabalhava, um empregado ficara
estropiado algum tempo antes, pelo elevador que funcionava mal. Trabalhava
provisoriamente na casa. Na realidade era um cantor de teatro de revistas caído na miséria
e de quem não tinham feito o seguro, como dos demais. Exigia indenização, reembolso dos
gastos no hospital. O estabelecimento negava qualquer responsabilidade, sustentando que
fora o responsável pelo acidente e apresentava o testemunho de vários outros funcionários.
Esses estavam dispostos a dizer tudo o que quisessem, pois receavam perder seu ganha-
pão. Somente Melita se recusava; e era ela justamente a principal testemunha. Na ocasião
do acidente, encontrava-se na gerência onde acontecera o desastre. E não se recusava
apenas a ficar do lado dos patrões: colocava-se nitidamente contra eles. Estava decidida a
jurar que havia dois dias já que o ascensor funcionava mal, que a vítima não era nem
negligente, nem estava embriagada como muitas pessoas afirmavam. Fora arrastada e,
meio segundo depois, tinham-na encontrado presa na cabina com os braços e os ombros
cobertos de ferimentos. — "Os patrões estão furiosos com o fato de ela se por contra eles"
— gemeu a senhora Schneevogt. É escusado dizer que ela e o senhor Schneevogt também
o estavam. Tinham deixado entender a Melita que a seção onde trabalhava seria suprimida
brevemente e que examinavam a possibilidade de nomeá-la chefe de um novo
departamento que iriam criar. — "O senhor compreende?" — perguntou a senhora
Schneevogt. Certamente Etzel compreende, apesar de sua cabeça estar girando;
compreende essa mistura odiosa de promessas e ameaças. — "Essa idiotinha não percebe
onde está seu interesse" — lamenta a senhora Schneevogt, torcendo as mãos. — "Nos
tempos atuais, então, em que é preciso bater muita calçada para encontrar uma colocação
conveniente!" A senhora Schneevogt estava nesse ponto de sua história sensacional
quando a porta se abriu bruscamente e Melita irrompeu no quarto. Saltou sobre a mãe
como uma gata furiosa: — "Você pode fazer o que quiser e esgoelar-se à vontade; não farei,
não farei, não farei!" Em seguida, voltando-se para Etzel, disse com voz aguda e rude: —
"Êles põem um pedaço de açúcar debaixo do nariz para que se faça uma covardia e que se
tire com isso de um infeliz, para quem a vida já não vale mais nada, alguns níqueis que não
chegariam nem para pagar as ostras que aqueles ricaços comem no almoço!" Devia-se
deixar intimidar? Que Mohl dê sua opinião, diga se é justo que se curve diante deles, e se
não é mais decente mandar tudo passear e ir-se afogar no rio? Atirou-se sobre o banco,
levantou os ombros angulosos, e rompeu numa crise histérica de lágrimas. — "Que mulher?
É danada!" — pensou Etzel tentando levantar-se. — "Vá embora" — disse imperativamente
Melita à sua mãe — "preciso falar só com ele." 
 Esperou que a porta se fechasse e disse a meia-voz, com ar sombrio: — "Esse homem
estará perdido se um advogado não o ajudar a conseguir justiça. Conheço um; parece
muito competente, chama-se J. Silberbaum e mora na rua Lottum. Mas não se mexe sem
receber um adiantamento. Empreste-me quarenta marcos, Mohl. Pagarei aos poucos. Estou
na penúria neste momento. Se os tivesse, não lhe incomodaria." Etzel esconde seu
embaraço. Somando tudo, ainda possuía oitenta e seis marcos. Aluguel do quarto e pensão
tinham sido pagos antecipadamente, mas teria certeza de, em oito dias, poder voltar para
casa? Talvez pudesse mais cedo ainda, talvez até mesmo dois dias depois. Tudo dependia
de duas coisas. Em primeiro lugar que Waremme-Warschauer viesse e fizesse uma
retratação. Depois, que ele o levasse a ponto de abrir sua cabeça e por seu cérebro à
mostra. Eis do que tudo dependia, e, naturalmente, não se tinha certeza de nada. E se
precisasse ficar esperando, desesperadamente só naquela cidade enorme, que poderia
fazer com quarenta e seis marcos? E ainda por cima, agora, com aquela diabólica febre no
corpo, via milhões de lantejoulas dançando diante dos olhos. Essas reflexões passaram pelo
seu espírito como um raio, enquanto Melita o examinava com olhar perscrutador e inquieto,
encolhida no banco e com os braços envolvendo os joelhos, sem se preocupar com a saia
curta que subira até o meio das coxas. Dizer "não" a quem apelava para ele em tais
circunstâncias? Impossível! Fechar a porta quando se podia salvar alguém? Impossível!
Usar de subterfúgios e escusar-se dizendo: — "Eu não tenho" — ou então — "Eu também
estou precisando?" — Impossível. Nesse caso, Etzel Andergast poderia muito bem ter ficado
ao lado da sua Rie comendo panquecas. Sim, para que então toda sua aventura? — "Está
bem, vou-lhe dar o dinheiro." Meteu a mão no fôrro do seu colete e apanhou sua carteira, já
regularmente usada, num bolso que ele próprio fizera e, retirando duas notas de vinte
marcos, entregou-as a Melita. Evidentemente, não acreditara que lhe desse o dinheiro, mas
pensara que nada se perdia em experimentar. Daí sua perplexidade. A pessoa, a condição
de Etzel lhe pareceram mais misteriosas, para não dizer mais suspeitas, do que nunca. —
"Sinceramente, você é um sujeito extraordinário" — disse, agradecendo. E logo, com um
resto de suspeita: — "Este dinheiro não é falso?" — "Não, não" — respondeu — vem de boa
fonte; é só o que lhe posso dizer." — "Bravos, muito obrigada" — replicou Melita guardando
as notas no seio e pondo-se de pé. — "Amanhã cedo irei ao escritório de Siberbaum. E
mostrar-lhe-ei o recibo." — "Não vale a pena." — "Vale. Você pode pensar que inventei
tudo." — "Para isso, você se teria dirigido, espero, a um outro qualquer." — "Você não quer
me dizer, Mohl, qual é a sua verdadeira ocupação?" — "Procuro um tio que fugiu com a
herança do seu pupilo." — "Hum! isso não me parece um trabalho muito rendoso." — "A
mim também não. Breve estarei na míngua." (Vê-se como Etzel, aquele "garoto iluminado",
tivera a feliz inspiração de adotar a linguagem do meio em que vivia.) — "Foi por isso que
você perguntou se alguém tinha vindo procurar-lhe?" — interrogou Melita com astúcia. —
"Seria o seu tio, ele próprio? Você acredita então que lhe virá trazer a comida no bico?" E
desatou num riso metálico. — "Não, é um outro quem espero. Um outro com quem
também tenho contas a ajustar. Também de boa família. Aliás, você me viu com ele, outro
dia, ouvindo jazz." — "Ah! aquele velho, barrigudo?" — "Justamente ele; se não vier, os
negócios correrão mal para mim. Tenho meus motivos para acreditar que virá. Se não vier
hoje, virá amanhã com certeza. Sabe onde moro. Uma vez mesmo, tomou nota do
endereço. Não tem tempo durante o dia; virá, pois, à noite. Quando chegar, faça-o entrar
imediatamente. Diga também à sua mãe para mandá-lo logo para meu quarto. Avise a
todos em casa; que todos lhe digam que eu estou... Compreende? É muito importante. Tão
importante como o Papa, compreende?..." — "Coitadinho!" — exclamou Melita assustada —
Você andou bebendo demais, ou então..." — "Eu me sinto apenas..." — gaguejou Etzel —
"um pouco tonto; porque as luzes estão dançando tanto hoje?" 
 Melita não perdeu tempo em palavras. Ajudou-o a se despir e, quando se deitou,
acomodou-o na cama com carinho. — "Nada de médicos," — implorou antes de mergulhar
num profundo sono febril — eu lhe peço, nada de médicos." — "Não tenha medo" — disse a
jovem para tranqüilizá-lo — isso também acontece a todos nós. E nem por isso se manda
chamar o doutor." E Melita pensou:  "Deve haver alguma coisa por detrás disso, para ter
tanto medo assim do médico." Mas Etzel lhe prestara um tão grande favor que resolveu
cuidar dele e da melhor maneira possível. Tinha uma pequena farmácia onde havia
antipirina. Dissolveu dois comprimidos em água e foi-lhe dando na boca, às colheradas.
"Belo rapaz" — pensava contemplando seu rosto esfogueado. 
II   

 Etzel passou a noite num estado vizinho da inconsciência, com pensamentos loucos se
perseguindo uns aos outros dentro de seu cérebro. Melita deixara a porta do quarto aberta.
De vez em quando, vinha com uma vela ver como estava passando. Não podia suportar a
luz e gemia suavemente, com a mão diante dos olhos. A pianola da escola de dança, do
outro lado do pátio, fazia o mesmo estrondo que um batalhão de cavalaria galopando sobre
um campo coberto de folhas de zinco. Aquilo não cessava nunca, nunca... A jovem da porta
da casa de Ghisels batia-lhe no rosto com uma buzina. Olhando de perto, verificava que
não era uma buzina, mas um saxofone, e o moço de óculos dizia: — "Eis uma ocupação que
conviria a um centauro, senhorita." Sua avó estava suspensa na corda de um balão como
uma equilibrista, e a senhora Schneevogt o ameaçava com o punho gritando, encolerizada:
— "Se eu tivesse a mesma renda que ela, faria o mesmo." — "Andergast, diga-me o ano em
que morreu o último Hohenstaufeu?... Mal. Sente-se." Uma mulher com uma mascara
negra, de braço com Trismegisto, caminhava ao longo de uma rua sinistra e deserta; uma
explosão fazia saltar os paralelepípedos pelo ar, o pai os recolhia no ar e guardava-os nos
bolsos como elementos de prova e dizia à mulher mascarada: — "Você é Ana Jahn; está
presa em nome da lei." Depois, Etzel passava sobre uma cidade num vagão de carga
aberto; os trilhos estavam suspensos no ar como fios; o vagão estava vazio, com exceção de
uma caixa de madeira que, fato curioso, era transparente e estava cheia de cabeças
humanas, como se fossem maçãs; reconhecia a cabeça do jovem Paalzow e a do negro
Joshua Cooper. Camilo Raff surgia repentinamente e gritava-lhe: — "Salvemo-nos!"
Agarrava-o pelo pulso e corriam ofegantes para uma porta que se podia fechar a qualquer
momento, e então, estariam perdidos... De manhã, Melita teve de ir para o trabalho e
confiou o doente à guarda de sua mãe. Mas, esta tinha que fazer compras de modo que
Etzel ficou só em casa durante a maior parte do dia. A febre declinara; sentia-se todo doído
e permanecia. estendido sem se mover, com os olhos semicerrados. Como todas as
crianças e rapazes que adoecem, comprazia-se em pensar na morte e lamentava-se
profundamente por causa de sua fraqueza e do abandono em que se encontrava. Uma
única circunstância tirava ao pensamento da morte uma parte de seu encanto suave e
melancólico; é que, sem dúvida, ninguém ficaria sabendo, se morresse ali numa horrível
casa de cômodos do Norte de Berlim, miseràvelmente, e sob pseudônimo. Nem sua avó,
nem Roberto Thielemann, nem a boa e cara Rie. E nem Trismegisto, também. Era
verdadeiramente desagradável; era absolutamente necessário que Trismegisto soubesse.
Era talvez a única possibilidade de ter mão sobre ele. Mohl, Edgar, de pais desconhecidos,
procedência desconhecida, seu cadáver pode ser visto no necrotério de Ploetzensee. No fim
de certo tempo, o cadáver é identificado e pessoas de luto o acompanham à última morada
com o coração contrito e a consciência pesada de remorsos. Aqui jaz Etzel Andergast, dito
Mohl, vítima de suas nobres aspirações, chorado por todos seus amigos espirituais. Etzel,
naturalmente, não suspeitava que, se sua imaginação fazia essa macabra encenação, era
porque a vida já estava retomando seus direitos. Os ruídos em casa, tanto em cima como
embaixo, as vozes, os passos que pareciam vir de um labirinto de galerias subterrâneas, a
vibração das vidraças, o latido dos cães, os pregões dos vendedores ambulantes, o ronco de
um avião, tudo isso pertencia claramente ao mundo real, na sua viva agitação. 
 Etzel levantou a cabeça e prestou atenção: tocavam na campainha. Depois de algum
tempo, novo toque: e, um momento depois, um terceiro, mais prolongado. Seu coração
bateu. Será possível?... Ao meio-dia? Sim, é possível. Ele dá aulas até onze horas e só chega
geralmente em casa da senhora Bokike ao meio-dia e meio. Etzel o sente até o fundo da
alma: é ele. Sorri; é um sorriso cheio de expectativa, de susto, de alegria inesperada, onde
se refletem todas as resoluções, esperanças, temores. Deve-se levantar e ir abrir? Não tem
pijama. A senhora Schneevogt ficaria escandalizada se encontrasse alguém em sua roupa
de baixo. Até que vestisse as calças, o outro talvez tivesse partido. Ouve vozes. Louvado
seja Deus, a senhora Schneevogt regressou. E é a voz dele, dele mesmo. Nenhuma dúvida.
Sua voz de baixo. Sua voz do peito. Sua voz de rabecão. 
 Warschauer-Waremme entrou, seguido da senhora Schneevogt, devorada de curiosidade.
Os braços erguidos como um exorcista, Warschauer se aproxima do leito: — "Então, Mohl,
pobre pequeno Mohl, doente de fato, seriamente doente? Andei pensando: por que Mohl
não aparece mais? Que poderá ter ele? Não vai, positivamente, ficar querendo mal a seu
velho amigo e se aborrecer por um gesto de impaciência... O que é que há? É a cabeça? A
garganta? Os pulmões? Posso lhe ser útil em alguma coisa? Febre? Poor fellow! Minha
distinta senhora, eis aí um excelente rapaz e espero que a senhora cuide dele, que o trate
com toda atenção." É um fluxo de palavras que nada pode interromper. Caminhava pelo
quarto, simulando piedade, consternação, solicitude. A senhora Schneevogt,
imediatamente dominada por ele, deu a entender, com ar ofendido, que ela e a filha faziam
tudo pelo doente. "Distinta senhora" — disse Warschauer. Achou entretanto que havia falta
de ar no quarto e escancarou a janela. Em seguida, voltou para junto de Etzel, colocou a
mão sobre sua testa, sobre o peito, resmungou algumas palavras com ar inquieto, fez `"tz,
tz, tz" , e os dois vidros pretos de seus óculos pareciam, sob a aba do chapéu — que
conservara na cabeça — os orifícios sombrios de dois canos. — "Faça-lhe um caldo, minha
senhora" — disse voltando-se para a senhora Schneevogt que, contendo sua respiração,
escutava e observava — "se possível, um caldo de galinha; mande buscar na farmácia um
purgativo, calomelanos ou óleo de rícino, e faça-o tomar." — "Sim, senhor Doutor" —
respondeu respeitosamente a senhora Schneevogt que o tomava por médico. Etzel não
pode conter o riso. Warschaúer ele próprio esboçou um sorriso amável. — "Veja, veja" —
disse alegremente — "como você está assanhado. Finalmente o gênio travesso volta à tona.
Vivos voco. Meu caro pequeno Mohl, agora vou deixá-lo; obrigações enfadonhas me
chamam; voltarei à noite para fazer-lhe utn pouco de companhia. Good bye, my dear." Fez
com a mão direita um gesto afetuoso e dirigiu-se para a porta. Atrás dele, as abas do
casaco cinzento abanavam comicamente o ar. A senhora Schneevogt o acompanhou no
corredor com um sorriso servil. 
 Etzel lançou um olhar furioso para a porta por onde ele saíra. "Sempre com a mesma
afetação insuportável" — pensou. — "Eu me pergunto onde quer chegar? Quererá enganar-
me, como de hábito, ou terá intenções especiais? Então, essa noite... Dessa vez, ficará
decidido... Quisera que já fosse meia-noite. Quisera que já fosse amanhã." Idealizou um
plano; mas, de que serve um plano contra um adversário como aquele? Não se tem tempo
nem para aplicar-lhe um golpe e já se está por terra. "O melhor meio para eu levar
vantagem" — refletiu — "é fazer-me de mais doente ainda do que estou, fingir um
excessivo depauperamento, proceder como se a moléstia atravessasse uma crise e não
pudesse passar senão quando sentisse o espírito e o coração livres do peso que me
esmaga." O plano está habilmente delineado. Todo o entusiasmo, a astúcia apaixonada, a
obstinação dos Andergast, acumulados naquele cérebro e naquela alma de dezesseis anos,
coalizam-se de um modo demoníaco para preparar a hora decisiva. Não recuou diante
dessa palavra repisada: demoníaco. O demonismo é a disposição fundamental das
naturezas capazes, na sua retidão inata, de agir de acordo com os princípios que
aceitaram, estejam elas revestidas de um leve verniz de intelectualidade ou,
desconhecendo nelas forças mais profundas, prevaleçam-se, como Etzel o fazia
espontâneamente, de não crer senão em ideias e não seguir senão a lógica. Essa
advertência é apenas uma medida de prudente precaução para não ter de estabelecer com
o demônio — personagem importuno, afinal de contas — relações por demais íntimas. 
 
III 

 Melita regressou às sete e meia e correu logo a saber de Etzel como estava. Respondeu
que se sentia melhor, o que a alegrou. Infelizmente, não podia ficar, acrescentou ela; os
empregados da casa em que trabalhava reuniam-se às oito e meia para tratar da questão
do homem do elevador. Estaria de volta às dez horas, e viria ver como ia passando. Falara
com o advogado Silberbaum, dera os quarenta marcos. A causa estava em boas mãos e
mostrou- lhe o recibo do advogado. Etzel nem lançou um olhar sobre ele. — "Minha mãe
vai-lhe fazer uma omeleta e chá também" — disse a jovem — "e amanhã você estará livre
desta amolação." Mostrava sabiamente um tom de camaradagem, de franqueza, que
contrastava estranhamente com suas maneiras agressivas, irritantes de antes, mas que não
causou grande alegria a Etzel, porque, logo descobrindo o motivo, achou que adquirira sua
benevolência por preço baixo demais. Refletiu sobre a "pechincha" e achou que era dar
atenção demais às pessoas criticar em semelhante caso seus sentimentos impulsivos. "Não
se tem a alma bastante simples" — pensou gravemente — "seria preciso que ela o fosse
mais. Parecemos um lápis cuja ponta, finamente talhada, se quebra assim se começa a
escrever. 
 Como a senhora Schneevogt insistisse para que tomasse qualquer coisa, comeu a
metade da omeleta, mas deixou o chá de lado. Sem dúvida, a amabilidade da locatária se
fundava em motivos bastante concretos, mas não se preocupava com isso. Mesmo nessas
condições, fazia bom negócio (todavia, foi obrigado a reconhecer no dia seguinte, ao
ajustar suas contas, que é com as pessoas as mais venais que mais nos enganamos). Eram
nove horas menos um quarto quando ouviu a campainha do apartamento tocar. — "Chove,
meu caro Mohl" — disse Warschauer ao entrar — "estou ensopado." Tirou seu chapéu,
sacudiu-o, tirou o capote que também sacudiu. Procurou um cabide durante alguns
momentos e acabou depositando o chapéu e o capote sobre o banco que Melita ocupara na
véspera. — "Então, como vai passando, meu pobre Lázaro?" — perguntou. Segurou uma
cadeira pelo espaldar, passou-a por sobre  a mesa, colocou-a próxima do leito e sentou-se.
— "Ouça, que é isso?" — disse, prestando atenção. Era a pianola da escola de dança que
recomeçava seu barulho ensurdecedor. — "É infernal! Você pode dormir com toda esta
algazarra? Meus pêsames." Aproximou-se da janela, olhou em frente e viu, atrás dos vidros,
sombras contorcidas passarem e repassarem através das cortinas vivamente iluminadas.
Esboçou um riso surdo: — "Bela câmara-escura para servir de ilustração ao charleston" —
disse — "chega-se a sentir o cheiro de suor do prazer e o que se ouve ecoa nos ouvidos
como as trombetas de Jericó. Gosto disso. Fica-se logo senhor da situação." Etzel suspirou.
Warschauer voltou ao pé do leito e observou-o assustado. O exagero quase grotesco que
ainda não abandonara completamente, manifestava-se. — "Você não poderia falar mais
baixo?" — perguntou Etzel. — "Certamente que sim. São seus nervos, naturalmente" —
falou Warschauer. Tinha o aspecto de quem não podia perdoar sua falta de consideração. —
"Aliás, esta será uma rápida visita" — continuou com um amável gesto de mão — "não
gostaria de modo algum de incomodá-lo, nem de, por coisa alguma dêste mundo, retardar
sua convalescença, porque, segundo me informaram, você já está quase bom." — "Não sei"
— murmurou Etzel baixinho — "ainda não me estou sentindo bem... Você compreende, é
horrível ficar só neste quarto com esta música infernal do outro lado. De modo algum
poderei dormir; fique, portanto." — "Está bem, está bem, não é preciso dizer mais nada,
ficarei o tempo que quiser, Mohl. Faria um triste papel se me retirasse agora. Devo ficar
calado? Quer que leia qualquer coisa para você? Quer conversar? Você não se precisa
fatigar, con-duzirei a conversa eu mesmo."
 Etzel parafusava a cabeça: — "Que estará ele tramando? Por que ficou tão doce de
repente?" Num relâmpago, colheu no ar, através dos óculos pretos, a fulguração metálica
do olhar de Warschauer, e um arrepio correu ao longo de sua espinha. O silêncio entre eles
foi como o breve intervalo entre o momento em que uma porta se abre e se fecha. — "Não
é a conversa que me interessa" — disse Etzel no tom dolente e enfadado de um febricitante
— "minha vontade não é de ficar aqui ouvindo o senhor falar disso e daquilo. Não se trata
disso e daquilo..." — "Mas, de?... meu simpático Mohl." — "Sim, mas de saber por que o
senhor me pôs no ôlho da rua anteontem!" — "No olho da rua é uma expressão um tanto
forte. É, de fato, meu caro Mohl, uma expressão um tanto excessiva para designar um
ímpeto de cólera devido à impaciencia. Então, estaria aqui, a seu lado, se estivesse tão
zangado? Poderia ficar aqui, à sua cabeceira, com a consciência tranqüila?" — "Ignoro por
que o senhor professor está aqui. É provável que o senhor, afinal, não tenha a consciência
muito tranqüila. Aliás, não sei por que se preocupa comigo. Que acha de interessante em
mim? E se acha qualquer coisa, por que então brinca comigo como gato com rato?"
Warschauer conteve um sorriso. Mastigou em seco por um momento. — "Que me interessa
em você, pequeno Mohl? Para dizer a verdade, ainda não refleti. Nesse ponto, minha
natureza se assemelha muito à do animal." Etzel franziu a testa. — "Não acredito, senhor
professor. Não existe momento algum em que o senhor não saiba o que está fazendo e por
que o faz." — "Então você me tem em conta de um intrigante que vê ao longe." — "Não é
isso exatamente; apenas, o senhor é mais forte do que eu, infinitamente mais forte, e
abusa de sua superioridade." — "Você é atrevido, Mohl." — "É a pura verdade." — "Hum!
hum!" — fez Warschauer, concertando os óculos sobre o nariz. — "Você está-se agitando
inutilmente, Mohl, você não se deve agitar. Você tem termômetro? Seus olhos têm um
brilho que não traduz nada de bom. Calma, calma. Vou ver o que posso fazer por você. Se
isso pode tranqüilizar —lhe... Falo da explicação da afeição que tenho por você. No fundo,
não é tão fácil assim. O seu arrebatamento daquela noite, que me obrigou a tomar uma
medida enérgica, um pouco excessiva, eu o reconheço, veio confirmar certas suspeitas que
já tinha. Divertir-me com você, Mohl? Audaciosa alteração da verdade. Tenho a impressão
de que foi você quem quis divertir-se comigo ou, pelo menos, tentou-o. Sinceramente, sim
ou não?" 
 "Ah! ah! estamos no âmago da questão" — pensou Etzel com um misto de inquietude e
alívio, juntando as mãos sob a coberta. — "Absolutamente" — respondeu, um pouco
atrapalhado — "desde o começo, disse-lhe o que pretendia. Não comecei por indagar do
senhor se acreditava Maurizius culpado? Mas, o senhor se furtou a responder. Todas as
vezes que falei nisso, o senhor se esquivou, ou então zombou de mim, como da última
vez." Warschauer fez uma careta. — "E por que razão, se me faz favor, deveria dar minha
opinião sincera a um garoto vindo não se sabe de onde? Uma vez que estamos discutindo
esta questão calmamente — está vendo que estou levando você a sério, como se tivesse na
minha frente um delegado da Liga do Direito dos Homens, e de modo algum você poderá
queixar-se de mim — vejamos, uma vez que discutimos amigavelmente certos mal-
entendidos, diga-me o que motiva seu julgamento? Sua comovente estória de pequeno
burguês é uma estória cuja trama inábil não podia inspirar senão piedade a um velho difícil
de ser levado como eu, admitindo que isso não o irritasse. Você está ficando vermelho,
Mohl? É natural, pode enrubescer à vontade, isso lhe fica muito bem, é natural da idade.
Mas, para enganar um George Warschauer, é preciso esfôrço muito maior, Mohl. É preciso
ter ideias novas, não lhe basta contar a primeira mentira vinda à cabeça de um momento
para outro. Não é?" — "O senhor tem razão" — murmurou Etzel, com os olhos baixos —
"mas, que podia eu fazer?" — "Que você podia fazer? Exatamente o que espero que você
faça agora. Há pessoas a quem sempre devemos a verdade, a mesma verdade que
esperamos delas. Você está de acordo?" — "Sim, estou." — "Pois bem, e agora, então? Que
rapaz inteligente!"
 Etzel abriu várias vezes a boca para falar, enquanto Warschauer o observava, com o rosto
numa imobilidade de máscara. A pianola gemia um "American Blue". — "Eu não me pude
conter" — disse Etzel entre os dentes, baixinho e com esfôrço. — "Li o pedido de indulto
que o velho Maurizius redigiu. Então, resolvi saber de tudo por ele próprio e fui procurá-lo.
Mostrou-me as crônicas da época, os artigos de jornais, mas não era preciso. Além disso,
explicou-me muitos detalhes. Mas, desde o primeiro instante não tinha mais a menor
dúvida: o veredito era falso, o veredito era um assassínio jurídico. Sobre isso, não tenho
nenhuma dúvida, como não duvido dos dez mandamentos ou da sinceridade de Lutero.
Não me preocupava mais com o velho; no fundo, ele me deixava frio; no fundo, detestava-o,
a ele e ao seu pedido de indulto. lndulto, por que? Choramingar para obter o perdão do
condenado, contentar-se com um perdão, quando estava convencido da inocência do filho?
Não quis dar a minha opinião. Aliás, que adiantaria? Aos meus olhos, era apenas um velho
de miolo mole. Seus pensamentos não me teriam causado a menor impressão se, eu
mesmo, não estivesse, até o mais profundo do meu ser, compenetrado desse pensamento:
o homem é inocente. Se o senhor me perguntar como adquiri esta certeza, somente
poderei responder-lhe uma coisa: não sei. O que sei é que é assim, e que disso todos os
tribunais do mundo não me demoverão. Talvez o senhor compreenda melhor se lhe disser
que cresci numa casa onde um julgamento tem o mesmo valor que um sacramento para a
Igreja. Às vezes, sentimos alucinações no escuro, não é verdade? Nessas circunstâncias, um
fato pode exaltar-nos tanto quanto uma ideia... Estou sendo claro? Sendo assim, é mais
forte do que todas as considerações e todo o seu saber. Uma vez tomado dessa exaltação,
era-me impossível permanecer em casa. Eu me repetia: é preciso que seja feita justiça
àquele homem ou serei um homem acabado. O senhor compreende, agora? Eis aí a
verdade." 
 No final, falara muito lentamente, levantando suas mãos juntas por cima das cobertas.
Sua fronte, sobre a qual algumas madeixas de cabelos úmidos caíam em desordem,
parecia de pedra polida. Fato estranho, um sorriso ao mesmo tempo provocante e irônico
contraía seus lábios. Sua fisionomia perdera repentinamente a expressão juvenil. Durante
muitos minutos, seus traços tiveram mesmo algo de maduro e doloroso; o olhar se
concentrava, dirigido sobre os óculos pretos por detrás dos quais nada parecia mover-se,
nada parecia passar-se. — "Era mais ou menos o que eu pensava" — murmurou
Warschauer — "era exatamente nesse sentido que conjeturava. Saul partiu à procura das
jumentas e encontrou um reino. Mohl partiu em busca da justiça e deverá dar-se por muito
feliz se encontrar as jumentas. Não me fulmine assim com este olhar tão cheio de
desprezo, meu caro Mohl; não é cinismo, mas fruto da experiência. Certamente você quer
que continue a chamá- lo de Mohl, apesar de eu presumir, depois das suas revelações, que
se trate apenas de " un nom de guerre". Bem, fiquemos nisso. Acostumei-me com esse
nome e contento-me com ele. Em todo caso, para a idade, você não se conduziu mal. Oh!
sim... Oh! sim... tem fibra, excepcionais qualidades... Arre, pequeno Mohl, porque surgiu
para contrariar meus projetos? Que demônio o possuiu para se atravessar no meu
caminho?" Etzel fez um ar espantado: — "Mas meu Deus, um demônio muito lógico, eu
creio" — disse levantando os ombros. Com a mão, Warschauer fez um gesto vertical
cortando o ar. — "Não digo que não tenha sido intencional de sua parte, mas falo do
atentado cometido contra mim; sim, um atentado" — confirmou com uma expressão tão
má que Etzel estremeceu. — "Não compreendo." — "Não espero que você compreenda,
rapaz, pois seu espírito está por demais perturbado pela sua ideia fixa" — replicou
Warschauer em tom decisivo — "Todavia, estava convencido até este momento ... Basta. Eu
fechara minhas contas. Fizera meu balanço. Não tinha mais necessidade que surgissem
novos acontecimentos, novos abalos. E eis que você irrompe nesse idílio de cemitério. Há
no primeiro livro de Saul uma frase sublime sobre esse mesmo Saul a quem há pouco aludi:
Deus lhe concedeu um novo coração." Warschauer observava com ar sombrio suas mãos
brancas, inchadas, colocadas sobre os joelhos. — "Tudo isso está fora da questão" — disse
Etzel com dureza. Warschauer se ergueu num salto, atravessou o quarto, voltou, tornou a
se sentar. — "Está bem, falemos da justiça" — disse, estufando o peito, o que lhe dava um
aspecto fanfarrão e ofendido, ao mesmo tempo. 
 IV   

 Efetivamente, seu ar fanfarrão e ofendido lembrava um namorado mal sucedido


pensando ter demonstrado suficientemente os méritos. Mas, quando começou a falar, a
flama crepitante de seu espírito consumiu mais vitoriosamente do que nunca os elementos
turvos, antipáticos, perigosos e maléficos da sua personalidade. — "Sim, a justiça, a
augusta mãe das coisas, como a chamava não sei mais que escritor. Talvez eu mesmo.
Gostava outrora do desdenhoso eufemismo. Um prelado dotado de muito bom-senso disse-
me um dia: — "Não exija avidamente o que lhe é devido, com receio de que não o
concedam." Evitemos fazê-lo, todos nós. Pode-se exigir não importa o que da sociedade;
concordará sempre em fazer concessões. Exigir dela justiça é uma perfeita falta de senso,
pois não dispõe dos meios necessários para concedê-la. É o mesmo que pretender iniciar
um bebê nos mistérios do cálculo integral e descuidar de lhe dar o leite de que precisa. Não
temos o leite de que carecemos. Encontrei no navio um homem que ia para a Sociedade
das Nações, um puritano de Boston. Ele me dizia com entusiasmo: "Nossa missão é fazer
reinar a justiça entre os povos". Desatei a rir na cara dele. — "O senhor dormiu enquanto o
trem correu, respondi-lhe; o senhor deveria ter descido em Ellis Island para visitar os
abarracamentos dos imigrantes. Um pequeno passeio pelo México também não lhe teria
feito mal; o senhor tomou o caminho errado". Ele me olhou boquiaberto, sem compreender.
Todos os que procuram a justiça erram de caminho; qualquer um que tomem, não serve.
Desconfio que todos os que embarcam nessa canoa são levados por motivos pessoais.
Miguel Kohlhaas é o personagem mais odioso do mundo. Ninguém, com exceção dos
alemães, pode compreender sua lógica muito prussiana. A mulher que reclamava diante de
Salomão que a criança em litígio fosse cortada ao meio representa a obstinação de tirar da
ideia de justiça suas ultimas conseqüências. Sob o ponto de vista da justiça pura, a criança
deve ser cortada ao meio. Não fique indignado com o que lhe estou dizendo, Mohl, é a
verdade. Suas ideias humanitárias não são nem mesmo um frasquinho de óleo derramado
sobre a catarata do Niagara. Salomão era um sábio. Convenceu do absurdo todos os
apóstolos da justiça e cobriu de ridículo todos os pacifistas. Já se viu, desde que o mundo é
mundo, uma guerra ter uma causa justa? Já se viu um general travar suas batalhas pela
justiça? Ou algum desses célebres ladrões de territórios ou exterminadores de homens ser
obrigado a prestar contas, a não ser quando sua empresa fracassava? Convido-o a refletir
um instante nas relações, ia dizer no parentesco, que existe entre a ideia de direito e a
ideia de vingança. Quando e onde, na história, você viu se fundarem impérios ou religiões,
ou se edificarem cidades, ou a civilização se espalhar com o auxílio da justiça? Você
conhece algum exemplo? Eu, por mim, não conheço. Onde está o pelourinho em que será
expiado o massacre de dez milhões de índios, o envenenamento pelo ópio de cem milhões
de chineses, ou a escravidão a que foram reduzidos trezentos milhões de hindus? Quem fez
parar os navios pejados de escravos negros que, do século dezesseis ao dezenove,
atravessaram o oceano da África para a América? Quem ousará levantar o dedo em prol das
centenas de milhares de homens utilizados nas minas do Brasil? Onde está o juiz que
tentará punir os massacres de judeus na Ucrânia? Quer outros exemplos ainda? Tenho-os à
sua disposição. Você vai-me responder que seu ideal moral mais caro e mais secreto é
justamente acreditar que é preciso remediar isso, que é necessário reformar o mundo! Vá
esperando por essa! Não se remedeia nada, não se reforma coisa alguma. Os homens são
impotentes. Quanto às mudanças que se verificam pela força dos fatos, isso é outra
questão. Trata-se, então, de evoluções tão longas como a do antropóide até Péricles. A
empresa é muito grande e o indivíduo muito pequeno, meu caro Mohl! Presunção!
Presunção! Você pode tirar um partido mais útil das suas qualidades. Sim, você que
representa outros, pois imagino que você se considere um tipo representativo, não? Do
espírito moderno? Da atual geração? Não negue (Etzel não sonhava em negar, nem mesmo
em fazer qualquer observação; apenas ouvia, de olhos arregalados), não negue que é moda
hoje, que é o tipo atual. Todos esses privilegiados da nossa época, esses run-away-Boys
revoltados que querem fazer a felicidade do mundo, acabam sendo obrigados a baixar a
voz e a se considerar felizes se lhes for permitido decretar, em qualquer repartição, que o
cheiro proveniente de um estábulo imundo não tem o direito de incomodar o olfato público.
Em breve, desiludem-se da ideia de que teriam agido melhor do que seus antecessores tão
censurados. Para que exigir a justiça em altos berros quando a realidade que nos cerca
lembra-nos incessantemente, e com insolente desprezo, que vivemos únicamente do fruto
da injustiça? Um pedaço de pão que como, o marco que ganho, o par de sapatos que calço
são o resultado de um complicado sistema de injustiças e de violações do direito. Toda
existência humana, toda atividade humana pressupõe hoje uma hecatombe de vítimas.
Você e seus iguais supõem ao contrário que existe uma vontade de justiça, uma ideia
imanente de justiça, por assim dizer. É falso. É um sofisma. O conjunto da humanidade
inteira pouco está ligando para a justiça. Não possui um órgão para senti-la. Às vezes,
acontece-lhe, principalmente nas épocas em que se encontra locupletada, embriagar-se
com esse pensamento. Mas, se os dividendos ficam ameaçados, por pouco que seja, se as
cotações da Bolsa baixam, todo o seu belo entusiasmo desaparece e os pássaros-profetas
que falavam mais alto descem do poleiro e cessam sua parlapatice, Conheci dois diretores
de banco de Leipzig. Ambos do mesmo banco. A casa faliu e inúmeras famílias perderam
suas economias. Um deles, homem honrado, depositou toda sua fortuna nas mãos do
síndico da falência e entregou-se à prisão. Foi condenado a três anos. O outro, um velhaco
como poucos, soube esquivar-se por entre as malhas da lei e colocar seu dinheiro em lugar
seguro. Hoje, é um nababo coberto de condecorações, admirado, orgulho da pátria. A pobre
empregada que, por desespero, estrangula seu recém-nascido, não encontra piedade por
parte dos tribunais. Mas, recentemente, um milionário de Mecklemburg envenenou sua
mulher e o promotor-substituto hesitou durante seis meses antes de propor a ação. No ano
passado, assisti a um julgamento onde uma mulher foi condenada como proxeneta por ter
dado asilo, à noite, à filha e ao seu noivo. Jamais esquecerei o grito lancinante dessa
mulher ao ouvir o veredito. Jamais ouvi voz humana exprimir semelhante angústia em face
de uma catástrofe que arruinava sua existência, tão grande incompreensão em face da
ordem estabelecida. Ao lado disso, vêem- se jurados imbecis absolver uma mulher que
confessa ter morto seu marido, únicamente porque está bem vestida e os embasbaca com
sua conversa elegante. Se você me provar que, em um único desses diferentes casos,
surgiu alguém que se preocupou em saber se a justiça foi cumprida, dar-lhe-ei um marco.
Você poderia ter-se exaltado a propósito de trinta e seis mil outros casos. Mas, por que você
escolheu precisamente esse? Você arrisca demais sua responsabilidade pessoal numa
descoberta fortuita. Assume uma obrigação muito pesada para seus ombros. Desperdiça
inutilmente sua vida, sua inteligência, suas forças e seu tempo com uma causa perdida,
com um caso morto. Quem é Maurizius? Quem se interessa por Maurizius? Que diferença
faz, ele estar na prisão ou em casa, ser inocente ou culpado? Que diz mesmo Goethe? "No
dia do julgamento final, isso não terá mais importância que um..." Pôr em jogo a esse
propósito, no atual estado de coisas, a grande palavra Justiça, é, palavra de honra, querer
usar vapor para mover um torrador de café."
 A face de Etzel perdera todas as cores. Seus lábios tremiam, seu queixo tremia. Arrepios
percorriam seu corpo da cabeça aos pés. Devorava com os olhos o homem que estava em
sua presença. Não tinha necessidade de fingir de doente; naquele momento, estava, no
mais profundo de seu coração e de sua alma, doente de cólera e desprezo, de louca
decepção e exasperação. Fez um gesto insensato como se quisesse atirar à face daquele
homem tudo quanto sentia, assim como, num gesto de raiva, apanha-se uma pedra para
lançá-la contra um ofensor. Depois, gaguejou contorcendo-se sobre a cama: — "Mas é...
incrível... ninguém no mundo pode acreditar... é infame... é pavoroso! Ter de ouvir
semelhantes palavras... pessoas assim pretendem ser homens... ele fala, fala... Meu Deus,
meu Deus... ele pretende ser um homem... não o quero ver mais, este homem... que vá
embora!" — "Mohl!" — exclamou Warschauer, sinceramente assustado. Não esperava, cer-
tamente, por este resultado. — "Água" — gemeu Etzel. — "Sim, sim, imediatamente, meu
caro, meu pequeno Mohl" — murmurou Warschauer transtornado, procurando
desajeitadamente a moringa em todos os lugares do quarto. Finalmente, encontrou-a,
encheu um copo e levou-o a Etzel que, exalando profundo suspiro, ficou imóvel, rígido, no
seu leito. — "Então, então" — falou Warschauer — "que está você sentindo, meu bom, meu
caro Mohl? Volte a si, olhe seu velho amigo..." — "Estou com calor" — murmurou Etzel —
"estou-me sentindo mal... — "Sim, sim, meu caro, certamente." Apalpou todo o corpo do
rapaz. — "Você está quente, vamos por uma compressa... é a febre." E de fato, o corpo de
Etzel estava tão quente como uma estufa superaquecida. Fenômeno incompreensível,
porque, na realidade, Etzel não tinha febre. Governaria ele, então, suas reações físicas ao
ponto de obrigá-las a obedecer pura e simplesmente a uma excitação moral? Unicamente
porque tinha. necessidade de impressionar o outro com meios concretos? Que parte teria
aqui a simulação e que parte um último esforço heróico e a imolação da própria pessoa?
Como um corredor insensato, corria para a meta final, inconsciente no meio da mais fria
reflexão. Warschauer mergulhou em seguida uma toalha na água, torceu-a para que ficasse
apenas bem embebida, voltou para junto de Etzel e despiu-lhe a camisa. Etzel permanecia
imóvel; completamente rígido, sem o menor movimento. Vendo em sua frente o corpo do
rapaz, Warschauer se imobilizou numa muda contemplação. Suas mãos foram tomadas de
tremor. Por detrás dos vidros de seus óculos, duas cintilações inquietantes brilharam,
semelhantes a duas minúsculas chamas sombrias. Abriu a boca. Tinha o aspecto de um
possesso que começou uma prece e não pode continuar. — "Meu pequeno" — sussurrou ele
— "meu caro pequeno ... " Etzel pareceu despertar. Com as mãos, segurou fortemente os
braços de Warschauer e cravou-lhe um olhar inenarrável, ousado, feroz, suplicante,
imperioso. Largou seus braços, ergueu-se sobre os joelhos, agarrou-se aos ombros do
homem. Largou-lhe depois os ombros e apoderou-se de seus óculos, arrancando-os.
Brandiu-os na mão esquerda como um troféu. Nu, de joelhos, os óculos na mão, falou: —
"Eu quero saber de tudo. Você ouviu? Quero saber o que significava aquele deux ex
machina; você pode-me dizer, porque mereço saber. Vamos, diga, quem atirou? Foi Ana
Jahn, foi ela quem atirou? Sim ou não? Sim ou não?"
 Um olhar animal, bronco, daqueles olhos incolores, foi a resposta. 
 V

   Um ligeiro sorriso pairou sobre o rosto lívido de Warschauer. Não tinha mais forças para
resistir ao rapaz que, fora de si, o acossava. Retirou os óculos docemente das maos de Etzel
e depositou-os sobre a cadeira. Acariciou o ombro, o dorso, o quadril do belo corpo esbelto,
seus dentes batiam: — "Pois bem, sim! Sim! foi ela quem atirou" — disse com uma espécie
de doçura senil — "Se você faz tanta questão de saber, meu pequeno Mohl, porque motivo
iria eu esconder-lhe?... Sim, foi ela quem atirou... Poderia agir diferentemente?..." Etzel
apertou com as duas mãos a mão direita de Warschauer e voltou para o leito sem
abandoná-la. Parecia tonto de contentamento. Com ardor apaixonado, cravou o olhar nas
olhos de Warschauer. Tinha a impressão que, enquanto o mantivesse sob o seu olhar,
aquele homem não lhe poderia escapar. Warschauer se sentou sobre a borda do leito e,
avançando as vezes os lábios, outras mastigando no vazio, no mesmo tom senil, quase
resmungando, descreveu o drama em todos os detalhes. Ana se sentira acuada e perdera
completamente a cabeça. Três tigres nos seus calcanhares: o cunhado, a irmã e ele,
Waremme. Eis o efeito que lhe produziam: três tigres. Não sabia mais para onde se voltar.
Dera-lhe o revólver logo nas primeiras horas da tarde, dizendo-lhe: — "Não se sabe o que
pode acontecer. É melhor ficar prevenida para qualquer eventualidade." Não refletira que,
no seu desespero, Ana podia ter-se suicidado. Efetivamente, pouco faltara para isso, como
lhe confessara mais tarde. Fora a sua vontade magnética, agindo sobre ela, que o impedira,
à última hora. Suspeitara e, por isso, caminhara durante hora e meia debaixo de sua janela.
Não se encontrava no clube. Partira uma hora mais cedo que de costume. As testemunhas
tinham-se enganado ou sido induzidas em erro pelas suas declarações posteriores.
Passeara portanto, ao anoitecer, debaixo das janelas laterais, não tirando a vista das restias
iluminadas do seu quarto. E podia mesmo, de vez em quando, distinguir sua sombra. Sabia
por experiência própria que, se concentrasse o pensamento sobre ela, Ana ficaria sob sua
influência imediata e submetida à sua vontade. Mas ela, pela janela entreaberta, devia ter
ouvido seus passos sobre as folhas mortas. Isso levara sua angústia ao máximo. Sentara-se
ao piano, tocara o primeiro trecho que lhe ocorreu, parara bruscamente, correra para a
escada e telefonara para ele, Waremme, para sua casa, para o clube. Inutilmente. — "Pelo
amor de Deus, Eli" — gritara de baixo para sua irmã — "seu marido vem aí, desça ou
acontecerá alguma desgraça." Então, Eli descera precipitadamente, atirara-se sobre ela
como uma fúria, segurara-a pela garganta, silvando como uma víbora: — "Vai, vai embora
imediatamente, ou estrangulo você." No mesmo instante, ouviu-se o portão bater, ao se
fechar. Eli correra para o jardim e Ana, que parecia não ter mais uma gota de sangue nas
veias, seguira-a cambaleando. — "Eu dobrava a esquina da casa e dirigia-me para o pórtico,
quando o tiro partiu. O que se passou depois é destituído de interesse. Mais ou menos o
que se disse e se repisou centenas de vezes. Naturalmente, apanhei o revólver e fi-lo
desaparecer." — "Mas, antes, o senhor se aproximou de Maurizius com a arma na mão?" —
perguntou Etzel ofegante. — "Sim." — "Para que pensassem que o senhor o tinha
arrancado das mãos dele?" — "Sim, naturalmente. Excelente observação!" — "Mas por que
Ana Jahn permitiu que ele fosse preso, condenado? Por que, durante esses dezenove anos...
não posso compreender... Como teve ela coragem? Como se pode fazer uma coisa destas?"
Warschauer olhava para o chão, de lado. — "Isso é um mistério de seu temperamento. Não
o posso explicar senão muito imperfeitamente. Já lhe disse: eu tratava com um cadáver, um
cadáver que devia galvanizar para lhe dar aparência de vida. Não a perdi de vista um
instante. Durante os interrogatórios, quando ela esteve no Sul, permaneci a seu lado." —
"Mas depois, depois, durante todos os anos que se seguiam? Vejamos, vejamos; reflita um
pouco!" Warschauer correu os olhos pela parede, como se quisesse contar as manchas de
percevejos. De repente, encarou Etzel e com os supercílios muito no fundo para explicá-lo.
Não é possível abraçar com um golpe de vista aquela alma complexa. Minha influência
sobre ela se chocou, aqui, com uma decisão pré-existente. Ninguém mais no mundo, com
exceção de nós dois, sabe o que vou dizer-lhe agora. No primeiro instante isso poderá
parecer-lhe uma coisa banal. Mas, dada a pessoa de quem se trata, é uma coisa
extraordinária. E foi isso que me tornou o árbitro supremo dos seus destinos. Quando
compreendi de que se tratava, pareceu- me que um gigante me segurara e me quebrara a
espinha. A verdade é que ela amou aquele homem. Amou-o loucamente. Amou-o com
paixão tão furiosa que seu espírito ficou perturbado e sua alma doente para sempre. Esse
amor foi para ela o tiro de misericórdia, o salto no abismo. E ele, ele não o sabia. Não
suspeitava sequer. Contentava-se em amar, o pobre infeliz. Continuava a mendigar, a
implorar, a gemer, quando ela já... Pois bem! Sim, ela já havia saltado no abismo. Não lhe
perdoava o amor insensato que nutria por ele e não se perdoava a si própria. Foi por isso
que ele teve de sofrer o castigo. Era preciso que desaparecesse. Nunca, em circunstância
alguma, o fato de ter assassinado a irmã por amor dele deveria servir para aproximá-lo
dela. Outorgara-se um direito imaginário por detrás do qual se entrincheirava. Decretar sua
morte, sua pena, foi um direito que se arrogou; foi sua mais implacável inimiga e
transformou-se, depois, em um espectro sem alma para viver com ele a vida expiatória.
Além disso, uma altivez burguesa e uma covardia burguesa se reuniam nela, unidas como
não é possível encontrá-las unidas numa só pessoa. A época que permitiu a seres dessa
espécie atingir seu completo desenvolvimento já passou. A primeira vez que Ana viu seu
nome nos jornais, produziu- lhe uma impressão extraordinária. Aliás, só se falava dela
tomando todo o cuidado. Mesmo assim, levou horas e horas lavando as mãos — teve um
nojo tão grande que chegou ao ponto de sentir convulsões de pavor. Não, Mohl, é um
caráter que você não pode compreender, — eu lhe desejo sinceramente: Deus o preserve
de compreendê-la. De um paganismo e de uma beatice estúpida, petrificada de orgulho e
consumida pela raiva de se prejudicar a si própria, casta como uma madona e abrasada de
sensualidade mística, primitiva e obscura, austera e ávida de ternura, com a alma
encadeada e odiando as cadeias, detestando quem ousa tocar nelas e quem as respeita, e,
sobretudo, vivendo sob o signo de um astro tenebroso. Há muitos que vivem sob o signo de
um astro tenebroso. Nenhuma luz brilha neles. Seu sombrio destino, eles o desejam;
chamam-no, provocam-no até que os esmague. Querem ser esmagados. Não se querem
dobrar, render-se: querem ser esmagados. Era o caso de Ana. Eis aí um ponto estabelecido.
Paciência, Mohl, vou chegar onde você quer. O testemunho... eu sei, eu sei..." Levantou-se e
esbarrou na cadeira. Seus óculos caíram. Curvou-se e examinou-os cuidadosamente; um
vidro se partira. Sacudiu a cabeça e introduziu-os no bolso. Depois, dirigiu-se para a janela,
levantou um instante o olhar para o céu chuvoso, e voltou: — "O testemunho foi apenas
uma possibilidade de permanecer de pé, uma conseqüência lógica. É difícil permanecer de
pé, quando se tem a coluna vertebral quebrada. Mas, era preciso. Encontrava-me sobre um
amontoado de ruínas. Não havia como hesitar na escolha da última vítima. Por mim, pelo
menos, não tinha como hesitar. Não se tratava de avaliar o maior ou menor mérito dessa ou
daquela pessoa, mas de pensar: no meio das trevas profundas, haverá ainda luz de
esperança para o futuro? O que será possível salvar dessa derrocada? Um duelo devia-se
travar entre mim e Leonardo Maurizius, duelo pouco cavalheiresco, certamente, duelo em
que destinos seriam arriscados, defrontar-se-iam. Se eu saísse vencedor, era porque o
destino assim o queria. Não creio que se aja, nessas ocasiões, ouvindo exclusivamente a
voz da consciência; também influi o signo mágico que nos enviam os espíritos invisíveis. A
consciência não é suficientemente forte; é o apelo ouvido que nos sustenta. De onde vem
ele? Do céu? Ou do inferno? Enquanto se obedece, não se sabe nada. O astro tenebroso é
invisível. É errado... sim, certamente... o mal é uma concepção relativa e insondável, um
espelho mágico onde só se reflete aquele que, ao se mirar, pronúncia a palavra mágica
judeu-cristã "abracadabra". Hoje isso parece errado. Há muitas horas... muitas noites em
que... sentimos desfalecimentos nesse mundo sublunar. Se eu tivesse conquistado um
reino, o reino desse mundo, como acreditaram um momento que o tivesse feito, então
estaria livre de culpa. Minha falta teria encontrado seu contrapeso. As coisas correram de
tal maneira que acabei perdendo a partida. Haverá verdadeiramente, entre o céu e a terra,
coisas que a nossa filosofia não suspeita? Ou, para ampliar esta esta imagem: de que não
podemos ter senão suspeitas? Há muitas noites em que... Mohl, Mohl, tenho muito receio
que não sejamos, todos nós, mais que lamentáveis criaturas feitas do mesmo barro e
servindo, no máximo, para nutrição dos vermes. É triste de se reconhecer! Triste
conclusão!" 
 Sentou-se novamente na borda do leito (Etzel, nesse intervalo, havia puxado a coberta
até o queixo), segurou a mão do rapaz e disse: — "Não tive escrúpulos em falar sem
subterfúgios, já que você tinha tanto interesse em saber. Por que lhe recusar esta
satisfação? Isso não tem para você nenhum valor prático. Há muito tempo que meu falso
testemunho caiu em prescrição. Meu Deus, sim... afinal, isso não teria nenhuma
importância para mim; tudo neste mundo se tornou indiferente aos meus olhos. Mas,
gostaria de conservar o leme nas mãos ainda por um momento. Não vá você conceber
esperanças exageradas. Minha confissão de nada lhe adiantaria. (Estalou os lábios com
alegria maliciosa). As engrenagens dos nossos tribunais estão de tal modo enferrujadas que
saberão evitar exumar o sacrossanto cadáver da justiça, simplesmente porque um jovem
exaltado de dezessete anos lançou um brado de alarma. Além do mais, continuo sendo o
homem que obedece exclusivamente à lei da própria vontade e que de modo algum irá,
ridiculamente, só porque se apaixonou na velhice por alguém, arriscar suas probabilidades,
por mais insignificantes que sejam. Porque, confesso sinceramente, meu caro, estou
apaixonado por você. Seria ingrato para com o destino, se não o quisesse reconhecer. Você
tomou entre suas mãos meu velho coração murcho e conseguiu, às vezes, sem que
pudesse impedir, fazer brilhar sobre ele uma luz radiante. A César o que é de César. Sem
querer ofender-lhe, Mohl!" Pôs-se de pé. — "Aliás, dir-lhe-ei que, brevememente, deixarei
esta região. Tenho uma filha que vive na Alta-Silésia polonesa. Há vinte e três anos que não
a vejo. Creio que está casada com um empregado público. Irei procurá-la. Você sabe: a
marcha para o leste. Talvez encontre um lugar onde possa descansar, espécie de asilo para
a minha velhice, e você há de concordar que precisarei aparecer por lá com um nome mais
ou menos limpo. As pessoas poderão exigi-lo de mim. Mas, se você conseguir descobrir-me
uma segunda vez, pequeno porta-estandarte entusiasta, encontrar-me-á talvez disposto a
fazer um depoimento válido para a justiça, se for necessário. E, como tudo é possível neste
mundo, talvez eu lhe auxilie, sacrificando minha indigna pessoa, a armar uma cilada para a
tropega justiça. Pereat Warschauer, fiat mundos. Você terá de chegar, apenas, meia hora
antes da minha morte." Com um riso seco, apanhou a capa e o chapéu. — "Já é tarde. Au
revoir, pequeno Mohl. Voltarei amanhã para saber notícias suas; espero encontrá-lo curado.
Como é que posso sair desta casa?" Etzel vestiu a camisa de dormir e respondeu: —
"Passando pelo bar. A porta fica sempre aberta." Sua voz estava tão mudada que
Warschauer se voltou, atônito. A mesma modificação se verificara na fisionomia de Etzel.
Adivinhava-se nela uma resolução fria, nítida. — "Ah! ah!" — fez Warschauer saindo. Etzel o
ouviu ainda atravessar às apalpadelas o quarto de Melita. Duas portas bateram, fêz-se
silêncio depois. Deitado, olhava para o ar. Sentia-se leve como uma pluma, imaterial, mas
os pensamentos que atravessavam seu espírito eram pesados e sombrios. Talvez dez
minutos já tivessem passado, sem que se houvesse decidido a fechar o gás, quando sentiu
arranharem à porta, que se abriu imediatamente e devagar. Melita surgiu com seu
extravagante xale verde como um mastro envolto em sua bandeira. Não entrou; apenas
olhou para Etzel com um olhar curioso; perscrutante, intenso. este voltou a cabeça para seu
lado e correspondeu ao olhar: — "Você ouviu?" — perguntou baixinho. — "Sim" — fez ela
com a cabeça. — "Tudo? Ouviu tudo?" — insistiu em voz baixa. Não havia razão para que
não elevasse a voz. Melita pôs um dedo sobre os lábios e respondeu: — "Mais ou menos." —
"Tanto melhor" — acrescentou Etzel e não disse mais nada. — "Vai haver tempestade" —
recomeçou a jovem. Nesse momento, a pianola parou e ouviu-se claramente o trovão
ribombar por cima dos telhados. Melita fechou a porta. Etzel ficou em pé na cama —
apagou o gás. Envolveu-se na coberta, deu um suspiro e desejou a si próprio: — "Boa noite,
Mohl." Adormeceu imediatamente com um sono calmo e profundo de criança. Ao despertar
na manhã seguinte, mandou longe, com um piparote, um repugnante percevejo que
passeava pela sua manga, respirou longamente e disse: — "Bom-dia, Etzel Andergast."
Eram sete horas. Saltou da cama — começou a arrumar suas coisas. Três horas mais tarde,
encontrava-se na estação da estrada de ferro.
CAPÍTULO 15

 
I

UM JOVEM SUBSTITUTO, de serviço no arquivo da prisão por algumas semanas, havia se


encarregado de anunciar ao detento Maurizius que a graça de um livramento condicional
lhe fora concedida. — "O senhor aceita?" — pergunta o magistrado com uma ponta de
curiosidade que envolvia o homem e não sua resposta. Maurizius, em posição de sentido,
engode a saliva. — "Sob que condições?" — "Não estão especificadas." — "Então, sob
qualquer pretexto, poderão encarcerar-me novamente?" — "A meu ver, é uma formalidade.
Se sua conduta..." — "O senhor quis dizer, se eu não der nenhum aborrecimento aos
tribunais?" — "Não recebi instruções neste sentido." — "Durante quanto tempo deverei
observar estas condições?" — "Um ano e meio, dezessete meses exatamente. Até o término
do vigésimo ano da pena." — "Quer dizer que ainda poderei ser obrigado a cumprir os
restantes dezessete meses se provocar o descontentamento das autoridades?" — "Em
princípio, sim. Mas, como já lhe disse, é uma formalidade." — "E se recusasse agora, dentro
de dezessete meses serei livre sem condição alguma?" — "Sem nenhuma dúvida" —
replicou o jovem substituto atrapalhada e ligeiramente irritado. Ao ouvir falar em recusa,
Pauli, o administrador da prisão, ergueu os olhos, estupefato. O chefe da guarda, de pé,
atrás dele, sacudiu a cabeça com ar abstrato. — "Querem conseguir uma ocasião para me
dominar" — murmurou Maurizius. — "O senhor aceita ou não?" — perguntou o substituto
em tom de decisão, indicando sobre a mesa o documento para ser assinado. O secretário
não se continha mais. Levantou-se e fixou em Maurizius um olhar ávido. Este não se moveu.
Suas faces se tornaram vermelhas. Um dos seus ombros foi agitado por um tremor. Abriu a
boca; nenhum som saiu. Todos o olhavam. Repentinamente, fez um movimento, como se
fosse cair. Mas, quisera apenas se aproximar da mesa e apoiava-se agora na borda. O
secretário lhe estendeu a pena. Maurizius a mergulhou no tinteiro, examinou-a um
segundo, transtornado, e escreveu — nome sobre o papel, no lugar indicado pelo dedo do
secretário. O rumor de quatro respirações corria pela sala como uma brisa suave. — "O
senhor poderá partir amanhã, às oito horas" — disse o diretor. — "O guarda virá buscá-lo às
sete horas para o senhor se vestir." — "Posso pedir autorização para telegrafar a meu pai?"
— perguntou Maurizius com a voz estrangulada. O substituto e o administrador trocaram
um olhar indeciso. — "Preferiríamos que o senhor não o fizesse" — disse o substituto —
"para evitar qualquer repercussão inútil." — "Mas eu terei dificuldade em me conduzir lá
fora." O magistrado sorriu. — "O senhor se sairá bem. Quando tiver chegado à estação,
meu Deus..." — "Telegrafe então a seu pai dizendo que o senhor chegará amanhã durante o
dia" — propôs Pauli num gesto de piedade — "o de que não gostaríamos é que ele viesse
aqui e que a hora de sua saída fosse conhecida. Os jornais fariam logo um escândalo." —
"Então, prefiro abster-me" — replicou Maurizius. O guarda que o reconduziu para a cela, o
de cara de bêbado, perguntou-lhe com condescendência: — "Então! como está se
sentindo?" Como Maurizius volvesse para ele um olhar ausente, tossiu e afastou-se.
II

Amanhã, às oito horas... Quinze horas ainda. Como passá-las? Maurizius olha para a
parede, para o cano da lareira. Caminha alguns passos e pensa que, durante este tempo, os
minutos estão passando. Apalpa a barba de vários dias e indaga se ainda seria capaz de se
barbear ele mesmo. Concederiam licença, com certeza. Isso gastaria tempo. É preciso
refletir. Isso também gasta tempo. Segura a mesa e coloca-a dois metros além; põe a
cadeira em frente, sem saber exatamente por que o faz. Senta-se, abre a Crônica de
Rothemburg e lê: "Em 4 de abril de 1659 os habitantes fizeram exercício de alvo; saíram
com tambores e trombetas, formando uma companhia." Calcula: 1659, fazem duzentos e
sessenta e oito anos. Vamos, ainda quatorze horas e três quartos. Quando se cerram as
pálpebras e se calcam fortemente os polegares sobre as têmporas, chega um momento em
que a marcha rápida das horas se torna sensível. Já fizera essa experiência muitas vezes.
Agora, esse método falha completamente. Que é a paciência? O retardamento do sangue.
Esquecer que se quer, eis o que é a paciência. Pobre homem, novamente o querer se
apossa de ti. Levanta-se, puxa a mesa para perto da janela, em seguida a cadeira, senta-se
de novo e lê: "Em 29 de julho foi levada ao pelourinho uma criada estrangeira de vinte anos
de idade, juntamente com sua mãe, porque a filha, por ordem da mãe, furtara perto de
cem táleres de H. Dan Rueckern, capelão do hospital onde servira durante três quartos de
ano. Foram condenadas a ser banidas e o verdugo as conduziu para fora da cidade. A filha
gritou e chorou lamentavelmente. O sórdido dinheiro queria voltar para a guerra, de onde
procedia. Rueckern era capelão junto aos exércitos de Bernardo de Saxe-Weimar." Tudo isso
já está muito longe, o tempo correu; há muito que os suspiros desses sofrimentos humanos
se extinguiram. Fecha o livro. Um arrepio lhe percorre o corpo à ideia de lançar um olhar
sobre o passado. Tudo o que fica para trás de si é um cárcere estreito. Na sua frente,
estende-se um espaço sem limites. Mas, quando começará o que está diante dele?
Somente quando se escoarem dolorosamente, como bestas de carga vergadas sob o fardo
que conduzem, as restantes quatorze horas e um quarto? Ou agora, a cada minuto desse
agora? E este presente é o intervalo que separa um bater de coração do seguinte? Ou a
diferença entre um segundo e outro dessas oitenta e seis mil e quatrocentas estações no
vácuo e no desespero que formam um dia? Mas, agora, há um amanhã para ele. E sussurra
a palavra com os lábios trêmulos: amanhã. Esse amanhã se assemelha à mancha de luz
que se percebe no final de um túnel e que aumenta vagarosamente, com lentidão
indescritível. O círculo se alarga, o esplendor vai diminuindo aos poucos, muito lentamente,
apesar da rapidez vertiginosa do trem. A esse amanhã acrescentar-se-á um outro amanhã,
depois um terceiro, um quarto, um quinto. De cada minuto atual, poderá dizer: "naquele
tempo". E se diz: agora "é", dirá depois: "foi". Gira pela cela e torna a girar... Treze horas e
meia. Gira ainda, gira sem parar: doze horas e um quarto. Conta seus passos. Uma
imagem, uma imagem que se assemelha a uma flor de pedra purpúrea, flutua no ar
brumoso e cinzento da cela. "Amanhã". Esse "amanhã", límpido como um cristal. Esse
"amanhã" difícil de se esperar, esse "amanhã" mensageiro de felicidade incrível e, não
obstante, envolta numa angústia alucinante... Caminhos. Estradas. Cidades. Caminhar para
a frente. O céu, abóbada que nada limita. Campanários. Árvores. Jardins. Uma mulher...
Junta as mãos. Um tremor o agita da cabeça aos pés: uma mulher... 
 Onze horas e meia. Atira-se sobre o leito e entrega-se à doçura torturante de um sonho
de olhos abertos.
III

Há sobre a terra, imagina em seu sonho, um coração que anseia por ele: Hildegarda.
Cresceu entre estranhos e espera pelo dia em que se reunirá ao pai que não conhece. Até
os quinze anos, seu nome jamais foi pronunciado em sua presença. Com a idade de doze
anos, surpreendeu uma conversa entre a pessoa que lhe serve de mãe e um digno e velho
senhor que por ela se interessou. Desde então, desconfia da verdade. Ao completar quinze
anos, sua protetora lhe contou, com muitas precauções, o que não podia mais ignorar.
Ficou imediatamente convencida da inocência do pai. Não toca no assunto, evita fazer
alusões, mas em seu coração nobre e valente vai-se radicando cada vez mais a convicção
de que virá o dia de sua reabilitação diante do mundo, e a convicção, mais firme ainda e
mais forte do que tudo, de que virá buscá-la, levando-a consigo. Torná-lo-á feliz. Apagará a
lembrança de todos os seus sofrimentos, como uma esponja sobre o giz de um quadro-
negro. Nos projetos que faz, não sonha senão em recompensá-lo de seus padecimentos.
Espera-o, espera-o com toda a impaciência de um coração filial. Espera sua ressurreição...
O pensamento persegue irresistivelmente seu sonho, abandona a experiência, a
verossimilhança e a realidade. E o que, das profundezas do coração, sobe à superfície, é a
ingenuidade do homem-criança, são desejos infantis e a espera infantil da véspera de
Natal. Ela é jovem, acha a vida bela, faria mal em se absorver no seu papel de anjo-da-
guarda, de renunciar em bem dele à felicidade de amar e de se casar. Escolherá um esposo
disposto a se consagrar, junto com ela, à tarefa de conseguir para o "ressuscitado" uma
pátria e um lar. Filhos virão, lindas cabecinhas louras, e a casa ficará cheia de seres felizes;
à noite todos se reunirão em peças acolhedoras para palestrar em atmosfera de doce
intimidade. 
 Mas, como será o primeiro encontro? Os contornos vagos do sonho, até então hipotético,
tomam a nitidez das coisas reais. Com perfeito desembaraço, a imaginação corrige a ideia
inicial, segundo a qual Hildegarda não se devia casar senão mais tarde, um ano talvez após
ter encontrado seu pai. Por uma razão qualquer que é preciso necessariamente aprovar,
apesar de permanecer obscura, decide casar imediatamente e o destino quer (ou será que
uma vontade misteriosa e pujante representa aqui algum papel?) que — casamento tenha
lugar alguns dias antes do livramento. Dir-se-ia quase que essa volta à liberdade tinha de
ser assim solenemente festejada. Mas, não pode chegar a tempo para assistir à bênção
nupcial. Quando entra na casa onde é esperado pelos recém-casados, os convidados já se
encontram reunidos. Sua chegada causa sensação. Os criados cochicham e ficam
azafamados. Tomam-lhe a capa e o chapéu, indicam-lhe o caminho, uma porta se abre de
par em par. Vê uma sala cheia de senhoras e cavalheiros. Todos os rostos se voltam para
ele, demonstrando surpresa, emoção, piedade, respeito. A música pára, faz-se silêncio
como no teatro quando um personagem, tido por desaparecido há muitos anos, regressa
após cruéis provações para o convívio dos parentes e amigos. Um velho de longa barba
loura — lembrando vagamente o guarda Klakusch, mas, de porte aristocrático — dirige-se
para ele, inclina-se e estende-lhe a mão. Maurizius não pode pronunciar uma só palavra,
está por demais emocionado. Seu olhar erra ao redor, procurando alguém: "Onde está ela?
Onde está Hildegarda?" Ouve no fundo da sala breve grito, agitação feliz se apodera de
todos; os convivas se afastam para dar passagem a uma silhueta clara que, com o véu
esvoaçando e os braços estendidos, corre para ele exultante de felicidade. Segura-a nos
braços, aperta-a contra o coração, estreita aquele corpo morno, repleto de ternura,
comprime contra sua face aquele rosto resplandescente de felicidade... Agora tudo ainda
pode dar certo. Ele pode esquecer. Está transformado, renovado... 
 Um após outro, os segundos caem sem ruído na eternidade, como num abismo as pedras
que se soltam da montanha. Durante dezoito anos e sete meses, caíram sem cessar e
jazem, como montes de ruínas, no fundo do abismo insondável e sombrio. O dia nasce. 
 IV   

Maurizius se despede do diretor e do chefe da guarda que estendem a mão e lhe desejam
felicidades. A pesada porta de ferro volta a se fechar por detrás dele; está só sob a abóbada
celeste. A estrada é um declive; seus pés procuram uma superfície plana. É obrigado a
refletir para restabelecer o equilíbrio. Após ter dado uns vinte passos, sente dificuldade em
compreender que não é obrigado a voltar. Suas pernas sentem necessidade de fazer meia-
volta e terá de lutar durante muitos dias ainda contra essa tendência... A ideia de poder ir
mais longe, que é preciso ir mais longe, apresenta de início algo de assustador, de tão
assustador quanto o espaço de que o corpo dispõe. Penetra muito ar no seu peito. Tudo é
um pouco penoso: a luz, o céu, as roupas às quais não está habituado, o couro duro dos
sapatos. Tem o andar brusco de um boneco mecânico. Ao fim de algum tempo, está
fatigado, para, olha ao redor e sente-se ferido. Pessoas olham, espantadas. Sorri. Afastam-
se sem responder ao seu sorriso. É preciso, para os desconhecidos, assumir uma atitude. —
"Poderia dizer-me se preciso dobrar à direita para alcançar a estação?" — "Tome a primeira
rua à esquerda, depois a segunda à direita." — "Obrigado." Mas para que voltar? Em frente.
sempre para frente. Crianças! Eis que tem diante de si crianças! Para, empalidece. Como
são pequenas, parecem anãs! E ali... duas mulheres! É obrigado a se apoiar numa vitrina e
a se segurar com as mãos; por pouco não quebra o vidro. O proprietário sai e interpela-o
rispidamente. Desculpa-se com humildade. Durante um instante, sente uma vontade louca
de tocar naquelas mulheres, de apalpar seus seios, mas fica senhor de si. A fisionomia se
torna grave, quase sombria. E a partir desse momento, instintivamente, mantém essa
aparência grave, quase sombria, como máscara tão mais impenetrável quanto maiores
forem as impressões do mundo concreto que o assaltarem. É assim que atravessa a
multidão, espera na plataforma da estação, escuta o murmúrio confuso dos ruídos, toma
lugar num compartimento, com o aspecto grave, quase sombrio, imóvel, distante, os olhos
semicerrados, os lábios ligeiramente contraídos para dentro. Cada vez que distingue uma
mulher de saia curta e meias de seda clara, seu rosto se cobre de rubor fugitivo — as
narinas palpitam. É uma novidade para ele. Não era assim, antigamente. Tudo mudou...
Tudo se transformou. As pessoas falarão ainda a mesma língua? Ouve. São as mesmas
palavras, mas tem a impressão que a pronúncia, o ritmo, não são mais familiares a seus
ouvidos. Começa a pensar com inquietação que o abismo, cavado pelos anos que o
afastaram da sociedade, não apenas do mundo das imagens e dos sons, mas também de
todo o organismo social, jamais poderá ser transposto. Experimenta uma sensação de mal-
estar crescente com a qual, em breve, não pode mais viver. 
 Em Hanau, desce do trem. Vaga algum tempo pelas ruas. O céu sem nuvens brilha como
massa de chumbo em fusão. Sente-se extremamente fatigado de caminhar em pleno sol; a
luz viva o deslumbra. Pára em frente a uma loja de ótica, hesita, entra, pede uns óculos.
Experimentam-lhe seis ou oito pares diferentes. Escolhe um que tem vidros escuros e
armação de metal O vendedor — aconselha a preferir armação de chifre, imitação de
tartaruga. Está na moda, é mais elegante. — "Está bem" — faz com a cabeça e compra os
óculos, colocando-os imediatamente. Assim, sente-se mais tranqüilo, mais seguro; seu mal-
estar diminui. Olha no espelho e permanece muito tempo sem poder afastar a vista
daquele rosto pálido de óculos pretos. 
 Um quarto de hora mais tarde, encontra-se diante da casa da rua do Mercado,
procurando o apartamento do pai. Uma velha lhe indica uma escada de madeira, no pátio.
Subir a escada representa um trabalho penoso, tão possuído está de temor e angústia. Pai é
palavra cujo eco se extinguiu, vestígio de outra época. Não sente nem alegria nem
impaciência, mas apenas receio de ser obrigado a demonstrar sentimentos que não estão
nele. 
 Indaga se essa espécie de sentimentos não está completamente morta em seu coração,
mas, ao pensar em Hildegarda, responde impetuosameute à pergunta com uma negativa.
Hildegarda, porém, não seria simples criação de seu espírito? Uma forma vazia.
Inteiramente inventada por ele? Ser sem existência real, que imaginou para ter a ilusão de
que uma criatura sobre a terra lhe pertence? Pela primeira vez essa dúvida aflora e é
repelida com horror, como se houvesse profanado uma coisa sagrada. (Mas de onde lhe
veio esta inabalável esperança, quando não possui nenhum dado real em que se apoiar e
deve pensar, ao contrário, que certamente nada foi poupado para destruir qualquer laço
íntimo ou exterior entre ele e a filha, coisa fácil, aliás, dadas as circunstâncias? A solução
do enigma jaz talvez nessa região em que a natureza humana reage ao oposto de qualquer
precisão e que, cercada de forças primitivas e misteriosas, se refugia numa vida que
esconde a vida real.) 
 Aperta o botão da campainha; longo minuto se escoa. No pátio, um gato mia
queixosamente. Ouve passos atrás da porta e uma pergunta ríspida. A porta se abre: pai e
filho se encontram face a face. O velho arregala os olhos, fica petrificado. Seu rosto se torna
purpúreo, o corpo verga para a frente, os braços se apóiam na ombreira da porta. — "Eu
sabia" — disse com voz embargada... — "li no jornal.. mas não calculava que já hoje..." O
resto é abafado por um soluço. Dir-se-ia uma tosse rouca, dolorosa; não oculta o rosto e as
lágrimas rolam dos olhos astigmáticos. Leonardo Maurizius permanece
incompreensivamente frio. Seus traços conservam uma expressão severa, quase sinistra.
 "Por que não estou comovido?" — se pergunta, enquanto acompanha o velho ao quarto,
segurando-o pelo braço. Olha em torno de si. A tristeza, a pobreza do local, despertam nele
vago temor. Ainda não havia pensado no futuro. Nunca acreditou que seu pai possuísse
fortuna considerável. E, além disso, soubera na prisão que a desvalorização do dinheiro, no
correr dos últimos anos, arruinara não unicamente pessoas ricas, mas também pessoas de
condição média. O velho parece ter sido atingido também; senão, jamais teria procurado
asilo em semelhante tugúrio. Em suas rápidas reflexões, as preocupações materiais passam
para o primeiro plano de seus pensamentos e determinam o mal-estar que o inquieta e
consome e, depois, faz estremecer. Então, agora, terá de depender de alguém, de se dirigir
às pessoas, de dar explicações, de aceitar favores, pequenos obséquios depois do enorme
favor humilhante ao qual deve a liberdade. Essa situação, pela qual tanto clamara com
todas as forças, em todas as súplicas, agora que se esforça a cada momento em tomar
consciência dela, não pode realizá-la senão como uma sensação vaga, vaga como a
impressão que se tem ao adormecer, do lugar em que a pessoa se encontra. O que
economizara do dinheiro ganho durante os anos de detenção, salvo cinqüenta marcos,
dera, num gesto de generosidade, para a caixa dos prisioneiros postos em liberdade. Era
uma pequena soma, é verdade, mas poderia servir para os primeiros dias. Naquele lugar,
parecia reinar a mais negra miséria. 
 Um quarto de hora mais tarde, vem a saber que essa preocupação não tem razão de ser.
O velho o contempla longamente, perdido numa adoração muda. Suas faces vincadas
tremem ainda sob as suíças encanecidas. A mão direita comprime o braço esquerdo rígido.
Não pode falar. O olhar de Leonardo se dirige para a mesa. Está cheia de papéis, ao lado de
um jornal dobrado na segunda página e no qual se destaca um telegrama em tipo graúdo
anunciando ao mundo sua volta à liberdade e encimado pelas seguintes palavras traçadas
por mão inábil com lápis azul: "Louvado seja Nosso Senhor!" O lápis azul ainda está sobre o
jornal. Aquilo o comove, subitamente. E mais o lápis azul do que as quatro palavras. É
extraordinário como os objetos podem, na sua inércia, conservar o reflexo da natureza
humana e da alma. Agora, o velho está senhor de si. Aponta para os papéis e diz, tão
friamente quanto possível: — "Isso tudo é seu, tudo isso lhe pertence." Há anos e anos que
aguarda este momento. Sonhou com ele e, agora, conserva-se ali, como um apaixonado
tímido, tremendo de impaciência no momento de depor entre as mãos da bem-amada o
precioso presente que exprime todo o amor. Ei-lo que se agita com pressa quase cômica,
que remexe os papéis, explica, cita números; eis a minuta das suas contas, o montante dos
depósitos em banco, mês por mês, o montante dos juros: eis o testamento, tudo está
preparado, em perfeita ordem desde o meio-dia. Leonardo olha, torna a olhar. — "E você?"
— pergunta apontando para o quarto com gesto significativo. O velho começa a rir, como
um jogador de cartas surpreendido em flagrante de roubo. Concerta a garganta, tosse,
escarra, não pára mais de cacarejar de felicidade. Leonardo baixa a cabeça. Através da
algazarra de mulheres, de ruídos de buzinas, chega-lhe ao ouvido um som prolongado de
corneta. Senta-se, visivelmente fatigado, e pergunta com esforço: — "Onde está
Hildegarda? Você sabe?" O velho esconde a decepção que sente ao ver Leonardo
manifestar tão pouca alegria diante da fortuna que acumulou (porque era, de fato, uma
fortuna) mas, como pode responder à pergunta e demonstrar com isso ao filho que pensara
também naquilo, como em tudo mais, o velho se sente novamente muito orgulhoso e
informa-lhe, balançando a cabeça com ar importante que, até o mês de maio próximo
findo, a jovem esteve num pensionato na Bélgica. Fez então, com diversas amigas, uma
viagem a Paris e ao Sul da França. Segundo as informações que obteve, tem notáveis
disposições para a música e deve, portanto, se aperfeiçoar no canto. Desde meados de
maio, encontra-se na propriedade de uma sobrinha da senhora Caspot, casada, chamada
Kruse e residente em Kaiserwerth sobre o Reno. Hildegarda deverá permanecer lá até o
outono e seguir depois para Florença, para a casa de um professor de canto. Leonardo está
absorto em suas reflexões. — "Irei vê-la amanhã" — declara de súbito. — "Já amanhã?" —
pergunta o velho. — "Será necessário você ir amanhã mesmo? Espere um pouco." — "Não,
preciso ir amanhã." Levanta-se. Está agitado, nervoso. A penumbra da sala o irrita. Quer
partir. Fala na necessidade de renovar seu guarda-roupa. Falta-lhe tudo, tem apenas a
camisa que traz no corpo. O velho começa a rir disfarçadamente, com ar cômica. "Tudo já
foi providenciado. Naquela manhã, fora a um grande armazem de Francfort e fizera as
compras. Tudo está pronto. O que há de mais elegante. Dirige-se com passos lentos para a
porta de seu quarto de dormir que tem o aspecto de um antro. Ternos, capas, roupa-branca
de toda qualidade, sapatos, gravatas, chapéus estão espalhados pelo leito. Estende o braço
num gesto de triunfo. É o segundo momento capital de felicidade daquele dia, o que faz
dele um deus pródigo. Dessa vez, Leonardo lhe segura a mão e conserva-a um momento
entre as suas. — "Examine um pouco isso aí" — diz o velho com insistência — "se faltar
qualquer coisa, compraremos; se não lhe agradar, trocaremos." Tira do bolso seu cachimbo
e tenta enchê-lo. Finalmente, consegue. Suas pernas tremem. "Olhe um pouco" — repete,
batendo de leve no peito de Leonardo com a ponta do dedo — "enquanto isso, irei
descansar." E, quando cai pesadamente sobre o canapé, Leonardo passa para o quarto de
dormir, mais para fazer prazer ao velho do que por interesse próprio. Mas o exame daquelas
coisas o liberta de um aborrecimento. Constituem uma maneira de por, entre ele e o
mundo, a distância que necessita. Examina até as camisas e meias de seda, apalpando o
tecido. Seu olhar incide sobre o armário cujas portas estão abertas. Ali se acham
penduradas as roupas que usava há dezenove anos; sua casaca, seu capote de pele, um
traje esportivo escuro. Parecia uma casa em que se conservam relíquias de um morto. Uma
inesperada associação de ideias lhe lembra, de repente, a senhora de chapéu branco que
observara, na primeira fila dos assistente, no último dia do processo e cuja fisionomia lhe
chamou a atenção por certa expressão de sofrimento sensual. Nem uma vez sequer,
durante aqueles dezenove anos, pensou nela. Não a reviu, e, agora, sua imagem se
apresenta mais viva que o natural, as marcas que traz de padecimentos voluptuosos
tornam-na mais nítida, chega a distinguir mesmo a pequena cicatriz do lábio superior e o
camafeu que usa na pescoço. Tem vontade de sair imediatamente para a rua. Tem a
impressão que, ao sair de casa, poderá encontrá-la: volta para a sala para prevenir seu pai
que, tudo bem pensado, quer mesmo partir. Mas, o velho está calmo e comodamente
deitado sobre o canapé, seu cachimbo apagado na mão. Suas suíças parecem musgo
colada às faces, seu crânio uma lâmpada elétrica. Dorme. Como está tranqüilo! Curva- se
sobre ele para ouvir a respiração Há qualquer coisa em sua    atitude que não parece
natural Não, o velho não está dormindo. O velho morreu. 
 
V   

Obrigado por este acontecimento a sair de si mesmo, Maurizius sente incontinenti o


embaraço e o constrangimento que o separam dos outros homens. A entrevista com o
médico, o atestado de óbito, o transporte do corpo, as discussões a propósito da sepultura,
o enterro, as formalidades para conseguir dinheiro, as visitas ao tabelião, a conversa com o
proprietário, as explicações, as assinaturas necessárias são providências dolorosas,
torturantes. Acrescente-se a isso os jornalistas que descobriram sua pista e dos quais
precisa fugir e se esconder. Somente depois de seis dias pode partir. Passa a noite em
Colônia. Às onze horas chega a Kaiserwerth e inforrma-se sobre a família Kruse. Indicam-lhe
uma vila à margem do Reno. Vai até lá e toca a campainha do portão. Uma pessoa de certa
idade aparece; ele diz que deseja falar com a senhora Kruse. Sobre que assunto? Negócio
pessoal Quem deve anunciar? O senhor Markmann, de Frankfurt, negociante em objetos de
arte. Está tão pálido, tem o aspecto tão perturbado que a mulher o examina com olhar
cheio de suspeita. Desaparece, enquanto espera. A garganta está ressequida e sente
necessidade de engolir continuadamente a saliva. Enorme buldogue atravessa
indolentemente o gramado, pára espantado, olha-o atentamente, rosna e fica em guarda. A
mulher volta. Lamenta muito, mas a senhora saiu. Queira, portanto, escrever o motivo da
sua visita. Observa que tem de partir para uma viagem. A mulher levanta as ombros. Ele
pergunta com insistência desaconselhável que não pode deixar de provocar suspeitas, se
poderá encontrar a senhora Kruse depois do almoço, o assunto que o traz sendo
importante. Vaga resposta. A caminho de sair, volta sobre os passos e ainda que reconheça
no mesmo instante que é uma tolice que trai suas intenções, pergunta: — "A senhorita
Koerner mora aqui?" Essa pergunta perturba a mulher que passa a observá-lo com
redobrada atenção e replica que nada sabe a respeito, fechando a porta. É inequívoco que
obedece a instruções rigorosas. Sua visita era esperada. Em conseqüência, foram tomadas
precauções. Sobre isso não resta a menor dúvida. Tem a impressão que, de uma janela da
casa, alguém o observa. Vê uma cortina se mover! Vago pressentimento que não quis
alimentar e de que afastou seus pensamentos como se afastam as moscas que zumbem
em torno de um pedaço de açúcar; mas, agora, a certeza aflorou    claramente em seu
espírito: querem barrar-lhe a estrada que o leva à filha. E desde que tiveram a intenção, a
coragem, a crueldade de pensar nisso, deve-se esperar que mantenham esta atitude até o
fim, irredutivelmente. Não irão discutir, transigir com ele. Ficarão inabaláveis, e a cena
iníqua do portão, pela qual começaram, não permite esperar para o futuro atitude mais
conciliadora. Que fazer? Pelo amor da Deus, que fazer? Hildegarda sabe que foi devolvido à
sociedade? Sabe que existe, pelo menos? Talvez o julgue morto? Talvez ignore até seu
próprio nome? Que foi que o autorizou a pensar nela como num ser que lhe pertença"? Tem
o menor direito sobre ela? Outros direitos além dos que se arrogou, sem nenhuma relação
com a realidade? E se, no entanto, sabe que existe e é impedida de vê-lo? Certamente, esta
medida, com o correr do tempo, tornar-se-ia ineficaz. Que fazer? Que fazer? Caminha ao
longe da avenida, diante da vila. Não pode acalmar. Não pode afugentar os pensamentos
que se comprimem tumultuadamente em sua cabeça e, mais apavorantes que nunca,
torturam seu pobre cérebro. Ao fim de duas horas, volta para Dusseldorf. Chegando ao
hotel, telefona: — "É da vila Kruse?" — "Aqui fala — senhor Markmann. Eu queria falar com
a senhora Kruse." — "É ela própria quem está no aparelho. De que se trata?" — "De uma
entrevista com a senhorita Koerner." — "Ela está viajando." — "Viajando? Desde quando?
Para onde?" — "Não podemos dizer." — "Preciso transmitir-lhe uma informação, um recado
importante, urgente." — "Da parte de quem?" — "Da parte de alguém que lhe toca de
perto." — "Não conhecemos ninguém que lhe toque de perto e que possa ter qualquer
coisa para lhe comunicar particularmente. O senhor poderia explicar-se mais claramente?"
— "É impossível aqui." — "Lamento, mas... Poderia dizer-me o nome da pessoa em
questão?" Silêncio. Finalmente, com voz embargada: — "Maurizius." — "Poderia dar-me seu
endereço?" — "Parque Hotel." — "Dentro de uma hora o senhor receberá uma carta."
Maurizius espera no saguão. Exatamente uma hora mais tarde, entregam-lhe um envelope:
"Em virtude de havermos previsto o que está sucedendo, resolvemos enviar Hildegarda
para o estrangeiro, para a casa de bons amigos nossos, há três dias. Dado o estado delicado
de sua saúde e sua excessiva sensibilidade, não podíamos, em face dela e, de nós mesmos,
tomar a responsabilidade de expô-la a uma forte emoção e a um estado de contínua
perturbação que provavelmente poderia comprometer, e talvez mesmo arruinar, seu futuro
para sempre. O homem, em nome de quem o senhor se dirige à nós, deve ser o primeiro a
compreender isso e deve regular sua conduta por este pensamento. A principal
preocupação da pessoa que educou a criança foi a de deixá-la na ignorância de um fato
cujo conhecimento teria, desde a infância, ensombrado sua vida. Também nós,
compartilhamos desse objetivo, ao qual devemos permanecer fiéis. Isso deverá parecer a
todos os interessados coisa perfeitamente natural. Senhor e senhora Kruse." Maurizius se
levanta como que impelido por uma mola. Amarrota — papel entre os dedos e cai
desfalecido. Alguns hóspedes o socorrem. No momento em que vão transportá-lo para seu
aposento, recupera os sentidos. Recuperar os sentidos não lhe presta auxílio algum, não lhe
causa o menor prazer. Mas, isso é outra questão. 
 
VI   

 A decisão de ver Ana Jahn, a senhora Duvernon, de ter uma entrevista com ela, não podia
germinar senão em um espírito cujas relações com o mundo ambiente tinha perdido todas
as características de normalidade. Era, em Leonardo, a necessidade insensata de se agarrar
àquilo que havia existido. Era o último vislumbre de esperança de encontrar um meio de
alcançar Hildegarda, vaga consolação, uma dilação. Em vez da recusa definitiva, daquela
porta batida contra sua face, daquele "fora daqui, maldito!", talvez ouvisse uma voz
humana, encontrasse um coração reconquistado pela razão, capaz de se enternecer, e que
o faria ver um lado mais luminoso da vida. O pobre "romântico" incorrigível se iludia ainda
a este ponto, até essas esferas radiosas onde tudo se equilibra e se compensa e onde as
almas são irmãs. Ainda nutria o seguinte pensamento: as coisas não podem e não devem
ser como são. Portanto, são diferentes. E negava a realidade, recusava-se a vê-la e, contra
toda razão, queria, atirando-se de cabeça baixa contra o obstáculo, forçar pela violência e
pelo desafio o que não pode ser forçado. Um espírito que quer submeter os
acontecimentos, que não aceita verdade alguma, não admite a possibilidade de as coisas
terem mudado e se ilude com oportunidades que não existem mais. Os seres dessa
têmpera devem passar pela escola, pela terrível escola da experiência, e ser milhares de
vezes vencidos pela vida. No dia seguinte, pois, Maurizius partiu para Echternach, próximo
de Treves, quase na fronteira luxemburguesa. Hospedou-se num pequeno hotel e escreveu
a Ana Duvernon sob o pseudonimo de Markmann, mas de tal modo que não pudesse
ignorar de quem se tratava. Dizia que se encontrava em Echternach por algumas horas e
tinha necessidade de falar-lhe. Pedia-lhe para fixar a hora e o local do encontro. A olaria dos
Duvernon distava um quilômetro da localidade: a residência ficava pouco afastada,
informaram-lhe. Mandou a carta por um mensageiro, ao qual recomendou entregá-la em
mãos próprias. Eram três horas. Às quatro e meia um carro parou em frente ao hotel; da
janela do quarto, viu uma mulher descer e entrar rapidamente no edifício. Ficou paralisado
e, quando bateram, seus lábios apenas se abriram para responder: — "Entre." A visitante já
estava no aposento, ofegante como se estivesse sendo perseguida, com o rosto pálido e
com os olhos negros vagando, inquietos, por tudo quanto a rodeava. Vestia um vestido azul,
um guarda-pó e um chapéu beges com um véu azul, tudo muito simples. Ausência
absoluta de qualquer traço da elegância e do fascínio de outrora. Nenhum vestígio daquela
nota inédita que excita a curiosidade e atormenta, refreia o pensamento e encanta, pelo
simples fato de ser rara e inata. Tudo nela estava ligeiramente empapado ou ressecado;
aqui e ali os traços tinham-se modificado um pouco, somente um pouco, mas nesse pouco
se revelava a decadência. O porte e o olhar, assim como a pele, tinham algo de gasto. A
graça delicada e incomparável da moça de dezenove anos transformara-se numa
fragilidade doentia. O ar de sofrimento etéreo cedera lugar àquela gordura dolente que
uma vida burguesa fácil e segura tinha favorecido. Aparências reveladoras que permitiam
temer o que ia acontecer e atestavam a inutilidade de qualquer entrevista. Mas, Maurizius
não desejava ver aquilo que, entretanto, percebia com nitidez assustadora. Voltara-se
lentamente e permanecia ali, transtornado, com os braços balançando: "Oh! quem me dera
poder chorar" — pensava ele — "cair de joelhos, chorar. Dizer tudo, exigir tudo, esquecer
tudo, e chorar, chorar, chorar." 
 Mas Ana Duvernon estava tão longe de experimentar essas sensações como de
compreendê-las. E disse, com voz tão baixa que mais parecia um sussurro: — "Você não
pode ficar aqui naturalmente; vim porque... é preciso evitar... Foi uma sorte que seu
verdadeiro nome... mas já é muito perigoso... Como é que você pode?... Não tenho mais
forças para suportar tais emoções. Soube do seu livramento pelos jornais. Não podia
prever... que você viesse aqui, o que é quê?... Você vem com intenção determinada? Diga
depressa, preciso ir embora imediatamente. Disse embaixo que ia ver um freguês de meu
marido com o qual tinha um negócio a tratar." Maurizius retirou os óculos e contemplou a
visitante sem responder. Ana abaixou os olhos e franziu asperamente os supercílios. —
"Você sabe perfeitamente que não adianta nada" — murmurou com mau-humor e um
pouco constrangida. — "Parece que sim" — concordou ele sem desviar o olhar severo —  
"não adianta talvez nada." — "Rompi com o passado" — prosseguiu Ana, falando sempre
entre os dentes e lançando olhares inquietos para as portas, à esquerda — "Você não
sabe... Há alguns anos ainda... mas, para que desenterrar essas lembranças horríveis? A
oração me sustentou. É preciso ter a força moral de se libertar do passado. E, além disso,
tenho filhos... a vida... o dever, o dever se sobrepõe a tudo, uma vez que se o reconhece.. .
Você compreende..." — "Sim, sem dúvida" — falou Maurizius. Atrapalhado, parafusava o
espírito. Que significa tudo isso? Que é que ela está dizendo? Será que estou ouvindo isso
mesmo, ou imaginando? Quem é o ser que está em minha frente? — "Certamente não
posso convidá-la para sentar-se alguns minutos?" — perguntou timidamente — "Precisava
conversar sobre vários assuntos... — "Oh! por Deus, não posso" — retrucou, assustada, mas
visivelmente livre, pela sua entoação e atitude, de um temor que pesara até então sobre
ela e provocara toda aquela agitação febril. Seus nervos se afrouxaram, não obstante a
presença de Maurizius ainda lhe ser extremamente penosa. Esperava evidentemente unia
discussão tormentosa, desabafos, súplicas, um interrogatório completo, exigências de toda
espécie. Temera ver sua paz perturbada. Sua situação ameaçada, e só viera acossada pelo
medo, obedecendo, para afastar o perigo, mais a um sentimento de pavor, ao qual não se
podia subtrair, do que a uma vontade ou a um plano pré-estabelecido. Agora, via
claramente, com aquele instinto feminino mais rápido em descobrir uma posição de defesa
e dela se aproveitar do que em defender uma posição atacada, que nada tinha a temer
daquele homem. E essa constatação lhe devolveu imediatamente a segurança e a
confiança em si própria. Estavam afastadas a perturbação de sua consciência e as
lembranças cujo despertar a perturbava tanto. No máximo, fragmentos de imagens
flutuavam ainda em seu espírito; coisas decompostas, desmanchadas em poeira, vazias de
qualquer força inteligível, que o sangue não carrega mais nas veias, que a memória retém
tão pouco como se pertencessem à vida de um estranho, conservadas no celeiro dos anos
distantes; coisas que já deixaram de ser verdadeiras, de existir; coisas estagnantes,
estereotipadas, calcificadas. — "É sobre Hildegarda" — recomeçou Maurizius — "que queria
pedir sua opinião e seu auxílio... Estive em Kaiserwerth... nem sequer fui recebido...
Mandaram a menina para fora..." Ana Duvernon levanta os ombros, num gesto idêntico ao
que teria se lhe tivesse pedido cem mil marcos. — "Nada tenho a ver com isso" —
interrompeu rispidamente. — "Eu poderia renunciar a tudo mais nesta questão, porém, não
estou disposto a ceder" — observou ele com aspecto sombrio, — "Apenas, você errou a
porta. É ao tutor que compete decidir. Há muitos anos que me afastei. A responsabilidade
era por demais pesada." Durante a detenção, Maurizius havia adquirido o hábito de
observar atentamente o interlocutor e de continuar a encará-lo por muito tempo em
silêncio, mesmo quando já havia terminado de falar, antes de, por sua vez, tomar a palavra,
o que fazia agora com olhar melancólico, perdido no vago, e com certo esforço como se
precisasse se fazer ouvir através de uma muralha. — "Achamos sempre as
responsabilidades muito pesadas no dia em que a elas queremos nos furtar" — respondeu
Maurizius. Esta verdade ultrapassa a compreensão da senhora Duvernon, que não percebeu
seu amargor, mas apenas um sinal de resignação. De súbito, interpretou tudo o que ele
dizia num sentido favorável, isto é: favorável a ela, talvez porque, até então, vencera, e
porque aquele homem lhe parecia tão longe quanto o assunto de que falava. Pois o que
dizia respeito a ele não a atingia de modo algum e espantava-se ao pensar que, outrora,
num passado longínquo, a tivessem atingido. Leonardo parecia compreender seu pontto de
vista; portanto, não tinha mais nenhum motivo para prolongar a visita e procurava um
pretexto decente para despedir-se. Não arriscava mais nada. A aventura que começara
como uma catástrofe e chegara a arrancá-la, aterrorizada, da agradável indiferença em que
vivia, acabava, felizmente, como um incidente sem importância. Isso a enchia de
satisfação, fenômeno tão natural como os cálculos de um jogador supersticioso ou a
rapacidade de uma velha camponesa. — "É preciso aceitar a vida como ela é" — disse num
impulso, muito fraco, é verdade, para atenuar a desolante banalidade do lugar-comum —
"todos nós sabemos o que é um combate, não é? É tendo confiança em si próprio que se
vencem as dificuldades. Confiança em si e confiança em Deus são, ambas, necessárias.
Também nós atravessamos dias bem difíceis. Quem não viu a guerra... mas, veja, por mais
pavorosa que tenha sido, para mim pelo menos, foi útil. Saí dela mais forte moralmente e
também meus nervos lucraram muito. Foi uma verdadeira cura. Antigamente, um nada me
descontrolava. Uma palavra dita de passagem por um desconhecido podia causar-me o
mesmo efeito que um veneno. Mas hoje... quando todo um povo sofre, quando a
humanidade inteira padece, cada um esquece seus interesses egoístas, tornando-se mais
modesto, mais humilde, não é verdade?" — "Naturalmente. Compreendo perfeitamente."
(A propósito de que vem isso? — perguntava-se Maurizius pasmo de assombro, que é que
está dizendo? Onde quer chegar? Afinal, por que está falando? Para que tudo isso?) —
"Agora, preciso ir. Já estou atrasada. Temos visita. Adeus." E estende a mão, hesitante.
Maurizius pareceu não vê-la. Inclinou-se respeitosamente. Ana Duvernon se achou na
obrigação de acrescentar: — "Faço votos pela sua felicidade futura." Essa frase foi, apesar
de tudo, um rude golpe para ele. Sua felicidade, é extraordinário, verdadeiramente
extraordinário! Mas até onde chegamos, minha nobre amiga? — "Eu lhe agradeço" —
respondeu com voz sarcástica. Ana já havia partido. Só, Maurizius apoia sobre a fronte suas
mãos com os dedos entrelaçados. Permanece um momento imóvel. A seguinte ideia lhe
atravessa a cabeça: Santo Deus! Mas como ela é estúpida, simplesmente estúpida, de
estupidez inconcebível! Sua beleza, sua alma (ou aquilo que se tomava por sua alma), sua
graça, seu encanto, aquele misterioso demonismo, aquele temperamento apaixonado,
aquela propensão para o sofrimento, tudo aquilo nada mais era do que uma leve camada
de verniz que os anos apagaram, pondo a nu o árido fundo primitivo. A natureza revelou
seu próprio embuste. Ana não tinha coração, nenhuma compreensão do destino, nenhuma
inspiração superior, nada, senão engano e artifícios... estúpida, eis o que ela é, estúpida
como todos aqueles que pararam no meio do caminho, como todos aqueles que são
animados por uma vida fictícia e que estão mortos, estúpida como todos aqueles que não
percebem que seu espírito e seu coração já morreram, estúpida como um fantasma... E foi
por aquilo, por aquilo, oh! Deus misericordioso! por aquilo, o seu sacrifício e o seu martírio,
o suplício que o arruinou e aqueles dezenove anos vividos num túmulo... Deita-se de bruços
sobre o assoalho, apoiando nele sua face. Sobre o supercílio esquerdo, sente o frio de uma
cabeça de prego. Sente bem- estar, gostaria que o prego se voltasse na madeira e enfiasse
a ponta no seu cérebro. 
 O tempo que, na sua bondade, oculta os fatos ou, cruel, os revela, é todo-poderoso para
revelar em toda a sua mesquinhez o valor exato e as proporções reais daquilo que parece
primeiramente, ao olhar humano, encadeamento inextricável e impenetrável mistério. Uma
vez que justo recuo nos dá uma visão clara dos fatos, vemos neles uma simplicidade
inteiramente primitiva, ultrapassada apenas pela simplicidade dos destinos. Toda a magia
do verbo de um Waremme não pode em nada modificar essa verdade. Aqueles que
acreditam justificar-se perante Deus ou explicar a trama complexa de suas vidas
imaginando, em lugar das coisas simples deste mundo, um grandioso mistério, são os
verdadeiros condenados, porque não podem ser salvos ante seus próprios olhos. No caso de
Ana Jahn-Duvernon é preciso, em verdade, considerar um fato. O maravilhoso desabrochar
da juventude alcançara nela tal esplendor que, semelhante a uma obra-prima, prestava-se
a todas as espécies de interpretações, assumia todos os aspectos e parecia ser aos olhos de
cada um, realmente, aquilo que procurava ou colocava nela. Depois, os anos tendo
realizado sua obra destrutiva, não se reconheceu no que subsistia senão o encanto perdido.
Nada mais restava, por assim dizer, senão ruínas, algo de morto e, não obstante, era uma
mulher que não era pior nem mais tola do que milhares de outras. 
VII

 Maurizius deixa novamente Echternach. Na estação, compra uma passagem para


Mogúncia. Aí passa a noite, e no dia seguinte embarca para Basiléia. Hospeda-se num
quarto de hotel com vista para o Reno. O rio lhe causa a impressão de uma testemunha da
desgraça que se obstina em persegui-lo. Arruma a mala com rapidez e parte para Zurich.
Comprou livros, mas não tem tranqüilidade para lê-los. Aluga um barco, faz um passeio
pelo lago, mas sente-se apertado, asfixiado. Conversa com o porteiro do hotel, a
arrumadeira, o garçom, com qualquer um. Em resumo, tenta matar o tempo. Desperta
curiosidade, tem boa aparência, está bem vestido, tomam-no por um sábio, um homem de
letras, observam-no, mais de uma pessoa tenta inutilmente travar conhecimento com ele,
mas seu rosto severo, quase sombrio, com os óculos negros, representa um obstáculo
intransponível. Gosta apenas de conversar com as crianças. Nas praças públicas onde
brincam, às vezes se senta nun banco e espera que uma delas se aproxime. Então dirige-
lhe a palavra em voz baixa, com ternura. Faz perguntas, passa as mãos suavemente pelos
seus cabelos, mas geralmente observa que sua conduta desperta suspeitas: levanta-se e
afasta-se. Os alaridos da cidade são freqüentemente verdadeira tortura. Em outras
ocasiões, encontra neles verdadeiro alívio quando, semi-arrastado pela vaga humana,
circula pela multidão. Suporta mais facilmente os golpes surdos e o barulho das máquinas
do que os sons dos sinos; prefere a confusão das vozes ao som de uma voz isolada que o
obrigue a prestar atenção. Pouco a pouco, sob o efeito desse esforço, os nervos da sua
cabeça se retesam a ponto de se romperem. De noite, geralmente, não dorme. Mas não fica
acordado por causa de maus pensamentos e, sim, pela sensação de não ter consciência de
sua existência, de não se possuir a si próprio, que o mergulha numa espécie de espanto
letárgico. Tem a impressão de já se encontrar adormecido e não se quer entregar ao
verdadeiro sono a fim de não se perder mais ainda. Não, apalpa com a mão as partes do
corpo, as coxas, os braços, os quadris e isso o alivia. Pelo menos, tem certeza que essas
partes de si mesmo existem. Os leitos lhe parecem macios demais e permanece muito
tempo sem poder habituar-se com o corpo mergulhado no colchão fofo. Deita-se sempre
sobre o canapé, e envolve-se na coberta de viagem para sentir um contato áspero sobre o
corpo. Às vezes, pensa em trabalhar. Mas, para quê? Que adiantaria? Em parte alguma está
no seu lugar. Nada o prende a nada. O que faz e empreende não tem conseqüência
alguma. Mais ainda: pode, e isso é para ele uma tortura, voltar imediatamente atrás do que
fez. Que vire à direita ou à esquerda na rua, compre cigarros ingleses ou turcos, mande que
o acordem às seis ou às oito horas, calce sapatos amarelos ou pretos, tire do banco
trezentos ou mil marcos, pouco importa, pode, e é para ele uma tortura, fazer o contrário.
Poderia sempre agir de outro modo, fazer o oposto do que faz. Nada tem importância. Pode
modificar a opinião a qualquer hora sem ter de se arrepender, sem acarretar
conseqüências. A vida não é possível, é um fato indiscutível, senão porque nos permite
voltar sobre o passado! Mas o sentimento da revocabilidade lhe foi tirado em plena força da
idade. É irrevogavelmente que foi condenado, que expiou a pena, que é obrigado a
continuar a viver; mas, a viver esmagado pela sensação do irrevogável é impossível. Por
isso, sua vontade se obstina em encontrar mil e uma pequenas coisas revogáveis que
oferecem um desmentido à lei da vida, numa reação da natureza que quer a sua desforra.
Sente-se como que fora da lei, escapando a qualquer regra, a qualquer norma. 
Vive constantemente meditando como encontrar uma solução para esse estado de
coisas. Sua alma padece perturbação que atinge os limites da loucura. Às vezes, acode-lhe
uma ideia que lhe promete a salvação: divisa a possibilidade de tornar a entrar num mundo
onde não poderá sempre voltar atrás de seus atos e onde a irrevocabilidade que marcou
seu destino não será mais senão a irrevocabilidade do destino comum de todos. Seria uma
maneira de entrar de novo para dentro da lei, da lei suprema que não exclui mortal algum.
Ou então, deveria permanecer para sempre amaldiçoado. 
 Refaz sua mala, vai para a montanha. Transpõe desfiladeiros, vales, passa as noites em
albergues perdidos, longe da multidão dos ociosos e dos turistas. Nenhuma paisagem o
detém, nenhum prado tem perfumes para ele; florestas, cumes nevosos, nada o força a
levantar os olhos. Não sente alegria, nem curiosidade nada o seduz, nada o faz estremecer.
Retoma o trem, vai para mais longe, sempre para mais longe. Hospeda-se em não importa
que hotel, à tarde desfaz a mala, na manhã seguinte torna a arrumá-la, embarca para mais
longe, cada vez para mais longe. Cidade após cidade. Igrejas, fontes, estátuas, palácios.
Indiferença imutável. Um livro de gravuras, mediocremente interessante, produzir- lhe-ia o
mesmo efeito. As salas do palácio Pitti, as pinturas do Ticiano e do Tintoreto em Veneza, as
pinacotecas de Munich. Nada. Outrora, tudo isso o entusiasmava. Era o que dava à vida
encanto e valor. Os apóstolos de Dürer, bonacheirões aborrecidos. A estatueta de Cassel
que teve tanto desejo de rever: um bronze inteiramente azinhavrado. Nada vibra nele,
fatos, obras de arte, mundo: mataram tudo. Tudo recua cada vez mais. Observa que os
homens se agruparam, se constituíram em classes, em categorias, Organizações. A
assustadora distância lhe permite verificar mudanças que escapam aos que nelas se
encontram envolvidos. Não é apenas a linguagem que se modificou, a entoação, o sentido
das palavras também se transformou. As fisionomias não têm mais a mesma expressão que
há vinte anos. Quem está descontente hoje, está de uma maneira diferente; a cólera do
homem irritado, o espanto do homem espantado, não são mais os mesmos que
antigamente. Os olhos estão mais abertos, mais fixos, mais francos; o riso, mais nervoso, o
passo, mais apressado para chegar ao fim, a atitude da maior parte dos hemens lembra a
do caçador à espreita. Não era assim, antigamente. A agulha aponta para outro rumo,
novas leis regem as relações e a atividade. As pessoas apresentam outro aspecto, cores
diferentes; a vida um outro ritmo, meios de comunicação que desconhece, modos de amar
e odiar que o levam a se sentir de outra raça, danças e prazeres em face das quais tem a
mesma impressão que Gulliver em Brobdignac. Os velhos lhe causam piedade, os jovens
lhe inspiram estranho receio. Quando menino, experimentou qualquer coisa de análogo na
primeira vez em que esteve num estabelecimento de banhos e foi obrigado a se despir
completamente. Gulliver em Brobdignac, ou antes, o mineiro esquecido no fundo da mina e
que lá passou cinco séculos anquilozado nas trevas. No dia em que volta à superfície do
solo, sente-se absolutamente perdido no meio de milhões de homens e nem mais
reconthece o céu, a terra e a água. 
 Um dia, dirige-se de Hanover para Berlim. Em face dele, no compartimento, encontra-se
sentada uma senhora de aparência simpática que pode ter trinta anos. Está vestida com
gosto, mostra-se reservada, seus traços têm delicadeza invulgar, o olhar é singularmente
velado, o sorriso que paira sobre os lábios extraordinariamente irônico e, no entanto, cheio
de bondade. O que mais o atrai são suas mãos, em movimento constante, que ora se
ajuntam, ora se esfregam uma na outra, ora acendem um cigarro, ora seguram os cotovelos
dos braços cruzados. Parecem revelar ao mesmo tempo desejo e tédio de viver. São mãos
suaves, brancas, com dedos longos e afilados. Não pode parar de olhá-la, de estudá-la e a
moça sorri com seu sorriso doce e irônico. Entabulam conversa. Apesar de nada dizerem de
notável, cada qual adivinha nas palavras do outro a solidão em que ambos vivem. É a
mulher que parece mais impressionada; pressente algo de horroroso. Certamente seu
instinto é bastante desenvolvido. À medida que se aproximam do ponto terminal, torna-se
taciturna, toda sua pessoa exprime indolência melancólica, como se, ébria de sono e com a
metade do corpo suspensa sobre um abismo, fosse-lhe indiferente, talvez mesmo
agradável, cair nele. Maurizius compreende, mais com os sentidos do que com o espírito,
sua garganta se aperta, também ele silencia. Olham-se sem dizer nada; com olhos
arregalados, timidamente, durante longos e longos minutos; ele está pálido como um
cadáver; ela, por seu lado, tem a expressão grave, dolorosa e tensa do ser que não pode
ainda adivinhar se vai ser punido ou acariciado. Descem do trem juntos, dirigem-se lado a
lado para o ponto de táxis, tomam, sem qualquer combinação, o mesmo carro e a mulher
indica o nome de uma rua de Halensee. Fazem o longo trajeto em silêncio. A mulher nota
que Maurizius, às vezes, é sacudido por um tremor e olha para o ar sem dizer nada,
sorrindo. Possui em Halensee um pequeno apartamento: duas peças no quarto andar,
confortáveis, bem arranjadas, com vislumbres de luxo mesmo, cheias de flores e de livros.
Quem será aquela mulher? Divorciada? Sem filhos? Uma vítima do destino? Uma infeliz
impelida por ele para um último refúgio? Ela nada lhe diz, ele nada quer saber, como ela
também não deseja saber o que lhe trarão as horas futuras. Em todo caso, está seguro de
que não pertence ao rol dos seres que possuem apenas uma vida fictícia; está ali, viva,
meiga, irônica, tranqüila, com uma espécie de generosidade. Muitas mulheres têm assim,
depois de renunciarem a toda esperança ("a metade do corpo suspensa sobre o abismo"),
essa terna fleugma reveladora de uma alma desprendida de tudo. Prepara o chá, arranja a
mesa, insiste para seu visitante se servir e, como ao lhe dirigir a palavra se interrompesse
bruscamente, eis que ele pronuncia seu nome, seu verdadeiro nome. Ela reflete, olha-o,
reflete de novo. —— "Eu sou Fulano de Tal" — diz ele. Umas poucas palavras que contêm
vinte anos. Observa-o, seus lábios tremem, percebe-se que luta contra o receio de ele
interpretar mal os sentimentos que ela acaso possa exprimir, não importa que sentimento
seja. Então, ela se ajoelha a seus pés, toma sua mão e leva-a aos lábios quase com respeito.
"Oh! Deus dos céus!" — pensa Maurizius sem que seu pensamento ouse ir mais além. E ali
permanece sem falar, sem ver, sem respirar. Ignora o nome daquela mulher. Como é bonito,
ela não ter um nome: isso a coloca acima do resto dos homens. "Meu Deus, livrai-me do
meu nome!" — suplica Maurizius com fervor. Braços o enlaçam. Um corpo se reergue,
agarrando-se a ele. A ele, a ele... e reergue-se. Se, pelo menos, pudesse fazer qualquer
coisa para agradecer. Mas, não pode agradecer porque nada possui para dar. Bruscamente,
sente-se só. Para onde foi ela? É evidente que o abandonou. Acabou-se tudo, jamais voltará.
Levanta-se, desesperado, olha em torno, escuta, entra no quarto vizinho. Ela está deitada e
espera-o com os olhos irradiando tal excitação que se sente transtornado. Não é verdade,
tudo aquilo é um sonho. A luz do quarto se apaga. Estão deitados, juntos. Sussurros,
silêncio. Nada mais. Sussurros, silêncio. As horas passam. Um soluço estrangulado, bárbaro,
desesperado. Foi ele. A que não tem nome quer consolá-lo. Não, não. Nada de consolos!
Seu sexo está morto. Assim, não tem mais nenhuma dúvida, nada mais tem em comum
com o mundo. Também o seu sexo está morto. Quando a aurora começa a iluminar as
vidraças, Maurizius se levanta, veste-se rapidamente; a mulher está adormecida e não o
ouve se afastar. A maleta na mão, (sua mala havia ficado na estação) atravessa as ruas. O
ar matinal o refresca. Procura um hotel e dorme até a noite. Ao acordar, sente um bem-
estar extraordinário, toma um banho e encomenda lauta refeição. Às nove horas, dirige-se à
estação, compra uma passagem de primeira classe para Leipzig. Em Leipzig, resolve
continuar para o sul, no noturno. Não tem nenhuma cidade em vista e diz o nome de uma
qualquer, porque é obrigado a dizer um. Agora, está só no compartimento.  
 Lê os jornais, abre um livro, fecha-o. Cerra es olhos e ouve o sangue bater nas artérias.
Ao fim de longo tempo, reabre-os, tira uma maçã do saco de viagem, descasca-a com
cuidado, corta-a em fatias e come com prazer aquele fruto fresco e sumarento. Sente-se
animado, quase arrojado, dir-se-ia. Encosta a cabeça à vidraça. De quando em quando,
luzes brilham como foguetes nas trevas densas. Levanta-se, acende um cigarro e passeia
assobiando pelo corredor. Abaixa o vidro. A terra está negra, o céu difunde leve claridade.
Algumas estrêlas brilham, longe, muito ao longe. As colinas apresentam nítidos contornos.
A locomotiva asmática arqueja, o comboio sobe uma ladeira, uma torrente ruge lá embaixo.
Atira o cigarro que cai obliquamente no abismo. Durante muito tempo consegue seguir
com a vista o pequeno ponto vermelho. Sempre assobiando, dirige-se para a portinhola,
torce a maçaneta, abre a porta. O vento frio da noite o fustiga no rosto. Com estridor o trem
passa pela beira de um viaduto, muito alto, sem parapeito. Um precipício se abre sob seus
pés. Agarra-se à grade coberta de fuligem, desce o degrau, lança um olhar perscrutante,
curioso, sobre o abismo. Tem a impressão de que o mundo está súbitamente de pernas
para o ar, com o céu estrelado lá embaixo. É desagradável pensar que a grade coberta de
fuligem está sujando as mãos. Por um instante, tem a tentação ridícula de voltar para lavá-
las. Da janela vizinha do vagão seguinte, o chefe do trem o avista. Está desorientado de
raiva e de pavor: agita o punho, puxa violentamente a correia da janela e grita com a boca
completamente aberta. Maurizius não o ouve. Vê, apenas, a boca escancarada e duas
fileiras de dentes de animal feroz. Com a cabeça, faz um gesto de indiferença. E dá um
passo no vazio. Já era tempo; alguns metros mais e a composição teria atravessado o
viaduto. Deu aquele passo como se passa de uma sala para outra. Foi um passo no mundo
do irrevogável, do irrevogável, sem regresso possível.
CAPÍTULO 16

 
I

A VOLTA DE ETZEL  causou sensação entre os criados e os locatários da casa. E provocou


na valorosa Rie, é escusado dizer, intermináveis demonstrações ruidosas. Ia de um extremo
para outro, ora soluçava, ora ria a ponto de não saber onde estava com a ca- beça. Etzel
chegou às dez horas da manhã. Como tivesse pouco dinheiro, viajara de quarta classe e
permanecera quase vinte e quatro horas em caminho. Após tê-lo assaltado com perguntas
e apertado a mão a ponto de desarticular o braço, após ter-se expandido em exclamações e
agradecimentos a Deus, Rie levantou os braços para o céu ao verificar o lastimável estado
em que estava. Na verdade, mais parecia um remendão do que um rapaz de boa família. O
paletó estava rasgado, a camisa repugnante de sujeira, as calças lembravam dois sacos de
batatas, costurados juntos, Deus sabe como; os sapatos estavam gastos, furados; os
cabelos caindo sobre a nuca; o rosto descarnado tinha-se alongado, os olhos abertos
brilhavam em meio de um oval pálido. Depois de ter-se desembaraçado do saco de turista,
tão cheio como no momento da partida, disse que queria lavar-se, pediu roupa de baixo,
comida e foi para o quarto. Rie não se podia resolver a deixá-lo consigo mesmo. Fez na
cozinha toda espécie de recomendações referentes à refeição. Em seguida, foi para junto
dele. Apressou-se em abrir armários e gavetas, correu a abrir as torneiras do banheiro,
voltou, e, ao mesmo tempo que tirava com mãos trêmulas tudo quanto precisava, pôs-se a
falar com febril volubilidade. De início, contou-lhe fatos sem importância, pequenos
acontecimentos verificados com a vizinhança, o nascimento de uma criança, um roubo
noturno em casa do joalheiro Herschmann, um princípio de incêndio em casa dos Malapert.
Interrompeu-se súbitamente: - "Nossa Senhora! a torneira, Ema! a banheira vai
transbordar!" Depois, passou para as notícias mais importantes, as da própria casa. O barão
Andergast não está. Nada de extraordinário nisso, pois, invariàvelmente, vai diariamente às
nove e meia ao tribunal O que é estranho é que, de algum tempo para cá; regressa a uma
hora desacostumada, onze horas, onze e meia, e instala-se no seu escritório onde fica o
resto do dia. E onde, às vezes, toma as refeições. Está completamente transformado. Por
exemplo: não pendura mais as roupas na porta para serem escovadas. Certa vez, ficou três
dias sem se barbear. O mais extraordinário, é que não parece trabalhar quando fica, do
meio-dia até tarde da noite, sentado à sua secretária. Rie o surpreendeu, dois dias antes
(tinha um telegrama para entregar-lhe) com os cotovelos apoiados sobre a janela, abrindo e
fechando seu isqueiro de prata com ar preocupado. Tudo isso talvez concorde com o boato,
inverossímil, mas insistentemente espalhado por toda parte, de que pedira aposentadoria.
Etzel ouvia com atenção mas sem dizer nada. Sentia que Rie tinha qualquer coisa
pesando no coração. Mas, ela o mandou antes tomar seu banho e, enquanto se vestia,
ocupou-se em preparar-lhe uma refeição substancial. Ela própria pôs a mesa e olhava,
encantada, enquanto devorava com apetite tudo quanto lhe apresentavam. E arriscou: -
"Você cresceu, meu querido Etzel, está com verdadeiro ar de homem. Vamos ver, em
resumo, o que foi que deu em você? Quando penso nisso, fico de braços caídos." - "Deixe-os
cair e não pense mais nisso" - interrompeu Etzel rapidamente." - Continue dando-me
notícias; vejo bem que há muitas. Vamos, fale!" Rie se inclinou sobre ele e informou-o,
então, que sua mãe estava na cidade, hospedada em casa da generala. Etzel se levantou
num salto: - "É verdade, Rie? Você jura?" Rie fez que sim com a cabeça e acrescentou que a
senhora Andergast tinha estado alí dez dias antes e tivera com o barão uma longa
conferência. Falara com ela, também. Algumas palavras apenas, é verdade, um bom-dia,
um agradecimento, mas fora suficiente para mostrar que era uma verdadeira senhora. -
"Como ela é, Rie? Moça"? Bonita? Você a observou bem? Diga-me tudo." Passou o braço
esquerdo em torno do pescoço de Rie, acariciando sua face com a mão direita. Rie, que de
há muito não estava acostumada a semelhantes demonstrações, desfalecia de felicidade e
derramava lágrimas. - "Então, mora de fato em casa de minha avó, Rie?" - "Sim, meu caro
Etzel." - "É preciso telefonar-lhe imediatamente; não me perdôo por não o ter feito ainda."
Etzel a segurou pela manga: - "Não, Rie, espere. Não gosto de telefonar. Não é delicado. Irei
pessoalmente. Mas é preciso antes..." No mesmo instante, a porta se abriu de par em par e
o barão Andergast apareceu sobre a soleira.   
 II 

A transformação a que Rie se referira saltava aos olhos. O porte da cabeça já o revelava.
Parecia mais pesada em cima dos ombros e pesava sobre o pescoço, que esmagava. Fios de
prata apareciam na pera e a coroa de cabelos grisalhos em torno do crânio calvo tinha
encanecido. As pálpebras se erguiam e se abaixavam num movimento fatigado, o olhar
violeta estava sem vida, como se alguma coisa o tivesse tornado imóvel. Decadência
profunda de um cérebro que havia perdido a poderosa organização. Para ter chegado a
esse ponto, era preciso que aquele homem tivesse sido atingido por determinados fatos
mais intensamente do que jamais tinha imaginado ou temido. Distâncias foram abolidas.
Convicções que pareciam imutáveis foram postas em dúvida. Um recuo se operou. Um todo
perfeitamente coerente voou em estilhaços. Os próprios estilhaços, novamente quebrados,
voltaram à forma primitiva. Imagine-se um palácio que tivesse voltado ao estado de
pedreira, seu estado original e, frente a ele, o arquiteto, abandonado por todos os
auxiliares, desprovido de qualquer assistência e tendo mesmo esquecido as proporções da
obra que fora sua. Nada de surpreendente no fato de esse homem apresentar a imagem de
um explorador completamente desamparado. A expressão concentrada de sua fisionomia
revela a impossibilidade em que se encontra de afastar o pensamento de certas questões
sobre as quais sabe, no entanto, que não se deve mais voltar. Análise, crítica,
argumentação, contra-argumentação, obcecam-no sem cessar, mas não o conduzem a
nenhuma solução. Pelo contrário, barram-lhe o caminho que, etapa por etapa, faz penetrar
o homem até o coração do homem. Alega talvez — é um meio cômodo — que teve de se
inclinar ante a necessidade de lhe ceder lugar. Tudo isso não pesa muito sobre as decisões
da consciência, as únicas de importância no momento. Voltar sobre seus passos para
observar as coisas, eis o que chamo: olhá-las de perto. Aquele que marcha na frente pode
conservar à distância tudo quanto pode lembrar sua queda e seus erros, mas basta que se
volte uma única vez para ficar imediatamente cercado por uma horda hostil, nuvem de
morcegos que moram em casebres desabitados. E deixa de ser o que ele é, o funcionário
exemplar cujo frio julgamento não deve ser perturbado por nenhum olhar lançado sobre o
avesso das coisas. Durante certas tardes e certas noites, o barão teve a impressão de ser
um alter ego do prisioneiro Maurizius. Emparedado na morada das suas recordações,
estava condenado a suportar a presença, a promiscuidade de indivíduos suspeitos. A seu
redor, agrupavam-se receptadores, ladrões, assassinos, rufiões, prostitutas embriagadas,
mães que haviam martirizado seus filhos, falsificadores, falidos, falsos-moedeiros,
infanticidas, escroques, contrabandistas, envenenadores, incendiários, multidão de
criminosos de todas as idades, que poderiam satisfazer às necessidades de dez mil
romancistas, e ele, o procurador-geral, lançava-lhes ao rosto o veredito da culpabilidade.
Afinal, aquilo se torna questão de hábito, como tudo mais; hábito ao qual o prende uma
posição e que mantém o crédito de uma nação. Insensibiliza-se. A toga isola. Toma-se lugar
sobre a curul e entrega-se o malfeitor ao juiz que, apoiando- se no código, o coloca fora da
possibilidade de ser nocivo. Não se pode ser delicado para com a borra da sociedade.
Semelhante ideia não viria nem ao espírito do condenado Maurizius, nem ao do seu querido
amigo Klakusch, infestado de sentimentos românticos. Não se pode permitir ao mundo
estritamente ordenado dos acontecimentos transformar-se numa miscelanea de
irresponsabilidades, nem retomar todas as segundas-feiras pela manhã a ordem social no
seu começo para reconhecer, com desespero, nos sábados à tarde, que se é ao mesmo
tempo impotente e incompetente. Mas, quando esses milhares e milhares de rostos
desfilam em frente, acontece que um ou outro se destaca, ameaçador, sob a luz de súbito
clarão, e uma pergunta aflora em seus olhos e lábios cerrados. Nada mais que uma
pergunta, uma pergunta informulada. Mas é o bastante. Qualquer que seja a fisíonomia
saída daquela multidão, é o bastante. E, fato espantoso, cada um serve de testemunha
para todo um grupo, da mesma maneira como o detento Maurizius testemunhou por todos,
por toda uma humanidade. Automàticamente, o criminoso condenado há dezesseis anos e
cujo nome jaz no esquecimento transforma-se em acusador porque, de um recanto
ignorado, surgem fatos, ou fatos se revelam dignos de atenção. Mas, se tivesse parado
outrora, teriam transformado um caso jurídico num problema humano. Ora, que fazer com
um problema humano? Nem o Estado nem a Lei fornecem recursos para tratá-lo, apesar de
tudo, o estado mórbido que obriga o barão Andergast a fazer o exame retrospectivo, a
voltar sobre os passos, leva-o, ajudado pela extraordinária memória dos fatos, a representar
o desenvolvimento, todo o conjunto daquele processus, exatamente como fez com o
processo Maurizius cujos autos consulta de vez em quando, investigando incansàvelmente,
investigando sempre e sempre. Como seu espírito não fica num caso particular, uma
dezena pelo menos de outros caos se agitam ao mesmo tempo em seu pensamento, tudo
se confunde às vezes na sua cabeça e tem a impressão de ter sido transportado em pleno
sabá. E não é raro abandonar a casa já tarde da noite (Rie o ignora) e vagar pelas ruas até a
aurora. O ruído e o eco das vozes que o perseguem rompem o silêncio: — "O acusado
pretende ter estado naquele dia em casa de uma tia, entre meio-dia e uma hora e meia,
mas ficou provado que..." — "Requeiro que seja reconduzida ao tribunal a testemunha que,
sem razão, tenta desacreditar a defesa..." — "Testemunha, seu depoimento levanta graves
objeções, lembro-lhe seu juramento..." Olhares temerosos, veementes afirmações,
fisionomias angustiadas ou cheias de ódio, o exame minucioso do emprego do tempo, as
idas e vindas de um acusado, o acaso, os objetos que se transformam em traidores, as
perquirições nos quartos, nos jardins, nas adegas, nas margens dos rios e nos lupanares, as
mentiras, as denegações, as falsas incriminações, a luta desesperada para obter a
absolvição, os jurados incapazes de formar uma opinião, os advogados presunçosos,
determinados juízes indolentes e outros cheios de atrapalhações, a insuficiente clareza do
texto da lei, a opinião pública desorientada, e, no meio disso tudo, à luz do exame
retrospectivo, os dados do processo se enchem de dúvida sinistra e parecem de repente
semelhantes ao trigo apodrecendo num celeiro... Castigo do tamanho de um braço para
uma falta do tamanho de um dedo... sem consideração pela pessoa moral... e sempre, aqui,
acolá, por toda parte, um acusado, com a pergunta informulada nos lábios, que denega o
direito de julgar e acusa o acusador. Muitas vezes, ao passar alguém a seu lado, o barão
Andergast tem um movimento de receio como se devesse justificar-se e, no entanto, não se
pudesse lembrar por que razão e a que propósito. E, quando o transeunte se afasta sem
que nada se tenha produzido, sente vontade de correr atrás dele e de pedir para
caminharem um pouco juntos. Gostaria de não ficar tão só. Imagina não ser de todo
impossível que encontre bruscamente numa esquina o ex-detento Maurizius. Essa ideia se
transforma em desejo, esse desejo em necessidade. Para à porta dos hotéis para examinar
quem entra e quem sai. Introduz um olhar pela fresta das cortinas para o interior dos cafés
e restaurantes. Maurizius poderia aí se encontrar, só, também ele, tão só quanto o barão
Andergast. Uma noite, entrou no edifício que Violeta Winston habitara. Bateu em sua porta.
Uma criada que abriu a porta do apartamento vizinho, informou-lhe que Violeta Winston
havia partido oito dias antes. Voltou no dia seguinte, como se se tivesse esquecido
completamente do que lhe haviam informado ou como se pensasse que, naquele intervalo,
Violeta pudesse ter regressado. No entanto, não guardava nenhuma lembrança dela. E se,
em verdade, ela tivesse aberto a porta, teria continuado perfeitamente indiferente. Na noite
seguinte, procurou em casa, entre antigas cartas, as que Etzel lhe escrevera (eram em 410
pequeno número, datando das férias ou de sua estada no Odenwald), releu-as com a maior
atenção e tornou a lê-las, como se aquelas palavras simples tivessem tido um segundo
sentido que precisasse descobrir de qualquer modo e sem demora.  
 III 

Etzel caminhou para e pai e estendeu-lhe a mão: — "Bom- dia, papai." Parecia que
tinham estado juntos na véspera à noite. O barão Andergast, evitando encontrar seu olhar,
olhava para mais longe, por sobre sua cabeça, para o avental de Rie. — "Você voltou?"—
perguntou, abrindo e fechando a boca como um peixe. Silêncio. — "Você quer vir ao meu
escritório?" — "Certamente, papai." E passaram para o gabinete de trabalho. Rie os seguiu
com um olhar que dizia: "Se o garoto sair são e salvo, agradecerei a Deus!" O barão
caminhava na frente. Deixou Etzel entrar, fechou a porta, indicou uma cadeira: — "Sente-
se!" Etzel olhou para a mão morena e peluda que apontava a cadeira e sentou-se
docilmente. O barão Andergast ia e vinha pela peça com passo rápido. Etzel nunca o vira
com aquele passo apressado e a agitação interior que assim se revelava despertou nele
uma íntima satisfação. — "Eu pensava poder-me conformar" — começou o barão Andergast
— "mas não consegui. Existe uma espécie de traição que, na minha idade, não se pode
admitir. Pouco importa entrar em detalhes. Você me dispensará de fornecê-los. A primeira
pergunta que se impõe não é: que aconteceu? mas: o que fazer, agora?" — "Perfeitamente,
papai, é assim que também penso" — respondeu modestamente     Etzel. O barão
Andergast parou de súbito e olhou-o: — "Este bom-senso o honra muito" — disse em tom
sarcástico. Aproximou-se ainda um passo, colocou a mão sobre a fronte do rapaz e,
afastando sua cabeça para trás: — "Você está com muito mau aspecto." — "Estive doente,
papai." — "Doente? Não é de espantar. E por onde andou você rolando para voltar assim?"
De repente, com a fisionomia contraída, gritou, não se contendo mais de furor: — "Diga,
por onde andou você rolando, aí pelo mundo?" E escondeu o rosto entre as mãos, soltando
um gemido. 
 Etzel não esperava por aquilo. Era a primeira vez na vida que via seu pai fora de si. Ficou
profundamente perturbado. Há pouco também, quando colocara a mão sobre sua testa,
pareceu-lhe que aquela mão tremia. Revia o vinco da boca, sua expressão torturada, e isso
o fazia refletir. Também sentia satisfação. Enquanto preparava uma resposta, o barão se
forçara a recuperar a calma. — "Quando parti, não lhe escrevi dizendo por que precisava
partir?" — disse Etzel. — "Não se tratava em absoluto de rolar pelo mundo." O barão
Andergast se sentou na poltrona da secretária, cruzou as pernas e coçou nervosamente a
barba. — "Você se esquivou a todas as investigações com habilidade admirável" —
observou. — "É verdade! Não teria faltado mais nada!" — disse Etzel levantando os
supercílios. O barão achou seu tom insolente e tossiu ligeiramente para adverti-lo. — "Pois
bem! E então? Nothing suceeds like success, dizem as americanos." — "Eu sei; nesse
intervalo, aprendi um pouco de inglês" — intercalou Etzel com um sorriso cáustico que
aumentou mais ainda o descontentamento do pai. — "Pois bem! sim" — disse apelando
para toda a sua coragem e levantando a cabeça num gesto enérgico — "Maurizius é
inocente. Absolutamente inocente. Foi condenado injustamente. É, um assassínio
judiciário." O barão Andergast respondeu por um tremor apenas perceptível. Examinava as
unhas. O habitual jogo de mãos. E respondeu no tom glacial que Etzel sempre chamara "a
temperatura refrigerante do almoço": — "É, fácil de dizer. Seria mais difícil apresentar a
prova." — "Se não fosse capaz de apresentá-la, não estaria aqui." Um olhar de espanto lhe
vem da secretária. Em seguida, esse olhar procura o assoalho como que posto em fuga por
adversário mais poderoso do que esperava. Existe na expressão do rapaz alguma coisa à
qual é difícil resistir: a chama da certeza. — "Eis uma bela frase" — replicou o barão, frio e
irônico. — "Waremme proferiu um falso testemunho" — prosseguiu Etzel resoluto. —
"Consegui descobrir tudo. Encontrei o indivíduo. Não se chama mais Gregorio Waremme,
mas sim Georges Warschauer. É, aliás, o seu verdadeiro nome. Vive em Berlim. Durante
sete semanas, estive quase diariamente com ele. Não posso dizer que nos tenhamos
tornado amigos. E uma coisa da qual não posso falar. Era... mas isso não tem importância
alguma. O que importa é que me confessou haver proferido um falso testemunho. Se você
deseja saber como, poderei contar-lhe qualquer dia desses. Não foi fácil, pode crer.
Arranquei-lhe a confissão do fundo das entranhas. Também tenho uma testemunha, uma
mulher, da qual ele nem supõe a existência, mas posso contar com ela. graças a Deus."
Etzel faz essa breve narração acentuando as palavras e mantendo-se na espreita, com os
olhos fixos no seu interlocutor e com a expressão da fisionomia tensa. O barão Andergast
balança ligeiramente o pé direito e olha para a ponta do sapato. Revê-se no quarto de
dormir de Violeta Winston, olhando para o espelho. O espelho reflete a imagem de uma
espécie de David em pé sobre a palma da mão de um Golias cujo cérebro execrável,
semelhante a uma concha de caramujo, ilumina por meio de uma lanterna. O sombrio
espanto de antigamente mistura-se com o assombro de hoje. Lança um olhar para o outro
lado da mesa, para aquele em quem brilha a chama da  certeza. Ouve a pergunta
imperiosa (parecia uma lâmina de aço fendendo o ar) : — "Que é preciso fazer depois
disso?" — E ele responde, glacial, imperturbável: — "Nada." Etzel salta: — "Como... nada?"
— "Não é preciso fazer nada. Nada resta a fazer." Etzel não pode deixar de abrir a boca
como um idiota. Gagueja qualquer coisa. Seu pai teria enlouquecido? — "Qualquer
providência é supérflua. O condenado Maurizius foi perdoado." Etzel arregala os olhos
desmesuradamente. "Perdoado? Per-do-a-do!" — responde-lhe um leve movimento de
cabeça: — "Perdoaram-lhe o restante da pena." Etzel não pode impedir de estourar na
gargalhada. Sabe que é uma falta de respeito, mas não pode evitá-la. — "Perdoado! Mas eu
estou dizendo que ele é inocente!" Um suspiro de exaspero foi a resposta. — "O decreto de
indulto prevê essa probabilidade ou possibilidade." Frase oca. Etzel esquece o respeito que
lhe inculcaram. Grita: — "Mas se ele é inocente, não tem necessidade de indulto." — "Não
se trata mais de saber se é inocente — responde o barão Andergast em tom decisivo — "e,
além disso, procure ter modos, ouviu?" Etzel se lembra dos preceitos de boa educação
quem cometera o erro de violar muitas vezes em companhia de Waremme. Suas boas-
maneiras vencem por um momento sua indignação. — "Sim, perdão... — balbucia — "Mas,
por que não se trata mais de saber se ele é inocente?" E sacode os ombros com desespero,
como para se libertar de uma invisível grilheta. O barão se digna discutir. — "Admitamos
que seja verdadeiramente inocente. Quero admitir que esteja provado. Suponho que
tenhamos as provas nas mãos, provas incontestáveis." — "Pode admiti-lo sem receio" —
interrompeu Etzel, vibrando de impaciência — "é um fato." — "Esta é a sua opinião
pessoal. Mas, sustentando-a, você abandona o terreno da realidade. Deixe-me terminar.
Você me corta constantemente a palavra. Seus modos são verdadeiramente estranhos.
Digo que você é vítima de um erro que pode estar repleto de conseqüências. Estamos longe
da incontestabilidade jurídica. Você tem a confissão por escrito? Com assinatura
reconhecida por tabelião? Então! As confissões podem ser retratadas. É o que acontece
geralmente. Há cem maneiras de fugir às suas conseqüências. O tempo decorrido depois
do crime torna toda sindicância e toda verificação séria absolutamente impossível.
Testemunhas? Oh! as testemunhas nos fazem ver boas! No primeiro interrogatório, ei-las
hesitantes. No segundo, ninguém mais. Avalie você mesmo, dada a fragilidade dos
argumentos que pode apresentar, se o resultado compensará a demanda. Isso não diz
respeito a você, mas eu devo pensar nestas coisas." Etzel estende o braço: — "Você tinha
começado a dizer outra coisa. Supõe que ele é inocente, quer considerar o fato como
provado, diz você... pois bem! então?" — "Isso não faz nenhuma diferença." — "Nenhuma
diferença! Você fala seriamente? Isso não fará nenhuma diferença, mesmo você estando
convencido de sua inocência?" — "Não, nenhuma. Esbarramos aqui num obstáculo frente
ao qual nossa própria convicção é obrigada a parar." — "Mas trata-se de uma coisa
excessivamente grave, do que há de mais grave no mundo: trata-se da justiça!" — grita
Etzel, não mais senhor de si — "Pode-se anular um julgamento, creio eu! Se não se pode
evitar que a pena tenha sido cumprida, pode-se anular o veredito, pode-se, deve-se
devolver à vítima sua honra. E não somente a honra... afinal, o que é a honra... o que lhe
adiantaria, o que nos adiantaria, a nós todos? A justiça é como a vida, e a injustiça como a
morte. É preciso mexer-se... Você não pode permanecer assim, olhando, de braços
cruzados... Seria... Pelo que sei, um processo pode ser revisto!" O barão Andergast move a
cabeça como um boneco. — "Tagarelice de quem nada entende" — replica irritado e com
voz abafada — "Somos obrigados a ser prudentes. Nós que suportamos a responsabilidade,
não temos o direito de brincar com a justiça e com os tribunais. A revisão de um processo...
criança! Você não tem a menor ideia do que isso significa. Não se vai mobilizar um exército
para por novamente de pé uma árvore abatida que, de qualquer maneira, não seria mais
capaz de se desenvolver e viver. Pôr em movimento um maquinismo poderoso, agitar a
opinião pública, despertar a velha questão que deu tanto trabalho para ser abafada... que é
que você está pensando? Veja, por exemplo, se o falso testemunho não estivesse ainda
atingido pela prescrição, o processo desse Waremme, pela lei, deveria passar por todos os
graus da jurisdição e sua condenação ser baseada em lei. Isso levaria anos. Dou-lhe este
exemplo para mostrar quanto essas coisas são complicadas. Naturalmente, a prescrição
não seria forçosamente um obstáculo. Além disso... há outros interesses a proteger, graves
interesses. A situação de diversas pessoas seria ameaçada, o tesouro do Estado deveria
suportar enormes despesas, a autoridade do tribunal que julgou o processo seria atingida. a
própria justiça ficaria sujeita, na sua engrenagem, a uma crítica dissolvente, a mesma que
já está solapando as bases da sociedade... Renuncie à ideia de que a verdadeira justiça e a
dos tribunais são e devem ser uma só e mesma coisa. É impossível, isso ultrapassa as
possibilidades humanas e terrestres. Existe entre elas a mesma relação existente entre os
símbolos da fé e as práticas da religião. Um símbolo não pode fazer você viver. Mas, quando
se observou as práticas estritas e conscienciosas, saber o símbolo eterno acima de si, isso...
como direi?... Isso nos absolve. Essa absolvição é naturalmente necessária. É igualmente
necessário que nos contentemos com ela." Um discurso. Uma aula de professor. Quando a
voz se cala, silêncio opressivo se estabelece na peça. Etzel permanece um momento com
os olhos baixos, de lábios cerrados. De súbito, grita com voz aguda: — "Não!" Seu olhar tem
um brilho mau: — "Não" — repete — "isso não me pode satisfazer e com isso não me quero
contentar!" Todo o seu cérebro se inflama. O respeito que o continha desfaz-se. — "Eu não
o admito." — balbucia com amargor que atinge as raias da embriaguez. — "Símbolos ...
práticas ... o que é tudo isso... senão péssimas desculpas..." Um novo: — "Procure ter
modos!" — que trovoa aos seus ouvidos, deixa-o indiferente. Não, ele não aceita. O homem
possui um direito primordial, nascido no coração ao mesmo tempo que ele. Cada um tem
direito à sua parte de justiça como à parte do ar que se respira. Se a roubam, sua alma
fatalmente fica asfixiada. — "Não admito a outra interpretação, não quero admiti-la, não
acredito nela. É a astúcia de uma casta. Uma conjuração. O medo dos sumo-sacerdotes de
perder suas rendas. As práticas da religião? O que é que tem a ver com a religião que se
deixe o inocente morrer só porque é uma prática e porque o símbolo está colocado acima
de tudo como o capacete sobre a catadura de um polícia?... ele não aceita nada disso.
Rejeita. Antes não viver mais. É preferível ver o mundo explodir em pedaços do que caído
em tamanho aviltamento. — "Não... não... e não!" "É fantástico!" — pensa o barão
Andergast. Seus braços caem. Parece-lhe que alguém põe sua cabeça em uma panela de
água fervendo. Levanta-se com dificuldade. Com a mão na garganta, declara em tom seco
e com esforço: — "Aliás, nossa conversa é inutil, porque Maurizius aceitou seu indulto. E
aceitou-o sem reservas." Etzel dá dois pulos para a frente. Juntas as mãos à altura dos
olhos, depois coloca-as sobre a boca. — "ele aceitou... aceitou o indulto?" — murmura
timidamente. — "Sem reservas, como lhe disse." — "E continua a viver? Tem coragem de
deixar pesar sobre si essa injustiça"? Fica calado"? E continua a viver?" O barão levanta os
ombros. — "Você vê? Tudo é possível ao homem." — Um sorriso feroz contrai os lábios de
Etzel. — "Efetivamente, vejo que tudo é possível ao homem" — replica em tom ambíguo e
insolente — "Um pode abafar a verdade, o outro morrer dela!" — "Etzel!" — berrou o barão
Andergast. — "Então você conseguiu levá-lo até esse ponto" — prosseguiu Etzel no
paroxismo do desespero (tudo quanto fez foi em vão; tudo em que se apoiava como sobre
um rochedo desmorona lamentavelmente) — "Eis ao que você chegou com seus artigos,
suas cláusulas, sua prudência e seus cuidados... E ainda por cima é preciso ficar calado...
Se ele continua a viver, não recebeu senão o que merecia ... talvez Maurizius ainda tenha
se esbanjado em agradecimentos pelo pontapé com que você o enxotou da prisão. Muito
obrigado, senhores, pelos dezenove anos de cadeia, hein! ... Então, você não sabe quem foi
que atirou? Certamente que sabe. Foi isso, sem dúvida, o que provocou seu indulto ... Creio
que não poso mais suportar tudo isso ... o indulto .. . onde está o juiz, para que lhe cuspam
o seu indulto no rosto... como poderei agora apresentar-me diante dos homens... É o filho
do Andergast, dirão. O pai conseguiu o indulto de Maurizius, o filho calou, estão de
conveniência... É lindo! muito lindo! Belo mundo, palavra de honra. Se pelo menos se
pudesse vaiar imediatamente." Etzel gemeu como se a terra faltasse sob os pés, como se
sua alma fosse abandonar o corpo, enojada por ter sido obrigada, durante dezesseis anos, a
habitar uma morada tão débil, tão nula, tão fátua e pretensiosa, uma morada assim tão
emporcalhada. E continua falando, ofegante, mas suas palavras não se encadeiam mais.
Não pode superar completamente o temor, enraizado nele, que sente pelo pai; mesmo
agora, naquele minuto de suprema aflição, é ele que o detém. Gostaria de dizer qualquer
coisa muito mais decisiva, que tivesse mais amplitude, mas, diante da vulgaridade, da
insignificância, da inutilidade, da impotência das palavras, cala-se. Tem a impressão de ter
a boca cheia de poeira. Gira como um louco em torno da poltrona, seus olhos injetados de
sangue têm um reflexo mau, agita as mãos com nervosismo, agarra o enfeite da poltrona e
arranca-o, mete o lenço na boca, morde-o, põe-no em pedaços. Esquisitas manchas
azuladas surgem sobre sua fronte, convulsionada pelo sofrimento. Solta sons que tanto
podem ser gargalhadas como gritos lancinantes. Simultaneamente, não para de saltar de
um pé para outro, como se estivesse atacado pela dança de São-Guido Não é mais o
menino Etzel, amável, moderado, grave, sensato. É um demônio. — "Espere" — vocifera
com a boca espumante — "você não sairá disso ileso; terá de pagar, sua vez chegará!" O
barão Andergast fica um instante petrificado. Parece uma estátua de bronze. De súbito, faz
um gesto para segurar o rapaz. Prende-o pelo ombro. Etzel se livra dele. Tem o rosto
convulsionado de horror, cólera e náusea. — "Eu não quero mais ser seu filho!" — grita com
incrível violência. — "Canalha!" — estertora o barão Andergast, e, no entanto, todo ele tem
ar de súplica. Etzel correu para a sala de jantar. Rápido, o barão o segue. Da sala de jantar,
Etzel se precipita para o vestíbulo. Rápido, o barão o segue. Atrás deles, as portas vão
ficando abertas. Etzel derruba as cadeiras que encontra pelo caminho. Rie surge em sua
frente. Afasta-a brutalmente e corre para seu quarto. Rápido, o barão o segue. Aquele corpo
enorme e poderoso que corre com as mãos estendidas para a frente tem verdadeiramente
algo de espantoso. Toda essa corrida se assemelha a uma perseguição horrível, alucinante,
infernal. Rie, espavorida, abre a boca. Não sai nenhum som. Chegando ao quarto, Etzel
bate a porta com fúria, dá uma volta na chave. O barão Andergast esmurra a porta. A
cozinheira e a criada saem precipitadamente da cozinha. Ouve-se, no quarto trancado, um
ruído prolongado de vidros quebrados. Rie solta um grito que faz acorrer todos os
locatários. O barão exerce toda sua força hercúlea contra a porta e consegue arrombá-la.
Num pulo, está dentro do quarto. Rie vem atrás dele, torcendo as mãos. Na soleira da porta,
comprimem-se os criados dos Andergast e dos Malapert, o porteiro, sua mulher e um
estafeta que acaba de chegar com o correio. Etzel jaz próximo da mesa, inundado de
sangue. O barão Andergast se aproxima, cambaleando, e segura sua cabeça entre as mãos.
— "Água, água." — balbucia. Alguém corre para buscá-la. Rie junta as mãos para rezar. Que
aconteceu? Etzel quebrou as vidraças das duas janelas e também o espelho do guarda-
roupa, os frascos de cima do lavatório e os vasos de porcelana da cômoda, numa fúria de
destruição e com a alma tomada de loucura. O sangue corre pelas suas têmporas, pelas
faces e pelo nariz. Atirou-se de cabeça sobre as vidraças, arrebentou o espelho com os
punhos e tem as mãos retalhadas de ferimentos até os pulsos. Suas vestes estão
encharcadas de sangue. Depois, seu furor se acalmou repentinamente. Está sereno, agora.
De pé, próximo à mesa, contempla seus ferimentos com um sorriso de satisfação bravia e
move as pálpebras porque o sangue corre sobre os olhos. Súbito, seu espírito fica
extraordinariamente tranqüilo, como se, com o sangue, uma parte da amarga decepção
que lhe envenenava o coração fluíra de suas veias. Apresenta o aspecto de um desgraçado
que, após uma queda, se levanta lentamente, olha perplexo ao redor e indaga o caminho
que perdeu e do qual se desviou, não encontra nenhuma direção para sair do lugar em que
se encontra, passa o olhar pelas proximidades e informa-se do rumo a seguir. Em dado
momento, os olhos de Etzel caíram sobre seu pai. Um espanto hesitante se desenhou em
suas feições, como se a imagem habitual que sempre o dominara se tivesse transformado
em uma outra, colocada de certo modo um pouco mais baixo e sobre a qual era obrigado
mesmo a se inclinar para reconhecê-la. Não era mais o ser enigmático, detentor e guardião
de segredos, não era mais o regente de misteriosos destinos, não era mais Trimegisto, mas
um pobre homem culpado, quebrado. O barão Andergast tinha entreaberto a boca.
Avistaram-se seus dentes enormes. E foi assim, com a boca entreaberta, que se deixou cair
numa cadeira. Seus olhos violeta, vazios de qualquer expressão, pularam das órbitas como
duas bolas. (Quando, pela tarde, partiu, acompanhado por um médico, para a casa de
saúde, ainda se encontrava no mesmo estado, a boca semi-aberta, os olhos saltados, sem
expressão no olhar) . Etzel observava com ar pensativo aquela fisionomia que se corrompia
literalmente diante dos seus olhos e, enquanto Rie se dispunha a lavar o sangue que corria
em suas faces, sua fronte e suas mãos, disse, com voz infantil, seca e clara: — "Mandem
chamar minha mãe". Foi o que fizeram.
IV   

 Aqui termina a história do processo Maurizius, mas não a de Etzel Andergast. 


1 Sobrenome dado pelos gregos a Hermes ao Mercúrio dos romanos que significa três vezes máximo. Era o deus
soberano das revelações. — Nota dos tradutores
2 Em francês, no original.
3 Em francês, no original.
Sumário
 

1. PRIMEIRA PARTE
1. O VALOR DA VIDA
2. CAPÍTULO 1
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
3. CAPÍTULO 2
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
4. CAPÍTULO 3
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
5. CAPÍTULO 4
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. CAPÍTULO 5
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
7. CAPÍTULO 6
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
8. VIII
9. IX
8. CAPÍTULO 7
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
9. SEGUNDA PARTE
1. ENTRE DOIS MUNDOS
10. CAPÍTULO 8
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
11. CAPíTULO 9
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VII
7. VIII
8. IX
12. CAPÍTULO 10
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
13. CAPÍTULO 11
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
14. CAPÍTULO 12
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
6. VI
7. VII
15. CAPÍTULO 13
1. I
2. II
3. IV
4. V
5. VI
6. VII
7. VIII
8. IX
9. X
16. TERCEIRA PARTE
17. A MORTE IRREVOGÁVEL
18. CAPITULO 14
1. I
2. II
3. III
4. IV
5. V
19. CAPÍTULO 15
1. II
2. III
3. IV
4. V
5. VI
6. VII
20. CAPÍTULO 16
1. I
2. II
3. IV
Table of Contents
 

PRIMEIRA PARTE
O VALOR DA VIDA
CAPÍTULO 1
I
II
III
IV
V
VI
CAPÍTULO 2
I
II
III
IV
V
VI
CAPÍTULO 3
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 4
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 5
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
CAPÍTULO 6
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
CAPÍTULO 7
I
II
III
IV
V
SEGUNDA PARTE
ENTRE DOIS MUNDOS
CAPÍTULO 8
I
II
III
IV
V
VI
CAPíTULO 9
I
II
III
IV
V
VII
VIII
IX
CAPÍTULO 10
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 11
I
II
III
IV
V
VI
VII
CAPÍTULO 12
I
II
III
IV
V
VI
VII
CAPÍTULO 13
I
II
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
TERCEIRA PARTE
A MORTE IRREVOGÁVEL
CAPITULO 14
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 15
II
III
IV
V
VI
VII
CAPÍTULO 16
I
II
IV
Table of Contents
PRIMEIRA PARTE
O VALOR DA VIDA
CAPÍTULO 1
I
II
III
IV
V
VI
CAPÍTULO 2
I
II
III
IV
V
VI
CAPÍTULO 3
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 4
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 5
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
CAPÍTULO 6
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
CAPÍTULO 7
I
II
III
IV
V
SEGUNDA PARTE
ENTRE DOIS MUNDOS
CAPÍTULO 8
II
I
III
IV
V
VI
CAPíTULO 9
I
II
III
IV
V
VII
VIII
IX
CAPÍTULO 10
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 11
I
II
III
IV
V
VI
VII
CAPÍTULO 12
I
II
III
IV
V
VI
VII
CAPÍTULO 13
I
II
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
TERCEIRA PARTE
A MORTE IRREVOGÁVEL
CAPITULO 14
I
II
III
IV
V
CAPÍTULO 15
II
III
IV
V
VI
VII
CAPÍTULO 16
I
II
IV

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