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MILTON SANTOS O Espaco do Cidadao Copyright © 2002 by Familia Santos 1 edigdo 1987 (Livraria Nobel S.A.) 2 edigio 1992 (Livros Studio Nobel Lida.) 3* edigdo 1996 (Livros Studio Nobel Lida.) 4 edigdo. 1998 (Livros Studio Nobel Luda.) 5* edigio 2000 (Livros Studio Nobel Lida.) 6* edigdo 2002 (Livros Studio Nobel Ltda.) 7 edigio. 2007 (Edusp) Ficha catalogra ca elaborada pelo Departamento Teéct do Sist c: a Integrado de Biblio Santos, Milton, 1926-2001. Espago do Cidadio / Milton Santos. ~ 7. ed. ~ Sao Pau- lo: Editora da Universidade de S30 Paulo, 2007. 176 p.; 14 x 21 em, - (Colegio Milton Santos; 8). Inclui bibliografia. ISBN 978-85-314-097 1-4 1. Geogeafia urbana. 2. Geografia humana. 3. Cidadania. 1. Titulo. IL. Série. CDD-323 Direitos reservados & Edusp ~ Editora da Universidade de Sa0 Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, Travessa J, 374 6° andar ~ Ed. da Antiga Reitoria ~ Cidade Universitaria 05508-900 ~ Sto Paulo ~ SP - Brasil Divisio Comercial: Tel. (11) 3091-4008 / 3091-4150 SAC (11) 3091-2911 ~ Fax (11) 3091-4151 www.edusp.com.br — e-mail: edusp@usp.br Printed in Brazil 2007 Foi feito o depésito legal SUMARIO Prefécio. Introdugdo HA CipabAos Neste Pats? Paises com Tradi¢ao de Cidadania e Outros Nao? Neoliberalismo e¢ Cidadania Atrofiada O Nao-cidadao do Terceiro Mundo.. A Flaboragio Brasileira do Nao-cidadao Uma Sociedade Multitudinaria © Cwavio Mutnano. Os Abusos de Funciondrios sem Mandato Fisco ¢ Cidada Firmas ou Instituicées: Arregimentagio ¢ Manipulacio . A Atrofia do Sindicalismo .. Cidadania Urbana, Cidadania Rural Comparagdes Internacionais ... Z Do Cipapio IMrerrerro Ao CoNsuMIDOR MAIS-QUE-PERFEITO sccecssseeseieee 47 © Opio: Da Religiio ao Consumo . A Moda... A Alienagio.. O “Milagre” Econdémico, Dissolvente Eficaz .. © Consumidor Mais-que-perfeito .. O Consumidor Nao é 0 Cidadio ... © Esraco sem CipapAos O Exemplo de Outros . Modernizagao Capitalista, Terra ¢ Migrages O Direito de Morar .. © Que é Bom para os Pobres Os Pobres ¢ a Cidade Corporativa O Direito ao Entorno A RECONSTRUCAO DA INDIVIDUALIDADE Racionalidade Capitalista e Alienagao Original .. ‘A Busca da Desalienagao Reverter a Influéncia do Mercado O Ser Particular e o Ser Genérico ... © Espo REVELADOR: ALIENAGAO E DESALIENAGAO . Espago ¢ Mercado Espaco e Alienagao Territorialidade e Cultura. Espago, Cultura Popular, Desalienaca As ORGANIZAGOES. Justiga Inatingivel e Ideologias Particulares... Uma Representatividade Enviesada.. Os Qualificativos do Voto: Clientelismo, Populismo, Siglismo As Sociedades de Moradores . Do Inpivipuo ao Cipapio ... 101 Do Homem Solitério ao Homem Solidario .. 101 Da Personalidade Ativa ao Cidadio ..... 103 107 107 109 112 11S 116 LuGar & Vator D0 INpIviDUO. © Espago ¢ as Classes Sociai: Classe, Renda ¢ Lugar © Homem Produtor, Consumidor ¢ Cidadao Um Caso: A Regido Andina da Venezuela Espace ¢ Valor do Homem Outro Caso: O Lazer em $40 Paulo . 116 Distribuigdo Desigual da Informacio . 118 Do Maneto EeoxOaico AO MODFto CIVIC .oesssccsesseseeseeseesennsensente LDL Insuficiéncia do Modelo Econémico, Importancia do Modelo 124 Modelo Politico e Papel dos Partidos... 122 Pobreza © Modelo Civico 1 124 Por um Novo Modelo Civico 125 Subordinagio do Modelo Econémico .. 126 Os Pactos Teraironias «. 129 Modernizacio Capitalista, Construgio de Brasilia ete. . 130 Impasse, Golpe de Estado, Modernizagao Ampliada 132 Pactos Funcionais . 133 Estapo, LONGO E Curto PRrazt 135 O Curto Prazo 136 Escalas Geograficas e Horizontes Temporais 136 Opgoes Nacionais ¢ Organizagao Territorial 137 TeRRITORIO F CIDADANIA « 139 Lugar e Valor do Individuo . 139 Para Quem é Real a Rede Urbana? .. . 140 Localizagao, Estado ¢ Mercado 141 Fixos ¢ Fluxos .. 141 idadania © Territério . 144 Nivcis Territoriais, Escalas de Agio 146 A Instrumentalidade dos Limites 149 Geografizagao da Cidadani: 150 CoNcLUSOES 153 Enxergar as Metamorfoses do Consumismo , 154 © ontywas 6 .1S5 ~ 157 159 Socializagao da Informagao. Do Direito 4 Cidade aos Direitos Territoriais Por um Discurso Territorial Competence Bibliografid .osssssssesssee 163 g PREFACIO ste livro jd se vinha gestando em meu espirito ha mais de dez anos. Em parte, pela reflexdo do que represento, eu mesmo como pessoa, diante da ambigao de ser um cidadao integral neste pais. Em parte, como gedgrafo, a vista de como se organiza a rede de caminhos ¢ a rede de cidades segundo hierarquias, e de como se distribuem territorialmente os individuos, segundo suas classes sociais ¢ seu poder aquisitivo. Apareceu-me, entéo, como idéia a explorar, a de que a ativida- de econdmica e a heranga social distribuem os homens desigualmen- te no espaco, fazendo com que certas nogées consagradas, como a rede urbana ou a de sistema de cidades, ndo tenham validade para a maioria das pessoas, pois 0 seu acesso efetivo aos bens e servigos distribuidos conforme a hierarquia urbana depende do seu lugar socioeconémico ¢ também do seu lugar geografico. Essa € uma das conclusées a que penso ter chegado em meu livre O Espago Divi- dido. A mobilidade ou o imobilismo no espago aparecem, entdo, como categorias de andlise que somente depois iria desenvolver mais a fundo. 2 Isso se da nos territérios nacionais como um todo, mas também dentro das cidades, sobretudo nas enormes aglomeragées urbanas do Terceiro Mundo. Este, alias, € 0 objetivo da pesquisa que agora de- senvolvo, a partir da realidade brasileira, mas tentando abarcar o que se passa em outros paises subdesenvolvidos. Sou agradecido aos recursos que obtive da Finep, do CNPq ¢ da Fapesp, com os quais, por isso mesmo, este livro esta em débito. Foi, na verdade, trabalhando sobre a realidade brasileira, e com a intengdo de ser nela atuante, que me passou pela cabega a idéia de tratar a questao da cidadania pelo angulo geografico. Este pequeno volume pretende contribuir para o debate sobre a redemocratiz do brasileira, lua que nao se esgota com a promul- gagiio de uma nova Constituigdo. Preferiria, certamente, que este li- yro houvesse aparecido um ano antes, mas um livro nao se termina de escrever quando se quer, mas quando se pode. Alguns temas, nao propriamente os de minha especialidade, de tal forma me arrasta- ram que decidi consagrar-Ihes um espaco maior que o inicialmente pretendido. A questao da alienagao ¢ do seu oposto, a individuali- dade forte, foi um desses problemas. O problema do individualismo e¢ do consumo, e do seu oposto, a sociabilidade na cidadania, foi outro desses temas. Tudo isso me distraiu de outro objetivo, esse mais pessoal, que busquei com este livro. Imaginei que seria bom, ao completar sessenta anos, dar sinal de mim mesmo, lembrando- me de que, para o intelectual, s6 o trabalho assegura a possibilida- de de continuar trabalhando. Trabalhei muito este livro, com a intengdo de oferecer uma leitura agradavel e instrutiva. Nao sei se obtive uma ou outra coisa. Eu pré- prio acabei por gostar mais de uns capitulos que de outros e apenas nao 0s indico para nao desapontar 0 leitor. Mas sei que alguns trechos so fastidiosos ¢ é sobretudo para estes que pego tolerancia. Meus alunos no Departamento de Geografia da Universidade de Sao Paulo, entre 1984 e 1986, est4o entre os merecedores de crédito, mas sobretudo devo agradecer aos que mais de perto me ajudaram, buscando-me a bibliografia, debatendo problemas, apontando-me dui- vidas: Cilene Gomes, Denise de Souza Elias, Sergio Gertel, Wilson dos Santos. Agradego também a Maria Zélia de Oliveira, que datilografou o manuscrito final, e a todas as pessoas e instituigdes que, de uma forma ou de outra, me encorajaram a concluir este livro, entre as quais a Fotha de S. Paulo e a Tribuna da Babia, onde alguns destes ensaios foram publicados em forma fragmentdria e preliminar. Sao Paulo, maio de 1987, a INTRODUGAO progresso material obtido nestes ultimos anos no Brasil teve como base a aceitagao extrema de uma racionalidade econémica exercida pelas firmas mais poderosas, estrangei- ras ou nacionais, e 0 uso extremo da forga e do poder do Estado na criagdo de condigdes gerais de produgio propicias a forma de cresci- mento adotada. Essas condigées gerais da produgao nao se cingiam a criagdo de infra-estruturas e sistemas de engenharia adequados, mas chegavam a formulagao das condig6es politicas que assegurassem 0 éxito mais retumbante a conjugacao de esforcos ptiblicos e privados, no sentido de ver o pais avangando, em passo acelerado, para uma forma “superior” de capitalismo. Por isso, a nogio de direitos politi- cos e de direitos individuais teve que ser desrespeitada, se nao fre- qiientemente pisoteada ¢ anulada. Sem esses pré-requisitos, seria im- pc de fato a ser criada pelo modelo econémico anunciado como reden- popula- rizou 0 discurso cientificista dos economistas do regime, ¢ acabaram mais pobres ainda. O modelo politico ¢ 0 modelo civico foram instru- ivel manter como pobres milhoes de brasileiros, cuja pobreza viria tor, Alids, muitos pobres acreditaram nos slogans com que s 16+ mentais ao modelo econémico. As esperancas com que este tiltimo acenava as massas eram por demais sedutoras, e estas massas eram despertadas para a necessidade, o interesse, a vantagem de ampliagio do consumo, mas no para o exercicio da cidadania, que era cada vez mais amputada. Colocada de fato a servigo do encontro de combinagées entre pos- sibilidades técnicas mais produtivas - ¢ logo apontadas como as que convinham melhor a toda a sociedade -, a economia se tornava, a0 mesmo tempo, a técnica das técnicas e o modelo, a referéncia maior, de uma elaboragao intelectual destinada a se tornar, sem debate vali- do, concreto histérico ¢ vivido. Assim, a compreensio do movimento social ou, pelo menos, seu equacionamento intelectual com vistas 4 intervengdo pelo planeja- mento — ou, simplesmente, pelas agdes cotidianas do poder publico — ganha como referéncia maior nao propriamente a economia (0 que ja seria abusivo), mas as chamadas necessidades econdmicas, o que, nas condigdes acima enunciadas, consiste em abandonar toda preocupa- ao teleoldégica ¢ em valorizar um pragmatismo que atribui 0 coman- do, sem base filoséfica, da vida social aos instrumentos ¢ a sua utiliza- do racional, em nome do lucro. A partir da idéia de infalibilidade da ciéncia como fator decisivo da atividade produtiva em nossos dias, a ciéncia da economia se viu atribuir uma aura mistica, por conferir credibilidade, por meio de uma formulacdo te6rica, a praticas mercantis com diverso contetido moral. Ao descobrir a possibilidade de novas técnicas, a ciéncia ape- nas alcanca ser histéria quando serve de base a uma agdo econdmica planejada, isto é, a politica econdmica. Essa fornece as formulas mais io entre firmas e 3 adequadas 4 obtengio do maior lucro, a competi¢ vitoria de algumas, orientando os consumos, justificando 0 compor- tamento indutor seletivo do Estado e das organizagées internacionais, escrevendo, em suma, 0 manual de procedimentos imprescindiveis para que, pelo progresso técnico, o processo de subordinagao das fir- mas menores as maiores, de paises pobres a paises ricos e, de um modo mais geral, do trabalho ao capital, aprofunde-se ¢ amplie-se. Desse modo, a economia tende a se apresentar como uma técnica a mais, voltada exclusivamente para as mais diversas modalidades de maximizacao do chamado econémico, escondendo a sua condigao de ser um meio ¢ erigindo-o em verdadeira finalidade. Esse papel que a economia neoclassica se atribui merece ser examinado a luz da hist6- ria recente do mundo e, sobretudo, de certos paises. Esta longa discussdo sobre 0 economicismo nada tem de chora- mingas contra os economistas, esses “técnicos do sérdido”, no dizer de Carlyle (Arrow, 1976, pp. 13-14). © que nos desgosta sio as formulagées empirico-abstratas indis- pensdveis a justificagio dos avangos da ideologia capitalista, e sua materializagao. Esta forma de ver e de praticar a economia esta, por exemplo, em desacordo completo com o esforgo desenvolvido por economistas dos séculos XVII e XVIIL, ¢ também com o de alguns dos seus colegas contemporaneos que guardam a antiga tradigdo da con- fraria, de abragar, em um mesmo esforgo de compreensdo, o homem, a natureza e os instrumentos de sua transformacao, entre os quais se encontram fatores diversos, materiais ¢ imateriais, analisados pelas diversas ciéncias sociais. Em nome dessa interdisciplinaridade, Gnica a dar conta dos fenémenos ligados a modernidade, é que sugerimos uma mudanga de enfoque no tratamento dos problemas humanos li- gados a recuperagao do cidadao. O modelo civico forma-se, entre outros, de dois componentes es- senciais: a cultura ¢ 0 territ6rio. O componente civico supée a defini¢ao prévia de uma civilizagao, _isto é, a civilizagdo que se quer, o modo de vida que se deseja para to- _ dos, uma visio comum do mundo e da sociedade, do individuo enquan- (@RSHMOCIAIC MAS SAS FEGATUEWORVIVERCIA. Para ficarmos apenas com um exemplo, a atribuigao do chamado saldrio-minimo, isto é, da quan- tidade minima de dinheiro capaz de assegurar uma vida decente para cada qual e sua familia, nao pode ser estabelecida em fungao dos sim- ples mandamentos da “economia”, mas da cultura. Quando aceitamos que sejam pagos salarios de fome a uma boa parte da populagio, é cer- to que estamos longe de possuir uma verdadeira cultura. a © ESPACO DO CIBADLO 1+ O componente territorial supde, de um lado, uma instrumentagdo, do territorio capaz de atribuir a todos os habitantes aqueles bens servicos indispensaveis, nao importa onde esteja a pessoa; e, de outro lado, uma adequada gestio do territério, pela qual a distribuigdo ge- ral dos bens e servigos publicos seja assegurada. Os niveis territoriais-administrativos responderiam aos diversos niveis da demanda social. Nessas condigSes, deve-se falar de um modelo civico-territorial, a organizagao e a gestéo do espago sendo instrumentais a uma politica efetivamente redistributiva, isto é, tendente a atribuicdo de justiga social para a totalidade da populacao, nao importa onde esteja cada individuo. A plena realizagio do homem, material ¢ imaterial, no depende da economia, como hoje entendida pela maioria dos econo- mistas que ajudam a nos governar, Ela deve resultar de um quadro de vida, material e no material, que inclua a economia ea cultura. Ambos tém que ver com 0 territério e este ndo tem apenas um papel passivo, mas constitui um dado ativo, devendo ser considerado com um fator ¢ nao exclusivamente como reflexo da sociedade. E no territorio, tal como ele atualmente é, que a cidadania se dé tal como ela € hoje, isto é, incompleta. Mudangas no uso e na gestio do territério se impdem, se queremos criar um novo tipo de cidadania, uma cidadania que se nos oferega como respcito a cultura e como busca da liberdade. HA CIDADAOS NESTE Pats? abem, pelo menos, duas perguntas em um pais onde a figura do cidadao € tao esquecida. Quantos habitantes, no Brasil, so cidadéos? Quantos nem sequer sabem que nao 0 sdo? O simples nascer investe o individuo de uma soma inaliendvel de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornarse um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma heranga moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, & comida, a educagao, a satide, a protecdo contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, a justiga, a liberdade ea uma existéncia digna. O discurso das liberdades humanas ¢ dos direitos seus garantidores ¢, certamente, ainda mais vasto. Tantas vezes proclamado e repetido, tan- tas vezes menosprezado. E isso, justamente, 0 que faz a diferenga entre a retérica ¢ 0 fato. © respeito ao individuo é a consagragao da cidadania, pela qual uma lista de principios gerais ¢ abstratos se impde como um corpo de direitos concretos individualizados. A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distingio, atinge a todos ¢ investe cada qual com a forga de se ver respeitado contra a forga, em qualquer circunstdncia. & 20+ A cidadania, sem davida, se aprende. f assim que ela se torna um. estado de espirito, enraizado na cultura. F, ralvez, nesse sentido, que ver na propria letra das leis, mediante dispositivos institucionais que assegurem a fruigdo das prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, 0 direito de reclamar e ser ouvido. A cidadania pode comegar por definigdes abstratas, cabiveis em qualquer tempo ¢ lugar, mas para ser valida deve poder ser reclama- da. A metamorfose dessa liberdade teérica em direito positive depen- de de condigées concretas, como a natureza do Estado e do regime, 0 tipo de sociedade estabelecida ¢ © grau de pugnacidade que vem da consciéncia possivel dentro da sociedade civil em movimento. B=pors isso que, desse ponto de vista, a situagio dos individuos nao é imuté- wvelmestaysujeitarametrocessosseravangos. Os homens, pela sua propria esséncia, buscam a liberdade. Nao a procuram com a mesma determi- nagio porque o seu grau de entendimento do mundo nao é 0 mesmo. As sociedades, pela sua prépria historia, sao mais ou menos abertas as conquistas do homem. E os Estados nem sempre coincidem com a sociedade civil, mas, ao contrario, refreiam-lhe os impulsos, € freqiientemente desrespeitam os individuos, sob as justificativas e disfarces mais diversos. A dialética o dado institucional, o dado econémico, o dado cultural e o dado individual da vida social leva em conta o movimento desses fatore: interdependem e interagem. E, C. Weffort (1981, pp. 139-140) mostra como, no seu classico Citizenship and Social Class, Marshall reconheceu no interior das democracias modernas a existéncia de uma tensao permanente, uma “guerra”, diz ele em determinado momento, entre o principio de igualdade implicito no conceito da cidadania e a desigualdade ine- rente ao sistema capitalista ¢ a sociedade de classes (Marshall, 1965, p. 92}. Paists CoM TRADICGAO DE Cipapanta FE OuTROS NAO? A cidadania evolui por meio de um processo de lutas desenvolvi- das paralelamente em diversos paises, que leva da condigao de “mem- bro da sociedade nacional” no século XVII', ao “direito de associa- ¢4o” no século XIX?, até serem alcangados os “direitos sociais” em pleno século XX°*. Em um belo ensaio, Tereza Haguette (1981-1982) descreve a evolugao que comega com a aquisicao do status de cida- dao, membro de uma sociedade civil reconhecida como tal, isto é, a conquista de direitos politicos individuais, prossegue com o reconhe- cimento de direitos coletivos, pertinentes aos grupos que constituem a coletividade nacional e autorizados a formar associagées representa- tivas legitimadas, até que “um terceiro conjunto de direitos — os direi- tos sociais - garantiriam ao individuo um padrao de vida decente, uma protec4o minima contra a pobreza e a doenca, assim como uma participacdo na heranga social”. 1, “Com relagéo ao conceito de cidadania {...] uma répida incursio histérica nos mos- tra que, no século XIX, com a emergéncia do Estado-nacao em toda a Europa, este conceito adguiriu um importante elemento: a qualidade de membro. Pelo simples fato de ser membro de um Estado-nagio, todos os habitantes ascendiam ao status de dao, apesar de que 0 mais elevado direito do cidadao, 0 direito politico de parti- cipar da construgao da sociedade, se efetivaria somente através do voto. Até um passado bem recente — inicio do século XX ~ este direito era reservado a alguns [...]” (T. Haguette, 1981-1982, p. 123). . “No século XIX, 0 direito de associagdo ~ que representa um importante dircito politico foi incorporado ao status da cidadania, proporcionando as bases para a classe trabalhadora adquicir direito politico. Em outras palavras, enquanto os direi- tos civis eram essencialmente individuais, o direito de associagao deu poder aos gru- pos de se fazerem ouvir” (idem, p. 124). 3. “Finalmente, jd em meados do século XX, um terceiro conjunto de direitos ~ os direitos sociais - garantia ao individuo um padrio de vida decente, uma protec minima contra a pobreza e a doenga, assim como uma participagio na heranga so cial. O exercicio destes direitos é, ainda hoje, privilégio dos paises jé integrados a0 sistema do welfare state” (idem, ibidem). + sia aisae sovavars vi ccd 22 A propria palavra cidaddo vai se impor com a grande mutago hist6rica marcada na Europa com a aboligao do feudalismo e 0 inicio do capitalismo. Marx e tantos outros autores saudaram a chegada do capitalismo como a aboligao de vinculos de servidao entre o dono da terrae o “seu” trabalhador, e o surgimento do trabalhador livre, dono dos meios de producao. As aglomeracées humanas, os burgos, foram © teatro principal dessa luta e 0 palco dessa enorme conquista. Com o homem do burgo, o burgués, nascia o cidadao, 0 homem do trabalho livre, vivendo num lugar livre, a cidade. Assim, como a passagem do feudalismo para o capitalismo, a do trabalho servil para o trabalho livre no se deu de uma noite para o dia. O processo de formacao da cidadania nao foi tao brutal como” , . As conquistas cidadas nao ficaram af. A pratica dessa porcio de liberdade adquirida foi o aprendizado para novas liberdades, até que se chegasse as id¢ias modernas de sociedade civil, um corpo social que 86 existe porque ha homens ciosos dos seus direitos; ¢ existe a despei- to do Estado. Nao fora assim ¢ 0 ideario liberal nfo se teria alastrado na Europa e, dela, nio se teria transferido para outros continentes. E assim que esse projeto chega aos Estados Unidos, fazendo desse pais seu principal bastido. O fato, porém, € que nao é licito confundir o liberalismo de Tocqueville ou 0 cidadao da era do capitalismo concorrencial com o cidadao na era da teletronica. Impée-se a necessidade de atualizagio do conceito e do instituto correspondente. Em diversos paises ~ ¢ isso em maior ou menor grau -, 0 idedrio da cidadania ¢ a legislagdo correspondente foram se adaptando. A he- ranga cultural, as novas idéias politicas, as novas realidades do mun- do do trabalho, as novas definigdes do intercambio social foram os fermentos dessa mudanga. As revolugées socialistas, desejosas de rom- per com as relag6es sociais impostas pelo capitalismo e de reconhecer os direitos das massas, tiveram, também, um papel dialético nessa transformag¢io, ainda que criticos atuais do que chamam o “socialis- mo real” protestem contra a auséncia de contetido liberal na promo- ao social empreendida no leste. NEOLIBERALISMO E CIDADANIA ATROFIADA A grande crise econdmica em que vivemos conduziu a certos retro- cessos em matéria de conquistas sociais € politicas. O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que prega a abstengo estatal na drea produtiva, atribui ao Estado capitalista uma grande cépia de poder sobre os indi- viduos, a titulo de restaurar a satide econémica e, assim, preservar 0 futuro. A alegacio de que o grande desemprego é necessario para aumentar 0 emprego daqui a alguns anos é um desses argumentos consagrados para justificar uma recessio programada. Os “socialis- tas reais” também prometem, a partir das restrigdes atuais as liberda- des classicas, um si ténoma do Estado {separado da sociedade civil) sera minimizada, se tema social em que, no futuro, a intervengado au- no abolida, na regulagao da vida social. Um trago comum a esses paises vem, todavia, do fato de que neles houve condigdo para que a luta histérica pela conquista dos direitos dos cidadaos abrangesse, a0 longo do tempo, parcela consideravel da populagdo imbuida, consciente ow inconsciente, da idéia de sociedade civil e da vocagio de igualdade. A instalagdo de tal estado de espirito € de tal estado de coisas precede a implantagao das grandes mudangas sociais que viriam comprometé-los: o papel da maquina e do industria- lismo no intercdmbio social, o uso da astiicia ou da forca nas relagdes internacionais, a chegada do capitalismo corporativo ¢ a instrumentali- zacio das relagées interpessoais, a vit6ria do consumo como fim em si mesmo, a supressdo da vida comunitaria baseada na solidariedade so- cial ¢ sua superposigao por sociedades competitivas que comandam a & busca de status e nao mais de valores. Em tais sociedades corporativas, reina a propaganda como fazedora de simbolos, 0 consumismo como seu portador, a cultura de massas como caldo de cultura fabricado, a burocracia como instrumento e fonte de alienagao. Esse quadro, hoje comum a todos os paises capitalistas, ganha ain- da mais nitidez nos paises subdesenvolvidos como 0 nosso. E necessério lembrar que, para muitos paises do Terceiro Mundo, © empobrecimento da moralidade internacional atribuiu aos impera- tivos do progresso a presenga de regimes fortes, as distorgées na vida econémica € social, a supressao do debate sobre os direitos dos cida- daos, mesmo em suas formas mais brandas. Deixaram de ser permitidos: a defesa do direito ao trabalho ¢ a uma remuneragao condigna, 0 reclamo dos bens vitais minimos, o di- reito informagao generalizada, ao voto e, até mesmo, a salvaguarda da cultura. O NAo-cipapAo DO TERCEIRO MUNDO Mas ha cidadania e cidadania. (NOSIpaseseubUesenNO Oso internacional 4. “[..]a cidadania, como subdesenvolvimento, estd associada a divis do trabalho. Seu escopo no é 0 mesmo nos paises metrépoles e nos satélices. Em uma economia mundial baseada em metrépoles politicamente fortes e satélites na- cionais fracos, a cidadania - como a riqueza € 0 desenvolvimento econdmico ~ & desigual e estratificada” (T. Haguette, 1981-1982, p. 125). A Exasoracao Brasiteira DO NAO-cipapao. © caso brasileiro tem de ser analisado sob essa luz, na medida em que tais fatores, escalonados no tempo nos paises do Norte, aqui apa- recem e se implantam de uma so vez. Aleonvergencialdelvariasicausasyp ao mesmo tempo revolucionarias ¢ dissolventes, iria ter um impacto” -fortemente negativo no processo de formagio da idéia da cidadania ¢ GaFEAAAASMAGGATAAGNM as nesta, como em outras questdes, hd uma especialidade brasileira a realgar. Em nenhum outro pais foram assim contempordneos 'e concomi- _tantes processos como a desruralizagao. as migracoes brutais siio do consumo de massa, o crescimento econ6mico delirante, a con- centracao da midia escrita, falada ¢ televisionada, a degradagao das escolas, a instalagdo de um regime repressivo com a supressao dos direitos elementares dos individuos, a substituicdo rdpida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais ¢ se despreocupa com os aspectos finalistas da existéncia e entroniza o egoismo como lei superior, porque é o instru- mento da buscada ascensao social. Gmilligandoleidadao (Srmowse um conswnidor, que aceita ser/chamado de usuario, Em menos de trinta anos, isto é, no espaco de uma ou duas gera- ges, essas transformagées se deram concomitantemente no Brasil, o que multiplicou exponencialmente o seu potencial j4 por si sé nega- tivo, sobretudo porque a classe média entao criada ja nascia debai- xo das influéncias indicadas acima. Na realidade, tais mudangas per- versas ndo apenas se deram paralelamente, mas sistematicamente, 0 que acentua a sua forga ideolégica, na medida em que os fendmenos correspondentes acabam por se justificar a partir de suas proprias relagGes causais, isto é, naturalmente. O quadro nao esta, certamen- te, completo. 26+ Com certeza nao saberiamos empreender a imensa lista de vari: veis com valor explicativo, mas temos de acrescentar, pelos menos, mais duas, extremamente imbricadas com as demais. Uma é a imersio do pais, desde praticamente o fim da Segunda Guerra Mundial, em um clima de guerra fria e 0 concomitante engajamento em uma poli- tica econémica subordinada a4 Alianca Atlantica. Essa causa é muito pouco mencionada quando se deseja equacionar a problematica na- cional, mas realmente estd presente na equacio politica internacional e interna, na condugio da economia, na conformagao da sociedade e na moral correspondentes, tanto quanto na configuragao territorial. O modelo econdmico que conduziu ao chamado “milagre econd- mico” vai buscar suas raizes nos mesmos postulados que levaram a supressdo das liberdades civis, acusadas entio como um fermento de- letério, capaz de levar o pais a anarquia. Trata-sc, também, de um modelo politico ¢ social, responsdvel tanto pela climinagao do em- brido de cidadania que entio se desenvolvia, como pela op¢ao de alargamento de uma nova classe média em detrimento da massa de pobres que o “milagre” nao apenas deixou de suprimir, como tam- bém aumentou’. O crescimento econdmico assim obtido, fundado em certos setores produtivos e baseado em certos lugares, veio a agravar a concentragao da riqueza ¢ as injustigas, jd grandes, de sua distribui- cdo. Entre as pessoas ¢ entre os lugares. Como tal crescimento se fazia paralelamente ao apelo a um consumo impossivel de se generalizar, as linhas de crédito abertas para fortalecer os produtores ajudaram a agravar as desigualdades ¢ santificar as distorgdes. O equipamento do pais, destinado ao escoamento mais facil e mais rapido dos produtos, serviu, ao modelo econémico que 0 gerou, para a criagio do modelo 5. “Nao existe um livro chamado ‘O espirito das fuvuras leis brasileiras’, nem Montesquieu para escrever este livro. [...] O texto nio existe porque 0 espirito que buscamos necessita de uma conjuntura de idéias e insticuigées inéditas. Esse espirito tem de enquadrar um sistema de desenvolvimento acelerado com a redistribuigio de renda ¢ um Estado com sérias capacidades para manter 0 proceso de desenvolvimento e redistribuigao da renda a0 mesmo tempo, Esse espirito exige instituigdes que possam manter a liberdade individual e a participagao social e poli- tica” (Teuber, 1981, pp. 151-152) territorial correspondente: grandes ¢ brutais migracées, muito mais migragdes de consumo que de trabalho, esvaziamento demografico em intimeras regides, concentracao da populagao em crescimento em algumas poucas areas, sobretudo urbanas, com a formagao de gran- des metrépoles em todas as regides ¢ a constituigdo de uma verdadei- ra megaldpole do tipo brasileiro no Sudeste. Além do que, para os seus moradores menos méveis, a cidade & impalpavel. Ela, porém, impée-se como um amontoado de signos apa- rentemente desencontrados, agindo, no entanto, em concerto, para limitar mais do que para facilitar a minha ago, tornando-me impo- tente diante da multiplicidade das coisas que me cercam e de que posso dispor*. Uma Soctepape Murtirupinaria Criava-se, assim, uma sociedade multitudindria ~ seria, j4, uma sociedade de massas ou um seu arremedo? — sem o concomitante de um real consumo de massa, pois o poder aquisitivo faltava cruelmen- te a uma grande parcela dos novos urbanos. O consumo de massa é multiforme e abrangente. O que se deu no Brasil foi um consumo exclusivo que, mesmo para os estratos sociais beneficiados, mais se referiu a alguns bens materiais que ao conjunto de bens, a comegar pelos bens imateriais, que facilitam 0 acesso a uma vida nao apenas confortavel, como, também, mais digna’. 6. “A concentragao urbana e, com ela, a diferenciagao crescem mais depressa para a produtividade. F 0 fundamento da alienagao urbana. Um equilibrio neurético termi- nna, no entanto, por se estabelecer em beneficio da ordem mais coerente da produgio {u]” (Baudrillard, 1970, p. 87). 7, Em uma de suas colaboragdes semanais & pagina 2 da Folha de S. Paulo, intitulada “Celso Furtado Revisitado”, Jarbas Passarinho comenta a impressio que obteve, h vinte anos, do livro A Pré-Revolugdo Brasileira, do renomado economista bra sileiro. Celso Furtado ja se referia ao dilemma entre a liberdade e o desenvolvimento rapido, considerado como um falso dilema pelo comentarista atual, Na verdade, a contradigio se deu entre um crescimento material acelerado pouco preocupado com a esséncia e a realiza cidadanias de segunda e terceira classe que caracterizavam a esmagadora maioria Jo cultural da sociedade, oferecendo como resultado as Zt 28+ O consumo de massa esbogado valeu-se da midia, em crescimento vertical, para impor gostos e precos. Esse trabalho de seducao foi facilitado pela propria atracdo que as novas midias impuseram sobre 0 ptiblico’. Criadores de moda, difusores do crédito, o papel dos meios de difusio deve ser realgado como o do colaborador privilegiado das artimanhas da produgio de massas estilo brasileiro, uma produgio de massas contente de si mesma e necessitada apenas de um mercado voluntariamente restringido. Isso garante 0 nao-esgotamento da revo- lugdo das esperangas ~ isto é, das grandes esperangas de consumir -, € ajuda a colocar, como meta, nao propriamente 0 individuo tornado cidadao, mas 0 individuo tornado consumidor. O efeitos daninhos dessa metamorfose ainda se farao sentir por muito tempo, e agora funcionam como um fator limitativo na clabo- ragao de um projeto nacional mais conseqiiente, jA que os projetos pessoais afloram e se exprimem com um vasto componente de aliena- cdo. E assim para a maioria da populagao, desprovida de meios para uma anilise critica de sua propria condicao. Também € ainda mais grave para os milhées de individuos que nasceram depois que tal proceso se iniciou ou que a ele se incorpora- ram sem poder distinguir aspiracdes pessoais legitimas e imposicdes do sistema econdémico e politico, Trata-se aqui daquela confusao en- tre liberdade ¢ dominagao, de que fala Marcuse quando se refere as condigées de existéncia no mundo de hoje’. dos brasilciros. Cidadaos de primeira classe sao 0s que se beneficiaram desse cres- cimento econdmico distorcido. 8. “A deformagao que se faz a respcito dos meios de comunicagao eletrénicos decorn portanco, da evidente deformagao do significado do que cles efetivamente transmi tem e de uma incompreensio a respeito da relagao entre a aparéncia ea esséncia dos fendmenos no processo de conhecimento, Sea televisio e 0 radio sio ainda os tinicos nstrumentos que atingem as dezenas de milhdes de brasileiros que mal manejam um lépis, que mal soletram o ABC, a papagaiada em torno do fim das barreiras culturais entre os povos, a faléncia da escrita — ¢ do jornalismo escrito ~ so criagdes de inre- lectuais que leram excessivamente e tiveram contato quase nenhum com as lutas poli leolégicas praticas do povo brasileiro” (“Projeto de um Didrio”, Retrato do Brasil, Sao Paulo, Politica, 1984, p. 7). 9. “Psicologicamente, e € $6 isso o que aqui nos preocupa, a diferenga entre dominagio icas, econ6micas, culturais A urbanizacgao fundada no consumo é, também, a matriz de um combate entre a cultura popular que desertava as classes médias para ir se abrigar nos bairros pobres, cultura popular hoje defendida pelos pobres, cuja pobreza impede, afinal, sua completa imersdo nessas novas formas de vida, fundadas pelo mesmo consumo que levou os pobres a cidade ou nesta fez pobres os que ainda nao o eram. Na cidade, sobretudo na grande, os cimentos se dissolvem ¢ minguam as solidariedades ancestrais, Ali onde o dinheiro se torna a medida de tudo, a economizagao da vida social imp6e uma competitividade e um selvagismo crescentes. As causas dos males apa- recem como se fossem a sua solugao, circulo vicioso que escancara as portas das favelas para a cultura de massas, com o seu cortejo de despersonalizacdo, e a substituigao dos projetos pessoais safdos da cultura, isto €, de dentro do individuo, por outros projetos elaborados de fora deste mesmo individuo, projetos decididos a conquistar todo mundo pela forca da propaganda". Assim, a cultura popular, cultura “selvagem” e irracional, é substituida, Jenta ou rapidamente, pela cultura de massas; 0 espaco “selvagem” cede lugar a um espaco que enquadra e limita as expressdes populares, ¢ 0 que deveria surgir como sociedade de massas apenas se dé como sociedade alienada". Em lugar do cidadao surge o consumidor insatisfeito ¢, por isso, yotado a permanecer consumidor. Sua dependéncia em relago aos novos objetos limita sua vocagao para obter uma individualidade e ¢ liberdade est se tornando menor. O individuo reprodur, em seu nivel mais profun- do, na sua estrutura de instintos, os valores e os padrées de comportamentos que servem para manter a dominag3o, enquanto a dominai auténoma, menos ‘pessoal’, mais objetiva e mais universal. O que hoje domina é 0 aparelho econdmico, politico ¢ cultural, que se tornou uma unidade indivisivel construida pelo trabalho social” (Marcuse, 1970, p. 3). 10. A propésito da forma como a imprensa escrita, falada ¢ televisionada influi sobre a mente dos individuos, pode ser Gil a leitura de um livro didaticamente redigido: Midia: O Segundo Deus, de Tony Schwartz (1986). Um enfoque filoséfico do tema é oferecido por Hans Magnus Enzensberger em The Consciousness Industry... (1974). ‘A midia tende a focalizar mais as noticias ruins do que as boas, a mostrar as aber- racgdes cm lugar do que € normal. E possivel que, fazendo assim, esteja corresponden- do ao gosto piblico. Mas o resultado |...” (Rybezynski, 1985, p. 27). (0 se torna cada vez menos Ge we reduz a possibilidade dos encontros interpessoais diretos e enriquece- dores, porque simbélicos em sua prépria origem. A comunicagao en- tre as pessoas é freqiientemente intermediada por coisas. Freqiiente- mente os movimentos de massa também se esgotam nas coisas, tendo uma légica mais instrumental que existencial’. As mobilizagdes sao locais ou setoriais. A socializagao capitalista, originaria de uma divi- (0 de trabalho que a monetarizagio acentua, impede movimento glo- bais e um pensamento global. A reivindicago de uns nao raro repre- senta um agravo para o outro. A forca da alienagdo vem dessa fragilidade dos individuos, quando apenas conseguem identificar 0 que 0s separa € nao o que os une. Uma visio mais abrangente das coisas ¢ dos fenémenos acaba por ser negada aos cidadaos comuns, em vista da concentragao da midia, da sobrecarga de informagoes irrelevantes"’ e da tendéncia a apenas 0 ampliar certos aspectos da realidade, cuja escolha para a exibica publica é, com freqiiéncia, ligada ao mundo da politica e dos interes- ses. Lindbeck (1975, p. 35) j4 havia chamado a atengdo para a dramatizagao que é feita sob “problemas especificos ¢ concretos” que atraem e fixam a atengio sobre aspectos geralmente menores dos even- tos. Quem olha a televisio com algum senso eritico j4 deve ter-se apercebido dessa forma de manipulacao dos acontecimentos. 12, “O poder social é, hoje, mais que nunca, mediado pelo poder das coisas. Quanto mais intensa a implicagio do homem com as coisas, ¢ mais as coisas © dominam e mais the faltam aqueles tragos individuais genuinos ¢ mais sua mente sera transfor mada em um autémato da razao formalizada” (Horkheimer, 1974, pp. 129-130). 13, “Esse estado de superinformagao perpétua e de subinformagao erénica caracteriza nossas sociedades contemporaneas. O imediato torna, de fato, a decifragdo de um acontecimento ao mesmo tempo ‘mais facil e mais dificil, Mais facil porque choca de imediato, mais dificil porque se manifesta totalmente de imediato. Num sistema de informagdes mais tradicional, 0 acontecimento assinalava por seu proprio conteddo sua area de ditusio. Sua rede de influéncias era, cada vez mais, definida por aqueles aos quais tocava. Seu trago. era mais linear [...] estando doravante cortados os intermediarios, opera-se uma tclescopagem, € na incandescéncia das significagées ficamos cegos” (Nora, 1976, p. 189) O Cipapaéo MurtiLapo 2. extensa a tipologia das formas de vida nao cidadas', desde a retirada, direta ou indireta, dos direitos pulac&o?, as formulas eleitorais engendradas para enviesar a manifestagao da vontade popular, ao abandono de cada um a sua ivis & maioria da po- propria sorte. As burocracias ~ estilo brasileiro — nos tratam como se fossemos objetos, desde a filosofia do emprego as exclusdes consagradas. O Brasil inscreve na Constituigao federal que o trabalho é um direito e a 1. A propésito dessa cidadania mutilada, um livro recente organizado por Maria de Lourdes M. Covre, A Cidadania que Nao Temos (Siv Paulo, Brasiliense, 1986), nos da uma boa visio teérica e empirica, a partir da realidade brasileira atual, Uma outra coletinea, A Construgao da Cidadania, publicada pela Universidade de Brasilia, em 1986, sob coordenagao de Jodo Gabriel Lima Cruz Teixeira, aborda essa questao sob outra problematica. $6 recentemente, no Rio de Janeiro, uma decisio governamental terminou com o oprobrio dos elevadores separados, uns reservados aos proprictarios © as pessoas com “boa aparéncia” ¢ outros destinados aos domésticos, entregadores ¢ gente sem “boa aparéncia”, esta tiltima 9 incluindo freqiientemente os negros. Essa iniciativa nao encontrou imitadores em outros Estados, apesar do discurso igualité- assificag © ESPAGO DO CIpADAO Rp assisténcia social prerrogativa de todos. Mas institui, ao mesmo tem- po, 0 nao-trabalho, por meio da faldcia do FGTS, que encoraja a rotatividade e consagra a nao-assisténcia. Aos desempregados somente agora sao reconhecidos direitos, ¢ assim mesmo tio precarios que ainda esto muito longe do que € praticado em tantos outros paises capitalistas. Tudo desiguais sem remédio, os desiguais institucionais, o negro, o nordes- o sem falar nos tino, as mulheres, cujo discurso tolerado nao tem, entretanto, mereci- do a resposta adequada. Sessenta € nove por cento das mulheres brasileiras ganhavam me- nos de dois salérios minimos em 1982 (eram 48,5% ganhando menos de um salario mfnimo), enquanto o indice constatado para os homens era menor: 56,9% (eram 30,6% ganhando menos de um salario mini- mo) (Dowbor, 1987, p. 57). Dos brasileiros sem instrugao, com até trinta anos de idade, cujo montante nacional era de 54% em 1982, uma reparticéo segundo a cor mostra que eram 18,1% entre os amarelos; 44,4% entre os bran- cos; 66,9% entre os considerados mesticos; ¢ 68,6% entre os negros (Dowbor, 1987, p. 53). Mas os negros pardos nao ultrapassavam, em 1980, os 45% da populagio. Os brasileiros ganhando menos de dois salérios minimos eram 60.9% da populacao total em 1982. Mas o percentual sobe para 70,8% eT. entdo, estimada em 7% e 35%, respectivamente. Ao contrario, os que 5% para os pardos c negros, cuja participacao na populagao era, ganhavam mais de cinco saldrios minimos eram 4,4% do total da populacao brasileira nesse mesmo ano, os indices correpondentes a pardos e negros sendo de 0,6% e 0,1% do total, respectivamente (PNAD, 1982; Dowbor, 1987, pp. 55-56). rio de tantos governadores ¢ prefeitos. O professor Aziz Ab'Saber nos dew dois novos argumentos: 0 que ele chama de verdadeiro apartheid 4 moda brasileira, utilizado ‘em praias, como algumas do litoral paulista, e em estagdes, como Posos de Caldas, para barrar os turistas de um dia, os “farofeiros”, e outros participantes das classes economicamente desfavorecidas. Os Apusos DE FUNCIONARIOS SEM MANDATO A intervengio de entidades ¢ funciondrios sem mandato na vida cotidiana das pessoas freqiientemente constitui um agravo irreparavel 4 cidadania. Isso aconteceu no regime autoritdrio, e continua exis- tindo em plena Nova Republica. E © que é mais grave, sem que haja sinais de mudanga para melhor. Como classificar 0 desembarago com que os organismos fazendarios decidem mudar as regras do jogo financciro c fiscal, alternando com isso a situagao de intime- ras pessoas? Quantos, valendo-se de uma simples decisio do Con- selho Monetario Nacional, enriquecem de uma noite para o dia? Certamente, porém, é muitas vezes maior 0 numero dos que empo- brecem em fungao de portarias ou resolugGes. Ora, entre os direi- tos do cidadao esta o de manter todas as suas conquistas, obtidas pelo trabalho sob um qualquer regime politico-social. Pelo menos até que este seja legalmente mudado, isto é, enquanto tem vigéncia juridica, esté funcionando um verdadeiro pacto, bom ou ruim para a sociedade, ¢ nao é licito que as regras de jogo assim constituidas possam ser rompidas ao bel-prazer de um funcionario. Nao pode um cidadao ser empobrecido - nem enriquecido - por uma decisio nao legalmente motivada, quando se vive num Estado que se pro- clama como Estado de dircito. O dircito a integridade se inclui entre as prerrogativas inalienaveis do cidadao e se estende do cam- po biolégico aos da cultura, da politica e da moral, isto é, inclui o patriménio material e imaterial. Fisco & CIpADANIA A propésito de agravos a cidadania, o exemplo do fisco é, alias, gritante, tanto mais que 4 maioria das pessoas passa despercebida essa forma autoritaria de agir, Pois o fisco brasileiro no apenas ofende a cidadania como alardeia tais ofensas, divulgando na imprensa, com ar triunfalista e desenvolto, sua lista intermindvel de faganhas. Ou- tro dia, 0 ministro decidiu substituir a imagem-simbolo. Mas a pré- ia pria designagio que a Receita Federal alegremente se outorgava, com o apelido de Ledo, nado era apenas de um extremo mau gosto, como de enorme indelicadeza para com os contribuintes. A idéia de que cada um de nés é, sempre, um faltoso efetivo ou potencial, permanece na vida didria dos trabalhadores, menos por vicio original da raca e mais pela falta de medidas do poder piblico que erijam a credibilidade em uma norma, a comecar pela propria credibilidade do governo. A descrenga generalizada ¢ @ priori é mais um dado legal ¢ administrativo do que mesmo moral. Nao ha povos desonestos por indole. Como, porém, 0 proprio governo admite o contrario, nao é raro se confundirem equivoco e mi-fé. De outro modo, nao se justificariam os alardes nacionalmente le- vantados sobre 0 que, de uns anos para ca, passou a se chamar de malha, grossa ou fina, branca, negra ow cinzenta, na qual se aprisi nam contribuintes por simples erros na declaragao do imposto sobre a renda. Tranqiiilamente, como para provar que este nao é um simples pais de cidadaos, a Receita divulga comunicados que, impunemente, se desmentem uns aos outros, quanto ao namero, a naturcza ¢ a gra- vidade dos equivocos, logo adjetivados como crimes. Em certos casos, ‘0, poderia pa- recer claro 0 dedo de uma viciosa inquisi¢&o politica, da parte de zelosos defensores do regime, catando defeituosidades mesmo em modestas declaragdes. 0 de redemocratiza: registrados antes do atual proc Agora, porém, quando o pais se promete uma nova era, os costu- mes fazenddrios devem mudar. Guardar para a tiltima semana do ano ou ainda arrasta-la para o ano seguinte a definigéo da situagdo de milhares de pessoas, a maioria das quais certamente sem culpa, é in- suportavel chicana, obra de ma-fé, ¢ cabal desrespeito ao cidadao. Ainda que os indigitados fossem (ou sejam) culpados, esse nao seria um procedimento correto e digno em uma verdadeira democracia. A cidadania exige, de parte da administracdo, um comportamento res- peitoso, a presungao de boa-fé em todos os casos, ¢ a comunicagao em tempo habil dos erros supostos, para que os responsaveis possam cor- rigi-los ou se defender. Essa defesa, alids, € freqiientemente tornada dificil em certos lugares, pelo abuso de poder administrative, quando © fisco decide agir como legislador, policial, juiz e algoz ao mesmo tempo. Muita gente prefere desembolsar a se embrenhar no cipoal das leis, decretos, portarias e recomendagées de entendimento impossivel ao comum dos mortais. FIRMAS OU INSTITUICC As firmas hegeménicas, os bancos, tomam o lugar das instituigdes governamentais. Usurpam das assembleéias eleitas um poder legislativo que nio tém, impondo regras 4 totalidade dos cidadios'. Mediante essa invasio descabida, a vida social ¢ ilegalmente regulada em fun- ¢ao de interesses privatistas. Que as firmas se assemelham a instituiges nos paises onde funcio- na 0 capitalismo monopolista de Estado é fato ja arquiconhecido. Mas em certos paises, como o Brasil, onde a figura do cidadao é pra- ticamente inexistente, as firmas se comportam impunemente e de for- ma abusiva. Veja-se, por exemplo, o famigerado Servico de Protegao ao Cré- dito. Entidade impossivel de se conceber onde haja um minimo de respeito pelas pessoas, em nosso pais age naturalmente ¢ se compor- ta como se fosse uma verdadeira instituigdo publica. Esse SPC fun- ciona ao mesmo tempo como uma central ilegal de informagdes e um verdadeiro tribunal privado. Manipula as informagées que ob- tém e que deveriam, ao menos, ser confidenciais, para julgar, conde- nar ou perdoar os consumidores, segundo suas proprias regras. Vej: se o que a Folba de S. Paulo, na edigio de 12 de janeiro de 1985, escreve sobre o SPC: © SPC € um sistema de centralizagio de informagdes sobre clientes eriado pelas associagoes comerciais com o objetivo de identificar os maus pagadores. A 3, Um banco como 0 Itaui discrimina os seus clientes segundo estrelas, cujo numerdrio ica regalias ou preterigdes, como a existéncia de filas especiais ou exclusivas. oe principal argumentagdo contréria a ele é a sua forga no mercado ¢ a falta de base legal. Os criticos do servigo alegam que inicialmente o SPC tinha uma atuagio regional. Hoje, a informatizacio ¢ a centralizagao dos dados permite que um con- sumidor que atrase uma prestago em Quixeramobim, por exemplo, seja impedi- do de comprar em qualquer outro ponto do pais. Além disso, ha abusos por parte de alguns comerciantes. Ha casos de proibigio de crédito para parentes de pes- soas negativadas, ou seja: um problema do SPC pode se transformar num verda- deiro estigma. O SPE nao € 0 tinico a cobrar juros e Agios extorsivos ¢ indevidos, sem a minima possibilidade de apelacao. Tal pratica se verifica até mesmo nos bancos, que, aliés, adotam regras particulares na circula- do dos cheques apresentados, recusando inclusive certos pagamentos com cheques de outras instituigdes bancarias, quando a Lei claramen- te estabelece que o cheque € irrecusavel. Pois ninguém pode preesta- belecer que o outro é desonesto até que legalmente 0 comprove. O que é grave, e revela o estado de desinformagao juridica da popula- G40, & que poucos se dio conta de que os seus direitos de cidadania estao sendo esbulhados. Desinformagao juridica ou certeza de que nada adianta reclamar? E 0 direito de atrasar? Num pais onde é tio elevado o percentual da populagdo que tem ocupagdo mas nao propriamente emprego, € a grande maioria ganha muito aquém do minimo necessario, a into- lerancia com o atraso de pagamento de bens ¢ servigos essenciais, como a Agua ¢ luz, por exemplo, é certamente inaceitavel, ¢ 0 é ain- da mais por partir de empresas piiblicas ou concessiondrias de servi- gos ptiblicos. O conceito de servigo publico foi, alias, abastardado a um tal pon- to que as entidades fornecedoras trabalham na base do lucro, que buscam aumentar gulosamente. Os clientes, isto é, toda a populacio, ganharam o apelido de “usudrios”. Enem se diga que isso ¢ proprio dos paises capitalistas. Em muitos destes, ha limitagao de lucros para as empresas privadas concessiona- rias de servigos piblicos, Um exemplo? Houve consideravel baixa das tarifas telef6ni s nos paises do Norte, consecutiva aos progressos tecnolégicos. Esses tiveram, no Brasil, efeito exatamente oposto. Ora, se compararmos nossos salérios ¢ tarifas com os de paises da Europa, da América do Norte € os do Japao, ficamos simplesmente aturdidos. Mesmo assim, a Bell Company, que no Canada cobrou demais pelas tarifas telefénicas, teve de devolver dinheiro aos “usudrios”... ARREGIMENTACAO E MANIPULAGAO No Brasil atual, em matéria politica, da organizagao dos partidos 4 legislacio da propaganda eleitoral, da proporcionalidade da repre- sentagio ais modalidades de representagao, tudo isso somente pode ser entendido se examinarmos a maneira como foi decidido instituir a transicao do regime autoritdrio para a nova forma politica que esta sendo experimentada. A definig&o atual da cidadania nao escapa a essa regra. E uma cidadania mutilada, subalternizada, muito longe do que, habitualmente, em outros paises capitalistas, define o instituto. Dentro desse mesmo projeto, que alids ja se vinha desenvolvendo ha alguns anos, esto as diversas formas organizativas sugeridas pelo Estado para arregimentar as pessoas. Uma dessas manipulagées se esta dando pela profissionalizagdo. Ja foi chamada a atengdo para essa forma de enquadramento, tornada indispensavel para permitir aos individuos 0 acesso a direitos que deveriam ser indiscriminada- mente assegurados. Para Wanderley Guilherme dos Santos (1979, p. 76), a regulamentagao das profissdes, a carteira profissional e o sindicato piblico defi- nem, assim, os trés pardmetros no interior dos quais passa a definir-se a cidadania Os direitos dos cidadaos sao decorréncia dos direitos das profissées ¢ as profissées io estatal” [...}; “a carteira profissional se torna em uma certidio de nascimento civico', 86 existem via regulamenta realidade 4. “Por cidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raizes se encontram nao em um cédigo de valores politicos, mas em um sistema de estratificagao ocupacional, ¢ que, ademais, tal sistema de estratificagao ocupacional é definido por norma legal. Em outras palayras, sio cidadaos todos aqueles membros da comunida- Essa prdtica ungida pela lei - e, portanto, tornada obrigatéria — acarretou diversas conseqiiéncias graves do ponto de vista social e politico. Em primeiro lugar, seus efeitos foram devastadores sobre as politicas ptiblicas em geral e sobre as politicas previdencidrias em par- ticular’, atenuando, se nao eliminando, © papel ativo do cidadao no reclamo de direitos sociais — individuais na sua destinagdo, mas gerais pela sua natureza — e pondo no lugar do que deveria ser 0 cidadio o seu substituto corporativo, pois as regalias sao concedidas aos grupos profissionais enquanto grupos. A profissionalizagio também tem efeitos perversos no longo ¢ me- diano prazos. A lista de quefazeres autorizados para cada atividade regulamentada passou a dominar a preparagao escolar dos candida- tos a esta ou Aquela profissao, limitando, assim, 0 escopo dos progra- mas escolares ¢ as ambigées dos alunos®. Isso conduz a uma formagao de que se encontram locatizados em qualquer uma das ocupagies reconbecidas definidas em lei |..] A cidadania esta embutida na profissao e os direitos de cidadao restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no proceso produtiva, tal como reco- nhecido em lei, Tornam-se pré-cidadios, assim, todos aqueles cuja ocupagao a lei desconhece” (W. G. dos Santos, 1979, p. 75). “Ao voltarse para a politica prevideneiria, portanto, 0 governo ja trazia embutidas em sua politica as seguintes conseqiiéncias: em primeiro lugar, varias politicas so- ciais, lato sensit, que incumbe ao governo administrar em beneficio dos cidadaios — por exemplo, saiide piblica, educagdo, sancamento, nutrig4o, habitagdo -, deixa~ vam de ter grupos especificos legitimos que por ela demandassem, visto que 0 reco- nhecimento social se fazia por categorias profission “O padrio de demandas por tais politicas seria, portanto, difuso. Em segundo lugar, criacam-se barreiras 3 entrada na arena politica, via regulamentagao das ocupagdes e, conseqiientemente, todas as demandas relarivas a emprego, salirios, renda e bene- ficio social ficavam na dependéncia de um reconhecimento prévio, por parte do Esta- do, da legitimidade da cavegoria demandante. Se era certo que 0 Fstado devia satis- Jo 20s cidadios, era este mesmo Estado quem definia quem era ¢ quem nao era adi, via profissio. Definido o escopo da cidadania regulada, volta-se, entao, © Fstado_ para 0 estabelecimento de wma politica previdencidria® (W. G. dos 1979, p. 77). 6. “A permanente pressio por parte dos mais variados secores da sociedade brasileira, tendo em vista a regulamentacia da profissio (sociélogo, processador de dados ete.), testemunha até onde o conceito subliminar de cidadania regulada disseminon-se na cultura civiea do pais. A origem deste tachado” de engenharia institucional encontra- se na pra dria pos-30 [...]” (W. G. dos Santos, p. 75). cos, ca revoluc monovalente, com lamentaveis conseqiiéncias na criagao de intelec- tuais distorcidos, preocupados muito mais com os aspectos instru- mentais que propriamente com o papel social a desempenhar. Nao é para estranhar 0 impacto verificado sobre a propria ética do trabalho. Em atividades como a medicina, os resultados tém sido devastadores e, em curto prazo, aparentemente irreversiveis, a despeito dos noté- veis esforcos - de dentro mesmo da profissdo médica, mas infelizmen- te ainda nao generalizados — para reverter a lamentavel situagio. A preocupacio de arregimentacao inclui as préprias organizacdes de intelectuais, algumas mais preocupadas que outras em estabelecer cAnones rigidos ao exercicio ¢ 4 promogio na carreira, na escolha de temas preferenciais de pesquisa etc., tudo isso em nome de uma pseudo- democratizagao. A “cidadania regulada”, segundo a definigéo de Wanderley Gui- lherme dos Santos (1979), tampouco se prestaria 4 desejada exclusio da personalidade, na medida em que deve passar pelo crivo de um ra- ciocinio corporativo, imposto pela via das regulamentagées de exerci- cio das profissdes. O entrosamento entre essa pratica e os programas de ensino, tal como agora constatamos, é um elemento a mais de dis gulado de abertura politica que estamos vivendo, a incitagio a cria- ¢do de entidades de representagdo corporativa seja tio freqiiente da parte do poder publico. Aparecem como democratizantes gragas a apa- réncia de representatividade que oferecem, mas, na verdade, conse- guem enviesar raciocinio e a ago, isto é, ameagam retirar dos inte- lectuais os instrumentos com os quais justificam sua atividade social. orcdo da visdo de mundo. Nao é de espantar que, no processo re- A ATROFIA DO SINDICALISMO A partir destas formas canhestras de arregimentagao de profissio- \¢4o foi prejudicada”. A sindicalizagao, nais, a propria idéia de sindicali 7. O ensaio de Francisco Weffort sobre “A Cidadania dos Trabalhadores”, publica- do na coletinea Direito, Cidadania e Participagao (1981), estuda cuidadosamen- 6 40 + 0 tsPAce po cIDADAG direito politico consagrado em todo o mundo ocidental, é reconheci- da como a forma mais adequada de que dispde o operariado para encaminhar reivindicag6es materiais e imateriais, quantitativas e qua- litativas. Constitui, igualmente, um tacito reconhecimento de que a luta de classes é um dado inseparavel do capitalismo, em que a pro- pria organizacao da produgao supoe uma hierarquia que nao é basea- da no esforco individual. Exercida através do sindicato, que canaliza as insatisfagées dos trabalhadores, a luta por reduzir injustigas consti- tui um ato claramente politico. Querer acreditar a idéia de que a ati vidade sindical nado é e nado pode ser uma atividade politica, para, desse modo, deixar de reconhecer e aceitar a luta de classes como coisa normal, é rematada tolice. Como diz Octavio Ianni (1980, pp. 88-89), “[...] a greve, a luta operdria, tudo isso é sempre luta politica, além de luta econémica. Mesmo quando um dado acontecimento ga- nha um caréter policial ou militar, parecendo s6 isso, mesmo nesse caso ele implica o politico; é fundamentalmente politico. A uta eco- ndmica é sempre, necessariamente, luta politica”. Mas, de tao batido ¢ rebatido o slogan segundo o qual a luta operaria é uma coisa ¢ a luta politica é outra, essa afirmacao tendenciosa acabou por confundir uma parcela consideravel da opiniao publica, levando os préprios partidos e sindicatos a uma atitude prudente em relagao a essa tese, € a uma hesitacao injustificavel, pensando que, assim, diante de uma interpretacao ilegitima, melhor se legitimam’. te essas questdes. Ver, nesse mesmo livro, ensaios de outros autores sobre o mes- mo tema, 8. “A percepgao da existéncia e dos efeitos da meia-cidadania dos trabalhadores ndo tem sido alcangada sem dificuldades, em especial por parte daqueles que sao exata- mente os maiores interessados na questo: a esquerda € © movimento operirio. A celeuma volta da estrutura sindical, que a acompanha desde o dia de sua criagéo até hoje, tem servido para justificar, num momento, a critica mais feroz e, no mo- mento seguinte, a adesio. Os efeitos do corporativismo sindical no plano da repre- sentacao politica dos trabalhadores passam ao longo das preocupacies politicas da esquerda, Embora se trate de uma esquerda de classe média e quase sem trabalha- dores, 86 muito raramente lhe ocorre a hipdtese de que sua batalha politica pela representacao partidaria dos trabalhadores possa ter sido perdida previamente no plano sindical” (Weffort, 1981, p. 144). O reclamo de Francisco Weffort (1981, p. 139) se entende ple- nament Como incorporar a classe operaria a uma democracia de origem burguesa? [...] Como incorporar a cidadania pessoas economicamente “dependentes”? S30 duas perguntas eldssicas que deveriam talvez tomar um contetido diverso no Brasil de hoje, onde nem o liberalismo, nem a classe operiria, e talvez menos ainda, nem a burguesia, apresentam a nitidez que podemos perceber na historia dos paises mais modemnos’. Certamente o sindicato nao é 0 partido politico, mas nem por isso pode deixar de ter uma acao politica, mormente em paises como o Brasil, onde 0 operariado ainda nao dispde de um ntimero considera- vel de direitos elementares. Alids, 0 tratamento que, em nosso pais, é dado as greves € aos grevistas indica claramente que muitos desses direitos essenciais ain- da estdo longe de ser aceitos. Nao é apenas o aparelho de Estado que trata os grevistas como reais criminosos. A propria imprensa, freqiien- temente, colabora na identificagao dos movimentos grevistas como se fossem uma ameaga ao regime. CIDADANIA UrBaNa, Cipapanta RURAL tudo, a cidadania rural, para a qual contribuem conjuntamente o mercado ¢ o Estado. @zhomemmdoreamporbrasileirowemmsuargrancey 9. Citando R. Bendix (1964, p. 73), a propésito da Europa, F. C. Weffort (1981, p. 141) lembra que “parte significativa de uma historia social ¢ politica da classe operaria deveria contribuir para o reconhecimento [...] de que as massas recente mente politizadas protestam contra a sua cidadania de segunda classe, reivindican- do o direito de participagao em termos de igualdade na comunidade politica do Estado-nagio”. 2 ° Qe sos técnicos e de se defender contra as oscilagdes dos precos externos ¢ internos, ¢ a ganancia dos intermedidrios.2ss@\hOMEMTMGICAMpOI eletricidade, para nao falar de tantos outros servigos essenciais. Enquanto isso, os trabalhadores rurais com carteira assinada, em 1983, eram apenas 10,7% do total, enquanto em outras atividades esse percentual era bem mais alto. Os indices imediatamente superio- res, de 33,3% © 34,4%, eram registrados pela industria de construgio e pela prestagao de servigos, alcangando a mais alta taxa na industria de transformagao (84,2%) ¢ nos transportes e comunicacio social (84,1%) (IBGE, Anudrio Estatistico do Brasil, 1984; citado por Dowbor, 1986, p. 32). 10. “A questo da cidadania dos trabalhadores esta intimamente relacionada 4 questo da articulagio entre liberdade politica ¢ igualdade social” (Weffort, 1981, p. 139). 11. “O poder estatal a partir de 1964 [...] para viabilizar a transigao da formagao da ordem burguesa no campo, prioriza a acdo coercitiva, que se expressa pela violén- cia do Estado, visando a aniquilar as condiges dos trabalhadores que ameagam a ordem burguesa, e, por esta via, a exercer o controle sobre a forca de trabalho [p. 3] [..1] destruindo as organizagdes autdnomas do campesinato, [..| destruindo ¢ perse- guindo as liderangas rurais, |..] esvaziando a agao sindical através do atrelamento do sindicato 20 Estado [...] € uma fragil politica assistencialista, como o Funrural pp. 3-4], © governo busca controlar e neutralizar estes setores ¢ induz, ele proprio, © processo de cidadania do trabalhador rural, dentro de uma visio conservadora, promovendo uma violéncia muda, dissimulada, aquela que incorpora o trabalhador nos limites da dominagao, impedindo as bases de sua emaneipagao politica” (Ivo, 1987, p. 12). Estamos bem longe da situagao descrita por H. Pirenne (1971, p. 160) para retratar o momento vivido na Europa pelo homem do cam- po, na transicao para o capitalismo: “[... aparece um novo tipo de camponés bem diferente do antigo. Este se caracterizava pela servi- dao; o novo € dotado de liberdade. Essa liberdade, resultado da trans- formagao econdmica radical que as cidades transmitiram a organiza- a0 do campo, é copiada da liberdade reinante no meio urbano”. Tal situagao nada tem a ver com a atual. Nos anos de 1950, alguns escritores (que, alias, fizeram escola) viam 0 campo chegando a cida- de com os imigrantes rurais, a ponto de falarem em rurbanizacao, denominagao rebarbativa que felizmente nao pegou. Hoje, com a difusao dos valores distorcidos da modernidade, va- lores que sao freqiientemente dados como se fossem valores urbanos, a teia de relagdes outrora instalada nas cidades praticamente se esten- de a toda parte, com a industrializagao da agricultura e a moderniza- ¢40 do campo. Os constrangimentos que se opdem a uma plena reali- zagao do individuo e da vida social esto em toda parte. Como resposta na busca dos direitos perdidos, a procura do novo cidadao deve se dar em toda parte e nao sé na cidade. A lista dos agravos 4 soberania do individuo, claros ou encober- tos, néo para aqui. Nem temos espacgo para completa-la. Mas a longevidade e repetigao dessas praticas, e a constancia ou sutileza das formas encontradas para fazé-las aceitar, trabalham como anestesiantes, acabam por conduzir o individuo a se habituar, em nome da seguranga individual ou da familia, da promogio social ou do status. COMPARAGOES INTERNACIONAIS, ? Sabemos do seu Para que servem as comparagées internaciona valor apenas relativo ¢, todavia, elas revelam um interesse ilustrativo ¢ ajudam a compreender os limites a satisfago das necessidades es- 12. Veia-se, por exemplo, a obra de Bryan Roberts, Ciudades de Campesinos (1980). & senciais nos diversos pafses, ¢ podem ser um ponto de partida para a andlise das situagées. Segundo os dados do Relatério sobre 0 Desenvolvimento no Mun- do do Banco Mundial (de 1986, primeiro ano em que a publicagdo apareceu em portugués), havia no Brasil, em 1981, um médico, em média, para cada grupo de 1200 habitantes, cifra comparavel as da Jordania (1170) e de Hong Kong (1260). Era, assim, um indice me- nos favoravel que os do Chile (950) ¢ do Egito (800), ¢ muito distan- ciado de paises como a Espanha (360), a Suiga (390), a Franga (460) e os Estados Unidos (500). A esperanga de vida ao nascer, no Brasil, em 1984, era de 64 anos, igual 4 que se registrava na Turquia, Tailandia, Jordania e Repabli- ca Dominicana; inferior As do México (66), das duas Coréias (68), Malasia e Venezuela (69), Chile (70), Panamé (71); e bem distan- ciada, portanto, do indice de 77 anos encontrado na Espanha, It4- lia, Suécia, Noruega, Suiga, Holanda, Franga e Japao. Quanto a mortalidade, em 1984, 0 indice brasileiro de 8 por mil é semelhante ao das Filipinas e da Jordania. Em 1965, o indice brasilei- ro era de 11 por mil, semelhante aos das Coréias ¢ do Chile (que, em 1984, compareciam com o indice de 6, mais baixo que o brasileiro) aos do Paraguai e do México (indice 7 em 1984, também menor que o nosso). A Malasia tinha uma taxa de mortalidade de 12 por mil em 1965 e de 6 por mil em 1984, e a Jordania viu baixar o seu indice de 18 para 8, nesse mesmo periodo. Quanto 4 mortalidade infantil, em 1984, o indice brasileiro de 68 € alto, mesmo se 0 comparamos com o de outros paises subdesenvol- vidos; Arabia Saudita (61), México (51), Filipinas (49), Paraguai (44), Malasia (28), as duas Coréias (28) e Chile (22). O mesmo se da com a mortalidade das criangas entre 1 ¢ 4 anos: Brasil (6), Turquia ¢ Arabia Saudita (4), México e Jordania (3), Paraguai, Malasia e as duas Coréias (2). O acesso & educagio também encontra o Brasil em posigdo de debilidade em 1983. Somente 42% das pessoas dentro das respec- ias, cifra ultra- tivas faixas de idade freqiientavam escolas secunda passada por numerosos paises, por exemplo: Nicaragua (43), Cos- ta Rica (44), Colémbia (49), Sri Lanka (56), Egito (58), Argentina (60), Peru (61), Filipinas (63), para nao falar dos 85 da Suica e dos 90 da Franga. No ensino superior, em 1983, o percentual dos brasileiros de 20 a 24 anos freqiientando escolas superiores era de 11%. No Peru, esse percentual era o dobro (22%), e nas Filipinas, ainda mais alto (26%). Que dizer da comparacdo com a Suécia (39%) ¢ com os Estados Unidos (56%)?

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