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1 RELIGIAO E CONSTRUCAO DO MUNDO Toda sociedade humana é um empreendimento de construcao do mundo. A religiao ocupa um lugar destacado nesse empreendi- mento. Nosso principal intuito aqui é formular alguns enunciados scbre a relacdo entre a religido humana e a construgio humana do mundo. Mas para que isto se possa fazer inteligivelmente, a afirmacao acima sobre a eficdcia da sociedade para a construgao do mundo precisa ser explicada. Para esta explicagao seré impor- tante compreender a sociedade em termos dialéticos '. A sociedade é um fenémeno dialético por ser um produto humano, e nada mais que um produto humano, que no entanto retroage continuamente scbre o seu produtor. A sociedade é um produto do homem. Nao tem cutro ser exceto aquele que lhe é cenferido pela atividade e consciéncia humanas. Nio pode haver tealidade sccial sem o homem, Pode-se também afirmar, no en- tanto, que o homem é um produto da sociedade. Toda biografia individual é um episédio dentro da histéria da sociedade, que a precede e lhe sobrevive. A sociedade existia antes que o individuo nascesse, e continuard a existir apéds a sua morte. Mais ainda, é dentro da sociedade, como resultado de processos sociais, que 0 individuo se torna uma pessoa, que ele atinge uma personalidade e se aferra a ela, e que ele leva adiante os varios projetos que constituem a sua vida. O homem nio pode existir independente- mente da sociedade. As duas assergdes, a de que a sociedade é produto do homem e a de que o hemem é produto da sociedade, 10 termo “mundo” é entendido aqui num sentido fenomenoldgico, isto , omitindo-se a questéo do seu estatuto ontolégico wltimo, Para a aplicagio antropolégica do termo, cf. Max Scheler, Die Stellung des Menschen im Kosmos (Munique, Nymphenburger Verlagshandlung, 1947). Para a aplicaggo do termo & sociologia do conhecimento, cf. Max Scheler, Die Wissensforms und die Gesellschaft (Berna, Francke, 1960); Alfred Schutz, Der sinnhajte Aufbau der sozialen Welt (Viena, Springer, 1960) © Collected Papers, Vols. 1 c Il (Haia, Nijhoff, 1962-64). © termo “dialético”, aplicado & sociedade, é entendido aqui essencialmente em seu sentido marxista, em particular, como foi desenvolvido nos Economic and Philosophical Manuscripts of 1844. 15 nao se contradizem. Refletem, pelo contrério, o cardter inerente- mente dialético do fenémeno social. S6 se compreenderé a socie- dade em termos adequados a sua realidade empfrica se este seu cardter for devidamente reconhecido ?. O processo dialético fundamental da sociedade consiste em trés momentos, ou passos. Sao a exteriorizagao, a objetivacao e a interiorizagao. S6 se poderd manter uma visio adequadamente em- pirica da sociedade se se entender conjuntamente esses trés mo- mentos. A exteriorizagao é a continua efuséo do ser humano sobre o mundo, quer na atividade fisica quer na atividade mental dos homens. A objetivacao € a conquista por parte dos produtos dessa atividade (fisica e mental) de uma realidade que se defronta com es seus produtores criginais como facticidade exterior e distinta deles. A interiorizagéo é a reapropriaco dessa mesma realidade por parte dos homens, transformando-a novamente de estruturas do mundo objetivo em estruturas da consciéncia subjetiva. E atra- vés da exteriorizagio que a sociedade é um prceduto humano. E através da objetivagéo que a sociedade se torna uma realidade sui generis. © através da interiorizagao que o homem é um produto da sociedade >. 2 Dirfamos que essa compreenséo dialética do homem e da sociedade como produtos um do outro possibilita uma sintese tedrica das abordagens sociolégicas de Weber e Durkheim, sem que nenhuma delas perca sua in- tengdo fundamental (o que ocorreu, em nossa opiniéio, na sintese parsoniana). Weber tem uma compreensio da realidade social como sendo continuamente constitufda por significagéo humana, e Durkheim a considera como tendo © carter de choseilé contra o individuo; ambas estéo cor Elas tem em vista, respectivamente, o fundamento subjetivo e a facticidade objetiva do fenémeno social, ipso facto apontando para a relacao dialética da subjetividade € seus objetcs. Além disso, as duas formas de compreensio somente sao cor- retas em conjunto. Uma énfase de tipo weberiano na subjetividade somente leva a uma distorgéo idealistica do fenédmeno social. Uma énfase do tipo durkheiminiano na objetividade somente leva a reificagéo sociolégica, a mais desastrosa distorgio para a qual tende grande partc da sociologia americana contemporanea. Deve-se sublinhar que nao quercmos dizer que essa sintese dialética agradaria a esses dois autores. Nosso interesse é sistematico, e nao exegético, ¢ permite uma atitude eclética com relagéo a construgdes tedricas anteriores. Quando dizemos, pois, que essas construgées “tém em vista” uma sintese desse tipo, o fazemos no sentido da Idgica tedrica intrinseca, e néo no das intengdes histéricas dos autores. 3 Os termos “exteriorizagio” e “objetivago” derivam de Hegel (Entaeusser- ung ¢ Versachlichung) e sio entendidos aqui essencialmente no sentido com que foram aplicados aos fendmenos coletivos por Marx. O termo “interiori- zagéo” é entendido em sua acepcao usual na psicologia social americana. O fundamento tedrico desis ¢, acima de tudo, a obra de George Herbert Mead; para a qual cf. seu Mind, Self and Society (Chicago, University of Chicago Press, 1934); Anselm Strauss (ed.), George Herbert Mead on Social 16 A exteriorizagao € uma necessidade antropolégica. © homem, como o conhecemos empiricamente, nao pode ser concebido inde- pendentemente da continua efusio de si mesmo sobre o mundo em que ele se encontra. O ser humano nfo pode ser concebido camo algo isolado em si mesmo, numa esfera fechada de interiori- dade, partindo em seguida para se exprimir no mundo que o rodeia. O ser humano é exteriorizante por esséncia e desde o inf- cio‘, Esse fato antropolégico de raiz com muita probabilidade se funda na constituicao bioldgica do homem 5°. O homo sapiens ocupa uma posi¢ao peculiar no reino animal. Essa peculiaridade se mani- festa na relacao do homem com seu proprio corpo e com o mundo. A diferenga dos outros mamiferos superiores, que nascem com um organismo essencialmente completo, o homem € curiosamente “ina- cabado” ao nascer °. Passos essenciais do processo de “acabamento” do desenvolvimento do homem, que jé se verificaram no perfodo fetal para os outros mamfferos superiores, ocorrem, no caso do homem, durante o primeiro ano apés o nascimento. Isto é, 0 pro- cesso bioldgico de “tornar-se homem” ocorre num tempo em quc o infante humano se encontra em interagao com um ambiente exterior ao seu organismo, e que inclui o mundo fisico e o mundo humano da crianca. Existe, pois, um fundamento bioldgico no processo de “tornar-se homem” no sentido de desenvolver uma personalidade e assimilar cultura. Estes tltimos desenvolvimentos no so mutagGes estranhas sobrepostas ao desenvolvimento bio- Iégico do homem, mas, ao contrério, fundam-se nele. O cardter “inacabado” do crganismo humano no nascimento estd intimamente relacionado com o cardter relativamente nao-es- Psychology (Chicago, University of Chicago Press. 1956). A expressio “rea- lidade sui generis” aplicada & sociedade € desenvolvida por Durkheim em suas Rules of Sociological Methods (Glencoe, Ill., Pree Press, 1950). Traducéo brasileira, As Regras do Método Socioldgico, Cia Editora Nacional. 4A’ necessidade antropolégica de exteriorizacio foi desenvolvida por Hegel e por Marx. Pura outros desenvolvimentos contemporineos, além da obra de Scheler, cf. Helmut Plessner, Die Stufen des Organischen und der Mensch (1928) © Amold Gchlen, Der Mensch (1940). 5 Para a fundamentacéo biolégica disso, cf. F. J. J. Buytendijk, Mensch und Tier (Hamburgo, Rowhlt, 1958); Adolff Portmann, Zoologie ‘und das neue Bild des Menschen (Hamburgo, Rowohlt, 1956). A. aplicagao mais im- portante dessas perspectivas biolégicas a problemas sociolégicos encontra-se na obra de Gehlen. 6 Isso foi colocado, de forma sucinta, na primeira frase de um recente trabalho antropoldgico, escrito de um ponto de vista essencialmente marxiat “L’homme nait inachevé” (Georges Lapassade, L’entrée dans Ja viv, Pars, Edition de Minuit, 1963, p. 17). 7 pecializado da estrutura dos seus instintos. O animal nio-humano ingressa no mundo com impulsos altamente especializados e fir- memente dirigidos. Como resultado, vive num mundo mais ou menos completamente determinado pela estrutura dos seus instin- tos. Esse mundo é fechado em termos de suas possibilidades, Pprogramado, por assim dizer, pela prépria constituicaéo do animal. Conseqiientemente, cada animal vive no ambiente especifico de sua espécie particular. Existe um mundo de camundongos, um mundo de caes, um mundo de cavalos, e assim por diante. Em contraste, a estrutura dos instintos do homem no nascimento é insuficientemente especializada e nao é dirigida a um ambiente que lhe seja especifico, Nao hé um mundo do homem no sentido acima. O mundo do homem é imperfeitamente programado pela sua prépria constituicao. E um mundo aberto. Ou seja, um mun- do que deve ser modelado pela prépria atividade do homem. Com- parado com os outros mamfferos superiores, tem o homem, por conseguinte, uma dupla relacgo com o mundo. Como os outros mamfferos, o homem estd em um mundo que precede o seu apa recimento. Mas a diferenca dos outros mamfferos, este mundo nao é simplesmente dado, prefabricado para ele. O homem precisa fazer um mundo para si. A atividade que o homem desenvolve em construir um mundo nao é, portanto, um fendémeno bioldgico estranho, e sim a conseqiiéncia direta da constituigao biolégica do homem. A condigao do organismo humano no mundo se caracteriza, assim, por uma instabilidade congénita. O homem nao possui uma telac’o preestabelecida com o mundo. Precisa estabelecer conti- nuamente uma relacao com ele. A mesma instabilidade assinala a relacao do homem com o seu proprio corpo’. De um modo curio- so, o hcmem est4 “fora de equilfbrio” consigo mesmo. Nao pode descarsar em si mesmo, e para entrar em harmonia consigo mes- mo precisa exprimir-se continuamente em atividade. A existéncia humana € um continuo “pér-se em equilfbrio” do homem com corpo, do homem com o seu mundo, Outro modo de expri- mir isto & dizer que o homem esté constantemente no processo de “pdr-se em dia consigo mesmo”. E nesse processo que o ho- mem produz um mundo, $6 num mundo assim, que ele mesmo produziu, pode 0 homem estabelecer-se e realizar a sua vida. To- 7 Plesner cunhou o termo “excentricidade” para se referir a essa ins tubilidade inata na relagio do homem com seu proprio corpo. Cf. op. cit. 18 davia, 0 mesmo proceso que constr6i o seu mundo também dé o “remate” ao seu préprio ser. Em outras palavras, o homem nao s6 produz um mundo como também se produz a si mesmo. Mais precisamente — ele se produz a si mesmo num mundo. No proceso da construgio de um mundo, o homem, pela sus prdpria atividade, especializa os seus impulsos e prové-se a si mesmo de estabilidade. Biclogicamente privado de um mundo do homem, constréi um mundo humano. Esse mundo, naturalmente, € a cultura. Seu escopo fundamental é fornecer a vida humana as estruturas firmes que lhe faltam biologicamente. Segue-se que es- sas estruturas de fabricagio humana nunca podem ter a estabili- dade que caracteriza ss estruturas do mundo animal. A cultura, embora se torne para o homem uma “segunda natureza”, perma- nece algo de muito diferente da natureza, justamente por ser o produto da prépria atividade do homem. Suas estruturas sao, por conseguinte, inerentemente precdrias e predestinadas a mudar. O imperativo cultural da estabilidade e€ o cardter de instabilidade inerente & cultura lancam conjuntamente o problema fundamental da atividade do homem de construir o mundo. Suas implicagdes de longo alcance nos ocuparao em detalhe consider4vel um pouco mais adiante. Por enquanto contentemo-nos com dizer que, se € necessdrio que se construam mundos, é muito dificil manté-los em funcionamento. A cultura consiste na totalidade dos produtos do homem °, Alguns destes sao materiais, outros nao. O homem preduz instru- mentos de toda espécie imaginével, e por meio deles modifica o seu ambiente fisico e verga a natureza & sua vontade. O homem produz também a linguagem e, sobre esse fundamento e por meio dele, um imponente edificio de simbolos que permeiam todos os aspectos de sua vida. Hé boas razdes para pensar que a producao de uma cultura nao-material foi sempre de par com a atividade do homem de modificar fisicamente 0 seu ambiente’. Seja como for, a sociedade, naturalmente, nada mais ¢ do que parte e par- 8 O uso do terme “cultura” para se referir & totalidade dos produtos humanos segue a prdtica corrente na antropologia cultural americana. Os socidlogos procuraram usar 0 termo num sentido mais estrito, referindo-se exclusivamente A assim chamada esfera simbélica (assim fez Parsons em seu conceito de “sistema cultural”). Embora haja boas razdes para se preferir o sentido mais estrito em outros contextos tedricos, sentimos que a acepciio niais ampla é mais adcquada no presente estudo. 9 © vinculo entre producéo material ¢ néo-material foi desenvolvido por Marx no conceito de “trabalho” (que néo pode ser entendido meramente como categoria econdmica). cela da cultura nao-material. A sociedade € aquele aspecto desta Ultima que estrutura as incessantes relagSes do homem com os seus semelhantes '°. Como apenas um elemento da cultura, a so- ciedade comrartilha do cardter desta como produto humano. A so- ciedade € constitufda e mantida por seres humanos em aco. Nao possui ser algum, realidade alguma, indeperadentemente de tal ati- vidade. Seus padrdes, sempre relativos no tempo e no espago, nao sao dados na natureza, e de nenhum modo especifico podem ser deduzidos da “natureza do homem”. Se se quiser usar esse termo como designando mais do que certas constarttes bioldgicas, deve-se dizer apenas que é prdprio da “natureza do homem” produzir um mundo. O que aparece em qualquer momento histérico particular como “natureza humana” é da mesma forma um produto da ati- vidade do homem de construir um mundo ''. A sociedade, no entanto, embora nos aparega como apenas um aspecto da cultura, ocupa uma posicéo privilegiada entre as formacées culturais do homem. Isto se deve a outro fato antropo- Idgico bésico, a saber, a essercial socialidade do homem ". O homo Sapiens € o animal social. Isto significa muito mais do que o fato superficial de que o homem sempre vive em coletividades e perde, de fato, a sua humanidade quando ¢ afastado do convivio dos outros homens. E o que se reveste de muito maior importancia, a atividade do homem de construir um mundo, é sempre e inevi- tavelmente um empreendimento coletivo. Embora seja possivel, talvez com intuitos heuristiccs, analisar a relac¢io do homem com © seu mundo em termos puramente individuais, a realidade em- pirica da construgéo humana do mundo é sempre social. E tra- balhando juntos que os homens fabricam instrumentos, inventam linguas, aderem a valores, concebem instituig6es, e assim por dian- 10 Hé, é claro, diversos conceitos de sociedade usados pelos socidlogos. Nao seria de muita utilidade discutilos no presente estudo. Assim, usamos uma definigéo bastante simples, relacionando-o a0 acima mencionado conceito de cultura, ‘A compreensio da “natureza humana” como sendo ela propria um produto humano também deriva de Marx. Ela marce a ruptura fundamental cure uma antropologia dialética uma néo-dialética, No ambito do pensamen- cloldgico, esses antipodas antropoldgicos sio melhor representados, res- ncnte, por Marx e por Pareto. A antropologin freuc alids, tam- hém deve ser mencionada como essencialmente néo-dialética, um ponto que lm sido descurado em tentativas recentes de uma sintese marxista-freudiana. '2°A sccinbilidade essencial do homem foi vista claramente por Marx, man, ¢ claro, Itatn-se de uma nogéo presente em toda a tradigdo socioldgica. A obta de Mead proporciona uma base sociopsicolégica indispensdvel para as tiugdea antropolégicas de Marx. 20 te. A participacao individual numa cultura nao sé acontece num processo social (a saber, 0 processo chamado socializacdo), mas aw ccentinuagao de sua existéncia cultural depende da manutencio de dispositivos sociais especfficos. A scciedade é, portanto, nao x resultado da cultura, mas uma condic¢ao necessfria dela. A so- ciedade estrutura, distribui e coordena as atividades de construgéo do mundo desenvolvidas pelos homens. E s6 na sociedade os pro- dutos dessas atividades podem durar. Compreender que a sociedade se radica na exteriorizagio do homem, isto é, que ela é um prodtuo da atividade humana, é particularmente importante devido ao fato de que a sociedade se afigura uo bom senso como algo muito diferente, que independe da atividade humana e que participa da determinacgao inerte da natureza. Ocupar-nos-emos a seguir com o processo de objetiva- go que torna possivel essa aparéncia. Baste-nos por ora dizer que um dos mais importantes ganhos de uma perspectiva sociolé- gica € a sua reiterada reducio das entidades hipostasiadas, que censtituem a sociedade na imaginagfo do homem comum, 8 ativi- dade humana de que essas entidades sio produtos ¢ sem as quais elas no possuem status algum na realidade. A “matéria” de que a sociedade e todas as suas formacées sao feitas so os sentidos humanos externados na atividade humana. As grandes hipdstases sociais (como “a familia”, “a economia”, “o estado”, e assim por diante) so novamente reduzidos pela anélise sociclégica a ativi- dade humana que é a sua Unica substancia subjacente. Por esta taz’o de nada adianta ao socidlogo, a nao ser com intuitos heurfs- ticos, tratar tais fenémenos sociais como se fossem, na realidade, hipéstases independentes da especulacio humana que originaria- mente as prcduziu e continua a produzir. Em si mesmo nao nada de errado em falar o socidlogo de instituigdes, estruturas, fungoes, padrdes etc. O mal vem sé quando ele as concebe, como o homem comum, como entidades existentes em si mesmas e por si mesmas, desvinculadas da atividade e produgdo humanas. Um dos méritos do conceito de exteriorizacao, aplicado a sociedade, € obviar-se esta espécie de pensamento estético, hipostatizante. Outra maneira de exprimir isto é dizer que a compreensio socio- Idégica deve ser sempre humanizante, isto é, deve referir as con- figuragdes ilusérias da estrutura social aos seres humanos que as criaram 8, 13 A necessidade que a sociologia tem de desthipotasiar as objetivagdes foi repetidamente acentuada pela metodologia de Weber. Embora seja 21 E, pois, a sociedade um produto do homem, radicado no fenémeno da exteriorizagio, que por sua vez se baseia na propria constituigao bioldgica do homem. Tio logo se ccmega a falar de produtos exteriorizados, entretanto, estd-se supondo que estes ul- timos atingem um grau de distincao em relacio aquele que os produz. Essa transformacao dos produtos do homem em um mun- do que nao sé deriva do homem como ainda passa a confrontar-se com ele como uma facticidade que lhe é exterior, esté presente no conceito da objetivagéo. O mundo humanamente produzido se torna alguma ccisa “Jd fora”. Consiste em objetos, tanto materiais como nio-materiais, capezes de resistir aos desejos de seu produ- tor, Uma vez produzido, esse mundo permanece, quer se queira quer nao. Embora tcda cultura se origine e radique na consciéncia subjetiva dos seres humanos, uma vez criada nao pode ser reab- sorvida A ventade na consciéncia. Subsiste fora da subjetividade do individuo, como um mundo. Em outras palavras, 0 mundo humanamente produzido atinge o cardter de realidade objetiva. Essa objetividade adquirida dos produtos culturais do homem vale tanto para os materiais como para os nao-materiais. Ela pode ser prontamente entendida no caso dos primeiros. O homem fa- brica um instrumento e com essa acao enriquece a totalidade dos objetos fisicos presentes no mundo. Uma vez produzido, o ins- trumento tem um ser préprio que nio pode ser medificado de imediato pelos que se utilizam dele. Na verdade, o instrumento (por exemplo, uma ferramenta cgricola) pode até impor a légica do seu ser aos que o utilizam, as vezes de um modo que pode nao lhes ser 14 muito agraddvel. Um arado, por exemplo, um froduto humano, evidentemente, é um objeto externo nao sé no sentido de que cs que o usam podem cair em cima dele e se ma- chucarem, como pcderiam machucar-se tropecando numa pedr ou num toco, cu qualquer cutro objeto natural. O que é mais interessante, o arado pode cbrigar os que se servem dele a dispor a sua atividade agriccla, e talvez tamhém outros aspectos de suas vidas, de um modo que se conforme com a sua prépria ldgica e que pode no ter sido pretendida nem prevista pelos que origina- tiamente o conceberam. A mesma objetividade, no entanto, carac- terizam igualmente os elementos nio-materiais da cultura. O ho- prevavelmente errado acusar Durkheim de ter uma concepc8o hipostética da lade (como o fizeram alguns criticos marxistas), seu método se presta facilmente a essa distcrgio, como foi mostrado particularmente cm scu de- nvolvimento pela escola estrutural-funcionalista. 22 mem inventa uma Ifngua e descobre que a sua fala e o seu pensa- mento sao dominados pela sua gramética. OQ homem produz valo- res e verifica que se sente culpado quando os transgride. O ho- mem forja instituigdes, que o enfrentam como estruturas con- troladoras e intimidatérias do mundo externo. A lenda do apren- diz de feiticeiro ilustra, de modo feliz, a relacdo entre o homem ¢ a cultura, Os poderosos baldes, magicamente chamados do nada pelo fiat humano, sio postos em movimento. A partir de entao poem-se eles a andar de um lado para o outro tirando égua conforme a Idgica inerente ao seu préprio ser que é, na pior das hip6teses, nao de todo controlado pelo seu criador. E possfvel, como acontece nessa histéria, que o homem venha a encontrar a mégica edicional que lhe devolva o controle das forcas por ele desencadeadas sobre a realidade. Esse poder nao é, contudo, idén- tico ao que de infcio pés essas forcas em movimento. E pode também acontecer, naturalmente, que o homem se afogue nas on- das que ele préprio produzi Se se credita a cultura o status de objetividade, isso da-se em dois sentidos, A cultura é objetiva por se defrontar ao homem como um conjunto de objetos do mundo real existente fora de sua consciéncia. A cultura estd Id. Mas a cultura também é objetiva porque pode ser experimentada e apreendida, por assim dizer, em companhia. A cultura /é@ estd a disposigao de qualquer um. O que significa que os objetos da cultura (repetimos, os materiais € os nio-materiais) podem ser compartilhados com os outros. Isso os distingue nitidamente de quaisquer construgdes da cons- ciéncia subjetiva do individuo solitério. Isto € 6bvio quando se compara um instrumento que pertence a tecnologia de uma cultu- ra particular com algum utensilio, por interessante que seja, que faz parte de um sonho. E, no entanto, ainda mais importante en- tender a objetividade da cultura como facticidade compartilhada com referéncia aos seus constitutivos nao-materiais. O individuo pode sonhar qualquer ntimero de, digamos, dispositivos institu- cionais que bem pcderao ser mais interessantes, talvez ainda mais funcionais, do que as instituicdes efetivamente reconhecidas na sua cultura. Enquanto esses devaneios socioldégicos, por assim di- zer, ficarem confinados & prdpria consciéncia do individuo e nio forem reconhecidos pelos outros como ao menos possibilidades empiricas, s6 existirao como fantasmagorias irreais. Em contraste, as instituigGes da sociedade do individuo, por mais que ele as deteste, serio reais. Em outras palavras, 0 mundo cultural ¢ nao 23 s6 produzido coletivamente como também permanece real em vir- tude do reconhecimento coletivo. Estar na cultura significa com- partilhar com outros de um mundo particular de objetividades ". As mesmas condigdes podem, é claro, aplicar-se aquele seg- mento da cultura que denominamos sociedade. Nao basta, por- tanto, dizer que a sociedsde esta radicada na atividade humana. Deve-se dizer também que a sociedade é a atividade humana objetivada, ou seja, que a sociedade é um produto da atividade hu- mana que atingiu o status de realidade objetiva. As formagdes so ciais sio experimentadas pelo homem como elementos de um mun- do objetivo. A sociedade estd diante do homem como facticidade externa, subjetivamente opaca e coercitiva's, Realmente, a so- ciedade € comumente apreendida pelo homem como virtualmente equivalente ao universo fisico na sua presenga objetiva — uma “segunda natureza”, mesmo. A sociedade é experimentada como dada “lé fora”, estranha consciéncia subjetiva e nao controlével por esta ultima. As representacdes da fantasia solitdria oferecem retativamente pouca resisténcia 4 voligo do individuo. As re- presentagdes da sociedade séo imensamente mais resistentes. O indivfduo pode sonhar outras sociedades e imaginar-se em diver- sos contextos. A nao ser que ele exista em Icucura solipsista, sa- berd quanto vai dessas fantasias a realidade de sua vida efetiva na sociedade, que lhe prescreve um contexto comumente reconhecido e se lhe impde sem tomar conhecimento dos seus desejos. Como a scciedade aparece ao individuo como uma realidade que lhe ¢ exterior, pode acontecer freqiientemente que as operacdes dela permanecam opacas ao sen entendimento. Ele nao é capaz de descobrir por introspec¢ao o sentido de um fendmeno social. Pre- cisa, para tanto, sair de si mesmo e empenhar-se no tipo basica- mente idéntico de investigacéo empirica que € necessério para que ele possa compreender qualquer coisa fora de sua prdépria mente. Acima de tudo, a sociedade se manifesta pelo seu poder coerciti- vo. O teste final de sua realidade objetiva é a sua capacidade de impor-se a relutancia dos individuos. A sociedade dirige, sancio- na, controla e pune a conduta individual. Nas suas mais poderosas apoteoses (um termo propositadamente escolhido, como adiante veremos), a sociedade pode até destruir o individuo. 4 Para um desenvolvimento da concep: de objetividade comparti- Thada, cf. as obras de Schutz anteriormente cita A nossa discusséo da objetividade da socicdade segue Durkheim de perto. Cf. especialmente As Regras do Método Socioldégico, anteriormente citadas. 24 A objetividade coercitiva da sociedade pode, é claro, ser vista mais prontamente nas suas medidas de controle social, isto é, naquelas medidas especificamente destinadas a “por na linha” os individuos ou grupos recalcitrantes. As instituigdes politicas e legais podem servir de ilustragdes Obvias deste fato. E importante, todavia, compreender que a mesma objetividade coercitiva caracte- tiza a sociedade como um todo e estd presente em fodas as insti- tuigdes scciais, inclusive as instituigé6es que foram fundadas em consenso, Isto (com toda a énfase) Zo quer dizer que todas as sociedades sejam variagdes da tirania. Quer dizer que nenhuma construgio humana pode, a rigor, ser chamada de fendmeno so- cial a n@o ser que tenha atingido aquele grau de objctividade que obriga o individuo a reconhecé-la como real. Em outras pala- vras, a coercividade fundamental da sociedade est4 nao nos meca- nismos de controle social, mas sim no seu poder de se constituir e impor como realidade. O caso paradigmatico disto é a lingua- gem. Praticamente ninguém, por mais alheio que seja ao pensa- mento sociolégico, negaré que a linguagem é um produto humano. Toda linguagem € resultado de uma longa histéria da inventivi- dade, da imaginacao e até do capricho do homem. Se bem que os Srgios vocais imponham certas limitacdes fisiolégicas 4 sua fan- tasia lingiifstica, nao hd leis da natureza que se possam invocar para explicar o desenvolvimento, digamos, da lingua inglesa. Nem tem esta ultima nenhum status na natureza das coisas além do seu stetus de producao humana. A lingua inglesa se originou de acontecimentos humanos especificos, desenvolveu-se através de sua histéria gracas 4 atividade humana, e existe unicamente até onde € enquanto seres humanos continuarem a usé-la ¢ compreendé-la. Apesar disso, a lingua inglesa se apresenta ao individuo como uma tealidade objetiva, que ele deve reconhecer como tal, ou sofrer as conseqiiéncias. Suas regras sao dadas objetivamente. Precisam ser aprendidas pelo indivfduo, como sua Ifngua materna ou como lin- gua estrangeira, e cle no as pode modificar a seu talante. Exis- tem padrdes objetivos de inglés ccrreto e incorreto, ¢ embora pos- sa haver diferengas de opiniao sobre pormenores secundérios, a existéncia desses padroes ¢ uma condicéo prévia para o uso da lingua, em primeiro lugar. Hd, é claro, penalidades para a trans- gressio desses padrdes, desde a reprovacdo na escola até o cons- trangimento social na vida posterior, mas a realidade objetiva da lingua inglesa nao é constitufda, antes de mais nada, por essas penalidades. A lingua inglesa é cbjetivamente real em virtude do 25 simples fato de estar /4, um universo pronto e coletivamente te- conhecido de discurso, no 4mbito do qual os individuos podem entender-se uns acs outros e a si mesmos '¢, Como realidade objetiva, a sociedade pode fornecer ao ho- mem um mundo para habitar. Esse mundo abrange a biografia do individuo, que desdobra uma série de acontecimentos dentro desse mundo. De fato, a prépria bicgrafia do individuo sé é obje- tivamente real na medida em que possa ser compreerdida dentro das estruturas de importancia do mundo social. O individuo pode, € certo, ter as auto-interpretagdes altamente subjetivas que quiser, € que os outros acharao extravagantes ou de todo absurdas. Sejam quais forem essas auto-interpretagées, substituirdo a interpretagao objetiva da biografia do individuo que o situa num quadro de refe- réncia coletivamente reconhecido. Os fatos objetivos dessa biogra- fia podem ser apurados, se nos ativermos ao minimo, mediante con- sulta aos documentos pessoais mais importantes. O nome, a descen- déncia legal, a cidadania, o estado civil, a ocupagao — eis apenas algumas das interpretagGes “oficiais” da existéncia individual, obje- tivamente validas nao sé por forca de lei, mas pela poténcia funda- mental da sociedade de conferir realidade. Mais ainda, o préprio individuo, a nfo ser, repetimos, que se encerre num mundo so- lipsfstico afastado da realidade, procuraré validar as suas auto-in- terpretacdes comparando-as com as coordenadas objetivamente dis- ponfveis da sua biografia. Em outras palavras, a prépria vida do individuo s6 apareceré como objetivamente real, a ele prdéprio ¢ aos outros, localizada no interior de um mundo social que tem o cardter de realidade objetiva '’. A objetividade da sociedade se estende a todos os seus ele- mentes constitutivos. As instituicdes, os papéis e identidades exis- tem como fendmenos objetivamente reais do mundo sccial, em- bora eles e este mundo sejam ao mesmo tempo produgées huma- nas. Por exemplo, a familia como institucionalizagao da sexuali- dade humana numa determinada sociedade é experimentada e apre- endida como uma realidade cbjetiva. A instituigao est4 14, exte- 16 A compreensio da linguagem como paradigma da objetividade dos fendmenos sociais também deriva de Durkheim. Para uma discussio da lin- guagem cm termos essencialmente durkheiminianos, cf. A. Mcillet, Linguistique historique et linguistique générale (Paris, Champion, 1958). 17 Para a realidade das auto-interpretagdes como Iccalizagéo num mundo social objetivamente real, cf. a obra de Maurice Halbwachs sobre a meméri: cialmente seu Les cadres sociaux de la mémoire ris, Presses Uni sitaires de France, 1952). 26 tior e coercitiva, impondo ao individuo, nesta drea particular da sua vida, seus padrdes pré-definidos. A mesma objetividade per- tence aos papéis que o individuo, segundo se espera, ira desem- penhar no contexto institucional em aprego, mesmo que suceda que nao lhe agrade muito tal decempenho. Os pepéis de, por exemplo, marido, pai ou tio sio objetivamente definidos ¢ dispo- niveis como modelos da conduta individual. Desempenhando es- ses papéis, o individuo vem a representar as objetividades insti- tucionais de um modo que é apreendido, por ele e pelos outros, como desvinculado dos “meros” acidentes da sua existéncia indi- dividual '*, Ele pode “vestir” 0 papel como um objeto cultural, de mancira andloga A “vestigéo” de um objeto fisico de vestudrio ou adorno. Pode, além disso, conservar uma consciéncia de si mesmo como distinto do papel, que entdo se refere ao que ele apreende como a sua “verdadeira identidade pessoal” como a més- cara ao ator. Assim, ele pode até dizer que nao gosta de desem- penhar este ou aquele pormenor do papel, mas precisa fazer isso mesmo contra a vontade — porque assim o dita a descricio obje- tiva do seu papel. Além disso, a sociedade nao sé contém um ccnjunto disponivel de instituigdes e papéis mas um repertério de identidades dotadas do mesmo status de realidade objetiva. A scciedade confere ao individuo nao sé um conjunto de papéis mas também uma identidade designada. Em outras palavras, nao s6 se espera que o individuo represente como marido, pai ou tio, mas que seja um marido, um pai ou um tio — e, ainda mais basi- camente, que seja um homem, em termos de nao importa qual “ser” isto implique na sociedade em questéo. Desse modo, em Ultima andlise, a objetivacao da atividade humana significa que 0 homem € capaz de objetivar uma parte de si mesmo no recesso de sua prépria consciéncia, defrontando-se consigo mesmo em fi- guras que sao geralmente disponiveis como elementos objetivos do mundo social. Por exemplo, o individuo como “eu real” pode conversar interiormente consigo mesmo como arcebispo. Na ver- dade, a socializagéo é possivel, em primeiro lugar, somente atra- vés desse didlogo interno com as objetivagSes de si mesmo ", 18 Chega-se a0 conceito de paptis, como representacao objetiva, através da combinagéo dos pontos de vista de Mead e de Durkheim. Do dltimo, cf. aqui especialmente o Sociology and Philosophy (Londres, Cohen & West, 1953), pp. Iss. 13 © ‘conceito de conversagio intema deriva de Mead. Cf. seu Mind, Self and Society, pp. 1358s. 27 O mundo das objetivagdes sociais, produzido pela exteriori- razio da consciéncia, enfrenta a consciéncia como uma facticidade externa. E apreendido como tal. Mas essa apreensio nio pode, por enquanto, ser descrita como interiorizagio, como tampouco © pode a apreensao do mundo da naturcza. A interiorizagao € antes a reabsorgio na ccnsciéncia do mundo objetivado de tal maneira que as estruturas deste mundo vém a determinar as estruturas subjetivas da prdpria consciéncia, Ou seja, a sociedade funciona agora como a acao formativa da consciéncia individual. Na me- dida em que ocorreu a interiorizacao, o individuo apreende agora varios elementos de mundo objetivado como fenédmenos internos de sua consciéncia ao mesmo tempo que os aprecnde como fend- menos da realidade exterior. Toda scciedade que continua no tempo enfrenta o problema de transmitir os seus sentidos objetivadcs de uma geracao para a seguinte. Esse problema é stacado por meio dos processos de so- cializagao, isto é, os processos pelos quais se ensina uma nova ge- ra¢do a viver de acordo ccm os programas institucionais da socie- dade. Do ponto de vista da psicologia a socializagio pode, é claro, ser descrita como um processo de aprendizado. A nova geracio é iniciada nos sentidos da cultura, aprende a participar das suas ta- tefas estabelecidas e a aceitar cs papéis bem como as identidades que ccnstituem a estrutura social. Mas a socializagio tem uma di- mensao decisiva que nao € adequadamente apreendida se se fala de processo de aprendizado. O individuo nfo sé aprende os sen- tidos objetivados como se identifica com eles ¢ € modelado por eles. Atrai-cs a si e fa-los seus sentidos. Torna-se nao sé alguém que possui esses sentidos, mas alguém que os representa e exprime. O éxito da socializagéo depende do estabelecimento de uma simetria entre o mundo objetivo da sociedade ¢ 0 mundo subjetivo do individuo. Se se imagina um individuo totalmente socializado, cada sentido objetivamente dispcnivel no mundo social teria seu sentido andlogo dado subjetivamente em sua prépria consciéncia. Essa socializacgao total ¢ empiricamente nao-existente e€ teorica- mente impessivel, quanto mais nao seja em razdo da variabilidade biclégica dos individuos. Ha, no entanto, graus de éxito na socia- lizagéo. A sccializagio de amplo éxito estabelece elevado grau de simetria entre 0 objetivo e o subjetivo, enquanto os malogros da so- cializago conduzem a varios graus de assimetria. Se a socializacao nao conseguir interiorizar pelo menos os sentidos mais importan- tes de uma determinada sociedade, torna-se diffcil manter esta 28 ultima como empreendimento viavel. Especificamente, semelhante sociedade nao estaria em condigdes de estabelecer uma tradigéo que garantisse a sua persisténcia no tempo. A atividade que o homem desenvolve de construir um mun- do € sempre um empreendimento coletivo. A apropriagZo interna do mundo por parte do hcmem também deve ocorrer numa cole- tividade. Tornou-se hoje em dia um lugar comum nas ciéncias sociais dizer que € impossfvel tornar-se ou ser humano, de qual- quer forma empiricamente reconhecfvel que v4 além das observa- des biolégicas, exceto na sociedade. Isto se torna mencs que um lugar comum se se acrescentar que a interiorizagio de um mundo depende da sociedade do mesmo modo, porque com isso se csté dizendo que o homem é incapaz de conceber sua experiéncia de maneira ccmpreensivamente significativa a nao ser que essa con- cepcao lhe seja comunicada através dos processos sociais. Os pro- cessos que intericrizam o mundo socialmente objetivado séo os mesmos processos que interiorizam as identidades socialmente con- feridas. O individuo é socializado para ser uma determinada pessoa ¢ habitar um determinado mundo. A identidade subjetiva ¢ a rea- lidade subjetiva séo produzidas na mesma dialética (aqui, no sen- tido etimolégico literal) entre o individuo e aqueles cutros signi- ficatives que estao encarregsdos de sua socializagio ”. E poss{vel tesumir a formacao dialética da identidade pela afirmacao de que © individuo se torna aquilo que os outros o consideram quando tratam com cle. Pode-se acrescentar que 0 individuo se apropria do mundo em conversacdo com cs outros e, além disso, que tanto a identidade como o mundo permanecem reais para ele enquanto ele continua a conversagao. O tltimo ponto é muito impertante, porque supde que a so- cializagfo nunca pode ser completada, que deve ser um processo continuo através de toda a existéncia do individuo. Este é 0 lado subjetivo da jd observada precariedade de todos os mundos cons- truidos pelo homem. A dificuldade de manter de pé um mundo se expressa psicologicamente na dificuldade de manter esse mundo subjetivamente plausfvel. O mundo € construfdo na consciéncia do individuo pela conversagio com os que para ele sao significa- tives (como cs pais, os mestres, os amigos). O mundo é mantido como realidade subjetiva pela mesma espécie de conversagao, seja 20 A expressiio “outros significatives” também deriva de Mead. Ela teve aceitagaéo geral na psicolo; americana. 29 com os mesmos interlccutores importantes ou com outros novos (tais como cénjuges, amigos ou outras relacdes). Se essa conver- sagao € rompida (c cénjuge morre, os amigos desaparecem, ou a pessoa deixa seu primeiro meio social), o mundo comeca a vacilar, a perder sua plausibilidade subjetiva. Por outras palavras, a reali- dade subjetiva do mundo depende do ténue fio da conversacio. A tazao de muitos de nés nao termos censciéncia dessa precarie- dade, a maior parte do tempo, est na continuidade de nossa con- versacao com os interlocutores importantes. A manutencao dessa continuidade € um dos mais importantes imperativos da ordem social. A interiorizagio implica, portanto, cm que a facticidade ob- jetiva do mundo social se torne igualmente uma facticidade sub- Jetiva. As instituicdes se apresentam ao individuo como data do mundo objetivo exterior a ele, mas séo agora também data de sua prépria consciéncia. Os programas institucionais estabelecidos pe- la sociedade saosubjetivamente reais como atitudes, motivos e pro- jetos de vida. O individuo se apropria da realidade das institui- ges juntamente com os seus papéis e sua identidade. O individuo faz seus, por exemplo, como realidades, as disposicdes particulares de parentesco vigentes na sua sociedade. Ipso facto, assume ele es papéis que lhe sao atribuidos nesse contexto e apreende a sua propria identidade em termos desses papéis. Assim, ele nfo sé desempenha o papel de tio, mas é um tio. E, se a socializagio foi bastante bem sucedida, nao deseja ser alguma outra coisa, Suas ati- tudes para com os outros e seus motivos para determinadas aces sao endemicamente avunculares. Se vive numa sociedade que esta- beleceu a condi¢ao de tio como instituigio de central importancia (nao as nossas, é claro, mas a maioria das scciedades matrilinea- res), conceberd toda a sua biografia (passada, presente e futura) em termos de sua carreira como um tio. Mais ainda: poderd até sacrificar-se a si mesmo pelos sobrinhos e derivar consolagao do fato de que sua propria vida continuara neles. O mundo social- mente objetivado ainda é apreendido como facticidade, externa. Tios, irmaos, sobrinhos existem na realidade objetiva, compardveis em facticidade as espécies de animais ou pedras. Mas esse mundo objetivo também € apreendido agora como inteligibilidade subjeti- va, Sua opacidade inicial (digamos, para a crianga, que precisa aprender a tradicao do tio) transmudou-se em uma transparéncia interna. O individuo pode agora olhar para dentro de si mesmo e, nas profundezas do seu ser subjetivo, pode “descobrir-se” como 30 um tio. Nesse ponto, supendo sempre um grau de socializacgio bem sucedida, a introspecgo se torna um método viavel para a descoberta de significados institucionsis 2". O processo de interiorizacio deve sempre set entendido co- mo apenas um momento do processo dialética maior que tamhém inclui os momentos da exteriorizagao e da objetivagao. Se isso nao € feito, emerge um quadro de determinismo mecanicista, no qual o individuo é produzido pela scciedade como o efeito é produzido pela causa na natureza. Tal quadro distorce o fend- meno social. A interiorizagéo nao sé é uma parte da dialética mais ampla deste ultimo, como a socializagao do individuo tam- hém acorre de maneira dialética 2. O individuo nao é modelado como uma coisa passiva, inerte. Ao contrario, ele é formado no curso de uma prolongada conversagao (uma dialética, na acepgao literal da palavra) em que ele € participante. Ou seja, 0 mundo sccial (com suas instituigdes, papéis e identidades apropriados ) nao é passivamente absorvido pelo individuo, e sim apropriado ativamente por ele. Além disto, uma vez formado o individuo co- mo fessoa, com uma identidade objetiva e subjetivamente reco- nhecivel, ele deve continuar a participar da conversagio que o sustenta como pessoa na sua biografia em marcha. Isto é, o indi- viduo continua a ser um co-produtor do mundo social, e assim de si mesmo. Por pequeno que seja o seu poder de mudar as definigdes sociais da realidade, ele deve ao menos continuar a dar a sua aquiescéncia aos que o formam como pessoa. Mesmo que cle negasse essa co-produgao (digamos, como socidlogo ou psicé- logo positivista), continua da mesma forma a ser co-produtor do seu mundo — e, na verdade, a sua negacao disto entra na dialé- tica como fator fermativo do mundo e dele mesmo. A relagao entre o individuo e a linguagem pode, ainda uma vez, ser tomada como paradigma da dialética da socializacao. A linguagem se apre- senta ao individuo como facticidade objetiva. Ele se apropria sub- jetivamente dela travando interagao lingiifstica com os outros. No decurso dessa interacio, entretanto, modifica inevitavelmente a linguagem, mesmo que (digamos, como um gramético formalis- 21 Acreditamos que essa afirmagao da introspecgéo como método vidvel para a compreensdo da realidade social, depois de uma socializagao bem su- cedida, pode servir como ponte entre as proposigGes, aparentemente con- traditérias, de Durkheim, sobre a opacidade subjetiva dos fenémenos sociais, e de Weber, sobre a possibilidade de Verstehen. 2 O cardter dialético da socializagéo é expresso nos conceitos de Mead sobre o “eu” e o “mim”. Cf. op. ci., pp. 17358. 31 ta) negasse a validade dessas modificagdes. Além disso, sua con- tinua participagao na linguagem é uma parte da atividade huma- na que € a tinica base ontolégica da linguagem em questo. A linguagem existe porque ele, juntamente com os outros, con- tinua a empregé-la. Em outras palavras, tanto em relagdo & linguagem como em relagdo ao mundo socialmente objetivado co- mo um todo, pode-se dizer que o individuo fica “replicando” ao mundo que o formou e desse modo continua a manter este ultimo como realidade. Agora torna-se compreensfvel a proposigéo de que o mundo socialmente construido é, acima de tudo, uma ordenacao da expe- rigucia, Uma crdem significaiva, cu nomos, € imposta as expe- riéncias e sentidos discretos dos individuos*. Dizer que a socie- dade é um empreendimento de construgéo do mundo equivale a dizer que é uma atividade ordenadora, ou nomizante. O pressu- posto disto € dado, como acima se indicou, pela ccnstituigao bio- Idgica do homo sapiens. O homem, ao qual foram negados biolo- gicamente os mecanismos ordenadores de que sao dotados os ou- tros animais, é obrigado a impor a sua prépria ordem a experién- cia. A socialidade do homem pressupde o cardter coletivo dessa atividade crdenadora. A ordenacao da experiéncia € prépria a toda espécie de interacao sccial. Toda acao social supde que o sentido individual seja dirigido aos outros e a interacao social continua importa em que os diversos sentidos dos atores se integrem numa crdem de significado comum ™. Seria erréneo supor que essa con- seqiiéncia nomizante da interagao sccial deva, desde o infcio, pro- duzir um nomos que abarque /odes as experiéncias e significacdes discretas dos participantes individuais. Se se é capaz de imaginar uma sociedade nas suas primeiras origens (algo, € claro, de em- piricamente nao-disponfvel), pode-se supor que o alcance do no- mos comum se expande quando a interacao social passa a incluir dreas cada vez maiores de significado comum. Nao tem sentido imaginar que esse nomes deva incluir a totalidade dos significados individuais. Assim como nao pode haver individuo totalmente so- cializado, assim sempre haver4 também significados individuais que 23 © termo “nomos” € indiretamente derivado de Durkheim a partir do conceito de anomia, Este ultimo foi primeiramente desenvolvido em seu Suicide (Glencoe, Ill., Free Press, 1951); cf. especialmente pp. 241s. 24 A definigio da ago social em termos de significado deriva de Weber. As implicagdes desta defini¢fo em termos do “mundo” social foram espe- cialmente desenvolvidas por Schutz. 32 permanecem fora ou a margem do nomos comum. Na verdade, co- mo se verd logo adiante, as experiéncias marginais do individuo sao de considerdvel importancia para a compreensao da existéncia social. Apesar disso, ha uma ldgica inerente que impele todo no- mos a expandir-se em dreas mais amplas de significado, Embora a atividade ordenadora da sociedade nunca atinja a totalidade, po- de ainda assim ser descrita como totalizante *. O mundo social constitui um nomos tanto objetiva como subjetivamente. O nomos objetivo é dado no processo de objeti- vacao como tal. O fato da linguagem, embora tomado em si mes- mo, pode logo ser visto como a imposicao da ordem sobre a ex- periéncia. A linguagem nomiza impondo diferenciagao e estrutura no fluxo ininterrupto da experiéncia. Quando um item da expe- tiéncia € nomeado € ipso facto retirado desse fluxo e ganha esta- bilidade coma a entidade assim nomeada. A linguagem proporcio- na além disso uma ordem fundamental de relagdes pela adigéo da sintaxe e da gramética ao vocabuldrio. E impossivel usar a lin- guagem sem participar de sua ordem. Pode-se dizer que toda lin- guagem empirica constitui um nomos em formacao, ou com igual validade, uma conseqiiéncia histérica da atividade nomizan- te de geragdes de homens. O ato nominante original é di- zer que um item é isto e, portanto, nao aquilo. Quando esta incorporagao criginal do item numa ordem que inclui outros itens € seguida de designacées lingiiisticas mais distintas (o item é mas- culino e nao feminino, singular e nao plural, substantivo e nao verbo, e assim por diante), o ato nomizante visa uma ordem compreensiva de todos cs itens que possam ser objetivados lin- gilisticamente, isto é, visa um nomos totalizante. Sobre o fundamento da linguagem, ¢ por meio dela, é cons- truido o ediffcio cognitive e normativo que passa por “conheci- mento” numa sociedade. Naquilo que “sabe”, toda sociedade im- poe a experiéncia uma ordem de interpretacio que se torna “co- nhecimento objetivo” mediante o precesso de abjetivacao discutido acima. S6 uma parte relativamente pequena desse ediffcio é cons- titufda de teorias desta ou daquela espécie, embora o “conheci- mento” tedrico seja particularmente importante porque contém usualmente 0 corpo das interpretacdes “oficiais” da realidade. A maior parte do “conhecimento” objetivamente socializado é pré- 25 © termo “totalizacgéo” deriva de Jcan-Paul Sartre. Cf. sua Critique de la raison dialectique, vol. | (Paris, Gallimard, 1960). 33 2+ dossel sagrado -teérico, Consiste em esquemas interpretativos, m4ximas morais colegdes de sabedoria tradicional que o homem da rua freqiien- temente compartilha com cs teéricos. As sociedades variam quan- to ao grau de diferenciagao de seus corpos de “saber”. Sejam es- sas variacdes quais forem, toda sociedade fornece aos seus mem- bros um corpo disponivel de “saber”. Participar da sociedade é partilhar do seu “saber”, ou seja, co-habitar o seu nomos. O nomos cbjetivo é interiorizado no decurso da socializacao. O individuo se apropria dele tornando-o sua prépria ordenacao subjetiva da experiéncia. E em virtude dessa apropriagéo que o individuo pode “dar sentido” & sua propria biografia. Os elemen- tos discrepantes da sua vida passada sio ordenados em termos do que ele “sabe objetivamente” sobre a sua prépria condicio e a dos cutros. Sua continua experiéncia se integra na mesma or- dem, embora a tiltima possa ter de ser modificada para permitir essa integracao. O futuro atinge uma forma significativa porque se projeta nessa mesma ordem. Em outras palavras, viver num mundo social é viver uma vida crdenada e significativa. A so- ciedade é a guardid da ordem e do sentido nao sé objetivamente, nas suas estruturas institucionais, mas também subjetivamente, na sua estruturacdo da consciéncia individual. E por esse motivo que a separacio radical do mundo social, ou anomia, constitui tao séria ameaca ao individuo *. O individuo nfo perde, nesses casos, apenas os lacos que satisfazem emocio- nalmente. Perde a sua orientagao na experiéncia. Em casos extre- mos chega a perder o senso da realidade ¢ da identidade. Torna-se anémico no sentido de se tornar sem mundo. Assim como se constréi e sustenta um nomos do individuo na conversagéo com interlocutores importantes para ele, assim o individuo é mergulha- do na anomia quando essa conversagao é radicalmente interrompi- da. As circunstancias de tal ruptura némica podem, € claro, variar. Pederiam envolver grandes forcas coletivas, como a perda de status de todo o grupo social ao qual o individuo pertence. Poderiam ser thais estritamente biograficas, como a perda dos outros signi- ficativos pela morte, pelo divércio ou separacao fisica. E assim possfvel falar de estados de anomia coletivos e individuais. Em ambos os casos a ordem fundamental em termos da qual o indi- 26 “Anomy” (NT, “anomia”, em portugués) ¢ uma adaptagio da anomie dc Durkheim, usada por varios sociélogos americanos, mas nao por Robert Mertcn (que procurou integrar 0 conceito no fmbito da teoria estrutural-fun- cionalista, mantendo a forma francesa). 34 viduo pode “dar sentido” 4 sua vida e reconhecer a prdpria identidade, estar4 em processo de desintegracao. O individuo nao s6 comegard a perder as suas posturas morais, com desastrosas conseqiiéncias psicolégicas, como também se tornard inseguro quan- to as suas posicGes cognitivas. O mundo comeca a vacilar no exa- to momento em que a conversagao que o sustenta comega a cs- morecer. O nomos socialmente estabelecido pode, assim, ser entendi- do, talvez no seu aspecto mais importante, como um escudo con- tra o terror. Ou por outras, a mais importante funcao da so- ciedade é a nomizaco. A pressuposicao antropolégica disso é uma exigéncia humana de sentido que parece ter a forca de um instinto. Os homens sao congenitamente forcados a impor uma ordem sig- nificativa realidade. Essa ordem pressupde, no entanto, o empre- endimento social de ordenar a construgio do mundo. Ser segrega- do da sociedade expe o individuo a uma porcdo de perigos que ele é incapaz de enfrentar sozinho; num caso extremo ao perigo de extincao iminente. Ser separado da sociedade inflige também ao individuo intolerdveis tensdes psicolégicas, tensdes que se fun- dam no fato radicalmente antropoldgico da socialidade. O perigo supremo de tal separagio ¢, no entanto, o perigo da auséncia de sentido. Esse perigo é o pesadelo por exceléncia, em que o indivi- duo é mergulhado num mundo de desordem, incoeréncia e lou- cura. A realidade e a identidade sio malignamente transformadas em figuras de hcrror destitufdas de sentido. Estar na sociedade é ser “sao” precisamente no sentido de ser escudado da suprema “in- sanidade” de tal terror. A anomia é intolerdvel até o ponto em que 0 individuo pode lhe preferir a morte. Reciprocamente, a existén- cia num mundo némico pode ser buscada a custo de tcdas as espé- cies de sacrificio e sofrimento — e até a custo da prépria vida, se o individuo estiver persuadido de que esse sacrificio supremo tem alcance némico”’, A qualidade protetora da crdem social se patenteia de mo- do especial ao se considerar as situagdes marginais da vida do individuo, isto é, as situagGes em que ele & levado até as proxi- midades ou para além dos limites da ordem que determina a sua rotina, a existéncia cotidiana *, Essas situagGes matginais ocorrem 27 Isto sugere que haja suicidios némicos e andmicos, um tépico que é mencionado mas ndo desenvolvido por Durkheim em sua discussio de “sui- cidio altruista” (Suicide, pp. 2178s). 28-O conceito de “situagdes marg'nais” (Grenzsituationen) deriva de Karl Jaspers. Cf. especialmente sua Philosophie (1932). 35 comumente nos sonhos ¢ na imaginacao. Podem surgir no horizon- te da consciéncia como suspeitas obsessivas de que o mundo possa ter outro aspecto que nao o seu aspecto “normal”, isto é, que as definicdes previamente aceitas da realidade possam ser frageis € até fraudulentas , Essas suspeitas se estendem a identidade pré- pria e a dos outros, postulando a possibilidade de metamorfoses catastroficas. Quando tais suspeitas invadem as dreas centrais da consciéncia elas assumem, naturalmente, as constelacdes que a mo- derna psiquiatria denominaria neuréticas ou psicéticas. Seja qual for o status dessas constelagdes (sobre as quais a psiquiatria for- mula, em geral, o seu juizo com demasiado acodamento, justa- r estar firmemente arraigada nas definigdes cotidianas, , scciais da realidade), o profundo terror que encerram para o individuo est4 na ameaca que constituem ao seu nomos previamente operativo. A situagao marginal por exceléncia é, con- tudo, a morte. Assistir 4 morte de outros (notadamente, é claro, a dos outres que se revestem de uma importncia especial) e antevendo a prépria morte, o individuo é fortemente impelido a pér em questao os procedimentos cognitivos e normativos ope- rantes ad boc na sua vida “normal” na scciedade. A morte cons- titui para a sociedade um formidével problema nio sé devido & sua Sbvia ameaca & continuidade das relagdes humanas, mas tam- bém porque pée em cheque os pressupostos bdsicos da ordem sobre os quais descansa a sociedade. Em outras palavras, as situacdes marginais da existéncia hu- mana revelam a inata precariedade de todos os mundcs sociais. Toda realidade socialmente definida permanece ameagada por “ir- realidades” & espreita. Todo nomos socialmente construido deve enfrentar a possibilidade constante de ruir em anomia. Visto na perspectiva da sociedade, todo nomes é uma drea de sentido es- culpida de uma vasta massa de caréncia de significado, uma peque- nina clareira de lucidez numa floresta informe, escura, sempre ominosa. Visto da perspectiva do individuo, todo nomos represen- ta o luminoso “lado diurno” da vida, precariamente oposto as si- nistras sombras da “noite”. Em ambas as perspectivas, todo no- mos é um ediffcio levantado frente as poderosas e estranhas forgas 29 A nogiio de “outro aspecto” da realidade foi desenvolvida por Robert Musil em seu grande romance inacabado Der Mann ohne Eigenschajten, no qual é um dos temas principais. Para uma discusséo critica, cf. Ernst Kaiser e Eithne Wilkins, Robert Musil (Stuttgart, Kohlhammer, 1962). 30 O conceito da morte como a mais importante situacéo marginal derive de Martin Heidegger. Cf. especialmente seu Sein und Zeit (1929). 36 do caos. Esse caos deve ser mantido em cheque a todo custo. Para assegurar isso, toda sociedade desenvolve procedimentos que ajudam seus membros a ficar “orientados para a realidade” (isto é, a ficar dentro da realidade como é definida “oficialmente”) ¢ a “voltar & realidade” (isto ¢, veltar das csfcras marginais da “ir- tealidade” ao nomos socialmente estabelecido). Esses procedimen- tos terao de ser examinados mais de perto um pouco mais adiante. Pcr enquanto contentemo-nos com dizer que o indivfduo recebe da sociedade vérios métodos para diferir o mundo de pesadelo da ancmia e conservar-se dentro dos limites seguros do nomos es- tabelecido, O mundo social se esforga, na medida do possivel, por ser considerado como uma coisa dbvia*!. A socializagao cbtém éxito na medida em que essa qualidade de ser aceita como coisa eviden- te é interiorizada. Nao basta que o individuo considere os senti- dos-chave da ordem social como tteis, desejéveis ou corretos. E muito melhor (melhor, isto é, em termos de estabilidade social ) que ele os considere como inevitdveis, como parte e parcela da universal “natureza das coisas”. Se isso for conseguido, o indivi- duo que se desgarra seriamente dos programas socialmente defini- dos pode ser considerado nao s6 como um idiota ou um canalha, mas como um louco. Subjetivamente, portanto, o desvio sério pro- voca nao sé culpa moral mas o terror da loucura. Por exemplo, 0 programa sexual de uma sociedade € aceito como uma coisa ébvia nfo apenas como dispositivo utilitério ou moralmente correto, mas como uma inevitdvel expresso da “natureza humana”, O cha- mado “panico homossexual” pode servir de excelente ilustracgo do terror desencadeado pela recusa desse programa. Com isso nao se mega que esse terror seja também alimentado pelas apreensGes prdticas e remorsos de consciéncia, mas a sua mola propulsora fundamental é 0 pavor de ser alijado as trevas exteriores que se- param o individuo da ordem “normal” dos homens. Em outras palavras, os programas institucionais sao dotados de um status ontolégico a tal ponto que negé-los equivale a negar o préprio ser — o ser da ordem universal das coisas e, conseqiientemente, © que se é nessa ordem. Sempre que o nomos socialmente estabelecido atinge a qua- lidade de ser aceito como expressio da evidéncia, ocorre uma 31 © conceito do mundo como coisa ébvia é derivado de Schutz. Cf. especialmente seus Collected Papers, vol. 1, pp. 207ss. 37

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