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Dados Intemacionais de Catalegagao na Publicapso (CIP) (CAmara Brasileira doLivro, SP, Braet) Adam, Jean-Michel “A lingistia textual :inttodugio 8 anslice textual dos discurscs ‘eat-Michel Adam revisotGnia Lats Passa Jo80 Gomes da Silva Neto. S80 Paulo: artes, 208, ‘Ttalocrig!nai:lalinguitiquetextuelle:introducrionalnalyse ‘oxtucle d% discours. | Anilise dodiscurso? LingUlstica Titulo. ceaons cpp 40.41 Indices paracatéiogo sistométioo: 1-Lingisten textual Anise dodiscurs0: Linpoistica 40141 Jean-Michel Adam A LINGUISTICA TEXTUAL Introdugao a andlise textual dos discursos ‘Tradutores: Maria das Gragas Soares Rodrigues Luis Passeggi Jo%0 Gomes da Silva Neto Euldlia Vera Lacia Fraga Leurquin Revisdo Cientifica: Luis Passeggi Joao Gomes da Silva Neto Zz = CLUNL ee AT NEURONE no dyet SET Sumario CAPITULO1 w Introdugioa andlise textual dos discursos.. 1. (Re\Comecar de Saussure e de Benveniste Li. A “lingua discursiva” de Ferdinand de Saussure nnn 1.2. A“translingiiistica” de Emile Benveniste... 2. Lugar da lingiiistica textual na andlise de discursos. 2.1, Géneros de discurso, ingua(s) eformacées : sociodiseursivas... 7 2.2. (Re}Pensaras relagdes entre contexto, co-42xt0 € textO(8) smone 3. Ocampo da andlise textual dos discursos, 33. Uma pragmatica textual? 32. Dodiscurso como asso a0 texto 4. Estabelecimento do texto e construgao do objeto de andlise... 4.1. Fragmento 128 dos Caractéres de La Brayare <1> sour 42. Aperoragio do elogio ftinebre de Georges Braque por Malraux. ‘ react Ana CAPITULO2 = Quais categorias paraa anélise de textos? ma 1. Um “novo aparelho de conceitos ede definigoes” (Benveniste) .. LL. Categorias da linguae categorias textusis.. 1.2, Fronteira frase-texto ¢ segmentagio dos enunciacos: oexemplo das construgdes deslocadase das relatives 7 13, Pontuagioe segmentagio grafica das unidades, aa 2. Coesto textual, focalizacdo e progressio temética. 86 2. Lugares do adjetivo epitético: focalizagdoe textualidad 88 22. AMperspectiva funcional da frase” senennumniesnse 3 23. Ostipos de progresses tematicas... 96 24. Umexemplo de sintaxe expressiva publicitéria. 101 3. Aunidade textual clementar: a proposi¢ao-enunciado. 104 3A. Afrase em questio.. sevens 108 32, Aproposigdo como microunidade enunciativa textual wns 108 33. Ato dereferéncia e constragio de uma representagso Aiscursiva . 34, Responsabilidade enunciativa dos emunciados: 35, Orientagdo argumentativa dos enuinciados. 36. Mictoatos de discurso. 13 15 CAPITULO3 @ Tipos de ligagéo das unidades textuais debase.... 131 © 1, Aconstrugto textual da referéncia (ligagées sernfnticas 1)... 192 14, Andforas demonstrativas.. Mi 15, Fragmento 128 dos Caractires de La Bruyete <2> ne 2, Isotopia do discurso e colocagées (ligagdes seménticas 2) un. 147 2.21. Co-topia, poliisotopia, heterotopia _ 7 22, “Oginasta” de Francis Ponge eweninemnm 183 24, Ascolocagées: textualidadee intertextualidade wnnenneenn 156 3, As ligagdes do significante . 161 3.1, Daaliteragio aos paralelismos gramatica - 163 3.2. O"furordo jogo fénico” num soneto de Baudelaire... 33, “Oginaste” de Francis Ponge <>... 4. Entre dito endo-dito: da elipse ao implicito... sevvnnnin VID 5. AL Aclipse como figura de constragdo textual venennenmonene 172 42. Formas do implicit: pressupostos e subentendidos. . 176 5. Formase escopo dos conectores. 179 181 5. Organizadores textuais.. 5.2. Marcadores do escopo de uma responsabilidade cenunciativa 53. Conectoresargumentativ 54, Leitura de um peritextojomalistico ... 5, Fragmento 128 dos Caractires de La Bruyere <>. 6. Cadeias de atos de discurso 61. Otexto comoestrutira hierdnquica de atos. 62. Leitura de um cartar da Segunda Guerra Mundial CAPETULO4 m Periodose seqiiéncias: unidades composicionais debase. : 1. Operiodo: da retérica lingiifstica textual ... LL. Redefinigio do persodo. 12. Fragmento 128 dos Caractoes deLa Bruyere . m2 2. Entre perfodo e seqiiéncia: a desctigSo.... 215 2.1, Operagbes de tematizacso se 216 22 Operagdes de aspectualizasao... 219 23, Operagoes de relagao smmnoninanenenenens 22 m2 24, Operagdes de expansio por subtematizaglonnnmmmnnn w anascreL ceed 3, Estrutura da seqiiéncia narrativa.... ma 4, Estrutura da seqiiéncia argumentativa 231 4. Doperiodoa seqiiénct 231 4.2. Leitura de um peritexto argumentative joalistico <2> 234 43, Fragment 128 dos Cerectares de La Bruyére <6> 236 53. Estrutura da seqdéncia explicativa 5.4, Ofinal de um discurso politico de Valéry Giscard d'Estaing.. 6. Dos pares de atos de discurso A seqiiéncia dialogal CAPITULOS m= Estruturagio seqiiencial endo-seqtiencial dos textos... os 1. Asestruturagées composicional e seqiencial dos textos. LA. Osplanosde textoea composigi 12. Acstruturagio seqaencial. 2. Acestruturagdo nio-seqiiencial dos textos... 24, Rstraturasiv seticular.. 2.2, Bstruturagao configuracional CAPITULOS mC funcionamento textual dos tempos verbais. 1. Superara oposicdo reducionista da “narrativa” edo ""discurs0” 2. Aenunciacio direta ou “enunciagio de discurso” <1> 3. Adiogetizacio autonoma ou “enunclagio historica” <> 4, Adiegetizacio ligada ou narragio de discurso <2>.. 5. Aenunciacio de verdades gerais <3>. 6, VariagSes erunciativas e transigbes: ‘suNuncarETUNL 0" CAPITULO7 = DeGaulle e Pétain: andlise textual eintertextual dos Apelos de 17 ¢ 18 dejunho de 1940. somes 298, 1. Oestabelecimento dos textos. 299 2. eos intertextuai 303 3, Comparagdo das duas alocugées. 306 3.1, Osconectores argumeniativos. 306 43.2, Atosilocuciondtios e performatividade do discurso.. 308 33, Osindicadores de pessoas . 300 Repeticdo e estilo periddicono Apelode 18 dejunho de 1940... ; ss a2 5, Para concluir: as dominantes argumentativas dos dois discurso: se 317 CAPITULOS = Andlise textual de uma narrativa de Jorge Luis Borges: “O Cativo” . 320 1, Uma genericidade complexa. 33 2, Abordagem textual da tradugi 325 3, Estrutura composicional do texto 330 3.1. Estrutura narrativa do primeiro parsgrafo . . 330 32, Ritmo periédico do segundo parsgrafo . 31 3.3. Plano do text0 wrrare 334 4, Enunciagio narrativa e fontes do saber 335 5, Referente evolutivoe identidade narrativa 338 6. Uma fabula sobre o tempo,a memoria eo esquecimento w.... 340 343 346 Bibliografia geral ” ASLICHEL ADAM franceses —uma delas de Jean-Michel Adam —deum textoemespanhol, de Jorge Luis Borges. Nesse caso, a traducao para oportugués acompanha ‘ora 0 texto em espanhol, ora suas tradugbes para o francés. Finalmente, para justificar essas opgbes, assim como a din&mica da tradugao que apresentamos, recorremos a uma afirmacao do préprio Jean-Michel Adam, nas primeiras linhas do capstulo 8:“A tradugdo é um revelador da concepgao da linguagem e do texto, tanto do tradutor como do pesquisador que aceita a prova da (re)tradugéo.” ‘Comotradutores, professorese pesquisadoresdalinguagemedotexio, fazemosnossas essas palavras. ALINGUISTICA TEXTUAL Introducao a andlise textual dos discursos Introdugao* Quando se diz que umn enunctado faz sentido ele faz, antes de tudo, texto, (Catiot 2003, p. 147-1481) ‘Varios lingtlistes criticaram arestrigdo desua disciplinaaoslimitesda frase. Porocasitéodo coléquio interdisciplinar sobre o estilo, quereuniu,na Universidacte de Indiana, em 1960, lingiistas, antropsloges, psieslogose cfticosliterérios, Roman Jakobson (1963, p. 212-213) questionot o queele considerava como uma limitag&o abusiva: Ainsisténcia em manter postica separada da lingistica justiica-seapenas quando o dominio da lingtistica encontra-se abusivamenterestite, por ‘exemplo, quando certos lingiistas veema frasecomoaconsttugioanalisivel demaisaltonivel, ou quandoa esterada lingtifstica esta continada somente. ‘A grameticaou unicamente as questdes ndo-semnticas de forma externa, Jakobson (1973, p. 485-486) prezava tanto essa idéia, ec programa de trabalho que ela implica, que a retomou anos mais tarde, colocando em primeizo plano, desta vez, a andlise do discurso mais do.que a postica: “Treads: Macidas Gras Soares Rodrigues. 1.As indicagbesbbliogriicas eat referenciadasnabibllografla gral que aparece no inl da ‘obra. Onome do autor éseguido da date de publieaggoe dantimero de pigina. Pars facilitaro acest alfabticoabibliograa no fidividida cm sesden oH a ASIC ADAM i team Outrospreconceitos, devidos|..aodesconthecimento da ingiistica contem porfneacdesous objetives, leva oserticosa gravesequivoces Assim a idéia de queo estudo lingistico se encerra nos limites da frase [..] &desmentida pola andlise do discurso, considereda, hoje, como uma tarefa colocada em primeiro plano na cincia lingtistia, Mikhail M. Bakhtin (1978, p. 58) est4 muito proximodessa posigiono primeiro estudo de um livro publicado no ano desua morte, em 1975: gilistica..J nunca elucidouasegioa qual deveriam pertencer os grandes “nr ervetna longue ia ore logs dear, tratadoo,romanceselc, poisesses enuinciados podemedevemserdefinides, clestambém, deforma pusramentelinglistica,comofendmenosda linguagem. [.JAsintaxeclas grandes mss verbais[..esperaainda serfundads;atéo presente, a lingiistica nto avangou cientificamente além da frase complexa: éofendmenolingtisticomaislengo cientificamenteexplorado, Dirse-iaque 4 linguagem metodicamente pura da lingiistica péra ai. ¥ no entanto, ppode-se desenvolver ainda mais a anélise lingiistica pure, por mais dificil queso possa parecer, ¢ por mais tentador que seja introduzir aqui pontos de vista estranhos a lingitstica ‘No campo da sociolingtifstica, a constatagto de William Labov (1978, p.228-224) é,namesma época, idéntica equestiona.oquadrometodol6gico daanilise do discurso de Zellig S. Harris: ‘Atéo presente,oslinguistas [.] permaneceram, em esséncia, nos limites da frase, poisaandlisedodiscursy sem serem simesma um dominio vingesy assim ‘0épelomenos de um ponto de vista téenico, no sentido de quenenhuma de ‘suns partes fundamentsifoiseriamentecompreendida.f'veriade,hiaobra ‘bem conhecida de Haris, Discourse analysis reprints (1963); mas seu objeto zeal, os rearranjos estrutwiais ronivel da frase, atorna totalmente alheia aos problemas que nos interessam aqui. De fato, e isso deveria ser motivo de inguiotagio para os lingtistas, embora muitos deles comecem ase dedicat a essa quest8o, 0s principais progresses vieram dos sociélogos. Paracitarapenas mais umexemplolingtifstico, Catherine Fuchs (1985, p20) lamentava, ha vinte anos, quea maior patie dosestudos sobreaam- AuNGbISnCATETUAL » \de e a pardfrase tenha-se interessado somente pela ambigitidade de frases isoladas e pelas relages de sinonimia entre pares de frases; sem Tevarem consideragdo um co-texto mais vasio. Lamentava, igualmente;o caréter ainda imitado das tentativas que visavam considerarcertasrelagies entre frases: “ido se disp8e de estudos sistemiticos sobre a ambigiiidade © a pardfrase, no nivel do texto, ao passo que muitas ambigitidades po- tenciais de frases isoladas nao subsistem em um contexto mais amplo e, inversamente, outrasambigtiidadesstioengendradasna tessituraprogres- siya das significagdes ao longo do texto” (ibid, p. 20-21). Para engajar-se décididamente nessa direcdo, é preciso, como preconizavam Michael A. K. Halliday e Ruqaiya Hasan (1976, p.293) 2nao gramaticalizar o transita- sal, considerando o texto como uma grande frase ou como uma simples sucesso de frases: Um texto [..] nao é um simples encadeamento de frases [string of sentences] ‘Em outras palavras, nao trata de uma grande unidade gramatical, de al- ‘guma coisa de mesma natureza que uma frase, masqquese difrenciaria pelo tamanho—umaespécie de superfrase, Um textongodeve,deformaalguma, ser visto como uma uitidade gramatical, mas como uma unidade de outra cepécie: uma unidade semnantica. Sua unidade 6 uma unidadecesentidoem contexto, uma textura que exprime o fato de que, ao formar um todo [as @ ‘whole] ele estéligado ao meiono qual encontra-se situado. Eugenio Coseriu, que parece tersido um dos primeiros, désdéosanos- 1950, a usar o termo “lingilistica textual”, propde, com muitd razio, em seus tiltimos trabalhos, distinguira “gramatica transfrasal” da “lingiistica textual” (1994), Sea primeira podeser considerada como wmaextensio da, Hingiifstica cléssica, a ingiistica textual 6,em contrapartida, umateoriada producéioco(ntextual de sentido, quedeve furdar-se na andlise de textos concretos. E esse procedimento que me proponho desenvolvere designar como anidlise textual dos discursos. Nas citagdes precedentes, constata-se que alguns falamde"discurso” ede analise de discurso, outros falam de “texto” ede analise textual. Ape- 2.Atraducto dese texto para francés de Jean-Michel Adam [N.T « RANA ADA sardeas duas nascerem nos anos 1950, a lingiistica de textoe a andlise do discurso no tém a mesma origem episterrolégica nem a mesma historia, Entremeus Eléments delinguistique extuelle(1990) e Linguistiquetextuelle. Des _gentres de discours aux textes (1999), a evolugio tebrica emetodologica mais importante veio da rentincia descontextualizacio e & dissociagso entre texto ediscurso que meu ensaio de 1990 ainda preconizava. Tomando nota da seguinte constatagiio de Henri Meschonnic (1999, p.74), partitharemos também as obrigacSes em termes de teoria da linguagem e do discurso: © pensamento da linguagem no século XX esté contido na passagem da lingua pare o discurso, Anogdo de lingua é venetavel; ela tem, pelo menos, 2500 anos. A nogio de discurso é muito recente, data dos anos trinta, Ela & ‘régilinstavel, Logicistana pragmética. Entretanto,essanogiodediscurso€ a principal invengdo do século XX.no pensamento sobre a linguager. (JA. ;passagem das categorias da lingua As categorias do discursoacompanha-se eum perigo:acreditar que se pensa o discurso, a0 passo quesepensa ainda ainda, o discurso nasnogies da lingua. ‘As péginasaseguir inscrevem-sena perspectivade um posicionamen- totesricoe metodolégico que, comoobjetivode pensar otextocodiscurso ‘emmnovas categorias, situa decididamente a lingiifstica textual no quadro :nais amplo da andlise do discurso. Esse “deslocamento dialético de uma contradigéo bloqueada” como diz. muito bem Jean-Marie Viprey (2006, p. 168), “permite ao especialista do texto reinvestiz tuna esfera do discurso doravante deslocada”. ‘A presente obra distingue-se, por isso, de dois livros da colecio “Cursus”, com objetivos aparentemente prOximos. Lanalyse textuelle, de Jean-Francois Jeandillow (1997) apresenta-se como uma sintesedenogSes provenientes da poética, da semistica literdria e da gramética de texto. Esse manual nfo propée uma teoria unificada original, mas as grandes linhas de uma abordagem decididamente eclética. Mais zestrita do ponto de vista das disciplinas de referéncia e, sobretudo, centrada na frase e em seus procedimentos de amplificagio, La construction di texte (1998), de Joélle Gardes-Tamine e Marie-Antoinette Pellizza, tem por objeto a escrita literdria, como o confirmam os exemplos estudados ¢ o subtitulo Auncrearexrua, ns escolhido: Dela grammuire au style. Diferentemente desses dois manuais, as paginas que serdo lidas, ao mesmo tempo em que pretendem trazer respostas & demanda de proposigées concretas sobre a andlise de textos; apresentam uma reflexio epistemolégica e uma teoria do conjunto. O texto é, certamente, um objeto empirico tao complexo que sua descrigéo poderia justificar o recurso diferentes teorias, mas éde uma teoria desse objeto e de suas relagdes com 0 dominio mais vasto do discurso em geral que temosnecessidade, para dar aos empréstimos eventuais de conceitos das diferentes ciéncias da linguagem, um novo quadro e uma indispen- sdvel coeréncia. Em relagio a ambiciosa “semistica da cultura” desenvolvida por Frangois Rastier 2001), a presente obra deseja, no quadro das ciéncias da linguagem ¢ de uma reorganizagao das ciéncias e disciplinas dos textos, propor uma definicao da textualidade como conjunto de operagoes que levam um sujeito a considerar,na produgéo e/ouna leitura/audicao, que uma sucesso de enunciados forma um todo significante. Apartirdessabase, a lingiifstica textual tem como ambigao fornecer instrumentos de leitura das produgoes discursivas humanas. A lingiifstica nao é (ou ndio é mais) a “ciéncia-piloto” das ciéncias do homem e da sociedade, mas tem ainda muito dizer sobre os textos, e seu poder hermenéutico permanecdinteiro, sobretudo se ela consentir em abvir-se as disciplinas que, da Antigiiidade aténossos dias, tém o texto como objeto (ret6rica e postica, estilistica,filolo- gia e hermenéutica, teoria da traducao e genética textual, anélige de dados texttais ou andlise de textos em computador, sem esquecer a tustoria do livto eas diversas semisticas). Olivier Soutet (1995, p.342) destacou muito bem esse paradoxo: A lingiistica textual é[..] uma disciplina um pouco paradoxal. Avaliada pelo critério do que se convencionou chamar lingistica moderna —a que zos conduz do comparatisme histérico do inicio do século XIX, ao poses truturalismo do tltimo tergo do século XX ~, parece jovem ea procura de legitimidede;tecoloceda na longa tradigdo dos saberes edas téenicas—filo- ogicas literdrias ejudiciérias — que tem por objeto, sendootexto em geral, _pelomenoscertos ipes de textos ela pareceser, apenas, seu prolongamento ‘ouampliagio % ean Ana Oreexame dessasdisciplinas antigasemodernasé,noiniciodoséculo XI, uma das éreas interdisciplinares mais estimulantes, desde que ndose caiaemumailusio continuista da historia dasciéncias. Odesenvolvimento do saber passa por conilitos, debates, controvérsias, o combate necessério contra preseupostos metafisicos, o essencialismo e 2 negacio da historia. Os dois primeiros capitulos introdutérios, que descreverao 0 lugar da lingiistica textual na andlise do discurso e a natureza das unidades da andlise textual, tera oobjetivo epistemoligicode definirnossoobjetoede relacionar nossa perspectiva com disciplinas proximas e pontos de vista vizinhos. No entanto, 0 propésito principal da presente obra limita-se as bases de umaandlise lextual dosdiscursos, tendo comoambigaodelinearuma alternativa para a explicagdo de textotradicional e a andlise estilistica? ‘Otermo “analise textual” —o qual substituo por andlise textual dos discursos-—jé foi usado por outros, Roland Barthes fala de andlise textual por oposigi0a andlise estrutural, na andlise de um texto bfblico (1972) de ‘umconto de Bdgar Allan Poe (1973b),em uma das primeirasobrasemiigua francesa a dar umespacoa lingtiistica textual: Sémiotique narrativeettextuelle (C. Charbrol, ed.)', Em La production du texte, Michael Riffaterre opée a andlise textual Aestilistica e& ret6ricanormativas bem comoa poética que ele considera muito geral:“O texto é tinico em seu género” (1979, p. 8) ea andlise textual “tentaexplicar oqueésinico” (ibid). A“Textanalyse” éum dominio da lingiistica alema (Heinrich F.Plett, 1975 e Michael Titzmann, 1977), Francoise Gardés-Madray e Robert Lafont propuseram, em 1976, a Introductions analyse textuelie Essa andlise textual praxemiatica esis muito ptéxima da anélise do discurso (Détrie etal.,2001, p.8). © presente ensaio situa-se no prolongamento de L’analyse textuelle. _Mathode,exercices, obra publicadaem 1983,na qual alingtista dinamarquesa Lita Lundiquistoferecia a um piiblico maior ocontetido de sua tese de 1980, que permanece, em lingua francesa, uma obra dereferéncia.° Os capitulos | 3 Posigiodefendida por Adan (19979) 4 Empaticularsintroduso de Claude Chabsal (1973), Seyi | Sehmidt (1973) Teun. Yan pykus73) 5: All des sntee subse “La linguietique txtelleen France” (Langu, 1988), aconselha- ss as eturas do capt I de Ung uz, de vier Sout (005 p. 523.946), 0 artigo de Michal AUNGEASTCATIxTUAL a 2.a5 apresentardo, em niveis crescentes de complexidade, os prineipios | que regem os encadeamentos textuais de unidades. O capitulo 6 proporé ‘uma abordagem do funcionamento textual dos tempos verbais, no qual | reencontraremos as influéncias da lingiistica textual de Harald Weinrich (1973). O estudo, distribuido em seis anélises parciais, ao longo da obra, de um fragmento dos Caracteres, de La Bruyeére, ¢ as andlises textuais do Apelo de 18 junho de 1940 do general De Gaulle (capitulo7)edeumacurta narrativa de Borges (capitulo) terdo como objetivo propor uma exempli- ficagdo, tao sintética e variada quanto possivel, do métode de abordagem de textos bastante diferentes. (Charlee Berard Comibetestebreahistriaecente da andlise do discuso (1799) eoartignde Fea Marie Viprey (20056 cado, Para eteruma iia do econhesimentoeuropewdodautivo wean ze seapresentagbesintodutvas exsteteser tatiana (Rober Alsinde Bewugrande e Wolfgangttich Dressler, 1964) em espanol (Maria Delores Vivero Gare, 2001, Helena CalsamiglaHlaneafort e ‘Amparo Tus6n Valls, 128, bem como Juan Herero Ceca 2006), em lento (além De enugrandze Dressler fed. de 1981 Weick itados, ver Michael Metaatn 2207 wm francés parac domino ‘nls (Van Dik, 1984 Shirley Carter Moms, 200 Capitulo1 Introdugao a anilise textual dos discursos* 1.(Re)Comecar de Saussure deBenveniste = ‘Algune lingbistaseriicam Saussure por comprazer-s ein sublinharparadoxosnofuncionament dalinguagem. Mesa linguagem éo quel demais paradoxal nomundoeinfelizes so 08 que nfo véem isso, Quanto mais se evanga, mais se sentecssecontrasteentreamicdadecomocargoriadenossa Percept dos objets ea dvalidade que alirguagem impbe ‘como modelo 8 noosa reflexo. Quanto mas se enetrar no mecanismo da significagso, melhor se verd qac ascoisas no ‘significamem razdodoseuser substancial, masem virtndede aos formaisqusditnguen das outs cas Ga mesita dasteequecabeandsdepreender ee (Benveniste, 1966, p.41-42) 1.1.A “lingua discusva” de Ferdinand de Saussure Apesar de Saussure ter colocado a lingua no centro de seu programa, ele também se questionou sobre “o que separa” a lingua propriamente dita do “discursivo”. Ele fala, alids, de “linguagem discursiva” (2002, p. 95), assim como de “fala”, ¢ estabelece uma separago, aparentemente muito *Tadupio: Maia das Gragas Soares Rodcigues, 0 FRAN MICHEL ADA nitida entre os signos-palavras ea frase: “A frase sé existe na fala, na lingua discursive, enquantoapalavraéuma unidadeque vive fora dodiscurso,n0 ‘esouro mental” (2002, p. 117). Comoexplicaemuma “notasobreodiscurso”, cuja datagaoaindaéincerta, mas queéacessivel hojenos Ecritsdelinguistique _gftérale,o sujeito falante nao se exprime por palavras isoladas: [Note sobre o discurso] ‘A lingua é criada unicamente com vistas 20 discurso, mas 0 que separa o discurso da lingua, ou 0 que,em certo momento, permite dizer que a lingua entra era como discurs0? Conceitos variados estio prontos na lingua (quer dizer, revestides de uma formalingtiistica),tais como bu, lage, vermetho, triste, cinco, rackar ver. Em que momento ouem virtude de que operacio, de que ogo que se estabelece entre eles, em que condigdes esses conceitos forntaréo 0 DISCURSO? Assegiténcia dessas palavras, por mais rica que seja pelas iiéias que evoca, no indicaré jamais 2 um individuo humano que cutre individuo humano, ‘a0 pronuncié-las, queira significarIhe alguana coisa. quese faz necessério para quetenhamosa déiade quealguém quer signiicaralgumaccisa,wsando ‘termos que estio A disposigéo na lingua? E a mesma pergunta que fazemos para saber o que significa odiscurse, , & primeira vista, a zesposta ésimples: ‘e discurco consist ainda que de forma rudimentar, e por vias que ignora- ‘mos, em afizmar um elo entre dois conceitos que se apresentam revestidos de forea lingistca, a0 passo que a lingua apresenta previamente apenas ‘conceitos isolados que esperam ser postos em relacio entre eles para que ‘existasignificagSo cle pensamento. Gaussure, 2002, .277) {sea nota encontra-se em um cademo escolar sem titulo (Ms, Fs. 3961) depositado na Biblioteca Publica e Universitaria de Genebra. Foi citada pela primeira vez por Jean Starcbinski em Te! Quel37,em 1969, eretomada em Les :motssous les mots (Starobinski, 1971), Publicada pot René Amacker,com ain- dicagio das raswrase dos acréscimos manuscritos, no niimero 43 dos Calters Ferdinand de Saussure (1989, p.93-94), foicomentada por Herman Parret (1987), ‘Gérard Dessons (1995), Johannes Fehr (1995) e Jean-Michel Adam (2001). Anota comega com uma afirmago que faz do discursoghorizonteda Iinguaese prolonga com uma interrogagio relativa a natureza da discur- ‘AuINGolecATEATUAS, ” sividade. Essa pagina de Saussure lembra, em certos aspectos, um texto que ele nao poderia ignorar. No didlogo O Sofisia, de Platio, o Estrangeiro explica’ Teeteto que nomes pronunciadosisoladamente, unsapésosoutros, e verbos enunciados separadamente dos nomes, como a série “anda corre | dorme”, “sao incapazes de produzir um Giscuirso [logos]. [..] Da mesma | maneira, quando se diz. ‘Ied0 veada cavalo’, isto & os nomes dos agentes | das ages, essa série no produz nenhum discurso” (1993, p. 192). Platio fundamenta sua definigdo do logos-discurso a partir de uma operagio préxima da “ligacdo” eda relagdo entre conceitos deSaussure:“Assimque se unem, a primeira ligagao produz diretamente o discurso, o primeiroe ‘omenor dos discursos" (ibid ). Proposigées como ”O homem aprende” ou “Apuleio conta” sao enunciados assertivos minimos. Indoalém da simples. nomeagao pelo “encadeamento-entrelacamento" de dois constituintes, um_ atodereferéncia érealizado, alguma coisa éefetivada; uum conjuntoécons- tituido que deriva do logos-discurso. Platao faz dizer ao Estrangeiro: “LJ n&osomente nomeia, mastambém |..J liga’, eéaesse entrelacamentoque aplicamosonomedediscus0 [logos (ibid, p.199). Antesde Saussure essa {déia foi radicalizada pela teoria da linguagem de Wilhelm Humboldt: "a Iingua consiste somente no discurso conectado, a gramatica eo diciondrio séo comparaveisaseuesqueleto morto”.! Humboldt define a lingua como. ‘uma atividade discursiva, como “o ato de sua emissdo real” (ibid, p. 143), edestaca que € apenas nos “encadeamentos do discurso” que podem ser percebicos os elementos mais significativos da lingua: (© mais precioso eo mais refinado [.] 56 pode ser percebido bu sentido no discurso conectado, 0 discurso que € preciso pensar comme o verdadeiro ¢ 0 primério em todesas investigagées que tentam penetrarna esséncia viva da linguagem. A fragmentacGo em palavras eregrasniio ésendo opraduto morto da segmentagio cientifica. (Humboldt, 1903-1986, .7, p. 464) 1. Adam uflizaa tradusio pars ofeanots de Meschonnic, 1985p. 42(N.T}. 2 "Gene es Hehate nt Fist.) rot .] i er terbudeen Rede wangerommen nd _ got werdn- Nur sem sch brag nals Userschuenge,elcbeindlelebaige Wesnket ‘fer Sprachecindringen wale mer” Traded (doalemto pacao francs) proposta porfiugon Teabant {conricayio pessoa fenfe doa. 2 FAYE ADAM Saussuze define seu objeto eseu programa como um retozno do dis- cursivo a lingua como “tesouro mental”, ou seja, vai na diregao de algo que, para Humboldt, nao era sen&o “a projecao totalizadora da fala em ato” (1974, p. 183); ‘Toda a lingua entra inicialmente em nosso espitito pelo discursivo, como dissomos, e como é inevitével. Mas, do mesmo medo que o som de uma palavra, que é uma coisa que penetra em nossa conscigneia dessa forma, torna-seumaimpressio completamente independentedodiscursivo,assim, também, continuamente, nosso espirito extrai do discursivoo que é preciso para deixar apenasa palavra. (Gaussure, 202, p. 116) ‘Mesmo queanota defina odiseurso. como ofuncionamentodalinguae como uma proposta interativa desentido de um sujeitodirigindo-seaoutro, encontra-se, sobretudo, na base, definigdo saussuriana de ingua como estoque oudepésito de signos-palavras. A noia fala de “termos disponiveis nalingua’ e, mais precisamente, de conceitos (significado) revestides de uma forma lingiistice (significante). A definigao do discurso como ligacko entre conceitos revestidos de uma forma lingtistica deixa em aberto a questo da nnatureza eda extensdo desses encadeamentos. A nota faz alusao apenas 20 ‘estabelecimento de uma ligagao entre signos “que esperam ser postos em relagio entresi” e€ preciso, portanto, procurarem outrolugardoCursoenas notas deaula uma descrigao da natureza eda extensio dessas igagbes. ‘A alusio aos signos “prontos na lingua” é um eco da teoria do valor inabsentia (relacbes associativas e paradigmaticas), Anota insiste,em con- ‘trapartida, sobre o valor discursivo in presenta (relagbes sintagméticas).. ‘Como disse Saussure na ligto de30 de junho de 1911: ‘Ocspirito estabelece em tudo duas ordens de ligagio entre as palavzas: 1. fora de fala, a associagdo que se faz na memsria entre palavras que tin alguma coisa em comum—cria diferentes grupos, séries, familias, no seio dos quais reinam relagies muito diversas, mas que entramn em uma tinica «categoria: so as relagdes assodativas: 2.nafala, as palavrasest2o submetidasa um tipo derelactoindependentedo primeiro e dependente do seu encadeamento: 580 as telacbes sintagmaticas. (Saussure, in Bouquet, 1997, p. 335) AUNODISMCATESUAL 2 No Curse de lingitstica geral, Saussure define a frase como a'unidade) sndxima da sintagmatizagio. Ele se perguntaaté que pontoa frase pettence alingua, uma vez que estd submetida as variagbes individuais (1967, p. 148). Aplica a nogio de sintagma a unidades que pertencam a ling, nio importandoseutamanho: palavrasderivadas como desejo-so,im-perd-o-tvel, in-fatig-toel; frases ou grupos de palavras estabelecidos apartirde padres; regulares como A terra gira, locugbes feitas como levara mal, quebrar lancas etc. ESaussure actescenta: \ Bmsuma,éma sintaxe que haverd uma certa flutuagio entre o que é dado, fixado na lingua eo que é deixado & inicintiva individual. A delimitacdo dificil de ser foita. E preciso admitir que, aqui, ne dominio da sintaxe, {fato sociale fato individual, execugSo e associago fixa, misturam-se um, pouco, podendo misturar-se em maior ou menor geau. Admitirentos que <é nesta fronteira somente que se poder questionar uma separacio entre lingua e fala, (Gaussure, in Bouguet, 1997, p. 336-337) No Cursodelingitistica geval, os editores transerevemessa passagem da seguinte maneira: “Mas é preciso reconhecer queno dominio do sintagma nao hé limite rigoroso entre o fate de lingua, marca douso coletivo,e0 fato de fala, que depende da liberdade individual” (1967, p. 173). Axelaco da sintagmatizagao e da fala-discurso é, a0 mesmo tempo, afirmada e considerada por Saussure como ume questo nao-resolvida: “Toda fraseserd um sintagma. Masa frase pertence’ falaenioalingua, Entdo, bjegio: [J nfo misturamos as duas esferas lingue-fala para distinguir as, cduas esferas sintagma-associagio? Ede fato, aqui que hé algo deticado ma fronteita dos dois dominios. Questao dific de decid. (Gaussure, in Bouquet, 1997, p. 334-335) A frase aparece como uma unidade de composigio-sintagmatizagio situadana fronteira dos dois dominios: cla pertence linguaem suadimen- siosintagmatica ea falaemsuadimensdo discursiva. Apalavra”‘discurso” fica, nacbradeSaussure, préxima da restrigao classica que Fontanier (1977, p.279) formulava nos seguinies termos: * ANCL ADAM Primeiramente, o que entendemos aqui por Discurso? Nao usna obra intei- ra, por menor que poss4mos imaginé-la; nem sequer uma seqiléncia, um encadeamento de frases ou de petiodos sobre um mesmo assunto; mas uma frase ou um petiodo exprimindo um pensamento mais ou menos inteiro € completoemsi préprio,embora dependendo, talve2, deoutros pensamentos ‘que precedem ou que seguetn. O verbete “discurso” de L’Encyclopéiie, de Diderot e d'Alembert, limita retoricamente o sentido da palavra ese aproxima, assim, de uma definicgo mais textual da atividade lingtifstica dos sujeltos falantes: DISCURSO (Belas-Letras), em geral refere-se a tudo o que tem origem na faculdadeda alae é derivado do verbo diver, dizer, falax;é géneroem elas a discurso oratério, discurso publico, oragl0. {1 Aspartes do discurso, segundo osantigos,eram oexérdio.aproposigiooua nasragio,a confirmagio ouprovaea peroracao. Nossosarrazeadosretiverain casa forma: um exérdio curto precede anarragao dos fatas oe enunciado da ‘questi de direito; seguem as provas oumeios ¢,enfim, as conclusdes. Rompendo com essa heranga retorica, a “nota sobre o discurso” nao, menciona nem os géneros discursivos daretéricanemas partesdadispositio ‘oucomposicio textual da qual alaremosnocapitwo5, integrando-asauma teoria geral da lingua e do discurso. A preocupacio principal de Saussure é a operacdo que permite abstrairo sistema da lingua a partir dos fatos de discurso, Emile Benveniste vai retomar a questo de forma exatamente inversa, privilegiando a realizagto do discurso, 0 que ele vai progressiva- mente designar como enunciagi. 1.2.A“translingifstica” de Emile Benveniste? ‘Benveniste (re)comogadaabordagem saussuriana da frase: “Saussure ‘do ignoroua frase, mas visivelmente la lhe criava uma gravedificuldade |. Pac autos dois pontoa de vista sobre nportinei dos tabalhos de Elle Benvoriie, ver “Champ, schima, suet le contributions de Bahr, artlette Deneeniste une linguatique dex 4 de David D, Clan e Brigit Neri (1995) eobela ensaio de Gécard Denso: le Bencerist, AumCDISTATENTUA, ra eedevolveus ‘fala’,o quendoresolvenada’ (1974, p-65). Fle parece muito prtiximodeSaussure, quandoretomaadistingaodas relagées associativas- paradigméticase sintagmaticas: (0 “sentido” (na acepgao semantica |...) se realiza em e por uma forma espe- fica, a do sintagma, diferentemente do semistico, que se define por uma relagio de paradigma, De umn lado, a substituigio, do outro, a conexéo, tas sto.as duas operacoes tpicas ecomplementares. (Benveniste, 1974, p.225) Benveniste (1966, p. 131) permanece muito préximo da nota sobre odiscurso de Saussure, quando afirma: “é no discurso, atualizado em freses, quea lingua se forma ese configura. Af comega a linguagem”. Mas seafasta de Saussure ao instaurar na lingua “uma divisdo fundamental, completamente diferenteda que Saussure tentouentrelinguae fala” (1974, 224), Fle distingue os dominios do “semistico” (lingua como sistema)e do“semantico” (lingiiistica da enunciagSo): LNarealidade,omundodosigno éfechado. Dosignos frasendohs transigio, ‘nem pela sintagmatizagonem ce outra forma. Um hiato os separz.F preciso ‘adimitir que a lingua comporta dois dominios distintos, cacla wm'cios quais cada um requer seu proprio aparelho conceitual. Para aquele que chamamos semidtico,a teoriasauseuriana do signolingilisticoservirs de base parapesqui- 2. O dominio semantico,a0 contrério, deveser reconhecido como separado. Havers necessddadle de um aparelho novo de conceitos ede definigdes. (Genveniste,1974.p.65) Por outro lado, Benveniste faz da frasea unidade da comunicagachu- mana: "Nésnescomunicamospor frases, mesmo truncadas,embrionérias, incompletas,mas sempre por frases” (ibid. p.224). Remetendo-aalém do ‘ihimonivel daescala de combinagGes lingtifsticas codificadas, acrescenta: anton dsevrs (2006). A tos de Aya Ono {2007 seb La notion dovonex Ee Benveniste ‘constitu um interessante esclarecimento em razto de cua leita sisemitie da quaoe telalldade retagdes miituas se revelam na estnihira dos niveislinglifsticos, percorridos pelas operagies descendentes ¢ ascendentes da andlise, e gragas a natureza articulada da linguagem. Fazendo da proposic&o a unidade de ultima ordem integrativa, Ben veniste situa perfeitamente os limites da lingiifstica do sistema. Admite- ge mais freqtientemente, hoje, em lingiiistica, que o procedimento duplo de segmentacao e comutacio permite identificar todas as unidades de ordem subfrasal: um morfema se define como uma sequiéncia ordenada de fonemas, um sintagma como uma seqiéncia ordenada de morfemas, eaunidade predicativa (nivel categoremético’) ¢ identificével como uma seqiiéncia ordenada de sintagmas. Acima disso, a segmentacdo de textos ‘em frases, ¢ até mesmo de frases periddicas complexasem unidades predi- cativas,ndo sefaz.comamesmaregularidade combinatéria com quese faz asegmentagio dos sintagmas, morfemas e fonemas. Como Olivier Soutet (1995, p.925) resume: “no caso particular do texto, a relagao- do todo coma, partendopertence ao mesmo tipo de previsibilidade que existe entrecada ume das unidades subfrasais ¢ seus constituintes imediatos”. Masa frase tambéin supée problemas de descricao, como veremosno capitulo2.Com efeito, as categorias miltiplas de frase “simples”, “complexa”, “nominal” ou “verbal” provam, pela sua diversidade, que o conceito de frase nio é definivel de forma sélida. Para Benveniste, a frase é uma unidadedeoutra ordem: “A frase pertence realmente ao discurso. B assim que podemos 4. Benverist etoma o terme grego “Rattgorena” que comeeponde exatamente ao latin “rad cote, qual deriva “predicativo” % oe oCHE ADAM defini-la: a frase é a unidade do discurso.[..] A frase é uma unidade, no sentido de que ela é um segmento do discurso” (1966, . 130). Ele faz-dessa unidade o centro de outra lingiistica _Afrase, criagio infinite, variedade sem limite,é propria vidada linguagem fem agéo. Concluimos que, com a frase, se deixa o dominio da lingua como sistemadesignoseseentraemoutrouniverso,odalinguacomoinstrumento de comunicagdo, cujaexpressio é0 discurso, ‘Sto, verdadeiramente, dois universos diferentes emboraabarquemamesma realidadeedéem origemaduas lingiistcas diferentes, emboraseuscarninhos secruzema todo momento. (Benveniste, 1966, p.129-130) Benveniste distingue uma linglistica da lingua-sistema ou “semidti- ca” ,quesignifica,cujo funcionamento éparadigméticoecujaunidadecentral 60 signo (Esquema 1), euma lingiiistica do discurso ou “semantica”, que comunicae cuja unidadeé.a frase*. Inicialmente, Benveniste exclui o “texto do enunciado" do campo (“semantico”) da lingistica da enunciacao: O discurso,dirse-4,queé produzido cada vez que se fala,essa manifestagio, dacmumeiagdo,noésimplesmentea fala"? Zpreciso tercuidadocomacon- digo especifica da enunciagao: €0 priprio ato de produzir um enunciado e ‘nfo otexic do enunciade que é nosso objeto. Esse ato 60 fato dolocutor que ‘mobiliza lingua por sua conta, (Benveniste, 1974, p. 80) Entretanto, delineandocom“L’appareil formel de énonciation” (1974, 1p.79-88), uma primeira revisdio dos conceitos operatérios euma definigo dos contornos da lingiifstica da enunciacio, ele nao se contenta em abrir a andlise intralingiistica para a semantica da enunciagzo, Comefeito, sea teoria da enunciagSo tem como objeto a produigao de enunciados, endo 0 “textodoenunciado”,é porque um terceiro ramo da lingiifstica échamado 5 BenveristintroduzixesadlstngSocm Sériologiede slangue"artige publiadonarevists Serio em 1568. AUNCOTKATOTUAL » para assumir este iltimo. Explica isso nestas linhas, que a doenga que atingiu no inicio dos anos 1970 ndo Ihe daré tempo de retomar: ‘Conctuindo, é preciso superar a nogio saussuriana de signo como principio Xinico, da qual dependeriam,aomesmo tempo, aestruturaeo funcionamento a lingua. Essa superagdo far-se-& por duas vias: —naandliseintralingaistica,a partir deumanova dimensio designificincia, adodiscurso, quechamamosdesemintica, dorevantedistintada que éligada aosigno,equeserd semistica; \_ —naanilise translingtifstica dos textos, cas obras, pelaaslaboragio deuma rmetasseméntica quese construiré sobre a semantica da enuunciagéo. Sera uma semiologia de “segunda geragéo”, cujos instrumentos e método poderdo também contribuir para o desenvolvimento des outros ramos da semiologia geral. (Benveniste, 1974,p. 6) Benveniste dividiu programaticamente o campo geval da lingitistica ‘em trés dominios, com a lingiiistica da enunciacao ocupando uma posigo central. Eo que tentamos representar com um esquema ao mesmo tempo descontinuo (opondo dois conjuntos que tém metodologias diferentes) € continuo (a lingtiistica de enunciagao garantindo a transigao enti os dois dominios aos quais ela perience): Esquema2 Lingitisticado discurso Linguleica da anes. rence dodicuo, Semantics” Andlise intralingiistica ” sonaucrmt aoe 1 ostApoiando-se na lingiiistica da enunciagao, a lingiiistica do discurso. se abre, por um lado, para uma “translingiifstica dos textos” e por outro, para uma “translingiifstica das obras”, isto é, das produgées literarias. ‘Ao destacar, em 1968, até que ponto o estudo da linguagem postica é in- ‘teressante para a lingiiistica, Benveniste acrescentou: “Mas esse trabalho apenas comesou, Naose podedizer que objeto deestudoeométodoa ser utilizado estejam claramente definidos. Ha tentativas interessantes, mas que revelam dificuldades para sait das categories usadas paraa andlise da linguagem ordindria” (ibid., p.37). Henri Meschonnic (1997, p. 323-324) 6 um dos raros lingiiistas a falar sobre essa terceira dimensio da significancia, para inscrever sua postica na perspectiva da “translingiifstica das obras”: Partindo de Benveniste, pode-se melhor distinguir a oposigoe a interagdo entre escriurae literatura, pois escritura esté mais préxima do semantico do que do semistico, mas ela instaura, por sua vez, osemistice, produzindo 0 quese toma literatura, — 0 que nem sempre ela fol. O que se abre para 0 conhecimento da escritura é um dominio especifico, “translingiistico”,que éda competéncia da “claboracdo de uma metassenvdntica quese constriiré sobre a semantica da enunciagdo”. Ela se beneficiard com isto e Ihe traré tambémo que ela conceitua. (Meschonnic, 1973,p. 174-175) ‘A“‘postica” de Henri Meschonnic, na qual o poema éo centro ea lite- ratura seu objeto principal, no atende aonosso programa de descricéo de todas as produgies discursivas humanas. Roland Barthes (1963, p. 3), que acompanhou de perto a zeflexao de Benveniste, Jamentava que a lingiiistica fosse incapaz de atribuir-se um objeto superior a frase “porque além da frase, 96 hé outzas frases: tendo descrito a flor, 0 botanico nao pode ocupar-se da descricao do buqué”. Mas se ele retomava, na mesma pagina de sia “Introduction & analyse structurale des récits”, a afirmacdo segundo a qual ”O discurso seria uma grande ‘frase’ (cujasunidadesnao precisariamser,necessariamente,fzases), assim como a frase, com certas especificagses, é um pequenc ‘discurso” AUNGOIMENTERTUAL ¥ (ibid), era para acrescentar imediatamente, comoleitoratentodosdltimos trabalhos de Benveniste, que “O discurso tem suas unidades, suas regras, sua“ gramética’:além da frase, eapesar de composto unicamentede frases, 0 discurso deve ser naturalmente o objeto de uma segunda lingtiistica” (ibid.), Bledesignardessa "segunda lingiiistica”, até 1970,como “lingiistica ddodiscursoou translingiisticn (otermo metalinguifstica, apesar depreferivel, ja usado com um sentido diferente)” (Barthes, 2002, p.611)* Julia Kristeva refeciu-se também, explicitamente, a posigo deBenve- niste, considerando a semiologia interpretativa, ancorada na metapsico- logia freudiana que ela elaborava a época (Kristeva, 1969a) edenominava “semanlise” ,como.o desenvolvimentodo programa de Benveniste: “Que me seja permitido aqui citar a conelusao do tltimo texto desse mestre da lingitistica queexplicita sua concep ao dasignificanciaeindica olugaronde sepodera cituar, parece-me,asemandtise[..] Chamamossemandliseoque ele designa como uma seméntica ¢ uma translingiiistica” (1972, p. 945). Kristeva usa a palavra “translingitistica” descle seu artigo de Langages 12, noqual define “o texto como um aparelho translingiifstico que redistribui aordem da lingua” (1969b, p. 103). (© programa interrompido de Benveniste influenciow de talymaneira Julia Kristeva, Tzvetan Todatov’ eos tradutores franceses dos escritos do Cireulo de Bakhtin, que estes foram traduzidos e transpostos em termos enunciativo-discursivos. A tradugio do conceito muito vago de “metalin- sgoistika”, de Mikhail M. Bakhtin por “translingiifstica” induzhwma false” continuidade coma posigdo de Benveniste. As pesquisas filologices atuais sobre esses escritos provam que as duas perspectivas nao coincidem de formaalguma. Noinicio de “Le problemedutexte”,*Bakhtin (1984, p.311) definiua “metalingvistita” como uma transdisciplinaque “naotratanemde 6.Abordoa questioda evolugtoda poisfode Barthes en: Adan: (2001D)-"Barthesen 127 dala ‘ranelinguisique ala déconstructicn” | = 7-Lembremos que Tzvetan Todorov dng © primeironiimero da revista Lage deca & ‘enunelagio. on. 17 pblicado em 1970, 8. ApSio-me aqui aos trabalho do GRECLECO da Universkdade de Lausanne, engajado nas ‘eradues een an trabalhofloldgio sobre os esyitos do Cire de Battie em particular be -Marssmoe floss inguegem, sb adios de Pati Séret i; | e sunac, aD lingiistica, nem de filologia, nem de literatura, endo pertence anenhuma especializagéo”. Ble asitua “nas esferas limstrofes, nas fronteires de todas as disciplinas mencionadas, em sua jungo, em seu cruzamento” (ibid). Essa metadisciplina nfo se situa, de modo algum, na prolongacio “trans- lingiistica” da lingiiistica da enunciaco de Benveniste. Parece evidente ‘que os tradutores franceses viram no programa do Circulo de Bakhtin uma abertura que correspondia ao deslocamento de suas preocupagbes teGricas muito além da lingtifstica. Ao invés de continuarem o programa _propriamente lingiiistico de Benveniste de permaneceremnoquadroem ‘cursode constituigdo da lingtiistica do discurso,os tradutores deslocaram o centro epistemoldgico e metodologico do éstudo dos textos. A leitura benvenistiana e sociolingiifstica dos escritos do Circulo de Bakhtinexplica o favor de que beneficiaram. Nés mesmos contribuimos para essa leitura ce para esse entusiasmo. A fim de evitar esse mal-entendido, seremos aqui mais prudentes elimitar-nos-emos, em nossasreferénciasaos trabalhos de Bakhtin, dsligagéesentreseu “dialogismo” eo que Jacqueline Authier-Re- ‘vur(1995a,p-171)chamade”ndo-coincidénciainterlocutiva’,easligagses queela vé, comonés, com “essa outra forma de 'no-pertenca fundamen- tal’ da linguagem, que éa interdiscursividade [... A interlocugio ¢, em si mesma, na obra de Bakhtin, sempre entendida como o fate de individuos socialmente ancorados em uma sittiagio histérica desse ‘meio dos outros discursos’, onde se produzem todo discurso e todo sentido”. ~ >. Lugar datingitstica textual na andlise de discursos “Trata-se aqui nao deneutralizar odiscurso, defazercom que sejasigno de outra coisa, nem de atravessar sua espessura Faraencontear oque permanece silenciosamenteaquem dele, ‘ratase, pelo contd, de manté-lo na sua consistincia, de {naé-lo surgirnacomplexidade que lhe prépria, (Foucault, 1962, p65) Desde seu surgimento, nos anos de 1950, a andlise do discursoealin- gitistica textual desenvotveram-se de modo auténomo. Blas se cruzaram AUNGISTICATEXTUAL a apenasnnos trabalhas de Denis Slakta,nos anos de 1970: "Entre grammaire de texte et analyse de discours quels rapports articuler?” (1970, p. 8). B sobre novas bases que propoinos, hoje, articular uma lingitistica textual desvencilhada da gramética de texto euma andlisede discursoemancipada da andlise de discurso francesa (ADE). Nossas referéncias bibliograficas tornardoexplicito oquenos separa do quadroestrito daADFenos orienta, sobretudo, paraa anilise de discurso tal comoé delineada por Dominique Maingueneau(1991a, 1995). Postulando, aomesmo tempo, umaseparacéo e una complementaridade das tarefas ¢ dos abjetos da lingiietica textual eda andlise de discurso, definimos a lingtifstica textual como tm subdo- mini do campo mais vasto da andlise das praticas discursivas. fio que representa o Esquema 3, cuja parte direita ser completada mais adiante (Esquemas). Esquema3 DescowrrautoADE DDPERAGDESDESEGNERTACAD’ | ne | esi | ae setae ‘OPtRACOES DELICAGAO CONTIRUIDADE™ > ncOisticaTpxrvAL Esse esquema evidencia ojogo complexo dasdeterminagGes textuais “ascendentes” (da diteita para esquerda) que regem 08 encadeamentos: de proposigées no sistema que constitui a unidade TEXTO — objeto da lingiaistica textual —e as regulagdes “descendentes” (de esquerda para. direita) que as situagées de interagao nos lugares sociais, nas lingtias e mos .géneros dados impéem aos enunciados — objeto da andlise de discurso, Sob o impacto das necessidades de expressao e de interagdo, os enuncia- “ exch AD dos assumem formas infinitas, mas.os géneros eas linguas intervém como fatotes de regulacdo. 2.1 Géneras de discurso,lingua(s)e formacdes sociodiscursivas Anogio imprecisa de "formacao discursiva” que Michel Foucault desenvolve no capitulo 2 de L’Archéologie du savvir (1969),’ foi xedefinida por Miche] Pécheux (1990, p. 148), que fez cela um conceitoimportanteda escola francesa de andlise do discurso: [As formagies discureion |. determinam oie pode edeve ser dito (axticulado sob a forma de um discurso paiblico, eum seemfo, de um panfleto, de uma, exposigio, de um programe ete.) a partic de uma dada posiglo, em uma detetminada conjuntura: o ponto essencial aqui € que nose trata somente da natureza das palavvas usadas, mas também (esobretudo) das consiracdes nas quats ‘essaspalaoras se combina, na medidaem que elas determinama significagio ‘que aesurnem essas palavras ..J, a8 palavras mudam de sentido, segundo asposigses defendidas por aqueles queas usamy{..Jaspalavras “mudamde sentido” passando de uma formagio discursins para oubra. (Pécheux, 1990, p. 148) [énfase conformeo original francés] Mesmo que palavra nao apareca, a0 falar de discurso prblico, sermto, panfleto, ecposigao, programa, Pecheux enumera uma lista de generos.Oesta- belecimentode uma ligagaoentreos géneroseas formasiessociodiscursivas éuum dosavangos recentes daandlise de discurso.Jéem 1978,arelagdoentre linguae género era assim resumida por T2vetan Todorov: “Qualquer pro- priedade verbal, facultativa nonfvel da lingua, pode tornar-se obrigetoria ‘nodiscurso.[..] Certas regtas discursivas tem isto de paradoxal: consistem ‘em anular uma regra da hingua” (1978, p. 23-24). Em Les genres de discours, ‘Todorov inscreve muito claramente esses fendmenos no espace saciodis- cursivo de um determinado lugar social. Esse quuadzo, que denominamos 9 Emboraseinscreva etencalmentenocampo da ilosaia,MCFoncaultinfluencious anise do iccustofancens com Archflgiedusovir( 1969) com susaula inaugural doCollegede Franceem 2 de decenbro de 1970: one di sours (1971)[A arden donee AusculsmoaTexTuaL 6 “ INTHRACLO. > acho SOCIOBIS- SOCIAL WISADA, ‘cumsrva on onjenvos) ws on Tests Evtrutusa —-«Semintia —-_—Enunclasto —Atosdediacurso (proposicies composicional (Representagio (Resporsabil- .. Glecucionitio) cquancindss& —(eqidnciase —dlacumiva) dade enunciativa) &Orientasio ‘pexiedor) —planasdetexios) (NS? Q&Coetfo—argumentaiva xe) Ns) politica ow ow) INIVEIS OU PLANOS DA ANALISE TEXTUAL ‘Aacio linguageita (nivel NI) realizada por meio de um texto explica aeficdcia da agav suciodiscursiva realizada, por exemple, por meio de “accuse...” [Eu acusol..., de Emile Zola, texto publicado em primeira pagina dojomal L’ Aurore cle 13de janeiro de 1898. eficacia da publicagso (N2)dacartaaberta (N3) estdligadaao fatode colocar fora daleiosignatério doartigoearedacéode’Aurore. Zola teria podido acusar (N8),semeonse- giiéncias, se as condigbes de produgao e de recepgao (N2)ndiohouvessem tido o peso legal dos artigos 30 e31 dalei de imprensa da época, istoé, dos textos juridicos que citculam na formagao sociodiscursiva (N3). Nao era suficiente dizer “Furacuso” (N8),eranecessério, ainda, um dispositivolegal einstituigGes (imprensa escrita, tribunais).Os parametros apontados pelo Fsquema 4 permite aprofundar essas observagoes, [A genericidade (N3) desse texto ¢ complexa: trala-se, inicialmente, deuma carta aberta, generojomalistico de opinio que adotaomodelo do ® EAnCHEL AOE phanodetextodacarts edoduploenderesamento:diretoaum destinatério nomeadoeindiretoaos|eitoresdojornal. Masessacartaaparecenaprimeira pagina oquenio écomumethe déumestatuto deeditorial;além disso, tem, todasas caracteristicas dos génerosretiricos}uidicidrio (acusar/defender}e epiditico (Zola faz sucessivamente elogios ao presidente FélixFaureeculpa ‘a maioria cos atores do caso Dreyfus). Um texto raramente advémde um ‘36 enero. A combinagiioda carta aberta, doeditorial edo génerojudicidrio permitea “Euacuso...” tomaraforma de uma carta destinadaaomais alto magistrado do estado, pelo meio —a midia, no sentido proprio—de um jornal queaumentaa responsabilidade das declaragées,ampliando-a,além do proprio autor, até a redagaodeL “Aurore, Do ponto de vista da materialidade discursiva desse texto e da de- finido do que ¢ uma formasgo sociodiscursiva, é preciso saber que Zola havia mandado imprimir uma brochura que tinha como titulo: "Letire@ mousieur Félix Faure, président de la République” que nunca foi divulgada sot essa forma, Zola, que colaborara antes com o Figaro, havia escrito trés artigos relatives ao proceso Dreyfus que provocaram um escandalo. A suspensio das assinaturas dos leitores do Figaro levaram & demissao de Zola. Aomudaro suporte material de difusao eescolher L’Aurove,seu texto ssaiuna primeira pégina de um dos tatos ornais favoraveisa Dreyfus, Essa :mudanga teve consegiiéncias paraascondigdes de produgaoe derecepsio deseu texto. A situagao de interacio tomnou-se judicidria, O texto lembra, aliss, oato ilegal que sua publicagao materializa: ‘Ao fazer essas acusagies, no ignoro que sou passfvel do previsto nos arti- gos 30 31 da lei de imprensa, de 29 de ulho de 1881, que pune os delites de difamagio. Fé voluntariamente que me exponho. Zola e a diregdo de 1’ Aurore (seu redator-chefe Clemenceau, em par- ticular) zealizam, escrevendo e publicando o texto, um ato destinadoade- sercadear um processo questionandoas conclusées do proceso Esterhazy, chave da revisio da condenagao de Alfred Dreyfus. © contextojuridico da lide imprensa de ulho de 1881, a escolha de um suporte de imprensa, 0 Jugar,em primeira pagina, deumaedigaoexcepcional (300.000exemplares, AUNCoTeATETUML ® ao invés dos 25.000 habituais),a data de publicago (13 de janeiro de 1898, quer dizer, dois dias apésa absolvigode Esterhazy) eacelebridadedeseu. aulor e do destinatariv ficticio, Pélix Faure, dao todo o sentido, a forga ea eficdcia potencial deste “Euacuso...1”. Todaaagéodelinguagem inscreve-se, comose vé,em um dadosetordoespacosocial, quedeveser pensadocomo uma formagio sociodiscursiva, ov seja, como um lugar social associado a uma lingua (socioleto) ea géneros de discurso. programa de pesquisas resultanteda indlusao da ling ‘Ro campo da andlise do discurso é muito préximo daquele esbocado por Jean-Marie Schaeffer: “Na medida em que todaatividade de textualizagio se inscreve no quadro de um género discursivo especifico (determinado pragmaticamente), multiplicar oestudo detalhadode géneros particulares deveria [...] permitir evitar as extrapolagdes abusivas das quais algumas teorias do texto siio excessivamente costumeiras” (1995, p. 504). Esse pro- grama — parcialmente desenvolvido em Linguistique textuelle (1999) no constitui o assunto central da presente obra, pois a lingiifstica textual tem ‘como papel naanilise de discurso, teorizare descrever osencadeamentos de enunciados elementares no ambito da unidade de ‘grande complexi- dade que constitui um texto. Ela tem como tarefa detalhar as “relagdes de interdependéncia” que fazem de um texto uma “rede de determinagses” (Weinrich, 1973, p.174). A lingiistica textual conceme tanto & descrigio.e A definigdo das diferentes unidades como as operacdes,em todos osniveis decomplexidade, que so realizadas sobre os enunciados. A presente obra- centrar-se-é na parte direita do Esquema3 ena base do Esquemia4. As uni- dades textuais séo submetidas a dois tipos de operagées de textualizagao. Por um lado, elas so separadas por segmentacao (tipogréfica na escrita; pausa, entonagSo e/ou movimentos dos olhos e da cabega, na oralidade). A descontinuidade da cadeia verbal vai da segmentacio permanente de palavras na escrita, sendo mais fraca na oralidade (sandi, amélgamas), pela marcagao de paragrafos ow estrofes e de subdivisoes em partes de um texto escrito. Por outro lado, essas unidades textuais sao, com base nas instrugdes dadas pelas mareas de seginentagao e por diversos marcadores sobre os quais falaremos, vinculadas entre elas pelas operagées de liga- 40, que consistem na construcao de unidades semanticas e de processes. w asc ADA de continuidade pelos quais se reconhece um segmento textual. Pode-se dizer que apenas as operagbes [Je (2]entram no Esquema de Benveniste edepenciem das regulagces gramaticais. Esquemas ‘OPERAGORS DESEGMENTACAO (DESCONTINUIDADE) 8 a / ‘ \ a1 (asgratoe aN frases wee couestrofes)—PeTiOEO Crow versos) Proposigdes ¢* Palavras- templang <2 __efou LOD — ef 7 wea fenunciadas Tg] sign08 ‘OPERAGOES DELIGACAO (CONTIMUEDADE Ouxmdnams ‘O-Esquema 5 detalha 0 conjunto das operagdes de textualizacéo que estardono centro da presente obra. Comoveremos nos capitulos2e4,uma primeira segmentagao [3] recortaas unidades de primeira ordem,enquan- to tama primeira operacao de ligagao [4] as retine em unidades de ordem superior de complexidade. Essas unidades (perfodos e/ou seqiiéncias) sao objeto de uma nova segmentagio [6] que determina seus limites inicial e final. A ligagéo [7] degsas unidades de segunda ordem resulta em paragrafos de prosaouem estrofes constitutivas de um plano de texto [8] e em uma unidade textual dclimitada, ela pripria, por uma sexta operagdo de segmentagio, que se pode denominar peritextual [9], na medida em que fixaos limites ou fron- teiras materiais de um texto. Ocapitulo 3 serd inteiramente dedicado aos diversos tipos de ligacio [4], 08 capitulos 45 tratardo das unidades que formam essas ligages e das que sdo determinadas pelas ligagies [7], em um nfvel superior de AUNGUITICATEXTENL 6 composicao. Com Joélle Garcles-Tamine, definimos nossa posigig, como construtivista nosentidoem que “ela define eexplicita ummamerominimo de operagdes enuunciativas fundamentais quepermitem passar dasnocSese dos esquemas abstratos da lingua paraasunidades observadasnostextos. Essas operacdes nao so nem légicas, nem psicolégicas, nem ccgnitivas; clas sfo estritamente metalingiiisticas ¢ s6 tem valor na medida em que petmitem analisar os fatos considerados” (2004, p. 6). 4. Estabelecimento do texto e construgao do objeto de anilise Falar de materialidade discursiva e de andlise textual nos obtiga a umacerta coeréncia metodolégicaea delimitar os meios para um trabalho acerca dos textos. Como diz Michel Charles, a respeito da andlise literéria, actenga ingénua na evidéncia da existéncia dos textos é um “preconceito critico” quea tejeicéo da filologia infelizmenteagravouao ponto de, hoje, se dever falardeum deficit filolégico dasciénciasda linguagem. Retenhamos essa observagio como uma preciosa adverténcia. Seja uum texto, vou estudé-lo, Tudo se passa como seo texto existisse fora do olhar que Ihe dirjo, ora da experiéncia que tenho, fora das operacbes que faco sobre ele para que ele se tome precisamente um texto, (Chartes;1995, p.40) Por falta de espaco, consideraremos dois exemplos bastante diferen- tes para dar consisténcia as nossas propostas (os textos escolhidos para o capitulo 7 prolongarao amplamente esta primetra reflexdo). O primeiro 6 um escrito literdrio do século XVII, ao qual retornaremos varias vezes paracompletar a anélise. Nesta fase, trata-se apenas deinterrogarsesobre as surpreendentes variagtes das edigdes modernas desse curto texto. O segundo é um grande discurso politico de André Malraux, promunciado numa homenagem nacional por ocasiao do falecimento de Georges Bra- que. Esse texto, da era da televisio em preto e branco, apresenta a mesma instabilidade entre sua versio escrita ea sua versio audiovisual.

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