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DIREITOS HUMANOS E SOCIOLOGIA DO PODER’ Fablo Wanderley Reis U.. reunido sobre o tema dos direitos humanos no presente momento da vida politica latino-americana, quando nos encontramos as voltas com experiéncias de autoritarismo politico recém-superadas ou ainda vigentes, nao pode deixar de evocar o desaprego que certas correntes importantes de opinidomanifestavam até recentemente, entre nds, com respeito aos mecanismos dademocracia liberal. Era como se os direitos ““meramente” formais envolvidos na democracia liberal nao tivessem qualquer importancia, e eventualmente pudessem mesmo ser vistos como um mascaramento da negagao dos valores verdadeiros, a serem alcancados na democracia social ou “substantiva”. A pesada experiéncia do autoritarismo contribuiu de maneira decisiva para alterar essa perspectiva, e 0 fato de que eventos como este ocorram agora € certamente conseqiiéncia, em alguma medida, daquela experiéncia. Difun- diu-se amplamente, em fungao dela, a compreensdo da importancia de certos formalismos, para utilizar 0 titulo de um trabalho de Bolivar Lamounier dedicado 4 quest4o da representag4o.' Como ficou dolorosamente claro na Fabio Wanderley Reis prof. titular de Ciéncia Politica da UFMG, autor do livro “Politica e ial deste artigo foi apresentada ao Quarto Seminario do Grupo de Trabalho Direito e Sociedade do Conselho Latino-Americano de Ciéncias Sociais (CLACSO), Belo Horizonte, 9a 12 de setembro de 1987. O autor agradece os comentarios dos participan- tes do seminario. ‘Bolivar Lamounier, “Representacao Politica: A Importéncia de Certos Formalismos”, trabalho apresentado ao Seminario sobre Direito, Cidadania e Participac&o, Sdo Paulo, junho de 1979 REV. LUA NOVA | SAO PAULO | VOL.4 - N°3 | JULHO/SETEMBRO | N®15 Direitos humanos e sociologia do poder 125 vigéncia do autoritarismo, nada hd de “mero” na operacdo de formalismos se eles podem significar a diferenga entrea liberdade e a opresso, ou mesmoentre a vida e a morte — e € disso precisamente que se trata, em Ultima andlise, com Os preceitos da democracia liberal. Com efeito, democracia é formalidade: ela consiste antes de mais nada, como elabora um volume recente de Blandine Barret-Kriegel,? na juridificacao das relagdes sociais, no estabelecimento de regras capazes de terem vigéncia real na acomodagao de tais relagdes e de pacificd-las, ou seja, de neutralizar 0 potencial de violéncia que elas eventualmente contenham inclusive o potencial de violéncia contido nas relagdes do foco de poder estatal com os variados setores da sociedade. Isso tem uma implicagdo de grande importancia, que redunda em corrigir certa concep¢do usualmente associada com 0 ponto de vista liberal: se implantar a democracia requer a juridificagdo das relagdes sociais, segue-se que a democracia requer também inapelavelmente a cons- trugdo do estado, de um estado que possa representar a garantia da vigéncia das regras correspondentes. Assim, por contraste com a formulagao usual do ideal liberal, em que o estado surge como algo a ser antes de mais nada contido em nome das “liberdades liberais”? (e onde se vé um conflito entre os designios assim expressos e 0s objetivos correspondentes a afirmagdo das “liberdades positivas” ou dos direitos sociais, os quais exigiriam o intervencionismo do esjado e sua correspondente expanso), esta nova perspectiva vé no estado algo a ser construido de maneira adequada — e 0 éxito do processo de construgao institucional do estado aparece como condigao mesmo para sua contengao eficaz naqueles aspectos em que tal contengao se faga necessdria, Numa palavra, nado € possivel, patentemente, edificar 0 estado de direito sem 0 esforgo positivo de construir adequadamente 0 estado tout court, Hé algo mais, porém, Pois ainda que se esteja interessado antes de tudo no estado como instrumento dos direitos sociais e de uma eventual democracia “substantiva”, € preciso reconhecer que a realizag4o ou implantacdo de tais direitos também envolve inarredavelmente a introdugao de formalismos, a entronizacao de regras capazes de consagr4-los formalmente e estabelecer sua vigéncia efetiva. Mas surge aqui a questo crucial. Com efeito, como “consagrar”, propriamente, os formalismos, como fazer que uma regra seja uma regra real, por contraste com uma formulagdo indécua constante de alfarrabios juridicos — ou, talvez pior ainda do ponto de vista de nosso problema, de compéndios recentes mas igualmente intiteis? Por outras palavras, como institucionalizar uma regra ou um conjunto de regras — e conseqiientemente, tomando a questao pelo angulo que nos interessa, como institucionalizar e tornar efetivos os 2Blandine Barret-Kriegel, L'Etat et ses esclaves, Paris, Calmann-Lévy, 1979. 3Essa expressdo é utilizada por Raymond Aron em “Liberté, libérale ou libertaire?” incluido em R. Aron, Etudes Politiques, Paris, Gallimard, 1972. 126 LUA NOVA direitos que tais regras procurem supostamente consagrar? A dificuldade da questo se revela de maneira bem nitida na fundamental ambivaléncia que marca, na literatura de ciéncias sociais, a propria idéia do “institucional” e os vocdbulos correspondentes. Assim, se “institucional” ou “institucionalizado” indica, por um lado, o plano dos “mecanismos” e “procedimentos” caracteri- zados por certa artificialidade e por serem passiveis de manipulagdo deliberada — plano este que também ele recebe as vezes a designag4o de “meramente” institucional, em contraste com o plano “estrutural” percebido como mais “teal” em algum sentido -, por outro lado, aquelas expressdes (especialménte 0 termo “institucionalizado”) indicam também justamente a dimensdo em que a realidade social, com o transcurso do tempo, vem a ganhar densidade, “opacidade” e “exterioridade” relativamente as consciéncias individuais, moldando-as e exercendo sobre elas uma espécie de coer¢do — se se quiser, a dimens&o “durkheimiana” da realidade social. Nesta segunda acepgao, por- tanto, o “institucionalizado”, ao invés de opor-se ao “estrutural”, € antes outra maneira de designar precisamente a estrutura social enquanto objetivamente determinada e resistente 4 manipulacdo voluntéria. Por outras palavras: temos tanto 0 institucional como objeto da ag4o humana quanto 0 institucional como" contexto dessa aco. Ora, o tema dos direitos humanos com que nos defrontamos envolve, sobretudo, um problema de ag4o¢ de mudanga. Se tomado em conexdo com sua face mais convencionalmente politica, ele assume o aspecto do desafio de atuar com eficdcia para consolidar (ou criar) a democracia e neutralizar os riscos de recaida autorit4ria, implantando-se a “institucionalidade” compativel com tais objetivos. Se tomado em perspectiva mais ampla, o desafio é o de agir para superar também um estado de coisas que nao se restringe, em paises como 0 Brasil, aos perfodos de aberto autoritarismo politico: a negag4o cotidiana e corriqueira dos direitos civis ou liberais mais comezinhos — para nao falar dos direitos sociais ou das “liberdades positivas” - a amplas parcelas dos estratos economicamente destituidos da popula¢4o, que nado constituem sendo cidadaos de segunda classe nas condigdes de sociedade de castas que ainda marcam intensamente a estrutura social brasileira. Em qualquer caso, porém, trata-se de obter, através da aco politica, a alteragdo das condigées prevalecentes no momento presente. E 0 drama reside em que, se essa ag4o devera necessari- amente transitar de algum modo pelo plano do institucional como objeto e ai fixar-se, através da criacdo de formalismos e regras antes de mais nada ao nivel da institucionalidade estatal, ela tem como condi¢do indispens4vel de sua eficdcia a de deitar raizes no plano do institucional como contexto, cuja viscosidade lhe é por definig4o adversa — caso contrério o problema de mudar tal contexto ndo se colocaria. Um aspecto do dilema é 0 de que se trata de criar (de maneira necessariamente artificial e deliberada) uma tradigdo (onde artificialismoedeliberag4o venhamaser dispensdveis, pois se tornaraespontaneo Direitos humanos e sociologia do poder 127 0 que atradi¢4o prescreva). Mas na verdade o problema é ainda mais complexo, pois tal criagdo artificial de uma tradigao se fard necessariamente contra tradi¢des j4 existentes e que a ela se opdem. Tais observages se referem sobretudo ao nivel sécio-psicoldgico. Contudo, uma ramificag4o importante do assunto consiste em que no insti- tucional como contexto se expressam formas cristalizadas de distribuigao social de poder, que os fatores de psicologia coletiva (ou ideolégicos, em sentido amplo) ajudam a configurar. A quest4o fundamental envolvida, por- tanto, nao se reduz a questo, por si mesma suficientemente complicada, de assegurar transformacgées culturais ou de psicologia coletiva que se déem em. diregao favordvel ao enraizamento e a afirmagao difundida de determinados direitos. Antes, a quest4o geral contém um inarredavel e decisivo componente de interag4o estratégica entre agentes dotados de identidades diferenciadas, recursos diversos e objetivos que freqiientemente sé em graus muito desiguais se traduzem em a¢4o coletiva organizadae capaz de pretender eficacianaesfera politica. Esse aspecto de poder e estratégia traz fatalmente para o centro da discuss4o 0 problema da natureza do estado. Com efeito, se se admite que a implantagdo ea garantia dos direitos humanos — quer se trate dos direitos civis ou liberais ou, com mais raz4o, dos direitos sociais — requer formalismos que se d4o no estado e o mobilizam, a presenga e a saliéncia do poder na conformacao do substrato social correspondente ao institucional como con- texto acarreta o problema de saber se cabe esperar do estado a capacidade de atuar de maneira consonante com aafirmacao de tais direitos, a qual necessari- amente envolverd a negacao do poder tout court. Em outros termos: cabe esperar do estado suficiente autonomia perante os focos sociais de poder? Trés parecem ser as perspectivas possiveis perantea questdo da natureza do estado e suas relagdes com o poder social em geral: (1) 0 estado como foco direto de relagdes de dominago ou como sujeito de poder a ser contido, o que corresponde a dtica liberal tradicional; (2) 0 estado como instrumento de relacdes de dominagao produzidas em outras esferas e eventualmente apropri- ado pelos titulares do poder social de qualquer tipo: no limite, trata-se aqui de teses como a do “comité executivo da burguesia”; e (3) 0 estado como o instrumento possivel, e talvez necessdrio, de conten¢do € neutralizagdo das relagdes de poder que emergem em diversas esferas e, mais amplamente, como instrumento potencial de todos. Uma primeira observacao de importancia a respeito é a de que a questo da democracia em sentido pleno se coloca na articulagdo dos desideratos contidos nos pontos 1] € 3 acima: como fazer do estado um instrumento real de todos, ou seja, um instrumento passivel de ser utilizado para neutralizar as relagdes de domina¢4o onde quer que surjam e de ser posto ao servigo de objetivos comuns, minimizando ao mesmo tempo os riscos de que venha ele 128 LUA NOVA Préprio, no processo de equipar-se para tais fins, a transformar-se no sujeitoou foco por exceléncia de relacdes de dominagdo. O recente tema da surveillance, da expansdo de um estado panopticon que de tudo se informa e tudo vé, é uma demonstrag4o do cardter permanentemente problematico da articulagaodaqueles desideratos mesmo num contexto onde ela pareceria ter encontrado solugao favordvel — pois tal tema emerge como preocupagdo crescente sobretudo entre os analistas do processo politico dos paises ocidentais avangados, de maior tradicdo liberal democratica. De outro angulo, cabe destacar que nao hd razdo para se tomar como. postulado alguma versdo da idéia do estado como “comité executivo” ou permanente instrumento exclusivo de determinada categoria ou classe social. E orechago dessa idéia enquanto postulado ou principio orientador de validez supostamente geral se impde nao em nome de uma idealizag4o consensualista e harm6nica da natureza profunda da realidade sécio-politica, masem nome da propria énfase “realista” no elemento de estratégia e poder a compor essa tealidade. Se cabe ver as instituig6es politicas como embebidas num processo de natureza estratégica e conflitual ao qual dao expressdo, ndo hd razdo para supor de antemo que tal processo deva resultar de uma vez por todas e em todos os casos em determinado grau de sujeico do estado a certas forgas sociais. Assim, 0 estado serd mais ou menos “‘aut6énomo” (mais ou menos socialmente “neutro” e capaz de fazer avangar o “interesse geral”) em funcdo do cardter menos ou mais cabal do triunfo de determinadas forgas sociais sobre outras e da conseqiiente possibilidade de se servirem dele para os seus préprios designios. Mas se tal perspectiva abre, em principio, espago para se conceber o estado (e eventualmente agir sobre ele ¢ através dele) em termos de desafio de construgo institucional e de juridificag4o que anteriormente se esbogou, € imperioso ter presente que esse espago se abre nas frinchas ou nos instersticios —no raro estreitos e precdrios — de relagdes que sdo antes de mais nada relagdes de poder. Nesses termos, esta é urna premissa talvez banal da sociologia politica, mas a meu jufzo indispensdvel e hicida. Do ponto de vista da quest4o dos direitos humanos e suas diversas faces, dessa premissa, em conjugag4o com a viscosidade que se revela na dialética acima descrita entre 0 institucional como objeto e o institucional como contexto e suas ramificagdes no plano da psicologia coletiva, decorrem certas conseqiiéncias antes cautelosas, para nao dizer abertamente pessimistas. Numa palavra, a de que qualquer ago empe- nhada na mudanga efetiva na esfera dos direitos humanos que pretenda desen- volver-se sobretudo através da manipulagdo da esfera institucional (nosso “institucional como objeto”) sera necessariamente uma agao de natureza incrementalista e atenta ao lastro real com que conte nas condi¢des prevalecen- tes na estrutura da sociedade — ou se frustraré em seus objetivos. Por certo, existe em principio a possibilidade da transformago revoluciondria. Mas esta, Direitos humanos e sociologia do poder 129 ademais de requerer condi¢Oes excepcionais as quais 0 aspecto estrutural nao éalhéio, nao se cumpre como tal na esfera da institucionalidade e da legalidade, as quais, no melhor dos casos, buscam formalizar e ajudar a rotinizar (e assim eventualmente a institucionalizar, propriamente) a operacdo de novas relagdes de poder que se tenham conquistado previamente. Se esse empenho de realismo sociolégico se aplica a quest4o dos direitos humanos tomada na 6tica da ameaca a democracia representada por regimes autoritdrios tais como os que presentemente vimos superando em nosso continente, as principais pondera¢es derivam de que o aspecto crucial do problema gira em tomo das relagdes entre democracia e capitalismo, Naturalmente, nado possivel entrar aqui nos meandros que a discussdo apropriada desse tema envolveria, mas enuncio 0 que me parece ser uma conclusdo central de importantes andlises recentes que dele se ocupam (ou pelo menos um desdobramento natural das conclusdes de tais andlises): a de que a convivéncia entre o capitalismo e a democracia é de fato (como sustentavam alguns, inclusive Marx € 0s liberais do século XIX) inerentemente problematica, € queaestabilidade que se terminou por alcangar nessa convivéncia em alguns paises ocidentais economicamente avangados € antes a excecdo do que a regra. Essa excego tem’a ver com 0 fato de que a maturacao do capitalismo viabiliza um compromisso que 0 garante como tal € no qual o “problema constitucional” suscitado pela operacao do prdprio capitalismo encontra solugdo, neutrali- zando-se a ameaga representada pela organizacao dos trabalhadores como classe e por sua afirmagao politica.* Nocaso de nossos paises, por contraste, essa ameaca, enquanto um dado da psicologia politica do establishment de nossos sistemas politico-econémi- cos, est4 sem diivida presente ¢ assume importancia como componente da dinamica politica. Naturalmente, a questéo do acerto da percepgao dessa ameaga enquanto diagndstico objetivo da capacidade de mobilizagao e acao politica dos trabalhadores ou dos “setores populares” € outra historia. Além de variar de pais para pais (globalmente falando, tal capacidade existe em muito maior grau na Argentina do que no Brasil, por exemplo), a heterogeneidade social e econémica de um pafs como o Brasil acarreta que a existéncia de segmentos aguerridos e visiveis, apesar de serem apenas uma fragdo relativa- mente pequena dos setores em questao, condicionem desproporcionalmente as percep¢des por parte do establishment, gerando, entre atores decisivos como 0 empresariado e os militares, uma espécie de “complexo de sublevagdo” que atua permanentemente e os predispde a colocar de lado os pruridos liberal- “Veja-se Claus Offe e Volker Ronge, “Teses sobre a Fundamentacao do Conceito de Estado Capitalista", em CLaus Otfe, Problemas Estruturais do Estado Capitalista, Rio de Janeiro, Terhpo Brasileiro, 1984; e especialmente Adam Przeworski, Capitalism and Social Democracy, Nova lorque, Cambridge University Press, 1985, particularmente o cap. 4. 130 LUA NOVA democraticos sempre que parega necessdrio. De sorte que, na perspectiva da premissa restritiva recém-formulada, 0 caso do Brasil aparece como reunindo, sob certa luz, o pior de dois mundos: no que se refere as condigdes que caracterizam os setores populares, temos extrema desigualdade, pobreza abjeta em grande escalae marginalidade social, acompanhadas, ao nfvel subjetivo, de enorme desinformacao e alheamento politicos e de suscetibilidade 4 manipu- lagdo de tipo clientelista ou populista; no que se refere ao establishment, porém, umaatitude de suspeita perantea incorporacao politica conseqiiente dos setores populares e de temor pela ameaga de subversdo dos valores vistos como realizados no sistema vigente — ¢ uma disposigdo pronta a defesa autoritéria de tais valores, Se observamos nessa dtica os trabalhos da assembléia constituinte presentemente reunida no Brasil - certamente o exemplo mais Obvio, na América Latina da atualidade, de um esforco para instituir juridicamente novos direitos democrdticos -, surge com clareza 0 que hd de precdrio e mesmo. ilusério na expectativa de que a nova constituigdo que se elabora venha a representar instrumento eficaz e duradouro de institucionalizagao real de um proceso politico democratic. Parte importante da precariedade de tal expec- tativa tem a ver com a mitificagao de que a assembléia constituinte tende a ser objeto, associando-se com a percep¢4o equivocada de que atarefa de preparagao da nova constitui¢do se d4 numa espécie de momento “fundacional” no qual se trataria de redesenhar profundamente, com os olhos postos no milénio, as relagdes de poder existentes. Aocontrério, creio que o objetivo de fazer avangar Os prospectos de eventual consolidagao da democracia no pais estaria melhor servido pelo predominio de uma atitude realista que, atenta aos limites impostos & geracdo presente, estivesse propensa a experimentar menos orto- doxamente na regula¢do do jogo real. de poder que aqui se processa - jogo este que (para ilustrar com um ponto especialmente sensivel 0 que se prope) inclui fatalmente os militares, por exemplo, e que ndo estard sendo regulado adequadamente se as disposigSes constitucionais a respeito deles se limitarem, como tudo indica que ocorrerd, a proibir voluntaristicamente sua atuagdo politica, apegando-se a tradicional fic¢ao em que figuram como guardiaes neutros ¢ profissionais da legalidade democratica sob 0 comando das autori- dades constituidas. Mas 0 caso.do Brasil evidencia ainda, particularmente no que revela quanto aos tragos prevalecentes entre os setores populares, um matiz impor- tante do assunto, matiz este no qual se tocou apenas de passagem acima: o de que o aspecto sécio-psicoldégico (ou ideoldgico no sentido amplo da expressdo, incluindo o componente cognitivo ou intelectual) é uma dimensao relevante da questo geral relativa ao cardter estratégico ou de poder inerente a qualquer discussao conseqiiente de direitos. Se a questfo é considerada, ainda com referéncia ao Brasil, ndo na perspectiva estrita da alternancia de regimes Direitos humanos e sociologia do poder_131 formalmente democraticos e autoritérios, mas na perspectiva anteriormente indicada da superag4o da negag4o cotidiana e permanente de direitos elemen- tares a amplas parcelas da populaco, uma indagacdo crucial é a de avaliar os requisitos que tal supera¢do envolveria em termos de poder. O que me parece possivel propor a respeito — € que encerra, admitidamente, grandes perplexi- dades e algum tour de force analitico - se funda no reconhecimento de que, nas condigdes psicolégicas basicamente de conformismo social por parte dos setores populares, que decorre da grande desigualdade da estrutura social brasileira ¢ de seu lastro escravista, dificilmente caberia esperar a reversdo desse estado de coisas num futuro visivel através do acesso espontineo e auténomo de tais setores ao sentido profundo da propria dignidade ¢ A disposigao de afirmé-la socialmente. Por outras palavras: sem que se garanta para os setores populares brasileiros, de alguma forma, a modificagdo das circunstancias correspondentes a dimensdo social da cidadania tal como concebida na classica andlise de T.H.Marshall (ou seja, sem 0 acesso de tais setores a patamares minimamente adequados de bens de satide e educagao, em particular), nao h4 como esperar, por exemplo, que suas relagdes cotidianas com a face policial do aparelho do estado — onde estio em jogo mais diretamente os aspectos da cidadania relativos aos direitos civis, supostamente mais basicos - possam dar-se em termos que nao redundem, precisamente, na negagao pura e simples da condigdo de cidadao. Isso envolve, naturalmente, uma corre¢do a visdo de Marshall, para quem a conquista dos direitos civis antecede e viabiliza a dos direitos politicos e, finalmente, a dos direitos sociais (corregdo esta que, por outra parte, jd foi proposta em texto recente de Anthony Giddens, que sugere 0 estreito entrelagamento da luta pelos diferentes aspectos da cidadania)®. Mais importante, porém, é a pergunta de como se poderia pretender obter algum avango no acesso aos direitos sociais em circunstancias em que, por definigdo, nao cabe esperar muitoem termos de acao auténoma das categoriais sogiais diretamente afetadas. Obviamente, nado ha como escapar de se ver no estado o agente da implantacdo e garantia dos direitos sociais, 0 que equivale a pretender vir a ter no estado brasileiro um genuino welfare state, em contraste com a caricatura emperrada e ineficiente a que corresponde atualmente a atuagao do estado no campo da previdéncia social. Se essa expectativa parece chocar-se, por um lado, com a conjugacao entre a concepg4o do estado como expressao de relagées de poder € 0 diagnéstico dos setores populares brasileiros como destituidos de poder, cabe observar que a montagem da aparelhagem estatal brasileira, em suas dimensdes de assistencialismo social paternalista e de corporativismo nas relagdes com 0 movimento trabalhista, é ela prépria Santhony Giddens, *Class Division, Class Conflict and Citizenship Rights”, em A Giddens, Profiles and Critiques in Social Theory, Londres, MacMillan, 1982. 132_LUA NOVA associada com freqiiéncia, nas andlises pertinentes, com designios estratégicos de controle de motivagdo autoritéria, A expectativa aqui formulada de ver o estado transfarmar-se em instrumento mais auténtico de uma politica social eventualmente bem-sucedida ndo nega esse ingrediente de controle e de autoritarismo: ao contrario, parte de reconhecé-lo e mesmo de afirmar a necessidade do patemalismo que com ele se articula. Ela enxerga também, contudo, o espago de luta, por restrito que seja, que se revela e se abre no aparelho do estado através da necessidade de cooptag4o paternalista e corpo- rativista. A partir daf, coerentemente com o empenho de construgdo insti- tucional transformadora necessariamente incrementalista que deriva das premis- sas realistas que orientam a anilise, ela se propde tratar de fazer bom uso, para o objetivo da expansdo dos direitos de cidadania, da tradi¢do estatizante da qual © corporativismo e o paternalismo sdo partes — usualmente vistas, na literatura dedicada a tais temas, como objetos merecedores de dentincias. Por certo, estamos longe do melhor dos mundos, Mas é, acredito, nesse espago de tensdo entre o esforcgo de diagnéstico ltcido e a indispensdvel referéncia normativa que tera de mover-se, se pretender ser proveitosa, a discuss4o do problema dos direitos humanos em nossa atualidade.

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